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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
DISCURSOS SOBRE A LEITURAANÁLISE DA POLÉMICA EM TORNO DO
PLANO NACIONAL DE LEITURA
Manuel Filipe Leal Conceição
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
Área de especialização em Educação e Leitura
2006
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UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
DISCURSOS SOBRE A LEITURAANÁLISE DA POLÉMICA EM TORNO DO
PLANO NACIONAL DE LEITURA
Manuel Filipe Leal Conceição
Orientador: Professor Doutor Jorge do Ó
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
Área de especialização em Educação e Leitura
2006
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Liberdade
Ai que prazer
não cumprir um dever.Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa
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Resumo
A dissertação tem por objecto de estudo «Os discursos sobre a leitura veiculados por textossurgidos na comunicação social a propósito do Plano Nacional de Leitura». O texto está
organizado em torno de quatro capítulos. Num primeiro capítulo é definido o enquadramento
teórico e metodológico, que tem na Análise Crítica do Discurso (ACD) o seu elemento estru-
turante. No segundo capítulo é feita uma abordagem ao tema do discurso sobre a leitura a
partir de uma revisão da bibliografia sobre o assunto. Num terceiro capítulo, tendo como
quadro teórico de referência a ACD, o autor aborda um conjunto de dezasseis artigos numa
dupla perspectiva. Numa primeira perspectiva, analisando o discurso sobre a leitura confor-
me um conjunto de temas-chave: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos
leitores; o papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do
bibliotecário; a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, ana-
lisando o discurso sobre a leitura numa lógica de polémica, recenseando o posicionamento
dos envolvidos perante: o Plano Nacional de Leitura, a intervenção estatal, os outros envol-
vidos na polémica. O autor constata que existe um discurso sobre a leitura que é dominante,
nomeadamente entre a elite cultural que tem nos jornais o seu principal espaço de opinião.
Esse discurso condiciona fortemente (de um ponto de vista ideológico) a definição das polí-
ticas nacionais de leitura, das quais o Plano Nacional de Leitura é um exemplo. Outra cons-
tatação do autor é sobre a existência de uma tensão entre os discursos e as práticas em
torno da leitura. Numa lógica de investigação-acção, o autor posiciona-se sobre a forma a
de ultrapassar esta tensão defendendo que é necessário mudar os discursos e mudar as
práticas em torno da leitura.
Palavras-chave
Discurso sobre a leitura / Plano Nacional de Leitura / Análise Crítica do Discurso / Leitura
pública / Desenvolvimento do leitor / Bibliotecas públicas / Bibliotecários
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Abstract
The object of this dissertation thesis deals with “the discourse about reading, in texts pub-lished by the Media about the National Reading Plan”. This work is divided in four chapters.
The first will focus about the theoretical and methodological framing of the subject, having in
mind the Critical Discourse Analysis (CDA), as its structural element. The second chapter will
try to approach the reading discourse theme through a literature review on the subject. In the
third chapter, having CDA as theoretical framework, the author refers to a set of sixteen arti-
cles on two perspectives. The first, analyses the discourse about reading through a set of
key-subjects: the non-reading phenomenon; the position status between reading and read-
ers; the school role and the teacher status; the library role and the librarian status; the rela-
tionship between reading, development and citizenship. The second perspective, analyses
the discourse about reading under a polemic logic, examining the intervenients point of view
of the National Reading Plan and the State intervention. The author states that there is a
dominant discourse about reading, mainly out of the cultural elite, which use the newspapers
as their ground for their opinions. This discourse, strongly limits (from an ideological point of
view) the definition of the national reading policies, which the National Reading Plan is an
example. The other evidence is the existence of a tension between the discourses and the
reading practice. In a investigation-action logic, the author suggests ways of overcoming this
tension by saying that it’s necessary to change both the discourses as the practices about
reading.
Key words
Discourse about Reading / National Reading Plan / Critical Discourse Analysis / Public Read-
ing / Reader Development / Public Libraries / Librarians
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Agradecimentos
A produção de uma dissertação de mestrado é um percurso de reflexão lento esinuoso que acarreta em si mesmo expectativas, descobertas, frustrações, avanços e
recuos. Todavia, é um percurso que não fazemos sós. Gostava pois de agradecer a todos
os que partilharam este percurso.
Aos colegas da Rede de Bibliotecas Municipais de Oeiras que me acompanham na
aventura diária de transformar as bibliotecas públicas em instituições vivas, fazendo da leitu-
ra uma das suas mais profundas razões de ser e de estar.
Aos colegas do mestrado, pela troca de ideias e de experiências. Pelas conversas decircunstância, que foram criando entre nós um espírito de camaradagem.
Aos docentes do Mestrado em Ciências de Educação – especialização Educação e
Leitura, pelos conhecimentos transmitidos, pelos estimulantes debates e pela generosidade
colocada na relação humana. Ao Professor Doutor Justino de Magalhães, pela forma empe-
nhada e dedicada com que tem dirigido o Mestrado. Ao meu orientador, Professor Doutor
Jorge do Ó, por me ter aberto novas perspectivas para reflectir criticamente sobre a minha
prática profissional.
Last but not least. Um agradecimento muito especial à Tatiana, por ter acreditado em
mim, por ter insistido e persistido. Pelas muitas sugestões e pela troca de impressões. Tam-
bém pela forma paciente e diligente com que fez a revisão do texto. À Diana e ao Lucas um
pedido de desculpas pelo tempo roubado.
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Sumário
Resumo .............................................................................................................4
Abstract..............................................................................................................5
Agradecimentos.................................................................................................6
Sumário .............................................................................................................7
Introdução..........................................................................................................9
1. Enquadramento teórico e metodológico ..................................................12 1.1. Definição do objecto de estudo............................................................................ 15
1.2. Objectivos da investigação .................................................................................. 16
1.3. Quadro teórico de referência ............................................................................... 16
1.4. Definição do corpus documental.......................................................................... 24
1.5. Estabelecimento de uma grelha de análise ......................................................... 26
2. Discursos sobre a leitura..........................................................................29
2.1. O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura.......................... 29
2.2. Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante ............................ 31
2.3. O estatuto das leituras e dos leitores assenta em juízos de valor ....................... 33
2.4. O discurso sobre a leitura dominante tem uma matriz ideológica ....................... 36
3. Análise do corpus documental .................................................................42
3.1. O Plano Nacional de Leitura ................................................................................ 42
3.2. Análise dos temas-chave..................................................................................... 43
3.3. Análise da polémica............................................................................................. 63
4. Leitura: entre os discursos e as práticas..................................................78
4.1. Do excesso dos discursos à pobreza das práticas.............................................. 78
4.2. Mudar os discursos, mudar as práticas ............................................................... 85
Conclusão........................................................................................................97
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Bibliografia .....................................................................................................100
Anexo 1: corpus documental .........................................................................104
Anexo 2: documentos complementares ........................................................132
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Introdução
A dissertação de mestrado que agora se apresenta surge no âmbito do Mestrado emCiências da Educação – Educação e Leitura, realizado na Faculdade de Psicologia e Ciên-
cias da Educação da Universidade de Lisboa.
A produção desta dissertação de mestrado foi assumida como uma oportunidade
única para poder encetar uma reflexão crítica sobre a nossa prática profissional, colocando
um especial enfoque nas problemáticas relacionadas com a leitura. Essa reflexão crítica
procurou cruzar duas perspectivas complementares: numa primeira perspectiva (de enfoque
local), partiu do ponto de vista do profissional responsável pela concepção, implementação e
avaliação de projectos de promoção da leitura desenvolvidos nos últimos vinte anos em
diversas bibliotecas públicas portuguesas (Setúbal, Alcácer do Sal, Vendas Novas e Oeiras);
numa segunda perspectiva (de enfoque nacional), partiu do ponto de vista do observador
atento às políticas nacionais de leitura que têm na implementação da Rede Nacional de
Bibliotecas Públicas, no Programa Nacional de Promoção da Leitura e no Plano Nacional de
Leitura algumas das suas mais substantivas expressões.
Interessava-nos mormente analisar a relação paradoxal existente entre os discursos
e as práticas que envolvem a leitura, que podem ser recenseados tanto ao nível dos deciso-res de topo (responsáveis políticos e responsáveis institucionais) como ao nível dos profis-
sionais no terreno (bibliotecários e professores). Esse interesse decorre da constatação que,
num país onde não existe um corpus teórico-prático consolidado em torno das problemáti-
cas da leitura, se assista a uma clara preponderância dos discursos sobre as práticas.
Escolha do tema
A escolha do tema da dissertação (Discursos sobre a leitura: análise da polémica em
torno do Plano Nacional de Leitura) obedeceu a razões de ordem afectiva e a razões de
ordem metodológica.
Em primeiro lugar, porque foi no âmbito de um projecto de promoção da leitura reali-
zado na Biblioteca Municipal de Oeiras (Café com Letras) que José Saramago se pronun-
ciou acerca da inutilidade do Plano Nacional de Leitura (PNL). Estas afirmações, efectuadas
na véspera da apresentação pública do PNL (1 de Junho de 2006), acabariam por desenca-
dear uma forte polémica que envolveu a maior parte dos fazedores de opinião da imprensa
portuguesa.
