Tese Mariana Azambuja
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NOTA PRVIA
Esta tese foi totalmente desenvolvida em Portugal, sobre uma realidade portuguesa,
por uma pesquisadora brasileira. Deste modo, o texto aqui apresentado um hbrido
composto pelas experincias anteriores da pesquisadora e suas inter-relaes com a realidade
local. Como tal, preferimos empregar a primeira pessoa do plural a fim de prestar um
reconhecimento a todas as outras vozes que o compuseram - autores(as), pesquisadores(as),
professores(as) e muitas outras pessoas que interagiram neste processo. Procurou-se tambm
manter a grafia das palavras e expresses na vertente local do idioma portugus sem, contudo,
perder o estilo abrasileirado de escrita.
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Para Renato,
Mais do que esposo,
Companheiro de todas as horas.
Sem tua presena nada teria sido possvel.
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Agradecimentos
Prof. Doutora Conceio Nogueira, por saber dosar na medida correcta o estmulo
para novos desafios com a necessidade de manter os ps no cho;
Ao Departamento de Psicologia do Instituto de Educao e Psicologia, por facultar
todas os recursos necessrios para a concretizao deste trabalho;
Dr. Carla Ribeiro, gestora de bolsas do Programa Alan;
Um agradecimento especial equipe do Gabinete de Relaes Internacionais da
Universidade do Minho, em particular Dr. Adriana Lago de Carvalho, pelo incansvel
apoio e por ir muito alm de suas obrigaes profissionais;
Directora do Centro de Sade de Braga, Dr. Maria Helena Barbosa Albuquerque
Pardal Oliveira, pela autorizao para a realizao das entrevistas;
Aos Mdicos e Mdicas de Famlia do Centro de Sade de Braga, por encontrarem
espao em sua atribulada agenda para compartilhar suas experincias;
E, acima de tudo, ao Renato, por ser meu apoio e parceiro constante; por aceitar deixar
suspenso seus projectos pessoais para viver esta experincia em terras lusitanas; por
comprovar que o discurso feminista pela igualdade pode ser concretizado nas relaes
conjugais;
s nossas famlias, por apoiarem a nossa ausncia;
Este projecto foi realizado com o apoio do Programa Alan, Programa de bolsas de
alto nvel da Unio Europeia para Amrica Latina, bolsa n E05D053211BR.
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Violncia de Gnero e os Discursos Circulantes nos Cuidados de Sade Primrios
Resumo
O movimento feminista, embora no possa ser compreendido de modo uniforme,
representou um importante desafio para a sociedade e para a cincia em particular. Na sua luta
poltica pela igualdade, foi responsvel pela denncia da violncia vivida por mulheres no
contexto de seus relacionamentos ntimos, conduzindo a integrao da temtica no campo dos
direitos humanos. Mais contemporaneamente, o campo da sade pblica tem vindo a
demonstrar ateno para este problema ainda oculto pelas normas sociais que privilegiam a
privacidade familiar e que colocam os homens em um estatuto de poder superior sobre as
mulheres. As repercusses sobre a sade fsica e psicolgica das vtimas de maus-tratos tm
sido amplamente documentadas em estudos, relatrios, tratados e convenes. As iniciativas
de preveno da violncia, ao promoverem a desocultao do fenmeno, tm sido hbeis em
aumentar a conscincia social sobre o problema e propiciado um aumento no nmero de casos
registados nas entidades policiais, judiciais e instituies de apoio, representando, mais do
que um aumento na incidncia, uma maior visibilidade do fenmeno.
No entanto, muito ainda est por fazer. Tradicionalmente encarado de modo
polarizado como um problema de origens socioculturais (consequncia do machismo) ou
como uma perturbao individual (como uma patologia, um desvio), o desafio est na
integrao dos factores socioculturais ao atendimento prestado pelo sector sade s vtimas de
violncia conjugal. A sade, devido predominncia do modelo biomdico, tem apresentado
dificuldades em trabalhar com os determinantes sociais, embora j os considere. Em muitos
casos, a integrao destes aspectos est mais no nvel terico do que das prticas e, ainda
assim, com muitas imprecises e distores, tal como demonstra o equivocado uso do termo
gnero como sinnimo de sexo em diversas publicaes e na formulao de polticas pblicas.
Os cuidados de sade primrios, por definio, trabalham com uma perspectiva bio-
psico-social e, deste modo, devem estar preparados para lidar com problemas que vo alm da
enfermidade orgnica, tal como a violncia de gnero. Neste aspecto, os mdicos de famlia
actuantes nos cuidados de sade primrios so importantes actores para despiste e
acompanhamento destes casos devido ao contacto directo com todos os membros da famlia, a
continuidade do atendimento prestado e a relao de confiana que estabelecem com
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seus(uas) utentes. Desta forma, urgente reflectir sobre o cuidado que tem sido prestado s
mulheres vtimas de maus-tratos, em especial no domnio dos cuidados de sade primrios.
Inserida no paradigma crtico oferecido pelo construcionismo social, anlise de
discurso e feminismo, a presente investigao tem como objectivo mapear os discursos
circulantes nos cuidados de sade primrios sobre a violncia de gnero e examinar suas
consequncias para as prticas de cuidado oferecidas s mulheres submetidas violncia
conjugal. De modo subjacente, pretende desconstruir estes discursos a fim de construir
prticas de cuidado mais sensveis s especificidades femininas, promovendo um saber mais
responsvel com a melhoria das condies de vida das mulheres - mas tambm dos homens,
entendendo o gnero como algo que se faz nas relaes interpessoais e reconhecendo que os
padres da masculinidade hegemnica tambm podem ser opressivos para os homens.
Foram realizados trs estudos, os quais procuraram mapear as diferentes
manifestaes do discurso sobre a violncia de gnero. Esta estratgia, longe de buscar a
generalizao dos dados ou almejar revelar a verdade sobre o fenmeno, relaciona-se
compreenso dos saberes como parciais, limitados e historicamente situados. No Estudo I
(Investigaes sobre mulheres e violncia em Portugal), fazemos um levantamento dos
trabalhos de mestrado e doutoramento realizados nas universidades portuguesas sobre
mulheres e violncia. Os resultados indicam que ainda este um tema recente e em expanso.
No estudo II (Revistas mdicas: a invisibilidade da violncia de gnero em publicaes
nacionais), procedemos anlise crtica do discurso veiculado na Revista Portuguesa de
Clnica Geral e na Revista Portuguesa de Sade Pblica, concluindo-se que a violncia
domstica contra as mulheres no tem sido consistentemente discutida, pensada e pesquisada
no campo da sade portuguesa, tendo como efeitos a invisibilidade de um grave problema de
sade pblica e a adopo de prticas individualizantes e pouco efectivas. No Estudo III
(Discurso de Mdicos de Famlia actuantes nos Cuidados de Sade Primrios), foram
entrevistados 11 profissionais actuantes no municpio de Braga. Os resultados confirmam os
achados dos estudos anteriores, demonstrando a necessidade de incorporar novos saberes s
prticas destes profissionais.
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Gender-based Violence and the Circulating Discourses in the Primary Health
Care
Abstract
The feminist movement, though it could not be understood in a uniform way,
represented an important challenge for the society and in particular, for the science. In its
political struggle for the equality, it was responsible for the denunciation of the violence
experienced by women in the context of their intimate relationships, leading the integration of
the theme in the humans rights field. More contemporarily, the field of the public health has
come to demonstrate attention for this problem, which is still hidden by the social standards
that privilege the familiar privacy and that place men in a position of superior power
compared to women. The repercussions on the physical and psychological health of the
victims of intimate partner violence have been widely registered in studies, reports, treaties
and conventions. The initiatives of violence prevention, more than bringing this issue to light,
have been able to increase the social conscience on the problem and propitiated an increase in
the number of cases registered in the police, judicial entities and institutions of support,
representing, more than an increase in the incidence, a bigger visibility of the phenomenon.
However, there is still a lot to be done. Traditionally faced in way, that is, polarized as
a problem of socio-cultural origins (consequence of the "male chauvinism") or as an
individual disorder (like a pathology, a diversion), the challenge is to integrate socio-cultural
factors in the health sector service to the victims of conjugal violence. The health sector, due
to the predominance of the biomedical model, has been facing difficulties in working with
social determinants, though it already considers them. In many cases, the integration of
these aspects is more in the theoretical level rather than practical one and, even so, with many
distortion and inaccuracies, such as demonstrated to the misunderstood use of the term
gender as a synonym of sex in several publications and in the formularization of public
politics.
The primary health care, for definition, works with a bio-psycho-social perspective
and, in this way, must be prepared to deal with problems that go beyond the organic disease,
such as gender-based violence. In this aspect, family physicians are important characters for
mislead and accompaniment of these cases due to the direct contact with all the members of
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the family, attendance continuity and trust relationships with their clients.Thus, it is urgent to
reflect on service that is provided to battered women, especially in the primary health care.
Inserted in the critical paradigm offered by the social constructionism, discourse
analysis and feminism, the present inquiry aims to map the circulating discourses in the
primary health care on the gender-based violence and to examine its consequences for the
practices of care offered to women victim of conjugal violence. In an underlying way, it also
intends to deconstruct these discourses in order to build practices of care more sensible to
female specificities, promoting a more responsible knowledge with the improvement of the
conditions of life of women - but also of men, understanding gender as something that is
constructed in the interpersonal relations and recognizing that hegemonic masculinity can also
be oppressive for men.
