Tese Marcelo Michalczuc Marcelino
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7/26/2019 Tese Marcelo Michalczuc Marcelino
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Mrcio Michalczuk Marcelino
UMA LEITURA DO SAMBA RURAL AO SAMBA URBANO
NA CIDADE DE SO PAULO
Dissertao de Mestrado apresentada aoPrograma de Ps-Graduao Stricto Sensu
em Geografia Humanada Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
da Universidade de So Paulosob a orientao do Prof. Dr. Jlio Csar Suzuki
2007
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UMA LEITURA DO SAMBA RURAL AO SAMBA URBANO
NA CIDADE DE SO PAULO
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Para meus pais, Maria e Marcelino,Para minha filha, Maria Fernanda,
Para minha mulher, Fabia.
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Agradecimentos
Ao meu pai Marcelino e minha me Maria que sempre me respeitaram,
incentivaram e acreditaram no meu percurso. Obrigado pelo dom da vida. A minha
filha Maria Fernanda que mesmo muito pequena compreendeu o valor desse
trabalho e me permitiu muitas vezes furtar seu valioso tempo junto a mim.
Verdadeira inspirao de vida e luta! A Fabinha, por compartilhar alegrias e tristezas
durante a pesquisa e que jamais deixou de acreditar nessa vitria, obrigado por ser
minha mulher.
Ao Osvaldo e Selma, braos direitos e esquerdos nos momentos crticos
da pesquisa, amigos, colaboradores, disponveis em todas as horas, meu muito
obrigado pelo "trabalho escravo" que realizaram, sem eles no teria chegado a
esses agradecimentos.
Ao meu irmo Marcello e minha cunhada Vicky, pelo pronto atendimento
na confeco do abstract, obrigado tambm por me darem a Julinha como sobrinha
afilhada!
Ao Jlio Csar Suzuki, orientador e amigo, pela compreenso,
pacincia, orientao, sabedoria e por acreditar em mim durante todo o processo da
construo da pesquisa.Ao Francisco Capuano Scarlato, tambm orientador de "outros
carnavais", e sempre amigo e a Claudete de Castro Silva Vitte pela disponibilidade
e idias acrescentadas no exame de qualificao. Obrigado por serem a banca
examinadora dessa dissertao.
Ao Departamento de Geografia, professores e funcionrios.
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Ao Instituto de Estudos Brasileiros - IEB, da USP, nas pessoas da
Diretora Prof Dr Ana Lcia Duarte Lanna e da sua Supervisora Tcnica do Servio
de Arquivo Maria Izilda Claro do Nascimento Fonseca Leito.
Professora Olga Rodrigues de Moraes von Simson por indicar
possibilidades para a pesquisa e caminhos para obteno de fotos sobre o samba
paulistano, bem como ao pessoal que trabalha com ela no Centro de Memria da
Unicamp em Campinas - SP.
Ao Arquivo Histrico Municipal de Campinas na pessoa de Joana
Tonon, bibliotecria prestativa na consulta dos salvos-condutos do sculo XIX.
Ao Museu Histrico e Pedaggico Amador Bueno da Veiga de Rio
Claro-SP, na pessoa da Sr. Maria Antonieta Cassab, pela autorizao para uso de
imagens.
Ao Arquivo Pblico e Histrico do Municpio de Rio Claro, na pessoa da
Prof Ivani Bianchini Hfling, pela autorizao de uso de imagens.
Ao Instituto Moreira Salles - IMS/SP, nas pessoas das Sras. Odette
Jeronimo Cabral Vieira, Coordenadora, Virgnia Maria Albertini, Coordenadora
Adjunta do Acervo Fotogrfico, e Vera Lucia Ferreira da Silva.
Aos meus amigos de toda hora, que durante trs anos me suportaram
ouvindo sempre a palavra "mestrado" em nossos encontros, e que, alm detolerarem isso sem nunca reclamar, foram fundamentais para a pesquisa, Guina e
Tonho, eternos irmos e comparsas que, alm de trabalharem comigo,
acompanharam as idas e vindas em diversas pesquisas de campo; Cumpadi
Toninho, fiel assistente de pesquisa de campo que me acompanhou entre outras as
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festas de Pirapora do Bom Jesus; Kal e Albert, pela sabedoria de saber ouvir,
pensar e falar. Valeu rapaziada!
Ao meu chefe no trabalho Dr. Marcelo Dias, bem como Glson, parceiros
de trabalho que acompanharam e viabilizaram horrios durante todo percurso do
mestrado.
Ao Waldir Romero e Paulo Fuhro, companheiros e parceiros de projetos
no mundo do samba e nas viagens comunitrias. Hasta la victoria, siempre!
Ao amigo Cesar Favilla que numa feijoada no sbado de carnaval em
2002 iniciou uma conversa comigo e que, entre tantos resultados positivos, passa
agora pela concluso desta dissertao de mestrado, tenho a certeza de que tantas
outras vitrias viro, muito obrigado!
Sandro Dozena e Vanir Belo, interlocutores da pesquisa e gegrafos
sambistas que tambm investigam esse tema, bem como Eduardo Rezende,
igualmente gegrafo e apaixonado pelo samba, o qual muito contribuiu nas
discusses metodolgicas dessa pesquisa. Ao Srgio e Juliana, tambm
gegrafos, fundamentais no processo de construo dos mapas e na arte final do
trabalho, obrigado pela pacincia e dedicao.
Aos verdadeiros conhecedores do samba, que com muita disposio e
ateno ajudaram em informaes primordiais nesta pesquisa e tornaram-seamigos, Dona Cida (Maria Apparecida Urbano), Seu Carlo do Peruche, Osvaldinho
da Cuca, Dinho do Peruche, Nen Pauzinho, Penteado da Vai-Vai, Fernando Bom
Cabelo, Hlio Baguna da Camisa Verde e Branco, Evaristo de Carvalho, Moiss da
Rocha e T. Kaula, obrigado pelo empenho!
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A todos os componentes da Unidos do Peruche e aos moradores do
Parque Peruche, obrigado pelo samba, obrigado por serem minha casa!
A todo o pessoal do Cruz da Esperana, time de futebol de vrzea na
zona norte da capital que conserva em seu campo uma verdadeira "quebrada do
futebol e samba", encontro de velhos sambistas e velhos jogadores, cheios de
experincia e com muitas histrias para contar.
A Prefeitura Municipal de Pirapora do Bom Jesus, nas figuras do Sr.
Prefeito Raul Silveira Bueno Jnior, seu vice Sr. Elias de Arajo, e o Chefe de
Gabinete Sr. Cladio Cruz, sabedores da importncia daquele municpio na histria
do samba em So Paulo, e valorizadores dessa cultura. Obrigado pela ateno
dispensada a esta pesquisa e pela autorizao para uso de imagens.
Ao Gustavo Mello e Leandro Freire do documentrio Samba Paulista,
que nos conhecemos nos respectivos incios dos trabalhos em Pirapora do Bom
Jesus e que trocamos informaes valiosas referentes ao samba e sua gente.
Ao Marcelo Manzatti, fundamental para a obteno em grande parte das
fotografias desse trabalho, solidrio pesquisador do samba.
A todos os entrevistados por mim nessa pesquisa, bem como a todos
que de uma maneira direta ou indireta acabaram por ajudar na concluso desse
trabalho, as Velhas Guardas de todas as escolas de samba de So Paulo, as alasde compositores, as baterias, as alas das baianas, enfim ao pessoal do samba que
conta suas histrias por meio da msica, que feliz e tem orgulho de dizer que
sambista.
