TESE

download TESE

of 201

Transcript of TESE

Universidade do Estado do Rio de JaneiroCentro de Educao e HumanidadesFaculdade de EducaoTalita Vidal PereiraTradio e inovao: sentidos de currculo que se hibridizam nosdiscursos sobre o ensino de Cincias nos anos iniciais do EnsinoFundamentalRio de Janeiro2011Talita Vidal PereiraTradio e inovao: sentidos de currculo que se hibridizam nos discursossobre o ensino de Cincias nos anos iniciais do Ensino FundamentalTeseapresentadacomorequisitoparcialparaobtenodottulodeDoutor,aoProgramadePs-graduao em Educao, da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro.Orientadora: Prof. Dra. Maria de Lourdes Rangel TuraRio de Janeiro2011 CATALOGAO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A Autorizo,apenasparafinsacadmicosecientficos,areproduototalou parcial desta tese. ________________________________________ ______________ Assinatura Data P436 Pereira, Talita Vidal. Tradio e inovao : sentidos de currculo que se hibridizam nos discursos sobre o ensino de Cincias nos anos iniciais do Ensino Fundamental / Talita Pereira Vidal. 2011. 199 f. Orientadora: Maria de Lourdes Rangel Tura. Tese (Doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educao. 1. Cincia - Estudo e ensino (Ensino fundamental) - Rio de Janeiro (RJ) - Teses.2. Currculos - Avaliao - Rio de Janeiro (RJ) - Teses. 3. Currculos - Mudana - Rio de Janeiro (RJ) - Teses. 4. Escolas de ensino fundamental - Teses.I. Tura, Maria de Lourdes Rangel. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educao.III. Ttulo. nt CDU372.85 Talita Vidal PereiraTradio e inovao: sentidos de currculo que se hibridizam nos discursossobre o ensino de Cincias nos anos iniciais do Ensino FundamentalTeseapresentadacomorequisitoparcialparaobtenodottulodeDoutor,aoProgramadePs-graduao em Educao, da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro.Aprovada em 17 de agosto de 2011.Banca Examinadora:Prof. Dra. Maria de Lourdes Rangel Tura (Orientadora)Faculdade de Educao - UERJ Prof. Dra. Alice Casimiro LopesFaculdade de Educao - UERJ Prof. Dra. Miriam Soares LeiteFaculdade de Educao - UERJ Prof. Dra. Maria Ins Petrucci RosaUniversidade Estadual de Campinas Prof. Dra. Mrcia Serra FerreiraUniversidade Federal do Rio de JaneiroRio de Janeiro2011DEDICATRIAAos meus pais Iracy e Edinaldo, pois foi a f nas possibilidades da educao que osdois cultivavam que me permitiu chegar at aqui. s minhas filhas Iara e Clara peloapoio, pelas crticas e confiana. minha irm Tnia e ao meu irmo Carlos, pelocompanheirismo. grande amiga Maria da Glria Ribeiro (Glorinha), que se aindaestivesseentrensestariavibrandocomigotalcomovibrouemeestimulounoinciodessacaminhada.E,comonopoderiadeixardeser,aDoraeaBethprofessoras que me acolheram e possibilitaram a realizao do estudo.%+6%()'-1)2837minhaorientadoraquerida,ProfessoraMariadeLourdesTura,porter apostado em mim desde o incio. sprofessorasAliceLopes,MrciaSerra,MarialnsPetrucciRosaeMirian Leite, cujas contribuies so fundamentais para suscitar novas reflexes. FAPERJpelabolsaconcedida,quepermitiuqueeumededicasse exclusivamente realizao do curso. ASecretariaMunicipaldeEducaopelaoportunidadederealizaroestudoe sdireeseaosprofessoreseprofessorasdasduasescolasemquerealizeio estudo. AosprofessoreseprofessorasdoProPEdpeladedicao,pelo profissionalismo e pela ateno e carinho que sempre recebi de todos e todas. AoscolegasdoProPEdpelasexperinciaspartilhadasemdiferentes momentosnesseperodo.EmespecialaosalunosealunasdaLinhadePesquisa Currculo: sujeitos, conhecimento e cultura. Jorgete, Morgana, Ftima, Nazareth e Sandra, funcionrias do ProPEd. ABonnie,Cassandra,HugoeSrgiopelasdiscussesacaloradassobreos estudosdeErnestoLaclau,quepossibilitaramaconsolidaoterico-analtica fundamentais na produo desse texto. AoamigoRicardoMartinspelafora.EaoamigoPauloCsarSantospela leituraatentadotexto.Emnomedosdoisagradeoatodososamigoseamigas sempre presentes me incentivando e me apoiando. Aoscompanheirosecompanheirasdogrupodepesquisa:Alda,Thas,ltala, Fernando, Mrio, Marize e Tnia. E um agradecimento especial s amigas e parceiras desempre,LucianaeTeresa,quemeajudaramadecifrarateiadesignificados tecidos nos currculos da rede municipal.RESUMOPEREIRA, Talita Vidal.: sentidos de currculo que se hibridizam Tradio e inovaonos discursos sobre o ensino de Cincias nos anos iniciais do Ensino Fundamental.2011. 199 f. Tese (Doutorado em Educao) - Faculdade de Educao,Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.Este estudo se insere em uma abordagem Ps-estruturalista. Nele, o conceitodediscursodesenvolvidoporLaclauutilizadocomocategoriadeanliseparainvestigaroprocessodelegitimaodosabercientfico.OconceitoderecontextualizaoporhibridismopropostoporLopes(2005;2006a)orientaaanlise dos discursos produzidos nos diferentes contextos de produo curricular, apartir da abordagem do ciclo de polticas desenvolvida por Bowe, Ball e Gold (1992)e Ball (1994). No trabalho, so identificadas as demandas articuladas nos discursosde uma comunidade de pesquisadores que tm investigado o ensino de cincias nosanosiniciaisdoEnsinoFundamental.Oestudotambmapresentaumareflexoproduzidaapartirdedadosreunidosemumapesquisadecunhoetnogrfico,realizadaemduasescolasdaredemunicipaldeensinodomunicpiodoRiodeJaneiro. As anlises indicam que o discurso educacional sobre o ensino de cinciasexpressasentidosemdisputaqueoscilamentreaincorporaodenovosparadigmasdecinciaedecurrculoeamanutenodemarcasqueprocurampreservaracinciacomoconhecimentosuperior,contribuindoparaareafirmaodosprincpiosracionaisqueestonabasedeconstituiodaescolacomoinstituiodamodernidadeeassociadasaoprocessodehegemonizaodessesaber.Palavras-chave:Teoriadodiscurso.Recontextualizaoporhibridismo.Currculo.Ciclo de polticas. Ensino de Cincias. Anos iniciais do Ensino Fundamental.ABSTRACTThisstudyfallswithinaPost-structuralistapproach.Inthisstudy,Laclau'sconcept of discourse is used as an analysis category to investigate the legitimizationprocessofscientificknowledge.Theconceptofrecontextualizationbyhybridismproposed by Lopes (2005; 2006a) guides the analysis of the discourses produced inthedifferentcontextsofcurriculumproductionbasedonthepolicycycleapproachdeveloped by Bowe, Ball and Gold (1992) and Ball (1994). This studyidentifies thedemandsvoicedinthediscourseofaresearcherscommunitythathasbeeninvestigatingscienceteachingattheinitialyearsofElementarySchool.Thestudyalsopresentssomereflectiononthedatagatheredinanethnographicresearchconducted in two schools from the Rio de Janeiro City school system. Theanalysisshowthattheeducationaldiscourseonscienceteachingconveysdisputingmeaningsthatrangefromtheincorporationofnewparadigmsofscienceandcurriculum to the maintenance of marks that seek to preserve science as a superiorformofknowledge.Suchmarkscontributetothereaffirmationoftherationalprinciples that form the basis of the school as a modern institution and are associatedwith the process of making this knowledge hegemonic.Keywords:Discoursetheory.Recontextualizationbyhybridism.Curriculum.Policycycle. Teaching of science. Initial years of Elementary School.LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLASABRAPEC Associao Brasileira de Pesquisa em Educao em CinciasCAP Cadernos de Apoio PedaggicoCRE Coordenadoria Regional de EducaoCTC Cincia, Tecnologia com CriatividadeEF I Ensino Fundamental I (1 ao 5 ano)EF II Ensino Fundamental II (6 ao 9 ano)ENPEC Encontro Nacional de Pesquisa em Educao em CinciasIDEB ndice de Desenvolvimento da Educao BsicaPCA Projeto Cientistas do AmanhPCHE Projeto Cincia Hoje na EscolaPCN- Cincias Parmetros Curriculares Nacionais - Cincias NaturaisRCHC Revista Cincia Hoje para CrianasSME-Rio Secretaria Municipal de Educao do Rio de JaneiroSUMRIO INTRODUO 101 REFLETINDOSOBREACONSTITUIODEHEGEMONIADOSABER CIENTFICO A PARTIR DA TEORIA DO DISCURSO 221.1 Teoria do discurso: uma teoria da hegemonia 231.2 Um saber particular que se universaliza 321.3 A consolidao da Escola como instituio moderna e o processode escolarizao do conhecimento cientfico 411.4 A constituio do saber escolar 511.5 PensandoocurrculoapartirdascontribuiesdosEstudosCulturais e Ps-coloniais 582 DISCURSOQUEPRODUZEMSENTIDOSSOBREOENSINODECINCIAS NOS ANOS INICIAIS DE ESCOLARIDADE 682.1 Refletindosobreoprocessodearticulaodeumdiscursoquebusca fixar sentidos sobre o ensino de Cincias 692.2 Demandasarticuladasnostextos/discursosapresentadosnosAnais dos Encontros Nacionais de Pesquisa em Ensino de Cincias(ENPEC) 742.2.1 Omundomudou.Acinciamudou 772.2.2 Aescolanomuda 872.2.3 Oquedevemudar? 973 PENSAR O SABER ENSINADO COMO TEIA DE SIGNIFICADOS QUEGANHAM SENTIDO NO FAZER DOCENTE 1103.1 Tornando-me flneuse 1153.2 UmturbilhodesentidosproduzidosnoscurrculosdeCinciasNaturais na rede municipal de educao 1183.2.1 AsOrientaesCurricularesparaoensinodeCinciasnoEFI 1243.2.2 ProjetoCientistasdoAmanh 1283.2.3 ProjetoCinciaHojenaEscola 1323.3 Mas nas escolas outros currculos so enunciados 1373.3.1 AsaulasdeDoranaESCOLACLSSICA 1373.3.2 AsaulasdeBethnaESCOLAPOPULAR(EP) 1544 CONCLUSO 168 REFERNCIAS 172-ListadostrabalhosselecionadosnosAnaisdosEncontros APNDICENacionaisdePesquisaemEducaoemCincias 187 - Parecer da Comisso de tica da UERJ favorvel ao ANEXOAdesenvolvimentodapesquisa196 -AutorizaoparapesquisaconcedidapelaSME-Rio ANEXO B 197 - Orientaes Curriculares para o 5 ano do Ensino ANEXOCFundamentalnareadeCinciasNaturais. 19810 INTRODUO Neste estudo, busca-se compreender a complexidade que envolve a seleo, aorganizaoeoensinodoscontedosescolaresdadisciplinaCinciasNaturais no Ensino Fundamental1(EF I). Essa compreenso passa pela necessidade de levar emcontaosdiferentessignificadosqueossujeitosenvolvidosnessesprocessos estabelecem nas relaes sociais entre si, desenvolvidas nesse ambiente cultural, e entreoscontedosdeensino,aquientendidoscomoroldesaberesquenose resumem apenas aos definidos nos textos curriculares. Otrabalhofoimotivadopelasinquietaesacumuladasnoexerccioda docncia,tantonaEducaoBsicaquanto noEnsinoSuperior.Taisinquietaes, ao longo do tempo, foram adquirindo diferentes significados que no se esgotam no momento de finalizao deste texto. Pelo contrrio, a necessidade de fixar sentidos paraapresentarosresultadosnoesgotaasinmerasquestesqueforamobjeto deste estudo. A aproximao com o campo do currculo foi suscitada por essas inquietaes e,nessecampo,possibilitaramumamaiorinterlocuocomaqueles(as) pesquisadores(as) que tm desenvolvido estudos nos quaiso currculo concebido como produo cultural, como espao de enunciao,e tm, portanto, operado com umenfoquediscursivoquetoma,comorefernciaterica,ascontribuiesdos estudosps-estruturais,culturaiseps-coloniais,trazendoparaocampoda educaodiscussesrelativasidentidadeediferenaeassumindoa centralidadedaculturanasanlisesdasdinmicassociais2.Essascontribuies foramfundamentaisparaacaracterizaodasindagaeseparaadefiniodo objeto e do campo de investigao deste estudo. Nestepercurso,aadoodeumaperspectivapluralistatornoupossvela apropriao de diferentes proposies tericas, aplicadas a contextos diversos, mas buscouarticul-lasaumalinhaargumentativacentral.Nessaapropriao, destacaram-seconceitosecategoriasdeanlisequepermitiramcompreenderas prticas escolaresnoquediz respeitoaoensinodeCinciasnos limitesdocampo 1 NovadesignaodadanalegislaoeducacionalemvigoraoprimeirosegmentodoEnsinoFundamental,e que corresponde aos cinco primeiros anos dessa etapa da Educao Bsica. 