TESE_-_Versão_Final.pdf

download TESE_-_Versão_Final.pdf

of 43

Transcript of TESE_-_Versão_Final.pdf

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    1/138

    UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

    DISCURSOS SOBRE A LEITURAANÁLISE DA POLÉMICA EM TORNO DO

    PLANO NACIONAL DE LEITURA

    Manuel Filipe Leal Conceição

    MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

    Área de especialização em Educação e Leitura

    2006

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    2/138

      2

    UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE PSICOLOGIA E CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

    DISCURSOS SOBRE A LEITURAANÁLISE DA POLÉMICA EM TORNO DO

    PLANO NACIONAL DE LEITURA

    Manuel Filipe Leal Conceição

    Orientador: Professor Doutor Jorge do Ó

    MESTRADO EM CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

    Área de especialização em Educação e Leitura

    2006

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    3/138

      3

      Liberdade

    Ai que prazer

    não cumprir um dever.Ter um livro para ler

    e não o fazer!

    Ler é maçada,

    estudar é nada.

    O sol doira sem literatura.

    O rio corre bem ou mal,

    sem edição original.

    E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal

    como tem tempo, não tem pressa...

    Livros são papéis pintados com tinta.

    Estudar é uma coisa em que está indistinta

    A distinção entre nada e coisa nenhuma.

    Quanto melhor é quando há bruma.

    Esperar por D. Sebastião,

    Quer venha ou não!

    Grande é a poesia, a bondade e as danças...

    Mas o melhor do mundo são as crianças,

    Flores, música, o luar, e o sol que peca

    Só quando, em vez de criar, seca.

    E mais do que isto

    É Jesus Cristo,

    Que não sabia nada de finanças,

    Nem consta que tivesse biblioteca...

    Fernando Pessoa

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    4/138

      4

    Resumo

    A dissertação tem por objecto de estudo «Os discursos sobre a leitura veiculados por textossurgidos na comunicação social a propósito do Plano Nacional de Leitura». O texto está

    organizado em torno de quatro capítulos. Num primeiro capítulo é definido o enquadramento

    teórico e metodológico, que tem na Análise Crítica do Discurso (ACD) o seu elemento estru-

    turante. No segundo capítulo é feita uma abordagem ao tema do discurso sobre a leitura a

    partir de uma revisão da bibliografia sobre o assunto. Num terceiro capítulo, tendo como

    quadro teórico de referência a ACD, o autor aborda um conjunto de dezasseis artigos numa

    dupla perspectiva. Numa primeira perspectiva, analisando o discurso sobre a leitura confor-

    me um conjunto de temas-chave: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos

    leitores; o papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do

    bibliotecário; a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, ana-

    lisando o discurso sobre a leitura numa lógica de polémica, recenseando o posicionamento

    dos envolvidos perante: o Plano Nacional de Leitura, a intervenção estatal, os outros envol-

    vidos na polémica. O autor constata que existe um discurso sobre a leitura que é dominante,

    nomeadamente entre a elite cultural que tem nos jornais o seu principal espaço de opinião.

    Esse discurso condiciona fortemente (de um ponto de vista ideológico) a definição das polí-

    ticas nacionais de leitura, das quais o Plano Nacional de Leitura é um exemplo. Outra cons-

    tatação do autor é sobre a existência de uma tensão entre os discursos e as práticas em

    torno da leitura. Numa lógica de investigação-acção, o autor posiciona-se sobre a forma a

    de ultrapassar esta tensão defendendo que é necessário mudar os discursos e mudar as

    práticas em torno da leitura.

    Palavras-chave

    Discurso sobre a leitura / Plano Nacional de Leitura / Análise Crítica do Discurso / Leitura

    pública / Desenvolvimento do leitor / Bibliotecas públicas / Bibliotecários

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    5/138

      5

     Abstract

    The object of this dissertation thesis deals with “the discourse about reading, in texts pub-lished by the Media about the National Reading Plan”. This work is divided in four chapters.

    The first will focus about the theoretical and methodological framing of the subject, having in

    mind the Critical Discourse Analysis (CDA), as its structural element. The second chapter will

    try to approach the reading discourse theme through a literature review on the subject. In the

    third chapter, having CDA as theoretical framework, the author refers to a set of sixteen arti-

    cles on two perspectives. The first, analyses the discourse about reading through a set of

    key-subjects: the non-reading phenomenon; the position status between reading and read-

    ers; the school role and the teacher status; the library role and the librarian status; the rela-

    tionship between reading, development and citizenship. The second perspective, analyses

    the discourse about reading under a polemic logic, examining the intervenients point of view

    of the National Reading Plan and the State intervention. The author states that there is a

    dominant discourse about reading, mainly out of the cultural elite, which use the newspapers

    as their ground for their opinions. This discourse, strongly limits (from an ideological point of

    view) the definition of the national reading policies, which the National Reading Plan is an

    example. The other evidence is the existence of a tension between the discourses and the

    reading practice. In a investigation-action logic, the author suggests ways of overcoming this

    tension by saying that it’s necessary to change both the discourses as the practices about

    reading.

    Key words

    Discourse about Reading / National Reading Plan / Critical Discourse Analysis / Public Read-

    ing / Reader Development / Public Libraries / Librarians 

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    6/138

      6

     Agradecimentos

    A produção de uma dissertação de mestrado é um percurso de reflexão lento esinuoso que acarreta em si mesmo expectativas, descobertas, frustrações, avanços e

    recuos. Todavia, é um percurso que não fazemos sós. Gostava pois de agradecer a todos

    os que partilharam este percurso.

    Aos colegas da Rede de Bibliotecas Municipais de Oeiras que me acompanham na

    aventura diária de transformar as bibliotecas públicas em instituições vivas, fazendo da leitu-

    ra uma das suas mais profundas razões de ser e de estar.

    Aos colegas do mestrado, pela troca de ideias e de experiências. Pelas conversas decircunstância, que foram criando entre nós um espírito de camaradagem.

    Aos docentes do Mestrado em Ciências de Educação – especialização Educação e

    Leitura, pelos conhecimentos transmitidos, pelos estimulantes debates e pela generosidade

    colocada na relação humana. Ao Professor Doutor Justino de Magalhães, pela forma empe-

    nhada e dedicada com que tem dirigido o Mestrado. Ao meu orientador, Professor Doutor

    Jorge do Ó, por me ter aberto novas perspectivas para reflectir criticamente sobre a minha

    prática profissional.

    Last but not least. Um agradecimento muito especial à Tatiana, por ter acreditado em

    mim, por ter insistido e persistido. Pelas muitas sugestões e pela troca de impressões. Tam-

    bém pela forma paciente e diligente com que fez a revisão do texto. À Diana e ao Lucas um

    pedido de desculpas pelo tempo roubado.

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    7/138

      7

    Sumário

    Resumo .............................................................................................................4 

    Abstract..............................................................................................................5  

    Agradecimentos.................................................................................................6 

    Sumário .............................................................................................................7 

    Introdução..........................................................................................................9 

    1.  Enquadramento teórico e metodológico ..................................................12 1.1.  Definição do objecto de estudo............................................................................ 15 

    1.2.  Objectivos da investigação .................................................................................. 16 

    1.3.  Quadro teórico de referência ............................................................................... 16 

    1.4.  Definição do corpus documental.......................................................................... 24 

    1.5.  Estabelecimento de uma grelha de análise ......................................................... 26 

    2.  Discursos sobre a leitura..........................................................................29 

    2.1.  O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura.......................... 29 

    2.2.  Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante ............................ 31 

    2.3.  O estatuto das leituras e dos leitores assenta em juízos de valor ....................... 33 

    2.4.  O discurso sobre a leitura dominante tem uma matriz ideológica ....................... 36 

    3.  Análise do corpus documental .................................................................42 

    3.1.  O Plano Nacional de Leitura ................................................................................ 42 

    3.2.  Análise dos temas-chave..................................................................................... 43 

    3.3.  Análise da polémica............................................................................................. 63 

    4.  Leitura: entre os discursos e as práticas..................................................78 

    4.1.  Do excesso dos discursos à pobreza das práticas.............................................. 78 

    4.2.  Mudar os discursos, mudar as práticas ............................................................... 85 

    Conclusão........................................................................................................97 

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    8/138

      8

    Bibliografia .....................................................................................................100 

    Anexo 1: corpus documental .........................................................................104 

    Anexo 2: documentos complementares ........................................................132 

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    9/138

      9

    Introdução

    A dissertação de mestrado que agora se apresenta surge no âmbito do Mestrado emCiências da Educação – Educação e Leitura, realizado na Faculdade de Psicologia e Ciên-

    cias da Educação da Universidade de Lisboa.

    A produção desta dissertação de mestrado foi assumida como uma oportunidade

    única para poder encetar uma reflexão crítica sobre a nossa prática profissional, colocando

    um especial enfoque nas problemáticas relacionadas com a leitura. Essa reflexão crítica

    procurou cruzar duas perspectivas complementares: numa primeira perspectiva (de enfoque

    local), partiu do ponto de vista do profissional responsável pela concepção, implementação e

    avaliação de projectos de promoção da leitura desenvolvidos nos últimos vinte anos em

    diversas bibliotecas públicas portuguesas (Setúbal, Alcácer do Sal, Vendas Novas e Oeiras);

    numa segunda perspectiva (de enfoque nacional), partiu do ponto de vista do observador

    atento às políticas nacionais de leitura que têm na implementação da Rede Nacional de

    Bibliotecas Públicas, no Programa Nacional de Promoção da Leitura e no Plano Nacional de

    Leitura algumas das suas mais substantivas expressões.

    Interessava-nos mormente analisar a relação paradoxal existente entre os discursos

    e as práticas que envolvem a leitura, que podem ser recenseados tanto ao nível dos deciso-res de topo (responsáveis políticos e responsáveis institucionais) como ao nível dos profis-

    sionais no terreno (bibliotecários e professores). Esse interesse decorre da constatação que,

    num país onde não existe um corpus teórico-prático consolidado em torno das problemáti-

    cas da leitura, se assista a uma clara preponderância dos discursos sobre as práticas.