Ao samba.
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RESUMO:
A aglomerao de So Paulo no final do sculo XIX comea a tomar corpo
de uma cidade moderna que se firma como metrpole em meados do sculo XX. O
samba, muito mais que um simples estilo musical, chega da zona rural paulista e na
aglomerao de So Paulo toma caractersticas urbanas passando a ser usado
como voz por parte dos novos moradores, na grande maioria mo-de-obra barata.
O crescimento do aglomerado imps ao samba a necessidade de mudanas
para ser incorporado dinmica urbana insurgente e de conseqentes
transformaes sociais que ocorriam gerando centralidades peculiares.
Visto como marginal na sociedade paulistana at praticamente o final dosculo XX, seno at hoje, cabe-nos desvendar em que contexto o samba se
desenvolveu (incio do sc. XX at incio do sc. XXI), sempre na perspectiva do
crescimento urbano paulistano, compreendendo seus valores e como estes
contriburam para a formao de uma cultura urbana paulistana tpica de periferia
formada em grande parte por pessoas vindas da rea rural: na maioria negros que
encontraram vasta heterogeneidade de tipos humanos e culturas, que
aparentemente no poderiam se misturar, mas que acabaram identificando-se efundindo-se no mesmo sentimento de pertena em uma nova realidade, agora
urbana em suas vidas.
A trajetria que o samba percorre do rural ao urbano serve como
fundamento de leitura da metamorfose da sociedade brasileira, tendo So Paulo
como referncia no bojo da modernizao da aglomerao e de sua metropolizao.
PALAVRAS-CHAVE: Rural, Urbano, Samba, So Paulo, Centralidades
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ABSTRACT:
The gathering of people in So Paulo city at the end of the XIX century starts
to shape it into a modern city, which establishes itself as a metropolis at the end of
the XX century. The Samba rhythm, much more than just a musical style, comes
from the rural areas of the So Paulo State and in the bringing together of people,
takes urban features and is used as a common voice by the newcomers, the vast
majority of cheap labour.
The growth of the gathering imposes a need of change to the Samba, so to
be incorporated into the upcoming dynamic of it, as well as into social
transformations which were happening, generating peculiar centralities.Not seen favourably by the society of the city, the Paulistas, until practically
the end of the XX century, perhaps till today, we place ourselves to reveal in what
context the Samba developed (from the beginning of the XX century until the
beginning of the XXI century), always with a point of view based on the urban growth
of So Paulo city, understanding its values and how these contributed in the
formation of the city's typically urban and peripheral culture, formed a great deal by
black rural people who found vast heterogeneity of human and cultural types whichapparently could not mix, but ended up identifying with one another and based
themselves in the same feeling which belonged to a new reality, now urban, in their
lives.
As a trajectory, the Samba travels from rural to urban and serves as a
reading foundation to the metamorphosis of the Brazilian society, having the city of
So Paulo as a reference in the interior of the modernization of the gathering and its
metropolitanization.
KEYWORDS: Urban, Rural, Samba, So Paulo City, Centralities.
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Quem quiser saber o meu nome
No precisa nem perguntar
Eu me chamo Plnio Marcos
Sou pagodeiro do lugar
O samba a forma da gente minha falar dos seus mais ternos sentimentos
E nesse embalo que eu vou
Vou contar do samba da paulicia e de sua gente
Que do tamanho do mundo
Porque no se acanha de contar as histrias do seu pedao
De cho de terra firmeCom licena dos mais velhos,
vamos de samba
Samba da Paulicia, Plnio Marcos
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SUMRIO
Introduo ............................................................................................................. p. 1
Captulo 1 Samba Rural .................................................................................... p.10
1.1. O Espao do Samba Rural .................................................................. p.20
Captulo 2 So Paulo: do Rural ao Urbano ....................................................... p.42
2.1. O espao da transio do samba rural para o samba urbano ............. p.51
Captulo3 Samba Urbano ...............................................................................p.110
3.1. O espao do samba urbano ............................................................... p.122
Consideraes Finais ....................................................................................... p.153
Referncias ........................................................................................................ p.158
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LISTA DE ILUSTRAES
Figuras
1 Di Cavalcanti. Samba, leo sobe tela, 33 x 55 cm, 1967 ....................... p.1
2 Di Cavalcanti. Samba, leo sobre tela, 177 x 154 cm, 1925 ................ p.10
3 Di Cavalcanti. Baile Popular, leo sobe tela, 89 x 116 cm, 1972 ......... p.42
4 Di Cavalcanti. Carnaval, leo sobe tela, dcada de 60 ...................... p.110
5 Plo Cultural e Esportivo Grande Otelo .............................................. p.1426 Di Cavalcanti. Samba, leo sobe tela, 33 x 55 cm, 1967 ................... p.153
7 Di Cavalcanti. Figuras Carnavalescas, leo sobe tela,
100 x 82 cm, 1965 .................................................................................... p.158
Fotos
1 Autor Desconhecido. Umbigada ........................................................... p.142 Rodolpho Copriva Jr. Samba leno ...................................................... p.15
3 Rodolpho Copriva Jr. Modistas e batuqueiros....................................... p.16
4 Mrio de Andrade. Reverncia ao bumbo ............................................ p.17
5 Claude Lvi-Strauss. Vista de Pirapora ................................................ p.20
6 Mrcio Michalczuk Marcelino. Vista de Pirapora .................................. p.21
7 Claude Lvi-Strauss. Anjo de promessa se prepara para procisso..... p.24
8 Claude Lvi-Strauss. Acampamento de Romeiros ............................... p.26
9 Autor desconhecido. Barraco dos romeiros ........................................ p.27
10 Autor desconhecido. Tambu e candongueiro. Jongo ......................... p.29
11 Autor desconhecido. Grupo Barra Funda na festa de Pirapora........... p.32
12 Claude Lvi-Strauss. Samba de bumbo do Bairro da Liberdade ....... p.33
13 Mrcio Michalczuk Marcelino. Festa de Pirapora do Bom Jesus ....... p.35
14 Mrio de Andrade. Samba de bumbo ................................................. p.38
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15 Mrcio Michalczuk Marcelino. Memria do Samba de Bumbo ........... p.39
16 Autor desconhecido. Bloco camponeses do Egito ............................. p.50
17 Autor desconhecido. Nen da Vila Matilde ......................................... p.52
18 Claude Lvi-Strauss. Desfile do Cordo Campos Elseos ................. p.54
19 Autor desconhecido. Rei e Rainha na Escola de Samba Nen da Vila
Matilde ........................................................................................................ p.57
20 Claude Lvi-Strauss. Rei e Rainha com estandarte ao fundo ............ p.58
21 Autor desconhecido. Inaugurao da primeira viagem de bonde na linha
So Bento-Barra Funda .............................................................................. p.64
22 Autor desconhecido. Caiaps ............................................................. p.69
23 Olga von Simson. Dionsio Barbosa ................................................... p.7124 Autor desconhecido. Componentes da Leandro de Itaquera com
destaque para o bumbo .............................................................................. p.73
25 Passaporte de Escravo em 1873 Frente ......................................... p.75
26 Passaporte de Escravo em 1873 Verso .......................................... p.76
27 Autor desconhecido. Evoluo do Baliza do Grmio Recreativo e
Carnavalesco Moderado da gua Branca .................................................. p.77
28 Autor desconhecido. Campo da Bela Vista - incio do sculo XX ...... p.9329 Affonso de Freitas. Tradies e Reminiscncias Paulistanas ......... . p.97
30 Carro alegrico da Escola de Samba Lavaps .................................. p.98
31 Autor desconhecido. Destruio de instrumento na Peruche ........... p.106
32 Autor desconhecido. Depois da invaso policial na Peruche ........... p.107
33 Autor desconhecido. Ala das Pastoras da Nen da Vila Matilde ...... p.119
34 Claude Lvi-Strauss. Espera pelos desfiles na Av. So Joo .......... p.125
35 Autor desconhecido. Carnaval do Parque Xangai ............................ p.12836 Autor desconhecido. Desfile no Anhangaba ................................... p.131
37 Autor desconhecido. Primeiro desfile aps oficializao pela prefeitura
em 1968 .................................................................................................... p.132
38 Autor desconhecido. Desfile na Tiradentes em 1978 ....................... p.136
39 Mrcio Michalczuk Marcelino. Ensaio para o carnaval de 2006 ....... p.138
40 Autor desconhecido. Plo Cultural e Esportivo Grande Otelo .......... p.141
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41 Autor desconhecido. Bateria da Nen desfilando sob a chuva, com seus
chocalhos de vara ..................................................................................... p.146
42 Autor desconhecido. Desfile de rua da Nen de Vila Matilde, Largo de
Vila Esperana .......................................................................................... p.148
Mapas
Mapa 1 - Samba Rural: Espao e Representao...................................... p.41
Mapa 2 - O Espao da Transio do Samba Rural para o Samba
Urbano......................................................................................................... p.63Mapa 3 - O Espao do Samba Urbano...................................................... p.123
Mapa 4 - Samba Urbano - 2 Fase: Espao e Pronunciao.................... p.149
Quadros
1 Cordo. Formao Original. Dcadas de 10 e 20 .............................. p.1162 Cordo. 2 Fase. Dcadas de 30, 40 e 50 .......................................... p.118
3 Mapa. Desfile da Unidos do Peruche em 2007 .................................. p.120
Anexos
1 Transcrio de materia jornalstica publicada em 28/10/2005, no CadernoZN6-Educao, do Jornal O Estado de So Paulo. ................................. p.169
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INTRODUO
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Nossa infncia foi permeada pela presena do samba em virtude de
morarmos em um bairro paulistano conhecido, sobretudo, por sua escola de samba.