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Em segundo lugar, porque o PNL se constitui como a mais recente iniciativa estatal
de grande dimensão em prol da leitura, o que nos permitiria analisar os pressupostos teóri-
cos e metodológicos que subjazem às politicas nacionais de leitura extraindo-os ao discurso
oficial sobre a leitura veiculado pelos decisores políticos e pelos decisores institucionais.
Em terceiro lugar, porque os diversos artigos de opinião que surgiram nos meios de
comunicações social (a pretexto do PNL) eram susceptíveis de serem integrados num cor-
pus documental consistente, delimitado no tempo e mutuamente referenciado. Esses artigos
de opinião poderiam ser analisados de uma forma muito profícua pois continham os grandes
temas-chave que consubstanciam o discurso sobre a leitura e deram uma dimensão pública
ao debate em torno da leitura.
Em quarto lugar, porque se constatou, através da análise preliminar dos artigos de
opinião, que estávamos perante um discurso sobre a leitura que consegue exercer o seu
domínio devido a dois factores: por ser veiculado nos meios de comunicação social por
conhecidos fazedores de opinião; por se sobrepor a outros possíveis discursos veiculados
pelos especialistas ou pelos profissionais que abordam as questões ligadas à leitura.
Estrutura do texto
Estruturámos o texto em quatro capítulos: Capítulo 1 – Enquadramento teórico e
metodológico; Capítulo 2 – Discursos sobre a leitura; Capítulo 3 – Análise do corpus docu-
mental; Capítulo 4 – Leitura: entre os discursos e as práticas. No final, para além da biblio-grafia, anexamos os textos que compõem o corpus documental que foi alvo da nossa análi-
se.
No Capítulo 1 são apresentadas as grandes opções teóricas e metodológicas que
efectuámos. Começamos por definir, no ponto 1.1, o objecto de estudo e, no ponto 1.2., os
objectivos da investigação. No ponto 1.3, apresentamos de forma sucinta o quadro teórico
de referência (análise crítica do discurso) que suporta a nossa investigação fazendo também
a ponte para a abordagem ao discurso polémico. No ponto 1.4, procedemos à enunciação
dos critérios que utilizámos para constituir o corpus documental e indicaremos os documen-
tos seleccionados. Por fim, no ponto 1.5, apresentamos a grelha que utilizámos para a aná-
lise do discurso sobre a leitura presente no corpus documental.
No Capítulo 2, iremos referenciar os grandes temas ligados ao discurso sobre a leitu-
ra. Para tal utilizaremos como fio condutor um artigo da Associação de Leitura do Brasil
(Múltiplos objectos, múltiplas leituras). Serão também convocados outros autores e outras
perspectivas. O capítulo foi organizado em torno dos grandes temas: a crise da leitura, os
sintomas, as causas e as consequências; os factos e os argumentos que fundamentam o
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discurso dominante e o discurso alternativo; os diferentes estatutos atribuídos às leituras e
aos leitores; a intervenção estatal e sua fundamentação ideológica.
No Capítulo 3, procedemos à análise do corpus documental segundo duas perspecti-
vas. Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um conjunto
de temas recorrentes: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos leitores; o
papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do bibliotecário;
a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, analisamos o
discurso sobre a leitura segundo uma lógica de polémica, recenseando o posicionamento
dos actores-chave perante: posicionamentos face ao PNL e posicionamentos face à inter-
venção estatal. Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a institu-
cionalização do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideológica
que subjaz ao discurso dominante sobre a leitura.
No Capítulo 4, procedemos a uma reflexão crítica sobre a relação paradoxal que se
estabelece entre os discursos e as práticas ligadas à leitura. Este posicionamento crítico em
tudo é devedor à análise crítica do discurso. No ponto 4.1, partiremos de um artigo de Antó-
nio Nóvoa (Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à pobreza das
práticas) para analisar as tensões excesso-pobreza existentes entre os discursos e as práti-
cas ligadas à leitura. No ponto 4.2, apresentarmos a perspectiva do investigador sobre a
mudança dos discursos e, paralelamente, apresentarmos a perspectiva do bibliotecário
sobre a mudança das práticas.No final, anexámos todos os documentos que constituem o corpus que foi alvo da
nossa análise crítica do discurso. Tendo em atenção a diversidade de origens dos documen-
tos (artigos de opinião publicados na imprensa, posts colocados em blogs, notícias publica-
das na imprensa), procedemos à sua conversão para formato de documento Word e à sua
formatação uniforme, de modo a facilitar a sua citação e a uniformizar a mancha gráfica.
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1. Enquadramento teórico e metodológico
Em 1986 foi constituído um Grupo de Trabalho, por despacho da Secretária de Esta-do da Cultura (Teresa Patrício Gouveia), a que foi incumbida a tarefa de definir as bases de
uma política nacional de leitura pública, a qual assentaria “fundamentalmente na implemen-
tação e funcionamento regular e eficaz de uma rede de bibliotecas municipais, assim como
no desenvolvimento de estruturas” que, a nível central e local, mais directamente as pudes-
sem apoiar. (Despacho nº 3/86, de 11 de Março).
No 1º Relatório apresentado pelo referido Grupo de Trabalho, sugeriram-se medidas
imediatas de intervenção, bem como orientações conceptuais e programáticas. Assim, o
Instituto Português do Livro e da Leitura desenvolveu e aplicou desde 1987 um plano de
leitura pública, através do apoio à criação de bibliotecas municipais. Este plano foi directa-
mente inspirado no exemplo francês das bibliotecas de leitura pública, tendo sido importa-
dos os modelos de organização espacio-funcionais que estiveram na base da constru-
ção/adaptação dos edifícios.
Todavia, a implementação da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) ficou
tão-somente por um registo de construção/recuperação de edifícios tendo sido descurada a
criação de uma visão estratégica e de uma filosofia de funcionamento adequadas à realida-de portuguesa. O substrato técnico, político e ideológico, que suportava o conceito de leitura
pública em França1 perdeu-se no processo de transplante para Portugal. O conceito de leitu-
ra pública não foi suficientemente assimilado, reflectido e debatido por uma nova geração de
bibliotecários recém chegados à profissão por via dessas novas bibliotecas municipais.
Como consequência da não consolidação do conceito de bibliotecas de leitura pública, a
relação umbilical entre as bibliotecas públicas e a leitura pública foi progressivamente per-
dendo terreno, ao ponto do conceito inicial de «bibliotecas de leitura pública» (de matriz
francesa) ter sido substituída pelo conceito de «bibliotecas públicas» (de matriz anglo-saxónica).
Note-se ainda que os políticos da tutela e os decisores de topo adoptaram, ao longo
dos anos, um discurso triunfalista (validado internacionalmente pelo facto da RNBP ser con-
siderada um caso exemplar). Esta retórica estatal fez desviar o enfoque sobre o deficiente
funcionamento das bibliotecas públicas portuguesas. Em muitos casos, depois de inaugura-
1 Sobre a matriz técnica, política e ideológica do conceito de leitura pública em França, leia-se a este propósito o artigo de Marine de
Lassalle “Les paradoxes du succès d’une politique de lecure publique » in Bulletin des Bibliothèques de France. Paris : BBF, 1997. T 42, nº 4, p.
10-17.
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das, as novas bibliotecas públicas apresentavam limitações estruturais no seu funcionamen-
to (falta de recursos humanos qualificados, falta de verbas para actualização de colecções,
deficiente prestação de serviços ao público, falta de programas de promoção da leitura,
etc.).
Em 1996, um Grupo de Trabalho, nomeado para o efeito pelo Ministro da Cultura
(Despacho nº 55/95, de 12 de Dezembro), apresentava o «Relatório sobre as Bibliotecas
Públicas em Portugal», no qual se procedia a uma reflexão sobre o contexto — nacional e
internacional — e se propunham novas linhas de acção (atendendo sobretudo às recentes
inovações tecnológicas) para o desenvolvimento futuro da RNBP, a promover pelo Instituto
Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), cuja lei orgânica aguardava publicação.
Na altura foram tomadas em consideração diversas inovações tecnológicas. Estas
estavam relacionadas com o armazenamento e a disponibilização da informação em suporte
digital, com os novos documentos multimédia e com o advento da Internet. O referido Rela-
tório concluía que, continuando a ser fundamentais as funções básicas de promoção da lei-
tura e do acesso à informação, para que a biblioteca pública as pudesse desempenhar
cabalmente seria necessário que os respectivos serviços utilizassem as tecnologias moder-
nas apropriadas, como recomendava o Manifesto da Unesco sobre as bibliotecas públicas,
na sua versão de 1994.
Nota-se a partir deste relatório uma inflexão estratégica na forma de pensar as biblio-
tecas públicas portuguesas: a tónica deixa de ser colocada na leitura pública e passa a sercolocada na sociedade de informação. A leitura é arredada dos discursos doutrinais e pro-
gramáticos que enquadram o desenvolvimento das bibliotecas públicas, tornando-se uma
referência meramente residual. Um novo aparato conceptual surge dando expressão a uma
nova visão de biblioteca pública (porta de acesso local à sociedade de informação) que
assume a informação como conceito estruturante e as tecnologias de informação e comuni-
cação como o seu instrumento privilegiado.