    Escolha do tema

    A escolha do tema da dissertação (Discursos sobre a leitura: análise da polémica em

    torno do Plano Nacional de Leitura) obedeceu a razões de ordem afectiva e a razões de

    ordem metodológica.

    Em primeiro lugar, porque foi no âmbito de um projecto de promoção da leitura reali-

    zado na Biblioteca Municipal de Oeiras (Café com Letras) que José Saramago se pronun-

    ciou acerca da inutilidade do Plano Nacional de Leitura (PNL). Estas afirmações, efectuadas

    na véspera da apresentação pública do PNL (1 de Junho de 2006), acabariam por desenca-

    dear uma forte polémica que envolveu a maior parte dos fazedores de opinião da imprensa

    portuguesa.

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    10/138

      10

      Em segundo lugar, porque o PNL se constitui como a mais recente iniciativa estatal

    de grande dimensão em prol da leitura, o que nos permitiria analisar os pressupostos teóri-

    cos e metodológicos que subjazem às politicas nacionais de leitura extraindo-os ao discurso

    oficial sobre a leitura veiculado pelos decisores políticos e pelos decisores institucionais.

    Em terceiro lugar, porque os diversos artigos de opinião que surgiram nos meios de

    comunicações social (a pretexto do PNL) eram susceptíveis de serem integrados num cor-

    pus documental consistente, delimitado no tempo e mutuamente referenciado. Esses artigos

    de opinião poderiam ser analisados de uma forma muito profícua pois continham os grandes

    temas-chave que consubstanciam o discurso sobre a leitura e deram uma dimensão pública

    ao debate em torno da leitura.

    Em quarto lugar, porque se constatou, através da análise preliminar dos artigos de

    opinião, que estávamos perante um discurso sobre a leitura que consegue exercer o seu

    domínio devido a dois factores: por ser veiculado nos meios de comunicação social por

    conhecidos fazedores de opinião; por se sobrepor a outros possíveis discursos veiculados

    pelos especialistas ou pelos profissionais que abordam as questões ligadas à leitura.

    Estrutura do texto

    Estruturámos o texto em quatro capítulos: Capítulo 1 – Enquadramento teórico e

    metodológico; Capítulo 2 – Discursos sobre a leitura; Capítulo 3 – Análise do corpus docu-

    mental; Capítulo 4 – Leitura: entre os discursos e as práticas. No final, para além da biblio-grafia, anexamos os textos que compõem o corpus documental que foi alvo da nossa análi-

    se.

    No Capítulo 1 são apresentadas as grandes opções teóricas e metodológicas que

    efectuámos. Começamos por definir, no ponto 1.1, o objecto de estudo e, no ponto 1.2., os

    objectivos da investigação. No ponto 1.3, apresentamos de forma sucinta o quadro teórico

    de referência (análise crítica do discurso) que suporta a nossa investigação fazendo também

    a ponte para a abordagem ao discurso polémico. No ponto 1.4, procedemos à enunciação

    dos critérios que utilizámos para constituir o corpus documental e indicaremos os documen-

    tos seleccionados. Por fim, no ponto 1.5, apresentamos a grelha que utilizámos para a aná-

    lise do discurso sobre a leitura presente no corpus documental.

    No Capítulo 2, iremos referenciar os grandes temas ligados ao discurso sobre a leitu-

    ra. Para tal utilizaremos como fio condutor um artigo da Associação de Leitura do Brasil

    (Múltiplos objectos, múltiplas leituras). Serão também convocados outros autores e outras

    perspectivas. O capítulo foi organizado em torno dos grandes temas: a crise da leitura, os

    sintomas, as causas e as consequências; os factos e os argumentos que fundamentam o

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    11/138

      11

    discurso dominante e o discurso alternativo; os diferentes estatutos atribuídos às leituras e

    aos leitores; a intervenção estatal e sua fundamentação ideológica.

    No Capítulo 3, procedemos à análise do corpus documental segundo duas perspecti-

    vas. Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um conjunto

    de temas recorrentes: o fenómeno de não-leitura; os estatutos das leituras e dos leitores; o

    papel da escola e o estatuto do professor; o papel da biblioteca e o estatuto do bibliotecário;

    a relação leitura, desenvolvimento, cidadania. Numa segunda perspectiva, analisamos o

    discurso sobre a leitura segundo uma lógica de polémica, recenseando o posicionamento

    dos actores-chave perante: posicionamentos face ao PNL e posicionamentos face à inter-

    venção estatal. Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a institu-

    cionalização do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideológica

    que subjaz ao discurso dominante sobre a leitura. 

    No Capítulo 4, procedemos a uma reflexão crítica sobre a relação paradoxal que se

    estabelece entre os discursos e as práticas ligadas à leitura. Este posicionamento crítico em

    tudo é devedor à análise crítica do discurso. No ponto 4.1, partiremos de um artigo de Antó-

    nio Nóvoa (Os professores na virada do milénio: do excesso dos discursos à pobreza das

    práticas) para analisar as tensões excesso-pobreza existentes entre os discursos e as práti-

    cas ligadas à leitura. No ponto 4.2, apresentarmos a perspectiva do investigador sobre a

    mudança dos discursos e, paralelamente, apresentarmos a perspectiva do bibliotecário

    sobre a mudança das práticas.No final, anexámos todos os documentos que constituem o corpus  que foi alvo da

    nossa análise crítica do discurso. Tendo em atenção a diversidade de origens dos documen-

    tos (artigos de opinião publicados na imprensa, posts colocados em blogs, notícias publica-

    das na imprensa), procedemos à sua conversão para formato de documento Word e à sua

    formatação uniforme, de modo a facilitar a sua citação e a uniformizar a mancha gráfica.

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    12/138

      12

    1. Enquadramento teórico e metodológico

    Em 1986 foi constituído um Grupo de Trabalho, por despacho da Secretária de Esta-do da Cultura (Teresa Patrício Gouveia), a que foi incumbida a tarefa de definir as bases de

    uma política nacional de leitura pública, a qual assentaria “fundamentalmente na implemen-

    tação e funcionamento regular e eficaz de uma rede de bibliotecas municipais, assim como

    no desenvolvimento de estruturas” que, a nível central e local, mais directamente as pudes-

    sem apoiar. (Despacho nº 3/86, de 11 de Março).

    No 1º Relatório apresentado pelo referido Grupo de Trabalho, sugeriram-se medidas

    imediatas de intervenção, bem como orientações conceptuais e programáticas. Assim, o

    Instituto Português do Livro e da Leitura desenvolveu e aplicou desde 1987 um plano de

    leitura pública, através do apoio à criação de bibliotecas municipais. Este plano foi directa-

    mente inspirado no exemplo francês das bibliotecas de leitura pública, tendo sido importa-

    dos os modelos de organização espacio-funcionais que estiveram na base da constru-

    ção/adaptação dos edifícios.

    Todavia, a implementação da Rede Nacional de Bibliotecas Públicas (RNBP) ficou

    tão-somente por um registo de construção/recuperação de edifícios tendo sido descurada a

    criação de uma visão estratégica e de uma filosofia de funcionamento adequadas à realida-de portuguesa. O substrato técnico, político e ideológico, que suportava o conceito de leitura

    pública em França1 perdeu-se no processo de transplante para Portugal. O conceito de leitu-

    ra pública não foi suficientemente assimilado, reflectido e debatido por uma nova geração de

    bibliotecários recém chegados à profissão por via dessas novas bibliotecas municipais.

    Como consequência da não consolidação do conceito de bibliotecas de leitura pública, a

    relação umbilical entre as bibliotecas públicas e a leitura pública foi progressivamente per-

    dendo terreno, ao ponto do conceito inicial de «bibliotecas de leitura pública» (de matriz

    francesa) ter sido substituída pelo conceito de «bibliotecas públicas» (de matriz anglo-saxónica).

    Note-se ainda que os políticos da tutela e os decisores de topo adoptaram, ao longo

    dos anos, um discurso triunfalista (validado internacionalmente pelo facto da RNBP ser con-

    siderada um caso exemplar). Esta retórica estatal fez desviar o enfoque sobre o deficiente

    funcionamento das bibliotecas públicas portuguesas. Em muitos casos, depois de inaugura-

     1 Sobre a matriz técnica, política e ideológica do conceito de leitura pública em França, leia-se a este propósito o artigo de Marine de

    Lassalle “Les paradoxes du succès d’une politique de lecure publique » in Bulletin des Bibliothèques de France. Paris : BBF, 1997. T 42, nº 4, p.

    10-17.

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    13/138

      13

    das, as novas bibliotecas públicas apresentavam limitações estruturais no seu funcionamen-

    to (falta de recursos humanos qualificados, falta de verbas para actualização de colecções,

    deficiente prestação de serviços ao público, falta de programas de promoção da leitura,

    etc.).

    Em 1996, um Grupo de Trabalho, nomeado para o efeito pelo Ministro da Cultura

    (Despacho nº 55/95, de 12 de Dezembro), apresentava o «Relatório sobre as Bibliotecas

    Públicas em Portugal», no qual se procedia a uma reflexão sobre o contexto — nacional e

    internacional — e se propunham novas linhas de acção (atendendo sobretudo às recentes

    inovações tecnológicas) para o desenvolvimento futuro da RNBP, a promover pelo Instituto

    Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), cuja lei orgânica aguardava publicação.

    Na altura foram tomadas em consideração diversas inovações tecnológicas. Estas

    estavam relacionadas com o armazenamento e a disponibilização da informação em suporte

    digital, com os novos documentos multimédia e com o advento da Internet. O referido Rela-

    tório concluía que, continuando a ser fundamentais as funções básicas de promoção da lei-

    tura e do acesso à informação, para que a biblioteca pública as pudesse desempenhar

    cabalmente seria necessário que os respectivos serviços utilizassem as tecnologias moder-

    nas apropriadas, como recomendava o Manifesto da Unesco sobre as bibliotecas públicas,

    na sua versão de 1994.