2 Refiro-me especificamente s produes que circulam no Grupo de Trabalho Currculo (GT 12) da Associao NacionaldePs-GraduaoePesquisaemEducao(ANPEd)enaLinhadePesquisaCurrculo:sujeitos, conhecimentoeculturadoProgramadePs-GraduaoemEducaodaUniversidadedoEstadodoRiode Janeiro-UERJ. 11 definido como lcus da pesquisa. Oquestionamentosobreaquiloqueensinadoeporqueensinadotem orientadoas reflexessobreaqualidade da educao. importantedestacaressa questo,porquemuitosetemafirmadoemdefesadessaqualidade,oquepode fazerparecer,pelomenosprimeiravista,existirumconsensoconsolidado.No entanto, no campo da educao, e especificamente no campo do currculo (LOPES, 2010;DIAS,2009,porexemplo),tmsidorealizadosestudosqueprocuram compreender a ideia de qualidade da educao como um significante vazio, a partir das contribuies da Teoria do Discurso desenvolvida por Ernesto Laclau. Segundo Lopes(2010),possvelsepensaremumsignificantevazionamedidaemque essesignificantepreenchidopor inmeros evariadossentidos, esvaziando-se de significado.Emseutrabalho,aautoradiscutediferentestextosquetentaro significar e defender distintas propostas e perspectivas de qualidade na educao. nessaperspectivaquerealizadaareflexosobreopapelqueos contedos escolares assumem nessas propostas. A partir do entendimento de que, apesar de toda a produo terica no campo do currculo nas ltimas dcadas, em especial a partir do perodo inaugurado com a Nova Sociologia da Educao (NSE), ainda persistem concepes naturalizadas sobre aquilo que se ensina nas escolas. Essaafirmaotomacomorefernciaconcepesdecurrculoexpressadasnos discursos que circulam socialmente, dentre eles esto os espaos da escolarizao. Sodiscursosemqueossentidosdatradiocurricularsemesclamincorporando asproblematizaesproduzidasnocampoeseconfigurandocomohbridos (LOPES, 2005; 2006a; MACEDO, 2003). Nesteestudo,apermannciadessasconcepesnaturalizadase universalizantesdecurrculoentendidacomoaexpressodemarcasdeum projetodemodernidadequefoideterminanteparaaconsolidaodaescolacomo instituio social (SACRISTN, 1999). Comoumprojetocultural,amodernidadeprecisavadaescolacomo instituio fundamental no processo de transformao da compreenso, explicao emodelostericosdomundo(HALL,1997,p.16),possibilitandooabandonodo modeloque,naquelemomento,eraidentificadocomoatraso,aopressoea ignornciaeainculcaodenovasformasdeser,deestar,depensaredeagir capazes de proporcionar o alcance da plenitude humana. Dessaforma,compreenderosmecanismosdeorganizaoede 12 funcionamentodaescolaimplicaidentificar,nascaractersticasdoprojetode modernidade,aqueleselementosqueorientamaconstituiodessesespaos. essa perspectiva que orienta as reflexes acerca dos contedos escolares. Qualalgicaqueorientouosprocessosdeseleodoscontedos escolares?Grn(1999)fazrefernciaaumcurrculoracionalbaseadona racionalidade tcnica como elemento importante para pensar essa questo.Essa racionalidade fundamental para a constituio da modernidade, se entendida como ummovimentobaseadonacrenanoavanodoconhecimento,desenvolvidoa partir da experincia e por meio do mtodo cientfico (PETERS, 2000, p. 13). Assim, a emancipao e a plenitude humana se associam ao estabelecimento denovasformasdeser,deestar,depensaredeagiresebaseiamemuma racionalidadeidentificadacomaformadeproduziracinciamoderna.Trata-sede um tipo de saber que emerge em um dado contexto social e histrico e que oferece a possibilidade de o homem reordenar o mundo alterando a estrutura lgica espao-tempo pela qual os seres humanos percebem e explicam o mundo (GRN, 1999, p. 25). Dessa forma, trata-se de refletir sobre a influncia da racionalidade cientfica nosprocessosdeseleodoscontedosescolaresedeorganizaoe funcionamentodaescola,massemdesconsiderarasexistnciasdeoutras abordagensquetambmpodemcontribuirparaacompreensodessecomplexo problema.Tambmimportantedestacarque,nessasanlises,aideiadedisputa de sentidos de mundo contempla a compreenso de modernidade como movimento quereneprojetosdemundodiferenciadostambmdisputandosentidos.Essa disputaseexpressaemprojetoseducacionaisigualmentediferenciados(PETERS, 2000; SACRISTN, 1999). Esteestudotemcomofocoaanlisedainflunciadodiscursodacincia nessa disputa. Este foi um primeiro recorte necessrio e, embora reconhea que se tratadeumreducionismo,esseprocessoanalisadodeformaarticuladaao processo de hegemonizao do saber cientfico a partir da compreenso de que as marcas desse movimento so muito presentes na tradio cultural ocidental. Esse posicionamento permitiu tanto resguardar a ideia de disputa de projetos quantopensaraimportnciaqueacinciamodernaassumiunadefinioda modernidade,aglutinandotendnciasantagnicasemtornodeumidealde emancipaocujossignificadospassaramaserdiscursivamentedisputados 13 (LACLAU,2006a).Issoporque,mesmoadotandoumaposturacrticacomrelao aos sistemas de escolarizao, as posies educacionais identificadas como crticas ouprogressistastambmtendemaincorporara fnovalordoconhecimento,das cinciasedatradiocomoelementossustentadoresdoprogresso" (SACRISTN, 1999, p.160). Essasreflexesrealizadasno inciododoutoradoencontraram,aolongodo curso,elementosdesustentaonaTeoriadoDiscursodeErnestoLaclau,pois partiramdoentendimentodequeadisputaemtornodeprojetosdemundouma operaodiscursiva.Entende-se,assim,combaseemLaclau,comoosvalores legitimados pelo racionalismo cartesiano se cristalizaram nas estruturas conceituais do currculo escolar na modernidade (GRN, 1999, p. 23). Noentanto,Laclau(1998)permitepensarnoemcristalizao,masemum processodehegemonizaoprecrioecontingentequevemsendoconstitudo discursivamenteao longodotempo.Ouseja,ossentidosdeumcurrculoracional, que fazem parte da tradio da escola moderna, so permanentemente atualizados eressignificadosdeformaaatender asdemandasdeformaoque decorremdas transformaesocorridasnomundocomoconsequnciadodesenvolvimento cientficoetecnolgico.Essaquestoimplicaafirmarque,nomundo contemporneo, a cincia permanece como um tipo de saber que nos referencia e a suaapropriaocontinuaanunciadacomocondiodeemancipao,oqueagora aparecenosdiscursoscomoexerccioplenodacidadaniapreenchidadeinmeros sentidos que se foram esvaziando de significado (LACLAU, 2006b). Nessaperspectiva,defendidaatesedeque,emboraseapresentecomo inovador, o discurso educacional se caracteriza como um hbrido cujas marcas que o identificamcomprincpiosconceituaisdocurrculoescolarnamodernidadeso articuladascomprincpiosconceituaisproduzidosapartirdeposicionamentosque se colocam em oposio a esse modelo. Com base em Lopes (2005; 2006a), essa dinmicaentendidacomoprocessosderecontextualizaoporhibridismo.Para sustentarareferidatese,soidentificadasconcepesdecurrculoqueaparecem hegemonizadas no discurso educacional. SegundoGrn(1999),quandoKantidentificouoobjetodoconhecimento como um objeto newtoniano, expulsou da cincia todos os saberes que precisavam sernegadosparaqueomecanicismopudesseserafirmadocomoparadigma postulador da ideia de natureza como um mecanismo em funcionamento. O espurgo 14 dessessaberes,identificadoscomodequalidadeinferior,foientendidocomouma garantiaparaqueanaturezapudesseserobjetivamentedescritaeobjetificada. Dessaforma,estabeleceu-sea"impossibilidadedepensaremtermosno mecanicistaseobjetificantes"(GRN,1999,p.42),inclusiveemprocessosque implicam as subjetividades humanas. Paraoautor,oprocessodeobjetivaodanaturezaadquiriuumaforma universal nas sociedades industriais ocidentais porque sustentou a consolidao do modelodedesenvolvimentocapitalista,tornando-se"condiosinequanonda expansoilimitadadaproduomaterial"(GRN,1999,p.43).Grnsegue afirmandoquetodososcdigoscurriculares"predominantesnamodernidade cdigocurricularrealista,moralouracionalista,partemdamesmapressuposio segundo a qual a natureza um simples objeto" (IDEM, p.43). Oautor,continuandonessa linhaderaciocnio,afirmaqueaspossibilidades deaeducaofuncionarcomoinstrumentodeemancipaohumanapressupea existnciadeumsujeitoautnomocartesiano,sujeitoimplicadonosprocessosde objetivao.Assim,"asestruturasconceituaisdoscurrculosencontram-se invariavelmente sobre as bases do cartesianismo e da filosofia da conscincia, que o segue como complemento do projeto de autonomia" (GRN, 1999, p. 43). Dessa forma, Aautonomiadosujeitopensante,livredosvaloresdaculturaedatradio,esua independncia do meio ambiente constituem a prpria base da educao e no uma possveldeficincia.Somitosdaeducaomoderna.Ocogitocartesianoa prpriabasedessaeducao.Tidocomoumidealeducacionalporsculos,esta separaoentreosujeitoconhecedoreosujeitoprecisaagoraserrepensada (IDEM, p. 44). Aescolamodernaseorganizoutendocomopressupostooprivilgio epistemolgico da cincia. Assumido pelas mais diferentes correntes de pensamento damodernidade,esseprivilgiofavoreceuoengendramentodemecanismosde controleedeexclusoprpriosdainstituioescolarequeestonaorigemde inmeros questionamentos a que tem sido submetida ao longo das ltimas dcadas. Nessesentido,osquestionamentosdefilsofosecientistas,aolongodo sculoXX,esuasimplicaesnosdiscursossobreoensinodesenvolvidonas escolasnosignificamqueastentativasdereafirm-lodiscursivamentetenham acabadodefinitivamente.Noprocessodearticulaohegemnicadosaber 15 cientfico,odiscursosehibridizaesereconfigurasemabrirmodeseuprivilgio epistemolgico,desuasuperioridadesobreosdemaissaberes.Comisso,os mecanismosengendradospelaescolatambmsereconfiguramecontinuam favorecendoosprocessosdehomogeneizaoculturale,consequentemente,de silenciamento das diferenas. Assim,aimportnciaatribudaaoestudovemjustamentedofato de que ele foi desenvolvido de forma a contribuir para a problematizao do mito da objetivao doscontedosescolares.Essaproblematizaopossibilitaduvidardocarter inovador que alardeadopelosdiscursoseducacionais,principalmenteemrelao quelas propostas que dizem respeito diretamente ao currculo. Emtaispropostas,asdisputasporfazervalerdeterminadossentidosde mundoserecontextualizamesehibridizame,mesmoincorporandodemandas relativasidentidadeediferena,continuampreservandoomitodaobjetivao que sustenta tanto concepes de currculo como artefato e quanto a ideia de ensino comotransmissolineardecontedosecujoresultadopodeserprevisto, permitindo, assim, estabelecer padres de aferio gerais. Desse modo, trata-se de uma contribuio para a compreenso de que ainda tendemosaproduzirreflexesnocampodaeducaooperandocomconcepes objetivadasdecurrculoquenosajudampoucoaapreenderacomplexidadedas relaes que acontecem nas escolas. Alm disso, reafirma-se a subjetividade como elemento constitutivo de todo o processo de construo humana,pois se reconhece queelanosalimentaenosimpulsionaemnossasaeseinteraesnoecomo mundo interao em que saberes e prticas so forjados (PEREIRA, 1998). Nesteponto,faz-senecessrioprecisarossentidos atribudosaosconceitos desaberedeconhecimento.Nesteestudo,sabertudoaquiloquenosconstitui comosujeitosequeresultadasexperinciashumanas.Trata-sedeprodues culturaisqueconstituemosdiscursosquecirculamsocialmente.Comoprope Lyotard (1986), saber aquilo que torna algum capaz de proferir bons enunciados denotativos,[...]prescritivos,avaliativos(p.36).Essadefiniopermiteatribuirao saberumsignificadoqueextrapolaaideiademeraaquisiodecompetncias cognitivas, j que ele nos orienta no enfrentamento das dificuldades que surgem na existncia cotidiana. Por outro lado, o autor define conhecimento como