Three studies had been carried out, which looked at "mapping" the different
manifestations of the discourse on gender-based violence. Far from looking for the
generalization of data or longing to reveal the truth on the phenomenon, this strategy is
linked to the understanding of knowledge as partial, limited and historically situated. In Study
I (Investigations on women and violence in Portugal), we made a research of the fulfilled
works of master's degree and post-graduation (PhD) courses carried through in the Portuguese
universities on women and violence field. The results indicate that this is still a recent subject
and in expansion. In Study II (Medical Journals: the invisibility of gender-based violence in
national publications), we proceed to a critical analysis of discourse in Portuguese Journal of
General Practice (Revista Portuguesa de Clnica Geral) and Portuguese Public Healths
Journal (Revista Portuguesa de Sade Pblica), concluding that the domestic violence
against women has not been consistently discussed, thought and investigated in the field of
the Portuguese health, taking as effects the invisibility of a serious problem of public health
and the adoption of individualist and poorly effective practices. In Study III (Discourse of
family practice physicians that act in the Primary Health Care), 11 professionals that act in the
city of Braga were interviewed. The results confirm the findings of the previous studies,
demonstrating the necessity of incorporating new knowledge to the practices of these
professionals.
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Nota Prvia .................................................................................................................................................... iii
Dedicatria...................................................................................................................................................... v
Agradecimentos ............................................................................................................................................ vii
Resumo........................................................................................................................................................... ix
Abstract........................................................................................................................................................ xiii
INTRODUO .............................................................................................................................................. 1
PARTE A
CONSTRUO SOCIAL DO PROBLEMA................................................................................................. 9
Apresentao.............................................................................................................................................. 11
Captulo 1: A Emergncia da Violncia Contra as Mulheres Como uma Preocupao Mundial ............... 13
1.1 O papel histrico das organizaes de mulheres..................................................................................... 13
1.2. A violncia contra as mulheres como um problema de direitos humanos ............................................... 16
1.3 A violncia contra as mulheres como um problema de sade pblica ..................................................... 26
Captulo 2: A Posio de Portugal no Contexto Europeu ............................................................................ 31
2.1. O contexto europeu ............................................................................................................................. 31
2.2 Participao portuguesa em Tratados Internacionais............................................................................... 34
2.3 O percurso histrico da CIDM como mecanismo institucional para a igualdade...................................... 36
2.4. Polticas pblicas para as mulheres em Portugal.................................................................................... 42
2.5 Principais alteraes legais no mbito da violncia contra mulheres ....................................................... 48
2.6. Principais investigaes sobre mulheres e violncia realizadas em Portugal........................................... 56
2.7 Principais instituies vocacionadas para o atendimento de casos de violncia domstica
contra mulheres ....................................................................................................................................... 117
PARTE B
DEFINIES CONCEPTUAIS E EPISTEMOLGICAS...................................................................... 137
Apresentao............................................................................................................................................ 139
Captulo 3: O Movimento Feminista Para Alm de suas Fronteiras ......................................................... 141
3.1 Feminismo ou feminismo(s)? .............................................................................................................. 141
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3.2 Feminismo(s) e movimentos de mulheres em Portugal......................................................................... 152
3.3 Feminismo(s) e a crtica cincia ........................................................................................................ 161
Captulo 4: O Novo Paradigma: Construcionismo Social e Anlise Crtica De Discurso...................... 173
4.1 A (moderna) cincia psicolgica.......................................................................................................... 173
4.2 A psicologia social.............................................................................................................................. 181
4.3 A psicologia social em crise ................................................................................................................ 189
4.4 A psicologia social (como) crtica: construcionismo social e anlise de discurso................................... 198
4.5 O conceito de gnero no feminismo ps-moderno................................................................................ 226
Captulo 5: Violncia Contra Mulheres - A Variabilidade nas Terminologias.......................................... 237
INTEGRAO........................................................................................................................................... 245
PARTE C
OS DISCURSOS SOBRE VIOLNCIA CONTRA MULHERES ESTUDOS EMPRICOS ................ 247
Apresentao............................................................................................................................................ 249
Captulo 6: Saberes Situados: Metodologias, Domnio e Contexto ............................................................ 251
6.1 Metodologias utilizadas....................................................................................................................... 251
6.2 O domnio cientfico ........................................................................................................................... 278
6.3 O contexto local: municpio de Braga .................................................................................................. 297
Captulo 7: Estudos Empricos ................................................................................................................... 315
7.1 Anlise de discurso: potencialidades investigativas para a violncia de gnero (Estudo Piloto) ............. 315
a) Introduo.......................................................................................................................................... 315
b) O paradigma epistemolgico da anlise crtica do discurso.................................................................. 316
c) O processo de anlise de discurso ....................................................................................................... 318
d) Apresentao dos resultados............................................................................................................... 320
e) Concluses......................................................................................................................................... 329
7.2. Anlises do discurso na produo cientfica ........................................................................................ 330
i) Estudo I A investigao cientfica sobre mulheres e violncia em Portugal: Teses e Dissertaes..... 330
a) Introduo .................................................................................................................................... 330
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b) Metodologia ................................................................................................................................. 332
c) Apresentao e discusso dos resultados ....................................................................................... 336
d) Consideraes finais..................................................................................................................... 357
ii) Estudo II Revistas mdicas: a invisibilidade da violncia de gnero em publicaes nacionais........ 361
a) Introduo ..................................................................................................................................... 361
b) Metodologia .................................................................................................................................. 362
c) Apresentao e discusso dos resultados ........................................................................................ 363
d) Concluses.................................................................................................................................... 415
7.3 Anlise de discurso de profissionais da medicina ................................................................................. 422
i) Estudo III Entre discursos e saberes: mdicos de famlia actuantes nos cuidados de sade primrios 422
a) Introduo ..................................................................................................................................... 422
b) Metodologia .................................................................................................................................. 425
c) Apresentao e discusso dos resultados ........................................................................................ 427
d) Concluses.................................................................................................................................... 529
CONSIDERAES FINAIS...................................................................................................................... 539
REFERNCIAS.......................................................................................................................................... 543
ANEXOS ..................................................................................................................................................... 579
Anexo A Autorizao para pesquisa Direco do Centro de Sade de Braga ........................................... 581
Anexo B Autorizao para pesquisa Gabinete de Aco Social de Braga................................................. 582
Anexo C Autorizao para pesquisa Critas Arquidiocesana de Braga (Espao Mulher).......................... 583
Anexo D Autorizao para pesquisa Critas Arquidiocesana de Braga (Espao Mulher).......................... 584
Anexo E - Autorizao para pesquisa Gabinete de Atendimento APAV - Braga......................................... 585
Anexo F Modelo do termo de consentimento informado (Estudo III) ...................................................... 586
Anexo G Diferenas entre paradigmas de pesquisa ................................................................................. 587
Anexo H Guio das entrevistas semi-estruturadas (Estudo III) ............................................................... 588
Anexo I Diferenas entre anlise de contedo, anlise temtica e anlise de discurso .............................. 590
Anexo J Busca de teses e dissertaes (Estudo I) .................................................................................... 591
Anexo K Seleco de estudos sobre mulheres e violncia (Estudo I) ....................................................... 620
Anexo L Grelha de Anlise (Estudo I).................................................................................................... 622
Anexo M Artigos com o descritor violncia (RPSP) (Estudo II)........................................................... 626
Anexo N Artigos com o descritor violncia (RPCG) (Estudo II)............................................................ 627
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LISTA DE FIGURAS, QUADROS E TABELAS
Estudo I
Quadro I Descritores utilizados para busca bibliogrfica ............................................................................. 335
Tabela I Sntese dos dados para o descritor violncia............................................................................... 337
Tabela II Sntese dos dados para o descritor gnero ................................................................................. 339
Tabela III Sntese dos dados para o descritor mulheres ............................................................................ 341
Tabela IV Sntese dos dados para o descritor feminismo/feminista/feminino(a)........................................ 344
Tabela V Sntese dos dados para os descritores abuso e violao .......................................................... 345
Tabela VI Sntese dos dados para o descritor rapariga(s).......................................................................... 345
Tabela VII Distribuio dos estudos de acordo com o descritor, sexo do(a) autor(a) e Universidade ............ 347
Tabela VIII Sntese dos dados violncia conjugal/contra mulheres .............................................................. 352
Estudo II
Tabela I Levantamento de Artigos (Estudo II) ............................................................................................ 364
Figura 01 Categorias temticas do estudo da negatividade (Estudo II) ......................................................... 385
Estudo III
Tabela I Distribuio por sexo.................................................................................................................... 428
Tabela II Mdia de idades .......................................................................................................................... 428
Tabela III Estado civil................................................................................................................................ 429
Tabela IV Anos que est licenciado(a)........................................................................................................ 429
Tabela V Anos que actua como Clnico Geral e Familiar ............................................................................ 430
Tabela VI Anos que actua neste servio...................................................................................................... 430
Tabela VII Formao complementar (alm da Clnica Geral e Familiar)...................................................... 430
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INTRODUO
Nos dias de hoje, cada vez mais, a violncia tem se tornado uma preocupao da
populao em geral, bem como de governantes. Presente tanto em pases desenvolvidos
quanto nos em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, manifesta-se de diversas formas:
chacinas em escolas, guerras civis, violncia urbana (assaltos, sequestros, tiroteios) e
violncia domstica. , portanto, um risco ao qual a populao, de um modo geral, est
exposta.
