TÉCNICAS DE LEITURA E ESCRITA BRAILLE Módulo 4 Acentuação e Pontuação.
Tese Sobre Leitura e Pontuação
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Dedico este trabalho:
Aos estudantes de Letras da FURG, desejando que, ao exercerem o direito da palavra, tornem-se sujeitos de seus discursos e autores de suas prprias histrias.
A meus filhos, Slvia e Rafael, razo maior de minha vida e de todo meu trabalho.
memria de minha me, que, partindo, deixou em minha vida um silncio impossvel de ser preenchido, mas carregado de sentidos.
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AGRADECIMENTOS A realizao de um curso de Doutorado implica o envolvimento, a dedicao e a ajuda de
muitas pessoas. Meus agradecimentos, portanto, no visam a cumprir apenas uma obrigao
formal, mas so a expresso mais sincera de meus sentimentos ao final deste trabalho.
Agradeo ento, em primeiro lugar, e sobretudo, professora e amiga Freda Indursky.
Reconheo que orientar um trabalho dessa natureza exige, de quem assume a tarefa, muito mais do
que profundo conhecimento terico: exige dedicao para enfrentar as longas horas de leitura crtica
do trabalho; exige discernimento para julgar o que relevante ou no, apropriado ou no; exige
firmeza para exigir mudanas; exige convico para manter, ou alterar, o rumo da pesquisa em
determinados momentos; exige pacincia para discutir as dvidas; exige humildade para admitir a
teimosa convico do orientando; exige tolerncia para lidar com os momentos de ansiedade e
impacincia que, inevitavelmente, surgem durante um trabalho to longo; exige sensibilidade para,
em alguns momentos, dizer: precisas descansar um pouco, te cuida. Da Freda, recebi tudo isso.
E, por isso, sou profundamente grata.
Aos meus filhos, agradeo por aceitarem meu extremo envolvimento com o trabalho, por
compreenderem minha ausncia, por ficarem felizes com minha realizao. Slvia, agradeo por
ter dividido comigo o dia-a-dia destes anos de estudo, me oferecendo ajuda, me estimulando, me
dando colo, mas, sobretudo, abrindo mo de minha companhia, silenciosamente, em momentos que,
para ns, so muito especiais: passear sem motivo especial, escolher uma roupa nova, caminhar,
fazer compras de Natal... Ao Rafael, agradeo pelo constante carinho, pelo amor revelado nos
telefonemas dirios, e, especialmente, pela sensibilidade demonstrada quando, ao me ver totalmente
envolvida e exausta pelo trabalho naquele dia de meu aniversrio, me deu, num fim de tarde, o
mais lindo presente que eu poderia ter recebido: sua companhia em um longo e tranqilo banho de
mar.
Agradeo ao Richard, que, mais do que marido, tem sido, durante toda a minha vida, um
grande companheiro e amigo, que aceita minhas escolhas, toma para si os meus ideais, faz suas as
minhas conquistas, cuida de mim, faz com que eu me sinta especial. A ele eu pedi, muitas vezes
sem palavras, durante os anos de realizao desse curso, que entendesse meu cansao, que
esquecesse aquelas frias to desejadas, que deixasse aquela viagem para depois (mas que
compreendesse quando eu me ausentava ou viajava para um congresso), que me ouvisse falar sobre
a tese como se ele tudo soubesse sobre o assunto e como se ela fosse to importante para ele como
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3 era para mim (Pcheux tornou-se, tambm para ele, uma assdua presena em nossa casa). A ele,
meu amor e minha gratido.
Ao meu pai, agradeo pela vida, pela formao recebida e pelo apoio constante.
Agradeo tambm a todos os meus familiares que, prximos ou distantes de mim,
acompanharam a realizao deste trabalho e me deram sempre seu incentivo.
Aos amigos que, ao se manterem presentes e ao dividirem comigo os momentos mais felizes
e os mais angustiantes desses anos, me ajudaram a carregar a carga de compromisso e de
recolhimento que um curso de Doutorado representa, meu sincero reconhecimento.
Ao Gustavo e Carolina, agradeo a torcida permanente.
Fundao Universidade Federal do Rio Grande e aos colegas do Departamento de Letras e
Artes, meu agradecimento pelo afastamento concedido.
Ao CNPQ e UFRGS, agradeo a bolsa de estudo que viabilizou a realizao desta pesquisa.
Finalmente, agradeo a Deus, que me deu foras para chegar at o fim deste trabalho.
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4 RESUMO
Esta tese constitui-se em um estudo sobre a leitura.
Essa noo investigada atravs de textos reescritos aos quais denominamos,
genericamente, de reescritas e de dois sinais de pontuao reticncias e interrogao.
Aos textos que apresentam esses sinais de pontuao designamos de textos sinalizados.
Tais textos apresentam tambm uma outra caracterstica: so marcados pelo humor. Tal opo nos
levou a examinar outro tipo de texto, sem esses sinais de pontuao, ao qual denominamos de texto
no-sinalizado. Esse texto no apresenta tambm a marca do humor.
Nossa inteno verificar, nas reescritas, se o processo da leitura dos textos sinalizados
diferente do processo da leitura do texto no-sinalizado.
A primeira parte do estudo estabelece o referencial terico que fundamenta a anlise.
Nesta parte, evidenciamos tanto aspectos referentes epistemologia da Anlise do Discurso quanto
questes referentes leitura e sua relao com outros pontos relevantes para o desenvolvimento
da pesquisa: repetio, interpretao, heterogeneidade, silncio e autoria. Abordamos ainda aspectos
tericos sobre a pontuao e, mais especificamente, sobre os sinais de pontuao em estudo:
reticncias e interrogao.
A segunda parte apresenta os procedimentos metodolgicos que sustentam a
subseqente anlise do corpus discursivo, bem como o efetivo funcionamento do processo
discursivo da leitura atravs das reescritas. Tal anlise possibilitou a constatao de trs diferentes
processos de leitura, aos quais denominamos de releitura, reescritura e escritura, processos que
correspondem, respectivamente, manuteno, aos deslizamentos e s rupturas em relao aos
sentidos produzidos nos textos que, apenas por um efeito metodolgico, desencadeiam o processo
da leitura e das reescritas. A constatao desses trs processos de leitura nos permitiu tambm
reconhecer a existncia de diferentes formas de preenchimentos das lacunas de significao e
silncio representadas pelas reticncias e pela interrogao. Isso nos levou ainda a admitir a
possibilidade de distintos graus e tipos de autoria, os quais variam em funo do processo de
identificao que o leitor estabelece com a formao discursiva e com a posio-sujeito assumidas
pelo sujeito-autor.
A concluso procura entrelaar as noes desenvolvidas, sintetizando nossos achados.
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RSUM
Cette thse porte sur la notion de lecture. Il sagit dune tude ralise sur la notion de lecture
partir de textes recrits, appels ici recritures, et de deux signes de ponctuation: les points de
suspension et le points dinterrogation.
Nous avons divis les textes en deux catgories: celle des textes signs et celle des textes non-
signs. Les textes signs contiennent les signes de ponctuation mentionns. Ils prsentent galement
une autre caractristique: ils sont marqus par lhumour. Les textes non-signs sont les textes o
napparaissent aucun des deux signes de ponctuation tudis, ni la marque de lhumour. Lobjectif
de cette recherche est de vrifier, dans les recritures, si le processus de lecture des textes signs est
diffrent du processus de lecture des textes non-signs.
La premire partie de ltude tablit le rfrentiel thorique qui pose les fondements de notre
analyse. Dans cette partie nous mettons en vidence les aspects qui ont trait lpistmologie de
lAnalyse du Discours, ainsi que les questions relatives la lecture et son rapport avec dautres
points importants pour le dveloppement de notre recherche: rptition, interprtation,
htrognit, silence et qualit dauteur. Nous abordons aussi certains aspects thoriques de la
ponctuation en nous attardant, plus spcifiqument, sur les points de suspension et dinterrogation.
La deuxime partie de la thse prsente les procds mthodologiques qui soutiennent
lanalyse du corpus discursif, ainsi que le fonctionnement du processus discursif de lecture travers
les recritures. Une telle analyse a permis de mettre en vidence trois procds diffrents de lecture
que nous nommons: relecture, recriture et criture. Ces procds correspondent, respectivement,
au mantien, aux glissements et aux ruptures par rapport aux sens produits dans les textes, lesquels,
par un simples effet mthodologique, dclanchent le processus de lecture et des recritures.
Lidentification de ces trois procds de lecture nous a galement permis de reconnatre lxistence
de diffrentes formes de remplissage des lacunes de signification et de silence, reprsentes par les
points de suspension et par les points dinterrogation. Ceci nous a encore emmene reconnatre la
possibilit de diffrents dgrs et types de qualit dauteur, lesquels varient en fonction du procd
didentification que le lecteur tablit avec la formation discursive et avec la position-sujet prises en
charge par le sujet-auteur.
La conclusion fait le point sur les notions dveloppes et synthtise lessentiel de nos
analyses.
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INTRODUO
Este trabalho constitui-se em um estudo sobre a leitura e tem em sua origem um ponto de
vista que considera que a leitura um processo de produo de sentidos que envolve vrios outros
elementos alm de um autor, um texto e um leitor, o que significa dizer que, no processo discursivo
da leitura, o leitor interage no apenas com um texto e com um autor, mas com tudo aquilo que, de
fato, o constitui: a relao com os outros textos (existentes, possveis ou imaginrios), o contexto
(histrico, social, poltico e econmico) e o interdiscurso (a memria do dizer).
Diramos ento que o que nos move, inicialmente, o desejo de poder verificar, de alguma
forma, a concretizao desse processo to complexo.
isso que nos leva a optar pelo trabalho com reescritas, denominao dada, nesta pesquisa,
queles textos que so produzidos por sujeitos-leitores a partir de um texto dado. As reescritas,
portanto, constituem-se em um redizer um outro texto, o qual, por sua vez, foi produzido por um
determinado sujeito-autor.