um conjunto deenunciadosquedenotamoudescrevemobjetos,excluindo-setodososoutros enunciados, e susceptveis de serem declarados verdadeiros ou falsos (LYOTARD, 16 1986, p.35). Dessaforma,nesteestudo,adesignaosaberutilizadaparademarcar umaposiopolticaquereconheceasespecificidadesdosdiferentestiposde saberes e que recusa a ideia de que o saber cientfico expressa uma universalidade. Porconseguinte,naprimeiraseodoprimeirocaptulo,adesignao conhecimentocientficousadaparadescreverumprocessoqueresultouno entendimentodequeossaberessoepistemologicamenteinferioresao conhecimento.Nessamesmalgica,nosegundocaptulo,adesignaoaparece nasproduesanalisadas.Mas,deformageral,utilizadaadesignaosaber cientficocomoentendimentodequeacinciaumdiscursoproduzidosobrea natureza que busca fixar determinados sentidos de mundo. Asanlisesforamfundamentadasnoentendimentodecurrculocomo movimentopermanenteedinmicoemquesignificadossodiscursivamente negociados.Currculoaquiespao-tempodefronteira,comopropeMacedo (2003; 2008; 2009) na apropriao que faz para pensar a produo curricular a partir dascontribuiesdeBhabha (2007).Naconsolidao das anlises,a utilizaodo conceitodediscurso,desenvolvidoporErnestoLaclau,foifundamentalpara caracterizarsentidosemdisputanosdiscursosenvolvidosnaproduocurricular para e sobre o ensino de Cincias no EF I. Nainvestigao,foiadotadaaabordagemdociclodepolticaspropostapor Bowe, Ball e Gold (1992) e por Ball (1994), pois possibilita a apreenso de discursos quecirculamnosdiferentescontextosdeproduocurricular.Nesseponto, importantedestacarqueessaabordagempermiteidentificaraconcepode currculo objetivado orientando os discursos produzidos nos diferentes contextos de produodomesmo(ocontextodeinfluncia,deproduodetextoedeprtica). Com isso, o trabalho se contrape a anlises que pensam o processo de produo curricular localizado em instncias hierarquicamente superiores escola e sala de aula,locaisdeimplementaoe/ouresistnciadessasorientaes.Trazidapor Laclau,aideiadediscursosquecirculamdisputandohegemoniafoifundamental paracompreenderodinamismodesseprocesso,umavezquepermitecaptar,nos diferentes contextos, as influncias de agendas globais, internacionais ou nacionais, bem como as negociaes eas tradues, no sentido proposto por Bhabha (2007), estabelecidaspelosdiferentesatoresquecirculamnessesdiferentesespaose produzemnovossignificadosqueentramnadisputa,constituemnovosdiscursos 17 hbridosquebuscamfixarsentidossobreoensinodeCinciasecirculamnos diferentescontextosdeproduocurriculares,rompendocomalgicade implementao vertical dessas polticas. Nessacaminhada,tambmfoifundamentalacompreensodoconceitode recontextualizaoporhibridismoqueLopes(2004;2005;2006a)utilizapara compreenderoprocessodeproduodaspolticascurricularesentendidascomo polticasculturaisquevisamorientardeterminadosdesenvolvimentossimblicos, obterconsensoparaumadadaordeme/ouparaumatransformaosocial almejada (LOPES, 2004, p. 113). Com esses pressupostos, a investigao foi realizada para captar a circulao de um discurso que busca fixar sentidos sobre o que e o que deveria ser o ensino de Cincias no EF I. Por que o interesse pelo ensino de Cincias?A escolha se explicatantopor fatorespessoais,emfuno deminhaformaocomoprofessora deQumicaede minha experincia profissional com a didtica e/ou com os fundamentos da disciplina escolar Cincias Naturais no curso de Pedagogia,quanto por possibilidades terico-metodolgicasquesedelinearamnodecorrerdoestudo.Dentreessas possibilidades,citam-seasinflunciasqueosparadigmasdacinciasofremnos processosdeorganizaodaescolanamodernidadeeodestaquequeos contedosdascinciastmassumidonasdefiniescurricularesemfunodas mudanassocioculturaiseeconmicasresultantesdoavanodacinciaeda tecnologia,oquepodeserconstatadopelosinvestimentosfeitosnaeducaoem cincias,principalmenteapartirdasegundametadedosculoXX(KRASILCHIK, 1996, 2000; WORTMANN, 1998). PorquenoEFI?Oquepesounaescolhafoiofatodeque,emborase constitua emumimportanteobjetodepesquisa,aindaso insuficientes osestudos da disciplina voltados para a caracterizao de suas especificidades,sobretudo nos nveis mais elementares de ensino. Professores e professoras buscam alcanar objetivos especficos atuando em umcontextoparticulardeproduodesaberesosquaismantmreferncia,mas sodistintosdossaberescientficoseacadmicos.Sohbridosossaberesque emergemnocontextodeensino,e,comohbridos,produzemnovossentidosque passam a integrar o campo da discursividade. Noentanto,mesmoreconhecendoaespecificidadedoensino,dosaber 18 docentee/oudoscontedosensinados,nosdiscursosproduzidospelos especialistas de referncia acadmica e cientfica, as anlises sobre o ensino tomam comoparmetroaestruturaconceitual,osprocedimentos,asreflexeseos objetivosdasdiferentesdisciplinas.Comisso,muitasvezes,perde-sea possibilidade de apreender as mltiplas dimenses social, tica, cultural, cognitiva, poltica, emocional e esttica envolvidas no fazer docente. Dessaforma,anecessidadedecompreendercomoasdiferentesformasdo fazer docente produzem sentidos orientou a definio pela realizao de um estudo decunhoetnogrfico(ANDR,2007;TURA,2010),poispermitiriaapreendera produodesentidossemidealizarougeneralizarasprticasescolares.Assim,o resgate dosaspectossubjetivos queenvolvemaaohumanaeaaoeducativa comopartedelafundamental.Porisso,foifeitaaopoporumaabordagem etnogrfica na investigao realizada em duas escolas da rede municipal de ensino dacidadedoRiodeJaneiroduranteoanoletivode2010.Nelas,foram acompanhadas as aulas das turmas do quinto ano do EF I. Almdisso,oensinodeCinciasemturmasdoEFIseconstituiemum objetodereflexobastanteapropriado,jquepermitequestionamentospolticos, epistemolgicosemetodolgicosqueabremcaminhoparaaidentificaode mecanismosdeproduodeumtipodesaberqueincorporaasdimenses subjetivas presentes nas aes humanas e que ressignifica a compreenso de saber ensinado. Inicialmente,comooestudoaconteceriaapenasemumadasinstituies, foramacompanhadasasaulasdaprofessoraDora3.Procurou-semantera frequncia de pelo menos uma vez por semana para possibilitar a familiarizao com a instituio,no esforode compreender a suaorganizao e seu funcionamento e tambm de conhecer os diferentes sujeitos que nela circulavam (GEERTZ, 2008). Noentanto,aofinaldoprimeirosemestre,emfunodaaposentadoriade Doraedasdificuldadesdeempatiacomadireodaescola(queemnenhum momento interferiu na boa relao com Dora), a investigao passou a acontecer em outra instituio, aindaquehouvesseoriscodeterquereiniciartodoumprocesso deaproximaoindispensvelparaoestabelecimentodeumclimafavorvel realizao da pesquisa (ANDR, 2007; TURA, 2010). 3 Os nomes das professoras e os nomes das escolas citados no trabalho so fictcios para preservar o anonimato daqueles que generosamente contriburam para a realizao deste estudo. 19 Nessa situao de impasse, a professora Beth foi indicada por uma colega de cursoqueaconheceuemumaatividadedaSecretariaMunicipaldeEducao (SME-Rio)emqueturmasdediferentesescolasdaredeenvolvidasnoProjeto Cincia Hoje para crianas foram convidadas a expor os trabalhos desenvolvidos. AempatiaeadisponibilidadetantodeBethquantodadireodaescola foram fundamentais na redefinio do campo e no reordenamento da pesquisa. Muitasespecificidadesestopresentesnosdoiscontextosestudadose interferiramdiretamentenasobservaes/interpretaes(GEERTZ,2008) referenciadasempressupostosterico-metodolgicosdefinidosnodecorrerdo estudo.Paraalmdasingularidadequecaracterizaa instituio,aescoladeDora estavaenvolvida,comogrupodecontrole,noProjetoCientistasdoAmanh,uma parceria estabelecida entre a SME-Rio e o Instituto Sangari voltada para a educao emCinciasemtodooEnsinoFundamental.Porsuavez,asegundaescola,em funodosbaixosresultadosapresentadosnondicedeDesenvolvimentoda EducaoBsica(IDEB)4,em2009,foiselecionadapelaSecretariaMunicipalde Educao(SME-Rio)paraparticipardoProjetoCinciasHojenaEscola,uma parceriaestabelecidacomaSociedadeBrasileiraparaoProgressodaCincia. Ademais, ambas as escolas sofriam, naquele momento, os impactos das mudanas em curso na rede pblica de escolas do municpio do Rio de Janeiro, tendo em vista odesafioassumidopelaadministraomunicipaldepromoveraqualidadeda educao melhorando os ndices de desempenho dos(as) alunos(as). Omaterial produzido nocontatocomasescolas,nasaulasobservadas,nas entrevistasrealizadas,nasreunieseematividadesdiversaspossuiumvalor inestimvel, no s pelo investimento de tempo e de esforo dereflexo requeridos parareuni-lo,maspelasinmeraspossibilidadesdeabordagenseanlisesque apresentam.Porsuavez,aquantidadeeopotencialdeanlisedomaterial implicaramosacrifciodeterqueabandonarpelomenospartedele,apartirdas delimitaes necessrias ao processo de produo deste texto. 4 OndicedeDesenvolvimento daEducaoBsica(IDEB)foicriadoem2007para mediraqualidadedecada escola e de cada rede de ensino. O indicador calculado com base no desempenho do estudante em avaliaes do InstitutoNacionaldeEstudosePesquisasEducacionais AnsioTeixeiraeemtaxasdeaprovao.Medido a cadadoisanos,elepermitequeosgestoreseducacionais,nosdiferentessistemas,possamacompanharo desempenhode suas redesvisandoaalcanarem2022ametade uma nota6em2022,o quecorresponde qualidadedoensinoempasesdesenvolvidos(BRASIL,2010).Disponvelem: (http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=336&id=180&option=com_content&view=article).Acessoem:14 abr.2011. 20 Noprimeirocaptulo,apresentadooreferencialterico-analticoque possibilitoudelimitaroobjetodeestudoapartirdosconceitosdediscursoede hegemoniadesenvolvidosporErnestoLaclaunaTeoriadoDiscurso.Noreferido captulo, essas contribuies so utilizadas para pensar o processo de constituio hegemnica do discurso cientfico que produz sentidos de mundo fundamentais para aconsolidaodoprojetoculturalmoderno.Tambmdiscutidaaemergnciada escolacomoinstituioimplicadanesseprocesso,destacandoainflunciaqueo discursocientficoassumeemsuaorganizaoeemseufuncionamento.Na anlise,destacadooentendimentodequeabuscadahegemoniadodiscurso cientficoumprocessodedisputapermanentenarelaocomoutrosdiscursos. Nessadisputa,elementosdodiscursosorecontextualizados,poisincorporam novossentidosdecinciaedesuasrelaescomanaturezaecomasociedade, hibridizadosemelementosdatradio.Paraencerraressecaptulo, destacadaa influnciadessatradionasconcepesdecurrculoorientadorasdasanlises produzidassobreaescolaeapresentadaumaperspectivaquepermitepens-lo evitandonaturalizaesepadronizaes,oquepodepossibilitaraapreensodo dinamismo e da especificidade da escola e do fazer docente. No segundo captulo, desenvolvida a anlise dos discursos sobre o ensino deCinciasnosanosiniciaisdeescolaridadeproduzidosnombitodos pesquisadoresemeducaoemCincias.Essetrabalho,sugeridopelabancade qualificao,foiimportanteparaacompreensodecomoasdemandasexistentes nosdiferentescontextosdeproduocurricularsoarticuladasnosdiscursosda comunidade disciplinar. No desenvolvimento dessa anlise, foi adotada a abordagem do ciclo de polticas proposto por Bowe, Ball e Gold (1992) para compreender como essesdiscursossoproduzidos,circulameproduzemsentidossobreoquee sobre o que deveria ser o ensino de Cincias no Ensino Fundamental I (EF I). No terceiro captulo, apresentado o desenvolvimento do trabalho de campo realizado em duas escolas da rede municipal do Rio de Janeiro.So explicitadas as opesmetodolgicas,osimpasseseasdificuldadessurgidosecomoforam superados. Retomando a ideia da abordagem do ciclo de polticas, so explicitadas ascondiesdefuncionamento,osobjetivoseosdesafiosenfrentadosnarede de ensinodomunicpiodoRiodeJaneiro,localizandoaspropostasparaoensinode Cinciaspostasnoperodoemqueapesquisafoirealizada.Nesseprocesso,foi necessriorealizarentrevistascomoutrosatoresquepermitiramestabelecer 21 triangulaes importantes na anlise desse material (ANDR, 1997).A datar dessa explanao,soapresentadososrelatriosproduzidosapartirdas observaes/interpretaes realizadas nas necessrias articulaes com o objeto de estudo. Finalizando,sodesenvolvidasalgumasconsideraessuscitadaspelo estudoquepodemcontribuirparaarealizaodeoutrosque,comnovas perspectivas de anlise, possam continuar ampliando o processo de reflexo sobre as produes do campo curricular. 