    Nota-se a partir deste relatório uma inflexão estratégica na forma de pensar as biblio-

    tecas públicas portuguesas: a tónica deixa de ser colocada na leitura pública e passa a sercolocada na sociedade de informação. A leitura é arredada dos discursos doutrinais e pro-

    gramáticos que enquadram o desenvolvimento das bibliotecas públicas, tornando-se uma

    referência meramente residual. Um novo aparato conceptual surge dando expressão a uma

    nova visão de biblioteca pública (porta de acesso local à sociedade de informação) que

    assume a informação como conceito estruturante e as tecnologias de informação e comuni-

    cação como o seu instrumento privilegiado.

    Curiosamente, é neste contexto que surge o Programa Nacional de Promoção da

    Leitura, que dá corpo, pela primeira vez, à implementação efectiva de uma política de leitura

    pública em Portugal. Uma mesma instituição (IPLB) adopta duas linhas de rumo estratégico

    aparentemente contraditórias: bibliotecas públicas versus promoção da leitura. Os documen-

    tos doutrinários e programáticos e as posturas institucionais dos decisores de topo são tes-

    temunhos destes discursos diversos e tantas vezes opostos. As bibliotecas públicas portu-

    guesas chegavam a uma encruzilhada.

    Quando partimos para a produção desta dissertação de mestrado era nossa intenção

    fazer a análise das dinâmicas de aproximação/afastamento entre os conceitos de bibliotecapública e de leitura pública, adoptando uma abordagem de carácter diacrónico balizada cro-

     

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    14/138

      14

    nologicamente entre os anos de 1986 e 1996. No entanto, esta abordagem deparou-se com

    diversas dificuldades de ordem teórica e metodológica, que passamos a enumerar.

    Por um lado, a dificuldade de definir clara e inequivocamente um objecto de estudo

    que fosse passível de ser abordado no âmbito de uma dissertação de mestrado. Entre as

    várias possibilidades inventariadas destacamos algumas: O desenvolvimento das bibliotecas

    públicas durante o período entre 1986 e 1996? A história das políticas governamentais para

    a leitura pública? Os hábitos de leitura dos leitores de uma biblioteca pública? Os projectos

    de promoção da leitura realizados pelas bibliotecas públicas? Todas estas abordagens eram

    interessantes, mas não eram essencialmente aquilo que nos interessava investigar. Assim

    sendo, como poderíamos definir um objecto de estudo onde fosse possível abordar as apro-

    ximações/afastamentos entre leitura e biblioteca? Como poderíamos investigar os pressu-

    postos que estavam por detrás das visões e das decisões estratégicas?

    Por outro lado, a dificuldade de escolher uma abordagem metodológica que permitis-

    se a recolha, o tratamento e a interpretação de dados, de uma forma válida de modo a sus-

    tentar uma série de conclusões credíveis. Eram várias as possíveis abordagens metodológi-

    cas: A realização de inquéritos. A realização de entrevistas. A análise documental. A obser-

    vação directa. Estas metodologias são habitualmente utilizadas no âmbito de investigações

    que são realizadas tendo por objecto a leitura pública ou as bibliotecas públicas. Todavia,

    era por demais óbvio que a metodologia a utilizar estava totalmente dependente do objecto

    de estudo que fosse abordado.À medida que efectuávamos a pesquisa bibliográfica e a leitura dos textos seleccio-

    nados fomos dando conta que, em Portugal, com a excepção dos relatórios dos grupos de

    trabalho anteriormente referidos e da produção editorial de um número muitíssimo reduzido

    de profissionais (do qual destacamos o nome de Henrique Barreto Nunes), não existe um

    corpus  teórico-prático onde se possa alicerçar uma reflexão crítica sobre a relação entre

    leitura e biblioteca em Portugal.

    Este vazio pode ser constado pela ausência: de documentos de enquadramento

    (legislação aplicável às bibliotecas públicas, documentos programáticos para a promoção da

    leitura, etc.); de uma reflexão e discussão profissional (falta de produção editorial de matriz

    técnica, inexistência de encontros especializados sobre o tema, etc.); de uma avaliação das

    práticas e dos resultados (não existe uma cultura de avaliação dos projectos e das acções,

    não são identificadas e disseminadas boas práticas); uma abordagem teórica e metodológi-

    ca (são poucos os estudos de âmbito académico que cruzem leitura e biblioteca, são poucos

    os investigadores especializados nestas áreas).

    Tal vazio torna-se ainda mais evidente quando se compara a produção editorialnacional com a produção editorial internacional. São inúmeros os exemplos: França (com as

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    15/138

      15

    reflexões e debates em torno das políticas de leitura pública); Inglaterra (com a emergência

    de uma nova abordagem à leitura na biblioteca expressa no conceito do desenvolvimento do

    leitor ); Espanha (com a reflexão e debate em torno das práticas da animação da leitura);

    América Latina (com o Brasil, a Argentina, a Colômbia, a lançarem iniciativas nacionais em

    torno dos eixos leitura – desenvolvimento – cidadania)2

    Assim sendo, perante este vazio, onde poderíamos procurar os pressupostos e os

    fundamentos que sustentam a definição das políticas nacionais de leitura? A nossa percep-

    ção foi a de que devíamos analisar os discursos veiculados pelos actores-chave que estive-

    ram por detrás das grandes opções estratégicas, mas, na ausência de documentos progra-

    máticos ou de intervenções públicas por parte daqueles, como poderíamos fazê-lo? Ainda

    colocámos a hipótese de analisar alguns dos textos edificadores do discurso sobre a leitura

    em Portugal (Manifesto A Leitura Pública em Portugal de 1983; Manifesto da Unesco sobre

    as bibliotecas públicas de 1994; Manifesto Leitura, Liberdade, Cidadania de 1996). Mas veri-

    ficámos que esta abordagem seria bastante redutora, devido ao escasso número de docu-

    mentos e sua dispersão temporal e devido ao facto de serem textos retóricos.

    Só muito recentemente surgiu a oportunidade que esperávamos. Estamos a falar da

    apresentação pública do Plano Nacional de Leitura (PNL) e da polémica que se gerou em

    torno do deste nos meios de comunicação social. Foi então possível criar um enfoque para a

    nossa investigação, a partir do qual estabelecemos: o objecto de estudo; os objectivos da

    investigação; o quadro teórico de referência; o corpus documental; a grelha de análise; aabordagem da polémica. Tudo isto enquadrado pelo quadro de referência teórico e metodo-

    lógico que está ancorado na análise critica do discurso.

    1.1. Definição do objecto de estudo 

    Tendo por base o enquadramento anteriormente efectuado, assumimos como objec-

    to de estudo «Os discursos sobre a leitura veiculados por textos (que constituem o nossocorpus documental) surgidos na comunicação social a propósito do lançamento do Plano

    Nacional de Leitura».

    A definição deste objecto de estudo tem duas implicações metodológicas: não pre-

    tendemos estudar o PNL propriamente dito (expresso no relatório-síntese) mas os artigos de

    opinião, editoriais, entrevistas e posts em blogs, produzidos em torno da sua apresentação;

    não pretendemos enquadrar a nossa análise dentro do contexto escolar mas sim no contex-

    to mais geral da opinião pública veiculada pelos fazedores de opinião.

    2  Veja-se a este propósito: PEÑA, Luís; ISAZA, Beatriz Helena –  Una región de lectores: análises comparado de planes nacionales de

    lectura en Iberoamérica. Colômbia: CERLALC, 2005. 223 p. ( http://www.cerlalc.org/region_lectores.pdf )

    http://www.cerlalc.org/region_lectores.pdfhttp://www.cerlalc.org/region_lectores.pdf

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    16/138

      16

    1.2. Objectivos da investigação

    Tendo em atenção a abordagem ao objecto de estudo anteriormente definido, assu-

    mimos os seguintes objectivos para a nossa investigação:

    •  Encetar uma nova abordagem na investigação das problemáticas da leitura (com

    enfoque nos discursos sobre a leitura) a partir dos contributos teóricos e metodo-

    lógicos da análise crítica do discurso;

    •  Caracterizar, sucintamente, os temas-chave do discurso sobre a leitura, efec-

    tuando uma revisão bibliográfica dos trabalhos publicados em Portugal e no

    Estrangeiro sobre o tema;

    •  Analisar os textos sobre o PNL segundo duas perspectivas: enumerando a pre-

    sença/ausência de um conjunto de temas-chave; recenseando o posicionamentodos autores envolvidos na polémica;

    •  Realizar uma reflexão crítica (na perspectiva do investigador e na perspectiva do

    profissional) sobre a relação existente entre os discursos e as práticas que se

    estruturam em torno da leitura;

    •  Estabelecer algumas linhas de continuação para o nosso trabalho, que extrava-

    sem o âmbito desta dissertação, que nos permitam sustentar uma linha de inves-

    tigação-acção em torno da leitura.

    1.3. Quadro teórico de referência 

    Temos plena consciência da fragilidade do nosso domínio sobre o quadro teórico de

    referência: Análise Crítica do Discurso (ACD). Todavia, não quisemos deixar de fazer um

    primeiro esquisso de um mapa conceptual que possa ser utilizado para trilhar os caminhos

    de futuro da análise crítica do discurso sobre a leitura. Para tal, iremos ancorar o nosso texto

    em vários autores portugueses (Pedro, 1998; Nogueira, 2001; Gouveia, 2001; Coelho, 2004,

    2005) e num autor estrangeiro de referência (van Dijk, 2005).

    O que é a Análise Crítica do Discurso?