Atravs das reescritas, acreditamos ser possvel verificar os sujeitos-leitores agindo na prtica
da leitura, o que significa levar em conta que tais sujeitos, ao reescreverem o texto, estabelecem
uma relao com aquele texto (mas no somente com ele), e com aquele autor que o escreveu (mas
no somente com ele).
Em outras palavras: implica reconhecer que os sujeitos-leitores, ao ler e reescrever um
texto, esto submetidos a certas condies que no so exatamente as mesmas a partir das quais foi
produzido aquele texto.
A leitura, nesta medida, passa a ser produo de sentidos, e no uma apreenso do que l j
estava. E a reescrita, a partir da, deixa de ser o mesmo texto repetido e passa a ser outro texto.
O que nos interessa ento verificar se e de que modo a leitura, manifesta pela reescrita, faz
circular os sentidos. Quer dizer: esperamos observar, pelas reescritas, a relao do leitor com todos
os elementos que compem o processo da leitura: autor, texto, outros textos, contexto, interdiscurso.
Isto nos leva, conseqentemente, explorao de noes tericas como a de repetio e de
interpretao.
As reescritas que esto na base deste trabalho foram produzidas por estudantes universitrios
do Curso de Letras da Fundao Universidade Federal do Rio Grande, instituio na qual atuo como
docente, desenvolvendo atividades de ensino ligadas leitura e produo de textos. A inteno,
ento, perceber como esses estudantes lem e como eles manifestam sua leitura nas reescritas.
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Nosso interesse, ainda, verificar que relaes se estabelecem em todo esse processo e em
que medida as reescritas podem produzir modificaes de sentido em relao aos textos que lhes
do origem e aos quais vamos denominar de textos-origem1.
Optamos ainda por examinar essas questes, nessa pesquisa, pelo vis da pontuao, e, mais
especificamente, atravs de dois sinais especficos reticncias e interrogao aos quais
denominamos, em nosso corpus, de sinais discursivos.
Tratar os sinais de pontuao como sinais discursivos significa imaginar que o uso das
reticncias ou da interrogao instaura no discurso uma forma de silncio que no implica a falta do
que dizer, a ausncia pura e simples ou o vazio, mas que, pelo contrrio, significa.
Tais sinais de pontuao, na nossa perspectiva, colocam um sentido que no fechado pelo
autor, que no evidente, ou que, pelo menos, no expresso, e que, por isso, sinalizam, para o
leitor, um lugar propcio a movimentos de interpretao, a gestos de leitura. Dito de outra forma: as
reticncias e a interrogao so sinais discursivos que, pelo no-verbal e pelo silncio, pela ausncia
de palavras, significam.
A atribuio de sentidos s reticncias e interrogao, neste caso, pode variar de acordo com
o sujeito-leitor, que socialmente determinado e que tem suas prprias histrias de leitura. Desta
forma, imaginamos que possam ser tambm vrias as leituras possveis para um mesmo texto
sinalizado pela presena das reticncias ou da interrogao.
Para o estudo da leitura atravs desses sinais discursivos, resolvemos ainda acrescentar um
outro elemento, de natureza diferente: o humor.
Mas por que estudar o processo discursivo da leitura em textos que apresentam reticncias ou
interrogao em textos de humor, e no em outros tipos de textos?
Partimos ento da concepo de que o humor estabelece uma espcie de jogo com a realidade,
expondo, de maneira ldica, as fraquezas e as misrias humanas. Um texto de humor, nesta
perspectiva, sempre significa mais do que diz. Quer dizer: pelo texto de humor passam sentidos que
no so, necessariamente, expressos com as palavras presentes no texto.
Sabemos, no entanto, que qualquer texto permite, quando submetido ao processo da leitura, a
produo de sentidos que no esto ali, expressos.
No nosso ponto de vista, porm, o texto de humor, ao se constituir em uma forma no-sria
de tratar a realidade, parece avisar a seus leitores mais do que o texto srio que ali h algo
1 Quando falamos em texto-origem, estamos apenas adotando uma designao metodolgica para o texto que, tendo sido escolhido por ns, foi utilizado como de partida para as produes dos outros textos as reescrituras pelos estudantes. Sabemos, no entanto, que essa origem uma iluso, pois, em qualquer discurso, sempre circulam outros discursos, outras vozes, outros textos. A origem, portanto, apenas um efeito.
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8 mais significando, parece lembrar que preciso desconfiar das palavras, e parece convidar os
leitores a perceber aquilo que no chegou a ser dito.
Para ns, mais ou menos isso que fazem as reticncias e o ponto de interrogao: mostram
que nem tudo foi dito e convidam o leitor a preencher aquele espao, dizendo o que no foi dito.
Assim, parece fcil explicar nossa escolha: se o humor estabelece um jogo com a
imprevisibilidade como acreditamos que as reticncias e a interrogao tambm estabeleam se
ele cria um processo desmistificador que desvela o que esconde como nos parece que a leitura
das reticncias e da interrogao possa fazer se ele abre espao para a introduo de sentidos
diferentes como imaginamos que as reticncias e a interrogao tambm faam ento nos parece
interessante examinar a combinao desses elementos: sinais discursivos de pontuao reticncias
e interrogao e humor.
Ressaltamos, no entanto, que estamos dando um tratamento diferenciado a esses sinais de
pontuao e ao humor. Assim, quando dizemos que as reticncias e a interrogao so sinais
discursivos, estamos estabelecendo que, nessa pesquisa, os sinais discursivos so marcas visveis,
materializadas graficamente sob a forma de pontuao, e que o que nos interessa verificar o
funcionamento discursivo dessas marcas.
Como podemos perceber, o humor no se enquadra nessa tipologia. Portanto, no est sendo
considerado como um sinal discursivo.
Desse modo, nosso trabalho inicialmente constitui-se, de uma parte, em um estudo da leitura
materializada sob a forma de reescritas de um texto que rene o sinal discursivo das reticncias e
o humor e, de outra parte, da leitura materializada sob a forma de reescritas de um outro texto
que rene o sinal discursivo da interrogao e o humor. Aos textos com tais caractersticas estamos
denominando de textos sinalizados.
A partir de tal opo, uma outra necessidade se faz necessria: investigar o processo
discursivo da leitura em um texto que no faa uso de tais sinais discursivos reticncias ou
interrogao nem do humor. E isto nos leva ao texto que estamos denominando de no-
sinalizado.
Salientamos, porm, que texto no-sinalizado, neste estudo, apenas uma denominao
metodolgica que indica que tal texto no apresenta nem os sinais de pontuao que nos propomos
a examinar nem o humor.
Com isso, queremos dizer que no ignoramos o fato de que, a rigor, todo texto produz lugares
propcios interpretao, ou seja, todo texto, tal como a Anlise do Discurso o entende, portador
de marcas lingsticas. Isto significa dizer que marcas lingsticas percorrem todo e qualquer texto,
que todo texto possui uma materialidade lingstica e inevitvel que desta materialidade surjam
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9 marcas atravs das quais os leitores penetram no discurso e no interdiscurso e, a partir da,
produzem sua leitura.
Tais marcas, portanto, atestam a relao entre sujeito e linguagem e constituem as pistas do
discurso, que, conforme nos lembra Orlandi (1993a: 54) no so detectveis mecnica e
empiricamente, no so encontradas diretamente.
por esse motivo que, ao examinar textos que apresentam reticncias ou interrogao,
preferimos falar em sinais discursivos, ao invs de marcas discursivas. Isto nos d maior liberdade
para dizer que esses sinais discursivos, por serem sinais grficos, de forma diferente do que
acontece com as marcas lingsticas, so detectveis materialmente, so visveis. Quer dizer: eles
sinalizam, materializam, para o leitor, um espao possvel para a interpretao, para a sua
interferncia. Ao passo que, em outro tipo de texto, que no faa uso desses sinais, os espaos para
interpretao so marcados, mas no so encontrados diretamente pelo leitor. Na verdade,
acreditamos que somente o trabalho discursivo da leitura e da anlise possa revelar essas
marcas.
A partir dessas posies, nossa pesquisa se desenvolve sob a linha terica da Anlise do
Discurso Francesa (AD), pois julgamos que essa perspectiva nos oferece possibilidades de examinar
os textos em relao sua exterioridade, considerando-se a: o contexto histrico-social em que so
produzidos os textos e realizada a leitura e as suas reescritas; os interlocutores em relao aos
lugares sociais que ocupam; as relaes entre os textos intertextuais e entre os discursos
interdiscursivas.
O texto, desse modo, para ns, a materialidade lingstica do discurso, e esse discurso que
nos interessa. Da no ser suficiente para ns uma anlise que se prenda ao meramente lingstico
ou ao meramente ideolgico, pois, para a AD, todos esses elementos conjugam-se na produo dos
efeitos de sentidos. Sentidos que podem variar de acordo com os leitores e os lugares em que eles se
inscrevem, e com as condies em que so produzidas as leituras.
Ao realizar este estudo, compartilhamos da concepo adotada por Orlandi (1993b) de que a
linguagem implica sempre silncio, compreendido este como o no-dito da linguagem, tendo porm
este no-dito uma significao prpria. Assim, os sentidos no so evidentes e no se fecham, pois
os sentidos jogam com o silncio, com aquilo que no dito.
Deste modo, acreditamos que a interpretao acontece justamente porque o espao simblico
representado pelos textos sinalizados pelas reticncias (conjugadas ao humor) ou pela interrogao
(conjugada ao humor) sinaliza esse no-dito, que representa uma ausncia, uma incompletude da
linguagem, evidenciando que o texto no acabado, pois pressupe o trabalho de um leitor, a
relao com o autor, com outros leitores, com outros textos, etc.
