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Estágio Básico Institucional-II:- Enquadres Clínicos diferenciados nas instituições sociais, de saúde e na comunidade Uma provocação inicial ao setting da Psicologia clínica Tradicional Prof. Dr. Roberto Evangelista Doutor e Mestre em Psicologia Clínica pela USP Caro aluno Felizmente a Psicologia Clínica de hoje começa a resgatar uma dívida histórica com a população que tradicionalmente menos favorecida socialmente não dispunha dos serviços psicológicos. É consenso geral de que a Psicologia de ontem ficou por década amalgamada e encapsulada às consultas elitizantes nas clínicas particulares. Conseqüentemente, um percentual expressivo de indivíduos e coletivos humanos ficou desassistido pelos psicólogos clínicos e, de outro lado, as técnicas, instrumentos e procedimentos psicológicos ficaram restritos para aquela clientela, ou seja, a clínica padrão (sujeitos de classe social mais favorecido economicamente e culturalmente). Do mesmo modo é lícito afirmar que ainda nas escolas de formação de psicólogos tem sido significativo o percentual de alunos candidatos a psicólogos interessados na área clínica da Psicologia. 1

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Estágio Básico Institucional-II:- Enquadres Clínicos diferenciados nas instituições sociais, de saúde e na comunidade

Uma provocação inicial ao setting da Psicologia clínica Tradicional

Prof. Dr. Roberto EvangelistaDoutor e Mestre em Psicologia Clínica pela USP

Caro aluno

Felizmente a Psicologia Clínica de hoje começa a resgatar uma dívida

histórica com a população que tradicionalmente menos favorecida socialmente não

dispunha dos serviços psicológicos. É consenso geral de que a Psicologia de ontem

ficou por década amalgamada e encapsulada às consultas elitizantes nas clínicas

particulares. Conseqüentemente, um percentual expressivo de indivíduos e coletivos

humanos ficou desassistido pelos psicólogos clínicos e, de outro lado, as técnicas,

instrumentos e procedimentos psicológicos ficaram restritos para aquela clientela, ou

seja, a clínica padrão (sujeitos de classe social mais favorecido economicamente e

culturalmente).

Do mesmo modo é lícito afirmar que ainda nas escolas de formação de

psicólogos tem sido significativo o percentual de alunos candidatos a psicólogos

interessados na área clínica da Psicologia. Neste sentido é bom que se diga logo de

início que o método clínico (carro chefe da Psicologia Clínica) pode ser aplicado em

qualquer situação humana, seja no tradicional consultório psicológico, na comunidade,

nos coletivos humanos, nas instituições sociais e de saúde, inclusive as públicas, nas

praças e ruas da cidade, nas visitas domiciliares, etc. O que na verdade define a

Psicologia clínica evidentemente não é o seu espaço geográfico (salas pintadas de cor

branca ou consultórios equipados com mobiliários tais como: divãs ou poltronas

terapêuticas) e sim, o seu método de trabalho definitivamente denominado de método

clínico.

Neste diapasão é comum vocês restringirem a clínica psicológica com o

espaço geográfico ou seu mobiliário. Por exemplo, existe consultório psicológico que

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dispõe do divã e nem por isto o trabalho é psicanaliticamente orientado. Em muitos

casos, o divã é apenas um acessório ou um móvel utilizado para técnicas de relaxamento

e despressurizarão. Mas ao vê-lo, é comum logo de cara pensar tratar-se de um

consultório de analista ou de uma terapia psicanalítica simplesmente pela visão do

mobiliário (divã). O contrário também é verdadeiro, muitos trabalhos psicanaliticamente

orientados vem ocorrendo em situações que fogem do setting tradicional da psicanálise,

ou melhor, da clínica padrão horizontal (paciente deitado em um divã analítico). Já deve

ser de conhecimento de vocês que a Psicanálise tem sido levada a comunidade, aos

hospitais, as instituições sociais, aos coletivos humanos com arranjos bastante

diferenciados do setting tradicional (dispositivo padrão) e adaptados às condições

concretas de vida contemporânea.

Winnicott já naquela época em “mil novecentos e bolinha”, utilizava-se do

conhecimento e do trabalho psicanaliticamente orientado ao atendimento sob demanda,

ao que se referiu como importante para a adaptação às necessidades do paciente. Neste

modo de fazer a psicanálise realizada com a técnica do rabisco em um espaço

geográfico diferente do tradicional consultório particular. No setor de pediatria do

hospital, produziu evidentemente um excelente alcance social da Psicanálise e,

obviamente com arranjos bastante flexíveis, criativos e diferenciados do então setting

preconizado para a época. Vale dizer, nosso “pai intelectual”, o próprio FREUD, em

1919- Em os caminhos da terapia psicanalítica- anunciava com muita perspicácia e

com um largo horizonte a seguinte mensagem “...defrontamo-nos então com o trabalho

de adaptar nossa técnica às novas condições”. O recado foi deixado e evidentemente

cabe aos profissionais e a todos nós interessados na psicanálise deste mundo

contemporâneo a cumprir de modo sistemático, técnico, ético, estético, criativo e

flexível tais enunciados.