De acordo com o Relatrio Mundial Sobre Sade e Violncia (Dahlberg & Krugg,
2002), no ano 2000, 1.6 milhes de pessoas, em todo o mundo, morreram devido a actos de
violncia auto-infligida, interpessoal ou colectiva, correspondendo a uma taxa 28.8 pessoas
para cada 100 mil habitantes. A maior parte destas mortes ocorreu em pases de baixa e mdia
renda, sendo que menos de 10% deste total ocorreu em pases de alta renda. Dentre os
diversos resultados apresentados neste relatrio, destaca-se o facto de que, assim como outros
problemas de sade, a violncia no se distribui uniformemente na populao. Em 2000, os
homens representavam 77% de todos os homicdios, com taxas mais de trs vezes superiores
s das mulheres. Com relao s taxas de homicdio de mulheres, estudos realizados na
Austrlia, Canad, Israel, frica do Sul e Estados Unidos da Amrica (EUA) estimam que
entre 40-70% das vtimas femininas de assassinato foram mortas por seus companheiros ou
namorados, frequentemente no contexto de um relacionamento abusivo. Esta situao
contrasta enormemente com a situao das vtimas masculinas de assassinato. Por exemplo,
nos EUA, entre 1976 e 1996, apenas 4% dos homens havia sido assassinado por esposas, ex-
esposas ou namoradas. Na Austrlia, entre 1989 e 1996, estes nmeros correspondiam a 8,6%
(Heise & Garcia-Moreno, 2002).
Falando especificamente das diversas formas de violncia praticadas contra as
mulheres, pesquisas realizadas em vrias partes do mundo mostram que este um problema
muito mais grave do que previamente se acreditava. Um estudo desenvolvido em 1997 pela
Organizao Mundial de Sade (OMS) em 10 pases (Bangladesh, Brasil, Etipia, Japo,
Nambia, Peru, Samoa, Srvia e Montenegro, Tailndia e Tanznia) sobre a sade das
mulheres e suas vivncias mostrou que a violncia domstica um fenmeno universal que
ocorre em todo o mundo. Geralmente, seus perpetradores so pessoas conhecidas das vtimas,
especialmente maridos, companheiros, namorados ou ex-companheiros (World Health
Organization, 2005a).
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Corroborando estes dados, Heise e Garcia-Moreno (2002) destacam que uma das
formas mais comuns de violncia praticada contra as mulheres aquela cometida por maridos
ou parceiros ntimos, o que completamente diferente da situao dos homens, que esto
muito mais propensos a serem agredidos por estranhos. O facto de as mulheres
frequentemente estarem emocionalmente envolvidas e economicamente dependentes de quem
as agride tem implicaes especficas para a dinmica do abuso e para as estratgias para lidar
com ele. Diferentemente de outras formas de violncia, em que h maior predominncia de
certos grupos como vtimas, a violncia nas relaes ntimas ocorre contra mulheres de todos
os pases, independentemente de grupos sociais, econmicos, religiosos ou culturais. Ainda
que as mulheres possam ser violentas com os homens em seus relacionamentos e que a
violncia tambm possa estar presente nos relacionamentos entre pessoas de mesmo sexo, as
formas mais avassaladoras de violncia entre parceiros so vividas por mulheres nas mos dos
homens. , portanto, um problema mediado pelo gnero.
Em todo o mundo, abusos sexuais e fsicos ocorrem diariamente, sendo que a maior
parte destes eventos ocorrem nos lares, locais de trabalho e, at mesmo, nas instituies de
sade ou sociais que deveriam cuidar destas pessoas. A morte no a nica forma de agresso
a que as mulheres so constantemente submetidas, abrangendo uma variedade de
comportamentos: agresses sexuais, emocionais e fsicas, assassinato, mutilao genital,
perseguio, abuso sexual, trfico e explorao sexual, entre outras. Ainda assim, a violncia
praticada por um parceiro ntimo e a violao sexual tm sido as formas especficas de
violncia contra mulheres com maior desenvolvimento no campo terico. Neste sentido,
diversas pesquisas e estimativas j foram realizadas, um pouco por todo o mundo, a fim de
determinar a gravidade do problema (Jasinski, 2001).
O nmero de mulheres que reporta ter sido alguma vez agredida fisicamente por um
parceiro varia entre de 10% no Paraguai e Filipinas, passando a 22,1% nos EUA, 29% no
Canad e 34.4% no Egipto. Uma importante considerao a este respeito o facto destes
estudos se basearem no auto-relato das vtimas, o que significa que podem existir muitos
outros casos que no so relatados. Certamente, naqueles pases em que h uma presso maior
para que a violncia permanea atrs de portas fechadas ou em que simplesmente seja
aceita como natural, a violncia no-fatal tem maior tendncia em permanecer
subnotificada. As vtimas podem ter receio em discutir os actos de violncia, no s por
vergonha ou tabus, mas tambm por medo. Admitir ter vivenciado certos tipos de agresses -
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como a violao sexual - em alguns pases, pode resultar em morte. Em algumas culturas, a
preservao da honra familiar um motivo tradicional para o assassinato das mulheres
violadas, atravs dos chamados crimes de honra (Dahlberg & Krugg, 2002, 2006).
Em Portugal, o primeiro inqurito nacional sobre violncia contra as mulheres foi
realizado em 1995 (Loureno, Lisboa & Pais, 1997), tendo sido encontrada uma prevalncia
de 52,5% para pelo menos um tipo de violncia (fsica, psicolgica, sexual e discriminao
sociocultural). Entre as mulheres que referiram ter sido alvo de algum acto de violncia no
ltimo ano, 50,7% citou a psicolgica, sendo seguida pela sexual (28,1%) e a discriminao
sociocultural (14,1%), enquanto a violncia fsica foi a que obteve o valor mais baixo (6,7%).
O espao da casa-famlia foi identificado como onde mais se praticam as agresses (43%),
sendo seguido pelo espao pblico (34%) e o local de trabalho (16%).
Desde ento, diversas iniciativas foram adoptadas no pas para dar conta de um
problema invisvel devido a preservao de valores como a privacidade e a necessidade de
manuteno da coeso familiar. A partir do ano 2000, com a promulgao da Lei n 7/00, de
27 de Maio, a violncia domstica passou a ser concebida como um crime pblico e, entre
1999 e 2008, foram adoptados trs Planos Nacionais de Combate Violncia Domstica
(1999, 2003 e 2007), alm de Planos Nacionais para a Igualdade (1999, 2003 e 2007) e um
Plano Nacional para o Combate do Trfico de Seres Humanos (2007).
Ao mesmo tempo, as foras policiais realizaram qualificaes e implementaram
projectos especficos para lidar com a problemtica. De acordo com a Direco Nacional da
PSP (2007), devido maior visibilidade e consciencializao da populao, tem havido um
aumento no registo deste tipo de crimes desde o ano 2000. Assim, em 2006 foram registados
11.638 ocorrncias de violncia domstica, correspondendo a um incremento de 18,5% com
relao ao ano anterior. Neste mesmo perodo, foram efectuadas 161 detenes por crimes de
violncia domstica, especialmente por suspeita de maus-tratos a cnjuge/companheiro(a). Se
analisarmos os mesmos dados entre os anos 2000 e 2006, a PSP efectuou um total de 836
detenes por crimes de violncia domstica, perfazendo uma mdia de 118 detenes por
ano e cerca de 10 detenes por ms. Quanto relao entre vtima e agressor, em cerca de
70% dos casos registados em 2006 existia uma relao de conjugalidade, sendo 81% das
vtimas mulheres e 89% dos autores homens.
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De acordo com a Guarda Nacional Republicana1, entre os anos 2000 e 2005 foram
registadas 36.622 ocorrncias de violncia domstica entre cnjuges/casais em situaes
anlogas. Destes, 98,49% foram cometidos por homens e 10,36% por mulheres. Em 96,01%,
as vtimas so do sexo feminino, enquanto em 14,48% do sexo masculino. O grau de
parentesco entre vtima e agressor maioritariamente cnjuge ou companheiro (88,17%),
nmero que, ao ser somado ao ex-companheiro (3,38%), perfaz um total de 91,55% de casos
de violncia conjugal.
Mesmo sem falarmos nos casos no identificados ou desconhecidos, os dados
apresentados at o momento so alarmantes. Apesar das diversas iniciativas internacionais e
nacionais, nenhuma soluo definitiva foi encontrada at o momento. Entretanto, desde finais
da dcada de 1990 a violncia tem sido considerada como um problema de sade pblica,
uma vez que apresenta consequncias na sade fsica e mental de todos os envolvidos. Ainda
que seus custos reais sejam difceis de precisar, implica bilhes de dlares gastos em todo o
mundo com cuidados de sade, e muitos mais para as economias nacionais em termos de dias
de trabalho perdidos, custos legais e investimentos desperdiados. Os custos humanos com o
sofrimento e a dor, obviamente, so ainda mais difceis de mensurar, assim como seu impacto
e algumas de suas causas. Os danos, ferimentos, traumas e mortes causados pela violncia
correspondem a altos custos emocionais, sociais e econmicos, representando faltas ao
trabalho e danos mentais e emocionais imensurveis nas vtimas e seus familiares. As anlises
de suas consequncias para o sector sade mostram o aumento de custos nos servios de
urgncia, cuidado mdico e reabilitao, os quais so muito mais onerosos do que a maior
parte dos cuidados convencionais em sade (Dahlberg & Krugg, 2002, 2006). Deste modo, a
violncia contra mulheres um grave problema de sade pblica, cabendo ao sector sade
no s o atendimento de urgncia e reabilitao das vtimas, mas tambm o desenvolvimento
de estratgias de preveno do problema (Minayo, 2006).