Muitas pessoas sequer sabiam que o Parque Peruche era um bairro. Quando se
falava em Peruche, a associao imediata era com a Escola de Samba Unidos do
Peruche, o bairro ficava relegado a segundo plano, quando no era simplesmente
ignorado pela maioria dos habitantes da metrpole.
Estes fatos ficaram gravados em nosso imaginrio e depois, j adultos,
resolvemos estudar o bairro no Trabalho de Graduao Individual para obteno do
ttulo de Bacharel pelo Departamento de Geografia da FFLCH/USP, intitulado A
Evoluo Urbana do Parque Peruche e sua Gente. Por fim, foi transformado em
livro logo aps sua apresentao.A escolha de eleger este bairro se deveu a toda nossa vivncia, por ter sido
a nossa morada. Apenas posteriormente demo-nos conta que estudamos o bairro
em virtude de seu elemento espacial mais conhecido, a Escola de Samba Unidos do
Peruche.
Resolvemos, portanto, trilhar o caminho inverso, retomar a evocao que a
populao da metrpole faz quando citamos o nome Peruche, vamos estudar o
samba paulistano to presente em nossa vida.Esta deciso no foi to fcil como apenas estudar o bairro; para ter a exata
percepo da cultura que envolve este universo particular, para ter o contato
necessrio com o mundo do samba, foi preciso participar efetivamente da Escola de
Samba Unidos do Peruche. Assim, comeamos como integrantes de ala e
chegamos a assumir sua direo cultural.
Nosso objetivo original do mestrado era analisar a cultura e a espacialidade
do samba de So Paulo, para tanto, o ideal seria remetermo-nos gnese destacultura e sua espacializao, alm, claro, de verific-las no perodo atual. Este
trabalho, no entanto, seria demasiadamente extenso, por isso resolvemos, nesta
primeira etapa, focar a transio do samba rural para o samba urbano, que j no
uma tarefa simples - visto que as informaes sobre o objeto de estudo aqui tratado,
geralmente, provm de fontes orais que ficaram perdidas ao longo dos anos, e que
demandam um certo tempo para serem resgatadas. Assim, o objetivo geral da
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pesquisa foi o de desvendar a trajetria do samba em So Paulo, pois, o mesmo
serve como fundamento de leitura da metamorfose da sociedade brasileira, tendo a
aglomerao de So Paulo como referncia no bojo da modernizao da
aglomerao e de sua metropolizao.
Muito contriburam para a construo da etapa inicial, as conversas
mantidas com o Orientador, que oportunizaram possibilidades que no faziam parte
do projeto inicial, sugerindo recortes para satisfazer os interesses da pesquisa, bem
como utilizar sua experincia acumulada para assistir na sua construo,
encaminhando o debate, dessa forma, para a transio do rural ao urbano.
Como o perodo de mestrado no possibilita o tempo hbil de confeco
para desvendarmos todo o processo de formao e transformao do samba nacidade, optamos por nos restringir metamorfose do samba gerada pela mudana
espacial e pretendemos, posteriormente, dar segmento pesquisa aprofundando as
questes do samba na metrpole por meio do repertrio j acumulado.
Assim, o que pesquisamos foi o deslocamento do movimento cultural
nascido na zona rural de So Paulo para a urbana, analisando esta metamorfose
espacial e a manuteno das caractersticas rurais dessa cultura, demonstrando que
temporalidades sociais produzidas no passado podem estar presentes naatualidade.
Esta questo envolve a forma como o modo de produo econmico,
melhor dizendo, como o capitalismo, por meio da indstria cultural, influenciou o
samba urbano de So Paulo em detrimento de alguns elementos do samba rural,
como a religiosidade, por exemplo.
O ponto central do trabalho a formao do samba urbano paulistano. Para
sua anlise, voltaremos sua origem, ao samba rural, e principalmente ao perodode transio do samba rural para o samba urbano, que foi marcado pela
transformao da cidade em metrpole. Este perodo fundamental por apontar
tendncias que surgiram no samba urbano, por indicar alguns caminhos que o
samba urbano poderia ter seguido, mas no trilhou, restando apenas como
reminiscncias nos dias atuais; indicaes provveis para um novo caminho a ser
seguido, enfim, uma nova possibilidade para o samba.
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A cidade de So Paulo no final do sculo XIX, por sua estrutura, rede de
transportes e centralidade financeira e comercial, j se direcionava para o que viria a
ser uma metrpole em meados do sculo XX. O samba, ao ser trazido da zona rural
paulista, no apenas incorporou caractersticas urbanas, muito mais que um
simples estilo musical, passou a ser usado como voz por parte destes novos
moradores, que l acabaram por se tornar mos-de-obra baratas.
Em suas pesquisas sobre a industrializao de So Paulo, Sandra Lencioni
(1991) aponta que, no comeo do sculo XX, havia uma concentrao de indstrias
no interior e muitas acabaram migrando para a capital, fazendo com que o
contingente populacional de So Paulo aumentasse.
Foi, no entanto, o prprio crescimento da cidade e sua transformao emmetrpole que impuseram ao samba as mudanas necessrias para que ele
pudesse ser incorporado nova dinmica e a todas as transformaes sociais
espaciais que surgiam.
Alm deste contingente populacional que j trabalhava na indstria, os
trabalhadores das fazendas de caf foram particularmente importantes neste
processo, afinal, era l que o samba vinha sendo realizado.