Curiosamente, é neste contexto que surge o Programa Nacional de Promoção da
Leitura, que dá corpo, pela primeira vez, à implementação efectiva de uma política de leitura
pública em Portugal. Uma mesma instituição (IPLB) adopta duas linhas de rumo estratégico
aparentemente contraditórias: bibliotecas públicas versus promoção da leitura. Os documen-
tos doutrinários e programáticos e as posturas institucionais dos decisores de topo são tes-
temunhos destes discursos diversos e tantas vezes opostos. As bibliotecas públicas portu-
guesas chegavam a uma encruzilhada.
Quando partimos para a produção desta dissertação de mestrado era nossa intenção
fazer a análise das dinâmicas de aproximação/afastamento entre os conceitos de bibliotecapública e de leitura pública, adoptando uma abordagem de carácter diacrónico balizada cro-
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nologicamente entre os anos de 1986 e 1996. No entanto, esta abordagem deparou-se com
diversas dificuldades de ordem teórica e metodológica, que passamos a enumerar.
Por um lado, a dificuldade de definir clara e inequivocamente um objecto de estudo
que fosse passível de ser abordado no âmbito de uma dissertação de mestrado. Entre as
várias possibilidades inventariadas destacamos algumas: O desenvolvimento das bibliotecas
públicas durante o período entre 1986 e 1996? A história das políticas governamentais para
a leitura pública? Os hábitos de leitura dos leitores de uma biblioteca pública? Os projectos
de promoção da leitura realizados pelas bibliotecas públicas? Todas estas abordagens eram
interessantes, mas não eram essencialmente aquilo que nos interessava investigar. Assim
sendo, como poderíamos definir um objecto de estudo onde fosse possível abordar as apro-
ximações/afastamentos entre leitura e biblioteca? Como poderíamos investigar os pressu-
postos que estavam por detrás das visões e das decisões estratégicas?
Por outro lado, a dificuldade de escolher uma abordagem metodológica que permitis-
se a recolha, o tratamento e a interpretação de dados, de uma forma válida de modo a sus-
tentar uma série de conclusões credíveis. Eram várias as possíveis abordagens metodológi-
cas: A realização de inquéritos. A realização de entrevistas. A análise documental. A obser-
vação directa. Estas metodologias são habitualmente utilizadas no âmbito de investigações
que são realizadas tendo por objecto a leitura pública ou as bibliotecas públicas. Todavia,
era por demais óbvio que a metodologia a utilizar estava totalmente dependente do objecto
de estudo que fosse abordado.À medida que efectuávamos a pesquisa bibliográfica e a leitura dos textos seleccio-
nados fomos dando conta que, em Portugal, com a excepção dos relatórios dos grupos de
trabalho anteriormente referidos e da produção editorial de um número muitíssimo reduzido
de profissionais (do qual destacamos o nome de Henrique Barreto Nunes), não existe um
corpus teórico-prático onde se possa alicerçar uma reflexão crítica sobre a relação entre
leitura e biblioteca em Portugal.
Este vazio pode ser constado pela ausência: de documentos de enquadramento
(legislação aplicável às bibliotecas públicas, documentos programáticos para a promoção da
leitura, etc.); de uma reflexão e discussão profissional (falta de produção editorial de matriz
técnica, inexistência de encontros especializados sobre o tema, etc.); de uma avaliação das
práticas e dos resultados (não existe uma cultura de avaliação dos projectos e das acções,
não são identificadas e disseminadas boas práticas); uma abordagem teórica e metodológi-
ca (são poucos os estudos de âmbito académico que cruzem leitura e biblioteca, são poucos
os investigadores especializados nestas áreas).
Tal vazio torna-se ainda mais evidente quando se compara a produção editorialnacional com a produção editorial internacional. São inúmeros os exemplos: França (com as
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reflexões e debates em torno das políticas de leitura pública); Inglaterra (com a emergência
de uma nova abordagem à leitura na biblioteca expressa no conceito do desenvolvimento do
leitor ); Espanha (com a reflexão e debate em torno das práticas da animação da leitura);
América Latina (com o Brasil, a Argentina, a Colômbia, a lançarem iniciativas nacionais em
torno dos eixos leitura – desenvolvimento – cidadania)2
.
Assim sendo, perante este vazio, onde poderíamos procurar os pressupostos e os
fundamentos que sustentam a definição das políticas nacionais de leitura? A nossa percep-
ção foi a de que devíamos analisar os discursos veiculados pelos actores-chave que estive-
ram por detrás das grandes opções estratégicas, mas, na ausência de documentos progra-
máticos ou de intervenções públicas por parte daqueles, como poderíamos fazê-lo? Ainda
colocámos a hipótese de analisar alguns dos textos edificadores do discurso sobre a leitura
em Portugal (Manifesto A Leitura Pública em Portugal de 1983; Manifesto da Unesco sobre
as bibliotecas públicas de 1994; Manifesto Leitura, Liberdade, Cidadania de 1996). Mas veri-
ficámos que esta abordagem seria bastante redutora, devido ao escasso número de docu-
mentos e sua dispersão temporal e devido ao facto de serem textos retóricos.
Só muito recentemente surgiu a oportunidade que esperávamos. Estamos a falar da
apresentação pública do Plano Nacional de Leitura (PNL) e da polémica que se gerou em
torno do deste nos meios de comunicação social. Foi então possível criar um enfoque para a
nossa investigação, a partir do qual estabelecemos: o objecto de estudo; os objectivos da
investigação; o quadro teórico de referência; o corpus documental; a grelha de análise; aabordagem da polémica. Tudo isto enquadrado pelo quadro de referência teórico e metodo-
lógico que está ancorado na análise critica do discurso.
1.1. Definição do objecto de estudo
Tendo por base o enquadramento anteriormente efectuado, assumimos como objec-
to de estudo «Os discursos sobre a leitura veiculados por textos (que constituem o nossocorpus documental) surgidos na comunicação social a propósito do lançamento do Plano
Nacional de Leitura».
A definição deste objecto de estudo tem duas implicações metodológicas: não pre-
tendemos estudar o PNL propriamente dito (expresso no relatório-síntese) mas os artigos de
opinião, editoriais, entrevistas e posts em blogs, produzidos em torno da sua apresentação;
não pretendemos enquadrar a nossa análise dentro do contexto escolar mas sim no contex-
to mais geral da opinião pública veiculada pelos fazedores de opinião.
2 Veja-se a este propósito: PEÑA, Luís; ISAZA, Beatriz Helena – Una región de lectores: análises comparado de planes nacionales de
lectura en Iberoamérica. Colômbia: CERLALC, 2005. 223 p. ( http://www.cerlalc.org/region_lectores.pdf )
http://www.cerlalc.org/region_lectores.pdfhttp://www.cerlalc.org/region_lectores.pdf
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1.2. Objectivos da investigação
Tendo em atenção a abordagem ao objecto de estudo anteriormente definido, assu-
mimos os seguintes objectivos para a nossa investigação:
• Encetar uma nova abordagem na investigação das problemáticas da leitura (com
enfoque nos discursos sobre a leitura) a partir dos contributos teóricos e metodo-
lógicos da análise crítica do discurso;
• Caracterizar, sucintamente, os temas-chave do discurso sobre a leitura, efec-
tuando uma revisão bibliográfica dos trabalhos publicados em Portugal e no
Estrangeiro sobre o tema;
• Analisar os textos sobre o PNL segundo duas perspectivas: enumerando a pre-
sença/ausência de um conjunto de temas-chave; recenseando o posicionamentodos autores envolvidos na polémica;
• Realizar uma reflexão crítica (na perspectiva do investigador e na perspectiva do
profissional) sobre a relação existente entre os discursos e as práticas que se
estruturam em torno da leitura;
• Estabelecer algumas linhas de continuação para o nosso trabalho, que extrava-
sem o âmbito desta dissertação, que nos permitam sustentar uma linha de inves-
tigação-acção em torno da leitura.
1.3. Quadro teórico de referência
Temos plena consciência da fragilidade do nosso domínio sobre o quadro teórico de
referência: Análise Crítica do Discurso (ACD). Todavia, não quisemos deixar de fazer um
primeiro esquisso de um mapa conceptual que possa ser utilizado para trilhar os caminhos
de futuro da análise crítica do discurso sobre a leitura. Para tal, iremos ancorar o nosso texto
em vários autores portugueses (Pedro, 1998; Nogueira, 2001; Gouveia, 2001; Coelho, 2004,
2005) e num autor estrangeiro de referência (van Dijk, 2005).
O que é a Análise Crítica do Discurso?
Apesar da complexidade das problemáticas envolvidas e das várias tendências que
lhe dão corpo, tentemos delinear uma primeira acepção que seja simultaneamente clara e
abrangente (Coelho, 2004):
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«É por assim dizer uma forma de estudar o discurso como uma consciência e causa, a de revelar a for-
ma como a linguagem é usada e abusada na produção e reprodução do poder e da desigualdade
social, fazendo-o sempre que possível a partir da perspectiva dos oprimidos (Fairclough e Wodak,
1997).».