    Apesar da complexidade das problemáticas envolvidas e das várias tendências que

    lhe dão corpo, tentemos delinear uma primeira acepção que seja simultaneamente clara e

    abrangente (Coelho, 2004):

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    17/138

      17

    «É por assim dizer uma forma de estudar o discurso como uma consciência e causa, a de revelar a for-

    ma como a linguagem é usada e abusada na produção e reprodução do poder e da desigualdade

    social, fazendo-o sempre que possível a partir da perspectiva dos oprimidos (Fairclough e Wodak,

    1997).».

    Podemos constatar que existe uma relação umbilical entre três vectores (linguagem

     – discurso – sociedade) que confluem num sujeito discursivo, que não é um agente passivo

    e neutro mas sim um actor-chave na produção e reprodução dos discursos. Isto faz com que

    a análise crítica do discurso (ACD) aborde a linguagem na sua dimensão de uso social, em

    que o indivíduo surge como elemento de uma comunidade discursiva (Pedro, 1998: 21):

    «Na Análise Crítica do Discurso (ACD), encontramos um processo analítico que julga os seres humanos

    a partir da sua socialização, e as subjectividades humanas e o uso linguístico como expressão de uma

    produção realizada em contextos sociais e culturais, orientados por formas ideológicas e desigualdades

    sociais.».

    Daqui decorrem algumas constatações sobre a ACD: é uma abordagem interdiscipli-

    nar ao discurso; assume a linguagem como uma prática social; analisa como a dominação

    se reproduz e resiste com os discursos; pretende aclarar os fundamentos ideológicos do

    discurso; assume um posicionamento crítico face às desigualdades no acesso aos recursos

    linguísticos e sociais. Acima de tudo, há que perspectivar a análise do discurso na sua

    dimensão teórica e metodológica.

    O posicionamento cr ítico da ACD

    Para melhores entendermos as especificidades da ACD, podemos também comparar

    a sua abordagem crítica ao discurso em relação a outras abordagens à análise do discurso

    (Pedro, 1998: 23):

    «Todas as formas de análise do discurso tomam o texto como o domínio adequado da teoria e da des-

    crição linguísticas. Em todas encontramos um interesse na compreensão de textos extensos, social ou,

    pelo menos, culturalmente situados e uma atenção a aspectos sociais, co-textuais e culturais que permi-

    tem a garantia de categorias de explicação para a descrição dos textos.

    A ACD partilha estes objectivos com as diferentes abordagens da análise do discurso, visando dar con-

    ta quer da estrutura interna quer da organização global dos textos. Mas, para além destes aspectos,

    tem o objectivo de fornecer uma dimensão crítica à análise dos textos. Como nota Kress (1990: 85), “os

    praticantes da ACD têm, de forma explícita ou implícita, o objectivo político mais vasto de questionar as

    formas dos textos, os processos de produção desses textos e os processo de leitura, juntamente com

    as estruturas do poder que deram azo a esses textos”.».

    A assumpção da dimensão crítica remete a ACD para além de um mero programa de

    investigação, reivindicando para si mesma um programa político (potencialmente polémico,

    cientificamente consciente) (Pedro, 1998: 24):

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    18/138

      18

    «Como observa ainda Kress, “a ACD afirma-se abertamente político e, portanto, potencialmente polémi-

    co”. Aliás, como observa, uma ciência livre de valores – e consequentemente, a-histórica – sempre foi, e

    hoje é-o talvez ainda mais, profundamente questionável. Mas se a ACD se reclama de uma actividade

    política comprometida, essa actividade não é menos adequadamente científica. É mesmo possível que

    o seja mais ainda, dada a consciência que caracteriza a sua posição política, ideológica e ética.».

    As implicações teóricas e metodológicas deste posicionamento crítico da ACD são

    diversas. Entre as quais surge primeiramente uma abordagem supralinguística, que conside-

    ra o contexto discursivo de uma maneira não restritiva, ou seja, interessa à ACD o uso da

    linguagem em contextos diversos (político, comunicação social, económico, publicitário, etc.)

    (Pedro, 1998: 20):

    «A Análise Crítica do Discurso opera, necessariamente, com uma abordagem de discurso em que con-

    texto é uma dimensão fundamental. Mas, ao contrário de outras abordagens, conceptualiza o sujeito

    não como um agente com graus relativos de autonomia, mas como sujeito construído e construindo os

    processos discursivos a partir da natureza de actor ideológico (cf., a este propósito, por exemplo Fair-

    clough 1989, 1992, Kress 1996, Pedro 1996-a e b, Wodak 1996).».

    Surge também como estruturante a análise do discurso na perspectiva da identifica-

    ção das desigualdades sociais decorrentes do exercício do poder social (Pedro, 1998: 25):

    «Um dos objectivos da ACD é o de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da domina-

    ção. Dominação entendida como (van Dijk, 1993) o exercício do poder social por elites, instituições ou

    grupos, que resulta em desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade política, a desigualda-

    de cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de classe, de raça, de sexo e de caracterís-

    ticas étnicas. (…) E embora estejam conscientes da importância das estratégias de resistência e desafio

    no seio das relações de poder e de dominação e, portanto, da importância da sua análise e da inclusão

    dessa análise numa teoria mais alargada do poder, do contra-poder e do discurso, a abordagem crítica

    tem, até agora, preferido concentrar-se nas elites e nas estratégias que estas põem em funcionamento

    para a manutenção da desigualdade.».

    A manutenção dessas desigualdades passa pela reprodução de discursos formata-

    dores da própria realidade social, para tal é fundamental o acesso, por parte das elites, aos

    instrumentos institucionais de controlo do discurso (Pedro, 1998: 29):

    «O poder e a dominação estão organizados e institucionalizados, implicando esta organização social,

    política e cultural da dominação também uma hierarquia de poder, já que alguns membros de grupos e

    de organizações dominantes assumem um papel especial no planeamento, na tomada de decisões e no

    controlo das relações e processo de activação do poder. Estes grupos, necessariamente pequenos, são

    entendidos na ACD como elites de poder, que se caracterizam por terem um acesso particular ao dis-

    curso, já que, literalmente, são aqueles que mais têm a dizer. Elites são aqui conceptualmente entendi-

    das em termos do seu poder simbólico (Bourdieu, 1982), medido nomeadamente pelos seus recursos

    discursivos e comunicativos.».

    O discurso é, deste modo, encarado como um factor estruturante das realidadessociais, ou seja, o discurso estabelece uma relação umbilical com a estrutural social permi-

     

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    19/138

      19

    tindo a sua manutenção, inclusive nos seus desequilíbrios, desigualdades e relações domi-

    nadores/dominados (a que subjaz uma matriz ideológica) (Gouveia, 2000: 6):

    «As práticas discursivas têm grandes efeitos ideológicos. Pelo modo como representam a realidade e

    posicionam os sujeitos podem ajudar a produzir e a reproduzir relações de poder desiguais. A associa-

    ção das questões de poder e de ideologia com o discurso é tornada evidente pelo carácter de princípioestruturante da realidade que a este está associado: enquanto prática social, o discurso estabelece

    uma relação dialéctica com a estrutura social, na medida em que se afirma como um dos seus princí-

    pios estruturadores, ao mesmo tempo que é por ela estruturado e condicionado.».

    Mas este autor vai mais longe ao afirmar que estrutura social e prática discursiva são

    mutuamente dependentes (Gouveia, 2000: 6):

    «Ou seja, a estrutura social é uma condição para a existência do discurso, mas é também um efeito de

    tal existência: por um lado, o discurso é constrangido e formado por relações ao nível da sociedade, por

    relações específicas a instituições particulares, por sistemas de classificação e por várias normas econvenções, de natureza quer discursiva, quer não-discursiva, de tal forma que os eventos discursivos

    variam, na sua determinação estrutural, de acordo com o domínio social particular ou enquadramento

    institucional em que são gerados; mas, por outro lado, o discurso é um princípio estruturador, no senti-

    do em que Foucault usa o termo discurso, i. e., os objectos, os sujeitos e os conceitos são formados

    discursivamente. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social

    que, directa ou indirectamente, o modelam e constrangem: as suas próprias normas e convenções,

    assim como as relações, identidades e instituições que lhe subjazem (cf. Fairclough, 1992: 63-64;

    Wodak, 1996: 15).».

     ACD – Problematização teórica e a abordagem metodológica

    Mas como é que se pode relacionar estas noções programáticas (como a dominação

    e a desigualdade) com o desenvolvimento da análise? Entramos aqui na zona de confluên-

    cia entre as dimensões teórica e metodológica da ACD (Pedro, 1998: 26):

    «A relação entre macro-noções, como grupo, poder e dominação institucionais ou, mesmo, desigualda-

    de social e micro-noções, como texto, fala ou interacção comunicativa, não é de fácil articulação. Daí

    que se procure, na ACD, encontrar modos conceptuais para a resolução deste problema que é, simulta-

    neamente, teórico, metodológico e analítico.».

    A complexidade dos problemas sociais abordados pela ACD remete, necessariamen-

    te para a elaboração de um aparelho teórico de grande sofisticação e complexidade. Toda-

    via, ao contrário do que poderia ser expectável, a ACD liberta a análise de discurso dos

    constrangimentos laboratoriais (próprios dos estudos linguísticos) para o estudar nas dimen-

    sões sociais, psicológicas e cognitivas (Pedro, 1998: 27):

    «De modo claro, como sugerimos atrás, o projecto teórico da ACD é fundamentalmente diferente de

    formas de análise textual fundadas na noção de um sistema linguístico autónomo. Para a ACD, a ideia

    de autonomia não faz sentido e a noção de sistema linguístico é, como referi anteriormente, bastante

    problemática. A ACD trabalha considerando o linguístico no interior do social. No entanto, esta dimen-

     

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    20/138

      20

    são de foco central que o social tem na ACD não retira a atenção a outros aspectos do discurso,

    nomeadamente as componentes psicológicas e de processamento do discurso.».

