TESTAMENTO VITAL Tinha era a minha uma tinha artificialmente a · de cada um. Números não há mas...

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TESTAMENTO VITAL Cristina Salgueiro, 45 anos, morreu na quinta-feira. Tinha uma doença incurável a degeneração física era irreversível. "Não vou admitir que outros decidam sobre a minha morte", disse ao Expresso uma semana. Jurista, tinha escrito o seu testamento vital, onde exigia que não lhe prolongassem artificialmente a vida. O marido respeitou a sua vontade: Cristina teve uma crise respiratória e ele deixou-a ir. um mês que a lei permite aos portugueses escolherem os seus cuidados terminais. P24

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TESTAMENTO VITAL Cristina Salgueiro, 45 anos, morreu na quinta-feira. Tinha uma doença incurável — a degeneração física erairreversível. "Não vou admitir que outros decidam sobre a minha morte", disse ao Expresso há uma semana. Jurista, tinha escrito o

seu testamento vital, onde exigia que não lhe prolongassem artificialmente a vida. O marido respeitou a sua vontade: Cristina teveuma crise respiratória e ele deixou-a ir. Há um mês que a lei permite aos portugueses escolherem os seus cuidados terminais. P24

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SAÚDE

Textos VERA LÚCIA ARREIGOSOFoto JOSÉ VENTURA

er medo de ter medono momento final. Foinisto que Cristina Sal-

gueiro mais pensounos últimos dias dos

seus 45 anos de vida,subitamente encurta-da por uma escleroselateral amiotrófica ve-

loz. Morreu na quinta-feira, ao final do

dia, em casa e como quis. Tinha tudo deci-dido desde novembro, quando o prognós-tico de uma deterioração física irreversí-vel lhe deu uma certeza: ninguém iria de-cidir por ela como seria a sua morte.

"Neste momento, só tomo 'drogas'que aumentam o meu bem-estar masnão prolongam o tempo de vida. Atédeixei de tomar o medicamento para o

coração — seria bom morrer por falên-cia cardíaca", confessou sem hesitaçãoao Expresso, na passada semana, sem-

pre de olhos no marido que, amiúde,lhe levava água à boca por uma palhi-nha e, mesmo contrariado, ainda a aju-dava a fumar.

Não foi o coração que falhou. Foramos pulmões, lentamente e sem sofri-mento. E no momento da crise respira-tória, o marido fez o que ela, jurista,tinha decidido e escrito no seu testa-mento vital. "Como sei que nem sem-

pre se cumprem as orientações do

doente, deixei tudo muito claro: não

quero suporte artificial de vida; se nãotiver vontade de comer, não quero queme impinjam comida e não quero quechamem o INEM na fase crítica porquepoderão atuar sem respeitar a minhavontade e levar-me para um hospitalpúblico, onde corro o mesmo risco",contou Cristina.

O mando so não conseguiu cumpriruma promessa: a de lhe levar o notárioa casa para que Cristina oficializasse otestamento vital, como a lei lhe permi-tia desde há um mês. Faltou-lhe tempo.

Cristina não é caso único (ver textosem baixo). Há mais como ela, doentesou saudáveis, a deixar expressa a últi-ma vontade. Desde a entrada em vigor

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da legislação, os notários têm recebidodiariamente pedidos de esclarecimen-tos sobre o que é necessário para pôrpor escrito as decisões sobre a mortede cada um. Números não há mas o bas-tonário da Ordem dos Notários, JoãoMaia Rodrigues, crê que existam pertode cem documentos anteriores à legisla-ção, e que agora ganham força de lei —

"Os colegas têm recebido vários telefo-nemas de pessoas a fazer perguntas."

Nos cartórios o tema também suscitainteresse. "Agendámos duas ações de

formação (a primeira hoje) para 80 no-tários cada e a procura foi superior a

esperada." Ainda assim, diz-se convictode que esta lei não é para massas.

Jorge Veríssimo, advogado, já ajudouclientes a redigir documentos sobre aassistência médica terminal. "A maio-ria das pessoas ainda não sabe o que é otestamento vital porque a lei é recentee saiu em férias, mas estou convicto de

que irá evoluir como o testamento parabens: primeiro era para alguns e hojepara muitos." E defende os clínicos:"Tenho notado nos médicos com quemfalo que há um critério de razoabilida-de nos tratamentos de fim de vida."

Assegurar a vontade do doenteO sociólogo Villaverde Cabral discordae acredita que nem sempre se cumprea vontade do doente. "Os médicos e os

advogados é que decidem e mesmo o

testamento vital dá-lhes a última pala-vra". E vaticina: "Será uma lei para aclasse média-alta; a sociedade portu-guesa não está interessada na morte."