Ao longo de sua vida, as mulheres contactam os servios de sade por diversos
motivos: em busca de mtodos contraceptivos e de planeamento familiar, acompanhamento
pr-natal, parto e acompanhamento do desenvolvimento de seus filhos, prticas de preveno,
como vacinas ou exames preventivos. Devido responsabilidade pelo cuidado no s das
crianas, mas tambm de outros familiares (como pais e mes idosos), invariavelmente as
mulheres entram em contacto com profissionais de sade, seja para obter atendimento para si
1 Informaes disponveis em www.gnr.pt, acesso em 20 de maio de 2008.
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ou para os seus. Ainda que no procurem tratamento para as sequelas provocadas pela
violncia conjugal ou no as apresentem como motivos de consulta, o sistema de sade um
local crucial para a identificao, tratamento e acompanhamento de mulheres vtimas de
violncia conjugal, sendo, frequentemente, o primeiro (se no o nico) ponto de contacto com
uma mulher que sofre violncia (Ertrk, 2005, Garimella, Plichta, Houseman & Garzon,
2000).
De modo particular, os(as) mdicos(as) de famlia, inseridos no contexto dos cuidados
de sade primrios, so importantes actores de identificao e despiste de tais casos. Devido
s caractersticas prprias da especialidade (Wonca, 2002), como a actuao de acordo com o
modelo bio-psico-social, o contacto com todos os membros da famlia e o acompanhamento
ao longo do tempo - os quais permitem um maior vnculo com os(as) pacientes - os(as)
mdicos de famlia podem ser importantes actores de identificao e despiste destes casos.
Adicionalmente, a nfase na promoo da sade e preveno das doenas que caracterizam a
especialidade de medicina geral e familiar e os cuidados de sade primrios tambm podem
servir como um importantes meios de transformao social com relao violncia
domstica/violncia de gnero.
Desta forma, no estudo dos diferentes aspectos envolvidos na violncia praticada
contra as mulheres nos relacionamentos conjugais fundamental compreender o modo como
os profissionais de sade lidam com o problema. Fundamentando-se nos pressupostos tericos
oferecidos pelo construcionismo social, anlise de discurso e feminismo, a presente
investigao pretende mapear os discursos circulantes nos cuidados de sade primrios sobre
a violncia de gnero e examinar suas consequncias para as prticas de cuidado oferecidas s
mulheres submetidas violncia conjugal.
O trabalho est organizado da seguinte forma: a Parte A (Construo Social do
Problema) apresenta uma introduo geral ao tema em questo, a violncia contra mulheres
praticada no contexto de relacionamentos ntimos. Iniciamos pelo surgimento da preocupao
com a violncia contra mulheres a partir do papel histrico das organizaes de mulheres e da
anlise de sua insero no campo mundial de sade pblica e direitos humanos. Em seguida,
fazemos uma apresentao dos principais tratados europeus sobre a violncia contra as
mulheres e situamos Portugal neste contexto, com nfase particular constituio da
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Comisso para a Igualdade e para os Direitos das Mulher (CIDM2, instncia governamental
responsvel pela defesa dos direitos das mulheres), e para as alteraes legais e polticas
pblicas implantadas no pas. Por ltimo, apresentamos os resultados de investigaes
realizadas no contexto nacional sobre a temtica e as principais instituies portuguesas que
atendem mulheres submetidas violncia domstica.
Na Parte B, apresentamos as definies conceituais e epistemolgicas que
fundamentam o trabalho. Partimos do movimento feminista, traando seus principais
desenvolvimentos histricos no contexto internacional e em Portugal para encerrar com as
crticas feministas cincia. No Captulo 4, descrevemos os processos que levaram ao
surgimento de um novo paradigma na psicologia social, a psicologia social crtica. Para isso,
descrevemos a fundao da psicologia como cincia, as diferentes perspectivas na psicologia
social e a crise vivida por volta da dcada de 1960. Por fim, descrevemos o que entendemos
por psicologia social crtica, a qual se consubstancia no construcionismo social e na anlise
de discurso e as suas consequncias para o conceito de gnero.
No captulo quinto, traamos uma breve diferenciao entre os principais termos
geralmente utilizados nesta rea de estudos (violncia domstica, violncia familiar, violncia
contra as mulheres e violncia de gnero), concluindo com a explicitao da definio que
adoptamos nesta investigao, a violncia de gnero. Ao fim destas trs partes, apresentamos
uma breve integrao do que foi at aqui abordado, retomando os objectivos da pesquisa.
Na Parte C (Os Discursos Sobre a Violncia Contra Mulheres: Estudos Empricos),
descrevemos as investigaes realizadas para compreender os discursos circulantes nos
cuidados de sade primrios sobre a violncia de gnero. No Captulo 6, detalhamos os
procedimentos metodolgicos empregados nos estudos, apresentando os cuidados ticos
assumidos, os procedimentos de colecta de dados e os passos da anlise dos materiais.
Trabalhando sob a lgica dos saberes situados, descrevemos tambm o domnio cientfico dos
cuidados de sade primrios e o contexto local em que a pesquisa se realizou, nomeadamente
o municpio de Braga.
No Captulo 7, alm de um estudo piloto, so apresentados os trs estudos realizados,
os quais cobrem duas grandes reas:
2 Actualmente designada por Comisso para a Cidadania e Igualdade de Gnero (CIG).
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1 - Anlise do discurso na produo cientfica sobre mulheres e violncia:
Estudo I - Investigaes sobre mulheres e violncia em Portugal (Teses e
Dissertaes);
Estudo II Revistas mdicas: a invisibilidade da violncia de gnero em
publicaes nacionais;
2 - Anlise do discurso de profissionais da medicina:
Estudo III Entre Discursos e Saberes: Mdicos de Famlia actuantes nos
cuidados de sade primrios;
Nas Consideraes Finais, relacionamos todos os achados e encaminhamos as
concluses, reservando tambm algum espao para a reflexo sobre as limitaes da
investigao e sugestes para trabalhos futuros.
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PARTE A
VIOLNCIA CONTRA AS MULHERES:
CONSTRUO SOCIAL DO PROBLEMA
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Apresentao
Nesta primeira parte, estabelecemos os fundamentos para a construo de nosso
objecto de pesquisa, os discursos circulantes nos cuidados de sade primrios sobre a
violncia de gnero. No primeiro captulo, discutimos a emergncia da violncia contra as
mulheres como uma preocupao internacional. Partimos de uma breve descrio das
iniciativas pioneiras dos grupos de mulheres que deram visibilidade para o contexto privado e
domstico em que as situaes de violncia eram vividas. Em seguida, abordamos a
compreenso construda no campo dos Direitos Humanos, com seus Tratados e Convenes
Internacionais, dando particular ateno aos avanos e retrocessos no campo dos direitos
humanos das mulheres. Descrevemos tambm o contexto em que a violncia em geral passou
a ser considerada um problema de Sade Pblica, abrindo espao para a reflexo sobre as
repercusses da violncia domstica na sade das mulheres.
O segundo captulo aborda a situao de Portugal no contexto europeu no que diz
respeito participao nos Tratados e Convenes internacionais e apresenta, mais
detalhadamente, as iniciativas adoptadas no pas em busca da igualdade de oportunidades para
homens e mulheres. Destacamos o percurso histrico da Comisso para a Igualdade e para os
Direitos das Mulheres (CIDM, actual Comisso para a Cidadania e Igualdade de Gnero,
CIG) e seu importante papel como impulsionadora de mudanas estruturais, tal como a
alterao nas legislaes nacionais - as quais tambm so descritas, com particular nfase para
as destinadas ao combate violncia domstica. Apresentamos tambm as principais
investigaes desenvolvidas no pas sobre mulheres e violncia, tanto no domnio acadmico
(Teses e Dissertaes) quanto informaes estatsticas oferecidas por instituies de
atendimento e apoio a mulheres vtimas de maus-tratos. Por fim, descrevemos as principais
instituies vocacionadas para o atendimento de mulheres vtimas de maus-tratos, seu
percurso histrico, principais intervenes e servios oferecidos.
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Captulo 1
A Emergncia da Violncia Contra as Mulheres Como Uma Preocupao
Mundial
1.1 O papel histrico das organizaes de mulheres
Durante muitos anos, a famlia foi vista como um lugar seguro, sendo os actos de
violncia contra as mulheres geralmente associados a pessoas desconhecidas da vtima.
Porm, nos ltimos 40 anos, tornou-se claro que o espao domstico justamente onde
mulheres e crianas correm os maiores riscos. Em 1962, C. Henry Kempe e colegas
publicaram os resultados de uma pesquisa sobre a sndrome da criana agredida no Journal
of the American Medical Association, chamando, pela primeira vez, a ateno da opinio
pblica para o problema. Esta definio, contudo, relatava apenas o uso da fora fsica na
agresso. Mais tarde, este conceito foi ampliado por Fontana, que mostrou que as crianas
tambm podem ser agredidas emocionalmente. A expresso anterior foi substituda por
sndrome da criana maltratada, incluindo a negligncia, a omisso e os outros aspectos
psicolgicos (Santana-Tavira, Snchez-Ahedo & Herrera-Basto, 1998). A partir de ento, o
maltrato de crianas se tornou uma preocupao de profissionais e do pblico, resultando no
s na transformao da legislao sobre o abuso infantil, como tambm aumentando a
preocupao sobre a necessidade de examinar criticamente as diferenas de poder na famlia e
a violncia na intimidade (Renzetti et al, 2001). Em meados da dcada de 1970, Scott e
Gayfort (este ltimo autor de diversas pesquisas empricas sobre vitimao de mulheres no
Reino Unido) chamaram a ateno para o desconhecimento da dimenso social da violncia
contra as mulheres, ao mesmo tempo em que a identificaram como uma sndrome (isto ,
reunio de sinais e sintomas que ocorrem em simultneo e que identificam uma perturbao
para a qual no so conhecidas causas). Em 1979, as categorias esposa agredida (battered
spouse) e mulher agredida (battered wife, battered women) foram acrescentadas
Classificao Internacional de Doenas (CID), dando origem tambm Sndrome da Mulher
Maltrada e estimulando a investigao sobre seu tratamento, incidncia e causas (Costa,
2005).