22 1 REFLETINDO SOBRE A CONSTITUIO DE HEGEMONIA DO SABER CIENTFICO A PARTIR DA TEORIA DO DISCURSO A cincia no uma coleo de truques. uma atitude perante o mundo, um modo de viver. (C.H. Waddington in: The scientific attitude) Na primeira seo deste captulo, apresentado o referencial terico-analtico que sustenta o processo de produo desta tese. Trata-se de uma sntese realizada apartirdaapropriaodepressupostosps-estruturalistas,emespecialdos conceitos implicados na Teoria do Discurso desenvolvida por Ernesto Laclau (1996; 1998; 2000; 2001; 2005; 2006a; 2006b; 2009) e Laclau e Mouffe (2010). Essa apropriao envolveu um longo processo de desconstruo de certezas econceitosea realizaodeaproximaesentre perspectivastericasdistintas,o que sempre implica assumir riscos. Nessa caminhada, foi fundamental a contribuio de vrios estudiosos de Laclau (BARRET, 1996; BURITY, 2008; MENDONA, 2003; 2007;2008;MOUFFE,2001),parceiroscomquemfoipossvelestabeleceruma longaeexaustivainterlocuoacercadosconceitosdesenvolvidospeloautor,de formaautiliz-loscomoreferencialquepermitiuaconstruodoobjetodeestudo emquesto,dandosentidotese,aindaqueestaseapresentecomouma construo provisria. Nasegundaseo,aanlisedesenvolvidademaneiraaidentificara produo e a fixao de sentidos em um discurso especfico o discurso cientfico. Trata-se de sentidos que, em meio a relaes de poder, produziram novos modos de sereestarnomundoquesetornaramexpressodoprojetodamodernidade.A constituiodahegemoniadodiscursocientficoassumidacomoumelemento importante para a consolidao desse projeto. Na terceira seo, o mesmo referencial terico analtico utilizado de forma a estabelecerrelaesentreoprocessodeconstituiohegemnicadodiscurso cientficoeaconsolidaodaescolacomoinstituiotpicadamodernidade.O pressupostoodequeessesdoisprocessos,mutuamenteinfluenciados,foram fundamentaisparaoprocessodeinstauraodasformasdeseredepercebero 23 mundo associadas a um tipo de racionalidade especfica: a racionalidade cientfica. Naquartaseo,retomadaaideiadehegemoniacomoconstruo discursivaprovisriaepermanente.Oobjetivoidentificar,nasdiferentes concepesdecinciaqueemergemaolongodosculoXX,sentidosdeum discursocientificistaquepermanecem,deformarecontextualizada,apresentando o saber cientfico como a forma mais adequada para conhecer a realidade. Na quinta seo, so analisadas as influncias que a racionalidade cientfica exercesobreasconcepesdecurrculoe deensino.Almdisso,identificadaa fora dessa tradio mesmo entre os tericos crticos que muito contriburam para a desnaturalizaodossentidostradicionalmenteatribudosaocurrculoao explicitaremosinteressesenvolvidosnaseleodaquiloque legitimadoparaser ensinado na escola. Por fim, encerrando este captulo, o conceito de saber ensinado discutido a partirdaperspectivadeculturaedenegociaoculturaldesenvolvidaporGarcia Canclini (2006), Hall (1997; 2003) e Bhabha (2007). 1.1Teoria do discurso: uma teoria da hegemonia Nodesenvolvimentodestatese,ateoriadediscursopropostaporErnesto Laclautomadacomoabordagemterico-analticaquepermitecompreendero processodelegitimaodosabercientficoesuasimplicaes/relaescomo processo de escolarizao moderna. Essa opo acontece a partir da compreenso dequeodiscursoproduza realidadesocial.ParaLaclau,o atodenomearproduz conhecimentoeessaproduomovidapelanecessidadedepoder.Nessa perspectiva,oconhecimentoproduzidopelacinciatambmproduzsentidosque constituem a realidade social (BURITY, 2008). A capacidade que a cincia moderna demonstrou para elaborar prognsticos possibilitouqueelasetransformasseemuminstrumentopoderosodepodera servio das foras produtivas. No entanto, essa capacidade no elimina o fato de ela seconstituiremumdomniodesaberguiadoporprincpiosautorreferenciados (ARAJO, 2010). A propalada objetividade que legitima a cincia estabelecida em umjogo de linguagem prprio (LYOTARD, 1989) e, discursivamente, se apresentou comoanicaformavlidadeconhecer(LACLAU,2006).Esseentendimento sustentaaideiadequesetratadeumdiscursopossvelsobreanatureza,uma 24 construo social que acontece em meio a relaes de poder. Nessa perspectiva, o aportedateoriadodiscursoutilizadoparaidentificarasarticulaesque possibilitaram entender que o saber cientfico um tipo de saber particular passou a encarnar o sentido de universalidade. Antes de prosseguir, necessrio esclarecer como Laclau concebe discurso, categoriaanalticaquetempapelcentralemsuasreflexes.Burity(2008)afirma que,emLaclau,odiscurso,aomesmotempo,umaformadecomunicao eum sistemaderegrasemquesentidossoproduzidos.Dessaforma,paraLaclau,o discurso uma categoria terica que permite investigar os mecanismos pelos quais ossentidossoproduzidosecomoelesconferemorientaoaosfenmenos sociais. No uma orientao pr-determinada, masse produz e se transforma na prpriadinmicadiscursiva.Poroutrolado,paraLaclau,paraalmdafala,o discurso envolve tambm um campo de prticas que produz sentidos. Uma unidade complexadepalavraseaesdeelementosexplcitoseimplcitos,deestratgias conscienteseinconscientes.parteinseparveldaontologiasocialdosobjetos (BURITY, 2008, p. 42). Resgatandoa ideiapresentenottulo desta sessoecomacontribuiode Burity,possvelpensarateoriadodiscursocomoumateoriadahegemonia porque, em Laclau (1998), a hegemonia concebida como uma operao discursiva que busca constituir a universalizao de um discurso a partir da fixao de sentidos de forma a alcanar a plenitude que falta ao social. Laclau(1998)trabalhacomaideiadeumasubjetividadedivididaeilusria construdacombasenaimagemdooutro.Essasubjetividadebuscaforadesi mesmaasrefernciasquepodemsupriraquiloqueeladesejaenopossui.Uma subjetividadequeanseiapeloeuunitrioepelaunidadecomamedafase imaginria,eesseanseio,esse desejo,produzatendnciaparaseidentificarcom figuraspoderosasesignificativasforadesiprprio(WOODWARD,2000,p.64). Trata-se de uma subjetividade que sempre referencial. Assim,oconceitodehegemoniadizrespeitocapacidadedeumdiscurso particular passar a representar algo que maior que ele (LACLAU, 1998). Portanto, a utilizao da categoria hegemonia como instrumento de anlise permite identificar osefeitospolticosqueelaproduznocotidiano,conferindointeligibilidadeaos processos contingentes de constituio do social (MENDONA, 2007). Laclau(1998)assume,ento,aconstituiodeprocessoshegemnicosem 25 umaperspectivaquerompecomalgicaessencialistapresenteemalgumas abordagensmarxistas,emqueahegemoniaimplicaadefinioprviaeafixao absolutadossentidosqueseroproduzidosnalutaporhegemoniaedas identidadesenvolvidasnesseprocesso.Nessaperspectiva,acontra-hegemonia entendidacomoaproduodesentidoseidentidadesemcontraposiolgica hegemnicatambmcomoumadefinioa priori.Rompendocomessebinarismo, Laclau nos permite pensar em hegemonias sendo permanentemente disputadas no campo da discursividade, sem que possamos prever exatamente que sentidos e que identidadesseroproduzidas.Aindaquealgumasdessasconstruesassumam uma configurao mais estvel, elas sero sempre contingentes e fluidas. Para Laclau (2000), a constituio de hegemonia apontar permanentemente paratentativasderecomposioerearticulaodesentidos,comoobjetivode superar a impossibilidade da totalidade. No entanto, a fixao desses sentidos ser sempre contingente e provisria e acontecer a partir de determinadas condies de possibilidade.Elacarregasempreumadimensodeindeterminaoedefalta constitutiva, de modo que no dada a priori (BURITY, 2008, p. 36). Segundo Barret (1996), o processo de constituio de hegemonia em Laclau implica pensar o social como umcorpopolticocujapeleestpermanentementedilacerada,exigindo um planto interminvel na sala de emergncia por parte dos cirurgies da hegemonia, cuja sina tentar fechar os cortes, temporariamente e com dificuldade. (Esse paciente nunca chega sala de recuperao) (p.249). A hegemonia , pois, concebida como uma operao discursiva queapontar permanentementeparatentativasderecomposioerearticulaonadireode superaraimpossibilidadedatotalidade.Noentanto,adireoqueessatentativa tomarnoestdadaanteriormenteaoprocesso,noalgoaserreveladoou descoberto, mas uma construo que acontece em meio a relaes assimtricas de poder. LaclaueMouffe(2010)explicamessaoperaodesenvolvendoaideiade discursocomoprticaarticulatria,comooperaoemquediferentesdemandas dispersasnocampodadiscursividadesoordenadasemumacadeiade equivalncia.Osautoresentendemessasdemandascomoelementoscujo ordenamentoaconteceemfunodeumexteriorconstitutivo,elementosexpulsos dacadeiadeequivalnciaequepossibilitamquedemandasdiferenciadaspossam 26 abrirmodeseuscontedosparticularesparaconstituremumaarticulaoque poder se tornar hegemnica. o exterior constitutivo, o inimigo comum, que torna possvel os processos de identificao em uma cadeia de equivalncia. Ele expressa os traos da excluso que torna possvel a identificao entre formaes discursivas diferentes (MOUFFE, 2001). Assim,segundoosautores,aarticulaodedemandasdiferenciadass possvelpelaconstituiodepontosnodaisquepassamaexpressarumsentido comumentreeles.Essesentidoapreendidocomocomum,poisconfere equivalnciaentreoselementosdiferentes,transformando-osemelementos equivalentes ou momentos (MENDONA, 2003). Noentanto,LaclaueMouffe(2010)tambmargumentamqueummomento sempreguardarefernciacomoelementoqueooriginou.Porisso,mantmuma particularidadequeimpedeque,emumacadeiadeequivalncia,elesseigualem entre si. Momentos so sempre posies diferenciadas articuladas em um discurso, cujoscontedosparticularesanterioresforammodificados,masnuncaapontode torn-loscompletaedefinitivamenteiguais.Aoperaohegemnica,quetempor objetivo fixar sentidos, nunca se completa totalmente, dado que as diferenas entre os elementos permanecem existindo. Essaconcepodehegemoniaimplicaarejeiodetodaaprescritibilidade terica e social que tenha como pressuposto a possibilidade de que uma formao discursivapossaseconstituirdeformaplenaedefinitiva.LaclaueMouffe(2010) desenvolvemargumentaesparademonstrarqueacontingencialidadeea precariedade,inerentesatodaformaodiscursiva,impedemqueossentidospor elas produzidos sejam completamente fixados. Osautoresexplicamocartercontingentedeumdiscursocomo consequncia de uma dupla impossibilidade. A primeira diz respeito ao antagonismo existenteentresistemasdiscursivosdiferentes.Assim,ocorteantagnicoconstitui umafronteiraqueimpedeacompletaproliferaodesentidosemumacadeiade equivalnciaefuncionacomoumabarreiraqueseparaons,dentrodeuma formaodiscursiva,doeles,queestoforadela.Nohcomopassaressa fronteiraecontinuarsendo'ns'.Nohcomovirdelecontinuarsendo'eles' (BURITY,2008,p.45).Porm,essaconstataotambmimplicareconhecera existnciade umoutroque outracoisadiferente dons,masquedefineoque somosns.Mendona(2003)destacaqueessaimpossibilidadedecorrentedo 