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Pensamos ento que o silncio pode surgir pelas prprias palavras (pois ao dizer alguma
coisa, temos a possibilidade de deixar de dizer outra) ou pela ausncia, pela omisso das palavras
(pois, ao deixar de dizer, dizemos).
Finalmente, acreditamos que a produo de sentido indissocivel da relao de parfrase, ou
seja, indissocivel da repetio.
Assim, pretendemos investigar os possveis gestos de interpretao que se realizam quando
um texto passa a ser reconstrudo por seus leitores.
Com este intuito, objetivo maior desta pesquisa focar sua ateno sobre as reescritas de
determinados textos, procurando descobrir, numa relao de comparao entre aquele que
denominamos metodologicamente de texto-origem (TO) e suas reescritas, como e se so
preenchidos pelo sujeito-leitor os silncios criados pelo sujeito- autor.
O que motiva este estudo so, ento, inicialmente, os seguintes questionamentos:
a) como o leitor revela sua interpretao de um dado texto, ao escrev-lo novamente?
b) como o sujeito-leitor interpreta os silncios criados pelo sujeito-autor de um texto?
c) que marcas, no discurso interpretado, revelam o discurso inicial?
d) possvel que as reticncias e/ou a interrogao sejam pontos de deslocamento de sentido
no discurso do sujeito que reescreve um dado texto?
e) existem diferenas entre o processo discursivo da leitura de um texto sinalizado pelas
reticncias ou pela interrogao, em conjugao com o humor, e o processo discursivo da leitura de
um texto no-sinalizado e sem a presena do humor?
a partir destes questionamentos e reflexes, portanto, que o presente trabalho tem seu ponto
de origem e seu encaminhamento.
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PRIMEIRA PARTE FUNDAMENTOS TERICOS
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1. DELIMITANDO O CAMPO TERICO
Neste primeiro captulo, exploramos teoricamente as noes que fundamentam esta pesquisa e
que fazem parte do quadro de referncia da Anlise do Discurso.
Deste modo, examinamos inicialmente a prpria noo de Anlise do Discurso, procurando
situar seus limites e seus avanos em relao a outras perspectivas tericas.
1.1 EPISTEMOLOGIA DA ANLISE DO DISCURSO
Quando o assunto linguagem, conforme nos lembra Orlandi (1999:15), os estudos podem
abrir-se em direes muito variadas. Podemos concentrar nossa ateno sobre a lngua enquanto
sistema de signos ou enquanto sistema de regras formais: isso que faz a Lingstica; podemos
conceber a lngua como normas de bem dizer: isso que faz a Gramtica Normativa; podemos
considerar que h muitas maneiras de significar e nos interessarmos pela linguagem de uma maneira
particular: isso que faz, por exemplo, a Anlise do Discurso (AD).
Assim, definir a Anlise do Discurso parece simples, pois, como lembra a autora, a Anlise de
Discurso, como o prprio nome indica, no trata da lngua e no trata da gramtica embora todas
essas coisas lhe interessem mas trata do discurso.
Dizer que a Anlise do Discurso trata do discurso, no entanto, na verdade, no to simples,
uma vez que o termo discurso tem sido abordado sob diversas perspectivas tericas que se
denominam teoria do discurso e, em cada uma delas, significa diferentemente.
Podemos dizer, entretanto, que h, grosso modo, duas maneiras de pensar a teoria do discurso:
como simples extenso da Lingstica o que corresponde ao espao intelectual americano ou
como sintoma de uma crise interna da Lingstica o que corresponde ao espao intelectual
europeu.
De acordo com a perspectiva terica americana, frase e texto so elementos isomrficos, o
que leva a considerar a frase como um discurso curto e o discurso como uma frase complexa. A
passagem da frase ao texto, deste modo, varia apenas em graus de complexidade. Nesta concepo,
no h uma preocupao com a instituio do sentido, mas com o modo pelo qual se organizam os
elementos que o constituem. Assim, a relao entre o lingstico e o discursivo acontece por
extenso.
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A questo do sentido, segundo essa viso, tratada via pragmtica segundo a qual a
linguagem em uso deve ser estudada em termos de atos de fala e via sociolingstica que se
preocupa com o uso atual da linguagem.
Conforme ressalta Orlandi (1986:108), embora essas formas de encarar a linguagem
demonstrem uma certa mudana em relao grande maioria dos estudos da gramtica, no
chegam, entretanto, a produzir um rompimento, mas apenas acrescentam um outro componente
gramtica. O discurso o que se acrescenta, o que vem a mais. o secundrio. No h ruptura,
porm, porque o objeto de estudo continua sendo o fenmeno lingstico e no o sentido.
Com a escola europia de anlise de discurso diferente. Nesta perspectiva, o domnio da
semntica no pode ser concebido apenas como fazendo parte da Lingstica enquanto estudo
cientfico da lngua. Quer dizer: h, quanto ao sentido, uma relao necessria entre o dizer e as
condies de produo desse dizer.
A escola europia considera como fundamental a relao entre o discurso e a exterioridade, e
nesta relao que reside a possibilidade de se encontrarem regularidades no domnio discursivo.
da escola europia que faz parte a escola francesa de Anlise do Discurso (AD), perspectiva
terica sobre a qual se constri este estudo.
A Anlise do Discurso de linha francesa surge nos anos 60, interessada em trazer para o
mbito dos estudos lingsticos aquilo que havia sido excludo por Saussure, quando, na publicao,
em 1916, do Curso de Lingstica Geral, ao estabelecer a dicotomia lngua/fala, o autor considerou
a fala como individual, varivel e no-sistemtica e, portanto, sem interesse para a Lingstica.
A disciplina nasce sob uma conjuntura dominada pelo estruturalismo e tem no
distribucionalismo de Harris o seu ponto de partida. Com seu mtodo, Harris olha para o texto como
uma soma de frases, ou seja, como uma frase longa. Assim, estende o mtodo de anlise de
unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto).
Podemos dizer que esse trabalho uma inspirao para o surgimento da AD, porque mostra a
possibilidade de ultrapassar as anlises que se limitam frase e porque o lugar de onde procuram
se distanciar criticamente os analistas de discurso europeus, atravs da discusso da dicotomia
lngua/fala, da elaborao do conceito de enunciao e de discurso e da reflexo sobre os processos
de significao.
Antes da Anlise do Discurso, existiram outros estudos que tinham como interesse a lngua
funcionando para a produo de sentido.
Assim, temos, por exemplo, os estudos de Michel Bral, que, em 1897, publica seu Ensaio de
Semntica, obra que acaba por coloc-lo no papel de fundador da semntica. Entre as posies
defendidas por Bral podemos fazer referncia, por exemplo, ao fato de que, para ele, a linguagem
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14 se desenvolve, progride por ao do sujeito, por interveno da vontade na inteligncia. Na
concepo de Bral, o que importa so os sentidos, e a linguagem significa como instrumento da
inteligncia e interveno da vontade do homem na linguagem.
Temos tambm os formalistas russos, que, em 1915, por iniciativa do russo Roman Jakobson,
formam o Crculo Lingstico de Moscou e iniciam um estudo cientfico da lngua. Eles procuram
superar a abordagem filolgica e comeam a destacar, nos textos, uma lgica de encadeamentos
transfrsticos. Com isso, preparam o caminho para o que mais tarde vai se considerar discurso.
Mas, de todos os que precederam os estudos do discurso, citamos especialmente Bakhtin
(1992), autor que, diferentemente de Saussure, v a lngua como fruto da manifestao individual
de cada falante e valoriza a fala.
Considerar a fala conduz Bakhtin a levar em conta tambm a ideologia e a noo de signo.
Para ele, tudo que ideolgico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo.
Em outros termos: tudo que ideolgico um signo. Sem signos no existe ideologia (Bakhtin,
1992:31).
Os signos, nesta perspectiva, so objetos naturais, especficos e no existem apenas como
parte de uma realidade, mas refletem e refratam uma outra. Quer dizer: os signos podem distorcer a
realidade, ser-lhe fiel ou apreend-la de um ponto de vista especfico. O domnio ideolgico
coincide ento com o domnio dos signos, sendo eles mutuamente correspondentes. Ali onde o
signo se encontra, encontra-se tambm o ideolgico.
a partir de uma concepo como essa que Bakhtin desenvolve sua teoria sobre a
comunicao social, dizendo que a existncia do signo a materializao dessa comunicao e que
nisso que consiste a natureza de todos os signos ideolgicos.
Para o autor, o aspecto semitico e esse papel contnuo da comunicao social no aparecem
em lugar nenhum de forma mais clara e completa do que na linguagem. isso que o leva a realar o
papel da palavra como signo: A palavra o fenmeno ideolgico por excelncia. A realidade toda
da palavra absorvida por sua funo de signo (Ibidem: 36).
A partir dessa posio, Bakhtin ressalta que a palavra o material privilegiado de um tipo
especial de comunicao ideolgica: a comunicao na vida cotidiana. justamente nesse domnio
que a conversao e suas formas discursivas se situam.
Isto leva Bakhtin a afirmar que a comunicao s existe na reciprocidade do dilogo e
significa muito mais do que a simples transmisso de mensagens. Em outros termos: a comunicao
o ncleo a partir do qual Bakhtin constri a teoria do dialogismo, a qual traz para o interior dos
estudos lingsticos a questo da intersubjetividade.