Já para a Ordem dos Médicos, a dis-cussão não traz novidades. "O testa-mento vital não vem acrescentar nadade significativo porque o nosso códigodeontológico respeita a vontade dodoente, embora seja obrigação do médi-co insistir nas vantagens de um trata-mento", salienta o bastonário, José Ma-nuel Silva. Mas faz uma crítica: "As pes-soas continuam presas ao papel pater-nalista do médico; o testamento vital é,

sobretudo, para a família do doente."Era a isso que se agarrava o marido

de Cristina, para no momento críticoter coragem de cumprir a sua vontade."Assim sei exatamente o que a minhamulher quer. O testamento vital supor-

ta a decisão que terei de tomar e assim

ninguém poderá colocá-la em dúvida",disse há uma semana. O momento che-

gou dias depois. Cristina respondeu-lhecom um sorriso. Sabia quão difícil era o

que lhe pedia: "Tenho pouco tempo devida. Sofro, mas isso não é nada compa-rado com o que ele está e vai passar".

O papel protetor do documento é sa-lientado também por Lavra Ferreirados Santos, autora do primeiro livro so-bre o tema em Portugal, em 2011.

"Quem faz um testamento vital acha osofrimento desnecessário e não reden-tor como as gerações anteriores." Paraesta professora universitária, "os meiosatravés dos quais esta nova lei vai seroperacionalizada serão decisivos, se-não as pessoas não sabem que existe".

A tarefa cabe à Direção-Geral da Saú-de. Até ao fim do ano será criado o Re-gisto Nacional do Testamento Vital,que incluirá um acesso informático pa-ra os cidadãos registarem a sua vonta-de e para os médicos a consultarem.varreigoso @ expresso.impresa.pt

P&RO que é o testamento vital?

E um documento que permite à pessoaexpressar antecipadamente que cuida-dos de saúde quer ou não receber quan-do estiver incapaz de comunicar a suavontade de forma consciente e autóno-ma. Este direito está consagrado emlei, em vigor desde 15 de agosto, paracidadãos maiores de idade sem anoma-lia psíquica e capazes de dar o consenti-mento livre e esclarecido. A recusa detratamento não é eutanásia — que im-plica a participação ativa do médico namorte do doente, por exemplo adminis-trando fármacos letais.

Como se faz?

Depois de aconselhamento médico e fa-miliar, é elaborado um documento es-crito (pelo titular, por um médico ou

por um advogado) e assinado na presen-ça de um notário ou de um funcionário

do futuro Registo Nacional do Testa-mento Vital. Esta entidade está a sercriada pela Direção-Geral da Saúde pa-ra reunir e manter atualizadas as decla-

rações dos cidadãos que optem por as

registar. Prevê-se que esteja a funcio-nar antes do fim do ano e dará acesso,também com carácter opcional, a umaminuta de testamento vital.

Como é que o médico sabe seo doente tem testamento vital?

A existência do documento pode ser co-nhecida de duas formas. Para já, por in-termédio de familiares do doente ou do

procurador de cuidados de saúde (no-meado previamente, à semelhança dos

procuradores para atos jurídicos). Apartir do final do ano, através do Regis-to Nacional do Testamento Vital paraos documentos ali 'depositados'. A for-ma de funcionamento do Registo públi-co ainda está em definição, mas deveráincluir meios informáticos para que osmédicos — nas unidades do SNS e, nofuturo, em toda a União Europeia —

,

tenham acesso imediato aos testamen-tos registados. Será indispensável no ca-so de doentes sós e sem procurador.

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ORDEM DOS MÉDICOS DEFINE QUEM NÃO DEVE SER REANIMADO

A Ordem dos Médicos prepara-separa publicar as regras que vão ditar

quando os clínicos devem ou não reanimarum doente. Até agora havia orientações,claras, sobre o que fazer, mas o desfechode cada caso terminal era sempre umadecisão individual do clínico. "Os princípiosque existiam foram institucionalizados

para dar um suporte legal e técnicoà decisão do médico", explica o bastonário,José Manuel Silva. Na prática, as regrasvão dar ao médico a total legitimidade paranão reanimar um doente, salvo rarasexceções. sempre com o consentimento

explícito da família.No documento a que o Expresso teveacesso, é salientado que "os limitesda intervenção do médico são impostospelo estado atual do conhecimento médico,pelas possibilidades humanas e técnicas

disponíveis e deve ter sempre presenteo princípio ético da não maleficência,de forma a garantir a dignidadedo ser humano em todas as fases da vida,incluindo a terminal". E tendo em contaeste preâmbulo, não são reanimados:

Doente com infeção generalizada(sépsis) que não respondeao tratamento e que evolui paraa falência irreversível de órgãosDoente com paragemcardiorrespiratóriaque não reageàs manobras de reanimaçãonem recupera as funções cerebrais,evoluindo para a falência irreversívelde órgãosDoente com insuficiência cardíacaterminal, sem indicação paratransplante nem melhoria clínica,que sofre uma lesão agudae uma deterioração rápida do seuestado de saúdeDoente com patologia respiratóriaterminal, vítima de um episódio agudo,que não melhora após o tratamentoe que evolui para a degradaçãoirreversível de mais órgãos vitaisInsuficiente renal crónicoem hemodiálise e que sofre de:demência crónica profundae irreversível; AVC com défice motore intelectual profundo, comoa perda total da capacidade de relação;cancro grave, metastizado e com

um reduzido prognóstico de vida;e qualquer outra doença crónicaincurável e com uma previsãode sobrevivência inferiora três mesesDoente com problemas neurológicosgraves e irreversíveis em estadovegetativo persistenteDoente com cancro em estado avançadoe irreversível, cuja evolução conduzà degradação progressiva do estadofísico e da atividade na fase finalda doença