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Esta preocupao foi acrescida com o movimento de associaes de mulheres que, no
incio dos anos 1960, tiveram a iniciativa de se juntar em grupos de partilha de experincia de
vida, tambm chamados de grupos de promoo do aumento da conscincia. A partir destes
encontros, as agresses sofridas por em silncio por muitas mulheres em seus lares passaram
a ser faladas, compartilhadas e denunciadas, levando-as a desenvolveram uma maior
conscincia de si e compreenderam a extenso de sua vitimao social e familiar. Esta
desmitologizao do espao familiar e ntimo permitiu a transformao das compreenses
acerca da famlia e alterou a lgica de interveno (legal, jurdica, social, psicolgica e outras)
junto s vtimas de crimes praticados dentro da famlia. Na denncia das situaes de
discriminao, desigualdade e violao de direitos humanos, os movimentos feministas
elaboraram um entendimento do fenmeno baseado na premissa de que as prticas violentas
perpetradas pelos homens contra suas companheiras so uma questo poltica, uma forma de
exerccio do poder patriarcal que procura acentuar as desigualdades entre homens e mulheres,
garantindo a continuidade da submisso e da opresso s mulheres (Monteiro F. J, 2005;
Neves & Nogueira, 2003).
A partir desta tomada de conscincia, as mulheres passaram a se agrupar de acordo
com seus interesses e problemas, sugerindo interpretaes inovadoras. Assim, concluram que
muitos dos seus problemas no eram pessoais, mas sociais e polticos, dizendo respeito s
diferenas de poder entre os grupos sociais. A discusso e a interpretao da violncia contra
as mulheres deslocaram-se do contexto privado para o pblico e poltico, dando origem a uma
nova rea de estudos - a vitimao entre pessoas com laos ntimos. Desde ento, foi possvel
estudar tambm outras formas de agresses graves entre adultos, como as agresses
praticadas contra pessoas idosas e portadoras de deficincia. Contudo, a maior ateno na
investigao da violncia domstica s aconteceu quando as associaes de mulheres j
tinham se estabelecido e criado sua prpria rede de servios, processo iniciado em finais dos
anos 1960 e incio de 1970 (Monteiro F. J, 2005).
A dcada de 1970 tambm foi marcada pelas anlises que identificaram a
violao/estupro como um ato de poder e no como relacionado sexualidade. Na medida em
que as mulheres passaram a verbalizar suas experincias, tornou-se claro que no eram
violadas apenas por desconhecidos, nas ruas e locais ermos. Na maior parte dos casos, os
violadores eram conhecidos, familiares, namorados, maridos ou ex-companheiros das vtimas.
Desta constatao surgiu o anti-rape mouvement, com centros de crise para mulheres
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sobreviventes de violncia, e o mito do violador como algum estranho vtima comeou a se
dissolver. A compreenso de que o sexo forado - mesmo que j tenha havido relaes
anteriores consentidas uma violao ampliou as anlises para o contexto privado da
famlia (Monteiro F. J, 2005, Renzetti et al, 2001).
Neste processo, os movimentos de mulheres de pases como os Estados Unidos da
Amrica (EUA) e a Inglaterra foram os que obtiveram maior visibilidade e conquistas. Nos
EUA, o movimento de mulheres pode ser dividido em trs principais grupos: 1) mulheres
emergentes da nova esquerda, cuja luta social eram os assuntos que afectavam as mulheres
nas esferas social, poltica e econmica; 2) activistas de direitos civis e 3) grupos que, sem
estarem politizados, organizavam-se em torno de assuntos que afectavam seu quotidiano,
exigindo uma resposta da sociedade. De modo geral, eram compostos por mulheres brancas,
de classe mdia e com formao universitria que se revoltaram contra as discriminaes de
que eram alvo. Em Inglaterra, os grupos identificados com os ideais polticos de esquerda
tiveram mais fora do que nos EUA, conseguindo colocar a problemtica das mulheres nas
agendas polticas da esquerda radical, redefinindo os maus-tratos conjugais como um assunto
poltico (Costa, 2005).
No perodo de transio entre as dcadas de 1970 e 1980, especialmente nestes pases,
comearam a surgir refgios para mulheres que necessitavam escapar da violncia dos
maridos. Anteriormente, diversas organizaes, principalmente religiosas, ofereciam este
apoio, porm, no trabalhavam com um foco especfico na violncia praticada pelos homens
contra as mulheres e, tampouco, havia respostas organizadas dos servios pblicos. As casas
de acolhimento (casas particulares em que as mulheres permaneciam por alguns dias) foram
sendo substitudas por refgios que ofereciam, alm de um espao seguro, acesso a servios,
informaes e atendimentos especializados. Em 1971, Erin Pizzey fundou, em Londres, um
grupo pioneiro de suporte e aconselhamento no Chiswick Womens Aid (conhecido como
Battered Wifes Center) e, em 1975, a Organizao Nacional de Mulheres proclamou a
violncia conjugal como um assunto importante e estabeleceu a National Task Force ou
Battered Women/Household Violence, passando o problema a ter maior visibilidade, ao
mesmo tempo em que as agncias governamentais comeavam estudos sobre a sua
prevalncia (Costa, 2005).
A partir da criao destes abrigos, as mulheres passaram a partilhar suas experincias
publicamente, despertando o interesse de profissionais de sade mental, investigadores,
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policiais, juzes e polticos em aprofundar o conhecimento sobre o fenmeno. Os estudos
realizados nestes locais trouxeram tona a extenso e a prevalncia das agresses sexuais
praticadas por parceiros ntimos e comearam a constituir um corpo de conhecimentos
tericos mais slidos sobre a temtica (Monteiro F. J, 2005).
Desta forma, podemos afirmar que os movimentos feministas e de mulheres estiveram
na base do alargamento da interveno do controlo social formal sobre domnios que
pertenciam a um largo espectro do controlo informal (Costa, 2005). Como consequncia, nos
anos 1980 e 1990, o tema da violncia contra as mulheres passou a ser mais amplamente
discutido, sobretudo por organizaes no-governamentais de mulheres. Aos poucos, estas
discusses tiveram reflexo no trabalho das associaes mundiais de direitos humanos, que
passaram a ver a violncia contra as mulheres como uma violao dos direitos humanos.
Acompanhando este movimento, o campo da sade pblica no ficou imune s reflexes
sobre as consequncias da violncia na condio de vida das populaes, assuntos que
abordamos a seguir.
1.2 A violncia contra as mulheres como um problema de direitos humanos3
A noo e formulao jurdica dos Direitos Humanos algo bastante recente - mesmo
no mundo ocidental e associada luta internacional do perodo posterior Segunda Guerra
Mundial pelo combate s atrocidades cometidas pelo nazismo, sendo um de seus marcos
fundadores a Declarao Universal dos Direitos dos Homens, de 1948. O fundamento dos
Direitos Humanos o princpio de dignidade inerente condio humana, independentemente
de raa, cor, lngua, nacionalidade, idade, convices sociais, polticas ou religiosas4. A
introduo desta discusso no contexto internacional como objecto de proteco por parte dos
Estados nacionais causou impacto nas Constituies de diversos pases, fazendo com que o
direito interno destes pases e o direito internacional passassem a constituir um sistema de
proteco jurdica dos direitos humanos, expresso nos Tratados Internacionais e nas
Constituies dos Estados. Os tratados internacionais de direitos humanos garantem direitos
especficos aos indivduos, estabelecem obrigaes e responsabilidades aos Estados
signatrios, criam mecanismos para monitorar a obedincia dos Estados com relao s suas
3 Parte do material aqui apresentado ser publicado em Azambuja e Nogueira (in press). Introduo violncia contra as mulheres como um problema de Direitos Humanos e de Sade Pblica. Sade & Sociedade. 4 Incluiramos tambm o sexo e o gnero.
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obrigaes e permitem que os indivduos busquem compensaes por violaes destes
direitos. Assim, ao assinar um tratado internacional, o Estado fica obrigado a cumpri-lo e
submete-se ao monitoramento para verificao de seu comprimento e jurisdio
internacional (Campos, 2004).
A Declarao Universal dos Direitos do Homem (DHDH), juntamente com mais trs
documentos, compe a Carta Internacional dos Direitos do Homem. Isto decorre do facto da
Declarao no obrigar formalmente os Estados a cumpri-la, sendo, portanto, insuficiente.
Assim, foram produzidos outros dois documentos: o Pacto Internacional dos Direitos
Econmicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, nos
quais os Estados se obrigavam a assegurarem o pleno exerccio dos direitos neles
reconhecidos, sem qualquer discriminao em funo do sexo. Ambos os Pactos foram
assinados em 1966, mas entraram em vigor apenas em 1976, pois foi preciso aguardar 10 anos
para que 36 Estados os ratificassem. Tal facto mostra que os Estados facilmente assinam
Declaraes, mas apresentam muito mais dificuldades e resistncias para assumirem tais
compromissos (Lopes, 2005).