Sempre visto como marginal na sociedade paulistana at praticamente ofinal do sculo XX (seno at os dias atuais), cabe-nos desvendar em que contexto
o samba paulistano surgiu: em um perodo (incio do sculo XIX at incio do sculo
XXI) em que a pequena cidade com poucos moradores do ltimo quartel do sculo
XIX comeou a conhecer a chegada de nmero expressivo de migrantes,
culminando no sculo seguinte na grande metrpole que hoje, sempre na
perspectiva do crescimento urbano paulistano; cabe-nos ainda compreender a
contribuio da zona rural para uma cultura suburbana paulistana, que era formadaem sua maioria por pessoas vindas da rea rural e que aqui encontraram uma vasta
heterogeneidade de culturas que aparentemente no poderiam se misturar, mas que
acabaram identificando-se e fundindo-se no mesmo sentimento de pertena em uma
nova realidade, j definitivamente urbana. Ademais, percebemos tambm que
ocorreu uma identificao de classe social, j que os negros e outras pessoas, como
os operrios italianos, por exemplo, eram pobres.
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Sobre a marginalizao do samba, lembramo-nos de nossos tempos de
escola, do samba feito no final das provas. Ns ramos repreendidos pela direo
que alegava que o samba era coisa de maloqueiro e vagabundo. Tentvamos
resistir indo para fora da escola e o samba continuava, entretanto a direo chamava
a polcia para dispersar os batuqueiros. Apesar da temtica abordada aqui no ser
samba e educao, queremos ressaltar que a marginalizao do samba ainda
existe, todavia iniciativas como a da Escola Municipal Garcia Dvila, na figura do
seu diretor Waldir Romero, tm levado a escola de samba para dentro do Ensino
Fundamental mostrando que a marginalizao vem diminuindo (vide Anexo 1).
A nossa contribuio para a Geografia com essa temtica e a importncia
da Geografia para analisarmos o samba consistem na relao da mudana doespao com as alteraes no samba.
O samba rural era feito em uma estrutura espacial em que no havia grande
necessidade de movimento, lembremos que a conformao territorial da rea rural
marcada por uma nica centralidade e na rea urbana as vrias centralidades tm
uma conformao territorial diferente que dificulta as apresentaes e as
manifestaes culturais coletivas e espontneas. Principalmente depois dos desfiles
da Avenida So Joo e da transformao dos cordes em escolas de samba,observamos o surgimento de uma fase mais mercantil, em que o samba passa a ter
um espao determinado, voltado ao espetculo, no qual nem todos participam
ativamente do processo.
H vrias determinantes na mudana do samba, como a determinao
econmica via indstria cultural, o mbito poltico afirmando a nacionalidade e
sufocando manifestaes regionais, por exemplo. No vamos desconsiderar estas
determinaes, porm o nosso eixo girar em torno da questo espacial.Sobre o samba consideraremos desde o ritmo, as agremiaes (cordes e
escolas) e o carnaval - j que quando se fala de samba indissocivel o carnaval e
as escolas de samba, apesar de, no samba rural, podermos fazer esta distino,
mas como vamos falar do samba urbano, a trade samba, carnaval e escola de
samba inevitvel.
O trabalho de campo que realizamos foi composto de entrevistas, presena
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em eventos e entidades (escolas de samba, organizaes no governamentais),
alm de consultas em jornais para levantamento de matrias publicadas, consulta
em acervos de museus e discos de vinil relevantes para a temtica por ns
pesquisada.
As entrevistas ocorreram de acordo com a disponibilidade dos
entrevistados. Entrevistamos, assim, algumas pessoas que julgamos importantes
para compreendermos melhor nosso objeto de pesquisa: o Sr. Hlio Romo de
Paula, o Hlio Baguna, Cidado do Samba Paulistano 2005 (01/06/2005 - 1:30 hora
de gravao); Carlos Alberto Caetano, Sr. Carlo, fundador, em 1956, do Grmio
Recreativo Cultural Escola de Samba Unidos do Peruche (08/06/2005 - 2 horas de
gravao); Sra. Maria Esther de Camargo Lara, quase centenria figura de Piraporade Bom Jesus-SP, a qual nos trouxe importantes informaes da origem do samba
paulistano (06/08/2005 - 1 hora de gravao); Sr. Eurpedes Rosrio, o Dinho,
nascido no carnaval de 1948, passista, compositor e bamba do samba paulistano
(08/08/2005 - 2 horas de gravao); Sr. Fernando Penteado pesquisador e
divulgador do samba paulistano, neto do fundador da Escola de Samba Vai-Vai
(10/08/2005 - 1 hora de gravao); Sra. Odenise de Camargo, a Denise, Cidad do
Samba Paulistano 2006 (12/08/2005 - 1 hora de gravao); Sr. Jos Maria Dias,intrprete e compositor do samba paulistano (13/09/2005 - 1 hora de gravao); Sr.
Dcio Ferreira participou de diversas escolas de samba e foi um dos grandes
organizadores do carnaval no bairro da Lapa em So Paulo durante os anos 1950
(05/10/2005 - 1 hora de gravao); Sr. Larcio Mathias Gurgel, o Brando da Zona
Norte, compositor com passagens por diversas escolas de samba paulistanas desde
os anos 1950 (08/06/2005 - 1 hora de gravao); a Sra. Maria Apparecida Urbano,
professora, conferencista, carnavalesca e importante escritora do samba paulistano(15/03/2006 - 2:30 horas de gravao); Professora Olga Rodrigues de Moraes von
Simson, importante pesquisadora sobre o samba e carnaval em So Paulo e diretora
do Centro de Memria da UNICAMP - SP (06/03/2007 - 1h30min de gravao); e,
Osvaldo Barro, o Osvaldinho da Cuca primeiro Cidado-Samba de So Paulo,
importante sambista e pesquisador do samba paulista (07/03/2007 - 2 horas de
gravao), alm de depoimentos colhidos no documentrio Samba Paulista,
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produzido pela USP, donde transcrevemos importantes depoimentos de antigos
sambistas com quem no conseguimos marcar entrevistas, bem como aqueles que
j faleceram.
Tambm freqentamos diversas escolas de samba em ensaios e atividades
para conhecermos pessoas e histrias, como Unidos do Peruche, Rosas de Ouro,
Mocidade Alegre, Camisa Verde e Branco, Nen da Vila Matilde, Morro da Casa
Verde, Unidos de Vila Maria e X-9 Paulistana durante 2005 e 2006. Participamos em
2005, 2006 e 2007 de desfiles carnavalescos pela Unidos do Peruche, inclusive
assumindo a Diretoria de Cultura da mesma, fomos tambm Festa de Pirapora de
Bom Jesus-SP em 06/08/2005 e 06/08/2006 para observamos e colhermos
informaes na cidade que considerada o bero do samba paulistano, comoveremos durante a pesquisa, alm de mais uma srie de atividades como O Samba
Rural Paulistano na Galeria Olido, promovido pela Secretaria de Cultura do
Municpio de So Paulo durante os meses de maio e junho de 2005, que alm de
apresentaes de sambas antigos, realizou encontros de pessoas que viveram a
fase do samba rural, coincidentemente no local onde se fazia esse tipo de samba h
mais de um sculo.