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A noo de dialogismo pode ser encontrada em Bakhtin em Problemas da potica de
Dostoivski (1981)2. Afirma ento Bakhtin:
Nos romances de Dostoivski tudo se reduz ao dilogo, contraposio dialgica enquanto centro. Tudo meio, o dilogo o fim. Uma voz s nada termina e nada resolve. Duas vozes so o mnimo de vida, o mnimo de existncia. (Bakhtin,1981: 223)
Martins (1990), refletindo sobre as idias de Bakhtin a respeito da obra de Dostoivski,
afirma:
Resumindo, a estrutura do romance de Dostoivski dialgica, porque as relaes que ali se estabelecem entre os personagens so intersubjetivas, quer dizer, so relaes em que cada um constri uma compreenso sobre si mesmo e sobre o mundo, no confronto com o outro, pelo dilogo. Esse dilogo, desenvolvido exteriormente ou no interior da conscincia, concretiza-se sempre pela linguagem, na forma de enunciados que se contrapem. (Martins, 1990: 22)
A concepo de dialogismo est presente ainda em A esttica da criao verbal (1992), obra
em que Bakhtin reconhece no enunciado a unidade real da comunicao verbal e no dilogo a forma
mais simples e mais clssica de realizao dessa comunicao.
Bakhtin vai dizer ento que a fala s existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados
de um indivduo: do sujeito de um discurso-fala (Bakhtin, 1992: 293). Nesta perspectiva, o
discurso se molda sempre forma do enunciado que pertence a um sujeito falante e no pode existir
fora dessa forma. Assim, no importa quais sejam o seu volume ou o seu contedo, os enunciados
sempre possuem, segundo Bakhtin, fronteiras claramente delimitadas. Tais fronteiras so
determinadas pela alternncia dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternncia dos locutores.
Isto leva Bakhtin a considerar o acabamento do enunciado. Afirma ento o autor:
Todo enunciado desde a breve rplica (monolexemtica) at o romance ou o tratado cientfico comporta um comeo absoluto e um fim absoluto: antes de seu incio, h os enunciados dos outros, depois de seu fim, h os enunciados-respostas dos outros (ainda que seja como uma compreenso responsiva ativa muda ou como um ato-resposta baseado em determinada compreenso). O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar compreenso responsiva do outro. O enunciado no uma unidade convencional, mas uma unidade real, estritamente delimitada pela alternncia dos sujeitos falantes, e que termina por uma transferncia da palavra ao outro, por algo como um mudo dixi percebido pelo ouvinte, como sinal de que o locutor terminou. (Ibidem: 294)
2 Nesta obra Bakhtin desenvolve bastante a concepo de dilogo, ressaltando que s possvel representar o homem interior, como o entendia Dostoivski, representando a comunicao dele com um outro. Somente na comunicao, na interao do homem com o homem, revela-se o homem para os outros ou para si mesmo.
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Para Bakhtin, essa alternncia ocorre precisamente porque o locutor disse, ou escreveu, tudo o
que queria dizer num preciso momento e em condies precisas. E o acabamento necessrio para
tornar possvel uma reao ao enunciado.
Assim, para Bakhtin, o enunciado representa um elo na cadeia da comunicao verbal e suas
fronteiras determinam-se pela alternncia dos sujeitos-falantes. Afirma ento o autor:
Os enunciados no so indiferentes uns aos outros nem so auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. So precisamente esses reflexos recprocos que lhes determinam o carter. O enunciado est repleto de ecos e lembranas de outros enunciados, aos quais est vinculado no interior de uma esfera comum da comunicao verbal. O enunciado deve ser considerado antes de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supe-os conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. (Ibidem:316)
Isto nos mostra, como lembra Indursky (2000a), que, para Bakhtin, os enunciados
estabelecem um dilogo constante, mas no se trata de um dilogo que possa ser representado
formalmente, uma vez que, para Bakhtin (1992:318), a inter-relao que se estabelece entre o
discurso do outro assim inserido e o resto do discurso (pessoal) no tem analogia com as relaes
sintticas existentes dentro dos limites de um conjunto sinttico simples ou complexo.
Se, por um lado, essa concepo de enunciado distancia-se de uma simples abordagem
sinttica, por outro lado, para Bakhtin, essas inter-relaes tm analogia com as relaes existentes
entre as rplicas do dilogo. A entonao que demarca o discurso do outro ento um fenmeno de
tipo particular: a transposio da alternncia dos sujeitos falantes para o interior do enunciado. As
fronteiras dessa alternncia so tnues e especficas: a expresso do locutor se infiltra atravs
dessas fronteiras e se difunde no discurso do outro... (Ibidem: 318).
por isso que, para Bakhtin, o discurso do outro possui uma expresso dupla: a sua prpria,
ou seja, a do outro, e a do enunciado que o acolhe (Ibidem: 318).
Nesta perspectiva, o enunciado um elo na cadeia da comunicao e verbal e no pode ser
separado dos elos que o determinam, por fora e por dentro, e provocam nele reaes-respostas
imediatas e uma ressonncia dialgica (Ibidem: 320).
Bakhtin salienta, no entanto, que o enunciado est ligado no s aos elos que o precedem, mas
tambm aos que lhe sucedem na cadeia da comunicao. O enunciado, desde o incio, elabora-se em
funo de uma eventual resposta e, neste sentido, o papel dos outros muito importante.
Uma concepo como essa mostra, segundo Indursky (2000a), que a noo de antecipao, tal
como concebida pela Anlise do Discurso e formulada por Pcheux (1975), j est presente em
Bakhtin.
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Para a autora, essa dimenso do enunciado em Bakhtin nos mostra que no possvel estud-
lo a partir das relaes lingsticas do sistema da lngua, nem, tampouco, a partir do enunciado
tomado isoladamente (Indursky, 2000a: 74), pois o que interessa, realmente, para Bakhtin, so as
relaes entre o enunciado e a realidade, entre o enunciado e o locutor, e essas relaes no so da
ordem da lingstica.
Lemos ento em Bakhtin (1992:345) que a relao dialgica s possvel entre enunciados
concludos, proferidos por sujeitos falantes distintos. Assim, apesar de pressupor uma lngua, a
relao dialgica no existe no sistema da lngua.
A relao dialgica, neste sentido, , para Bakhtin, uma relao de sentido que se estabelece
entre enunciados na comunicao verbal. Dois enunciados quaisquer, justapostos no plano do
sentido, entabularo uma relao dialgica. Em outras palavras: a relao com o sentido sempre
dialgica (Ibidem: 350).
Assim, o crdito concedido palavra do outro, a acolhida palavra de autoridade, a busca do
sentido profundo, a concordncia (com suas infinitas graduaes e matizes), a estratificao de um
sentido que se sobrepe a outro, de uma voz que se sobrepe a outra, so, para Bakhtin, relaes
que no podem ser resumidas a uma relao puramente lgica. aqui que se encontram, na
verdade, posies, vozes.
Nesta medida, a palavra (e, em geral, o signo) interindividual. Lembra ento Bakhtin:
Tudo o que dito, expresso, situa-se fora da alma, fora do locutor, no lhe pertence com exclusividade. No se pode deixar a palavra para o locutor apenas. O autor (locutor) tem seus direitos imprescindveis sobre a palavra, mas tambm o ouvinte tem seus direitos, e todos aqueles cujas vozes soam na palavra tm seus direitos (no existe palavra que seja de algum). A palavra um drama com trs personagens (no um dueto, mas um trio). representado fora do autor, e no se pode introjet-lo (introjeo) no autor. (Ibidem: 350)
Esta concepo aproxima-se da perspectiva que adotamos, pois desmistifica a idia de que os
sentidos so construdos apenas pelo sujeito que fala e mostra que o sentido se produz na relao
dialgica entre locutor, ouvinte e todas as outras vozes que soam nas palavras, no discurso. Isto
coincide com nosso pensamento, quando consideramos a leitura como um processo que envolve no
apenas um autor e um leitor, mas tambm outros textos, outras vozes, outros discursos.
Martins (1990), examinando as idias de Bakhtin, resume de forma clara a posio do autor:
Para o autor, como vimos, ser comunicar, ser para outrem e, atravs dele, para si. Se nessa relao com o outro que adquirimos conscincia de ns mesmos, a intersubjetividade precede logicamente a subjetividade: no reconhecimento do outro diferente do eu, mas que o reflete, que os indivduos se constituem em sujeitos. (Martins, 1990:18)
Essa concepo coloca a linguagem como interao social e considera o outro como quem
desempenha importante papel na constituio do significado. Tal perspectiva ainda integra o ato de
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18 enunciao num contexto mais amplo, revelando as relaes entre o lingstico e o social. Em
outras palavras: tais reflexes abrem caminho para o discurso.
Examinando as relaes entre Bakhtin e a Anlise do Discurso, Indursky (2000a) afirma:
Pode-se aproximar a concepo dialgica que Bakhtin tem do discurso com a perspectiva assumida por Pcheux ao longo da construo da Teoria do Discurso, bem como de toda a produo terica sobre o discurso que se lhe seguiu e que o toma como objeto de estudo. (Indursky, 2000a: 78)
A autora ressalta, no entanto, que, na Teoria do Discurso, se concebe uma perspectiva no-
subjetiva da enunciao, em que o sujeito no o centro do discurso por ter sido descentrado pela
interpelao ideolgica que o entende desde-sempre afetado por uma formao ideolgica e
pelo fato de ser um sujeito dotado de inconsciente o que o faz ignorar que um sujeito interpelado
ideologicamente e lhe permite imaginar-se fonte nica do seu dizer.
Essas caractersticas estabelecem, lembra Indursky, uma distino fundamental entre a
concepo de sujeito que as duas teorias desenvolveram. Afirma ento a autora:
...embora Bakhtin admita que o signo ideolgico e que a linguagem social, sua teoria concebe um sujeito que no interpelado ideologicamente e consciente das escolhas que estabelece. Tal fato distingue seu sujeito do sujeito da Anlise do Discurso. (Ibidem: 78-9)
Assim, no mbito da Anlise do Discurso, o sujeito deixa de ser o centro da interlocuo, a
qual passa a no estar mais no eu ou no tu, mas no intervalo criado entre ambos. Descentrado, o
sujeito torna-se uma posio entre outras, e faz soar em seu discurso o j-dito em outro lugar, ou
seja, abre espao para o discurso-outro no interior do seu discurso.