27 antagonismo pode ser caracterizada como uma falta, dado que tudo aquilo que est alm dos limites de um sistema discursivo no pode produzir sentidos no interior do mesmo. Seaprimeiraimpossibilidadedecorredabarreiraimpostaproliferao ilimitada de sentidos, a segunda decorre exatamente dessa proliferao de sentidos no interior de uma formao discursiva e que condio para a sua universalizao. Contudo,aabundnciadesentidosquepodemserincorporados,constitudosou perdidosporumdiscursoimpedemasuacompletafixao(MENDONA,2003, p.143).Istoporquediferentessentidosentramemrelaoesemodificam incessantemente,impedindoqueumnico,atribudoaumdeterminadoobjeto particular,possaserdefinitivamentefixado.Dessaforma,ocarterprecriodo discursopodeserexplicadocomoresultadodasalteraesqueocorremnos sentidos que ele procura fixar. ParaLaclau(1998),umdiscursosetornahegemniconamedidaemque conseguearticularinmerasdemandasdiferenciadas,tornando-secapazde represent-las,oumelhor,demaneiraqueelaspassemasesentirporele representadas. nessa perspectiva que o autor desenvolve as quatro dimenses da lgicahegemnicaque,segundoele,constituemoprpriofundamentodapoltica (LACLAU, 2000). Aprimeiradimensotemcomopressupostoadesigualdadedepoder (LACLAU, 2000). A dilacerao a que se refere Barret (1996), citada anteriormente, expressaumadisputadepoderincessanteemquediferentesdiscursostentam imporassuassignificaesparasetornarhegemnicos.Dessaforma,a constituio de hegemonia nada mais do que a tentativa de apresentar um desses discursoscomocapazdeencerrarumsentidoquecontempleosdemais.Ela expressaacapacidadedeumdiscursodearticulardiferentesdemandasemuma cadeia de equivalncia, na medida em que busca representar a totalidade desejada, embora impossvel (LACLAU, MOUFFE, 2010). A segunda dimenso se relaciona com a primeira e tem como caracterstica a supresso da dicotomia entre particular e universal (LACLAU, 2000). Laclau (1996) questionaessapolarizaoafirmandoqueparticulareuniversalsomutuamente referenciados.Onssseviabilizadiscursivamentepelaprojeodoeles. Entretanto,o discurso que articula o ns precisa incorporar sentidos diferenciados que permitam que os diferentes ns se sintam por ele representados. Ou seja, para 28 setornarhegemnico,umdiscursoprecisaencarnarcontedosparticularesde elementosdiferenciados,deformaasercapazderepresent-los.Dessaforma,o discursohegemnico,queseapresentacomouniversalepassaaserconcebido como tal, carregado de sentidos particulares. Poroutrolado,Laclaualertaqueoreconhecimentodeumdeterminado particularcomouniversalnopodeacontecercomototalabandonodosseus contedos particulares iniciais. Ao integrar uma cadeia de equivalncia, um elemento nuncasetransformacompletamenteemmomento.Asidentidadesarticuladasem umacadeiadeequivalnciasetransformam,masnosetornamiguais,ouseja, elaspermanecemreferenciadasemseuscontedosparticulares,esoesses contedosquepermitemoreconhecimentodeumdelescomouniversal.Assim, nenhuma particularidade pode se constituir sem manter uma referncia interna com auniversalidade.Ouniversalemergedoparticularnocomoumprincpio sublinhando e explicando o particular, mas como um horizonte incompleto suturando uma identidade particular deslocada (LACLAU, 2001, p.240). Ouseja,paraoautor,todaidentidadeseconstituinarelaocomalgoque lheexterno,umexteriorconstitutivo.Portanto,osocialnadamais queumtodo cujasmltiplas diferenas so discursivamente articuladas. Dessa forma, ainda que aparentementeseapresentecomocoesoecoerente,osocialest irremediavelmentecindido.Aidentidadeuniversalfixada,quetemapretensode represent-lo,dependedeoutra(s)identidade(s)queforamexpulsasequeno podem ser incorporadas sob a pena da perda da unidade desejada. Por outro lado, quandoumadadaarticulaohegemnicaseinviabiliza,novascadeiasde equivalnciasoarticuladas,transformandooscontedosdaidentidadetidacomo universal e constituindo uma nova formao hegemnica. Nesteponto,cabedestacarque,para oautor,esseprocessoestimplicado em relaes de poder.Trata-se de relaes assimtricas de poder, pois, universal aquilo que eu, em posio enunciativa de poder que me permite fazer isso, declaro como universal (SILVA, 2000, p.77). Dessaforma,podemosconcluir,dasconsideraesdeLaclau,quea representao da plenitude a universalidade no pode eliminar completamente o particular que pretende representar, pois isto corresponderia a uma situao em que osentidoencarnadoeocorpoencarnanteseconfundiriam,estariamsuperpostos, passariamaseriguaisenoequivalentes. Paraoautor, aencarnaosereferea 29 umaplenitudeausentequeutilizaumobjetodiferentedesimesmocomomeiode representao(LACLAU,2001).Portanto,ocorpoencarnantetemque, necessariamente, expressar algo distinto de si mesmo. Noentanto,essealgodistintocarecedeidentidadeprpriaespodese constituirpormeiodoscontedospertencentesaocorpoencarnante.Assim,o universalspodeseconstituircomotalincorporandocontedosparticulares,de ondeLaclau (2006)concluiquetoda identidadepolticaest internamentedividida. Ela precisa se afirmar afirmando aquilo que lhe falta. Por isso, para o autor, a relao entre universal e particular no se expressa como uma relao de mtua excluso: universal e particular no podem ser concebidos como incompatveis, mas sim como mutuamente constitudos. O contedo particular parte integrante do contedo que se pretende universal e o universal nada mais do que um contedo particular que em determinado momento passa a se apresentar como se fosse universal. Aterceiradimensodahegemoniadizrespeitoproduodesignificantes vazios e tem a ver com os mecanismos que tornam possvel que um particular possa representaraplenitudeausenteseafirmandocomouniversal(LACLAU,2000; 2006a; 2006b). SignificantevazioumacategoriautilizadaporLaclau(2006b)comoum instrumento que procura explicar o processo de hegemonizao de um discurso. O autordefinecomosignificantevazioumsignificanteque,noprocessodasprticas articulatrias,assumeaposiodeumademandamaiorcapazdearticularoutras inmeras e diferentes demandas presentes no campo da discursividade. Trata-se de umsignificantesemcontedodeterminadoe,sendoformasemcontedo,flutua, podendoserpreenchidoporqualquersignificado.Seupotencialpolissmicoo converteemreceptculodemltiploscontedos,permitindo-lheconciliar significadosaparentementeirreconciliveisepossibilitandoquealgoqueseja particular passe a representar a totalidade. Ouseja,cadaelementoqueexpressaumcontedoparticular,aose transformaremmomento,emprestaumsentidoparaqueacadeiadeequivalncia possaexpressar aquilo que se pretende. Com isso, os sentidos passam a designar algodiferente,assumemnovossignificados,porqueseuscontedosso deformados. 30 Aideiadesignificantevaziosustentaquequantomaisamplacertacadeiade equivalncia for, menos a demanda que assume a responsabilidade de represent-la comoum todo vaipossuir um laoestritocom aquiloqueconstituaoriginariamente comoparticularidade,querdizer,paraterafunoderepresentaouniversal,a demanda vai ter que se despojar de seu contedo preciso e concreto, afastando-se darelaocomseu(s)significado(s)especfico(s),transformando-seemum significantepuroqueoqueoconceituacomosendoumsignificantevazio (LACLAU, 2005, p. 3). Paraoautor,osignificantevaziofuncionacomoumpontonodalquetorna possvel a convergncia de diferentes elementos anteriormente desarticulados entre si.Ospontosnodaispermitemqueasdiferentesdemandassesintam representadas, o que fundamental para a constituio da hegemonia. No entanto, comisso,aproliferaodesentidosatribudosaosignificanteimpedeafixao definitivadeumnicosentidoquepretendeexpressarauniversalidade.Assim, possvel concluir que uma estrutura discursiva s capaz de fixar sentidos parciais. Osconsensoshegemnicossosempreprovisriosecontaminadospela precariedade e pela contingncia (LACLAU, 2000). Todavia, se fato que um significante vazio perdeu a capacidade de produzir efeitos especficos, no sendo clara sua significao, tambm correto afirmar que, emummesmocampopoltico,possvelidentificar,emdeterminadascadeiasde equivalncias, significantes cujos sentidos assumem maior nitidez.Aqui, trata-se de umtipodesignificantecapazdeproduzirsentidosespecficosequepossibilitaa aglutinaodedeterminadasdemandasquesesustentamsobreosoloprecrioe contingentedasarticulaespolticas.Nosetrataexatamentedeumsignificante vazio, ainda que, em determinadas circunstncias, possa atuar como tal. SegundoLaclau(2005),umsignificantevazioumacategoriavinculada construo de uma cadeia mais ampla. Esse outro significante que atende lgica dodeslocamentocontingente epermanente dafronteiraconstituintedosignificante vaziodesignadocomoflutuante.Oautordestacaqueasfronteirasentreos significantesvazioeflutuantenosobemdefinidase,emdeterminadas circunstncias, pode haver superposio entre eles. Por fim, para o autor, a ltima dimenso da lgica hegemnica diz respeito generalizaodasrelaesderepresentaocomocondiodeconstituioda ordemsocial(LACLAU,1998,2000).Paraqueumdiscursopossaarticular diferentes demandas, no esforo de produzir um nico sentido se constituindo como hegemnico,necessrioqueelesejacapazdeexercerumafunode representao.Eleprecisarepresentardemandasdiferenciadas.Nisso,Laclau 31 (1996,2001,2006a,2006b)tambmidentificaumaimpossibilidade,dadoquea representao nuncapodersertotal,comofoivistonadiscussoanteriorsobrea mtua relao entre universal e particular. Assim, para Laclau, a representao ser sempre distorcida, embora seja condio para a constituio de hegemonia. Nesseponto,anoodeideologiaassumeemLaclau(2006a)umalgica particular.Eladeixadeserassumidacomofalsaconscincia,comonatradio marxista, e passa a ser concebida como uma operao discursiva em que um objeto particularapresentadocomonicocapazdeencarnaraplenitudedesejada.Em Laclau,aideologiaassumeumadimensosocial.Trata-sedeilusonecessria, construdadiscursivamente,queconsisteemfazercrerqueosentidodeum contedoparticularonicopossvel.Essecontedoparticularpassaaser assumidocomonicocapazderepresentarasausnciasinerentesaoutros contedos particulares. Combasenessereferencialterico,estaanlisesedesenvolvecomo objetivodeapreenderaconstituiodehegemoniadosabercientficocomo processo em que o discurso sobre a cincia se articula na tentativa de fixar um nico sentido possvel sobre a natureza desse saber. Assumir essa hegemonia como uma operao discursiva implica pens-la como relao poltica em que a emergncia da cincia moderna acontece simultaneamente ao processo de produo de uma nova realidade cultural, em um contexto em que, com o advento da modernidade, est se constituindo uma nova viso de mundo. Naabordagem,dadodestaqueimportnciadacinciaparapensara emergnciadasociedademoderna.Nessesentido,aindaqueseestabeleam diferenciaescomaperspectivaestruturalistadesenvolvidaporHabermas(1983), aanliseresgataaideiadequeainstitucionalizaodoprogressocientfico contribuiuparaoprocessoderacionalizaodasociedade,entendidacomouma formadedominaopolticaqueseapresentacomotcnicafundamentadana racionalidadecientfica.Essaracionalidade,quesetornaumprincpioapontado comoomaisadequadoparanortearofuncionamentodasociedademoderna, transformaasinstituies,quepassamaoperaremfunodeumasecularizao produtora de novas formas de perceber e estar no mundo. 