    Não sendo um receituário, podemos referenciar uma série de critérios gerais que

    norteiam os princípios teóricos da ACD (Pedro, 1998: 27):

    «Determinados critérios dão corpo ao trabalho, politicamente engagé, da ACD. Digamos, com Kress

    (1990: 85-86), que esses critérios são, em síntese e em termos gerais, os seguintes:

    1. a linguagem é entendida como o primeiro e o mais importante tipo de prática social e, junto

    com as imagens visuais, a música e os gestos, entre outros, é uma de entre muitas práticas

    sociais de representação e significação;

    2. os textos são entendidos como o resultado das acções de falantes e escritores socialmente

    situados, operando estes com graus relativos de possibilidades de escolha, sempre no interior

    de estruturações de poder e dominação;

    3. as relações dos participantes na produção dos textos são, em geral, desiguais e vão de esta-

    dos, hipotéticos, de total igualdade à completa desigualdade;

    4. os significados resultam da (inter)acção dos leitores e ouvintes com os textos – de género, por

    exemplo – e a relações de poder que regulam essas interacções;

    5. os traços linguísticos – enquanto signos –, a qualquer nível, são o resultado de processo

    sociais, por esse motivo, conjunções motivadas de formas e conceitos e nunca conjuntos arbi-

    trários de forma e significado;

    6. também a qualquer nível, na sua ocorrência em textos, os traços linguísticos são sempre

    caracterizados pela sua natureza opaca, também os textos partilham desta característica;

    7. os utentes linguísticos, pelo seu posicionamento sociocultural, enquanto indivíduos socialmen-

    te localizados, não têm acesso ao sistema linguístico como tal, mas apenas um acesso parcial,selectivo e seleccionado a configurações particulares desse sistema. Em consequência, na

    maior parte das interacções, os produtores textuais transportam diferentes disposições em

    relação à linguagem, diferente conhecimento de sistemas de configuração diversa e diferente

    conhecimento de formas textuais. Diferenças que devem ser entendidas na sua relação com os

    posicionamentos diferenciados dos utentes linguísticos;

    8. estes aspectos justificam a consideração de que a noção de sistema linguístico – à semelhan-

    ça de outras noções, nomeadamente a de norma – seja muito problemática na ACD. E justifi-

    cam ainda a visão implícita subjacente a estas considerações de um entendimento da lingua-

    gem que tem sempre em consideração a história, quer a micro-história de uma interacção fala-

    da quer as histórias mais vastas das instituições sociais e humanas;

    9. a ACD apoia-se sempre em análises rigorosas e em descrições da materialidade da lingua-

    gem.».

    A ACD trabalha com uma grande diversidade de categorias descritivas e metodológi-

    cas, dependendo dos autores que estamos a referenciar, todavia, todas estas abordagens

    consideram o texto como a unidade linguística mais relevante. Decorre daí o princípio meto-

    dológico de usar o texto como matéria de análise. No nosso caso a análise dos diversos, e

    de cada um, dos textos que suportaram os discursos sobre a leitura a pretexto do lançamen-

    to do Plano Nacional de Leitura.

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    21/138

      21

     A d imensão polémica dos art igos de opinião sobre o PNL

    Quando analisamos os discursos sobre a leitura de âmbito mais restrito (âmbito aca-

    démico ou âmbito profissional), constatamos que existem consensos básicos sobre os

    temas abordados (crise da leitura, intervenção estatal, boas leituras / más leituras, clássicos

    / best-sellers, estatuto do leitor e da leitura, pedagogia da leitura, etc.). Apesar de serem

    discursos compósitos, com diferentes graus de consistência, que são veiculados por comu-

    nidades discursivas muito específicas (saliente-se o exemplo dos bibliotecários ou o exem-

    plo dos professores), o processo de debate surge mais como uma possibilidade de valida-

    ção e fixação do que como uma possibilidade de confronto. Isto fica-se a dever precisamen-

    te à sua própria propensão para criar consensos (tentativa de escorar tomadas de posição

    corporativas ou de sustentar pontos de vista científicos ou técnicos).

    Todavia, no caso concreto que vamos analisar, ganha particular relevo a utilização

    da comunicação social como espaço de debate generalista de âmbito público (com um cariz

    marcadamente polémico), onde o que mais interessa é a veiculação de uma opinião pessoal

    (Nogueira, 2001: 28):

    «A controvérsia é a base desta quarta abordagem [Análise Crítica do Discurso], porque envolve o estu-

    do do poder e da resistência, da contestação e da luta. A assunção básica é que a linguagem que está

    disponível para as pessoas utilizarem permite e constrange, não só e apenas a expressão de ideias

    mas também aquilo que as pessoas fazem. É através da linguagem que as pessoas são categorizadas,

    são segregadas, consideradas diferentes, “anormais” “doentes”, sendo que a própria linguagem dá valor

    atribuindo existência ou negando essas categorizações.».

    Mas, para além das opiniões pessoais de cada um dos intervenientes, interessa-nos

    explorar o facto de que eles assumem um estatuto de porta-voz de uma corrente da opinião

    pública, sendo este estatuto que lhes confere autoridade para defenderem o seu ponto de

    vista. A dimensão polémica que os artigos consubstanciaram desde o início, permite-nos

    também fazer a clivagem das posições pessoais em confronto, que muitas das vezes são

    afirmadas por oposição, por negação e por confrontação com outras posições expressas

    acerca do mesmo tema (Nachbauer, 2000: 123):

    «Lorsque ces échanges laissent des traces dans les écrits, ces textes sont porteurs de sens et méritent

    qu'on s'y attarde. L'affrontement des idées joue un rôle fondamental dans la construction du savoir en

    éducation. Au sein des discours argumentés, le discours polémique révèle, à travers sa virulence, des

    enjeux de première importance et permet de mieux comprendre les changements.».

    Assim sendo, considerámos que, para além de analisarmos cada um dos textos per

    si, seria interessante fazermos uma análise do corpus documental como um todo, referen-

    ciando as aproximações/afastamentos e as continuidades/rupturas entre as várias posições

    em confronto na polémica. Nesse sentido, partindo do quadro de referência teórico fornecido

    pela análise crítica do discurso, partimos em busca de um complemento metodológico que

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    22/138

      22

    nos permitisse analisar mais profundamente as diversas dinâmicas da polémica em torno da

    apresentação do Plano Nacional de Leitura que decorreram, em grande medida, na impren-

    sa (Ramos, 1999):

    «Os grandes jornais nacionais apresentam-se como o local estratégico da constituição do discurso polí-

    tico-social, substituindo por vezes as instâncias oficiais, dando voz e acesso directo à opinião públicaaos políticos eleitos e aos diversos porta-vozes e líderes de opinião mais ou menos formalmente insti-

    tuídos.».

    As polémicas, que se desenrolam nos meios de comunicação social, revestem-se de

    um carácter único (Ramos, 1999):

    «A polémica é, então, uma guerra metafórica, uma guerra em que a arma é a palavra e o seu suporte

    físico é, sobretudo desde 1820, o jornal.

    O que define o discurso polémico é que o conjunto das suas propriedades semânticas, enunciativas e

    argumentativas se encontra ao serviço de um objectivo dominante, o de desqualificar o objecto que

    constitui o seu alvo, “matar” metaforicamente o adversário discursivo. (...) Não é de admirar, portanto,

    que alguns textos polémicos se revistam de um carácter por vezes excessivamente truculento, onde o

    insulto pessoal substitui a defesa e ataque de ideias, onde a injúria se sobrepõe à argumentação.

    A guerra metafórica ainda hoje se encontra presente nos seus semas inerentes:

    a) a polémica é um objecto de natureza verbal, as armas a terçar são as palavras;

    b) este objecto verbal é de natureza dialógica, implicando a existência de dois antagonistas;

    c) o discurso é, assim, visto como um contra-discurso.».

    O jornal (e cada vez mais os blogs) é o púlpito a partir do qual é possível aos fazedo-

    res de opinião enunciarem de forma regular o seu discurso, consubstanciado principalmente

    em artigos de opinião. A persistência das suas opiniões permite identificar uma matriz ideo-

    lógica que subjaz sistematicamente às tomadas de posição sobre os mais diversos temas.

    Essa característica permite antever algumas das posições futuras pois está aliada a uma

    certa coerência interna, que em grande medida dá autoridade ao seu autor (Ramos, 1999):

    «Toda a vida social, política na sua acepção ampla e primeira, se rege por relações de consen-

    so/conflito. Também o jornal se define e pronuncia nesses termos, reflectindo uma parte substantiva da

    imprensa actual sobretudo a relação de conflito com o poder, desvelando o atractivo lado negativo das

    relações, explorando sentimentos de desconforto ou desagrado com a autoridade política, empolando

    reacções comuns anti-governo. Daqui resulta a omnipresença do discurso polémico, enquanto discurso

    desqualificante, discurso do conflito e da persuasão.».

    Assim sendo, o texto de opinião, devido ao contexto em que surge, encerra em si

    mesmo um posicionamento maniqueísta: “estar contra” ou “estar a favor”; “ser aliado” ou

    “ser adversário” (Ramos, 1999):

    «O discurso polémico reveste-se de um carácter maniqueísta, onde se define uma instância que con-

    grega todas as qualidades e todas as virtudes, pertinentes ou não para o fim evocado, e uma outra (o

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    23/138

      23

    alvo definido) acusada, mais ou menos declaradamente, de simbolizar o oposto. Mesmo que sejam

    referidos aspectos positivos do alvo, tal facto estará ao serviço de uma estratégia argumentativa que

    terá sempre por fim a sua desqualificação, assim como a edificação de uma imagem de imparcialidade

    e justiça para o LOC (locutor).».

    É precisamente este posicionamento maniqueísta que nos interessa analisar, estabe-

    lecendo a relação com o nosso quadro teórico de referência, com o recurso a uma matriz

    designada por “quadrado ideológico” (van Dijk, 2005: 197):

    «Esta estratégia de polarização – descrição do endogrupo positiva, e descrição negativa do exogrupo –

    tem portanto a seguinte estrutura abstracta avaliativa, que podemos denominar de “quadrado ideológi-

    co”:

      Enfatizar as nossas propriedades/acções boas

      Enfatizar as propriedades/acções más deles

      Mitigar as nossas propriedades/acções más

      Mitigar as propriedades/acções boas deles.».