Consultamos os arquivos da UESP (Unio das Escolas de Samba de SoPaulo), em dezembro de 2005, a qual possui um importante arquivo da memria do
samba de So Paulo, bem como do MIS (Museu da Imagem e do Som), o qual nos
possibilitou acesso a uma srie de gravaes em vdeo sobre a memria do samba
paulistano com entrevistas de pessoas que fizeram essa histria em So Paulo,
alm de outras que j faleceram e que no poderamos ter outra forma de acesso
seno por meio de gravaes em vdeos antigos.
J as consultas em jornais foram obtidas nos arquivos do Correio Paulistano(anos 30 e 40), Jornal Echo Phonographico (So Paulo, 1904), Folha de So Paulo
e Estado de So Paulo.
O trabalho de campo foi dificultado pelas escassas fontes, entretanto no
objetivamos esgotar a questo dentro da proposta, mas sim buscarmos a transio
do samba rural ao samba urbano, e assim conseguirmos entrevistas dos principais
agentes desta transio.
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Na parte iconogrfica, obtivemos fotos de vrias fases do samba paulistano,
para visualizarmos melhor as descries e tambm nos possibilitar uma anlise do
espao, como no caso do Barraco de Pirapora do Bom Jesus. O mesmo ocorreu
com os desfiles da Avenida So Joo/Vale do Anhangaba, Tiradentes e
Sambdromo (Plo Cultural e Esportivo Grande Otelo).
Como sntese, na parte grfica, confeccionamos mapas para visualizarmos
os centros de irradiao do samba e o movimento espacial do samba no Estado de
So Paulo, e principalmente o movimento do samba na metrpole paulistana.
A justificativa de uma pesquisa envolvendo samba e urbanizao no
uma tarefa simples, foi necessria uma ampla compreenso terica e metodolgica
para que pudssemos construir as possibilidades de explicar a urbanizaopaulistana em fins do sculo XIX at o sculo XX e sua relao com o samba.
Ocorreu de nossa parte, pela proximidade com o tema, uma empatia, mas era
preciso muito mais que isso, ou seja, um conjunto terico, o qual levasse para o
urbano uma compreenso de como os sambistas criam suas identidades com o
espao em que ele se estabelece, trazendo peculiaridades diferentes daquelas em
que o mesmo objeto de pesquisa possa significar em outros espaos. A contribuio
como modelo explicativo para outros espaos e realidades no caso da cultura, podeser fornecido pela geografia cultural para analisarmos a relao entre espao e
cultura, no caso o samba e a metrpole.
A Geografia Cultural uma das abordagens da Geografia que analisa o
espao no somente do ponto de vista econmico, ou seja, no se verifica somente
a produo do espao nos termos marxistas, mas parte das manifestaes culturais
no espao, ou melhor, como o espao possibilita ou impossibilita as manifestaes
culturais.O tema principal do nosso trabalho o espao do samba, ou seja, onde o
samba criava seus territrios com suas manifestaes. O estudo da cultura em si
no caracteriza a geografia cultural, necessrio estudar as representaes, os
rituais. No nosso caso, apesar da pesquisa envolver cultura, no ficamos restritos s
ao determinante cultural, observamos tambm como o espao foi sendo modificado
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pelos fatores econmicos e, a partir dessa modificao, como a cultura foi sendo
alterada.
Portanto, apesar de estudarmos a cultura popular, a nossa abordagem no
seguir estritamente a corrente da Geografia Cultural, pois, no nosso entender, o
principal agente de transformao do espao o modo de produo econmico que
vai moldando o real de acordo com os seus interesses. Ademais, acreditamos que a
abordagem terico-metodolgica da Geografia supere a perspectiva mono-
metodolgica sem ser ecltica e no subdividida a ponto de classificarmos correntes
deterministas que no nosso caso, engessaria a pesquisa.
Assim, como o objeto de nossa pesquisa est na transio do samba rural
para o urbano, dividimos nosso trabalho em trs captulos denominados: SambaRural, que trata da importncia de Pirapora do Bom Jesus como vrtice do encontro
de negros provenientes de vrias localidades do interior paulista e tambm da
cidade de So Paulo, que elegeram a referida cidade para a realizao dos
batuques, tornando-a referncia obrigatria para a compreenso da chegada do
samba na Capital Paulista; So Paulo: Do Rural ao Urbano, que versa sobre o
espao da transio do mundo rural para o mundo urbano, dissecando o objeto de
nossa pesquisa, bem como, a metamorfose do samba e seus arranjos no novoespao; e Samba Urbano, que discorre sobre a apropriao pelos sambistas de
determinados espaos na cidade para a manifestao do samba, que culminaram
com grandes mudanas de sua estrutura inicial at os dia atuais.
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1. SAMBA RURAL
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O meu santo padroeiro
Fez sua morada s margens do Tiet
E a cidade comemorava ms de agosto em Pirapora to linda de se ver
Procisso vai rio acima
Nossa Senhora nos conduz
Na festana dos romeiros tem batuque de terreiro
Em louvor a Bom Jesus
Oi Pirapora oi que vem a
Oi Pirapora oi que vem a
Samba de Piracicaba, Tiet, Capivari
Paguei promessa conquistei amigos
Madrinha Eunice, Seu Zezinho e Seu Carlo
Geraldo Filme, Tuniquinho Batuqueiro
Seu Dionsio, Gerib e Frederico
L no Bexiga com a turma do Sardinha
Dona Iracema e o saudoso Henrico
E a ento na capoeira levantava
Quando o samba esquentava no antigo barraco
E agora chora viola
Ai que saudade que eu sinto de Pirapora
(PIRAPORA, Osvaldinho da Cuca e Aldo Bueno, 2002)
A msica que introduz este captulo uma sntese dos elementos do samba
rural paulista coletada por Osvaldinho da Cuca, paulistano do Bom Retiro.
A letra apresenta elementos presentes no mundo rural como a religiosidade
(romeiros, terreiros, santo padroeiro, procisso), traz ainda as cidades onde era feito
o samba rural (Piracicaba, Capivari, Tiet), lugares onde o caf era cultivado.Os sambistas expressos na msica foram fundamentais para fazer a ponte
do samba rural para o samba urbano. Seu Carlo, por exemplo conhecido no mundo
do samba como Carlo do Peruche, levou o samba rural para o bairro do Parque
Peruche, que mais tarde originou trs escolas de samba (Unidos do Peruche,
Imprio da Casa Verde e Morro da Casa Verde).
Outro sambista citado na msica, Geraldo Filme, tambm transitava entre o
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rural (Pirapora de Bom Jesus) e o urbano (Colorado do Brs, Vai-Vai, Unidos do
Peruche). Uma das duas mulheres mencionadas na msica (Madrinha Eunice) foi
responsvel pela mais antiga escola de samba em atividade da cidade de So
Paulo, a Lavaps, que existe at hoje no Cambuci.
J Henrico, alm de participar do cordo Vai-Vai (depois transformado em
Escola de Samba), foi o primeiro rei momo negro do carnaval paulistano e tambm o
primeiro compositor da Vai-Vai.
Osvaldinho da Cuca muito claro em sua fala, no que diz respeito forma
como v o samba citado no incio deste captulo:
Esse samba recente, at o pessoal da Zona Leste queria que euconcorresse, mas esse samba no para a avenida. Fui at a
escola e fiz uma reunio com os compositores, dei sugestes,
idias, mas esse eu no cantei porque esse samba bem
batuque, samba caipira. No quero mudar para samba enredo.
essa conscincia que est faltando para os jovens, a
importncia da nossa histria, da nossa cultura. (OSVALDINHO
apud URBANO, 2004, p.127)
Como disse Osvaldinho no seu comentrio sobre a msica Esse samba
no para a avenida, o espao urbano onde ocorre o desfile no comporta o ritmo
do samba rural, que um samba de roda, em que todos entoam um coro no refro.
o prprio Osvaldinho quem diz: no quero mudar para samba enredo.