32 1.2Um saber particular que se universaliza SegundoPeters(2000),amodernidade implicaumprojetoculturalquetinha como pressuposto no apenas a modernizao da mquina estatal, mas tambmo redimensionamentodaprpriavidaemsociedade,apartirdaruptura autoconscientecomovelho,oclssicoeo tradicional,eumanfaseconcomitante com o novo e no presente (IDEM, p. 12). Noentanto,essascaractersticasgeraisnoimplicamaexistnciadeum movimentohomogneo.Pelocontrrio,diferentesconcepesdemundo partilhavameexpressavamodesejodetransformaoeprocuravamconstruir metanarrativas que atribuamdiferentessignificadosaomoderno.O liberalismoeo materialismohistricosoexemplosqueexpressamessadiversidadede significados. Considerandoessaheterogeneidadeecombasenateoriadodiscursode Laclau e Mouffe (2010), a modernidade assumida como expresso de um projeto culturalquesetornouhegemnico,constituindo-secomouniversal,namedidaem queconseguiuarticularinmerasediferenciadasdemandas,todasbuscando, discursivamente, fazer valer os sentidos que,em particular, atribuem aos princpios geraisquedefinemamodernidadeequedesempenharamumpapelcrucialna conformaodossujeitossociais.Contudo,aabordageminformaqueesses sentidos no estavam dados previamente e, somente ao analisar retrospectivamente esseprocesso,possvelidentificardemandasexistentesemumdadocontexto histrico que permitem compreender a constituio da hegemonia do projeto cultural moderno (SALES JR., 2006). Assim,oprojetomodernoseconstituiucomouniversalemumaoperao discursivaemquediferentesdemandaspresentesemdiscursosdiferenciados projetosparticularesforamincorporadasemumacadeiadeequivalnciaemque diferentes demandas anteriormente dispersas foram articuladas em oposio velha ordemrepresentante doatrasoeda opresso impeditivosdoprogressoedopleno desenvolvimentohumanoesocial.Avelhaordemprojetadacomoexterior constitutivooinimigoqueprecisavasercombatido,namedidaemque obstaculizava a plenitude humana. Umadasmarcasdesseprojetoadefesadacinciaedarazocomo instrumentospoderososdelutacontraasuperstioeaignorncia,asquais 33 mantinhamossereshumanoscomopresafcildoautoritarismocombatidopelos Iluministas5.Acincia,comopossibilidadedealcanaraemancipaohumana, sentido produzido como hegemnico, possibilitou a dominao poltica em nome da racionalidade cientfica. Assim,combaseemLaclau,possvelapreenderasformaspelasquaisa cinciamodernaumdiscursoparticularpassouaencarnarfunes universalizantes,explicitandotantoessasfunesquantoosmecanismosque permitiram que elas fossem representadas como tal. Nessaperspectiva,cabeidentificarosmecanismosquetornarampossvela hegemonizaodosabercientfico,osprocessospelosquaisacinciamoderna passouasediferenciardacinciaantiga.Semumapragmticaprpriaemuito identificadacomafilosofia,acinciaantigasecaracterizavaporserumtipode saberdesvinculadodatcnicaemaisvoltadoespeculaoracional,umtipode saberqualitativoedescritivovoltado demonstrao eorganizaodojsabido (ARISTTELES,1973).Tratava-sedeumtipodesaberquecompartilhavacom outros saberes uma racionalidade e um jogo de linguagem prprios e se autorizava pelapragmticadesuatransmissosemrecorrerargumentaoe administrao de provas (LYOTARD,1986, p.49),maisumtipodesaber,maisum discursodisputandosentidosemumdadocontextohistricoesocialmarcadopor relaes de poder. Oadventodacinciamodernaaconteceuapartirdorompimentocoma filosofiaemdecorrnciadastransformaesqueodesenvolvimentocientfico produziunaspercepesdemundo.Oprocessodetransioentrediferentes perspectivas de cincia antiga e moderna foi possvel na medida em que o saber empricoproporcionouconquistasnuncaantesalcanadaspelossereshumanos (ARAJO, 2010). Essas conquistas possibilitaram o questionamento de certezas at ento inabalveis,reforandoabuscapelo pensamentoautnomoeaprojeode novasmetasaseremalcanadas.Dessaforma,soestabelecidasascondies paraarupturaentreumtipodeconhecimentocontemplativo,quepermitiaa descrio e a classificao da natureza, e o estabelecimento de outro tipo, em que a apreenso da natureza passou a ter como objetivo a sua dominao. Trata-se de um 5 Iluminismoummovimentodeideiasquesintetizadiversastradiesfilosficasecorrentesintelectuaisque tiveramseuapogeunossculosXVIIIeXIXequetmseufoconatendnciaracionalidade,prpriado pensamento humano (BINETTI, 1995). 34 novotipodeconhecimento,emqueanaturezaconcebidacomoumorganismo finito e ordenado, produzido a partir da realidade observada e experimentada e que aelaretornaparatransform-laecontrol-la.Nanovacincia,nohlugarpara explicaesquerecorramcausalidadedivina.Averdadecientficadeveser buscada independentemente das verdades reveladas (FONSECA, 2005). Assim,acinciamodernapassouaserconcebidacomoumtipode conhecimentoquebuscavaleisexplicativasgerais,estabelecendoconexesentre fatosefenmenos,eseconstituiucomoumaatividadeimportanteno desenvolvimentohistrico,aindaquesapartirdosculoXVIItenhacomeadoa assumir relevncia para a vida humana, convertendo-se em favor determinante para o desenvolvimento do comportamento da sociedade contempornea (BAZZO, 1998). Aindasegundoesseautor,agrandediferenaestabelecidaentreosaber comum e o cientfico est na organizao e na sistematicidade a este conferida pelo mtodo.Nessaperspectiva, omtodoquesustentaaconcepode que osaber cotidianoexpressaumconhecimentoimperfeitoeincompletoedesabercientfico comoresultadodeumesforoparatornaranaturezaexplcitapormeioda elaboraodeumsistemacompletoecoerentedeenunciadoscomsuas explicaesperfeitamenteconstrudaserepletasde'verdades'(BAZZO,1998, p.160). Ou ainda, como afirma Costa (2000): OantigofsicoprocuravaleisnanaturezaquetraduzissemaordemnoUniverso, porqueelenopodiasuportaradesordem.Eleprecisavadecertezasdentrodele, pois no conseguia conviver com incertezas, provisoriedades e conhecimentos tidos como inacabados (p. 89). Trata-se da considerao que expressa a busca incessante de preenchimento deumaplenitudeausenteque,segundoLaclau(2006a)orientaaconstituioda hegemonia.Nocasodosabercientfico,essahegemoniaexplicaosmecanismos quepermitiramqueumsaberautorreferenciadoqueseproduzeselegitimaa partir de uma lgica particular construa, com base nela, a deslegitimao de outros tipos de saber. Essalgicaparticularsustentadapelomtodoexperimental,concebido comoumconjuntoderegrascapazdeestabeleceredemonstrarumaverdade cientfica.Omtodoaumentouaconfiananapossibilidadede,pelacincia,os sereshumanosalcanaremoplenoconhecimentodossegredosdanatureza,na 35 medida em que possibilitaria a apreenso do funcionamento da mesma. Um mundo queoracionalismocartesianotornacognoscvelporviadasuadecomposionos elementos que o constituem (SANTOS, 2008, p. 31). O mtodo permitiria desmontar esseselementospararelacion-lossobaformadeleisquetornariampossvel observarequantificarosfenmenosdeformaacontrol-losedomin-los.Essa passaaserentendidacomoanicaformalegtimadesechegaraoconhecimento verdadeiro(GRN,1999).Refere-seaummundoconcebidocomosetodosos objetosefenmenosapresentassemamesmaconstituioefuncionassemcom base nas mesmas leis universais.Desse modo, o mecanicismo concebe a natureza comouma'mquina',ummecanismoemfuncionamento(JAPIASS, MARCONDES, 1996, p. 177). Noprocessoderacionalizaodasociedade,otempodanaturezase transformouemtempodaracionalidadehumana.Tempo,negciosenatureza passaramaformarumsistemacomplexodeinter-relaes,emqueoespao qualitativodlugaraoquantitativo,umespaogeometrizado,marcadopela preocupaomatemticaderepresentaromundocorretamenteapartirdeum ponto de vista privilegiado e nico o do Homem (GRN, 1999, p. 27). Santos(2003,2008)afirmaque,aoconceberanaturezacomopassiva, eternaereversvel,acinciamodernafavoreceua emergnciade umaconcepo estanquedamesma,igualemtodaparteeparatodososseres.Essareduoda complexidade da natureza favoreceu a iluso de que o passado se repete no futuro ede que a ordem e a estabilidade do mundo podem ser expressas em enunciados denotativos objetivos. Orompimentocomumaconcepoorganicistabaseadanaunidadeentre natureza e existncia humana estabeleceu um abismo entre o objetivo e o subjetivo, oquearazo,aplicadaaomtodo,ficouincumbidadesuperar.Nomtodo,que, emborasepretendesseneutroedotadodopoderdeverdade,estavaimpregnado pelo contexto scio-histrico em que nascia, o humano era afirmado sobre todas as coisasecriaturas(FONSECA,2005).Nomtodo,estabelecia-seumprocessode dominaopoltica,aomesmotempoemqueossereshumanoscomearama romper com a velha ordem em diferentes esferas da vida: na poltica, com a criao dosEstados-Naoecomaconsolidaodaburguesia;enareligio,coma ReformaecomosurgimentodoHomemdevirt,capazdereordenaromundoa partir do seu novo ponto de vista (GRN, 1999). 36 Nesse contexto scio-histrico, a cincia chegou sua maturidade alimentada ealimentandoumprofundootimismoepistemolgico,oquefavoreceuasua consolidao como conhecimento capaz de expressar o rigor e a objetividade, como conhecimentoverdadeirocapazdeemanciparossereshumanosdoarbtrioedo atraso. OHomem,comomestreesenhordetodasascoisas,passouaintegraro cernedaconcepomodernadecincia.Tudofoireduzidorazo,eesse reducionismosustentouoidealdeprogressocujocontroledanatureza, proporcionadoporesseconhecimento,levaria,necessariamente,aummundo melhor.Odomniodanaturezapassouasertomadocomocondiodelibertao humana. Acinciamoderna,umtipodesaberparticular,passoua encarnarosentido deuniversalidade.Istoporqueessesaberumdiscursoparticularpassoua assumir a possibilidade de alcanar a plenitude humana e social, superando a falta, aincompletude(MOUFFE,2001);passouaencarnarapossibilidadede emancipaoedeprogresso,resultandonaefetivaodaliberdadedosseres humanos,inclusivedosdesgniosdanatureza.Assim,ocontnuoprogressoda cinciapareciagarantirsozinhootriunfodasideiasdeemancipaoe,nisso,a sociedadedofuturosurgiriacomodecorrncianaturaldaaplicaorigorosada cinciaedatecnologianavidadetodos.Amitificaodosabercientficopermitiu queacinciafosseeleitacomoOConhecimentocapazdegarantiraosseres humanos o completo domnio da natureza. Ateoriadodiscurso(LACLAU,MOUFFE,2010)permiteentenderqueessa articulaosetornoupossvelemfunodeumexteriorconstitutivo,uminimigo comumrepresentadopeloatraso,pela ignornciaepelaopresso.Dessaforma,a constituiodehegemoniadosabercientficoedesuarepresentaocomosaber verdadeirosedeunoprocessodediferenciaodiscursivacomoutrostiposde saberdefinidosediferenciadosdaquelasquesocaractersticasdossaberes narrativos. Aimportnciaatribudaaomtodocomocondioparasechegarao conhecimentoverdadeiroexpressaasnovaspragmticascomqueosdiscursos sobre a cincia buscavam demarcar fronteiras com outros discursos circulantes que, namodernidade,disputavamsentidosdemundo.SegundoGrn(1999),o 37 mecanicismo6 pode se afirmar garantindo a objetivao da natureza como condio fundamentalparaaexpansodaproduomaterial.Comisso,paraseapresentar comoanicaformalegtimadefazercincia,foinecessrioestabeleceruma fronteiraseparandoacinciadosoutrossaberes,negando-lhesostatusde conhecimentoverdadeiro.Assim,aracionalidadecientfica,quecaracterizavaa pragmticadeumtipodesaberparticular,passouaserassumidacomocritrio de legitimao das outras formas de saber. Analisandoosprocessosdelegitimaodosabercientfico,Lyotard(1986) afirmaqueasuapragmticasebaseia,dentreoutrascoisas,naexistncia: deum remetentequepossaformularumenunciadosobreumdadoreferente, representando-oconformeele,umreferenteaptoafornecerprovasacercada validadedoquediz,almdesercapazderefutarenunciadoscontrriossobreo mesmoreferente;eumdestinatriocapazdeaceitarourecusaroenunciadoque ouve.Assim,anicacompetnciarequeridadizrespeitoaointerlocutor, diferentementedosabernarrativo,emqueosatosdelinguagemsoefetuadosa partir de uma trplice competncia exercida por interlocutor, ouvinte e referente. Essanovapragmticaqueexpressaumaformadefazer,comunicare legitimarosenunciadosdacinciaacabouporrestringiroespectrodeatores habilitadosaparticipardojogodelinguagem.Essapragmticaficourestritoaos especialistas, o que provocou sua desvinculao da dinmica social, deixando de se constituir como um componente imediato e partilhado, como acontece com o saber narrativo.Nessaperspectiva,aracionalidadecientficalegitimouadominao poltica que resultou do processo de racionalizao da sociedade. Para Lyotard (1986), a constituio de diferentes tipos de saber resultado de dinmicasdiscursivasprprias,asquaistambmconferemlegitimidadeaos mesmos.Nocasodosabercientfico,oautorentendequeasualegitimidadese deve ao desempenho/s performances que este saber possibilita e que sustentam o modo de produo capitalista. Santos (2008) outro autor de cujas contribuies me aproprio para entender essadinmica,apesardesuadiscordnciacomLyotard(1986)sobreas possibilidadeseascaractersticasdeconstituiodeumnovoparadigmade cientificidade. 