Podemos constatar que existe uma relação umbilical entre três vectores (linguagem
– discurso – sociedade) que confluem num sujeito discursivo, que não é um agente passivo
e neutro mas sim um actor-chave na produção e reprodução dos discursos. Isto faz com que
a análise crítica do discurso (ACD) aborde a linguagem na sua dimensão de uso social, em
que o indivíduo surge como elemento de uma comunidade discursiva (Pedro, 1998: 21):
«Na Análise Crítica do Discurso (ACD), encontramos um processo analítico que julga os seres humanos
a partir da sua socialização, e as subjectividades humanas e o uso linguístico como expressão de uma
produção realizada em contextos sociais e culturais, orientados por formas ideológicas e desigualdades
sociais.».
Daqui decorrem algumas constatações sobre a ACD: é uma abordagem interdiscipli-
nar ao discurso; assume a linguagem como uma prática social; analisa como a dominação
se reproduz e resiste com os discursos; pretende aclarar os fundamentos ideológicos do
discurso; assume um posicionamento crítico face às desigualdades no acesso aos recursos
linguísticos e sociais. Acima de tudo, há que perspectivar a análise do discurso na sua
dimensão teórica e metodológica.
O posicionamento cr ítico da ACD
Para melhores entendermos as especificidades da ACD, podemos também comparar
a sua abordagem crítica ao discurso em relação a outras abordagens à análise do discurso
(Pedro, 1998: 23):
«Todas as formas de análise do discurso tomam o texto como o domínio adequado da teoria e da des-
crição linguísticas. Em todas encontramos um interesse na compreensão de textos extensos, social ou,
pelo menos, culturalmente situados e uma atenção a aspectos sociais, co-textuais e culturais que permi-
tem a garantia de categorias de explicação para a descrição dos textos.
A ACD partilha estes objectivos com as diferentes abordagens da análise do discurso, visando dar con-
ta quer da estrutura interna quer da organização global dos textos. Mas, para além destes aspectos,
tem o objectivo de fornecer uma dimensão crítica à análise dos textos. Como nota Kress (1990: 85), “os
praticantes da ACD têm, de forma explícita ou implícita, o objectivo político mais vasto de questionar as
formas dos textos, os processos de produção desses textos e os processo de leitura, juntamente com
as estruturas do poder que deram azo a esses textos”.».
A assumpção da dimensão crítica remete a ACD para além de um mero programa de
investigação, reivindicando para si mesma um programa político (potencialmente polémico,
cientificamente consciente) (Pedro, 1998: 24):
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«Como observa ainda Kress, “a ACD afirma-se abertamente político e, portanto, potencialmente polémi-
co”. Aliás, como observa, uma ciência livre de valores – e consequentemente, a-histórica – sempre foi, e
hoje é-o talvez ainda mais, profundamente questionável. Mas se a ACD se reclama de uma actividade
política comprometida, essa actividade não é menos adequadamente científica. É mesmo possível que
o seja mais ainda, dada a consciência que caracteriza a sua posição política, ideológica e ética.».
As implicações teóricas e metodológicas deste posicionamento crítico da ACD são
diversas. Entre as quais surge primeiramente uma abordagem supralinguística, que conside-
ra o contexto discursivo de uma maneira não restritiva, ou seja, interessa à ACD o uso da
linguagem em contextos diversos (político, comunicação social, económico, publicitário, etc.)
(Pedro, 1998: 20):
«A Análise Crítica do Discurso opera, necessariamente, com uma abordagem de discurso em que con-
texto é uma dimensão fundamental. Mas, ao contrário de outras abordagens, conceptualiza o sujeito
não como um agente com graus relativos de autonomia, mas como sujeito construído e construindo os
processos discursivos a partir da natureza de actor ideológico (cf., a este propósito, por exemplo Fair-
clough 1989, 1992, Kress 1996, Pedro 1996-a e b, Wodak 1996).».
Surge também como estruturante a análise do discurso na perspectiva da identifica-
ção das desigualdades sociais decorrentes do exercício do poder social (Pedro, 1998: 25):
«Um dos objectivos da ACD é o de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da domina-
ção. Dominação entendida como (van Dijk, 1993) o exercício do poder social por elites, instituições ou
grupos, que resulta em desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade política, a desigualda-
de cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de classe, de raça, de sexo e de caracterís-
ticas étnicas. (…) E embora estejam conscientes da importância das estratégias de resistência e desafio
no seio das relações de poder e de dominação e, portanto, da importância da sua análise e da inclusão
dessa análise numa teoria mais alargada do poder, do contra-poder e do discurso, a abordagem crítica
tem, até agora, preferido concentrar-se nas elites e nas estratégias que estas põem em funcionamento
para a manutenção da desigualdade.».
A manutenção dessas desigualdades passa pela reprodução de discursos formata-
dores da própria realidade social, para tal é fundamental o acesso, por parte das elites, aos
instrumentos institucionais de controlo do discurso (Pedro, 1998: 29):
«O poder e a dominação estão organizados e institucionalizados, implicando esta organização social,
política e cultural da dominação também uma hierarquia de poder, já que alguns membros de grupos e
de organizações dominantes assumem um papel especial no planeamento, na tomada de decisões e no
controlo das relações e processo de activação do poder. Estes grupos, necessariamente pequenos, são
entendidos na ACD como elites de poder, que se caracterizam por terem um acesso particular ao dis-
curso, já que, literalmente, são aqueles que mais têm a dizer. Elites são aqui conceptualmente entendi-
das em termos do seu poder simbólico (Bourdieu, 1982), medido nomeadamente pelos seus recursos
discursivos e comunicativos.».
O discurso é, deste modo, encarado como um factor estruturante das realidadessociais, ou seja, o discurso estabelece uma relação umbilical com a estrutural social permi-
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tindo a sua manutenção, inclusive nos seus desequilíbrios, desigualdades e relações domi-
nadores/dominados (a que subjaz uma matriz ideológica) (Gouveia, 2000: 6):
«As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a realidade e
posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder desiguais. A associa-
ção das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente pelo carácter de princípioestruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática social, o discurso estabelece
uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que se afirma como um dos seus princí-
pios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela estruturado e condicionado.».
Mas este autor vai mais longe ao afirmar que estrutura social e prática discursiva são
mutuamente dependentes (Gouveia, 2000: 6):
«Ou seja, a estrutura social é uma condição para a existência do discurso, mas é também um efeito de
tal existência: por um lado, o discurso é constrangido e formado por relações ao nível da sociedade, por
relações específicas a instituições particulares, por sistemas de classificação e por várias normas econvenções, de natureza quer discursiva, quer não-discursiva, de tal forma que os eventos discursivos
variam, na sua determinação estrutural, de acordo com o domínio social particular ou enquadramento
institucional em que são gerados; mas, por outro lado, o discurso é um princípio estruturador, no senti-
do em que Foucault usa o termo discurso, i. e., os objectos, os sujeitos e os conceitos são formados
discursivamente. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social
que, directa ou indirectamente, o modelam e constrangem: as suas próprias normas e convenções,
assim como as relações, identidades e instituições que lhe subjazem (cf. Fairclough, 1992: 63-64;
Wodak, 1996: 15).».
ACD – Problematização teórica e a abordagem metodológica
Mas como é que se pode relacionar estas noções programáticas (como a dominação
e a desigualdade) com o desenvolvimento da análise? Entramos aqui na zona de confluên-
cia entre as dimensões teórica e metodológica da ACD (Pedro, 1998: 26):
«A relação entre macro-noções, como grupo, poder e dominação institucionais ou, mesmo, desigualda-
de social e micro-noções, como texto, fala ou interacção comunicativa, não é de fácil articulação. Daí
que se procure, na ACD, encontrar modos conceptuais para a resolução deste problema que é, simulta-
neamente, teórico, metodológico e analítico.».
A complexidade dos problemas sociais abordados pela ACD remete, necessariamen-
te para a elaboração de um aparelho teórico de grande sofisticação e complexidade. Toda-
via, ao contrário do que poderia ser expectável, a ACD liberta a análise de discurso dos
constrangimentos laboratoriais (próprios dos estudos linguísticos) para o estudar nas dimen-
sões sociais, psicológicas e cognitivas (Pedro, 1998: 27):
«De modo claro, como sugerimos atrás, o projecto teórico da ACD é fundamentalmente diferente de
formas de análise textual fundadas na noção de um sistema linguístico autónomo. Para a ACD, a ideia
de autonomia não faz sentido e a noção de sistema linguístico é, como referi anteriormente, bastante
problemática. A ACD trabalha considerando o linguístico no interior do social. No entanto, esta dimen-
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são de foco central que o social tem na ACD não retira a atenção a outros aspectos do discurso,
nomeadamente as componentes psicológicas e de processamento do discurso.».