No samba rural paulista, so muito comuns frases complementadas pelo
coro e posteriormente por um toque mais intenso do bumbo. Por exemplo, nessa
msica cantada por Dona Maria Ester e os Batuqueiros de Pirapora, h uma parte
que dona Maria canta: Eu venho vindo sinh, vamose embora, t indo visit meu
Bom Jesus de Pirapora, mas eu vim visit, ao que o coro responde Meu Bom
Jesus de Pirapora. (BRITTO, 1986, p. 44)
Esta msica uma das mais executadas ainda hoje, quando fomos festa
de Bom Jesus de Pirapora (2005/2006), cidade situada h cerca de 70 Km de So
Paulo, pude ouv-la vrias vezes sendo executada.
As adaptaes que o samba rural foi sofrendo na cidade, dando origem ao
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samba urbano, foram motivadas principalmente pela questo espacial, ou seja, as
diferenas entre o espao rural e o espao urbano, assim, foram fundamentais para
gerar um novo tipo de samba. Antes de caracterizar o espao onde o samba rural
era produzido e sua caracterstica como gnero musical, vamos tecer algumas
caractersticas sobre o samba em si.
Apesar de sua origem africana, o samba no possui uma nica faceta. Na
verdade, constitui-se de matizes, com tipos dos mais variados, que obtm certas
caractersticas que do ao termo samba um sem fim de tipos e maneiras de ser
representado. O certo que a definio de samba pelo prprio dicionrio da lngua
portuguesa1,d-nos a falsa idia de ser uma manifestao padronizada em todos os
espaos que percorre. claro que, na prtica, no h tamanho reducionismo, basta-nos observar
nas centenas de cidades brasileiras onde praticada a cultura do samba e
veremos logo de imediato as mais diferentes formas dessa manifestao cultural que
o faz como parte importante da cultura brasileira.
De utilizao muito abrangente, o termo samba originrio da palavra
semba em quimbundo (lngua de indgenas bantos de Angola) que designa
umbigo, ou seja, um gesto coreogrfico quase que onipresente na expressocorporal que acontecia entre os negros escravos aqui no Brasil, executado por meio
de umbigadas (vide Foto 1). Simbolizando primeiro a dana, para anos mais tarde
se transformar em composio musical, o samba foi tambm chamado de batuque,
dana de roda, lundu, chula, maxixe, batucada e partido alto, entre outros, muitos
deles convivendo simultaneamente (ANDRADE, 1965, p. 148-52), afinal, havia uma
miscelnea musical na poca (final do sculo XIX, incio do sculo XX), sobretudo na
poca dos carnavais, gerando assim uma influncia de diversos tipos musicais parasua formao.
Sabemos tambm que havia diferena entre as denominaes expostas por
Mrio de Andrade (1965, p.148-52). Precisamos ento buscar suas origens no caso
1 Samba. S. m. 1. Bras. Dana cantada, de origem africana, compasso binrio e acompanhamentoobrigatoriamente sincopado. 2. Bras. A msica que acompanha essa dana. In: Dicionrio Aurlio Bsico daLngua Portuguesa. So Paulo, J.E.M.M. Editora, 1988.
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de So Paulo e, no interior do estado, encontramos respostas para o surgimento do
samba paulistano.
Foto 1Autor desconhecidoUmbigada.Vila Santa Maria, So Paulo SPc. 1950 1960Museu do Folclore Rossini Tavares de Lima
Umbigada em So Paulo, reminiscncia do samba ruralna cidade de So Paulo em meados do sculo XX.Identificao com o espao rural na periferia de SoPaulo.
No estado de So Paulo, em meados do sculo XIX, a mo de obra escrava
era numerosa no interior do estado para servirem s lavouras de caf (vide Mapa 1).
Botucatu, Rio Claro, So Simo, Itapira, Itu, So Roque, Araoiaba da Serra,
Laranjal Paulista, Tiet, Campinas, Redeno da Serra, Jacare, Jundia, Caapava,
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Capivari e Piracicaba (BRITTO, 1986, p.49) so exemplos de municpios que j
produziam com escravos africanos o que podemos chamar de samba, conforme
depoimento do sambista Geraldo Filme:
O nosso samba vem das festas rurais, dadas ao negro aps as
colheitas, onde tinha batuque, umbigada, samba-leno [...] Nossa
origem sambista no vem tanto da religio (africana) e da cidade,
mas sim das festas rurais, os desfiles, por exemplo, surgiram das
apostas que os senhores faziam em cima de seu cantador, do
jogo de pernada, na rasteira, tudo como se fosse uma briga de
galo (FILME, fita n. 112.14-15-16-17)
Foto 2Rodolpho Copriva Jr.
Samba leno.Rio Claro SP13.05.1955Coleo particularSamba Leno em Rio Claro, caracterstico samba rural feito em espao deterreiros.
Ilustramos a citao imediatamente anterior de Geraldo Filme com a Foto 2,
de samba-leno em Rio Claro-SP, e Foto 3, de batuqueiros, ambas mostrando os
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aspectos rurais no ambiente de cho batido e a ltima ilustrando os instrumentos
confeccionados artesanalmente utilizando-se elementos caractersticos da rea
rural.
Foto 3
Rodolpho Copriva Jr.Modistas e batuqueiros.Rio Claro - SP13.05.1955Coleo particularPresena do tambu, precursor do bumbo, fundamental nas batucadas desde apoca dos escravos. Samba rural feito em terreiros.
Como j dissemos, tratava-se de um samba que continha como
caracterstica principal o bumbo, instrumento pouco usual nos demais sambas
que eram promovidos em outros lugares do pas. Originrio da Pennsula Ibrica, foi
um instrumento apropriado pelos negros paulistas e usado como veculo de
expresso musical, da, alm de ser conhecido como samba rural, esse samba
paulista tambm conhecido como samba de bumbo e samba caipira2
2Dados obtidos junto ao Espao Cultural Samba Paulista Vivo - Pirapora do Bom Jesus - SP. Disponvel em :. Acesso em : 03.08.2005
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Foto 4Mrio de AndradeReverncia ao bumbo.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Instituto de Estudos Brasileiros USPSmbolo mximo do samba rural paulista, o bumbo,tambm chamado de zabumba foi o principalinstrumento nas batucadas em Pirapora do Bom Jesus- SP.
Interessante notar acerca do bumbo que, apesar de ter sido apropriado
pelos negros paulistas, manteve fortes vnculos com a musicalidade marcial dos
brinquedos populares europeus e com as marchinhas que tanto marcaram os
primrdios do samba no Brasil. O bumbo um instrumento de forte marcao, que
conduz toda a rtmica da manifestao desenvolvida pelo batuque, sem contar com
a atribuio feita ainda pela fora religiosa que ele representava na poca (vide Foto
4). plenamente reconhecido que o samba , em sua maior influncia, originado do
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batuque (um misto de danas rituais de lazer e religiosas), vindo da vertente
africana angola-conguesa, acompanhado apenas por instrumentos de percusso,
sendo o mais relevante deles o tambu (vide Foto 3), uma espcie de bumbo feito de
tronco de rvores. (MORAES, 1995, p.94)
Outro instrumento do samba rural paulista a frigideira, apesar do mesmo
j ser usado no Rio de Janeiro. Osvaldinho da Cuca tentou trazer o instrumento
para a cidade de So Paulo:
Acho que sou o nico ainda que toca frigideira! A frigideira foi um
instrumento marcante no samba paulistano. Para preservar a
histria do instrumento, eu criei a ala de frigideiras na Vai-Vai, em
1976. (OSVALDINHO, Alma do Samba Paulista, 10/09/2006)
Originalmente no samba rural paulista, a frigideira era tocada com talheres,
j no samba paulistano era usada uma varinha de metal. Com a produo em escala
do reco-reco e do tamborim, a frigideira sai de cena para dar lugar aos instrumentos
fabricados pela indstria de instrumentos de percusso. Apesar da tentativa de
Osvaldinho de trazer esse instrumento do samba rural paulista para o samba
paulistano, ela no foi para frente em virtude do aparecimento de um instrumento
essencialmente urbano e carioca: o tamborim.