Como podemos ver, a Anlise do Discurso, ao assumir uma perspectiva no-subjetiva da
enunciao, na qual o sujeito no o centro do discurso, ultrapassa a concepo bakhtiniana de
dialogia e de comunicao.
Todos esses trabalhos distanciam-se, de alguma forma, dos estudos tradicionais de linguagem
e da anlise de contedo, segundo a qual o que importa responder questo o que este texto quer
dizer?. Para a Anlise do discurso, no entanto, a questo que se coloca no descobrir o que o
texto quer dizer, mas trabalhar o texto para descobrir como ele significa.
Quando surge, nos anos 60, a Anlise do Discurso se constitui no espao das questes criadas
pela relao entre trs domnios disciplinares: a Lingstica, o Marxismo e a Psicanlise.
A Lingstica que tem como objeto prprio a lngua, com uma ordem prpria importante
para a AD, que procura mostrar que a relao entre linguagem, pensamento e mundo no direta,
nem se faz termo-a-termo.
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A Anlise do Discurso pressupe ainda o legado do materialismo histrico, como nos lembra
Orlandi (1999):
...h um real da histria de tal forma que o homem faz histria mas esta tambm no lhe transparente. Da, conjugando a lngua com a histria na produo de sentidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material ( no abstrata como a da Lingstica) que a forma encarnada na histria para produzir sentidos: esta forma portanto lingstico-histrica. (Orlandi, 1999:19).
Por outro lado, a contribuio da Psicanlise para a AD o deslocamento da noo de
indivduo para a de sujeito, sujeito que se constitui na relao com o simblico, com a histria.
Citamos novamente Orlandi:
Desse modo, se a Anlise do Discurso herdeira de trs regies do conhecimento Psicanlise, Lingstica, Marxismo no o de modo servil e trabalha uma noo a de discurso que no se reduz ao objeto da Lingstica, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicanlise. Interroga a Lingstica pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simblico e se demarca da Psicanlise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele. (Ibidem: 20).
A Anlise do Discurso, assim, trabalha a confluncia desses campos de conhecimento e
constitui um novo objeto, o qual, como j referimos, o discurso. Ao eleger o discurso como seu
objeto, a AD procura compreender a lngua fazendo sentido, como trabalho simblico, parte do
trabalho social geral, que constitutivo do homem e da sua histria.
A noo de discurso relaciona-se a duas outras, tambm fundamentais para a AD: a de
formao ideolgica3 e a de formao discursiva4.
Tais noes tm origem em autores como Althusser e Foucault, sendo depois exploradas e
reformuladas pela Anlise do Discurso.
Nos prximos captulos, vamos refletir sobre essas noes.
3 A noo de formao ideolgica serve para caracterizar um elemento suscetvel de intervir como uma fora de confrontao com outras foras na conjuntura ideolgica caracterstica de uma formao social em um dado momento. Cada formao ideolgica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representaes que no so nem individuais nem universais, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posies de classe em conflito umas com as outras (Pcheux & Fuchs, 1975:166). Assim, pode-se dizer que o sentido no existe em si, mas determinado pelas posies ideolgicas colocadas em jogo no processo scio-histrico em que se produzem as palavras. Quer dizer: as palavras adquirem sentido em relao s formaes ideolgicas nas quais se inscrevem. 4 O termo formao discursiva original de Foucault e foi empregado por Pcheux (1988) para designar as formas de organizao dos enunciados. A formao discursiva ento, para Pcheux, aquilo que numa formao ideolgica dada, isto , a partir de uma posio dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito(Pcheux, op.cit.:160). a noo de formao discursiva que permite compreender o processo de produo dos sentidos e a sua relao com a ideologia. Assim, pode-se dizer que o discurso se constitui em sentidos porque as palavras se inscrevem em uma formao discursiva, o que significa que as palavras no tm um sentido nelas mesmas. As formaes discursivas representam no discurso as formaes ideolgicas.
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1.1.1 Discurso e texto
importante salientar, seguindo Pcheux (1969:82), que discurso, aqui, no est sendo
tomado como sinnimo de transmisso de informao, e, portanto, distancia-se do esquema
elementar da comunicao, o qual constitudo pelos elementos emissor, receptor, cdigo,
referente, mensagem. Assim, o discurso no se reduz a um processo em que algum, atravs de um
cdigo, fala sobre alguma coisa para algum, que decodifica a mensagem.
O discurso, antes, pressupe funcionamento5 da linguagem, e pe em relao sujeitos
afetados pela lngua e pela histria, em um complexo processo de constituio desses sujeitos e de
produo dos sentidos.
A noo de funcionamento , de acordo com Orlandi (1987:125), a atividade estruturante de
um discurso determinado, por um falante determinado, para um locutor determinado, com
finalidades especficas.
Em um discurso, deste modo, no s se representam os interlocutores, mas tambm a relao
que eles mantm com a formao ideolgica. E isto est marcado no e pelo funcionamento
discursivo.
Assim, do ponto de vista da anlise do discurso, o que importa destacar o modo de
funcionamento da linguagem, sem esquecer que esse funcionamento no integralmente
lingstico, j que dele fazem parte as condies de produo, que representam o mecanismo de
situar os protagonistas e o objeto do discurso.
Da ser possvel afirmar, juntamente com Pcheux (1969), que o discurso , antes de tudo,
efeito de sentido entre os interlocutores, os quais representam lugares determinados na estrutura da
formao social.
Tais lugares so representados nos processos discursivos em que so colocados em jogo, nos
quais funciona uma srie de formaes imaginrias que, para Pcheux, designam o lugar que os
sujeitos atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu prprio lugar e do
lugar do outro (Pcheux, 1969:82).
Pcheux, buscando instaurar os fundamentos da Anlise do Discurso francesa, e trabalhando a
relao lngua-discurso-ideologia, vai dizer ento que o discurso a materialidade especfica da
ideologia, e que a materialidade especfica do discurso a lngua.
O discurso, dessa forma, o lugar em que se observa a relao entre lngua e ideologia, e a
lngua quem produz sentidos por e para os sujeitos. Ou seja: o discurso lugar social. E o texto,
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nesta perspectiva, passa a ser a unidade de anlise do discurso, a materialidade lingstica pela qual
se tem acesso ao discurso.
Courtine (1982:240), tratando da relao entre lngua e discurso, afirma haver uma ordem do
discurso a que ele denomina materialidade do discursivo e que distinta da ordem da lngua. Essa
materialidade discursiva consiste em uma relao determinada entre a lngua e a ideologia. O
discurso materializa o contato entre o ideolgico e o lingstico, no sentido que ele representa no
interior da lngua os efeitos de contradies ideolgicas e, inversamente, ele manifesta a existncia
da materialidade lingstica no interior da ideologia.
O discurso, nesta perspectiva, deve ser pensado em sua especificidade. A adoo de uma
concepo especificamente discursiva deve evitar reduzir o discurso anlise da lngua ou dissolv-
la no trabalho histrico sobre a ideologia como representao.
Em Orlandi (1987), vamos ainda encontrar o seguinte:
O que caracteriza a relao entre discurso e texto o seguinte: eles se equivalem, mas em nveis conceptuais diferentes. Isso significa que o discurso tomado como conceito terico e metodolgico e o texto, em contrapartida, como o conceito analtico correspondente. (Orlandi, 1987:159)
Na AD, olha-se o texto enquanto unidade significativa, isto , como unidade de anlise do
discurso. No entanto, no basta dizer que o texto uma unidade complexa de significao,
consideradas as condies de sua realizao. Ele uma unidade de anlise no formal, mas
pragmtica, ou seja, aquela em cujo processo de significao tambm entram os elementos do
contexto situacional. Considerando o texto no processo de interlocuo, podemos tom-lo como o
centro comum, a unidade que se faz no processo de interao entre falante e ouvinte, entre autor e
leitor. Desta forma, a unidade do dilogo a do texto, isto , no s da ordem de um dos
interlocutores ou do outro. interao, ou seja, todo texto supe uma relao dialgica e constitui-
se pela ao dos interlocutores.
Indursky (2001) tambm se ocupa desse conceito: O texto , pois, uma unidade de anlise, afetada pelas condies de sua produo, a partir da qual se estabelecer a prtica de leitura. Em funo disso, podemos acrescentar, de imediato, que, para a Anlise do Discurso, a organizao interna ao texto o que menos interessa. O que est em jogo para a Anlise do Discurso o modo como o texto organiza sua relao com a discursividade, vale dizer, com a exterioridade. (Indursky, 2001: 28)
O texto, assim, no fechado em si mesmo, mas relaciona-se com outros textos, bem como
com o contexto social, econmico, poltico e histrico em que produzido. Ou, como afirma
Orlandi (1987:180), o texto no uma unidade completa, pois sua natureza intervalar.
5 Esse funcionamento, em Anlise do Discurso, no totalmente lingstico, e dele fazem parte as condies de produo, que representam o mecanismo de situar os protagonistas e o objeto do discurso (Pcheux, 1969: 78).
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Desta forma, o texto incompleto, porque o discurso instala o espao da intersubjetividade,
em que o texto tomado no como objeto fechado em si mesmo, mas como constitudo pela relao
de interao que, por sua vez, o prprio texto instala. a relao com a situao e com outros textos
que lhe d um carter no acabado.
Como o texto um espao, mas um espao simblico, tem relao com o contexto e com os
outros textos. Deste modo, enquanto objeto terico, o texto no um objeto acabado. Enquanto
objeto emprico, o texto pode ser este objeto acabado, com comeo, meio e fim. No entanto, a
anlise do discurso lhe devolve a sua incompletude, ou seja, a anlise do discurso reinstala a relao
com a situao e com os interlocutores.