Com o propósito de a Psicologia Clínica resgatar a dívida histórica com a

população tradicionalmente desprovida dos serviços psicológicos, a Psicologia de hoje

começa a sair dos consultórios particulares e a ganhar espaços nas diversas atividades e

setores dentro da comunidade, das instituições sociais, de saúde pública e dos coletivos

humanos. Em decorrência, inaugura-se o que hoje estamos denominando de clínica

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ampliada e abrem-se novas oportunidades de estágios para o candidato a psicólogos e de

novos campos de ação psicológica para o psicólogo na sociedade brasileira.

Devo lembrá-los que o nosso material de trabalho é sempre a subjetividade

humana que se expressa no individuo e nos coletivos humanos a partir de diferentes

modos de produção e expressão de sentidos, onde a palavra falada é apenas uma delas.

Somos na verdade observadores de subjetividades na circulação humana, ora nós somos

bastante calados, outras vezes faladores e “palpiteiros”, ora apresentamos um simples

gesto humano de continência, mas sempre e constantemente atentos às relações

humanas e aos laços afetivos (Mendonça, T.C.P. As oficinas na saúde mental: relato

de uma experiência na internação. Psicol. cienc. prof., dez. 2005, vol.25, no.4).

Assim, onde houver indivíduo e coletivo humano, lá poderá estar a Psicologia clínica

ampliada- a clínica do social.

A dimensão da clínica ampliada poderá estar presente no encontro com

pacientes em variadas situações, seja em seu leito hospitalar no hospital geral, no

cotidiano de uma oficina lúdica para crianças nas ruas ou praças da cidade, em uma

oficina de criatividade, informativa e de sentimentos para adolescentes, em um grupo de

reflexão para mulheres vitima de violência doméstica, no acolhimento com usuários

dependentes de droga ou com sujeitos com transtornos mentais, em visita domiciliar em

saúde mental, encontros inter-humanos junto aos idosos institucionalizados, em uma

brinquedoteca hospitalar ou comunitária, num encontro com pacientes em sessão de

hemodiálise, com funcionários-profissionais de saúde, dentre outros espaços. O espaço

físico é o menos importante. O que fará a diferença é o olhar atento e a escuta

qualificada neste encontro inter-humano. O olhar e a escuta são evidentemente as

especiarias subjetivas que faz toda a diferença entre este encontro intersubjetivo (você e

o outro demandado) de um encontro qualquer não especializado.

Vale dizer, trabalhamos nesta clínica ampliada com o método clínico em um

setting bastante diferente da clínica tradicional. A começar, vamos até onde a pessoa

está e, em muitos trabalhos, ofertamos materialidades concretas como forma facilitadora

do encontro e da comunicação interhumana, desenvolvendo, por exemplo, atividades

concretas nas oficinas terapêuticas, com a apresentação de objetos e holding numa

perspectiva winnicottiana.

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É bom que se diga desde já, não estamos preocupados meramente com a

realização das atividades propostas em oficinas ou simplesmente apresentação de

materialidades. Estamos sim, considerando os modos de sustentação do sujeito em sua

forma de expressão nas atividades realizadas. Assim, a oficina é uma extensão da

clínica ampliada e o seu efeito terapêutico é de cunho psicossocial, produzindo efeitos

subjetivos e socializantes. Poderá ser inclusive espaço de cidadania (Mendonça, T.C.P.).

O sujeito poderá fazer-se presente por e pela expressão da atividade na oficina

terapêutica. Do mesmo modo num encontro intersubjetivo entre você e a parturiente

hospitalizada ao ser apresentada e ofertada uma revista de bebes para facilitar o

encontro inter-humano surgirá, por exemplo, uma questão a ser pensada e trabalhada.

Lembramos ainda, estamos à escuta de uma linguagem muitas vezes sem

palavras, quando se trabalha com materialidades concretas, a partir da qual tais

produções podem instituir canais de troca, encontros e criar novos universos

existenciais. Mediação e conciliação também são instrumentais necessários que

devemos ter neste tipo de trabalho (Mendonça, T.C.P.). Quando se propõe trabalhos

com oficinas terapêuticas, os “oficineiros psi” deverão pensar, planejar e orientar as

atividades dentro de parâmetros éticos, estéticos e técnicos dentro de uma provisão

ambiental confiante, acolhedora e sustentadora.

Finalmente para arrematar a provocação inicial e dentro da perspectiva acima

elencada, ofertamos a vocês alunos do sexto período, possibilidades ainda que modesta,

de iniciar uma reflexão sobre a clínica ampliada, questionamento este, que será apenas

um “tira gosto”, pois o prato principal está por vir, quando no quinto ano (nono período)

deste curso, vocês poderão optar pela realização de uma área de estágio, denominada

Preventiva ou Psicossocial. Mãos a obra!

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