Comeou-se publicamente a generalizar a palavra (batucada) por
1930. Alguns a explicam como entre o samba e a marcha
carnavalesca. Em disco, (Deixa a nega pena, Disco Victor, 33524),
o samba Mangueira fala em batucada equivalendo-o pois ao
samba. Numa pea de Sinh (J.B. da Silva), Cais Dourado, vem
batucada numa enumerao de danas. E tambm a palavra
Sambador. O que dana samba Instrumento obrigatrio na
batucada (na medida em que obrigatria uma usana popular
urbana) o tamborim. na batucada, onde impera o tamborim.
(ANDRADE, 1989, p.52)
Vemos que na msica do carioca Sinh que aparece a palavra tamborim,
sendo o instrumento que impera na batucada. Mrio de Andrade ainda diz que o
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tamborim o instrumento obrigatrio na msica popular urbana. Como a frigideira
no propiciava uma acstica ideal para um lugar aberto (avenida) e sim para um
lugar fechado (o barraco) ou de pequenas propores (o terreiro), ela foi
substituda no samba urbano pelo tamborim.
Na modalidade inicial do samba rural paulista, a harmonia era feita
basicamente pelo modista, que cantava a msica para o coro responder,
posteriormente o batuque iniciava simultaneamente ao coro.
Esta do modista, como eram chamados os bons batuqueiros,
consistia em cantar as dcimas que relatavam um determinado
fato do universo do grupo. Os participantes ouviam em silncio.Em seguida o modista colocava o ponto, cantava uma quadra para
que todos gravassem a melodia e a letra que seriam motivo de
dana e canto. Feito isso, cantava os dois primeiros versos da
quadra aprendida, a que todos os demais batuqueiros respondiam
cantando os dois restantes da quadra memorizada coletivamente.
(ARAJO, 1973, p.81)
Neste caso acima citado, so cantados os dois versos da quadra pelo coro,
aquele canto que presenciei em Pirapora do Bom Jesus, cantado por Dona Maria
Ester e um grupo de pessoas da cidade. O coro cantava apenas um verso da
quadra. Apesar da pequena variao, a dinmica era sempre esta.
Esta estrutura de melodia muito parecida com os pontos de macumba,
que muitas vezes tambm so cantados, portanto a melodia do samba rural paulista
muito prxima da umbanda. No toa que o samba rural paulista tambm era
conhecido como samba de terreiro.
O canto inicial das macumbas o salvamento dos santos e
expulso de Exu. uma melopia montona, verdadeira litania
em que repete infindavelmente o coro;
Vamo sarav.
A que se segue uma fala mais ou menos melodizada: Oh ojosse,
Oh Xang, com todo cu da religiosidade negra e de quando em
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quando Sai, Exu expulsando o diabo. A palavra sarav uma
deformao de salvar. (ANDRADE, 1963, p.162)
O canto de Dona Ester e o batuque de Pirapora uma verso catlica paraum canto que nasceu da religio africana, pois o canto de Dona Maria Ester era
entoado pelos negros que pertenciam s irmandades catlicas.
Alm da oposio entre a religio catlica e a religio africana, existia uma
distino espacial entre o terreiro e barraco e a praa da Igreja Matriz.
1.1. O ESPAO DO SAMBA RURAL
Foto 5
Claude Lvi-StraussVista de Pirapora.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularPirapora na dcada de 30, imagem buclica, tpica de uma cidade do interior nasmargens do Rio Tiet, praa matriz e igreja como referncia.
O espao rural tambm tinha o seu ncleo, que era o centro da cidade onde
a configurao territorial ainda se mantm nas cidades do interior de pequeno porte,
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ou seja, a praa matriz, onde est localizada a igreja, o coreto e o comrcio
ladeando a praa (vide Fotos 5 e 6).
Foto 6Mrcio Michalczuk MarcelinoVista de Pirapora
Pirapora do Bom Jesus - SPAgosto de 2005Coleo ParticularPirapora no incio do sculo XXI, imagem quase buclica, o lendrio Tiet damsica de Geraldo Filme mostra-se poludo. Progresso para a cidade e para osamba.
A praa sempre foi o palco para as manifestaes sociais-coletivas que, na
maioria das vezes, era mediada pela Igreja. Como muitos negros pertenciam s
irmandades catlicas (Rosrio, So Benedito) suas manifestaes sempre
continham msicas que eram sambas de exaltao ao santo padroeiro.
O mtodo seguido era quase sempre o mesmo: para constituir um
ncleo urbano, o proprietrio fazia doao ou legado de uma
poro do terreno Igreja catlica na pessoa do bispo mais
prximo ou de santo do calendrio brasileiro, que se tornava por
este fato proprietrio desta doao piedosa chamada patrimnio.
(DEFFONTAINES, 1952, p.122)
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Como vemos na citao anterior, a Igreja detinha alm da centralidade da
vida social, patrimnio via doaes e mantinha-se no centro do ncleo urbano das
pequenas cidades do Brasil.
Com a cidade de So Paulo no foi diferente, no entanto, quando se torna
metrpole, nem sempre a igreja consegue manter-se como ncleo central dos
bairros, pois aqui, a realidade outra, impondo a multicentralidade.
Para ilustrar melhor o espao rural de Pirapora do Bom Jesus e sua relao
com os sambistas da Capital, vamos observar a msica Samba de Pirapora de
Geraldo Filme, que trabalha bem essa questo.
Eu era meninoMame disse vamo embora
Voc vai ser batizado
No samba de Pirapora
Mame fez uma promessa
Pra me vestir de anjo
Me vestiu de azul celeste
Na cabea um arcanjo
Ouviu-se a voz do festeiro
No meio da multido
Menino negro no sai
Aqui nessa procisso!
Mame mulher decidida
Ao santo pediu perdo
Jogou minha asa fora
E me levou pro barraco
L no barraco tudo era alegria
Negro batia na zabumba e o boi gemiaIniciando o neguinho
No batuque do terreiro
Samba de Piracicaba, Tiet e Campineiro
Os bambas da Paulicia
No consigo esquecer
Frederico na zabumba
Fazia a terra tremer
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Cresci na roda de bamba
No meio da alegria
Eunice puxava o ponto
Dona Olmpia respondia
Sinh caa na roda gastando a sua sandlia
E a poeira levantava
Como o vento das setes saias!
(SAMBA DE PRAPORA, Geraldo Filme, 1972)
Na msica anterior, observamos a proximidade dos batuques de Pirapora
com a umbanda, que pode ser notada quando o autor diz Eunice puxava o ponto.
