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    MILNEY CHASIN

    POLTICA, LIMITE E MEDIANIA EM ARISTTELES

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduaoem Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas da USP, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor.Linha de pesquisa: Histria Social.

    Orientador: Prof. Dr. Jorge Lus da Silva Grespan.

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASUNIVERSIDADE DE SO PAULO

    SO PAULO2007

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    MILNEY CHASIN

    POLTICA, LIMITE E MEDIANIA EM ARISTTELES

    Orientador: Prof. Dr. Jorge Lus da Silva Grespan

    UNIVERSIDADE DE SO PAULOSo Paulo

    2007

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    memria de Jos Chasin, meu pai,um intelectual aguerrido; um homemforte que, por seu exemplo e idias,marcou nossas vidas.

    memria de Hanna, minha me,que soube, na mxima enfermidade,tomar a deciso certa.

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    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    PROF. DR JORGE LUS DA SILVA GRESPAN (ORIENTADOR)

    ______________________________________________________________PROF. DR. ANTNIO RAGO FILHO (PUC-SP)

    ______________________________________________________________PROF. DR. JOS ANTNIO DABDAB TRABULSI (UFMG)

    ______________________________________________________________PROF. DR. PEDRO PAULO A. FUNARI (UNICAMP)

    ________________________________________________________________PROFA. DRA. VERA LCIA VIEIRA (PUC SP)

    _________________________________________________________________PROF. DR. FERNADO EDUARDO DE BARROS REY PUENTE

    (UFMG SUPLENTE)

    __________________________________________________________________PROF. DR. GIUSEPPE TOSI (UFPB SUPLENTE)

    ___________________________________________________________________PROF. DR. LORENZO MAMI (USP SUPLENTE)

    ____________________________________________________________________PROF. DR. MAURO LCIO LEITO COND (UFMG SUPLENTE)

    _______________________________________________________________________PROFA. DRA. MARIA APARECIDA DE PAULA RAGO (PUC-SP SUPLENTE)

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    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................................8

    1 PARTE: O LIMITE COMO FORMA DE SER DA COMUNIDADE.................42 CAPTULO I - A EMERGNCIA DA PROPRIEDADE PRIVADA MVELATENIENSE: O ESCRAVO MERCADORIA ...................................................................43

    1. Da comunidade oriental ............................................................................................452. Da comunidade greco-romana o oikos ...................................................................483. Da plis .....................................................................................................................60

    CAPTULO II - TELEOLOGIA E LIMITE: PLIS, ESCRAVO E NATUREZA ............841. A inflexo da teleologia em Aristteles ....................................................................952. A teleologia, a cidade e a physis ...............................................................................983. Plis, teleologia e escravo .......................................................................................101

    2 PARTE: LIMITE E SUBJETIVIDADE: POLTICA E TICA.............................116

    CAPTULO I - POLTICA E MEDIANIA: SLON, PISSTRATO E O GOVERNO DACLASSE MDIA ...............................................................................................................117

    1. Slon, a poltica e a mediania .............................................................................. 1172. O tirano e a poltica: entre a fora e a lei ..............................................................1273. Pisstrato: o tirano moderado ................................................................................1334. Poltica e limite: a constituio .............................................................................1385. Governo da politia: a soberania do limite. ..........................................................146

    CAPTULO II A JUSTIA ENQUANTO DIMENSO PROFANA DA POLTICA..1531. A justia e a comunidade .......................................................................................1532. A medida e o juiz: da justia distributiva e da justia corretiva ............................1673. Da atimia e do ostracismo: sua relao com a medida ..........................................171

    CAPTULO III TICA, LIMITE E MEDIDA................................................................1841. A tica enquanto relao entre indivduo e comunidade .......................................1842. A tica e sua vocao objetividade .....................................................................2023. Mediania e virtude moral .......................................................................................205

    CONCLUSO ..................................................................................................................2181. Pensamento e objetividade ..................................................................................2182. A Grcia clssica: entre o apogeu e o declnio ...................................................2223. A poltica e a tica: mecanismos de regulao comunitria ...............................232

    BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................246

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    ABSTRACT

    The purpose of this work is to determine the nature, specificity and necessity of the

    POLITICS category in Aristotle's mature thought, having as central axis the examination of

    his major works: Nichomachean Ethics, Constitution of Athens and Politics. To find,

    therefore, the historical nexus and ties that animate and link the Stagirite's political

    ideology to the 4th-century BC Athenian reality, which strongly influenced the

    philosopher's ideological dmarche. The point is to establish the links that concretely

    motivated the philosopher of Stagira to find in Politics and in Ethics the instruments to

    moderate and impose limits to the Greek way of life (the political community) and to

    individuality, respectively. Thus, the Aristotelian political-ethical ideology rises from the

    unescapable challenges of a declining Greek polis, with its innate restrictions of scarce

    productive forces. Such a reflection finds in the Athenian decline the motivation for its

    birth, that is, the Stagirite is historically driven to respond to the great challenge of his time:

    to recompose, within a certain degree of possibility, the city-state balance lost through

    decades of internal and external wars. In this way, Politics and Ethics are understood as

    regulative mechanisms to settle conflicts and tensions in a singular moment of Greek public

    life, that is, in a polis about to lose its political autonomy to Philip and Alexander. In

    synthesis, the aim of the Stagirite's political-ethical ideology is to intermediate relations, to

    limit and to equilibrate the community and its participant individual because, otherwise, the

    absence of limits would eventually impose (as it actually occurred) the dissolution of life in

    communitas.

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    RESUMO

    O propsito deste trabalho determinar a natureza, especificidade e necessidade dacategoria da poltica no pensamento maduro de Aristteles, tendo por eixo central o exame

    de trs obras capitais: tica Nicomaquia, A Constituio de Atenase Poltica. Estabelecer, portanto, os nexos e laos histricos que uniram e animaram o pensamento poltico do

    estagirita, relacionando-os realidade ateniense do sculo do IV a.C que influenciou,

    sobremaneira, a dmarche ideolgica do filsofo em tela. Trata-se de apontar os elos quemotivaram concretamente o autor a encontrar na poltica e na tica instrumentos a moderar,

    a impor limites ao modo de vida grego ( comunidade poltica) e individualidade,

    respectivamente. O iderio poltico-tico aristotlico brotou dos desafios incontornveis de

    uma plis grega declinante, com suas adstringncias ingnitas, de apoucadas foras produtivas. Assim, foi levado, historicamente, a responder ao grande desafio de seu tempo:

    recompor, a partir de certa exeqibilidade, o equilbrio citadino perdido por dcadas de

    guerras internas e externas. De modo que, poltica e tica foram compreendidas como

    mecanismos reguladores a dirimir conflitos e tenses em momento singular da vida pblica

    grega, a saber, em uma plis prestes a perder sua autonomia poltica para Filipe e

    Alexandre. Em sntese, visava, portanto, intermediar relaes, limitar e equilibrar acomunidade e o indivduo que dela participava, pois, do contrrio, a ausncia de limites

    acabaria (como de fato ocorreu) impondo a dissoluo da vida in communitas.

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    I N T R O D U O

    O propsito deste trabalho determinar a natureza, especificidade e necessidadeda categoria da politicidade1 no pensamento aristotlico, tendo como eixo central oexame de trs obras capitais:tica Nicomaquia, A Constituio de Atenas e Poltica2.Tal proposta envolve no a obra poltica em seu conjunto, mas apenas os textos maissignificativos que representam e sintetizam, de forma madura, as proposituras do pensararistotlico.

    Antes de adentrar em consideraes pertinentes obra aristotlica, ao exame deseus principais intrpretes, tanto no campo da filosofia como no da histria, e no queconcerne forma de abordagem de seus textos e estrutura da tese, relevante teceralgumas consideraes sobre o tempo de Aristteles inseri-lo, e suas idias, namundaneidade grega.

    Aristteles (384-322 a.C.) nasceu e viveu em tempos turbulentos, poca de crisede uma formao social que h pouco mais de 150 anos vivia seu apogeu econmico,

    militar, cultural e poltico.Atenas proporcionou ao jovem e ao velho Aristteles no apenas a escola mais

    respeitada de sua poca, a academia platnica; mas, de pronto, a formao social maisrica, mais complexa, na qual o multiverso social atingira mxima potencialidade. Emoutras palavras, Atenas representava um modo de vida em que os gregos exercitavamsuas capacidades, sua cultura nas assemblias e na discusso dos destinos dacomunidade. Uma plis mais universalmente poltica pela extenso da cidadania aos

    mais pobres, pelo surgimento da democracia que, pela primeira vez, exercitava umaracionalidade pblica, que se expunha ao debate e crtica de seus adversrios. Bastacitar o processo iniciado com Slon, adensado pelas reformas de Clstenes e sintetizado por Pricles. De Slon, temos a abolio da escravido por dvidas do pequeno

    1 . Expresso cunhada por Jos Chasin para identificar o problema poltico em suas amplas dimenses.J.Chasin retoma a crtica da poltica formulada por K.Marx, ou seja, o Estado, o poder e a poltica soexaminados em sua determinao negativa. Ver os seguintes textos do autor: " Marx - Estatuto Ontol- gico e Resoluo Metodolgica in: Pensando com Marx, So Paulo, 1995 e Revista de Filosofia Ad

    Hominem,So Paulo, Tomo III - Poltica, 2000.2. Doravante grafadas do seguinte modo: tica Nicomaquia -EN e A Constituio de Atenas -CA.