Não sendo um receituário, podemos referenciar uma série de critérios gerais que
norteiam os princípios teóricos da ACD (Pedro, 1998: 27):
«Determinados critérios dão corpo ao trabalho, politicamente engagé, da ACD. Digamos, com Kress
(1990: 85-86), que esses critérios são, em síntese e em termos gerais, os seguintes:
1. a linguagem é entendida como o primeiro e o mais importante tipo de prática social e, junto
com as imagens visuais, a música e os gestos, entre outros, é uma de entre muitas práticas
sociais de representação e significação;
2. os textos são entendidos como o resultado das acções de falantes e escritores socialmente
situados, operando estes com graus relativos de possibilidades de escolha, sempre no interior
de estruturações de poder e dominação;
3. as relações dos participantes na produção dos textos são, em geral, desiguais e vão de esta-
dos, hipotéticos, de total igualdade à completa desigualdade;
4. os significados resultam da (inter)acção dos leitores e ouvintes com os textos – de género, por
exemplo – e a relações de poder que regulam essas interacções;
5. os traços linguísticos – enquanto signos –, a qualquer nível, são o resultado de processo
sociais, por esse motivo, conjunções motivadas de formas e conceitos e nunca conjuntos arbi-
trários de forma e significado;
6. também a qualquer nível, na sua ocorrência em textos, os traços linguísticos são sempre
caracterizados pela sua natureza opaca, também os textos partilham desta característica;
7. os utentes linguísticos, pelo seu posicionamento sociocultural, enquanto indivíduos socialmen-
te localizados, não têm acesso ao sistema linguístico como tal, mas apenas um acesso parcial,selectivo e seleccionado a configurações particulares desse sistema. Em consequência, na
maior parte das interacções, os produtores textuais transportam diferentes disposições em
relação à linguagem, diferente conhecimento de sistemas de configuração diversa e diferente
conhecimento de formas textuais. Diferenças que devem ser entendidas na sua relação com os
posicionamentos diferenciados dos utentes linguísticos;
8. estes aspectos justificam a consideração de que a noção de sistema linguístico – à semelhan-
ça de outras noções, nomeadamente a de norma – seja muito problemática na ACD. E justifi-
cam ainda a visão implícita subjacente a estas considerações de um entendimento da lingua-
gem que tem sempre em consideração a história, quer a micro-história de uma interacção fala-
da quer as histórias mais vastas das instituições sociais e humanas;
9. a ACD apoia-se sempre em análises rigorosas e em descrições da materialidade da lingua-
gem.».
A ACD trabalha com uma grande diversidade de categorias descritivas e metodológi-
cas, dependendo dos autores que estamos a referenciar, todavia, todas estas abordagens
consideram o texto como a unidade linguística mais relevante. Decorre daí o princípio meto-
dológico de usar o texto como matéria de análise. No nosso caso a análise dos diversos, e
de cada um, dos textos que suportaram os discursos sobre a leitura a pretexto do lançamen-
to do Plano Nacional de Leitura.
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A d imensão polémica dos art igos de opinião sobre o PNL
Quando analisamos os discursos sobre a leitura de âmbito mais restrito (âmbito aca-
démico ou âmbito profissional), constatamos que existem consensos básicos sobre os
temas abordados (crise da leitura, intervenção estatal, boas leituras / más leituras, clássicos
/ best-sellers, estatuto do leitor e da leitura, pedagogia da leitura, etc.). Apesar de serem
discursos compósitos, com diferentes graus de consistência, que são veiculados por comu-
nidades discursivas muito específicas (saliente-se o exemplo dos bibliotecários ou o exem-
plo dos professores), o processo de debate surge mais como uma possibilidade de valida-
ção e fixação do que como uma possibilidade de confronto. Isto fica-se a dever precisamen-
te à sua própria propensão para criar consensos (tentativa de escorar tomadas de posição
corporativas ou de sustentar pontos de vista científicos ou técnicos).
Todavia, no caso concreto que vamos analisar, ganha particular relevo a utilização
da comunicação social como espaço de debate generalista de âmbito público (com um cariz
marcadamente polémico), onde o que mais interessa é a veiculação de uma opinião pessoal
(Nogueira, 2001: 28):
«A controvérsia é a base desta quarta abordagem [Análise Crítica do Discurso], porque envolve o estu-
do do poder e da resistência, da contestação e da luta. A assunção básica é que a linguagem que está
disponível para as pessoas utilizarem permite e constrange, não só e apenas a expressão de ideias
mas também aquilo que as pessoas fazem. É através da linguagem que as pessoas são categorizadas,
são segregadas, consideradas diferentes, “anormais” “doentes”, sendo que a própria linguagem dá valor
atribuindo existência ou negando essas categorizações.».
Mas, para além das opiniões pessoais de cada um dos intervenientes, interessa-nos
explorar o facto de que eles assumem um estatuto de porta-voz de uma corrente da opinião
pública, sendo este estatuto que lhes confere autoridade para defenderem o seu ponto de
vista. A dimensão polémica que os artigos consubstanciaram desde o início, permite-nos
também fazer a clivagem das posições pessoais em confronto, que muitas das vezes são
afirmadas por oposição, por negação e por confrontação com outras posições expressas
acerca do mesmo tema (Nachbauer, 2000: 123):
«Lorsque ces échanges laissent des traces dans les écrits, ces textes sont porteurs de sens et méritent
qu'on s'y attarde. L'affrontement des idées joue un rôle fondamental dans la construction du savoir en
éducation. Au sein des discours argumentés, le discours polémique révèle, à travers sa virulence, des
enjeux de première importance et permet de mieux comprendre les changements.».
Assim sendo, considerámos que, para além de analisarmos cada um dos textos per
si, seria interessante fazermos uma análise do corpus documental como um todo, referen-
ciando as aproximações/afastamentos e as continuidades/rupturas entre as várias posições
em confronto na polémica. Nesse sentido, partindo do quadro de referência teórico fornecido
pela análise crítica do discurso, partimos em busca de um complemento metodológico que
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nos permitisse analisar mais profundamente as diversas dinâmicas da polémica em torno da
apresentação do Plano Nacional de Leitura que decorreram, em grande medida, na impren-
sa (Ramos, 1999):
«Os grandes jornais nacionais apresentam-se como o local estratégico da constituição do discurso polí-
tico-social, substituindo por vezes as instâncias oficiais, dando voz e acesso directo à opinião públicaaos políticos eleitos e aos diversos porta-vozes e líderes de opinião mais ou menos formalmente insti-
tuídos.».
As polémicas, que se desenrolam nos meios de comunicação social, revestem-se de
um carácter único (Ramos, 1999):
«A polémica é, então, uma guerra metafórica, uma guerra em que a arma é a palavra e o seu suporte
físico é, sobretudo desde 1820, o jornal.
O que define o discurso polémico é que o conjunto das suas propriedades semânticas, enunciativas e
argumentativas se encontra ao serviço de um objectivo dominante, o de desqualificar o objecto que
constitui o seu alvo, “matar” metaforicamente o adversário discursivo. (...) Não é de admirar, portanto,
que alguns textos polémicos se revistam de um carácter por vezes excessivamente truculento, onde o
insulto pessoal substitui a defesa e ataque de ideias, onde a injúria se sobrepõe à argumentação.
A guerra metafórica ainda hoje se encontra presente nos seus semas inerentes:
a) a polémica é um objecto de natureza verbal, as armas a terçar são as palavras;
b) este objecto verbal é de natureza dialógica, implicando a existência de dois antagonistas;
c) o discurso é, assim, visto como um contra-discurso.».
O jornal (e cada vez mais os blogs) é o púlpito a partir do qual é possível aos fazedo-
res de opinião enunciarem de forma regular o seu discurso, consubstanciado principalmente
em artigos de opinião. A persistência das suas opiniões permite identificar uma matriz ideo-
lógica que subjaz sistematicamente às tomadas de posição sobre os mais diversos temas.
Essa característica permite antever algumas das posições futuras pois está aliada a uma
certa coerência interna, que em grande medida dá autoridade ao seu autor (Ramos, 1999):
«Toda a vida social, política na sua acepção ampla e primeira, se rege por relações de consen-
so/conflito. Também o jornal se define e pronuncia nesses termos, reflectindo uma parte substantiva da
imprensa actual sobretudo a relação de conflito com o poder, desvelando o atractivo lado negativo das
relações, explorando sentimentos de desconforto ou desagrado com a autoridade política, empolando
reacções comuns anti-governo. Daqui resulta a omnipresença do discurso polémico, enquanto discurso
desqualificante, discurso do conflito e da persuasão.».
Assim sendo, o texto de opinião, devido ao contexto em que surge, encerra em si
mesmo um posicionamento maniqueísta: “estar contra” ou “estar a favor”; “ser aliado” ou
“ser adversário” (Ramos, 1999):
«O discurso polémico reveste-se de um carácter maniqueísta, onde se define uma instância que con-
grega todas as qualidades e todas as virtudes, pertinentes ou não para o fim evocado, e uma outra (o
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alvo definido) acusada, mais ou menos declaradamente, de simbolizar o oposto. Mesmo que sejam
referidos aspectos positivos do alvo, tal facto estará ao serviço de uma estratégia argumentativa que
terá sempre por fim a sua desqualificação, assim como a edificação de uma imagem de imparcialidade
e justiça para o LOC (locutor).».
É precisamente este posicionamento maniqueísta que nos interessa analisar, estabe-
lecendo a relação com o nosso quadro teórico de referência, com o recurso a uma matriz
designada por “quadrado ideológico” (van Dijk, 2005: 197):
«Esta estratégia de polarização – descrição do endogrupo positiva, e descrição negativa do exogrupo –
tem portanto a seguinte estrutura abstracta avaliativa, que podemos denominar de “quadrado ideológi-
co”:
Enfatizar as nossas propriedades/acções boas
Enfatizar as propriedades/acções más deles
Mitigar as nossas propriedades/acções más
Mitigar as propriedades/acções boas deles.».