6 FilosofiaqueganhaforaapartirdoinciodosculoXVII,concebendoanaturezacomomquinacujo funcionamento obedece a movimentos que podem ser previstos (JAPIASS, MARCONDES, 1996). 38 ParaSantos,osabercientficofundoufronteirasostensivase ostensivamentepoliciadas(SANTOS,2008,p.21),queprecisaramser estabelecidascomoformadepossibilitaradiferenciaoentreoconhecimento universal e os outros tipos de conhecimento no cientficos. Porsuavez,Lyotardalertaqueaveracidadeatribudaaosenunciadosda cinciaspodeseratestadadentrodalgicadojogoemquesedeuasua produo.Assim,omtodo,queoinstrumentocapazdeofereceressaprova definindooscritriosdeaceitabilidadedeumenunciadocientfico,porsuavez, forjadonamesmadinmicainternadojogodelinguagem.Ouseja,omtodo cientfico cumpre, ao mesmo tempo, a funo de investigao que leva formulao de um enunciado denotativo e a funo de legitimao desse mesmo enunciado. Dissotudo,possvelconcluirquesetratadeumaracionalidadeparticular, comosoparticularesasracionalidadesdossaberesnarrativos,oqueimplica reconhecer que nada autoriza, para alm de um processo de construo ideolgica7, emqueasperformancesobtidaspelacincia,discursivamente,favorecemo reconhecimentodesuasuperioridadesobreasdemais,oualgumprivilgio epistemolgico.Noentanto,combasenessaracionalidadeparticular,osaber cientfico nega a racionalidade existente em outras formas de saber, apenas porque elasnosepautamnosmesmosprincpiosepistemolgicosemetodolgicos (SANTOS, 2003, 2008). Outro aspectoaconsiderardizrespeitofronteira estabelecidapelomtodo como forma de isolar o saber cientfico em um jogo de linguagem prprio. A partir de Laclau(1996,2001,2005,2006a,2006b),possveltantoquestionarocarter universalouparticulardafronteiraqueseparaosaberuniversaldossaberes narrativos particulares , quanto pensar a relao entre universal e particular para alm de uma relao de mtua excluso. O autor reflete sobre o carter universal ou particular da fronteira que separa auniversalidadedaparticularidadeeconcluique,seafronteiraparticular,a universalidadespodeserentendidacomoumaparticularidadequeseautodefine combaseemumprocessodeexclusomtuailimitada.Poroutrolado,seela universal, o particular passa a ser concebido como parte integrante do universal e a linha que separa universal e particular se confunde (LACLAU, 1996, 2001). 7 A ideologiaaqui assumidano sentidopropostopor Laclau(2006a),ouseja,comoumaoperaodiscursiva em que uma particularidade se apresenta como capaz de representar a totalidade, algo que maior que ela. 39 Assim,seomtodoconstituiasfronteirasesuasregrassoformuladasna dinmicade umjogoparticular,possvel questionar auniversalidadeatribudaao mtodoeoprivilgioepistemolgicoquedeladecorre,entendendoquea supremaciaqueosabercientficoassumiusobreoutrossaberesfoiepermanece sendo construda ideologicamente. A dimenso ideolgica do discurso cientfico est nofatodeeleseapresentarcomoaencarnaodaplenitudedoprincpioda cientificidadeeexpressodaneutralidade,ouaindacomoamelhorformade conhecerenicapossibilidadedeprogresso.Trata-sede umaoperaodiscursiva emqueseobjetivafixarumsignificadoatribudoaumdiscursoquecarregauma viso de mundo (LACLAU, 2006). Mas, como lembram Laclau e Mouffe (2010), esse nico sentido nunca poder serdefinitivamentefixado,pois,naprticaarticulatria,asdiferenasparticulares no podem ser completamente extintas. Para se tornar hegemnico, o conhecimento cientficoprecisouserreconhecidosocialmenteeoisolamentoemumjogode linguagemprprio poderiaseconstituiremobstculoaesse projeto.Aconstituio de sua hegemonia dependia, e continua a depender, do seu reconhecimento social comotal,e,parasetornarreconhecido,ele precisasetornarinteligvelaosoutros atoressociais,paraalmdocrculodeespecialistas.Ouseja,oconhecimento cientfico precisa, permanentemente, se reintegrar dinmica discursiva social mais ampla,ondecirculamossaberesnarrativos.Paraisso,soretomadas caractersticasdeumapragmticaanteriormenteexcluda,lanandomode recursoseprocessosque,abertamenteou no,relacionam-seaosaber narrativo (LYOTARD,1986,p.51).Nesseprocesso,a fronteiraentreuniversaleparticularse flexibiliza. possvelperceber,nadinmicadiscursivaapresentadaporLyotard,uma tentativadefechamentodoconhecimentocientificoemtornodeumnicosentido: umconhecimentoverdadeiro,fundadoemumalgicaprpria,masque,porque precisa ser identificado socialmente como tal, no pode romper definitivamente com oslaosqueounemaossaberesnarrativos.Porisso,precisaampliarseus contedosparticularesapontodefazersentidoaoutrosdiscursosdispersosno campo da discursividade (MENDONA, 2007, p.252). Noprocessodeconstituiohegemnicadamodernidade,oconhecimento cientficoseapresentadiscursivamentecomoocaminhoparaquesealcanceuma novaordem,aliceradaemumaconcepodemundocomoumamquinacujo 40 funcionamento independe de ns, mas que passvel de ser apreendida pela razo aplicada ao mtodo (FONSECA, 2005).Emoposio velha ordem, tomada como exteriorconstitutivo,discursosqueexpressamprojetosdiferenciadossearticulam em uma cadeia de equivalncia. Em comum, partilham dos ideais de emancipao e progresso que representam a possibilidade de emergncia de novas formas de sere estar no mundo, ainda que sejammltiplos os sentidos atribudos emancipao e ao progresso, o que permite conceb-los como significantes vazios (LACLAU, 2001). Aoafirmarqueumdiscursoemancipatriosempresefundamentaemuma situao de opresso,Mendona (2008) oferece um bom argumento para sustentar aideiadediscursocientficocomoaquelequebuscaarticularasdemandasdos diferentessetoresdasociedade,osquais,emdeterminadomomento,viamna ordemsocialdominanteumobstculopossibilidadedeemancipao.Avelha ordemoexteriorconstitutivoqueimpedeacompletudehumana,daquala emancipaoconsideradaexpresso.Osujeitomodernorepresentaessa identidade emancipada e universal. A constituio dessa identidade, livre das trevas daignorncia,ssetornarpossvelcomaaquisiodoconhecimentocientfico, um tipo de saber que se desenvolve de modo autnomo e que pode tornar os seres humanos mestres capazes de controlar a natureza. Por outro lado, as possibilidades deemancipaohumana,tambmimplicadasnoprocessodeobjetivaodo conhecimento, estavam fundadas na existncia de um sujeito autnomo. Aapostanaspossibilidadesdacinciafoiconsolidadaemumcontextoem queoavanocientficopossibilitouatransformaotecnolgicaeprovocou mudanasprofundasnomundo,alargandoasperspectivasdesobrevivncia humanae,supostamente,anunciandooestgiofinaldaevoluodasociedade.A racionalizaodasociedadeaconteceunessecontexto.Ocapitalismo,umdos projetosdemundoemdisputanamodernidade,avanounamedidaemque racionalizouautilizaodatcnicadosabercientfico(ARAJO,2010).A racionalidadecientficafoiapropriadapelaburguesiacomoumhorizontecognitivo maisadequadoaosseusinteresses(SANTOS,2008)e,dessaforma,osaber cientfico passou a se constituir tambm como um instrumento de dominao, poder e explorao. Como afirma Chalmers (1994), foi uma feliz coincidncia entre alguns aspectosdosinteressesdacinciaeosdaburguesiaquepermitiuqueacincia prosperasse na mar da revoluo cientfica (p. 159-160). Um bom exemplo dessa aliana pode ser verificado no processo de expanso 41 imperialistaeuropeia,querepresentouacapacidadehumanadesuperaroslimites impostospelanatureza,poispossibilitouqueaEuropaexpandisseseusdomnios, apresentando-secomoomodelouniversaldecivilizaoqueencarnavaos interesses humanos universais (LACLAU, 1996). Tudo isso ocorreu com o apoio dos avanosproporcionadospelacinciafortalecidacomomodeloglobalde racionalidade cientfica e, por sua vez, alimentada pela confiana epistemolgica no novo paradigma emergente, aprofundando a ruptura entre o conhecimento cientfico e outros tipos de saber. Ocontroledosabercientficopermitiuumnveldedesenvolvimentoda tcnicaessencialparaodesenvolvimentodocapitalismoepossibilitouqueos conceitosdeevoluoedeprogressoseconsolidassemcomocrenana superioridade do futuro em relao ao passado. Dessaforma,osdiscursosquearticulamsentidosdeevoluo,progressoe desenvolvimentocientficosefundamentamnomesmosentimentodeotimismo epistemolgicoeproduzemsignificantesvazios(LACLAU,2001),como emancipao, liberdade e construo de um mundo melhor para todos, sem que se possam definir, de maneira objetiva, os sentidos atribudos a eles. A hegemonia do saber cientfico constituda na medida em que ele passa a ser concebido como a nica possibilidade de construo de ummundo mais justo.Trata-se de um tipo de sabercapazdeencarnaraplenitudeausente.nessaperspectivaquetambm apreendido o processo de constituio da escola moderna. 1.3A consolidao da Escola como instituio moderna e o processo de escolarizao do conhecimento cientfico Aracionalizaodasociedadeestassociadaaumprocessode institucionalizaodoprogressocientficoetcnico.Elaimplicaautilizaode tecnologiasracionaisque,supostamente,podemconferirmelhororganicidade sociedade. Trata-se de pensar as normas de organizao e funcionamento social a partir da mesma razo tcnica que orientava os processos de produo da cincia, namedidaemqueessaracionalidadetempossibilitadoosavanos emdireoao progressoeocrescimentodasforasprodutivas.Nessecontexto,as transformaesocorridasnassociedadesindustrializadaseurbanasgeraram demandas que precisavam ser atendidas. A socializao e o controle dos indivduos 42 aserviodessassociedadespassaramarequereracriaodeumainstituio voltada para atender s demandas desse tipo especfico de sociedade que emergia equeintroduzianovosmodelosdevida(SACRISTN,1999).Assim,comoafirma Grn(1999,p.38),ocdigocurricularracionalatendiasnovasdemandasde educao das massas. O surgimento da educao escolar, mais do que atender a demandasdomundoprodutivo,foiessencialnoprocessodeconsolidaodeuma nova ordem social. Sacristn (1999) afirma que a educao moderna foi concebida como meio para o progresso dos indivduos e da sociedade em seu conjunto. O Progresso possvel, e a escolarizao universal, com sua lgica e seus contedos, um meio essencial para estimul-lo e dot-lo de contedo: a educao a sua alavanca, e o queelaproporcionarepresenta,emsi,umavanoparaossujeitoseparaa sociedade. Sem essa fora, ficaramos inertes (p. 150). Aideiadeprogresso,associadaaoprocessodeaperfeioamentodosaber cientficoemelhoriadacondiomoralematerialhumana,justificouapresena dasCinciasnocurrculo(GRN,1999).Essapresenanossejustificapela necessidade de formar as foras produtivas, mas tambm porque a consolidao do projeto moderno de mundo no se efetivaria sem que o povo assimilasse os novos sentidosdemundoqueencarnavamesseprojeto.Eraimprescindveldisseminar novas formas de significar o mundo.Assim,maisdoquepromoveraapropriaodoscontedosdacincia,a escola deveriaformarasnovasgeraes,capacitando-asaagirpautadasemuma nova racionalidade. O sujeito moderno o sujeito da razo e nela estavam fundadas as possibilidades emancipatrias (LYOTARD, 1986). Assim,aomesmotempoemquesurgiucomoconsequnciadas transformaes que a cincia produz no mundo, a escola moderna a instituio em que o conhecimento cientfico vai se afirmar como contedo cultural qualificado para serensinado(FORQUIN,1992).Dessaforma,umadasfrentesemqueesse conhecimento far valer a sua hegemonia, em um processo que no acontece sem tenses;pelocontrrio,concretiza-seemmeioaumemaranhadoderelaes sociais,emquesebuscarealizaradepurao,aseleoeahierarquizaodos produtosculturais,elevandoalgunscategoriaderealidadeuniversaleexcluindo outrosemumprocessoqueexpressadisputasentreprojetosdiferenciadosde mundo. 