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    permanente da sua poltica. Desde o fim das guerras mdicas que os atenienses tentaramnovamente assegurar o controle dos estreitos conducentes ao mar Negro. Tentaro igualmente, por diversas vezes, arrancar Chipre dominao persa, alis, sem sucesso; alm dos seusrecursos em minerais (cobre), a ilha era rica em cereais. Mais tarde, cerca de meados do sculo,

    intervm para apoiar o Egito em revolta contra o Imprio persa: um Egito livre a aliado deAtenas teria sido de uma importncia considervel para todo o seu abastecimento em trigo. OsEstados gregos tiveram, pois, uma poltica comercial unicamente respeitante s importaes e,dentre as importaes, somente quelas que eram essenciais existncia da cidade. Nada maisinteressa diretamente ao Estado, quer dizer que uma boa parte da atividade econmica ter lugarfora de qualquer interveno do Estado, pelo menos de uma interveno que vise encorajar ou

    restringir deliberadamente a vida econmica.4

    O que os autores nos revelam, pois, uma Atenas que busca a hegemoniacomercial do trigo, dada a sua importncia alimentar e a baixa produtividade do soloateniense. S uma cidade rica, com uma economia desenvolvida para a poca, poderiatentar interferir nas rotas do comrcio martimo, apoiar determinados territrios em suas pretenses desde que no contrariassem os seus interesses. Outros aspectos so tambmevidenciados pelos autores deEconomia e sociedade na Grcia antiga, acentuando ocarter singular de Atenas. Ao desdobrarem as consideraes sobre a economiaateniense, explicam:

    encontramos em Atenas um estado de esprito muito diferente do de Esparta no que se refere atividade econmica em geral. Uma srie de juzos aristocrticos contra o trabalho foiconscientemente combatida. Havia em Atenas uma lei atribuda a Slon (certa ou erradamente, pouco importa: a lei existia certamente na poca clssica) contra a ociosidade, forando oscidados a ensinar um ofcio aos seus filhos. Uma outra lei proibia censurar algum pela sua pobreza ou pelo ofcio que exercia. O exerccio de um artesanato no impedia os cidados dedeter o pleno gozo dos direitos polticos, e a assemblia inclua grande nmero de cidados

    artesos lojistas, trabalhadores e comerciantes; alhures, por exemplo, em Tebas, e mais ainda emEsparta, isto teria parecido chocante. Em Atenas, o cidado j no era obrigado a ser um proprietrio rural: se, de fato, a maioria dos atenienses possua um bem de raiz qualquer, estavafeita uma inovao de princpio /.../ Mais do que isso, na Atenas do sculo V, a tcnica no somente aceite, mesmo em certa medida homenageada: para os atenienses, como para seusadversrios, Atenas a cidade datchne por excelncia. Todo este estado de esprito novo teveinfluncia na evoluo econmica da cidade: Atenas , no sculo V (e continuar a s-lo nosculo IV), a cidade grega mais desenvolvida do ponto de vista econmico, verdadeiro centrocomercial de toda a bacia oriental do mediterrneo /.../ Quanto valorizao datchne, verifica-

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    se que ela no abrangia igualmente todos os aspectos do tcnico: atchne celebrada peloscorntios e pelos atenienses em Tucdedes atchne (naval, mais exatamente) e poltica. Osgrandes mestres datchne, os sofistas, limitam-se de fato a certastchnai, em particular, a

    retrica e a poltica. O que os interessa a arte de agir sobre os homens, no sobre a matria.5

    A despeito das contradies envolvidas no mbito da tcnica, o certo queAtenas , sem dvida, centro econmico decisivo entre os sculos V e IV a.C. Osargumentos de Vidal-Naquet e Austin ilustram bem a singularidade ateniense referida,desde a extenso da categoria do cidado aos mais pobres, como o desenvolvimentocomercial que necessitava datchne para a construo de navios apropriados aocomrcio.

    No obstante, ocorre que o sculo IV, apesar da pujana ateniense, mostrartambm suas inviabilidades, o incio de seu declnio. Aristteles, muito provavelmente,foi influenciado por este processo. De modo que vale ressaltar a inexistncia noargumento aqui desenvolvido de qualquer determinismo entre formaes ideais eformaes scio-histricas; no se trata, evidente, de compreender as formaes ideaiscomo meros reflexos das condies histricas. Com o objetivo de tornar clara talafirmao, nos limites desta Introduo, vlido utilizar a famosa passagem deO

    Capital, em que Marx explicita as relaes entre as formaes ideais e a realidadehistrica, ao reconhecer que Aristteles foi o primeiro a analisar a forma do valor e suaigualdade necessria quando da permuta entre mercadorias distintas. Marx, no entanto,observa que Aristteles concebe tal igualdade como"artifcio para a necessidade prtica" , ou seja, Aristteles no percebe a verdadeira natureza do valor, de comomercadorias distintas poderiam ser equivalentes ou postas num patamar de igualdade.Para Marx, tais limites da ideao aristotlica decorrem, em primeiro lugar, da prpriaformao social grega, notadamente do trabalho escravo que se baseava na"desigualdade entre os homens e suas foras de trabalho". Nas palavras do filsofo deO Capital:

    Que na forma dos valores de mercadorias todos os trabalhos so expressos como trabalhohumano igual, e, portanto, como equivalentes, no podia Aristteles deduzir da prpria forma devalor, porque a sociedade grega baseava-se no trabalho escravo e tinha, portanto, por basenatural a desigualdade entre os homens e suas foras de trabalho. O segredo da expanso devalor, a igualdade e a equivalncia de todos os trabalhos, porque e na medida em que so

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    trabalho humano em geral, somente pode ser decifrado quando o conceito de igualdade humana j possui a conscincia de um preconceito popular. Mas isso s possvel numa sociedade naqual a forma mercadoria a forma geral do produto do trabalho, por conseguinte tambm arelao das pessoas umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias a relao social

    dominante. O gnio de Aristteles resplandece justamente em que ele descobre uma relao deigualdade na expresso de valor das mercadorias. Somente as limitaes histricas da sociedade,na qual ele viveu, o impediram de descobrir em que consiste "em verdade" essa relao de

    igualdade.6

    Na esteira da configurao dos limites scio-histricos e de suas influncias

    sobre as possibilidades do pensamento em seu movimento de apreenso dos nexos reais,E. Vaisman enriquece nossas consideraes, no rastro do pensamento marxiano, ao

    apontar que:

    a dimenso fundamental dadeterminao social do pensamento, ao contrrio do que genericamente suposto, diz respeito sociabilidade comocondio de possibilidade do pensamento. A conscincia reconhecida como conscincia do ser social, como seu atributo e senquanto tal pode se realizar. Assim, a sociedade fornece a matria, os meios e as prpriasdemandas para a exercitao do pensamento, pois, da situao mais corriqueira mais tcnica ou

    sofisticada, sempre como ser social que o homem pensa.7

    Dito isso, voltemos ao argumento anterior. Talvez o ponto de clivagem que

    demonstre os influxos contraditrios da formao social grega, a partir do sculo IV,esteja na exasperao da guerra em seu uso poltico. Naquet e Austin, assim dispem:

    O que caracteriza o sculo IV , antes de mais nada, a guerra. O estado de guerra torna-se quase permanente. De 431 a 338, isto , durante perto de um sculo, o mundo grego conheceu quase permanentemente a guerra generalizada, sem falar, claro, de inmeros conflitos localizados. Ascausas deste estado de guerra so mltiplas. Em primeiro lugar, h que citar a falncia do

    imperialismo hegemnico, que havia triunfado no sculo V.8

    Aspecto esclarecido, deve ser ressaltado, em primeiro lugar, o fato de que boa

    parte da vida de Aristteles vivida no interior das guerras entre 431 e 338 a.C.,ou seja,em uma plis que perdeu os ideais de construo do homem na e pela cidadania. Por

    6. K . MARX,O Capital, p. 62.7. E.VAISMAN , A Usina Onto-Societria do Pensamento,in: Rev. Ad Hominem,Santo Andr, Tomo I, p.286, 1999.

    8. M. AUSTIN eP.VIDAL-NAQUET,Economia e sociedade na Grcia antiga, p. 132.

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    isso, se a poltica a construo racional das possibilidades humanas, os tempos deAristteles parecem desmentir todos os propsitos da comunidade grega, isto , temosclaramente um choque entre as proposituras ideais dos gregos e sua efetivao na vidareal. Torna-se claro que, Aristteles marcado pelo legado de uma plis que comearaa entrar em crise j no sculo VI, com Slon, mas que se recupera e triunfa comPricles, sem ter vivido, porm, o esplendor efetivo de uma comunidade autrquica, do bem viver e da amizade. A propsito, vale ainda dispor da palavra de Vidal-Naquet eAustin:

    A histria da cidade grega , poderia dizer-se, a histria de um ideal impossvel que quase nuncafoi realizado, a no ser imperfeitamente e por um curto perodo. A cidade visava assegurar a

    existncia dos seus membros. Supunha para isso a concrdia entre os cidados (e a ausncia dedesigualdades econmicas demasiado grandes), a autarcia econmica e a independncia polticae militar. Entre o ideal e a realidade houve freqentemente, mesmo na poca clssica, uma certadistncia. O equilbrio interno era freqentemente rompido por conflitos sociais e polticos, aautarcia econmica era difcil de se realizar plenamente, sobretudo para as cidades maisimportantes, nomeadamente para o trigo e os metais, e a autonomia poltica era regularmenteameaada, no s por potncias estrangeiras (a Prsia, a Macednia), mas por outras cidadesgregas com ambies hegemnicas, como Atenas no sculo V. No sculo IV, a distncia entre o

    ideal e a realidade vai se tornando maior .9

    A citao acima fundamental para que se possa entrever o hiato existente entre

    os propsitos da reflexo poltica grega, de um lado, e a realidade histrica propriamente dita, de outro. De fato, em tempo algum a poltica alcanou sersocialmente resolvente. Nesse sentido, Aristteles, no Livro III [1278 b] emPoltica, parece desabafar, ao reconhecer que j em seu tempo os governantes manifestavaminteresses predominantes por questes privadas, por seus cargos e pelos benefcios que poderiam obter em tais circunstncias. Em verdade, a filosofia e a histria sempreviveram um descompasso real, contradies insolveis desde o sculo V a.C. A esterespeito, relevante tomar o argumento de Francis Wolff, em Aristteles e a Poltica:

    a idade do ouro da plis o sculo V; a da filosofia, o sculo IV. A poltica, no sentido de vidasob o teto da plis, portanto, no coincide exatamente com a poltica, no sentido de reflexosobre a plis /.../ Em Atenas, no sculo V, desconfia-se das especulaes tericas dos 'filsofos'sobre a Natureza e sobre o Ser, e o primeiro filsofo da cidade, Scrates foi condenado por ela

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    um passado que j no mais existe: sua vida acompanhada de um lento, mas agressivo processo agonizante da comunidade. Esta perdeu a medida e encontrou naintensificao da guerra seu modo de ser. Logo, efetivamente legtimo inquirir: atque ponto a poltica e a tica aristotlicas no representam os meios, os instrumentos dereforma e reordenao de uma formao social em declnio, impondo-lhe uma justamedida? No ser este, ento, o sentido do resgate de Slon e de Pricles? O que parece, que Aristteles olha para o passado, com a angstia de querer rep-lo na ordem dodia, apercebendo-se, contudo, que um propsito praticamente impossvel.

    Num cenrio marcado pela guerra compreensvel, que, desde o incio, a obraaristotlica fosse marcada pela reflexo poltica, pela urgncia de se encontrar novasformas de convivncia na plis, de reencontrar os velhos e bons ideais perdidos. Poroutro lado, a prpriaPoltica, obra da maturidade, ao adensar suas formulaes sobre otema, ao expor suas preocupaes ao final da vida, evidencia, de fato, que o tema poltico matrizara sua vida, porquanto inicia e encerra as reflexes construdas no cursodos tempos.