    Os meios de comunicação social, em particular os jornais, tornam-se num meio de

    mediação entre as elites e a sociedade em geral construindo, sobre a forma de discursos,

    uma visão dos factos que conduz à própria formatação ideológica da realidade que passa a

    ser perspectivada segundo um conjunto predeterminado de finalidades, de valores e de

    posições (Ramos, 1999):

    «O jornal funciona como mediador cultural entre uma cultura “de elite” e as culturas práticas e como

    mediador ideológico. O discurso de opinião vulgariza temas até aí reservados a minorias (elites políti-

    cas, económicas e culturais), construindo-se a partir de discursos já constituídos, discursos “terceiros” e

    assume-se como local estratégico de produção de realidade. Através da opinião dos porta-vozes, é

    criado um efeito de real discursivo: esse poder evocativo da linguagem cria realidade, na medida em

    que condiciona a apreensão e compreensão dos factos pela opinião pública. A apreensão da realidade,

    a interpretação que os indivíduos fazem dos estados de coisas é, assim, mediatizada pela visão subjec-

    tiva dos líderes de opinião.».

    Podemos pois afirmar que os discursos sobre a leitura, veiculados nos artigos de

    opinião sobre o PNL, tentam, antes de mais condicionar as políticas nacionais de leitura

    definidas pelo actual Governo, não tanto ao nível da sua definição mas ao nível da sua

    implementação, não tanto ao nível das suas intenções mas ao nível da avaliação dos seus

    resultados, não tanto ao nível da sua refutação técnica e/ou metodológica mas ao nível dos

    seus pressupostos sociais. São discursos de condicionamento, logo de exercício do poder.

    Não nos podemos esquecer que muitos dos autores dos artigos estão inscritos em quadros

    ideológicos e políticos específicos (Ramos, 1999):

    «O discurso de opinião e a inerente discussão levam vários actores sociais (no caso de que nos ocu-pamos, os responsáveis políticos) a tomar partido, mesmo a alterar rumos de actuação, face à consa-

     

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    24/138

      24

    gração de um espaço público (o jornal) como representante da opinião pública. Se as instâncias políti-

    cas constituem o verdadeiro destinatário dos artigos de opinião, que apresentam um discurso persuasi-

    vo, e se este for de alguma forma eficaz, os resultados da sua acção terão de ser reconhecíveis. É

    sabido o peso dos grupos de pressão junto das instâncias do poder, e a imprensa é frequentemente

    apelidada de “quarto poder”, sobretudo pela capacidade de criar realidade, mediando/explicando o que

    acontece, e por ser a imagem incarnada do poder delegado da opinião pública.».

    1.4. Definição do corpus documental

    A presença do Plano Nacional de Leitura na comunicação social teve dois tipos de

    registos distintos mas complementares: através da cobertura noticiosa nos diversos meios

    de comunicação social (imprensa, televisão, rádio); através da publicação de um conjunto

    de textos de opinião pessoal (sobre a forma de editoriais, artigos de opinião, entrevistas,cartas ao director, posts em blogs, etc.).

    Tendo em conta o objectivo de estudo e os objectivos da investigação, decidimos

    constituir o nosso corpus  documental com base no conjunto de textos de opinião pessoal.

    Por um lado, porque este tipo de textos tem uma maior perenidade temporal (Ramos, 1999):

    «De todos os tipos de artigos jornalísticos, os artigos de opinião serão, provavelmente, os de maior

    esperança de vida. Enquanto que a notícia é tendencialmente uma pura descrição de determinado

    estado de coisas, o artigo de opinião apresenta características próprias: baseia-se na realidade, nos

    acontecimentos reais externos ao texto para, a partir deles, tecer comentários, explicar causas, relações

    e consequências, criar casos políticos. É essa componente narrativa e criadora que foge à simples mos-

    tração referencial do mundo e dos estados de coisas, para constituir comentário, definir valores, criar

    realidades. Mas continuarão todos marcados – fortemente marcados – pelo momento zero da sua

    enunciação, o ponto de intersecção das linhas definidoras do campo enunciativo.».

    Por outro lado, os textos de opinião pessoal (que gravitavam em torno do lançamento

    do PNL) interessavam-nos particularmente porque através deles poderíamos analisar a

    matriz ideológica do discurso sobre a leitura que é dominante (van Dijk, 2005: 187):

    «De uma maneira geral, presumimos que os editoriais e os artigos de opinião na imprensa expressam

    opiniões. Dependendo do tipo e da posição do jornal, as opiniões podem variar consideravelmente nas

    suas pressuposições ideológicas. Esta formulação bastante familiar parece implicar que as ideologias

    dos jornalistas influenciem de alguma forma as suas opiniões, as quais por sua vez influenciam as

    estruturas do discurso dos artigos de opinião».

    Assim sendo, pesquisámos (com recurso privilegiado à web) sistematicamente textos

    de opinião pessoal que se incluíssem nos seguintes critérios:

    •  Tivessem o Plano Nacional de Leitura como temática central

    •  Estivessem contidos num intervalo de tempo (Maio – Julho de 2006)

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    25/138

      25

    •  Fossem representativos da diversidade de posições

    •  Participassem na polémica gerada em torno do Plano Nacional de Leitura

    Na sequência desta pesquisa de textos para integrar no corpus documental, selec-

    cionámos um conjunto diversificado, mas bastante consistente e mutuamente referenciado,

    de textos (no Anexo 1 estão na sua versão integral). São os seguintes, por ordem cronológi-

    ca de publicação:

    •  MOURA, Vasco Graça – “Português 1 X 2” in Diário de Notícias, 17 de Maio

    •  VALENTE, Vasco Pulido – “Os Violinos de Ingres” in Público, 21 de Maio

    •  VILARINHO, Fernando – “Opinião acerca de uma crítica ao PNL” in Bibliotecas

    em Portugal [blog], 22 de Maio

    •  MOURA, Vasco Graça – “Quarenta e oito por cento” in Diário de Notícias, 31 deMaio

    •  FERNANDES, José Manuel – “Ler mais e mais… em casa” in Público, 2 de

    Junho

    •  VALENTE, Vasco Pulido – “O eterno retorno” in Público, 3 de Junho de 2006

    •  FERNANDES, João Morgado – “Ler e crescer” in Diário de Notícias, 4 de Junho

      COELHO, Eduardo Prado – “Você quer um plano?” in Público, 5 de Junho•  VIEGAS, Francisco José – “A leitura e a virtude cívica” in Jornal de Notícias, 5 de

    Junho

    •  ABRANTES, José Carlos – “O Prazer das Palavras” in Diário de Notícias, 5 de

    Junho

    •  BUESCO, Helena Carvalhão – “Carta ao Director” in Público, 6 de Junho

    •  SARAMAGO, José – “Protagonismo para a Escola“ [entrevista] in Jornal de

    Letras, 7 de Junho

    •  MOURA, Vasco Graça – “Os livros, pois” in Diário de Notícias, 14 de Junho

    •  PEDROSA, Inês – “Em voz alta” in Expresso, Revista Única, 17 de Junho

    •  GERALDES, José – “A paixão da leitura” in Urbi @ Orbi [Jornal Online da UBI],

    20 de Junho

    •  BRÁS, Rui Manuel – “O que vale o Plano Nacional de Leitura” in Jornal da Nova

    Democracia [jornal on-line], 31 de Julho

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    26/138

      26

      Incluímos textos de autores menos conhecidos e sem um verdadeiro estatuto de

    fazedores de opinião porque correspondiam aos critérios previamente estabelecidos para

    além de proporcionarem um maior leque de perfis profissionais e de posicionamentos ideo-

    lógicos.

    Anexámos também (Anexo 2) outros textos que, não fazendo parte do corpus docu-

    mental que será alvo da nossa análise, abordam questões directamente relacionadas com o

    PNL:

    •  Discurso da Ministra da Cultura no Dia Mundial do Livro

    •  Notícia da Agência Lusa sobre as declarações de Saramago em Oeiras

    •  Discurso da Ministra da Cultura na apresentação do Plano Nacional de Leitura

    Não incluímos estes textos no corpus documental pelas seguintes razões: no casodos discursos da Ministra da Cultura, porque são textos institucionais que, apesar de pode-

    rem veicular uma opinião pessoal, estão condicionados à partida pelos objectivos circuns-

    tanciais para que foram produzidos; no caso da notícia da Agência Lusa, porque tem um

    carácter informativo que é completamente contrastante com o texto de opinião pessoal

    (Pedro, 1998: 293):

    «Quando assim definimos o texto informativo, queremos dizer que o entendemos como algo que,

    supostamente, estabelece (e se estabelece em) contraste com outros géneros, por exemplo, editoriais,

    entrevistas, comentários desenvolvidos pelos chamados «fazedores de opinião» – tão na moda tambémentre nós – e outros.».

    Refira-se ainda que todas as notícias que reproduziram as declarações de José

    Saramago na Biblioteca Municipal de Oeiras (fazendo-as chegar aos principais meios de

    comunicação social portugueses, espanhóis e brasileiros), tiverem origem na peça da Agên-

    cia Lusa que, por sua vez, descontextualizava as declarações do escritor, amplificando o

    seu alcance e envolvendo-as em polémica (basta referir que as declarações de Saramago

    foram feitas na véspera da apresentação pública do PNL).

    1.5. Estabelecimento de uma grelha de análise

    O estabelecimento de uma grelha de análise foi um trabalho dialéctico (grelha-

    análise-grelha): partimos para a análise dos textos com uma primeira versão da grelha, vol-

    támos à reelaboração da grelha à medida que íamos analisando os textos, e assim sucessi-

    vamente.