Os meios de comunicação social, em particular os jornais, tornam-se num meio de
mediação entre as elites e a sociedade em geral construindo, sobre a forma de discursos,
uma visão dos factos que conduz à própria formatação ideológica da realidade que passa a
ser perspectivada segundo um conjunto predeterminado de finalidades, de valores e de
posições (Ramos, 1999):
«O jornal funciona como mediador cultural entre uma cultura “de elite” e as culturas práticas e como
mediador ideológico. O discurso de opinião vulgariza temas até aí reservados a minorias (elites políti-
cas, económicas e culturais), construindo-se a partir de discursos já constituídos, discursos “terceiros” e
assume-se como local estratégico de produção de realidade. Através da opinião dos porta-vozes, é
criado um efeito de real discursivo: esse poder evocativo da linguagem cria realidade, na medida em
que condiciona a apreensão e compreensão dos factos pela opinião pública. A apreensão da realidade,
a interpretação que os indivíduos fazem dos estados de coisas é, assim, mediatizada pela visão subjec-
tiva dos líderes de opinião.».
Podemos pois afirmar que os discursos sobre a leitura, veiculados nos artigos de
opinião sobre o PNL, tentam, antes de mais condicionar as políticas nacionais de leitura
definidas pelo actual Governo, não tanto ao nível da sua definição mas ao nível da sua
implementação, não tanto ao nível das suas intenções mas ao nível da avaliação dos seus
resultados, não tanto ao nível da sua refutação técnica e/ou metodológica mas ao nível dos
seus pressupostos sociais. São discursos de condicionamento, logo de exercício do poder.
Não nos podemos esquecer que muitos dos autores dos artigos estão inscritos em quadros
ideológicos e políticos específicos (Ramos, 1999):
«O discurso de opinião e a inerente discussão levam vários actores sociais (no caso de que nos ocu-pamos, os responsáveis políticos) a tomar partido, mesmo a alterar rumos de actuação, face à consa-
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gração de um espaço público (o jornal) como representante da opinião pública. Se as instâncias políti-
cas constituem o verdadeiro destinatário dos artigos de opinião, que apresentam um discurso persuasi-
vo, e se este for de alguma forma eficaz, os resultados da sua acção terão de ser reconhecíveis. É
sabido o peso dos grupos de pressão junto das instâncias do poder, e a imprensa é frequentemente
apelidada de “quarto poder”, sobretudo pela capacidade de criar realidade, mediando/explicando o que
acontece, e por ser a imagem incarnada do poder delegado da opinião pública.».
1.4. Definição do corpus documental
A presença do Plano Nacional de Leitura na comunicação social teve dois tipos de
registos distintos mas complementares: através da cobertura noticiosa nos diversos meios
de comunicação social (imprensa, televisão, rádio); através da publicação de um conjunto
de textos de opinião pessoal (sobre a forma de editoriais, artigos de opinião, entrevistas,cartas ao director, posts em blogs, etc.).
Tendo em conta o objectivo de estudo e os objectivos da investigação, decidimos
constituir o nosso corpus documental com base no conjunto de textos de opinião pessoal.
Por um lado, porque este tipo de textos tem uma maior perenidade temporal (Ramos, 1999):
«De todos os tipos de artigos jornalísticos, os artigos de opinião serão, provavelmente, os de maior
esperança de vida. Enquanto que a notícia é tendencialmente uma pura descrição de determinado
estado de coisas, o artigo de opinião apresenta características próprias: baseia-se na realidade, nos
acontecimentos reais externos ao texto para, a partir deles, tecer comentários, explicar causas, relações
e consequências, criar casos políticos. É essa componente narrativa e criadora que foge à simples mos-
tração referencial do mundo e dos estados de coisas, para constituir comentário, definir valores, criar
realidades. Mas continuarão todos marcados – fortemente marcados – pelo momento zero da sua
enunciação, o ponto de intersecção das linhas definidoras do campo enunciativo.».
Por outro lado, os textos de opinião pessoal (que gravitavam em torno do lançamento
do PNL) interessavam-nos particularmente porque através deles poderíamos analisar a
matriz ideológica do discurso sobre a leitura que é dominante (van Dijk, 2005: 187):
«De uma maneira geral, presumimos que os editoriais e os artigos de opinião na imprensa expressam
opiniões. Dependendo do tipo e da posição do jornal, as opiniões podem variar consideravelmente nas
suas pressuposições ideológicas. Esta formulação bastante familiar parece implicar que as ideologias
dos jornalistas influenciem de alguma forma as suas opiniões, as quais por sua vez influenciam as
estruturas do discurso dos artigos de opinião».
Assim sendo, pesquisámos (com recurso privilegiado à web) sistematicamente textos
de opinião pessoal que se incluíssem nos seguintes critérios:
• Tivessem o Plano Nacional de Leitura como temática central
• Estivessem contidos num intervalo de tempo (Maio – Julho de 2006)
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• Fossem representativos da diversidade de posições
• Participassem na polémica gerada em torno do Plano Nacional de Leitura
Na sequência desta pesquisa de textos para integrar no corpus documental, selec-
cionámos um conjunto diversificado, mas bastante consistente e mutuamente referenciado,
de textos (no Anexo 1 estão na sua versão integral). São os seguintes, por ordem cronológi-
ca de publicação:
• MOURA, Vasco Graça – “Português 1 X 2” in Diário de Notícias, 17 de Maio
• VALENTE, Vasco Pulido – “Os Violinos de Ingres” in Público, 21 de Maio
• VILARINHO, Fernando – “Opinião acerca de uma crítica ao PNL” in Bibliotecas
em Portugal [blog], 22 de Maio
• MOURA, Vasco Graça – “Quarenta e oito por cento” in Diário de Notícias, 31 deMaio
• FERNANDES, José Manuel – “Ler mais e mais… em casa” in Público, 2 de
Junho
• VALENTE, Vasco Pulido – “O eterno retorno” in Público, 3 de Junho de 2006
• FERNANDES, João Morgado – “Ler e crescer” in Diário de Notícias, 4 de Junho
•
COELHO, Eduardo Prado – “Você quer um plano?” in Público, 5 de Junho• VIEGAS, Francisco José – “A leitura e a virtude cívica” in Jornal de Notícias, 5 de
Junho
• ABRANTES, José Carlos – “O Prazer das Palavras” in Diário de Notícias, 5 de
Junho
• BUESCO, Helena Carvalhão – “Carta ao Director” in Público, 6 de Junho
• SARAMAGO, José – “Protagonismo para a Escola“ [entrevista] in Jornal de
Letras, 7 de Junho
• MOURA, Vasco Graça – “Os livros, pois” in Diário de Notícias, 14 de Junho
• PEDROSA, Inês – “Em voz alta” in Expresso, Revista Única, 17 de Junho
• GERALDES, José – “A paixão da leitura” in Urbi @ Orbi [Jornal Online da UBI],
20 de Junho
• BRÁS, Rui Manuel – “O que vale o Plano Nacional de Leitura” in Jornal da Nova
Democracia [jornal on-line], 31 de Julho
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Incluímos textos de autores menos conhecidos e sem um verdadeiro estatuto de
fazedores de opinião porque correspondiam aos critérios previamente estabelecidos para
além de proporcionarem um maior leque de perfis profissionais e de posicionamentos ideo-
lógicos.
Anexámos também (Anexo 2) outros textos que, não fazendo parte do corpus docu-
mental que será alvo da nossa análise, abordam questões directamente relacionadas com o
PNL:
• Discurso da Ministra da Cultura no Dia Mundial do Livro
• Notícia da Agência Lusa sobre as declarações de Saramago em Oeiras
• Discurso da Ministra da Cultura na apresentação do Plano Nacional de Leitura
Não incluímos estes textos no corpus documental pelas seguintes razões: no casodos discursos da Ministra da Cultura, porque são textos institucionais que, apesar de pode-
rem veicular uma opinião pessoal, estão condicionados à partida pelos objectivos circuns-
tanciais para que foram produzidos; no caso da notícia da Agência Lusa, porque tem um
carácter informativo que é completamente contrastante com o texto de opinião pessoal
(Pedro, 1998: 293):
«Quando assim definimos o texto informativo, queremos dizer que o entendemos como algo que,
supostamente, estabelece (e se estabelece em) contraste com outros géneros, por exemplo, editoriais,
entrevistas, comentários desenvolvidos pelos chamados «fazedores de opinião» – tão na moda tambémentre nós – e outros.».
Refira-se ainda que todas as notícias que reproduziram as declarações de José
Saramago na Biblioteca Municipal de Oeiras (fazendo-as chegar aos principais meios de
comunicação social portugueses, espanhóis e brasileiros), tiverem origem na peça da Agên-
cia Lusa que, por sua vez, descontextualizava as declarações do escritor, amplificando o
seu alcance e envolvendo-as em polémica (basta referir que as declarações de Saramago
foram feitas na véspera da apresentação pública do PNL).
1.5. Estabelecimento de uma grelha de análise
O estabelecimento de uma grelha de análise foi um trabalho dialéctico (grelha-
análise-grelha): partimos para a análise dos textos com uma primeira versão da grelha, vol-
támos à reelaboração da grelha à medida que íamos analisando os textos, e assim sucessi-
vamente.