    Passemos, agora, s consideraes de seus comentadores. No captulo dedicado ao pensamento poltico de Aristteles, em texto

    consagrado pela crtica, W.Jaeger afirma em tom pesaroso:

    Se possussemos os escritos que os antigos conheciam, teramos um quadro do desenvolvimento poltico de Aristteles desde a academia at sua velhice. A srie comea com os dois livros sobreo Poltico, inspirados na obra platnica do mesmo nome, e os quatro grandes volumes Da

    Justia.11

    O tom justificvel, pois inmeros escritos da fase juvenil12 se perderam,restando, em alguns casos, apenas captulos ou fragmentos relativamente extensos, porvezes obscuros, dos propsitos aristotlicos. De tal lacuna possvel inferir, segundoJaeger, a influncia inicial do platonismo, notadamente na redao sob forma dedilogos e de temas afins com Plato. Para Jaeger, trata-se de um Aristteles ainda platnico que, progressivamente se afasta de seu mestre, num processo longo rumo aoaristotelismo.

    11. W.JAEGER, Aristteles, p. 298.

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    Em textos mais recentes, como os de P.Aubenque e gnes Heller, Aristtelescomparece no apenas como herdeiro mais ou menos distante de Plato, mas desdelogo, como pensador original. Assim, Heller em seu Aristteles e o Mundo Antigo,afirma:

    O giro radical em que se baseia toda sua tica, Aristteles j realizara em suaGrande tica, natica Eudemia e na Retrica. Este giro no seno uma ruptura definitiva com a transcendnciana tica. 'Temos de falar, pois [...] do bem: mas no do bem em geral, mas do bem em relao a

    ns'. Assim comea Aristteles suas argumentaes na Grande tica.13

    Para Heller, o defeito capital de Jaeger se manifesta na anlise dos textos juvenis, numa

    "particular predileo por tudo o que procede da influncia platnica"14

    omitindo, emmuitos casos, "as caractersticas novas, especificamente aristotlicas"15. SegundoHeller, Jaeger aproxima desmesuradamente "o jovem Aristteles de Plato muito maisdo que as provas o permitem"16. Essa mesma tnica j estava presente vinte anos antesem A Prudncia em Aristteles, em que Aubenque censura enfaticamente Jaeger emseus propsitos de colar Aristteles a Plato. Assim, aps tecer uma srie de crticas tese de Jaeger sobre o conceito de prudncia em Aristteles, afirma que W. Jaeger

    substitui

    o problema da interpretao da tica aristotlica noconjunto da especulao aristotlica pelo dolugar datica Nicomaquia na histria da tica aristotlica e, de modo mais geral, do lugar datica aristotlica na histria da tica. compreenso, por assim dizer, horizontal, que multiplicaas conexes com outras partes do sistema, preferiu-se a compreenso vertical dos diferentesmomentos na histria de uma noo ou de um problema: o resultado que vendo noaristotelismo uma simples etapa entre o pr-aristotelismo do jovem Aristteles e o ps-aristotelismo dos epgonos, termina-se por esquecer o que h de especfico no prprio

    aristotelismo.17

    13. A. HELLER, Aristteles y el Mundo Antiguo, p. 195-6.14. A. HELLER, Aristteles y el mundo antiguo, p. 183.15. Ibid ., p. 183.16. Ibid., p. 183.17.P.AUBENQUE, A prudncia em Aristteles, p.41-50.

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    De modo que Aubenque v limites na interpretao que no pe em evidncia o prprio aristotelismo. Aristotelismo que, para Aubenque, deita razes na cultura pr- platnica, nas tragdias gregas, fazendo com que Aristteles se converta em filsofo datradio, autntico grego, recuperando razes rejeitadas por Plato. Eis, aqui, o oceanoque se desenha ao buscar as origens do pensamento aristotlico, de suas reais e efetivasrelaes com Plato, de sua originalidade e propsitos. Querelas parte, o fato quedelinear a formao do pensamento poltico aristotlico tarefa ingrata, para no dizerquase impossvel, dadas as especificidades dos textos juvenis. Em verdade, tal esforoexigiria um estudo pormenorizado, de cunho quase filolgico, que assim confrontasseos textos, entendendo ou buscando desfazer equvocos e confuses analticas.

    No que tange aos textos de maturidade18, talvez ocorra o questionamento dorecorte proposto. Em primeiro lugar, tal recorte se sustenta a partir da admisso, semreparos, pelos intrpretes, da unidade, importncia e coerncia das obras citadas naformao do pensamento politicamente maduro de Aristteles. Como referncia inicial,tomem-se as palavras de Francis Wolff em Aristteles e a Poltica:

    A conduta dos indivduos constitui a matria-prima da tica, e a histria das cidades com seusregimes constitui a da poltica. De uma para outra, h mltiplos laos, com sentido duplo: a

    poltica continua sendo, para Aristteles - ao menos o que ele afirma no incio de sua tica -, asuprema cincia, da qual dependem o estudo e a efetivao do 'soberano bem'; o homem s poderealizar sua natureza de homem na e pela cidade. Inversamente, a cidade, quando digna desse

    nome, tem uma finalidade altamente moral, como Aristteles no pra de repetir naPoltica.19

    Wolff afirma os laos inseparveis e notoriamente conhecidos entre poltica e

    tica, da plis desenvolvida em oposio aos povos brbaros. O que Wolff expressou o esprito de uma poca, sua demanda fundamental, sua identidade no fazer-se homem

    em comunidade.O que ningum esperava, contudo, que tal demanda, j entre os gregos,

    mostrasse seus limites, o divrcio, mesmo no consentido, entre poltica e moral, comoatestamin limine as palavras do estagirita naPoltica, III, [1278 b]:

    18. Textos polticos que correspondem aos ltimos 12 anos de atividade intelectual de Aristteles: sodesse perodo A Constituio de Atenas, tica Nicomaquia e Poltica, em ordem cronolgica. 19. Francis WOLFF, Aristteles e a Poltica, p. 20.

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    quando o Estado fundado sobre a igualdade, quer dizer, sobre a similitude entre os cidados,estes estimam ser justo exercer a autoridade cada um a seu turno; na poca antiga como natural eles consideram justo desempenhar seu cargo tendo, em vista, o zelo pelo interesse dooutro; da mesma forma que o outro, quando do exerccio do cargo, se preocupava com o

    interesse daquele. Mas, atualmente, por causa das vantagens que se retira da riqueza pblica e doexerccio das magistraturas, os homens desejam conservar seus cargos, como se o poder

    mantivesse, para sempre,em boa forma os governantes. 20

    Aqui no o lugar e nem nosso intuito desenvolver tais comentrios, mas

    apenas identificar o denominador comum de tais obras: encontrar a forma poltica maisadequada para o bem viver, para o exerccio da cidadania. Nesse sentido, reverso desuas mais ntimas aspiraes, Aristteles percebe que parte dos propsitos gregos seviram, no mnimo, frustrados frente o fervor e a paixo com que foram expostos,abordados, investigados e postos prova. A tarefa colossal de se engendrar um padro poltico que estimule e preserve a convivncia comunitria , em sntese, o mote que povoa e instiga as pginas daEN e da Poltica, desafios de um tempo que se viramimpossibilitados, emagrecidos ou mesmo abortados pelas inviabilidades da comunidadegrega.

    Quando da redao daEN , Aristteles j havia escrito o volumoso trabalho de

    observao histrica e reflexo poltica que se objetivou pelo exame de 158constituies gregas. Sua importncia to evidente que o filsofo, nas derradeiraslinhas do livro X daEN [1181 b], ao comentar os propsitos de um estudo quedesembocaria naPoltica, cita o material:

    nossos predecessores negligenciaram examinar o domnio da legislao. Talvez seja melhormirar nossa ateno para tais questes e estend-las cincia do governo em geral a fim de dar,tanto quanto podemos, sua forma final filosofia humana. Inicialmente, nosso esforo o decompletar tudo aquilo que se disse de maneira satisfatria, embora fragmentria por nossos predecessores; em seguida reuniremos as diferentes constituies, e depois examinaremos ascondies favorveis ou desfavorveis dos Estados em geral, e as formas particulares degoverno, como tambm as razes que propiciam ou no a boa administrao dos Estados. Estasconsideraes permitiro discernir o melhor governo, as instituies, as leis e os meios que

    asseguram esta superioridade.21

    20. ARISTOTE,Politique, Livre III, p. 66-7. 21. IDEM,thique de Nicomaque , p. 320.

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    Traos destes estudos aparecem, de forma parcial, nos chamados livroshistricos da Poltica, nos quais Aristteles examina as formas existentes deconstituio. Temos, ento, um amlgama de aquisies que interagem entre si.Portanto, aEN termina por onde comeam as reflexes daPoltica, das formas deEstado, das constituies, da crtica de seus predecessores. As 158 constituies permitem a Aristteles examinar empiricamente a poltica real, seus problemas, isto ,sair da pura especulao, do estado ideal, e trabalhar a poltica dentro de suas possibilidades de efetivao: o estado possvel, no interior do bem possvel. Olamentvel que determinadas partes constitutivas daPoltica ganhariam ordem eefetivo entendimento no confronto explcito com as 158 constituies que forneceram a base real de inmeras ponderaes do estagirita. O tamanho da perda s fica patente,quando se percebe que a CA, nico documento vivo de um conjunto de 158constituies, versa sobre a diversidade das constituies atenienses, sua histria e seus principais polticos. Nesta, temos um Aristteles preocupado no apenas em reafirmarcategoricamente suas idias, mas tambm em expor a histria de seu tempo, dastransformaes polticas que se originaram a partir das aristocracias, das tiranias e donascimento da democracia. Temos, pois, num primeiro momento, o perfil unitrio quearticula aEN , a Poltica e as 158 constituies. Tal perfil ganha fora e expresso

    quando se revela, ainda, a intrnseca unidade no campo temtico e categorial.Do ponto de vista temtico, temos o homem no singular e plural, vale dizer, do

    indivduo moral que ganha corpo e sentido na e pela vida em comunidade e,inversamente, s as boas constituies organizam e ordenam a melhor forma de viver, oque pressupe moralidade. Em seguida, avulta a centralidade da categoria do limite,notadamente na expresso da mediania, do justo-meio, da medida. EmCA, EN ePoltica, tal categoria percorre os porosdo legislador Slon, da virtude morale da

    politia, respectivamente. A mediania estrutura o pensamento do autor, organiza eirradia os ndulos centrais de suadmarche poltica. Desdobremos ento, em algunsaspectos, tal problemtica, e tomemos, no intento de refletir sobre o tema, a palavra deimportantes intrpretes de Aristteles. Com o que, ademais, se justifica nossa inclinaoterica por alguns comentadores, a partir e com os quais urdimos o estudo.