    O processo de definição dos temas de análise foi difícil, pois a nossa tendência natu-

    ral era a de criarmos um conjunto exaustivo de temas gerais para depois os especificar com

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    27/138

      27

    subtemas. Todavia, esta subdivisão criava falsas subordinações hierárquicas e espartilha-

    mento de subtemas por vários temas gerais. Como consequência, optámos por proceder à

    análise em duas perspectivas complementares.

    Numa primeira perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo um con-

     junto de temas recorrentes:

    •  O fenómeno de não-leitura (=crise da leitura);

    •  Os estatutos das leituras e dos leitores;

    •  O papel da escola e da biblioteca;

    •  O estatuto do professor e do bibliotecário;

    •  A associação leitura, desenvolvimento, cidadania).

    Numa segunda perspectiva, analisamos o discurso sobre a leitura segundo uma lógi-

    ca de polémica, recenseando o posicionamento dos actores-chave perante:

    •  O Plano Nacional de Leitura,

    •  A intervenção estatal,

    •  Os outros actores-chave da polémica.

    Com esta segunda perspectiva de análise tentaremos caracterizar a institucionaliza-

    ção do discurso dominante, a dinâmica das relações de poder e a matriz ideológica que sub- jaz ao discurso dominante sobre a leitura.

    Temos consciência de que, apesar de não existir um modelo único para efectuar a

    Análise Crítica do Discurso, existem um conjunto de critérios e de fases para proceder à

    análise dos textos (Nogueira, 2001: 34): 

    «Apesar de não haver uma grelha estruturada e passos claramente definidos sobre como fazer análise

    do discurso, Parker (1992) refere a possibilidade de se recorrer a um conjunto de critérios associados a

    fases, que podem ajudar os analistas a começar a análise. Estes critérios não sendo rígidos são indica-

    dores importantes. Apesar de haver análise do discurso que não recorre necessariamente aos últimoscritérios e fases, na Análise Crítica do Discurso estes são fundamentais e cruciais.

    Critérios e Fases

    Textos

    1 – tratar objectos de estudo como sendo textos (colocados em palavras)

    2 – explorar conotações, associação livre

    Objectos

    3 – procurar objectos nos textos

    4 – tratar a fala acerca desses objectos como objecto de estudo

    Sujeitos5 – especificar sujeitos (pessoas, assuntos, etc.), como tipos de objectos no texto

    6 – especular acerca de como eles podem “falar”

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    28/138

      28

      Sistema

    7 – traçar uma imagem do mundo, redes de relações

    8 – indicar as estratégias defensivas desses sistemas contra possíveis ataques

    Ligações

    9 – identificar contrastes entre formas de “falar”

    10 – identificar pontos de sobreposição, fala dos mesmos objectosReflexão

    11 – relacionar maneiras de falar para audiências diferentes

    12 – escolher rótulos ou designações das formas de falar, os discursos

    História

    13 – analisar com atenção como esses discursos emergem

    14 – questionar como os discursos contam a sua história acerca da sua origem

    Instituições

    15 – identificar instituições reforçadas pelos discursos

    16 – identificar instituições que são atacadas pelos discursos

    Poder

    17 – analisar que categorias de pessoas ganham e perdem

    18 – questionar quem os promoverá e quem se lhes oporá

    Ideologia

    19 – analisar como eles se ligam com outros discursos opressivos

    20 – descrever como eles justificam o presente».

    Tentaremos seguir estas várias fases e critérios na análise dos textos de opinião

    pessoal que consubstanciam o nosso corpus documental.

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    29/138

      29

    2. Discursos sobre a leitura 

    Por vezes, durante um processo de produção de um texto, deparamo-nos com umlivro, com um artigo ou mesmo com uma frase, que se constitui como um verdadeiro fio de

    ariane que nos auxilia a sair do labirinto das ideias e opiniões, das citações bibliográficas e

    dos dados empíricos, que entretanto fomos acumulando de forma mais ou menos desorde-

    nada.

    No nosso caso esse papel foi desempenhado pelo artigo “Múltiplos objectos, múlti-

    plas leituras” da Associação de Leitura do Brasil (ALB)3. O contacto com este artigo permitiu-

    nos estabelecer um paralelismo entre a situação brasileira e a situação portuguesa, criando

    um distanciamento do olhar que nos levou a ver mais nítido o que antes era turvo.

    Permitiu-nos também sistematizar um conjunto de ideias-chave relacionadas com o

    discurso sobre a leitura, que irão funcionar como elementos organizativos deste capítulo: o

    discurso sobre a leitura que é dominante estrutura-se em torno da não-leitura; os estudos

    desmentem o discurso sobre a leitura que é dominante; a atribuição de estatutos às leituras

    e aos leitores baseia-se em juízos de valor; o discurso sobre a leitura que é dominante tem

    uma matriz ideológica. Vejamos cada uma destas ideias-chave seguindo muito de perto o

    citado artigo.

    2.1. O discurso sobre a leitura estrutura-se em torno da não-leitura

    Apesar da leitura, no discurso sobre a leitura que é dominante, ter uma conotação

    implícita extremamente positiva (ler = conhecimento; ler = auto-descoberta; ler = prazer; ler

    = desenvolvimento; ler = cidadania), quando se fala sobre a dimensão social da leitura fala-

    se pelo reverso, isto é, a não-leitura é assumida com uma clarividência irrefutável: “Os por-

    tugueses não lêem!” ou “Os jovens não lêem!” são duas das afirmações mais usuais.

    Esta ideia é reforçada negativamente através de uma dupla comparação: “No

    estrangeiro lê-se mais do que em Portugal” ou “No passado lia-se mais do que no presente”.

    Este discurso sobre a leitura é dominante e cria um estereótipo que pode ser rastreado nos

    diferentes países, de Portugal a Espanha, de França a Inglaterra, da Colômbia ao Brasil

    (ALB, 1999):

    3  Associação de Leitura do Brasil – “Múltiplos objectos, múltiplas leituras” in Portal das Letras. Consultado, no dia 17 de Agosto de

    2006, no endereço: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1 .

    http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=artigos/docs/artigos1

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    30/138

      30

    «A sentença está dada: o brasileiro não lê. Em qualquer debate sobre leitura em encontros pedagógi-

    cos, até mesmo em conversas informais aqui e ali, nas perguntas dos jornalistas aos especialistas, aí

    está uma frase que não é difícil de ouvir. Ela tornou uma espécie de verdade inquestionável, marca da

    falta de cultura, assim como outras do tipo “o brasileiro não sabe votar”.».

    A constatação da não-leitura conduz ainda à tentativa de identificar as suas causas e

    de vislumbrar as suas consequências, de modo a alterar essa realidade através de uma

    intervenção deliberada, que pressupõe a possibilidade de se operar a mudança social subs-

    tantiva enunciada pela comunidade discursiva dominante – elite cultural – (Furtado, 2000:

    187):

    «Mas é neste século XX, em que se assistiu no mundo ocidental a uma crescente preocupação com o

    ensino formal, a uma progressiva erradicação do analfabetismo clássico, à tentativa de generalizar o

    acesso à leitura e à reflexão sobre o conceito de biblioteca e suas missões nos novos tempos, que se

    multiplicam os estudos, inquéritos e análises sobre a leitura e que, mais ou menos em uníssono, se

    aponta para uma crise do livro, da edição e da leitura. Essa crise afectaria hoje uma grande variedade

    de competências, de atitudes e de representações face à leitura, traduzir-se-ia em práticas cada vez

    menos consolidadas e hábitos de familiaridade com o escrito cada vez mais escassos.».

    Os dispositivos discursivos são calibrados de modo a perpetuarem uma perspectiva

    cristalizada da realidade: a eterna crise da leitura. Para fundamentar o fenómeno da não-

    leitura, este discurso sobre a leitura alinhava um conjunto de causas: baixo nível educacio-

    nal da população, deficiência do sistema de ensino, falta de hábitos culturais, concorrência

    da televisão e da internet, preço elevado dos livros, encerramento de editoras e de livrarias,

    etc. Alerta também para as consequências nefastas de um novo fenómeno directamente

    associado à não-leitura (analfabetismo funcional, iletrismo ou iliteracia): atrasos no desen-

    volvimento económico e social do país, limitações ao desenvolvimento pessoal dos indiví-

    duos, restrições ao pleno exercício da cidadania, etc. (Furtado, 2000: 187):

    «Ainda mais, assistiu-se a uma súbita tomada de consciência de um «novo» fenómeno, com implica-

    ções evidentes na dificuldade que percentagens significativas da população encontram em dominar as

    competências da leitura, escrita e cálculo, apesar da frequência, na grande maioria dos casos, de, pelo

    menos, a escolaridade mínima obrigatória. Essa realidade, designada por «analfabetismo funcional»,

    «iletrismo» ou «iliteracia» (realidade e termos que mais adiante analisaremos), viria pôr em causa,

    segundo Jean-Marie Besse, a ideia, então corrente nas sociedades pós-industriais, segundo a qual «a

    alfabetização generalizada e a escolarização tinham favorecido a emergência de uma referência cultural

    comum à maioria da população, obrigando a uma interrogação sobre a homogeneidade das práticas

    culturais e, particularmente, no que nelas tem a ver com a cultura escrita.».

    Todavia, podemos questionarmo-nos sobre se existe verdadeiramente uma crise da

    leitura, as suas causas e sobre as suas implicações (Basanta e Hernández, 2002):

    «Hablar de la crisis de la lectura en medios profesionales resulta desde hace tiempo un tópico con

    demasiados lugares comunes. Si convenimos que la lectura está en crisis, vamos concretar el alcance

    del término a su significado original de mutación, de cambio. Y vamos a partir de que hablar de una

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    31/138

      31

    población lectora es, incluso en países como España, un fenómeno recientísimo. No puede olvidarse, al

    establecer y analizar los índices de lectura, que la escolarización universal de la población y la erradica-

    ción del analfabetismo se alcanzan en países como Inglaterra a finales del siglo XIX, en España en los

    años setenta del pasado siglo, y en muchos países del planeta son todavía una esperanza del XXI. Sin

    una alfabetización generalizada es difícil pensar en una sociedad que mantenga una relación estable y

    fluida con el libro y la lectura.