PEDIATRIA Mediante a certeza absolutade que nada mais pode ser feito, quando:

A avaliação clínica considera

que a ressuscitação não beneficiaa criançaOs pais ou tutores expressamo desejo, ou dão o seu assentimento,ao médico para não reanimar de acordocom superior interesse da criançaA decisão é fundamentadana previsível morte da criançacom doença terminal ou questionávelqualidade de vida, que culminanuma paragem cardiorrespiratória

TESTEMUNHOS

RUI NUNES 50 anosProfessor catedrático da Faculdadede Medicina do Porto

Em 2006 fez a primeira versão do seutestamento vital, inspirando-se no quese fazia lá fora, e enviou-a para oParlamento para que os deputados se

inspirassem e dessem aos cidadãos odireito de escolha sobre os cuidados desaúde em fim de vida. A lei só nasceria

seis anos depois. "Fi-lo com base nos pressupostos de que mais

importante do que prolongar a vida é ter um processo de mortecom paz e dignidade e no dilema de que a obstinação terapêuticapara uns médicos não o é para outros." Falou com a família direta e

com um colega e, desde então, guarda os desejos clínicos terminaisno escritório de casa. "O meu testamento vital dá um sinal claro de

que não quero ser submetido a nenhum tratamento que o bomsenso entenda como desumano e que me prolongue a vida deforma fútil." Teme, por exemplo, o estado vegetativo persistente:"Não é muito diferente de ligar um cadáver a um ventilador."

MARIA FILOMENA MONICA 69 anosSocióloga

Peguei numa caneta e redigi: se ficar

paralisada totalmente, se ocorrer umasituação em que os médicos só me

possam manter viva através de

alimentação via gastronasal ou do

estômago, se sofrer de uma doençaincurável e estiver em sofrimento, se aminha vida se tornar vegetativa, sem

possibilidade de recuperar o estatuto de ser humano, racional e

detentor de memória; não quero que a prolonguem." Desde 2005

que a socióloga tem a missiva "num grande subscrito, guardado emcasa". A vida em Inglaterra e um drama familiar fizeram-na pensarna morte. "Quero poupar a dor aos que amo e facilitar-lhes a vida.A minha mãe teve Alzheimer, deixou de engolir e dividimo-nossobre se a entubava." A recordação fê-la até pedir formulários àclínica suíça que pratica eutanásia, mas ficaram em branco.

"Ninguém, a não ser quem é excecionalmente determinado, desejamorrer num país longínquo."

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FÁTIMA BONIFÁCIO 64 anosHistoriadora

"Quero morrer sossegadamente, semutilização das tecnologias que hojepermitem manter num limbo os sereshumanos". Esta é a mensagemprincipal que Fátima Bonifácio temescrita desde 2005 para os seus últimosdias de vida. "Foi nessa altura porquecomecei a aproximar-me dos 60 anos e

despertei para a velhice, a doença e a morte." Seguiu o testamentovital de uma amiga e não o partilhou com ninguém: "Apenascomuniquei a existência do documento à minha filha e aos amigosmais próximos, que sabem que se encontra no meu computador".Sigilo que irá alterar. Agora que a lei entrou em vigor vai "pedir ao

advogado que trate das formalidades para que o testamento não

possa ser desrespeitado". Para a historiadora, ter cuidados

expressos por escrito não dá mais preparação para a morte, masfaz com que os seus beneficiários se sintam "mais protegidoscontra sofrimentos inúteis".

ANTÓNIO BARRETO 69 anos

Sociólogo

A pasta é pessoal, do conhecimento de

uma pessoa de família e há umadécada que guarda as orientações deAntónio Barreto para um estado clínicoirreversível. "Por várias razões e

experiências, percebi que, em certas

situações de doença ou desastre, hádecisões muito difíceis de tomar, tanto

para familiares como para médicos e demais pessoal de saúde, e

pode também o próprio não estar em condições de avaliar edecidir. Finalmente, aprendi com alguns médicos amigos que o

'encarniçamento' ou a 'performance tecnológica' podemsobrepor-se à qualidade de vida ou à decisão autónoma da pessoa".Ele próprio redigiu o testamento vital, pedindo a um médico amigopara "corrigir uns termos mais médicos", e discutiu-o somente coma mulher. "Até hoje, o documento teve uma vida exclusivamente

privada. Agora, com a lei em vigor, terei de ver o que é necessário

ou aconselhável fazer".