Ainda assim, a partir da Declarao Universal dos Direitos do Homem, iniciou-se uma
caminhada indita na histria da humanidade, afirmando-se a necessidade de respeitar a
igualdade entre todos os seres humanos. Apesar de isto ainda estar muito longe de
corresponder prtica, o valor simblico e real da Declarao inegvel. Considerada como
base comum a ser respeitada por todos os povos e naes, actua como uma espcie de
medida padro para a avaliao do respeito aos direitos humanos, embora a sua existncia
no baste. necessria tambm a vontade concentrada e incessante, principalmente da
sociedade civil, para que no seja esquecida. Foi a partir deste texto que se desenvolveram
movimentos para a descolonizao, a favor dos direitos cvicos, da democracia, do bem-estar
das crianas e da igualdade entre mulheres e homens (Vicente, 2000).
Contudo, tambm de ressaltar que, quando a Carta das Naes Unidas foi elaborada,
em 1945, as mulheres tinham direito a voto em apenas 31 pases e eram tratadas como
pessoas de segunda classe em quase todo o mundo. Alm disto, a prpria Declarao
Universal dos Direitos dos Homens est escrita no masculino, reforando a posio inferior
das mulheres e sua falta de poder, bem como a conotao evidente de que existiam direitos
para os homens e no para a totalidade da humanidade. Na construo inicial dos direitos
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humanos, as diferenas de gnero5 permaneceram invisveis, quer na sua dimenso de
construo social, quer na sua dimenso biolgica. A complexidade da diferena de gnero foi
neutralizada durante muitas dcadas, comeando a ser denunciada apenas a partir do
movimento de mulheres (Ferreira, 2005; Roseira, 2005).
A utilizao da expresso direitos dos homens polmica e tem suscitado
discusses acirradas. Barreto (2005) afirma que esta questo apenas colocada em
determinadas lnguas, entre elas o Portugus. A crtica linguagem sexista afirma que esta
constitui um entrave ao processo de instaurao da igualdade e da verdadeira apropriao dos
direitos do homem pelas mulheres, lembrando o papel da lngua na formao da identidade
social das pessoas e a interaco que existe entre a lngua e as atitudes sociais. Portanto,
defender a mudana de nome (Declarao Universal dos Direitos dos Homens e das Mulheres
ou Declarao Universal dos Direitos Humanos) significa reconhecer a importncia destes
aspectos para a igualdade entre mulheres e homens. Nesta lgica, uma Recomendao do
Comit de Ministros do Conselho da Europa de 1990 incitou os Estados-membros a
desenvolverem uma linguagem no-sexista. Do mesmo modo, a Carta da Unio Europeia6
fala em direitos fundamentais.
Por outro lado, Lopes (2005) refuta a expresso Direitos Humanos das Mulheres,
pois considera que os direitos humanos so universais, aplicando-se a todo o ser humano,
mulher ou homem. A autora lembra tambm que o texto da Declarao Universal dos Direitos
do Homem fala em indivduo e pessoa, sendo que, apenas ao se referir idade para o
casamento e o direito de contrair o matrimnio em liberdade, adopta as expresses homem
e mulher. Uma questo adicional colocada pela autora o facto da expresso direitos do
homem ser a traduo portuguesa para human rights, que deveria ser traduzida mais
adequadamente para direitos humanos. Tambm no podemos deixar de lembrar que a
presidncia da Comisso que redigiu os textos da Declarao e da Carta de Direitos Humanos
foi entregue justamente a uma mulher, Eleanor Roosevelt. Nesta posio, a antiga e mais
destacada Primeira-Dama estadunidense, conhecida activista dos direitos humanos e
defensora da paz, procurou destacar a igualdade de direitos entre homens e mulheres, o que
5 Uma discusso sobre o conceito de gnero ser apresentada no Captulo 4. 6 A Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia foi proclamada em Nice, em 07 de Dezembro de 2000 e representa a sntese dos valores comuns dos Estados-membros da Unio Europeia, incluindo os direitos sociais e econmicos, com base na jurisprudncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de Estrasburgo. Alm do prembulo introdutrio, est dividida em sete captulos: dignidade; liberdades; igualdade; solidariedade; cidadania; justia e disposies gerais. (Informao disponvel em: http://europa.eu/scadplus/leg/pt/lvb/l33501.htm, acesso em 25 de Junho de 2007).
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nem sempre foi fcil, tal como pode ser percebido em seu relato do trabalho nesta Comisso
(Roosevelt, 1948, livre traduo nossa).
O Comit para a redaco da verso preliminar da Declarao dos Direitos Humanos
se reuniu pela primeira vez em Junho de 1947. O delegado da U.S.S.R, Sr.
Korotevsky, e o delegado da Bielorrssia, ambos desautorizados por seus pases a
votarem com relao a um documento inacabado e, sem instrues de seus governos,
participaram muito pouco na discusso geral do Comit, acabando por concordar com
o princpio de que todos os humanos so iguais e que os homens e as mulheres devem
ter direitos iguais.
Lopes (2005), apesar de refutar a expresso direitos humanos das mulheres, admite
que os direitos humanos possuem uma vertente feminina (ou masculina), no s em seu gozo
e exerccio, mas tambm na sua ausncia. Isto particularmente visvel na rea do direito
sade sexual e reprodutiva, onde, evidentemente, h circunstncias especficas s mulheres
que no existem para os homens. Homens e mulheres tm direito sade para exercem a
paternidade e a maternidade de forma saudvel. Contudo, no caso das mulheres, existe uma
vasta gama de direitos que nem sempre so contemplados ou cujo gozo nem sempre
permitido. H, portanto, um rosto feminino do direito e haver um rosto masculino, mas no
h direitos diferentes, na minha opinio, para homens e mulheres. (Lopes, 2005, p. 159). A
autora prossegue afirmando que este rosto feminino tambm aparece na ausncia ou na
violao dos direitos humanos, qual seja: a maior parte dos pobres do mundo so mulheres, a
maior parte dos analfabetos so mulheres, a maior parte dos crimes sexuais so praticados
contra mulheres, as mulheres e as raparigas so a maior parte da pessoas traficadas e
exploradas sexualmente, quem mais sofre as consequncias da falta de assistncia e de
cuidado na sade sexual e reprodutiva so as mulheres e as adolescentes e, por fim, a maior
parte dos refugiados e deslocados em situaes de guerra e conflitos armados, externos e
internos, so as mulheres e suas crianas.
Diante de todas estas constataes, foi em finais da dcada de 1960 e meados de 1970
que se iniciou o processo de consciencializao sobre a necessidade da criao de
mecanismos institucionais para a melhoria das condies de vida das mulheres de todo o
mundo, esboando-se as primeiras definies a este respeito. Assim, em 1967 foi criada a
Declarao para a Eliminao da Discriminao contra as Mulheres, a qual est na gnese da
Conveno para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres, de
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1979 (Lopes, 2005). Neste mesmo processo, o ano de 1975 foi proclamando pela Organizao
das Naes Unidas (ONU) como Ano Internacional da Mulher e realizou-se a I Conferncia
sobre as Mulheres, na Cidade do Mxico. Nesta, o perodo compreendido entre os anos 1976
e 1985 foi declarado como a Dcada das Mulheres e aprovou-se o respectivo Plano de Aco
Mundial (Silva, 2002).
De acordo com Ftima Jorge Monteiro (2005), foi em 1979, aps a realizao da
Conveno para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Contra as Mulheres
(conhecida pela sigla em ingls CEDAW), que a violncia contra as mulheres passou a ser
reconhecida oficialmente como um crime contra a humanidade.7 Por outro lado, Teresa
Beleza (2007) afirma que este texto no se referia, de forma explcita, violncia (excepto
quanto ao trfico e prostituio que, frequentemente, envolvem violncia ou so, em si,
formas de violncia). Talvez isso se deva ao facto de, na poca, a violncia domstica e outras
formas de violncia contra as mulheres no terem ainda entrado de pleno na conscincia
pblica internacional.
Ainda assim, aos poucos, o problema da violncia contra as mulheres passou a ter
maior visibilidade. Primeiro, por fora e iniciativa das organizaes a favor dos direitos das
mulheres. E, a partir dos anos 1980, a nvel dos governos e organismos internacionais - como
a ONU e algumas de suas agncias especializadas e tambm de outras organizaes no
especificamente de mulheres, como a Amnistia Internacional e a Federao Internacional
para o Planeamento Familiar (Vicente, 2000). Assim, a Conveno CEDAW considerada a
carta dos direitos humanos das mulheres (Lopes, 2005, p. 162). Mas, apesar de ter quase 30
anos e de seu carcter vinculativo, continua a ser alvo de constantes violaes dos direitos
nela enunciados.
Aps a Dcada das Mulheres e at o ano de 1995 a ONU realizou mais trs
conferncias mundiais especificamente sobre mulheres: 1980, Copenhagen; 1985, Naiorbi e
1995, em Pequim. Em 1993, como resultado da Conferncia sobre os Direitos Humanos,
realizada em Viena, ustria, surgiu a Declarao de Viena para a Eliminao da Violncia
Contra as Mulheres (Declarao de Viena). Nesta, encontramos pela primeira vez uma clara
classificao das diferentes formas de violncia (Lopes, 2005; Monteiro F. J., 2005):
7 Destaco aqui a observao de Roseira (2005) de que este documento foi elaborado com base no conhecimento e metodologias ento existentes. Posteriormente, a Plataforma de Aco de Pequim, de 1995, e o seu documento de avaliao, de 2000, consagraram as iniciativas e aces futuras sob uma perspectiva de gender mainstreaming (a qual corresponde insero da perspectiva de gnero em todas as polticas e programas).