O processo de definição dos temas de análise foi difícil, pois a nossa tendência natu-
ral era a de criarmos um conjunto exaustivo de temas gerais para depois os especificar com
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subtemas. Todavia, esta subdivisão criava falsas subordinações hierárquicas e espartilha-
mento de subtemas por vários temas gerais. Como consequência, optámos por proceder à
análise em duas perspectivas complementares.
Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um con-
junto de temas recorrentes:
• O fenómeno de não-leitura (=crise da leitura);
• Os estatutos das leituras e dos leitores;
• O papel da escola e da biblioteca;
• O estatuto do professor e do bibliotecário;
• A associação leitura, desenvolvimento, cidadania).
Numa segunda perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo uma lógi-
ca de polémica, recenseando o posicionamento dos actores-chave perante:
• O Plano Nacional de Leitura,
• A intervenção estatal,
• Os outros actores-chave da polémica.
Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a institucionaliza-
ção do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideológica que sub- jaz ao discurso dominante sobre a leitura.
Temos consciência de que, apesar de não existir um modelo único para efectuar a
Análise Crítica do Discurso, existem um conjunto de critérios e de fases para proceder à
análise dos textos (Nogueira, 2001: 34):
«Apesar de não haver uma grelha estruturada e passos claramente definidos sobre como fazer análise
do discurso, Parker (1992) refere a possibilidade de se recorrer a um conjunto de critérios associados a
fases, que podem ajudar os analistas a começar a análise. Estes critérios não sendo rígidos são indica-
dores importantes. Apesar de haver análise do discurso que não recorre necessariamente aos últimoscritérios e fases, na Análise Crítica do Discurso estes são fundamentais e cruciais.
Critérios e Fases
Textos
1 – tratar objectos de estudo como sendo textos (colocados em palavras)
2 – explorar conotações, associação livre
Objectos
3 – procurar objectos nos textos
4 – tratar a fala acerca desses objectos como objecto de estudo
Sujeitos5 – especificar sujeitos (pessoas, assuntos, etc.), como tipos de objectos no texto
6 – especular acerca de como eles podem “falar”
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Sistema
7 – traçar uma imagem do mundo, redes de relações
8 – indicar as estratégias defensivas desses sistemas contra possíveis ataques
Ligações
9 – identificar contrastes entre formas de “falar”
10 – identificar pontos de sobreposição, fala dos mesmos objectosReflexão
11 – relacionar maneiras de falar para audiências diferentes
12 – escolher rótulos ou designações das formas de falar, os discursos
História
13 – analisar com atenção como esses discursos emergem
14 – questionar como os discursos contam a sua história acerca da sua origem
Instituições
15 – identificar instituições reforçadas pelos discursos
16 – identificar instituições que são atacadas pelos discursos
Poder
17 – analisar que categorias de pessoas ganham e perdem
18 – questionar quem os promoverá e quem se lhes oporá
Ideologia
19 – analisar como eles se ligam com outros discursos opressivos
20 – descrever como eles justificam o presente».
Tentaremos seguir estas várias fases e critérios na análise dos textos de opinião
pessoal que consubstanciam o nosso corpus documental.
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2. Discursos sobre a leitura
Por vezes, durante um processo de produção de um texto, deparamo-nos com umlivro, com um artigo ou mesmo com uma frase, que se constitui como um verdadeiro fio de
ariane que nos auxilia a sair do labirinto das ideias e opiniões, das citações bibliográficas e
dos dados empíricos, que entretanto fomos acumulando de forma mais ou menos desorde-
nada.
No nosso caso esse papel foi desempenhado pelo artigo “Múltiplos objectos, múlti-
plas leituras” da Associação de Leitura do Brasil (ALB)3. O contacto com este artigo permitiu-
nos estabelecer um paralelismo entre a situação brasileira e a situação portuguesa, criando
um distanciamento do olhar que nos levou a ver mais nítido o que antes era turvo.
Permitiu-nos também sistematizar um conjunto de ideias-chave relacionadas com o
discurso sobre a leitura, que irão funcionar como elementos organizativos deste capítulo: o
discurso sobre a leitura que é dominante estrutura-se em torno da não-leitura; os estudos
desmentem o discurso sobre a leitura que é dominante; a atribuição de estatutos às leituras
e aos leitores baseia-se em juízos de valor; o discurso sobre a leitura que é dominante tem
uma matriz ideológica. Vejamos cada uma destas ideias-chave seguindo muito de perto o
citado artigo.
2.1. O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura
Apesar da leitura, no discurso sobre a leitura que é dominante, ter uma conotação
implícita extremamente positiva (ler = conhecimento; ler = auto-descoberta; ler = prazer; ler
= desenvolvimento; ler = cidadania), quando se fala sobre a dimensão social da leitura fala-
se pelo reverso, isto é, a não-leitura é assumida com uma clarividência irrefutável: “Os por-
tugueses não lêem!” ou “Os jovens não lêem!” são duas das afirmações mais usuais.
Esta ideia é reforçada negativamente através de uma dupla comparação: “No
estrangeiro lê-se mais do que em Portugal” ou “No passado lia-se mais do que no presente”.
Este discurso sobre a leitura é dominante e cria um estereótipo que pode ser rastreado nos
diferentes países, de Portugal a Espanha, de França a Inglaterra, da Colômbia ao Brasil
(ALB, 1999):
3 Associação de Leitura do Brasil – “Múltiplos objectos, múltiplas leituras” in Portal das Letras. Consultado, no dia 17 de Agosto de
2006, no endereço: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1 .
http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1
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«A sentença está dada: o brasileiro não lê. Em qualquer debate sobre leitura em encontros pedagógi-
cos, até mesmo em conversas informais aqui e ali, nas perguntas dos jornalistas aos especialistas, aí
está uma frase que não é difícil de ouvir. Ela tornou uma espécie de verdade inquestionável, marca da
falta de cultura, assim como outras do tipo “o brasileiro não sabe votar”.».
A constatação da não-leitura conduz ainda à tentativa de identificar as suas causas e
de vislumbrar as suas consequências, de modo a alterar essa realidade através de uma
intervenção deliberada, que pressupõe a possibilidade de se operar a mudança social subs-
tantiva enunciada pela comunidade discursiva dominante – elite cultural – (Furtado, 2000:
187):
«Mas é neste século XX, em que se assistiu no mundo ocidental a uma crescente preocupação com o
ensino formal, a uma progressiva erradicação do analfabetismo clássico, à tentativa de generalizar o
acesso à leitura e à reflexão sobre o conceito de biblioteca e suas missões nos novos tempos, que se
multiplicam os estudos, inquéritos e análises sobre a leitura e que, mais ou menos em uníssono, se
aponta para uma crise do livro, da edição e da leitura. Essa crise afectaria hoje uma grande variedade
de competências, de atitudes e de representações face à leitura, traduzir-se-ia em práticas cada vez
menos consolidadas e hábitos de familiaridade com o escrito cada vez mais escassos.».
Os dispositivos discursivos são calibrados de modo a perpetuarem uma perspectiva
cristalizada da realidade: a eterna crise da leitura. Para fundamentar o fenómeno da não-
leitura, este discurso sobre a leitura alinhava um conjunto de causas: baixo nível educacio-
nal da população, deficiência do sistema de ensino, falta de hábitos culturais, concorrência
da televisão e da internet, preço elevado dos livros, encerramento de editoras e de livrarias,
etc. Alerta também para as consequências nefastas de um novo fenómeno directamente
associado à não-leitura (analfabetismo funcional, iletrismo ou iliteracia): atrasos no desen-
volvimento económico e social do país, limitações ao desenvolvimento pessoal dos indiví-
duos, restrições ao pleno exercício da cidadania, etc. (Furtado, 2000: 187):
«Ainda mais, assistiu-se a uma súbita tomada de consciência de um «novo» fenómeno, com implica-
ções evidentes na dificuldade que percentagens significativas da população encontram em dominar as
competências da leitura, escrita e cálculo, apesar da frequência, na grande maioria dos casos, de, pelo
menos, a escolaridade mínima obrigatória. Essa realidade, designada por «analfabetismo funcional»,
«iletrismo» ou «iliteracia» (realidade e termos que mais adiante analisaremos), viria pôr em causa,
segundo Jean-Marie Besse, a ideia, então corrente nas sociedades pós-industriais, segundo a qual «a
alfabetização generalizada e a escolarização tinham favorecido a emergência de uma referência cultural
comum à maioria da população, obrigando a uma interrogação sobre a homogeneidade das práticas
culturais e, particularmente, no que nelas tem a ver com a cultura escrita.».
Todavia, podemos questionarmo-nos sobre se existe verdadeiramente uma crise da
leitura, as suas causas e sobre as suas implicações (Basanta e Hernández, 2002):
«Hablar de la crisis de la lectura en medios profesionales resulta desde hace tiempo un tópico con
demasiados lugares comunes. Si convenimos que la lectura está en crisis, vamos concretar el alcance
del término a su significado original de mutación, de cambio. Y vamos a partir de que hablar de una
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población lectora es, incluso en países como España, un fenómeno recientísimo. No puede olvidarse, al
establecer y analizar los índices de lectura, que la escolarización universal de la población y la erradica-
ción del analfabetismo se alcanzan en países como Inglaterra a finales del siglo XIX, en España en los
años setenta del pasado siglo, y en muchos países del planeta son todavía una esperanza del XXI. Sin
una alfabetización generalizada es difícil pensar en una sociedad que mantenga una relación estable y
fluida con el libro y la lectura.