    Como expresso das inquietudes e propsitos da construo do homem grego,do realizar-se enquanto ser da comunidade, o limite e a mediania assumem um papel

    ativo e central na cultura grega. A mediania, longe de estar confinada dimensoreflexiva, puramente ideal, adentra no plano do multiverso sensvel, do ser precisamente

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    assim da comunidade grega, e, como em uma ramificao infinita, assume a identidadedos mais variados nveis de existncia social da poca. Dito diversamente, emAristteles, a mediania assume a forma da melhor constituio, do justo valor moral, da justia, do dinheiro, da riqueza. Assim, a no apreenso e o prprio desconhecimento detal especificidade, induz um nmero significativo de intrpretes a tomar a mediania emseu carter puramente semntico, em sua significao categorial abstrata: enquanto, pois, moderao entre extremos, o que naturalmente empobrece e at mesmoobstaculiza o real entendimento desta categoria e de suas implicaes sociais e tericasaludidas.

    Para Jean Aubonnet em longa e laboriosa introduo sua traduo daPoltica,na qual so examinadas, alm desta, aCA e a EN , a mediania comparece comomomento j inserido na juventude de Aristteles, mais precisamente no seio familiar, nafigura de seu pai, que o teria introduzido nos escritos de Hipcrates. Aubonnet afirmaque:

    Nicmaco, pai de Aristteles, como todo mdico da corporao dos Asclepades, teve talvez otempo de iniciar seu filho nas tcnicas de sua arte e lhe fez conhecer os escritos de Hipcrates/.../ Esta iniciao mdica pode ter imprimido s obras do filsofo uma tendncia particular quese manifesta naPoltica por inmeras comparaes entre a arte do homem de Estado e aquela do bom mdico; a partir de um "exame clnico" das diversas constituies, Aristteles - como um prtico - sugere uma teraputica e remdios para suas debilidades e para seus problemas; assimcomo a medicina, como um todo, se baseia na proporo, na simetria, do mesmo modo que asdiversas partes do Estado, a sade, com efeito, no seno um estado de equilbrio /.../ entre doisextremos, entre dois excessos. Assim, esta doutrina do justo-meio deriva - sem a menor dvida -

    da concepo mdica da sade j exposta por Plato em o Timeo.22

    A afirmao de um empirismo de talhe hipocrtico ou a subsuno ideal a

    Plato, como gnese da mediania em Aristteles lacunar, pois torna rarefeito ouirrelevante o multiverso histrico que engendrou, no dia a dia, o exerccio da medianiano mundo grego. A falha capital de Aubonnet, parece vlido afirmar, sucumbir aouniverso puramente pragmtico de umatchne mdica, herdada de seu pai, sem seindagar por que taltchne se ps desta forma e o que ela representa no universo grego.Por outro lado, e este argumento igualmente enrgico, a dimenso puramente tericaadvinda de Plato no explica como uma categoria poderia se tornar to central numautor, isto , a que necessidades sociais ela corresponde? Falta, importa salientar, a

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    presena da comunidade grega, dos desafios gregos, que fizeram da mediania problemacentral no s de Aristteles, mas de toda a cultura grega. Ademais, Aubonnet, notrecho acima, no refere que emEN a questo da mediania comparece em semelhanteequao, evidenciando que a unidade entre a arte da medicina e a poltica insuficientecomo explicao de um tema que j havia percorrido escritos anteriores, visto que antesde redigir aPoltica, Aristteles j havia escrito aEN cujo alicerce a prpria categoriada mediania, como se v no livro II, [1104 a]:

    o excesso ou insuficincia de bebida e de alimento comprometem a boa sade,assim como a medida, nestes casos, cria, desenvolve e salvaguarda a sade.23

    O que se apresenta, assim, at o momento, e no parece desmedido ou precipitado salientar, a universalidade terica do justo-meio que nasce da penaaristotlica nas obras examinadas. Constata-se que a mediania acaba assumindo, oumais propriamente, pondo-se como categoria torneadora da poltica, da tica, da vidacomunitria, ganhando a cada momento uma face particular. Vejamos, no obstante,como um autor similar a Aubonnet, tambm no alcana suficincia analtica emrelao categoria da mediania.

    Intrprete consagrado, autor do livro Aristteles, em texto dos anos 30, W.D.Ross busca traar a natureza da filosofia aristotlica. Nas linhas iniciais de seu prefcio,explicita claramente seus objetivos: "expor os principais elementos de sua filosofia, talqual ela se oferece a ns em suas obras".24

    No captulo dedicado Poltica, aps algumas consideraes sobre a estruturada obra, enfatizando a ordem dos livros, o carter incompleto de determinadas partes e aimportncia da metodologia aristotlica, Ross afirma:

    Ele supe a prioridade (em um certo sentido) do todo em relao a parte; a identidade danatureza de uma coisa com o fim para o qual ela tende; a superioridade da alma sobre o corpo; da

    razo sobre o desejo; a importncia do limite, da moderao.25

    Ora, a preocupao com a moderao e o limite algo aludido, mas poucodesenvolvido por Ross. Alm desta passagem, o autor faz meno aos tradicionais

    23. ARISTOTE,thique de Nicomaque, p.54. 24. W.D.ROSS, Aristote, p.7.

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    passos daPoltica na qual o limite comparece de forma relevante: em primeiro lugar,quando se caracteriza o governo da classe mdia como o nico capaz de evitar osextremos. Em segundo lugar, quando so examinadas a dimenso da riqueza e suanecessria moderao face virtude moral. Com respeito classe mdia, Ross observa:

    Vimos na tica que a vida feliz a vida conforme o justo-meio. Quando os dons da fortuna nosvem em excesso ou de forma muito precria, torna-se difcil seguir a razo. Aqueles que tmforte propenso para a violncia e aqueles que muito pouco se inclinam para patifaria mesquinha.Os primeiros no adquirem mesmo na escola o hbito da obedincia e, por conseqncia, no podem obedecer; os outros no podem comandar e devem ser conduzidos como escravos. Assimnasce 'uma cidade de senhores e escravos, onde uns desdenham e os outros cobiam. Feliz , pois, a cidade que contm uma ampla proporo de cidados pertencentes classe mdia,

    podendo balancear os extremos. Esta classe a nica que no cria uma coalizo de adversrios;os ricos e os pobres ( ao menos o que pretende Aristteles) confiam sempre na classe mdia

    mais facilmente do que uns em relao aos outros.26

    O que se depreende , portanto, a idia central de que a riqueza excessiva ou a pobreza excessiva inviabilizam a verdadeira constituio, a boa ordem da cidade e a possibilidade do exerccio da cidadania. Os extremos impedem que o indivduo adquira

    capacidade moral de comandar e ser comandado, requisitos prprios do cidado. Aclasse mdia se pe, a partir de seu carter mediano, como nico estamento capaz decontrabalanar a tenso entre ricos e pobres, de usufruir a moralidade que sabecomandar e ser comandada. O que fica patente que Ross percebe a presena e aimportncia da mediania, mas no o seu carter histrico fundante. Ross trata a medianiaapenas como categoria ideal, desvinculada dos problemas da comunidade, de suas razes profanas. No ocorre ao autor buscar o vnculo entre a idia de mediania e o passado e presente gregos. No ocorre a Ross indagar o vnculo da classe mdia, da riquezamoderada com a formao social grega, suas necessidades e possibilidades. como seuma idia fosse gerada apenas das inquietaes e capacidades de quem a formulou, de suainteligncia e singularidade prprias. Assim, a mediania aparece como categoria que antesse refere a um especfico equilbrio ideal e abstrato, do que a uma estrutural condio devida que deita razes em necessidades humanas mais profundas e vitais. Nesse sentido,Ross apenas constata o conceito de mediania em termos empricos, e, no a natureza realde tal categoria.

    26. W.D.ROSS, Aristote, p.359.

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    Pginas frente, Ross nos remete para o mesmo universo:

    Os bens em geral podem ser divididos em bens exteriores, bens do corpo e bens da alma; e ohomem feliz deve possuir os trs tipos de bens. Porm, eles no so equivalentes; em primeirolugar a experincia mostra que um alto grau de virtude combinado a um conjunto moderado de bens exteriores produz uma felicidade bem maior do que os grandes bens exteriores com poucavirtude. Os bens exteriores so bons apenas quando o possumos dentro de certos limites; para

    alm deste limite, eles podem se tornar nocivos.27

    Aqui, a categoria da mediania identificada com a posse de bens moderados, naconcepo de que o homem virtuoso aquele que possui bens na justa medida. Ross poderia revelar no apenas a constatao emprica de que, em muitos casos, a riquezaexcessiva desnatura ou desequilibra o carter das individualidades, mas tambm que ariqueza excessiva que se contrape aomodus vivendi grego.

    O mesmo dilema se pe no captulo dedicado tica. Ainda que contemplandoalguns traos datica Eudemia, o forte da caracterizao pretendida recai, sobretudo,na EN . De modo que Ross discorre conscientemente sobre os mais variados aspectos,desde a natureza contingente das aes, das circunstncias, da escolha, do ato voluntrioe involuntrio, das virtudes, da felicidade e do justo meio. Caracterizao ampla queno o transporta para o enfrentamento da categoria da mediania para alm de suarepresentao genrica, abstrata. Ao comentar a trama dos atos humanos em Aristteles,afirma:

    A primeira regra que ele coloca no que concerne aos atos que o excesso e a falta devem serevitados. Do mesmo modo que o excesso ou falta de exerccios, ou ainda de alimentao soigualmente nocivos ao corpo; do mesmo modo se ns acreditarmos em tudo, nos tornamosfrouxos, e, se no acreditamos em nada nos tornaremos ousados e tolos, mas em nenhum destesdois casos ser a coragem que se desenvolver em ns. Os atos que realizamos quandoadquirimos a virtude tero a mesma caracterstica da moderao daqueles que tero permitido

    seu desenvolvimento.28

    27. W.D. ROSS, Aristote, p.366.

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    Mais uma vez entra em cena, ento, a categoria da mediania em sua expressomoral de virtude equilibrada, que preserva ao fugir dos extremos, que clama pelamoderao. Dessa forma, Ross revela a tnica aristotlica da proporcionalidade, daigualdade, do equilbrio to presentes nas formas da justia. O que no irrompe, porm, a relao entre formas da justia e particularidade da entificao social, ou seja, Rossapenas descreve o pensamento aristotlico sobre o tema, sada sua importncia, masno indaga o que permitiu a Aristteles desenvolver um direito positivo que almejaconstruir e dar equilbrio comunidade. Em outros termos, Ross no relaciona o direitoconstrutivo, o homem prudente, os sentimentos que devem ser vividos de modoadequado, o equilbrio das leis ao homem que busca sua identidade na vida citadina,autrquica em momento inovador de sua histria.