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1) Violncia praticada por outros membros da famlia (abrangendo as agresses fsicas
e psicolgicas, as sevcias sexuais infligidas s crianas do sexo feminino, violao conjugal,
mutilaes genitais e outras prticas tradicionais, bem como explorao econmica);
2) Diversos tipos de violncia ocorridas no contexto das comunidades locais (violao,
intimidao sexual e intimidao no local de trabalho, ensino ou outras instituies,
proxenetismo e prostituio forada);
3) Violncia perpetrada ou tolerada pelo prprio Estado (seja por negligncia ou falta
de respostas dos servios institucionais).
Para alm de apresentar esta definio, a Conferncia de Viena tem sido considerada
como um marco, pois representou uma mudana radical ao impor8 aos governos a obrigao
de zelar pela garantia dos direitos das mulheres. Apesar de nenhum dos documentos
preparatrios desta conferncia fazer meno a este respeito, a presso das numerosas
organizaes internacionais de mulheres fez com que o texto final do encontro
consubstanciasse os direitos das mulheres como direitos humanos. Assim, foi na dcada de
1990 que surgiu o movimento que se identificou com a mxima os direitos das mulheres so
direitos humanos. Lanada por organizaes de mulheres, esta ideia , ao mesmo tempo,
simples e complexa. Simples, porque destaca o facto de que as mulheres compem a metade
da humanidade; complexa, radical e potencialmente transformadora, pois denuncia o facto de
as mulheres ainda no gozarem o direito que lhes devido como seres humanos. O
enquadramento dos direitos das mulheres como direitos humanos permitiu que se fizessem
exigncias nos termos que a comunidade internacional j aceitava para alguns grupos (como
as minorias tnicas). Alm disto, permitiu que mulheres de todo o mundo se unissem por uma
plataforma comum e fez com que, cada vez mais, os direitos humanos se integrassem s
questes tnicas, de classe social, religio, idade e etc. Por fim, a compreenso das agresses
praticadas contra as mulheres como violao dos direitos humanos estabeleceu que os Estados
so responsveis por estes abusos, sejam eles cometidos na esfera pblica ou privada
(Ferreira, 2005).
Na sequncia da Declarao de Viena, diversos relatrios foram realizados pela
Comisso de Direitos Humanos da ONU, os quais puseram mais vista as situaes a que as
8 Muito embora esta obrigao no seja jurdica - uma vez que se trata de uma declarao, isto , no possui efeito juridicamente vinculativo - adquiriu um estatus de soft law em virtude da matria que cobre j ser aceita a reconhecida pela comunidade internacional (Beleza, 2007, p.5).
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mulheres em todo o mundo estavam sendo submetidas. Neste perodo, as questes relativas s
desigualdades de gnero comearam a ser estudadas em maior profundidade, assumindo a
dimenso de um problema poltico cuja equao integra a proteco, a promoo e a
realizao dos direitos humanos, fazendo-se presente nas diversas conferncias mundiais
realizadas no perodo: Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992;
sobre Direitos Humanos, em Viena, 1993; Populao e Desenvolvimento, Cairo, em 1994 e
sobre Desenvolvimento Social, em Copenhagen, 1995. Na Conferncia Internacional sobre
Populao e Desenvolvimento, realizada no Cairo, o problema da violncia contra as
mulheres se fez presente em diversos captulos de seu Programa de Aco, com o
reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres (Ferreira, 2005; Roseira, 2005;
Vicente, 2000).
Um ano depois, em 1995, foi realizada a Quarta Conferncia Mundial da ONU sobre
as Mulheres, em Pequim (Beijing), sendo a violncia contra as mulheres assumida tambm
como uma questo de gnero e definida como
todo o acto de violncia baseado no gnero, do qual resulte, ou possa resultar, dano
ou sofrimento fsico, sexual e psicolgico para as mulheres, incluindo as ameaas de
tais actos e coaco ou privao arbitrria de liberdade, quer ocorra na vida pblica
ou privada, constituindo uma manifestao de relaes de poder historicamente
desiguais entre homens e mulheres (citado por Vicente, 2000, p. 47-48).
A Plataforma de Pequim um documento de particular importncia no campo dos
direitos das mulheres pois, conforme j referido (ver nota de rodap n 7), constitui uma
estratgia mais fundamentada em termos de aces e conceituaes a este respeito, sendo
considerada a cartilha fundamental em termos internacionais no domnio da identificao das
principais reas estratgicas de aco no sentido de corrigir as desigualdades de gnero
(Roseira, 2005, p. 95). Considerando que os direitos humanos esto ligados s questes
econmicas, civis, sociais, culturais e polticas, a autora afirma que a Plataforma de Pequim instigou os Governos, a comunidade internacional e a sociedade civil a intervir em doze reas
especiais de preocupao: (1) a pobreza; (2) as desigualdades na educao e formao
profissional; (3) as desigualdades e inadequaes no acesso aos cuidados de sade; (4) a
violncia contra as mulheres; (5) a desigualdade nas estruturas polticas e econmicas; (6) os
efeitos dos conflitos armados e outros sobre as mulheres; (7) as desigualdades na partilha de
poder e tomada de deciso; (8) a insuficincia dos mecanismos para promover o progresso das
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mulheres; (9) o desrespeito, a inadequada promoo e proteco dos direitos humanos das
mulheres; (10) a estereotipao das mulheres, a desigualdade no acesso e na participao em
todos os sistemas de comunicao; (11) as desigualdades de gnero na gesto dos recursos
naturais e defesa do meio ambiente e (12) a discriminao persistente contra as adolescentes e
a violao de seus direitos. Para cada uma destas reas, foram propostos objectivos
estratgicos e medidas especficas para os atingir, dando-se especial ateno aos grupos mais
vulnerveis em cada aspecto.
Em 1998, o Tribunal Penal Internacional9, atravs do Estatuto de Roma, reconheceu
como crime contra a humanidade a violao, a gravidez forada (comum durante a guerra da
Bsnia, em que, devido poltica de modificao tnica da populao, as mulheres foram
engravidadas e detidas at que nascessem as crianas), a escravatura sexual, a prostituio
forada, a esterilizao fora ou qualquer outra forma de violncia no campo sexual de
gravidade comparvel, independentemente de se estar em estado de guerra ou de paz. Tais
crimes foram includos no Estatuto de Roma como consequncia das situaes encontradas
nos tribunais especiais para o julgamento das violaes praticadas contra as mulheres durante
os conflitos nos Balcs e no Ruanda e, principalmente, pela aco dos movimentos de
mulheres - em especial a Coligao das ONGS para o Tribunal, atravs do ncleo especial
para defesa dos direitos das mulheres denominado Women Caucus - que pressionaram, de
diversas formas, os delegados dos Estados. Alm disto, o Estatuto de Roma consagrou, pela
primeira vez, num princpio geral de interpretao da lei, a no discriminao baseada no
gnero, juntamente com outros critrios tradicionais, como a religio, a raa, a opinio
poltica, entre outros. Por fim, sabendo das presses que so exercidas sobre as testemunhas
de tais tipos de crimes, o Tribunal tambm instituiu uma Unidade de Apoio s Vtimas e
Testemunhas, com funes de proteco, aconselhamento e acompanhamento psicolgico
(Escarameia, 2005).
Os estudos actualmente realizados por todo o mundo mostram que a situao das
mulheres, apesar das diversas iniciativas realizadas, continua marcada por graves violaes
dos direitos humanos. Desta forma, em 1999 foi aprovado e assinado o Protocolo Facultativo
Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres
(conhecido pela sigla em ingls como Conveno CEDAW) e, no ano 2000 a ONU organizou
9 Uma vez que este no directamente o tema de nossa pesquisa, lembramos apenas que este Tribunal tem jurisdio internacional para quatro tipos de crimes: o genocdio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agresso (Escarameia, 2005).
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uma Sesso Especial para Avaliao da Plataforma de Pequim, processo que culminou com a
aprovao de uma declarao poltica de reafirmao dos compromissos contidos no
documento de 1995 e de compromisso de superao dos obstculos encontrados para a sua
implantao, documento tambm conhecido como Iniciativas e Aces Futuras para a
Implementao da Declarao e Plataforma de Aco de Pequim ou Pequim+5 (Lopes, 2005;
Roseira, 2005).
Estes diversos documentos da ONU possuem valor e consequncias distintas, sendo
construdos uns sobre os outros, a partir da linguagem que se conseguir acordar (conforme
refere Lopes, 2005, p. 163, a agreed language). Isto implicou que, em diferentes documentos,
a agreed language fosse simplesmente repetida e, em alguns casos, que se avanasse um
pouco mais e, em outros, que se retrocedesse. o caso, por exemplo, da Plataforma de Aco
de Pequim, onde no se conseguiu inserir toda a agreed language j presente na Conferncia
do Cairo, constituindo um retrocesso. Alm disto, tambm em detrimento da Declarao de
Viena, foi extremamente difcil conseguir que a Plataforma de Pequim afirmasse que os
direitos das mulheres so direitos humanos. Do mesmo modo, devido presso de ultra
conservadores de vrias orientaes religiosas, foi extremamente difcil implantar tudo o que
significasse a subtraco das mulheres do jugo do casamento e da famlia ou qualquer aluso
a direitos sexuais e reprodutivos. Conceio Lopes (2005), que participou de todo este
processo, chama-o de dois passos frente, um passo atrs. Foi assim tambm que, em 2000,
o texto sobre as Iniciativas e Aces Futuras (Pequim+5) simplesmente repetiu pargrafos
inteiros da Plataforma de Aco de Pequim. Como diz a autora, quando no se pode dar
passos frente, ao menos que no se d nenhum para trs.