Cuando hablamos, alarmados, de la reducción o la trivialidad de las prácticas lectoras y nos parapeta-
mos en defensa de la lectura como un valor en peligro, puede ser que tan solo estemos desviando la
mirada del núcleo de un cambio en las prácticas de lectura, que conocen nuevas formas, nuevos espa-
cios, nuevas funcionalidades y nuevos sujetos.».
Resumindo, o discurso sobre a leitura que é dominante serve-se também da não-
leitura como justificativo para pedir a intervenção directa do Estado através dos seus múlti-
plos dispositivos (regulamentar o mercado editorial; apropriar os meios de comunicação
social; reajustar o sistema de ensino; lançar campanhas, programas e planos de leitura). Odiscurso sobre a leitura que é dominante é pois veiculado institucionalmente (pelo Estado,
pela Escola, pela Academia, etc.) e sanciona uma visão contaminada ideologicamente (Fur-
tado, 2000: 225):
«Referia-se, no início deste capítulo que, neste século XX, se tem apontado recorrentemente, para além
de uma crise do livro e da edição, para uma crise da leitura. Multiplicam-se, cada vez com maior regula-
ridade, os estudos, inquéritos e análises sobre a situação da leitura e, como escreve Martine Poulain,
lastima-se a diminuição dos hábitos de leitura, deplora-se o desinteresse dos jovens pela leitura, prediz-
se o fim do livro, alerta-se para os “analfabetos do audio-visual” e desespera-se perante o fenómeno doiletrismo nos países desenvolvidos. Mas “serão novos estes receios? Serão novos estes discursos?
Não tanto como algumas Cassandras gostariam de fazer crer”.».
2.2. Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante
No discurso sobre a leitura que é dominante prevalece uma visão de senso comum
que, apesar de desmentida pelos indicadores estatísticos e pelas conclusões dos estudos
sociológicos, persiste em ancorar-se nas ideias de não-leitura e de crise da leitura (Furtado,
2000: 199):
«Perante esta descrição algo cândida, e que nalguns passos se afasta completamente do que são as
posições gerais sobre as ameaças ao livro e à leitura, e refiro-me designadamente às provocadas pela
concorrência na ocupação dos tempos livres pelos novos meios de comunicação de massa, a conclusão
de Poulain é lapidar: “os sociólogos, ao longo do século, vão levar a cabo pacientemente estudos para
chegar a conclusões comparáveis e a maior parte das vezes opostas ao “senso comum” ou às vulgatas
de certos editores e de certos intelectuais. A leitura não lhes parece nem ameaçada nem em vias de
desaparecimento, as evoluções dos géneros de produção, dos modos de difusão, dos gostos e das prá-ticas não apresentam sintomas de declínio.».
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Na verdade, os estudos (nomeadamente os da sociologia da leitura) têm identificado
padrões recorrentes que pouco variam temporalmente e geograficamente. Estes resultados
remetem para uma maior complexidade das inserções sociais das práticas de leitura, que
variam em função da idade, do nível de escolaridade, do sexo, etc. Ou seja, não é possível
afirmar cabalmente «Os portugueses não lêem!» sem especificar de que portugueses seestá a falar (idade, sexo, profissão, habilitações, etc.) e de que tipo de leitura se trata (jor-
nais, livros, legendas de televisão, relatórios, etc.). Contextualizar as práticas sociais da lei-
tura é uma das formas de desconstruir o discurso sobre a leitura que é dominante (Furtado,
2000: 199):
«Quando se cruzam estes dados com as variáveis socioprofissionais habituais, manifestam-se certas
constâncias que ainda hoje nos são familiares: quanto maior o grau de educação formal maior o hábito
de leitura; quanto menor o rendimento maior a leitura exclusiva de jornais e a não leitura; o número de
leitores de livros cresce significativamente em função do aglomerado urbano; uma taxa de leitores delivros (eventualmente associados à leitura de outros concorrentes impressos) mais forte nas profissões
liberais e quadros médios; é nas idades mais jovens que se encontram com maior frequência leitores de
livros; a leitura de livros denota uma relação mais forte com o impresso: por um lado, o leitor de livros lê
mais a imprensa e, por outro lado, pratica outras formas de “lazer”; por fim, compra-se mais do que se
lê. Poulain chama ao grosso destas conclusões a “vulgata sociológica”, tal a persistência com os resul-
tados semelhantes nos virão a acompanhar até hoje.».
Muitas das vezes, quem faz o exercício de desconstrução desse discurso, utiliza os
indicadores estatísticos como principais ferramentas: tiragens elevadas de livros (best-
sellers), aumento dos hábitos de leitura, aumento dos níveis de escolaridade da população,
expansão da rede de bibliotecas públicas e bibliotecas escolares, número de visitantes de
livrarias e de feiras do livro, etc. Citando o artigo (ALB, 1999):
«Basta examinar alguns números para ver a mesma realidade de outra maneira: dados oferecidos pela
Câmara Brasileira do Livro no Boletim da Bienal 98, nº 19, informam que um milhão e quatrocentas mil
pessoas visitaram a 15ª Bienal Internacional do Livro em São Paulo.
Outros números, tomados mais aleatoriamente da imprensa ou das próprias capas de livros, também
impressionam: exemplos de O Xangô de Baker Street. de Jô Soares, traziam, em junho de 1998, tarja
anunciando 4 milhões de livros já vendidos no Brasil. Na capa da 4ª edição, de 1996, do Manual do Esti-
lo e Redação de O Estado de São Paulo destacava-se que haviam sido vendidos mais de 500.000 mil
exemplares. Segundo a revista Veja de 15 de abril de 98, os oito livros publicados por Paulo Coelho
foram comprados por 7 milhões de brasileiros; a mesma revista, em sua edição de 13 de maio de 98,
noticiava que O Mistério do Cinco Estrelas, de Marcos Rey, vendeu 1,1 milhão de exemplares desde
1980. Pesquisa desenvolvida no interior do projeto Memória de Leitura (IEL – UNICAMP) registra que
em 1996, lançavam-se, mensalmente, 35 títulos de séries como Sabrina, Bianca, Júlia, Momentos ínti-
mos.».
Todavia, o discurso sobre a leitura que é dominante contrapõe, emitindo um juízo de
valor sobre as leituras que são retratadas nos números: não interessa a quantidade da leitu-
ra (e dos livros) mas sim a qualidade da leitura (e dos livros). As leituras da maioria da popu-
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lação são leituras fora do cânone literário, logo, de qualidade e de gosto duvidoso. Por isso,
apesar de se poder referir aumentos quantitativos nas práticas da leitura eles correspondem
a decréscimos qualitativos. Existe claramente um posicionamento ideológico: visitantes de
feiras do livro não é o mesmo que leitores de livros; compradores de livros não é o mesmo
que leitores de livros; leitores de jornais e revistas não é o mesmo que leitores de livros; lei-tores de best-sellers não é o mesmo que leitores de clássicos; pequenos leitores não é o
mesmo que grandes leitores.
Assim sendo, em que terreno se enraíza o discurso sobre a leitura que é dominante?
Como se pode, apesar dos indicadores estatísticos e dos estudos sociológicos, sustentar a
ideia de não-leitura?
2.3. O estatuto das leituras e dos leitores assenta em juízos de valor
A resposta às duas questões anteriormente enunciadas liga-se aos diferentes estatu-
tos que se atribuem às leituras e aos leitores, que, por sua vez, são contrapostas segundo
juízos de valor: boas leituras versus más leituras; bons livros versus maus livros; bons leito-
res versus maus leitores. Voltemos ao artigo (ALB, 1999):
«De onde vem, então, a idéia de que a gente não lê, ou não gosta de ler? Para nós, há um equívoco no
modo de como se coloca a questão. O debate sobre leitura tem se centrado em torno de um certo tipode leitura e de leitor, o qual traria benefícios de toda ordem para as pessoas e para o país. Sem expli-
car de que leitura se fala e sem apoio de estudos objetivos sobre as práticas sociais de leitura, constrói-
se um discurso que, ignorando os modos de inserção dos sujeitos nas formas de cultura, estabelece em
torno da questão da leitura juízos do tipo “bom” ou “mau”. Em outras palavras, torna-se ler como verbo
intransitivo, associando-se a esta representação valores sempre positivos, como “Ler é bom”, “ler torna
os sujeitos críticos”, “ler faz com que se escreva melhor”.».
As leituras efectivamente praticadas pela maioria dos leitores são exercidas fora do
cânone (escolar, académico, literário), como tal não só não são legitimadas pelo discurso
sobre leitura dominante como são apontadas como exemplos cumulativos de uma degene-
rescência social e cultural. A leitura exercida deste modo é uma não-leitura, o que a torna
culturalmente desprezável e discursivamente marginalizável; paradoxalmente, o não exercí-
cio da leitura encerra em si mesmo uma possibilidade de redenção, que se prenuncia numa
visão salvífica (combate ao iletrismo, conversão à leitura, promoção da leitura, etc.). Volte-
mos ao artigo (ALB, 1999):
«Entretanto, tais virtudes só são garantidas àqueles que lêem os livros certos, os livros positivamente
avaliados pela escola, pela academia, por uma certa tradição literária, ainda que em nenh