    J em tempos mais recentes, vale frisar, de novo, a presena de Pierre Aubenquecom o livro A Prudncia em Aristteles. Neste, o autor examina a natureza do conceitode prudncia, sua origem e desenvolvimento no pensamento aristotlico. Para tanto,Aubenque percorre o tecido da obra aristoteliana, no s consubstanciada pelaticaEudmia e a Magna Moralia, mas, notadamente pelaEN e, complementarmente, pela Metafsica. Aubenque defende a tese de que a categoria da prudncia exposta no livro

    VI daEN deriva da noo de contingncia. Em verdade, Aristteles teria elaborado umacosmologia da contingncia ao dissociar, na Metafsica, o mundo sublunar do mundosupralunar, o mundo da mudana e o mundo da necessidade. De sorte que Aubenque v,na categoria da prudncia, o reconhecimento aristotlico da finitude, dos limites e das possibilidades do agir num mundo incerto e imprevisvel. Isto caracteriza, segundo oautor, no apenas a recusa do iderio socrtico-platnico da prudncia, mas, acima detudo, a descoberta da natureza do agir humano, de sua peculiaridade, da ao que se

    desenvolve num universo bipolar, do indivduo e da mundaneidade. Aubenque, enfim,v em Aristteles um reordenamento do problema na medida em que no "se pode falarda prudncia sem se perguntar por que o homem tem de ser prudente neste mundo, prudente mais do que sbio ou simplesmente virtuoso".29 De modo que a categoria da prudncia naEN no significa apenas uma anttese aos exageros do platonismo, Aubenque pretende mostrarque a distncia existente entre as categorias da prudncia na Magna Moralia, no Protrtico,na tica Eudmiae de sua sntese na EN resultado do novo enfoque aristotlico, a um s

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    tempo, entre mundaneidade e capacidade subjetiva. O que talvez chame mais ateno o fatode Aubenque retornar aos clssicos da tragdia grega para colocar Aristteles como herdeiroda prudncia e da contingncia trgicas. Assim, para Aubenque

    sempre se viu Aristteles sombra de Plato, acabou-se por esquecer que ele era antes um grego,talvez mais Grego que seu mestre, mais prximo que este da prudncia reverencial, verdadeiramensagem trgica da Grcia, da qual Plato acreditou enterrar os ltimos escrpulos, dissipar asltimas sombras, e que, no entanto, renasce no homem aristotlico que, num mundo dividido,

    no mais dirigido pelo espetculo de um Deus demasiado distante.30

    Em contraste com uma certa historiografia31, Aubenque no pretende rastrear

    um possvel lao evolutivo do conceito de prudncia nas ticas de Aristteles, mas, emcontraposio, nos coloca diante de um Aristteles com razes profundas na culturagrega, que recupera na origem um conceito secular. O que resulta positivo, para nossasconsideraes, que Aubenque, ao fazer isso, ressalta em termos mais substantivos, emface de intrpretes precedentes, as dimenses de limite, mediania e prudncia. Mesmoque Aubenque pouco evidencie as particularidades histricas de tais movimentos ideais,seu reforo e seu adensamento destas categorias vai ao encontro de nossos propsitos de pesquisa. Em suma, Aubenque alcana expor alguns nervos vitais de tais conceitos,conquanto no os insira no movimento histrico que os motivou e engendrou. Dequalquer modo, enftico ao afirmar que a "idia delimite"32

    um dos traos mais constantes do esprito grego. Um bom exemplo do entrelaamento dessestemas fornecido por listas, a metade legendria, sem dvida, de preceitos atribudos pelatradio aos Sete Sbios da Grcia. Na lista atribuda a Demtrio de Falero, conservada porEstobeu, encontramos misturadas exortaes como estas: a medida a melhor de todas as coisas/.../ no exagerar /.../ conhece-te a ti mesmo /.../ conhece o momento oportuno /.../ama a

    prudncia33.

    Em verdade, tal panorama traado por Aubenque evidencia que a prpria prudncia se pe num contexto de limites, isto , ser prudente significa optar pelamediania, evitar os excessos, pois, ao analisar as situaes, o indivduo percebe a marca

    30. Ibid ., p.54. 31. Cf. a crtica de Aubenque a W.Jaeger no livro A prudncia em Aristteles, p.32.

    32. P. AUBENQUE,op. cit ., p.263.

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    indelvel da contingncia, sua fora e presena; de modo que a prudncia, diante dasincertezas, canalizada para um limite seguro: o do justo-meio.

    Por fim, nossa rpida digresso no poderia deixar de resvalar, uma vez mais,no importante estudo Aristteles e o Mundo Antigo, de gnes Heller. De forma enftica,a filsofa reconhece a importncia da categoria do justo-meio, do limite, na vida socialgrega. De sorte que a autora assinala como a categoria da medida tem sua origem nacomunidade, afirmando:

    No princpio o conceito de medida no era tico, mas econmico /.../ o adjetivomtrios se referiaunicamente riqueza, quer dizer, ao seu uso judicioso /.../ A medida perde progressivamente seusentido de sbia utilizao da riqueza para expressar os efeitos que esta, a abundncia ou o

    relativo caudal dos bens materiais exercem sobre a personalidade humana.34

    E, acrescenta:

    A 'medida' enquanto funo de juiz moral se vincula estrutura social e ideolgica da Grcia, principalmente na tica. O beco sem sada em que se encontrava a produo, influi de tal modoque a relao com o consumo se converte em problema central da atividade humana. Dessemodo, a temperana acaba por tornar-se uma categoria fundamental. Assim, desde o momento

    em que as necessidades da produo no punham limites objetivos s possibilidades de satisfazers necessidades humanas, a aplicao de uma medida moral, subjetiva, satisfao das mesmas,fez-se necessria. Dissemos que este tipo de medida apareceu basicamente na Jnia, onde ariqueza econmica era considervel e onde a temperana no consumo era uma exigncia maior

    do que em qualquer outra parte.35

    O que se deve indicarin limine, postos o argumento e a argumentao em curso, que nenhum outro estudioso foi to significativo ao imbricar limite, mediania e

    atividade humana, produtiva. Heller sustenta a idia de que o limite moral, a mediania, tem sua origem nas dimenses acanhadas da produo grega e que a mesma, dado o padro modesto, era insuficiente para suprir as j precrias necessidades humanas. Da,em termos estruturais, a imposio moral do limite. Talvez o que deva ser posto paraalm das aquisies de Heller, proposio que este estudo buscar determinar pouco a pouco e que ora apenas se esboa, o fato de que a imposio do limite em suaexpresso moral deriva da imposio do limite pela vertente poltica, a qual, por sua

    34. A. HELLER, Aristteles y el mundo antiguo, p. 305.35. A. HELLER, Aristteles y el mundo antiguo, p. 309.

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    vez, reverbera e marca a dinmica e orgnica da vida produtiva. O que vale dizer que amediania moral decorrente dos influxos limitadores da poltica, e no o contrrio. Ditode outro modo, a poltica ordena, organiza e equilibra as possibilidades da convivnciasocial; a moralidade, como fora coadjuvante, refora a ordenao da poltica noindivduo, fortalecendo reciprocamente a ordem e o equilbrio da comunidade. Oindivduo, portanto, no caso grego, constrangido poltica e moralmente a se pr numdeterminado limite, vale dizer, a aceitar o limite como virtude. A prpria modernidadeacentua, por vezes de forma imprpria, a tnica do imprio tico, do homem virtuoso,em detrimento do homem poltico ou pblico. Ou ainda, a modernidade tende a pr emrelevo o homem grego em sua acepo moral e poltica e no, inversamente, na acepodo indivduo poltico e moral. Neste ponto, cabe a pergunta, tal nfase no seria ocaminho encontrado pela modernidade para justificar as falcias da poltica, do Estado,adstringindo-as ao campo moral, evitando-se assim, o exame de sua lgica enecessidade?

    A seguir, e, em plena consonncia com as consideraes acima, deve ser postoque a primazia do poltico sobre a moral se expressa na distino qualitativa queAristteles estabelece entre os fins da poltica e os fins da moral. Nas pginas iniciais daEN , I, [1094 b], Aristteles estabelece claramente a prioridade da poltica sobre a tica,

    ao afirmar que:

    Ela determina quais so as cincias indispensveis aos Estados, fixa o que cada cidado deveaprender e at que ponto. E no vemos, com efeito, que as cincias mais nobres se encontramsob sua dependncia, por exemplo, a cincia militar, a economia e a retrica? Como a polticautiliza as outras cincias prticas e, por outro lado, legisla sobre o que devemos fazer ou evitar,seu fim abarca o das demais cincias, a ponto de ser o bem supremo humano. Mesmo que o bemdo indivduo e do Estado se identifiquem, parece mais importante e mais conforme aos fins

    verdadeiros salvaguardar o bem do Estado. Embora seja desejvel atingir este fim para oindivduo tomado parte, mais nobre e divino quando o aplicamos para um povo ou Estados

    como um todo.36

    O que esta reflexo demarca, ento, e que um ponto colunar para o

    reconhecimento da lgica do pensamento poltico de Aristteles o feitio da prevalncia da comunidade sobre o indivduo, do interesse geral sobre o particular, ouainda, da poltica sobre a tica. O indivduo e seus objetivos ganham corpo pela plis,

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    matrizados pelos influxos da mesma, de sua autarquia, do bem viver. Eis que a ticacomparece aqui como coadjuvante, importante, mas balizada pela poltica, inserida emseus objetivos, na direo de fortalecer a comunidade que ganha ordenao por via doinstrumento poltico. De forma que a lgica aristotlica privilegia ou se funda no planouniversal, na comunidade dos homens, no animal poltico que sozinho ou isoladamenteno ou pode nada, mesmo que, por suposto, fosse moralmente bom. O que est em jogo, pois, que a comunidade s pode se afirmar como construo de um trabalhocomunal, imperativo da cidade, porque isoladamente a individualidade no dispe dosmeios necessrios. A comunidade entendida como verdadeira fora produtiva, como anica possibilidade de se produzir em circunstncias desfavorveis, de subsuno dohomem natureza. A esse respeito, talvez seja esclarecedor para o tema citar, mesmo de passagem, alguns trechos dasFormen37 em que Marx afirma o que se segue:

    A comunidade - como um Estado - passa a ser, por um lado, a relao recproca entre estes proprietrios privados livres e iguais, suas aliana contra o mundo exterior e, ao mesmo tempo,sua garantia. A comunidade baseia-se, a, no fato de seus membros serem trabalhadores proprietrios, pequenos camponeses que cultivam a terra; mas igualmente, a independnciadestes consiste em seu mtuo relacionamento como integrantes da comunidade, na defesa doager publicus (terra comum) para as necessidades comuns, para a glria comum, etc. Ser

    membro da comunidade continua sendo condio prvia para a apropriao da terra, mas, naqualidade de membro da comunidade, o indivduo um proprietrio privado. Sua relao comsua propriedade privada , ao mesmo tempo, uma relao com a terra e com sua existnciaenquanto membro da comunidade - sua manuteno como membro da comunidade significa a

    manuteno da prpria comunidade e vice-versa.38

    Em primeiro plano, aparece o proprietrio da terra, o pequeno campons comocomunidade dos proprietrios, livres e iguais em mtua dependncia, na condio deque o proprietrio individual s proprietrio pela comunidade e que sua propriedades tem sentido se estendida comunidade. O que se pe que a propriedade , nestemomento, privada, mas de certo modo comunal. O fato que, no baixodesenvolvimento das foras produtivas, a comunidade aparece como a nica fora capazde reproduzir a comunidade, de dar aos cidados os bens necessrios sobrevivncia, o

    37. K. MARX,Formen: Formaes Econmicas Pr-Capitalistas parte integrante dosGrndrisse,estudos elaborados entre 1857-8 decisivos para a tessitura deO Capital. 38. K . MARX,Formen, p. 70.