Pensar sobre a incompletude do texto nos conduz tambm noo de leitura e a consider-la
em relao s suas condies de produo, no esquecendo que essas condies incluem autor e
receptor.
Considerar as condies de produo da leitura ento trabalhar com a incompletude do
texto. E levar em conta a noo de intertextualidade na leitura refletir sobre o fato de que o(s)
sentido(s) de um texto passa(m) pela sua relao com outros textos, o que leva a no conceber o
texto apenas como matriz com lacunas que so preenchidas pelo leitor, mas como processo de
significao e lugar de sentidos.
nesta perspectiva, ento, que se pode considerar que a AD instaura um objeto diferente. E
a noo de texto que se coloca como nuclear para a operacionalizao dos conceitos, em termos de
anlise discursiva.
Atravs dessa noo, entendida no como uma soma de frases, mas como conceito que acolhe
o processo de interao e relao com o mundo pela e na linguagem, nos instalamos no domnio da
significao como multiplicidade e no como linearidade informativa.
Discurso e texto so, ento, como podemos observar, dois conceitos nucleares para a Anlise
do Discurso. E so fundamentais tambm para um estudo da leitura, uma vez que o texto, enquanto
unidade de anlise, a materializao do discurso, a materialidade do gesto de leitura que um
determinado sujeito-autor faz da sociedade a que pertence, da realidade que o cerca.
Nesta perspectiva, as noes de texto e discurso so tambm indispensveis para um estudo
da leitura atravs da reescrita, j que o texto da reescrita a expresso do discurso de um sujeito-
leitor, do seu gesto de leitura, que se entrecruza com a voz do sujeito-autor e com todas as outras
vozes presentes naquele texto que esse sujeito reescreve: vozes de outros textos, de outros
discursos, da ideologia, etc.
Passemos agora ao exame de outras noes, tambm fundamentais para a AD e, por
conseguinte, essenciais para o desenvolvimento desse estudo.
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1.1.2 Sujeito, ideologia e sentidos
Quando falamos em sujeito, sob a perspectiva da Anlise do Discurso, importante precisar
que no estamos falando de um sujeito emprico, coincidente consigo mesmo.
Citamos Orlandi (1999):
Ele materialmente dividido desde sua constituio: ele sujeito de e sujeito . Ele sujeito lngua e histria, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele afetado por elas. Ele assim determinado, pois se no sofrer os efeitos do simblico, ou seja, se ele no se submeter lngua e histria ele no se constitui, ele no fala, no produz sentidos. (Orlandi, 1999: 49)
Segundo essa concepo, nem sujeito nem sentidos so constitudos a priori, mas so
constitudos no discurso. Essa constatao traz em sua base Pcheux (1988:160), quando o autor
afirma que o sentido de uma palavra, de uma expresso, no existe em si mesmo, em sua relao
com a literalidade transparente do significante, mas se produz de acordo com as posies
ideolgicas colocadas em jogo no processo scio-histrico em que as palavras e expresses so
produzidas. isso que explica o fato de que as palavras e expresses mudam de sentido de acordo
com as posies sustentadas por aqueles que as empregam, ou seja, com referncia s formaes
ideolgicas de quem usa essas palavras e expresses.
Isto nos permite considerar o sujeito como uma posio, como um lugar que ocupa para ser
sujeito do que diz. O modo como o sujeito ocupa esse lugar no lhe acessvel, da mesma forma
que a lngua no transparente nem o mundo diretamente apreensvel. Na verdade, tudo
constitudo pela ideologia, que, podemos dizer ento, a condio para a constituio do sujeito e
dos sentidos. Quer dizer: o indivduo interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o
dizer.
A noo de interpelao do sujeito formulada inicialmente por Althusser (1992:93), para
quem s h ideologia pelo sujeito e para o sujeito. Para Althusser, a ideologia age de tal forma
que recruta sujeitos entre os indivduos (e recruta a todos) ou transforma os indivduos em sujeitos
(e transforma a todos) atravs da interpelao. Assim, o indivduo interpelado como sujeito
(livre) para livremente submeter-se s ordens do sujeito, para aceitar, portanto (livremente), sua
submisso (Ibidem:104).
Pcheux (1988), buscando esclarecer os fundamentos de uma teoria materialista do discurso,
vai ento dizer que a funo principal da ideologia a de produzir uma idia de evidncia
subjetiva, entendendo-se subjetiva como evidncias nas quais se constitui o sujeito. Assim, a
ideologia dissimula sua existncia no interior de seu prprio funcionamento.
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Vejamos o que nos diz Pcheux:
Eis o ponto preciso onde surge, a nosso ver, a necessidade de uma teoria materialista do discurso; essa evidncia da existncia espontnea do sujeito (como origem ou causa de si) imediatamente aproximada por Althusser de uma outra evidncia, presente em toda a filosofia idealista da linguagem, que a evidncia do sentido. (Pcheux, 1988:153)
Temos a uma noo de sujeito menos formal, ou seja, um sujeito da linguagem que no o
sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente.
Considerar a interpelao do indivduo em sujeito pela ideologia nos conduz ento quilo que,
em AD, denominamos de iluso do sujeito6, aquilo que nos faz imaginar que somos a fonte do que
dizemos. Iluso porque, na verdade, os sentidos que produzimos no nascem em ns, ns apenas os
retomamos do interdiscurso.
Assim, a evidncia do sentido , na verdade, um efeito ideolgico que no nos deixa perceber
a historicidade de sua construo. Ela nos faz perceber como transparente aquilo que, de fato,
consiste em uma remisso a um conjunto de formaes discursivas. Quer dizer: as palavras recebem
seus sentidos de formaes discursivas postas em relaes. Isto o que constitui o efeito do
interdiscurso 7 (da memria8 ).
Por outro lado, a evidncia do sujeito apaga o fato de que ela resulta de uma identificao, em
que o indivduo interpelado em sujeito pela ideologia. Considerada desse modo, a ideologia no
ocultao, mas funo necessria entre linguagem e mundo.
6 Segundo Pcheux (1988:172), na FD que se constitui a iluso necessria de uma intersubjetividade falante, pela qual cada um sabe de antemo o que o outro vai pensar e dizer, j que o discurso de cada um reproduz o discurso do outro. Deste modo, o sujeito falante tem a iluso no s de estar na fonte do sentido o que Pcheux denomina de iluso-esquecimento n 1 mas tambm de ser dono de sua enunciao, capaz de dominar as estratgias discursivas para dizer o que quer iluso-esquecimento n 2. O esquecimento nmero dois da ordem da enunciao, pois, ao falarmos, falamos de uma maneira e no de outra e, ao longo de nosso dizer, formam-se famlias parafrsticas que indicam que o dizer sempre poderia ser outro. um esquecimento parcial, semi-consciente. J o esquecimento nmero um da ordem do ideolgico e do inconsciente e resulta do modo como somos afetados pela ideologia. 7 Pcheux (1988:162) define o interdiscurso como o todo complexo com dominante das formaes discursivas, dizendo que ele submetido lei de desigualdadecontradio-subordinao que caracteriza o complexo das formaes ideolgicas. O interdiscurso constitui o exterior especfico de uma FD. o lugar no qual se constituem, por um sujeito falante, produzindo uma seqncia discursiva dominada por uma FD determinada, os objetos de que este sujeito enunciador se apropria para usar como objetos do seu discurso. atravs das articulaes entre esses objetos que o sujeito enunciador vai dar coerncia a seu propsito na seqncia discursiva que enuncia, isto , no intradiscurso. , pois, na relao entre o interdiscurso de uma FD e o intradiscurso de uma seqncia discursiva que se situam os processos pelos quais o sujeito falante interpelado- assujeitado em sujeito do seu discurso. 8 A noo de memria ser desenvolvida mais adiante (cap.2/seo 2.3.1.). Podemos adiantar, no entanto, que, quando pensada em relao ao discurso, a memria tratada como interdiscurso, como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. A memria, assim, o saber discursivo que torna possvel todo dizer e que retorna sob a forma do pr-construdo (elemento constitutivo do interdiscurso, que designa uma construo anterior e independente, por oposio ao que construdo na enunciao), do j-dito que est na base do dizvel, sustentando cada tomada de palavra.
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Como nos afirma Orlandi, a relao da ordem simblica com o mundo se faz de tal modo que,
para que haja sentido, preciso que a lngua como sistema passvel de jogo, de falhas se
inscreva na histria. Essa inscrio dos efeitos lingsticos materiais na histria a discursividade.
Podemos dizer ento que o sentido uma relao determinada do sujeito afetado pela lngua
com a histria. Isso significa que no h discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia.
Em outras palavras: a ideologia um efeito da relao necessria do sujeito com a lngua e
com a histria. a que se produz o sentido9.
A Anlise do Discurso, assim, pretende-se uma teoria crtica que trata da determinao
histrica dos processos de significao. Trabalha no com os produtos, mas com os processos e as
condies de produo da linguagem, ou seja, leva em conta a exterioridade.
Ao considerar que a exterioridade constitutiva, a AD parte da historicidade inscrita no texto,
para atingir o modo de sua relao com a exterioridade, atestada no prprio texto, em sua
materialidade.
Para a AD, conforme lemos em Orlandi (1990:35), a histria est ligada a prticas e no ao
tempo em si. No o tempo cronolgico que organiza a histria, mas a relao com o poder. Por
isso, no se procura extrair o sentido do texto, mas apreender sua historicidade, o que supe
colocar-se no interior de uma relao de confronto de sentidos.