43 Essacompreensopermiteanalisaroprocessodeconsolidaodaescola modernaeoprocessodehegemonizaodosabercientficocomoprocessos mutuamenteimplicados,poisaescolaeafamliaforamduasinstituiesque tiveramumpapelcentralnaexperinciaformativadosindivduosenaprpria reproduocultural,ideolgicaeprofissionalnamodernidade.Mas,namedidaem quesetornouimperativoeducarsegundoanovaconcepodemundoquese gestava,aescolaassumiumaiorimportnciacomoespaodestinadoformao das jovens geraes, conforme um modelo socialmente aprovado e definido. Tratava-seprincipalmentedeforjarnovoscomportamentosadequadosaos novostempos,forjarumanovaidentidadecapazdereunirascaractersticas necessrias que expressassem os ideais emancipatrios; uma identidade universal, pois seria capaz de encarnar a plenitude ausente nas outras identidades particulares (LACLAU,2000,2001);umaidentidadecujocontedotambmseencontravaem disputaentreprojetosdiscursosquereivindicavamparasiosideaisda modernidade. em funo dessa compreenso que a escola pode ser entendida como uma instituiodamodernidade.Poroutrolado,essaperspectivatambmoferece fundamentosparaacompreensodosmecanismosdeseleoeconstituiodos contedosescolarescomoinstrumentosque,paraalmdadimensocognitiva, estiveramaserviodaformaodeumaidentidadequetemnacinciaoseu principal fundamento. Aescolamodernanostevepapelfundamentalnoprocessode racionalizaodasociedadecomoelaprpriaseorganizounessalgica.Nesse processo, diferentes setores sociais passam a ser submetidos a padres de deciso racional, o que teve como consequncia a expanso do agir instrumental a domnios diferenciados da vida social. CombaseemLaclau(2000),possvelpensaresseprocessocomouma operaodiscursivaemqueseconstituiuumahegemonianadinmicaemque diferentessentidosdemodernidadeestavamemdisputa.Noentanto,mesmo assumindooriscodesimplificarumarealidadereconhecidamentecomplexae dinmica,odesenvolvimentodaanlisetornanecessriaafixaodealguns sentidoshegemonizadosnoprocessoparapoderdarcontadedesenvolvero argumento que sustenta a elaborao deste texto. Dessa forma, a defesa da existncia de uma articulao de sentidos que, no 44 processodedisputaentreprojetosdemodernidade,favoreceualegitimidadedo saber cientfico como contedo escolarizvel, no implicanegar ou minimizar o fato de que essa legitimidade se realizou em um processo de embates. Pelo contrrio, o objetivodestatesedefenderqueessalegitimidade,queparececonsolidada, precisa ser permanentemente reafirmada, e que a escola se insere nessa dinmica. Nessesentido,interessantedestacar,porexemplo,otrabalhoemque Fonseca (2005) discute a tenso existente entre conhecimento cientfico e religioso, propondo,combaseemSantos(2003),aarticulaoentreessesdoistiposde conhecimento, de forma a dar conta da diversidade cultural existente nas escolas. Sementrarnomritodatesedefendidapelaautora,seutrabalhopermite identificaroesforodediferenciaoentresabercientficoereligioso,como estabelecimentodefronteirasdelimitandoombitodecadaum.Permitetambm percebercomosentidosdavelhaordemqueamodernidadenegavapermanecem circulando entre ns. Isso pode ser constatado na retomada do debate em torno da incluso do criacionismo no currculo escolar,o que Fonseca (2005) aborda em seu trabalho e que contraria a teoria da secularizao das sociedades modernas. No cenrio contemporneo, possvel apreender a intensificao de conflitos religiososnointeriordasinstituiesescolares,oque,segundoFonseca,um elementoqueevidenciaapermannciadeumdiscursorecontextualizadoque permaneceproduzindosentidosnaps-modernidade(HALL,2002).Assim,fato que a Igreja manteve parte de sua influncia e, apesar de representar a velha ordem asercombatida,elementosdodiscursoreligiosoforamincorporadosnacadeiade equivalnciacomopartedalutaporhegemonia.Essadinmicaconflituosafoi essencialparaaconsolidaodoprojetomodernoetambmseexpressana organizao da escola. A permanncia do ensino religioso na contemporaneidade, e toda a polmica gerada sobre a temtica, est implicada nessa dinmica. Outroaspectoaserdestacadodizrespeitorelaoestreitaentreos avanos da cincia e a consolidao do modo capitalista de produo. Ela informa, emcertamedida,ahegemoniacapitalistacomoprojetodemundoqueconfigura, aindaqueemlinhasgerais,omodelodeescolacontempornea.Sendoassim, mesmoconsiderandoaforaeosinteressesdoprojetoculturalburgusque buscavasehegemonizar,essemodelodeescolaestava,esemantm,em permanente disputa com outros projetos de mundo que orientam projetos de escola diferenciados.Emborapermaneahegemnico,oprojetoburgussereconfigura 45 permanentemente, como forma de se reafirmar como hegemnico. Diferentesdiscursosrepresentandoprojetosdemundoinfluenciaramde algumaformaoprocessodeescolarizaoquesedesenvolveuapartirdosculo XIX e se consolidou no sculo XX.Todos eles, em ltima instncia, esto a servio dapropagaodoprojetocultural homogeneizador,pois,aindaqueamodernidade expresse uma multiplicidade de projetos em disputa, estes tm em comum o fato de seorganizarememtornodaidentidadedeumsujeitoidealizado,autnomoe emancipadoorientado pela razo. Essa identidade definidaa priori e se pretende universal, mas, de forma ambivalente, precisa se apresentar como capaz de atender a inmeras demandas nem sempre coerentes entre si. Adispersodosfinsdaeducao,acomplementaridadeecompetitividadeque mantmentresisoconsequnciasinevitveisdasesperanaslanadasnessa instituiosalvadoraemqueaescolafoitransformada.Porisso,nocurrculo, tendemaestarconcentradastodasasurgnciasque,partindodediferentesreas deinteresse,esto voltadasparaas salvadorasinstituiesescolares.Portanto,o significadodoscontedosdaescolarizaoultrapassaaacepomaisrestrita, referente seleo de matrias ou de disciplinas (SACRISTN, 1999, p. 148). Assim,mesmocomtodaacomplexidadeimplicadanomovimentochamado modernidade,possvelpensaraexistnciadecontedosculturaisqueforam legitimadoscomomaisadequadosparaseremtransmitidospelaescola,pois favoreceriamaconstituiodedeterminadaidentidadeapropriadaefetivaode umnovoprojetodemundo.Nessesentido,Forquin(1993)defendequeos contedosdeensinodevemserselecionadosapartirdecontedosculturaisque, segundoele,representamopatrimniodeconhecimentosedecompetncias,de instituies,devaloresedesmbolos,constitudoaolongodegeraese caractersticodeumacomunidadehumanaparticular,definidademodomaisou menosamploemaisoumenosexclusivo(p.12).Oscontedosdacinciaso includoscomopartedessepatrimnio,influenciandofortementeoprocessode escolarizao. Istoporqueoprivilgioepistemolgicoconferidorazocientfica,pela possibilidadedeelagarantiraobjetividadedoconhecimentoassumidocomo verdadeiroeuniversal,influenciouotratamentoquefoidadoaoscontedosde ensinonosprocessosdeescolarizao.Nocaptulodois,essainfluncia,que deixousuasmarcasnaescolacontempornea,serdiscutidacomouma caractersticaainda presente no discurso educacional contemporneo. Por ora, fica 46 a afirmao de que a organizao e o funcionamento da escola com base no cdigo curricularracional,aomesmotempoemquepossibilitaramapropagaodeum projeto,tambmcontriburamparaalegitimaodessainstituioqueassumea funodeformarosujeitomoderno.Aidentidadedessesujeito,portanto,deveria estarimbudadevaloreseideaiscapazesdegarantiraproduoeareproduo simblica pela propagao de novos significados atribudos s relaes sociais, sem poderabrirmo,definitivamente,dealgunsdosvaloresenraizadosnacultura ocidental (SACRISTN, 1999). Mas,aoinvestigarosmecanismospelosquais,noexercciodopoder,os saberessoproduzidos,asperspectivasps-estruturalistastmpossibilitadoo questionamento do sentimento de f a priori na cincia. Elas permitem conceber os saberescomoprticasdiscursivasquesearticulamemsistemasmaisoumenos hierarquizados (PETERS, 2000). Com base nessa compreenso, possvel analisar osprocessosdiscursivosoperadospelaenamodernidade,osquaistanto contriburamparaoestabelecimentodeumasupostaneutralidademetalingustica emtornodoconhecimentocientfico,quantoimplicaramdeterminadomodelode organizao da escola, orientado para a constituio de uma nova viso de mundo pautada pela racionalidade cientfica. AscontribuiesdeLaclausoprodutivasparasepensaraforado sentimentodefapriorinaeducaocomoumimpulsoeumapoioessencialda esperana nos frutos prometidos do legado moderno (SACRISTN, 1999, p. 151). A educaoemancipatria,entendidacomopossibilidadedeautonomiaelibertao proporcionada pelo progresso e pelo desenvolvimento econmico, uma promessa de preenchimento das identidades incompletas (LACLAU, 1996). A emancipao o significante vazio em torno do qual diferentes demandas, que expressam projetos de mundoemdisputa,searticulamemumacadeiadeequivalncianatentativade preencheraquiloquelhesfalta.Odiscursoemdefesadacinciasetorna hegemnico nessa articulao, pois encarna a possibilidade de atingir a plenitude e, ideologicamente,seapresentacomouniversal.Nessaarticulao,tambmforam produzidosossentidosdenaturalizaodoscontedosescolaresemgeraleos cientficos em particular. Surgindo como a melhor forma de conhecimento, a cincia moderna adquiriu granderelevncia,tornandoquaseimpossvelpensaroutraformadedescrioda realidadequetenhaalcanadoessestatusprivilegiado.Assim,acinciaganhou 47 statusdemitoesuacaractersticaannimaadistanciadaspessoas,aomesmo tempo em que se enraza em nosso cotidiano (FONSECA, 2005, p. 32). Alegitimidadeconferidaaoconhecimentocientficonocurrculoest relacionada ao status privilegiado desse conhecimento na constituio de um tipo de racionalidadeespecfica,fundamentalparaconsolidaodeumprojetocultural especfico.Popkewitz(1992)afirmaqueumcurrculoorganizadodeformaa favorecerdeterminadasformasdeperceberomundoemdetrimentodeoutras. Trata-sedeumesforoderegulaosocialemquedeterminadoprojetocultural privilegiado em prejuzo de outros. A escola, como projeto da modernidade, opera com uma lgica que tem como pressuposto a formao de uma identidade idealizada, cujo contedo plenamente definido. Em funo disso, acaba se organizando de forma a silenciar as diferenas ou,nolimite,reconhecendo-as,desdequesubordinadasparticularidadedefinida como ideal. Assim,aindaquepautadaporideaisdejustiasocial,adefesadeuma heranaculturaluniversalquetranscenderiaasfronteirasentreosgrupos humanoseosparticularismosmentais[fundamentadanapossibilidadede existncia] de uma memria comum e de um destino comum a toda a humanidade (FORQUIN,1993,p.12)favoreceprocessosdehomogeneizaocultural,oque acarretaosilenciamentodasdiferenasqueconstituemohumanoou,emuma hiptese menos autoritria, asua subordinao a uma cultura considerada superior, universaletota