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    que, como proprietrio isolado, seria impossvel dado os constrangimentos das foras produtivas. Assim,

    a propriedade, portanto, significa pertencer a uma tribo (comunidade) (ter sua existnciasubjetiva/objetiva dentro dela) e, por meio do relacionamento desta comunidade com a terra,com seu corpo inorgnico, ocorre o relacionamento do indivduo com a terra, com a condioexterna primria da produo - porque a terra , ao mesmo tempo, matria-prima, instrumento detrabalho e fruto - como as pr-condies correspondentes sua individualidade, como seu modo

    de existncia.39

    Em outras palavras, a unidade entre indivduo e comunidade se forja nas

    condies onde a terra , simultaneamente, o local onde o homem exerce o trabalho(matria-prima), realiza o trabalho (instrumento) e colhe o seu fruto. Isto significa que aterra como centro da produo antiga, como fora produtiva, gera, necessariamente,dilemas de toda ordem, desenvolvimento limitado, dentro de limites empiricamenteobservveis. Da, provavelmente, a opo aristotlica pela comunidade. O que temos um homem com potencial finito, com horizontes finitos, com uma produo que,centrada na terra, pouco oferece em termos de desenvolvimento humano-social. Nessamesma direo, tomando arrimo nas teses marxianas anunciadas, Jos Chasin afirma:

    o que agora se destaca, e ainda com palavras de Marx, que 'o mundo antigo representa umasatisfao limitada' do homem. Um universo reduzido de formas acabadas e contornos definidos,de sendas estreitas e curtos horizontes, que nunca saem do campo visual dos agentes e delimitamsuas equaes teleolgicas. Toda a potncia humano-societria a se resume fora coagulantedas relaes comunitrias, toda ela transpassada por uma lgica adstringente que enerva densamalha de resguardos estabilizadores, reiterando e multiplicando fronteiras. Donde provm adecisiva inclinao grega pelamedida, ou mais precisamente pela idealizada justa-medida.

    Marca da sabedoria helnica, a idia de medida traduz antes de tudo a presena e a considerao permanente dos limites - da comunidade e dos indivduos.40

    O que est posto, segundo os autores anteriormente referidos, o horizonte

    delimitado pelas foras produtivas, de um homem coagido ao limite, estrangulado porsuas inviabilidades. Inviabilidades que, segundo Jos Chasin, geram a necessidade de

    39. K . MARX,Formen, p. 86. 40. J.CHASIN, O Futuro Ausente in: Ad Hominem, Revista de Filosofia, Poltica e Cincia da Histria,

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    um controle"extra-social" de regulao e equilbrio da comunidade. De sorte que nesseuniverso, amesquinhado em suas possibilidades, J. Chasin expe sua hiptese:

    por seus limites, debilidades e incipincias intrnsecas, a comunidade antiga [o exemplo grego a melhor iluminura] no socialmente auto-estvel, incapaz de se sustentar e regularexclusivamente a partir e em funo de suas puras e especficas energias sociais. Estaincapacidade ou limite social engendra, a partir de si mesma, em proveito e em vista daestabilidade comunitria, uma dessubstanciao social como fora extra-social - umadesnaturao e metamorfose de potncia social em fora poltica. Ou seja, esta uma forasocial que se entifica pelo desgarramento do tecido societrio, dilacerao naturalmentedeterminada pela impotncia deste, e que, enquanto poder, se desenvolve tomando distncia /.../da planta humano-societria que o engendra (mesmo na democracia direta) e a ela se sobrepe,

    como condio mesma para o exerccio de sua funo prpria - regular e sustentar a regulao.41

    E reitera o mesmo padro de argumentao linhas frente:

    foi a fragilidade da comunidade antiga que fez brotar pela primeira vez a poltica em seu perfilmais atraente, no como produto de suas melhores qualidades, mas precisamente da pequenez desuas energias societrias ou da extenso restrita de suas grandezas intrnsecas. Encarar, em suma,que a poltica como fato e idealizao a filha bastarda da infncia grega, ou seja, que a

    comunidadereal, porm incipiente ou atrfica, ebastardia poltica formam o indissolvelcinturo de ferro da civilizao antiga.42

    Jos Chasin nos coloca diante de uma tese que, firme-se desde j, contrria

    tradio ocidental, a qual encontra na poltica as melhores e mais determinantes possibilidades e qualidades humanas, seara ou mediao que se ergue em prol de ummundo mais racional, quer dizer, menos injusto e mais harmnico. O fato que a

    referida tese se insinua e arma numa contra-corrente, na qual a esfera poltica irrompecomo instncia de adstringncias humano-sociais, e portanto no como afirmaoracional das melhores capacidades dos homens.

    Enquanto para a maioria dos intrpretes da filosofia de Aristteles suficiente pr em relevo as categorias centrais da poltica e da tica; neste estudo, entende-se ser preciso articul-las s formaes sociais gregas. De modo que vital encontrar aunidade, o metabolismo entre objetividade e subjetividade, relao que permite

    41. Ibid ., p. 169-70.42. Ibid ., p.171.

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    reconhecer em termos mais abrangentes como e por que Aristteles levado a pensar dedeterminado modo.

    Isto, por certo, demanda articulao entre pesquisa histrica e anlise filosfica.Do que resulta, assim se cr, um estudo pautado pela anlise rigorosa e historicamentefundada de um conjunto de textos examinados em sua lgica e tessitura prprias.Buscam-se, em suma, ideaes que encontrem arrimo nos textos, eco real, assim como aconsistncia de argumentao no intuito de fundamentar nossas consideraes. Isso s possvel na medida em que o trabalho adquire

    compromisso com a solidez dos vigamentos que caracterizam a chamada -anlise imanente ouestrutural. Esta, na melhor tradio reflexiva, encara o texto -a formao ideal -em sua

    consistncia auto-significativa, a compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmaes, conexes e suficincias, como tambmas eventuais lacunas e incongruncias que o perfaam. Configurao esta que em si autnomaem relao aos modos pelos quais encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida

    no movimento de produo do para ns que elaborado pelo investigador .43

    Assim, a despeito das polmicas em torno das formas e possibilidades de

    apreenso efetiva dos ndulos significativos ou da malha conceitual de um texto, nosso

    propsito apreender a trama imanente dos mesmos, reconhecendo os pilares daconcepo poltica aristotlica e sua conexo com os supostos e os destinos dacomunidade grega, indagando de que maneira o perodo da Grcia clssica e at mesmoarcaica influenciaram substancialmente a gnese e o desenvolvimento de seu pensamento; pesquisar de forma inequvoca a relao entre histria e filosofia, entreformaes ideais e sociedade. Analisar significa contrapor, isto , confrontar a histria eos processos ideais, notadamente a poltica aristoteliana, e compreender sua lgica e

    necessidade. Lgica no intuito de desvelar seus nexos, necessidade na direo de perceber que tal arcabouo ideal fora matrizado pelos influxos da realidade histrica eque, nesta condio, revela-se uma exigncia prpria em sua natureza de ser assim e node outro modo.

    Para tanto, convergimos para alguns importantes historiadores que se inclinam para a mesma articulao. Tal material, que se toma e contextualiza, permitirfundamentar nossas hipteses, conectar o discurso aristotlico com as premissas sociais,

    criando canais de acesso s ideaes polticas e morais do filsofo grego.

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    Tracemos, ento, algumas consideraes sobre os autores e suas reflexes, oque parece pertinente, visto tornar mais claro o sentido e perspectiva deste estudo.

    Nossas observaes comeam com Jean-Pierre Vernant, historiador francs delonga e larga tradio. Em verdade, a Frana produziu uma gama de historiadores queinfluenciaram decisivamente os estudos gregos no sculo XX. Alguns nomes bastam para ilustrar: Claude Moss, Pierre Vidal-Naquet e Yvon Garlan, entre outros.

    Em O Homem Grego, organizado por Jean-Pierre Vernant, encontramos umconjunto de textos que buscam configurar um perfil do homem grego desde a vida privada at a vida pblica e militar. Trata-se de uma sntese dos mais variados aspectos davida grega, de seus valores, crenas, modos de vida. Texto importante no por esgotar ostemas, mas, acima de tudo, por trazer tona um manancial expressivo de informaes. Olivro abre com um ensaio que leva seu nome:O Homem Grego. Nele, Pierre-Vernantesboa, inicialmente, a dificuldade de se falar do homem grego, pois, na realidade, de quehomem grego se fala? Do de Atenas, Esparta ou Estagira? E de que prisma poltico sefala? Do homem monrquico, aristocrtico ou democrtico? Do homem da poca arcaicaou clssica? Ao reconhecer tais dificuldades, Vernant assinala o problema central de toda pesquisa histrica sobre a Grcia: o da escassez e autenticidade das fontes. Da aexpresso atenocentrismo para designar a pesquisa histrica centrada no homem

    ateniense. No obstante, embora os limites sejam evidentes, a pesquisa histrica nuncadeixou de dar os contornos especficos, as qualidades distintas da formao social grega e,simultaneamente, da singularidade do homem grego no universo antigo. De sorte que oartigo de Vernant um ensaio denso, que problematiza as fontes e desenha o perfil de umhomem que, em sua tipicidade, marca indelvel de um tempo.