Em termos de leitura, isso significa falar de um leitor para quem o texto no um objeto
acabado, com um sentido pr-determinado, que lhe compete descobrir. De forma contrria, esse
leitor, determinado por sua relao com a histria, confronta-se com a historicidade do texto. E, sob
tais condies, produz sua leitura.
Caracteriza-se, dessa forma, uma noo de histria que prpria da AD: a historicidade a do
texto, ou seja, sua discursividade, que no simples reflexo de fora, mas constitui-se na prpria
tessitura da materialidade do sentido e do sujeito, nos seus modos de constituio histrica. A
questo do histrico, assim, liga-se da linguagem, da cincia e do sujeito.
Lemos mais uma vez em Orlandi (1999):
O sentido assim uma relao determinada do sujeito afetado pela lngua com a histria. o gesto de interpretao que realiza essa relao do sujeito com a lngua, com a histria, com os sentidos. Esta a marca da subjetivao e, ao mesmo tempo, o trao da relao da lngua com a
9 Tudo isso tem relao direta com a questo da leitura e do leitor: J que o sentido uma relao determinada do sujeito com a histria, natural que diferentes leitores, que mantm diferentes relaes com a histria, leiam um mesmo texto de forma tambm diferente, ou seja, produzam sentidos diversos.
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exterioridade: no h discurso sem sujeito. E no h sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente esto materialmente ligados. (Orlandi, 1999: 47)
Desta forma, para que a lngua faa sentido, necessrio que a histria intervenha, pela
opacidade, pela espessura material do significante. Isto ratifica, na verdade, a idia de que o sentido
no est nas palavras, no est no texto. Ou seja: o processo da leitura, pela interveno da
histria, que faz com que o texto faa sentido.
Todas essas convices nascem, como j vimos (seo 1.1.1), em Pcheux, para quem
impossvel a Anlise do Discurso sem sua ancoragem em uma teoria do sujeito. E a ideologia que
faz com que haja sujeitos. Assim, o efeito ideolgico elementar a constituio do sujeito.
Podemos finalmente dizer que a Anlise do Discurso, ao constituir-se, produz um
deslocamento em relao s teorias sociais da ideologia, articulando os domnios das Cincias
Sociais e da Lingstica. com tais deslocamentos que a Anlise do Discurso institui essa nova
conceituao de sujeito, mostrando que, em termos de linguagem, nem sujeito nem significao so
transparentes.
1.1.3 Anlise do Discurso: implicaes para o estudo da leitura
Com as reflexes realizadas na seo anterior, procuramos apresentar um esboo terico
suficiente para definir a Anlise do Discurso e apontar suas especificidades. Neste ponto, queremos
falar sobre o modo como nossa escolha terica vai se refletir nesse estudo sobre a leitura.
Uma primeira observao tem relao com o fato de que o texto, nesta abordagem terica, a
unidade de anlise, mas, antes de tudo, a materialidade do discurso; e esse discurso que nos
interessa.
O texto, assim, a materialidade de um discurso produzido por um sujeito interpelado pela
ideologia, um sujeito que uma posio, um lugar. Quer dizer: um sujeito social.
Nesta medida, o texto materializa a leitura que esse sujeito faz da realidade, desvela a sua
relao com a histria, com a ideologia.
Os sentidos que so produzidos em um texto, assim, no nascem no sujeito que o escreve
(embora ele tenha essa iluso), mas vm de sua relao com o interdiscurso, com a memria, com a
formao discursiva. Os sentidos nascem da relao de um texto com outros textos, da relao com
o contexto histrico, social, poltico. Isto significa que o texto no acabado, no fechado em si
mesmo, incompleto.
Tudo isso tem conseqncias no modo de conceber a leitura nesta perspectiva terica. E
tambm na forma de perceber esse processo de reescrita de um texto.
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Assim, se o sujeito sujeito histria, fica evidente que essa sujeio afeta tanto aquele que
escreve (o autor) quanto aquele que l (o leitor) e reescreve (lembrando que, nessa pesquisa, ele
equivale ao leitor).
Ora, diferentes sujeitos estabelecem diferentes relaes com a histria, com a ideologia.
Portanto, autor e leitor, enquanto sujeitos distintos, no ocupam necessariamente um mesmo lugar,
uma mesma posio, no so iguais.
Desta forma, aquele texto escrito por um determinado autor (e que revela a sua relao com a
histria), ao ser tomado por um determinado leitor, que o reescreve, vai desencadear um processo
de construo de significados que vai expressar a interpelao desse leitor pela ideologia (que no
idntica ao do autor), a sua relao com a histria (que tambm no idntica a do autor), a sua
posio (que igualmente no idntica a do autor). Em outras palavras: o leitor realiza a sua leitura
a partir de seu lugar social.
A reescrita, neste sentido, a expresso de todo esse processo de leitura, desse processo de
relao de um sujeito afetado pela lngua com a histria.
Podemos dizer ento que, ao analisar textos reescritos, sob a perspectiva terica da Anlise do
Discurso, no estamos preocupados com o que eles querem dizer, mas com o modo como estes
textos significam. Isto implica que no nos ocupamos em descobrir, por exemplo, se o texto
reescrito quer dizer a mesma coisa, ou quer dizer outra coisa, em relao ao texto que lhe serviu
(para fins de anlise) de origem, mas que estamos verificando o modo como esses textos significam.
Assim, a materialidade lingstica representada pelos textos para ns um meio de ter
acesso ao discurso dos leitores que reescrevem esses textos. O que estamos procurando verificar,
ento, so os efeitos de sentido gerados pela leitura e pela reescrita de textos dados, efeitos que tm
origem em sujeitos interpelados ideologicamente e, portanto, identificados com uma determinada
formao discursiva.
Em outras palavras: estamos partindo dos textos para perceber a sua historicidade e a sua
relao com a exterioridade.
Feitas essas colocaes, passamos ento, no captulo seguinte, a examinar mais detidamente a
noo de leitura.
2. LEITURA
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Neste segundo captulo, vamos refletir sobre a leitura, noo central nessa pesquisa e sobre a
qual muito se tem dito, a partir de perspectivas tericas distintas.
Propomo-nos ento a examinar questes que nos permitam caracterizar a noo de leitura a
partir de uma viso discursiva.
Vamos ainda trabalhar outras noes que so pontos de interesse nesse trabalho e que, para
ns, esto relacionadas noo de leitura: reescrita, repetio, interpretao, heterogeneidade,
silncio e autoria.
2.1 TRABALHANDO A NOO DE LEITURA
Nesta seo, propomo-nos a examinar algumas concepes de leitura, a fim de percorrer um
caminho que nos possibilite chegar a uma perspectiva discursiva da leitura.
2.1.1 Da decodificao atribuio de sentidos
Orlandi (1993a:7), ao desenvolver um estudo sobre a leitura, chama a ateno para o fato de
que este conceito pode ser tomado com vrios sentidos distintos.
Assim, se pensada em termos bem restritivos, a leitura pode ser vinculada alfabetizao e
adquirir o carter de estrita aprendizagem formal. Nesta perspectiva, a leitura encarada como o
aprender a ler e a escrever. O termo leitura ainda pode estar ligado construo de um aparato
terico e metodolgico de aproximao de um texto; assim, falamos nas vrias leituras de Saussure,
por exemplo.
Como podemos notar, a leitura pode ser percebida de diferentes formas, o que corresponde
assuno de diferentes concepes tericas.
Desse modo, por exemplo, vamos encontrar em Kato (1985), um conceito que relaciona
leitura a processo de decodificao e que v o texto como fonte nica do sentido.
Tal postura corresponde a uma viso mecanicista da linguagem e considera o sentido como
sendo arraigado exclusivamente s palavras e s frases.
A possibilidade de recuperar o verdadeiro sentido do texto, bem como as intenes do autor,
leva a uma concepo segundo a qual o texto considerado um produto, ou, como afirma Kato,
um conjunto de pegadas a serem utilizadas para recapitular as estratgias do autor e, atravs delas,
chegar a seus objetivos (Kato, 1985: 57).
Note-se, ento, que a ao do leitor se restringe a capturar o sentido do texto e a respeitar as
leituras autorizadas por ele.
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Leffa (1999), ao examinar as perspectivas vigentes no estudo da leitura, faz referncia a essa
abordagem denominada de ascendente que estuda a leitura a partir da perspectiva do texto.
O autor ressalta que foi nas dcadas de 50 e 60, nos Estados Unidos, que a perspectiva do
texto predominou nos estudos da leitura. O que se queria ento era que o texto, considerado como
um intermedirio entre o leitor e o contedo, fosse transparente, ou seja, que mostrasse o contedo
da maneira mais clara possvel.
Lembra Leffa, ento:
O aspecto mais importante da leitura, nesta perspectiva textual, a obteno do contedo que subjaz ao texto. O contedo no est no leitor, nem na comunidade, mas no prprio texto. Da que a construo do significado no envolve negociao entre o leitor e o texto e muito menos atribuio de significado por parte do leitor; o significado simplesmente construdo atravs de um processo de extrao. ( Leffa, 1999:18)
Ler, nessa perspectiva, extrair um contedo, e a leitura ser tanto melhor quanto mais
contedo extrair.
Essa concepo de leitura como decodificao, centrada no texto, vai sendo abandonada, por
exemplo, por Paulo Freire (1991:11), que afirma: ... uma compreenso crtica do ato de ler, que
no se esgota na decodificao pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa
e se alonga na inteligncia do mundo.
Para Freire, assim, a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura dessa
implica a continuidade da leitura daquele (ibidem:20). Em outras palavras, linguagem e realidade
relacionam-se dinamicamente, e a compreenso do texto implica a percepo das relaes entre o
texto e o contexto.
Assim, h sempre um movimento do mundo palavra e da palavra ao mundo. Nesse
movimento, a palavra flui do mundo atravs da leitura que dele se faz.