Como vemos, o campo dos direitos humanos, especialmente o dos direitos das
mulheres, no um campo pacfico. Antes, tem se apresentado como um espao constante de
luta, em que a aco dos movimentos de mulheres tem sido fundamental para o seu
questionamento e anlise crtica. Vicente (2000) lembra que, tanto no encontro de Viena
quanto no de Pequim, confrontaram-se duas posies face aos direitos humanos: a
universalista e a culturalista. A primeira (que prevaleceu) entende que os direitos humanos
so intrnsecos pessoa, justamente pelo facto de que um ser humano, no podendo ser
condicionada por qualquer autoridade. A corrente culturalista entende que, em nome da
cultura, num sentido muito amplo, legtima a no universalidade dos direitos humanos.
Portanto, aceita que existem direitos humanos especificamente femininos e especificamente
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masculinos. Por exemplo, no primeiro caso est o direito de no ser violada, de no ser
forada a abortar, no ser mutilada genitalmente e de ser me; no segundo, o de no ser
violado, no ser castrado e de ser pai. Lopes (2005) complementa esta ideia com a constatao
de que, no encontro de Viena, prevalecera uma teoria universalista, ao passo que, em Pequim,
houve uma tentativa de forar por um posicionamento culturalista. Tentou-se que hbitos e
tradies, como a mutilao genital feminina ou a submisso total da mulher dentro do
casamento, prevalecessem sobre os direitos humanos. O argumento, vindo especialmente dos
pases de orientao islamita, era de que a cultura ocidental no tinha direito de intervir na sua
cultura e tradies (ainda que as suas prprias Constituies polticas garantam a igualdade de
direitos entre os sexos).
Assim, devido fora da corrente culturalista, crimes cometidos em nome da famlia,
da religio e da cultura do grupo permaneceram por muito tempo fora do escrutnio dos
tratados internacionais de direitos humanos, sendo exemplos as mortes foradas das mulheres
vivas na ndia, Paquisto e outros pases de influncia islmica; a complacncia para o
aborto e o infanticdio de fetos ou bebs recm-nascidos do sexo feminino nas sociedades em
que h uma grande presso econmica e social para que as famlias no tenham filhas
mulheres, como o caso da China e da ndia; as mutilaes genitais femininas infligidas s
mulheres do mundo islmico, e tantas outras situaes. Uma razo para a permanncia de
muitas destas violaes se relaciona ao direito liberdade de religio. Como sabemos,
existem religies que consagram as desigualdades entre homens e mulheres nos seus
princpios. No conflito entre dois direitos, o direito abstracto liberdade religiosa tem
permanecido como superior ao direito vida, ao exerccio da sexualidade, da realizao
pessoal, do trabalho e tantos outros. Alm disto, constata-se que os instrumentos
internacionais de direitos das mulheres impem obrigaes e procedimentos mais brandos do
que outras convenes internacionais. As instituies responsveis pela aplicao e
fiscalizao destes instrumentos dispem de poucos recursos e o seu campo de aco
frequentemente circunscrito, fazendo com que o no cumprimento das disposies por parte
dos Estados seja bastante tolerado (Ferreira, 2005).
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1.3 A violncia contra as mulheres como um problema de sade pblica
No campo da sade pblica, a insero da violncia praticada contra as mulheres como
um problema a que se deve dar particular ateno seguiu o movimento histrico das
convenes e tratados de direitos humanos. Contudo, a preocupao inicial foi com os
aspectos relacionados violncia em geral e sua importncia para o processo de sade e
doena das populaes. A partir da dcada de 198010 e, mais intensamente, na dcada de
1990, a problemtica da violncia adquiriu maior fora nos debates polticos e sociais e no
planeamento em sade pblica. Foi apenas neste perodo que a Organizao Pan-americana de
Sade (OPAS) e a Organizao Mundial de Sade (OMS) comearam a falar explicitamente
em violncia. Anteriormente, utilizava-se a rubrica causas externas da Classificao
Internacional de Doenas (CID), a qual inclua actos como suicdios, homicdios e acidentes
fatais. Do mesmo modo, o conceito de morbidade dizia respeito a ferimentos, fracturas,
traumas e queimaduras causadas por confrontos interpessoais ou colectivos. Em 1994, a
OPAS realizou uma conferncia internacional com os Ministros de Sade das Amricas,
pesquisadores e especialistas sobre o tema. Dentre as concluses deste encontro, destacou-se a
constatao de que a violncia, devido ao grande nmero de vtimas e magnitude de suas
sequelas fsicas e psicolgicas, adquiriu um carcter endmico e se tornou uma
responsabilidade da sade pblica, uma vez que cabe a este sector o atendimento de urgncia,
tratamento e reabilitao das suas vtimas (Minayo, 2006).
Na sequncia desta conferncia internacional, a OMS passou a desenvolver e estimular
pesquisas internacionais sobre a temtica da violncia em seus mais diferentes mbitos.
Apenas como exemplos, podemos citar as seguintes publicaes: Violence: a public health
priority, de 1996; Violence against women: a priority health issue, de 1997; Injury: a leading
cause of the global burden of disease, Injury surveillance guidelines e Report of the
consultation on child abuse prevention, todas de 1999; Guidance for surveillance of injuries
due to landmines and unexploded ordnance, de 2000; Putting women first: ethical and safety
recommendations for research on domestic violence against women, de 2001 e Missing
voices: views of older persons on elder abuse, de 2002. Como vemos, so estudos que
abordam uma grande variedade de contextos e situaes de violncia, com grande nfase para
10 Lembramos que, em 1979, foram acrescentadas Classificao Internacional de Doena as categorias de esposa agredida (battered spouse) e mulher agredida (battered wife, battered women) (Costa, 2005).
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a violncia domstica, seja contra mulheres, crianas ou pessoas idosas (listagem encontrada
em Krug, Dahlberg, Mercy, Zwy & Lozano, 2002).
Assim, no j citado encontro de Pequim, um dos temas abordados foi a variedade de
estudos e pesquisas sobre as situaes de violncia a que muitas mulheres so submetidas em
todas as partes do mundo. Percebeu-se que utilizavam diferentes estratgias e metodologias,
de acordo com as realidades e possibilidades locais, sendo difcil agrupar e comparar seus
dados. Consequentemente, difcil conhecer a real dimenso do problema e estabelecer
programas efectivos de preveno. A fim de superar este obstculo, em 1997, a OMS iniciou
um estudo padronizado e articulado entre dez pases (Bangladesh, Brasil, Etipia, Japo,
Nambia, Peru, Samoa, Srvia e Montenegro, Tailndia e Tanznia) sobre a sade das
mulheres e suas vivncias de violncia domstica. Os resultados preliminares deste
levantamento mostraram que a violncia praticada contra as mulheres um fenmeno
universal que ocorre em todo o mundo, sendo, frequentemente, seus perpetradores pessoas
conhecidas das vtimas (Skinner, Hester & Malos, 2005; WHO, 2005a).
Em 1997, a OMS convocou uma nova conferncia internacional sobre sade, desta vez
contando com a participao dos Ministros de Sade dos pases integrantes da Organizao
das Naes Unidas (ONU). Neste encontro, a violncia tambm foi um dos temas abordados,
sendo considerada uma das cinco prioridades recomendadas s Amricas. Na sua Resoluo
WHA.49.25, a OMS caracterizou a violncia da seguinte forma (Dahlberg & Krugg, 2002,
p.6, traduo nossa):
1 Violncia auto-dirigida: subdividida em comportamento suicida e auto-agresso;
2 Violncia interpessoal: correspondendo violncia familiar, entre parceiros e
comunitria (as primeiras geralmente ocorrem no espao da casa, e a ltima no espao social-
comunitrio);
3 Violncia colectiva: abrange a violncia social, econmica e poltica.
Destacamos, do estudo da violncia no mbito da sade pblica, a publicao, pela
OMS, do Relatrio Mundial Sobre Sade e Violncia, em 2002, onde foram especificadas
definies, classificaes e contextualizaes para o problema da violncia em geral, bem
como apresentados planeamentos e estratgias de preveno (Minayo, 2006). Assim, a OMS
assume como definio para violncia
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uso intencional de fora ou poder, atravs de ameaa ou agresso real, contra si
mesmo, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resulta ou tem grande
probabilidade de resultar em ferimentos, morte, prejuzos psicolgicos, problemas de
desenvolvimento ou privao (Dahlberg & Krugg, 2002, p. 5, traduo nossa).
Percebemos que esta definio associa a intencionalidade violncia,
independentemente do resultado que produza, o que pode gerar algumas controvrsias: em
muitos casos, extremamente difcil determinar se a inteno de utilizar a fora tambm est
associada inteno de causar danos (por exemplo, pais podem dar uma palmada no filho
com a inteno de corrigi-lo, mas no de machuc-lo). Alm disto, pode haver diferenas
entre o comportamento pretendido e a consequncia desejada (no exemplo anterior, a
consequncia desejada a correco do filho, e no o seu ferimento). Outro aspecto a destacar
nesta definio a utilizao da expresso poder, ao invs de unicamente fora fsica.
Com isto, amplia-se os limites do acto violento, passan