    Em O Homem Grego, dentre as inmeras ponderaes de Vernant, avulta, cominteresse, a distino fundamental que contrape homens e deuses. A questo posta

    pelo o autor da seguinte forma:

    Do indivduo grego podemos dizer que de forma menos reflexiva e terica, tambm eraespontaneamente csmico. Csmico no significa perdido, imerso no universo; no entanto, estaimplicao do sujeito humano no mundo supe, para o indivduo, uma particular forma derelao consigo mesmo e de relao com o outro. A mxima de Delfos 'Conhece-te a ti mesmo'no preconiza, como tenderamos a supor, um voltar-se sobre si mesmo para alcanar, medianteintrospeco e auto-anlise, um 'eu' escondido, invisvel para qualquer outro e que se colocaria

    como um puro ato de pensamento ou como o mbito secreto da intimidade pessoal /.../ Para o

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    orculo, 'Conhece-te a ti mesmo' significa conhece teus limites, sabe-te como homem mortal, no

    intentes igualar-se com os deuses.44

    O que Vernant coloca, para alm de qualquer reducionismo de fundo psicolgico, o fato de que existe um limite entre homens e deuses, uma fronteirareconhecida pelo homem e, nesse sentido, consciente para si mesmo. O homem grego se percebe, se reconhece, dentro de suas possibilidades, de sua vida comunitria, comoaquele que luta contra a morte, contra a velhice, contra a feira, contra a doena, contraa contingncia. A existncia do divino , portanto, a projeo do prprio homem nadireo de que os limites sejam superados ou, no mnimo, que seus efeitos sejamminimizados. difcil lidar com a feira, a doena, a velhice, a morte, a contingncia.

    notrio que a contingncia traduz um homem que no sabe ou ainda no pode lidar comas adversidades, com os acasos, com aquilo que pode ser diferente, que foge, que escapas suas capacidades, aos seus intentos como animal poltico podendo, nesse sentido,arrastar para o desfiladeiro os indivduos e a prpria comunidade. De sorte que - e ocontexto argumentativo arrima esta generalizao - a contingncia parece ser umestorvo para os gregos, algo impondervel que escapa aos lineamentos mais ou menosracionais que a prpria subjetividade reconhece na cotidianidade. Em outros termos, ao

    se reconhecer como finito, limitado diante dos deuses, o homem grego percebe, dealguma forma, os prprios limites de sua comunidade, de uma comunidade que aindano capaz de transpor, mesmo que de forma incipiente, os desafios postos pela prprianatureza.

    P. Aubenque sinaliza na mesma direo, quando afirma:

    O 'conhece-te a ti mesmo' no nos convida a encontrar em ns o fundamento de todas as coisas,mas, ao contrrio, traz conscincia nossa finitude: a frmula mais expressiva da prudnciagrega, ou seja, da sabedoria doslimites. Na realidade, Scrates foi o primeiro a desconfiar doconhecimento de si, a no ser esperar dele o reconhecimento do que apropriado nossacondio mortal. Plato no diz outra coisa ao interpretar a frmula dlfica, malgrado os contra-

    sensos que j se cometeu contra ela, como um convite medida.45

    Com frmulas similares, Vernant e Aubenque sinalizam para os problemas deuma vivncia comunal, de um mundo contingente oposto ao mundo das divindades, de

    44. J.P VERNANT,El hombre griegoin: El hombre griego-coletnea organizada por J.P.Vernant, p.26.

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    um mundo no qual os homens pagam o preo de seuno determinismo. Mas, conheceros prprios limites, ao inverso do que possa parecer, antes de mais nada a prpriacondio dos homens, condio de ser humano, de se fazer homem na e pelacomunidade. Antes de ser um mal em si, a contingncia passo decisivo para ahumanizao, num processo que, ao contrrio dos deuses, infinito em suas possibilidades e em seus objetivos. Com os deuses eu j sei o que sou e como sou; comos homens eu descubro paulatinamente o que sou, como sou e o que poderei ser; assim,a incerteza e contingncia jogam a favor dos homens. Em suma, assinala-se com vigor oreconhecimento da dimenso do limite; no caso, a partir dos limites que separamhomens e deuses. Nesse sentido, o homem se identifica, como homem, pela internaodos limites, pela distncia face aos deuses, pelas capacidades distintas. Vislumbra-se,ento, a identidade humana no limite, filha das capacidades finitas, de um mundo socialfinito. Mas Vernant, do mesmo modo que outros tericos, no questiona osfundamentos mais substantivos, histricos do limite; revelando, em ltima instncia, suaexistncia genrica no interior da formao do homem grego.

    Outro texto relevante o de Yvon Garlan. Em seu artigo,O Militar , o autordiscute o estatuto do militar na ordem social grega, sua particularidade nos diversosregimes, seu ofcio e valores. Texto importante que pe em relevo um dos traos

    caractersticos das sociedades escravistas: sua propenso para a guerra. Garlan, ao citarPlato e Aristteles, observa que a guerra faz parte do processo de acumulao deriquezas, tanto de bens materiais, como de escravos. Em suas palavras:

    Plato e Aristteles no excluram a guerra (tampouco a escravido) de seus respectivos projetosde sociedades ideais, e no puderam, por isso mesmo, evitar a explicao de sua existncia. Asrespostas que do so convergentes e possuem uma aparente simplicidade: a causa da guerraseria o desejo de 'ter mais', de adquirir, segundo o primeiro, riquezas e eventualmente escravos; para o segundo, escravos sobretudo /.../ Entendo que as palavras 'riquezas' e 'escravos' podem terum sentido mais ou menos metafrico. Porm, isto no modifica em nada a perspectiva global denossos filsofos: a guerra essencialmente considerada por eles como a arte de adquirir, pelafora, suplementos para viver, sob a forma de subsistncia, de dinheiro ou de agentes de

    produo; como a paz a arte de desfrutar de tudo isto.46

    Independentemente de Garlan considerar as palavras riqueza e escravo como

    metforas, o fato que sua reflexo, remetendo a Plato e a Aristteles, pe o acento na

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    questo capital: a guerra como mecanismo que visa suprir as necessidades de umaformao social que, dado o baixssimo padro tecnolgico, incapaz de produzir os bens necessrios sua reproduo imediata. Assim, burlar a asfixia das foras produtivas ao adentrar pela expanso e conquista territoriais , de imediato, ofcio daguerra. O acento posto por Aristteles, mais do que Plato, na aquisio necessria deescravos, denota uma percepo aguda de sua poca, isto , o estagirita compreendiaque uma maior quantidade de escravos significava, naturalmente, uma expanso de produtividade e, por conseguinte, de possibilidades de se pr em sua to almejadaautarquia citadina. Por outro lado, as prprias condies naturais interferiamdecisivamente no processo produtivo, pois, em termos geogrficos, a Grcia exibia eexibe um territrio de escassa matria-prima, marcado por montanhas, acidentes, comterras pouco cultivveis. Em situaes desse tipo, a natureza se converte, como correuentre os gregos, em forte obstculo produo para a comunidade. A tnica, e uma vezmais, converge para a fundante dimenso social do limite, no apenas das foras produtivas claudicantes, mas tambm da natureza pouco abundante e geograficamenteadversa. Se somarmos o baixo desenvolvimento das foras produtivas e a poucagenerosidade da natureza, as tendncias sociais so as da guerra, no s como expansode territrios e conquistas, mas, de pronto, como defesa do prprio territrio, das

    prprias condies de subsistncia, como assinala Marx, ainda nasFormen:

    A guerra , portanto, a grande tarefa que a todos compete, o grande trabalhocomunal, e se faz necessria, seja para a ocupao das condies objetivas daexistncia, seja para a proteo e perpetuao de tal ocupao.47

    A coletnea prossegue com o texto de Giuseppe Cambiano intituladoFazer-se

    Homem. Ttulo forte, cujo objetivo rastrear as vrias dimenses da comunidade grega,evidenciar que o homem s adquire o estatuto do humano, nos e pelos poros da vidacitadina. Assim, o autor pe em relevo o significado ativo da paidia, do cotidianogrego no processo formativo do cidado, desde a famlia, a efebia, o casamento e a vida poltica. Por outro lado, o autor tambm reala algumas mazelas prprias da formaogrega. De sorte queFazer-se Homem significa a compreenso de que o indivduo ativo e influenciado pelo tecido social, nos limites prprios de cada poca.

    47. K . MARX,Formen, p. 69.

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    Logo no incio de suas consideraes sobre a cidade grega, Cambiano chama aateno para o nmero elevado de bitos de recm-nascidos e a prtica do infanticdio:

    Naturalmente, a primeira condio era sobreviver e escapar do alto ndice de mortalidade presente na Grcia antiga, causado, em primeiro lugar, por partos prematuros ou anmalos e,logo em seguida, por enfermidades derivadas de uma alimentao inadequada, de uma mhigiene e, junte-se a isto, de uma teraputica impotente de boa parte da medicina antiga. /.../ Masno era s a natureza que atuava como sistema seletor de sobrevivncia. Nascer em boascondies fsicas permitia escapar eliminao, a que no se duvidava em recorrer nos casos dedeformidade, casos interpretados pelos pais e por toda a comunidade como uma espcie decastigo divino /.../ Em Esparta a deciso de que o recm-nascido poderia viver pertencia aosmembros mais velhos da tribo(phyl ), a qual pertencia o pai. /.../ Em Atenas e outras cidades, se

    recorria ao mtodo da exposio do recm-nascido em um vaso de barro ou em outro recipientelonge de sua casa, em lugares inspitos, fora da cidade, onde poderia morrer de fome ou ser

    despedaado pelas feras, a no ser que algum fizesse sua recolha.48

    Em primeiro lugar, Cambiano nos remete a dois cenrios distintos e conexos. O primeiro diz respeito impotncia grega de lidar com a mortalidade infantil, suas altastaxas em decorrncia dos estreitos limites da medicina, da m alimentao, dodesconhecimento de doenas e da falta de higiene. O que se depreende um universolimitado de atuao da medicina, este, por sua vez, condicionado pelos baixos padresde conhecimento e transformao da natureza. A prpria alimentao e higiene pressupe um elevado grau de conhecimento das leis naturais, dos mecanismos biolgicos e de sua regulao. S um patamar ainda demasiadamente circunscrito daatividade produtiva, de um conhecimento que no se fez coisa no mundo, pode levar a patamares to extensos de mortalidade infantil. Em conexo, o infanticdio fundaigualmente suas razes neste universo circunscrito: o que significa abandonar uma

    criana mal formada, simples vtima dos erros da natureza? Significa livrar-se dealgum que no poder exercer atividade alguma, principalmente o ofcio poltico emilitar no caso dos homens; significa que no ser reconhecido pela tribo, despesa intilem contexto social adstringido, adverso. Por outro lado, se for mulher, o problema seagrava na medida em que a relao do dote se inviabiliza, pois ningum se casar comuma mulher que apresente algum tipo de anomalia. E, se ainda as crianas foremnormais, mas fruto de relaes ilegtimas entre cidados e escravos, o infanticdio pode

    48. G. CAMBIANO, Hacerse hombre in: El hombre griego, coletnea organizada por J.P.Vernant,p.103-4.

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    decidir o seu futuro, pois crianas nestas circunstancias no sero reconhecidas pelo seudemos, no sero inseridas na comunidade e, nesse sentido, no tero a possibilidade da paidia, do tornar-se homem. Os prprios limites da comunidade grega apontam para anecessidade de se legitimar as relaes matrimoniais a partir do reconhecimentofamiliar, dosdemos, com o intuito de possibilitar que as futuras crianas se tornemcidados no pleno direito da palavra. Cambiano, pois, nos coloca diante de uma Grciaadstringida onde a prtica e os valores do infanticdio so aceitos no por uma questomoral ou de perversidade ingnita, mas pelo imperativo das dificuldades, em funo donus insuportvel de reproduzir uma individualidade que no ser capaz de se autogerire nem de contribuir com a comunidade.