Nesta medida, a leitura da palavra no apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma
certa forma de escrev-lo ou de reescrev-lo, ou seja, de transform-lo atravs de uma prtica
consciente.
Se pensada em uma concepo ainda mais ampla, a noo de leitura ganha outros
significados.
Assim, por exemplo, lemos em Ezequiel Theodoro da Silva (1984) que, para que se efetue a
leitura, no basta decodificar as representaes indiciadas por sinais e signos, mas preciso tambm
que o leitor que assume a compreenso porte-se diante do texto, transformando-o e
transformando-se.
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Como podemos perceber, aqui a leitura deixa de ser pensada em termos de decodificao e
passa a supor uma ao do leitor, que porta-se diante do texto, podendo, inclusive, transform-lo.
Na obra Elementos de Pedagogia da Leitura (1988), que vem somar-se outra, anteriormente
citada, o autor ressalta a necessidade de o leitor saltar para o contexto, para a intencionalidade que
determinou o texto, pois, para ele, se isso no ocorre, a leitura perde a sua validade, porque as
palavras do autor ficam fechadas em si mesmas, sem que os elementos do real sejam colocados em
relao com as experincias do leitor. Afirma ento o autor: Dessa forma, no existe a posse,
apreenso ou compreenso de idias, mas a mera reproduo alienada de palavras ou trechos
veiculados pelo autor do texto (Silva, 1988: 4).
Podemos ainda trazer para a discusso as idias de Maria Helena Martins (1991:30), que
percebe a leitura como um processo de compreenso de expresses formais e simblicas, no
importando por meio de que linguagem.
Para ela, o ato de ler se refere tanto a algo escrito quanto a outros tipos de expresso do fazer
humano, caracterizando-se tambm como acontecimento histrico e estabelecendo uma relao
igualmente histrica entre o leitor e o que lido.
Martins, ressaltando que as concepes vigentes de leitura podem ser sintetizadas em duas
caracterizaes (como uma decodificao mecnica dos signos ou como um processo de
compreenso abrangente, que envolve componentes emocionais, intelectuais, culturais, econmicos,
polticos), vai dizer ento que decodificar sem compreender intil e compreender sem
decodificar, impossvel (Ibidem:32).
a partir desse pensamento que Martins compartilha as idias de Paulo Freire e admite que a
leitura vai alm do texto e comea antes do contato com ele. Adotar esse ponto de vista, para a
autora, significa admitir que o leitor desempenha um papel atuante, deixando de ser mero
decodificador ou receptor passivo. Assim, o contexto em que ele atua, as pessoas com quem
convive passam a ter influncia aprecivel em seu desempenho na leitura. Isto, segundo a autora,
porque o dar sentido a um texto implica sempre levar em conta a situao desse texto e de seu
leitor (Ibidem:33).
Desse modo, para Martins, a leitura se realiza a partir do dilogo do leitor com o objeto lido.
Esse dilogo referenciado por um tempo e um espao, uma situao, e desenvolvido de acordo
com os desafios e as respostas que o objeto apresenta. Tambm o sustenta a intermediao com
outro(s) leitor(es).
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Para Martins, ento, a dinmica do processo de tal ordem que considerar a leitura apenas
como resultado da interao texto-leitor seria reduzi-la consideravelmente10, a ponto de se correr o
risco de pensar que um mesmo leitor, lendo um mesmo texto, no importa quantas vezes, sempre
realizaria uma mesma leitura. Afirma Martins: No precisa ser especialista no assunto para saber o
quanto as circunstncias pessoais ou no uma dor de cabea, uma recomendao acatada ou
imposio, um conflito social podem influir na nossa leitura (Ibidem:34)11.
Refletindo ainda sobre o papel do educador na problemtica da leitura, Martins adota posio
semelhante a de Ezequiel Theodoro da Silva e diz que criar condies de leitura no implica apenas
alfabetizar ou propiciar acesso aos livros. preciso mais: dialogar com o leitor sobre sua leitura,
isto , sobre o sentido que ele d ao objeto da leitura.
Na proposta de Martins, podemos verificar alguns deslocamentos em relao s demais. Desta
proposta, destacamos os seguintes pontos: a) o dilogo do leitor com o texto referenciado por um
tempo e um espao; b) um mesmo leitor, lendo um mesmo texto, no importa quantas vezes, nem
sempre realiza uma mesma leitura; c) considerar a leitura apenas como resultado da interao texto-
leitor seria reduzi-la consideravelmente.
Poderamos dizer que, de certa forma, esses pontos mantm contato com uma perspectiva
discursiva de leitura, sobre a qual falaremos melhor mais adiante (seo 2.1.2.). Podemos adiantar,
no entanto, que tal perspectiva tambm concebe que a leitura comea antes do texto e vai alm dele,
considera importantes as condies em que a leitura produzida (ou seja, o tempo e o contexto),
admite que diferentes leituras de um mesmo texto podem ser realizadas por um mesmo leitor, ou
por leitores diferentes, e reconhece que a leitura no se reduz interao entre texto e leitor.
Frisamos, porm, que, em uma concepo discursiva, esse dar sentidos ao texto, do qual fala
Martins, vai muito mais alm. Ou seja: a leitura no resultado apenas do trabalho de um leitor
que, num ato consciente, atribui sentidos ou capta os sentidos expressos por um autor. Em uma
perspectiva discursiva, entram em jogo muitos outros fatores no processo que a leitura.
10 Na verdade, essa seria a tendncia a que Leffa (1999) se refere como a perspectiva do leitor, ou abordagem descendente da leitura. Nela, a leitura se realiza baseada na experincia de vida do leitor, anterior ao seu encontro com o texto, e envolve conhecimentos lingsticos, textuais e enciclopdicos, alm de fatores afetivos. Nesta abordagem no se fala mais em extrao, mas em atribuio de sentidos. Para Leffa, o problema desta perspectiva que o leitor passa a ser visto como o soberano absoluto na construo do significado, pois, como o sentido no extrado, mas atribudo, o leitor tem o poder de atribuir o significado que lhe aprouver. Para Leffa, essa perspectiva ignora os aspectos da injuno social da leitura. 11 Essas colocaes de Martins tm relao com aquilo que, em Anlise do Discurso, chamamos de condies de produo da leitura (voltaremos a fazer referncia a isso, na seo 2.1.2.). Mas, na perspectiva discursiva, os fatores que fazem parte dessas condies de produo vo alm de uma dor de cabea, uma recomendao. So fatores histricos, sociais, ideolgicos. Mais adiante, ao falarmos sobre a leitura na perspectiva discursiva, desenvolveremos melhor essas questes.
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Seguindo a mesma linha de Martins, encontramos Geraldi (1984), que afirma:
O autor, instncia discursiva de que emana o texto, se mostra e se dilui nas leituras de seu texto: deu-lhe uma significao, imaginou seus interlocutores, mas no domina sozinho o processo de leitura de seu leitor, pois este, por sua vez, re-constri o texto na sua leitura, atribuindo-lhe a sua (do leitor) significao. (Geraldi, 1984: 80)
Como possvel notar, est presente nessas definies a concepo de leitura como
atribuio de significado, de leitor como algum que pode propor outra leitura, no prevista pelo
autor, que, sendo assim, no domina o processo da significao.
Nesta perspectiva, podemos reconhecer, embora Geraldi no fale explicitamente nisso, uma
concepo de leitura em que o texto no est pronto, acabado. No o autor, portanto, que
estabelece o sentido do texto, e o oferece aos leitores, para que esses entendam esse sentido.
Antes, so os leitores que, pelo processo da leitura, fazem o texto ganhar sentidos.
Em obra posterior, Geraldi (1993:98) vai adotar explicitamente essa concepo de texto como
objeto no acabado. Assim, o autor refere-se ao texto, por exemplo, como um objeto que aponta
tanto para o fechamento quanto para a abertura de sentidos. Ou como o produto de uma atividade
discursiva onde algum diz algo para algum (Ibidem:98).
Nesta perspectiva, lembra Geraldi:
O outro a medida: para o outro que se produz o texto. E o outro no se inscreve apenas no seu processo de produo de sentidos na leitura, o outro insere-se j na produo, como condio necessria para que o texto exista. porque se sabe do outro que um texto acabado no fechado em si mesmo. Seu sentido, por maior que lhe queira dar seu autor, e ele o sabe, j na produo um sentido construdo a dois. (Ibidem:102)
isto que leva Geraldi a dizer, ainda, que se fala em compreenso de um texto, e no em
reconhecimento de um sentido que lhe seria imanente, nico (Ibidem:103).
Uma tal concepo compartilhada por Marisa Lajolo (1982):
Ler no decifrar, como num jogo de adivinhaes, o sentido de um texto. , a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significao, conseguir relacion-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da prpria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra no prevista. (Lajolo, 1982:59)
Como podemos notar, Lajolo considera a intertextualidade como parte do processo da leitura,
ou seja, considera como parte do processo de produo de sentidos o estabelecimento da relao
entre os textos.
Nesse processo, mais uma vez, o autor deixa de ser dono de seu texto e passa a dividi-lo
com seus leitores, que recriam seus sentidos, estabelecendo relaes com outros textos.
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Temos novamente, aqui, uma concepo de texto no acabado, no fechado em si mesmo.
Neste sentido, a concepo de Lajolo afasta-se da noo de leitura como decodificao de sentidos e
aproxima-se de uma concepo discursiva de leitura.
Postura semelhante adotada por Angela Kleiman (1989). Para a autora, partir do princpio
de que a linguagem interao traz resultados positivos vlidos. Diz ela:
Nessa viso, o texto escrito se constitui no meio atravs do qual autor e leitor interagem, onde o autor constri um texto, e, portanto, prope uma leitura, atravs do quadro referencial selecionado, enquanto o leitor aceita,