    Cuando hablamos, alarmados, de la reducción o la trivialidad de las prácticas lectoras y nos parapeta-

    mos en defensa de la lectura como un valor en peligro, puede ser que tan solo estemos desviando la

    mirada del núcleo de un cambio en las prácticas de lectura, que conocen nuevas formas, nuevos espa-

    cios, nuevas funcionalidades y nuevos sujetos.».

    Resumindo, o discurso sobre a leitura que é dominante serve-se também da não-

    leitura como justificativo para pedir a intervenção directa do Estado através dos seus múlti-

    plos dispositivos (regulamentar o mercado editorial; apropriar os meios de comunicação

    social; reajustar o sistema de ensino; lançar campanhas, programas e planos de leitura). Odiscurso sobre a leitura que é dominante é pois veiculado institucionalmente (pelo Estado,

    pela Escola, pela Academia, etc.) e sanciona uma visão contaminada ideologicamente (Fur-

    tado, 2000: 225):

    «Referia-se, no início deste capítulo que, neste século XX, se tem apontado recorrentemente, para além

    de uma crise do livro e da edição, para uma crise da leitura. Multiplicam-se, cada vez com maior regula-

    ridade, os estudos, inquéritos e análises sobre a situação da leitura e, como escreve Martine Poulain,

    lastima-se a diminuição dos hábitos de leitura, deplora-se o desinteresse dos jovens pela leitura, prediz-

    se o fim do livro, alerta-se para os “analfabetos do audio-visual” e desespera-se perante o fenómeno doiletrismo nos países desenvolvidos. Mas “serão novos estes receios? Serão novos estes discursos?

    Não tanto como algumas Cassandras gostariam de fazer crer”.».

    2.2. Os estudos desmentem o discurso sobre a leitura dominante

    No discurso sobre a leitura que é dominante prevalece uma visão de senso comum

    que, apesar de desmentida pelos indicadores estatísticos e pelas conclusões dos estudos

    sociológicos, persiste em ancorar-se nas ideias de não-leitura e de crise da leitura (Furtado,

    2000: 199):

    «Perante esta descrição algo cândida, e que nalguns passos se afasta completamente do que são as

    posições gerais sobre as ameaças ao livro e à leitura, e refiro-me designadamente às provocadas pela

    concorrência na ocupação dos tempos livres pelos novos meios de comunicação de massa, a conclusão

    de Poulain é lapidar: “os sociólogos, ao longo do século, vão levar a cabo pacientemente estudos para

    chegar a conclusões comparáveis e a maior parte das vezes opostas ao “senso comum” ou às vulgatas

    de certos editores e de certos intelectuais. A leitura não lhes parece nem ameaçada nem em vias de

    desaparecimento, as evoluções dos géneros de produção, dos modos de difusão, dos gostos e das prá-ticas não apresentam sintomas de declínio.».

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    32/138

      32

      Na verdade, os estudos (nomeadamente os da sociologia da leitura) têm identificado

    padrões recorrentes que pouco variam temporalmente e geograficamente. Estes resultados

    remetem para uma maior complexidade das inserções sociais das práticas de leitura, que

    variam em função da idade, do nível de escolaridade, do sexo, etc. Ou seja, não é possível

    afirmar cabalmente «Os portugueses não lêem!» sem especificar de que portugueses seestá a falar (idade, sexo, profissão, habilitações, etc.) e de que tipo de leitura se trata (jor-

    nais, livros, legendas de televisão, relatórios, etc.). Contextualizar as práticas sociais da lei-

    tura é uma das formas de desconstruir o discurso sobre a leitura que é dominante (Furtado,

    2000: 199):

    «Quando se cruzam estes dados com as variáveis socioprofissionais habituais, manifestam-se certas

    constâncias que ainda hoje nos são familiares: quanto maior o grau de educação formal maior o hábito

    de leitura; quanto menor o rendimento maior a leitura exclusiva de jornais e a não leitura; o número de

    leitores de livros cresce significativamente em função do aglomerado urbano; uma taxa de leitores delivros (eventualmente associados à leitura de outros concorrentes impressos) mais forte nas profissões

    liberais e quadros médios; é nas idades mais jovens que se encontram com maior frequência leitores de

    livros; a leitura de livros denota uma relação mais forte com o impresso: por um lado, o leitor de livros lê

    mais a imprensa e, por outro lado, pratica outras formas de “lazer”; por fim, compra-se mais do que se

    lê. Poulain chama ao grosso destas conclusões a “vulgata sociológica”, tal a persistência com os resul-

    tados semelhantes nos virão a acompanhar até hoje.».

    Muitas das vezes, quem faz o exercício de desconstrução desse discurso, utiliza os

    indicadores estatísticos como principais ferramentas: tiragens elevadas de livros (best-

    sellers), aumento dos hábitos de leitura, aumento dos níveis de escolaridade da população,

    expansão da rede de bibliotecas públicas e bibliotecas escolares, número de visitantes de

    livrarias e de feiras do livro, etc. Citando o artigo (ALB, 1999):

    «Basta examinar alguns números para ver a mesma realidade de outra maneira: dados oferecidos pela

    Câmara Brasileira do Livro no Boletim da Bienal 98, nº 19, informam que um milhão e quatrocentas mil

    pessoas visitaram a 15ª Bienal Internacional do Livro em São Paulo.

    Outros números, tomados mais aleatoriamente da imprensa ou das próprias capas de livros, também

    impressionam: exemplos de O Xangô de Baker Street. de Jô Soares, traziam, em junho de 1998, tarja

    anunciando 4 milhões de livros já vendidos no Brasil. Na capa da 4ª edição, de 1996, do Manual do Esti-

    lo e Redação de O Estado de São Paulo destacava-se que haviam sido vendidos mais de 500.000 mil

    exemplares. Segundo a revista Veja de 15 de abril de 98, os oito livros publicados por Paulo Coelho

    foram comprados por 7 milhões de brasileiros; a mesma revista, em sua edição de 13 de maio de 98,

    noticiava que O Mistério do Cinco Estrelas, de Marcos Rey, vendeu 1,1 milhão de exemplares desde

    1980. Pesquisa desenvolvida no interior do projeto Memória de Leitura (IEL – UNICAMP) registra que

    em 1996, lançavam-se, mensalmente, 35 títulos de séries como Sabrina, Bianca, Júlia, Momentos ínti-

    mos.». 

    Todavia, o discurso sobre a leitura que é dominante contrapõe, emitindo um juízo de

    valor sobre as leituras que são retratadas nos números: não interessa a quantidade da leitu-

    ra (e dos livros) mas sim a qualidade da leitura (e dos livros). As leituras da maioria da popu-

     

  • 8/19/2019 TESE_-_Versão_Final.pdf

    33/138

      33

    lação são leituras fora do cânone literário, logo, de qualidade e de gosto duvidoso. Por isso,

    apesar de se poder referir aumentos quantitativos nas práticas da leitura eles correspondem

    a decréscimos qualitativos. Existe claramente um posicionamento ideológico: visitantes de

    feiras do livro não é o mesmo que leitores de livros; compradores de livros não é o mesmo

    que leitores de livros; leitores de jornais e revistas não é o mesmo que leitores de livros; lei-tores de best-sellers não é o mesmo que leitores de clássicos; pequenos leitores não é o

    mesmo que grandes leitores.

    Assim sendo, em que terreno se enraíza o discurso sobre a leitura que é dominante?

    Como se pode, apesar dos indicadores estatísticos e dos estudos sociológicos, sustentar a

    ideia de não-leitura?

    2.3. O estatuto das leituras e dos leitores assenta em juízos de valor

    A resposta às duas questões anteriormente enunciadas liga-se aos diferentes estatu-

    tos que se atribuem às leituras e aos leitores, que, por sua vez, são contrapostas segundo

     juízos de valor: boas leituras versus más leituras; bons livros versus maus livros; bons leito-

    res versus maus leitores. Voltemos ao artigo (ALB, 1999):

    «De onde vem, então, a idéia de que a gente não lê, ou não gosta de ler? Para nós, há um equívoco no

    modo de como se coloca a questão. O debate sobre leitura tem se centrado em torno de um certo tipode leitura e de leitor, o qual traria benefícios de toda ordem para as pessoas e para o país. Sem expli-

    car de que leitura se fala e sem apoio de estudos objetivos sobre as práticas sociais de leitura, constrói-

    se um discurso que, ignorando os modos de inserção dos sujeitos nas formas de cultura, estabelece em

    torno da questão da leitura juízos do tipo “bom” ou “mau”. Em outras palavras, torna-se ler como verbo

    intransitivo, associando-se a esta representação valores sempre positivos, como “Ler é bom”, “ler torna

    os sujeitos críticos”, “ler faz com que se escreva melhor”.».

    As leituras efectivamente praticadas pela maioria dos leitores são exercidas fora do

    cânone (escolar, académico, literário), como tal não só não são legitimadas pelo discurso

    sobre leitura dominante como são apontadas como exemplos cumulativos de uma degene-

    rescência social e cultural. A leitura exercida deste modo é uma não-leitura, o que a torna

    culturalmente desprezável e discursivamente marginalizável; paradoxalmente, o não exercí-

    cio da leitura encerra em si mesmo uma possibilidade de redenção, que se prenuncia numa

    visão salvífica (combate ao iletrismo, conversão à leitura, promoção da leitura, etc.). Volte-

    mos ao artigo (ALB, 1999):

    «Entretanto, tais virtudes só são garantidas àqueles que lêem os livros certos, os livros positivamente

    avaliados pela escola, pela academia, por uma certa tradição literária, ainda que em nenh