    Outro aspecto importante ressaltado por Cambiano diz respeito centralidade dafigura masculina na formao moral e militar do jovem grego. Na Grcia, a figuramasculina se projeta, sob formas distintas, em todos os interstcios da sociabilidade. Dostempos homricos, dooikos aristocrtico, dos heris to vivamente narrados pelamitologia, reconhecido o esplendor corporal, tipificado na fora, na destreza, naaptido e na coragem. Da Grcia clssica, temos o homem poltico, proprietrio da terra,soldado e estadista, homem prudente, de subjetividade ativa que, na condio decidado, ordena e possibilita a convivncia comunal. O fato que, mesmo nas

    distines, a figura masculina centro dos anseios e das perspectivas comunais. Ela, emsua lgica, canaliza o que de mais valoroso se pode esperar, almejar e vivenciar. Oartesanato e, principalmente, as artes sinalizam isso muito bem: dos vasos s esculturaso que se assiste exaltao da beleza, divinizao do corpo, sua dimenso atltica efisicamente perfeita, prpria dos deuses ou de um homem que, aos poucos, buscahumanizar os deuses.

    Cambiano mostra, com pertinncia, alguns momentos desta paidia.

    Inicialmente, o autor esclarece que, desde cedo, por volta dos doze anos, o adolescente levado prtica de atividades fsicas, em ginsios apropriados. Trata-se, em primeirolugar, de aprendizado para o exerccio da vida comunitria e, simultaneamente,aprendizado para a futura vida militar. A prtica de exerccios em equipe, a necessriacooperao entre os seus participantes contribua e muito para a formao moral dosindivduos. Por outro lado, nos ginsios eram ensinados alguns exerccios militares que,na mesma direo, alimentavam o sentimento de comunidade entre os participantes.

    Assim, Cambiano mostra que a verdadeira formao moral do indivduo se d para almde sua casa, na convivncia com os futuros cidados, na companhia de outros homens

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    que sero, em futuro prximo, estrategos e/ou polticos. De sorte que ahomossexualidade grega enformada em tais circunstncias, e o sexo feminino relegado s tarefas secundrias ou meramente reprodutivas. Percebe-se que paraCambiano, o homossexualismo grego contm uma "dimenso pedaggica" que,necessariamente, contribuiu "para a formao moral e intelectual" do jovem grego.

    Uma vez mais, ento, e isto o que se deseja fundamentalmente marcar a partirdos argumentos e reflexes de Cambiano, aparece a dimenso comprimida da formaosocial grega, na qual a exaltao da figura masculina bem como as tendncias de talhehomossexual devem ser apreendidas no como uma dimenso de carter meramenteesttico, de um lado, ou como simples opo pelo homossexualismo, de outro; mas,acima de tudo, como forma de exaltar a nica figura que pode se responsabilizar pelareproduo material da comunidade, pelo ordenamento da mesma e pela defesa de seuscidados, em cenrio adverso. Eis que a figura masculina emerge como fora produtiva,fora poltica, fora militar e fora moral em contexto de diminutas energias sociais.

    Por fim, com o que se conclui este caminho introdutrio, parece oportuno teceralgumas consideraes sobre a estrutura deste trabalho, as partes constituintes e suarelao com os captulos.

    Em primeiro lugar, nosso propsito trabalhar dois eixos fundamentais e

    conexos. O primeiro eixo (Parte I ) diz respeito forma social grega, sua organizao emodo de vida. Ao rastrear a vida comunitria grega, esta nos revela o seu segredo: ofato de ter no limite a dimenso, a lgica de ser e de existir da comunidade. Em outras palavras, o apelo ao limite antes de mais nada determinao existencial, lgica profana, modus vivendi. Para compreender tal dimenso, ser necessrio um amploestudo histrico, revelando aspectos fundamentais da Grcia arcaica e clssica, de seuapogeu e declnio, dos principais aspectos econmicos e polticos. Aqui se insere o

    carter da pesquisa histrica, como cincia da histria, isto , como investigao dotecido social, dos problemas da plis e de suas urgncias.

    O segundo eixo (Parte II ), a ser examinado, diz respeito manifestao ideal dolimite, sua expresso reflexiva, notadamente na poltica e tica aristotlicas. Tal examedecorre, necessariamente, das aquisies histricas e da compreenso do modo de vidagrego, pois s no interior da histria grega que podemos entender os movimentos dasubjetividade, notadamente a aristotlica que buscou, como ningum, compreender o

    seu tempo. Trata-se de reconhecer o iderio poltico aristotlico, sua exortao aolimite, como manifestao da urdidura social, de reconhecer uma comunidade que,

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    paulatinamente, perde as condies do exerccio do limite, tanto no mbito pblico,como no mbito privado. Indivduo e comunidade encontram, na poltica e na tica, oslimites prprios de sua atuao, de suas finalidades, como se intentar mostrar no cursodos argumentos.

    Por ltimo, cabe traar a estrutura capitular dasPartes I e II . Inicialmente, a teseabre com um captulo voltado histria ateniense, notadamente a partir do fatoeconmico mais relevante: a emergncia da propriedade privada mvel ateniense. Trata-se de um momento singular da vida grega, em especial de Atenas, que compreende onascimento e amadurecimento das instituies da plis, com Slon, passando pelatirania de Pisstrato, pelas reformas de Clstenes, pelo apogeu de Pricles e, no planomilitar, por guerras que, a partir do sculo IV, se tornam endmicas. Dentro destecontexto, entre a idade de ouro da poltica e seus impasses, avulta o pensamento dofilsofo de Estagira. Motivo pelo qual a vida e a obra de Aristteles tm a marca dasmelhores esperanas gregas e, simultaneamente, de suas inviabilidades, de suas derrotase de um passado morto. De modo que o captulo permite reconhecer a conexo entre ahistria grega e a formao ideal aristotlica, dando, de pronto, as condies para ainvestigao dos propsitos do iderio poltico de Aristteles, bem como dosconstrangimentos, limites e impossibilidades da formao social grega.

    O segundo captulo apresenta um estudo voltado teleologia aristotlica, suasmanifestaes, sua essncia enquanto fora social limitada notadamente na relao entresenhor e escravo. Este captulo se volta ao exame da relao limitada do homem gregocom a natureza; o baixo desenvolvimento das foras produtivas e a pouca transformaoadvinda de tais circunstncias. Trata-se de captulo importante, pois desenha o perfilcomunitrio grego, dos limites e impossibilidades como forma de ser, lgica da vidaincommunitas. Com este captulo se fecha a anlise da organizao social grega, sua

    ordem nas condies de adstringncia. Dessa maneira, as aquisies desta primeira parte permitem compreender e desnudar, dentro do possvel, as perspectivasaristotlicas, a importncia da poltica e, complementarmente, da tica.

    Na Parte II, a reflexo recai sobre as formaes ideais, notadamente nas figurasda poltica e da tica. O propsito examinar a natureza da poltica, sua relao com aformao social grega, seus vnculos e a que necessidades corresponde. Trata-se de darcontorno unidade entre objetividade e subjetividade j aludida, esclarecer a natureza

    da poltica e da tica num contexto em que a sociabilidade clama pelo limite; em que poltica e tica configuram o limite possvel, desejvel, no singular e no plural, para a

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    vida grega. Assim, os captulos ganham a seguinte fisionomia: o primeiro retomaalgumas consideraes histricas, notadamente a crise agrria do sculo VI, para focar aimportncia histrica de Slon emCA. Dada a gravidade do problema da terra, temos aclebre interveno soloniana, extinguindo a escravido por dvidas, agindo commoderao e criando um cdigo de leis. Slon configura o tipo de poltico a ser seguido,a mediania personificada. Tais so os traos caracterizados por Aristteles emCA. Emseguida, Aristteles estabelece a possibilidade de que um tirano fosse moderado. ocaso de Pisstrato que exerce a tirania sem exageros, beneficiando os pequenoscamponeses. Por fim, faremos a conexo entre a caracterizao de Slon e o governo daclasse mdia, da politia. Aristteles caracteriza a politia como a forma maisequilibrada do poder amplo dos cidados, pois a classe mdia se pe na mediania, isto ,nem excessivamente pobre, nem rica, mas equilibrada para objetivar o bem comum. Nesse sentido, temos uma articulao e desdobramento de idias entreCA e Poltica.

    Aps a caracterizao da melhor forma constitucional e das virtudes necessriasao exerccio do poder poltico, faz-se necessrio, em outro captulo, compreender omecanismo pelo qual a comunidade poltica regulada. Aqui, comparece o instrumentoda justia, que se pe como intermedirio da vida comunitria, de seus problemas eobjetivos. Dito de outro modo, a justia a forma profana da poltica, encarregada de

    dirimir conflitos, tenses na perspectiva de que o justo-meio prevalea, evitando-se a perda ou o ganho em excesso. o captulo V deENque traduz os objetivos da poltica,sua vivncia nos mais variados ramos da justia cuja finalidade e sentido so amoderao e a preservao da comunidade poltica.

    Ainda no interior da justia, cabe examinar, na forma de subcaptulo, oexpediente do ostracismo. No Livro III daPoltica [1284 a e b]49, Aristtelesanalisa outro expediente poltico que merece nossa ateno, ou seja, o da

    instaurao do ostracismo na Grcia. A grosso modo, o estagirita nos pe diantedos seguintes fatos: nascido nos governos democrticos, o ostracismo foi, acima detudo, uma frmula jurdica destinada a manter a medida nas democracias, aigualdade de seus cidados. Aquele que, por seus mritos, riquezas ou popularidade atentasse medida, sobrepujando-se a ela, era expulso de sua cidade por tempo determinado, ou melhor, ningum poderia ultrapassar, em qualqueresfera, o aceitvel para a comunidade. O que encontramos, uma vez mais, a

    esfera jurdica mantendo as possibilidades da vida comunitria, ordenando que a

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    medida fosse preservada mesmo que no restasse aos melhores cidados seno oexlio.

    Por ltimo, e em conexo com as consideraes sobre a justia, resta ainda, emcaptulo prprio, analisar aEN e suas implicaes. NaEN ntido o sentido moderadorque a perpassa. Aristteles estende o conceito de mediania a uma pluralidade de fatos davida cotidiana. O que vale discutir a raiz da mediania, examinar se a prudncia gregase origina da simples constatao de que se deve ser moderado num mundo contingenteou, ao inverso, reconhecer a moderao tica como resultado das necessidades de um