A caracterstica rural o bumbo quando o autor menciona Negro batia nazabumba, porm o mais significativo em termos espaciais a oposio entre o
barraco e a procisso. A negativa ao menino negro, em participar da procisso;
leva-o para outro espao: o terreiro, o barraco. L, junto dos seus, o samba comia
solto e a alegria predominava.
Logramos localizar uma foto onde se v uma criana se preparar para a
procisso, vestida de anjo, demonstrando tristeza em sua expresso, que nos
remete ao mencionado na letra de Samba de Pirapora de Geraldo Filme (vide Foto
7).
Outras cidades do interior de So Paulo tambm so citadas (Campinas,
Piracicaba e Tiet), porm em Pirapora do Bom Jesus que podemos marcar o
ponto de partida para o samba paulistano. O aglomerado, desde o incio do sculo
XVIII, serviu como importante ponto religioso para as romarias que se dirigiam em
busca dos milagres de Bom Jesus, onde, desde 1724, uma imagem do mesmo havia
sido encontrada sobre as pedras do Rio Tiet. Na tentativa de levarem a imagem
para Parnaba, que era a vila mais prxima, sem explicao alguma, a imagem
voltava para o local de origem. Diante desse fato, vrios devotos construram uma
capela no local, originando-se a a vila que se denominou Bom Jesus de Pirapora. A
notcia se espalhou por toda a provncia criando lendas e milagres atribudos
imagem, gerando assim um enorme fluxo de pessoas devotas do santo, alm de
peregrinos. Ficaram estabelecidos ento os dias 3, 4, 5 e 6 de agosto como a
grande festa e culto a Bom Jesus de Pirapora, em que os crentes banhavam-se nas
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guas, pagavam suas promessas e agradeciam suas graas, principalmente nos
ltimos dias dos festejos, em virtude da procisso realizada nesse dia. (CUNHA,
1937, vol. XLI, p.21)
Foto 7
Claude Lvi-StraussAnjo de promessa se prepara para procisso.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularEra comum os pais das crianas vestirem as mesmas de anjos para pagarpromessas na procisso. Nesta foto, destaque para as asas de anjo presentesna msica anterior de Geraldo Filme.
No trecho citado anteriormente, vemos que o autor considera o nascimento
do samba em Pirapora do Bom Jesus, todavia ele enfatiza a importncia da religio
catlica, e no cita os sambas de terreiro ou de barraco, j que, nesse perodo
(sculo XVIII), ainda no havia as plantaes de caf.
Entendemos, neste momento, que o samba no surge sem os negros, pois
os batuques j eram realizados em outros diferentes pontos do Brasil. A questo
religiosa foi fundamental para os encontros dos negros que se dirigiam para l em
virtude da festa de Bom Jesus de Pirapora, e ali compartilhavam suas experincias
musicais, promovendo a gnese do samba paulista.
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Quando os negros chegaram j existia uma estrutura da Igreja Catlica,
inclusive com festejos do Bom Jesus de Pirapora, que eram muito sedutores, fato
que ajudou a incorporao de alguns escravos e de homens livres para as
irmandades catlicas.
Cabe ressaltar aqui, que as irmandades catlicas eram formadas por leigos
e no por pessoas formadas para exercer a vida eclesistica, porm a Igreja
Catlica administrava indiretamente essas irmandades.
Outro autor, Moraes, descreve bem a importncia de Bom Jesus de
Pirapora na constituio e reconhecimento do samba rural paulista:
Com o crescimento da populao flutuante nos dias de festa,quando os hotis, penses e casas de famlia ficavam lotados, a
alternativa para vrias pessoas era acampar s margens do rio
(geralmente os caboclos que utilizavam essa forma de
alojamento). Afastados da vila tambm existia dois amplos
edifcios abandonados que haviam servido de moradia de
seminaristas e religiosos, e neles se alojavam exclusivamente os
negros vindos de todas as regies e cidades da provncia. nesse
local que a parte profana dos festejos vai se originar e se
desenvolver, pois, aps os cultos religiosos, negros batucavam e
danavam, desafiando-se a noite inteira. Essa dimenso da frao
profana da festa, e da influncia dos negros na sua realizao,
reiterada no estudo de Mrio Wagner V. da Cunha, que identifica e
estabelece tipos diferenciados de protagonistas: havia o devoto
cumpridor de seu dever religioso; os romeiros, constitudos por
brancos, que pretendiam cumprir o dever religioso, mas tambm
acalentavam a idia de participao nos festejos profanos; e,
finalmente, os piraporeanos, constitudos por negros e mulatosque se dirigiam para Pirapora, exclusivamente em funo da festa
profana, ou seja, do samba. [...] Nessas comemoraes
participavam todos os segmentos da populao, sem excluses;
por isso, seguiam para Pirapora tanto os negros e caboclos
pobres como a parcela mais privilegiada. (MORAES, 1995, p.90-1)
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Foto 8Claude Lvi-StraussAcampamento de Romeiros.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularAcampamento dos romeiros, nem todos conseguiam ficar nos barraces. Note-sea presena do elemento branco na festa.
Na Foto 8, podemos observar o acampamento de romeiros que iam
procisso em Pirapora do Bom Jesus, podendo notar a presena de caboclos. E, na
Foto 9, observamos o famoso barraco, onde se alojavam os negros vindos de
vrias regies.
O barraco que citamos anteriormente (vide Foto 9), surgiu desse
alojamento que era, na verdade uma moradia abandonada pelos seminaristas. Nele,
acontecia a festa profana, paralela ao festejo religioso.
Na msica Samba de Pirapora, de Geraldo Filme, h o relato de sua me
indo fazer promessa para o santo (vide Foto 7), entretanto, foi negada a
permanncia do menino na procisso, a ele se encaminha para o barraco.
O autor separa as duas festas em profana e religiosa, contudo na nossa
viso as duas festas eram religiosas, j que o samba rural contm muitos elementos
da umbanda.
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Foto 9Autor desconhecidoBarraco dos romeiros.Pirapora do Bom Jesus SPS/ dataColeo particularBarraco utilizado pelos negros em Pirapora do Bom Jesus. Nesse espao, osmesmos permaneciam durante os festejos e tinham contato com os demaisgrupos provenientes de outras regies do estado e que promoviam batuques,oportunizando a troca de experincias musicais.
A separao espacial (praa/ barraco) marca mais uma diferena; a festa
oficial, comandada pela Igreja Catlica, e a festa espontnea dos negros avulsos
sem irmandades.
No caso da praa, o espao era ocupado pelo povo, todavia a mediao do
uso do espao era feita pela Igreja Catlica, j no barraco existia uma apropriao
do espao, livre das prescries da Igreja.A abolio da escravido e a economia cafeeira proporcionavam o impulso
para que So Paulo recebesse muitos negros oriundos do interior paulista na
passagem do sculo XIX para o XX e trazem consigo suas manifestaes
inicialmente associadas aos cultos de devoo a So Benedito e a outros
padroeiros. Os negros elegeram como ponto de encontro a cidade de Pirapora do
Bom Jesus onde verdadeiros batalhes de diferentes lugares, alm dos que j
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moravam na capital, disputavam e testavam suas habilidades no improviso dos
batuques que incorporavam novos instrumentos musicais como cucas, caixas,
chocalhos e pandeiros, porm sem deixar de lado o bumbo que, alis, ganhava
maior importncia por definitivamente marcar a musicalidade que antes acontecia
at de forma solitria. Principalmente a partir do final do sculo XIX, os negros vo
at Pirapora pelos desafios de batuque que l ocorriam (MORAES, 1995, p.90-8).
Eles tocava aquele surdo [...] Aquela caixa bem grande e cada um
tirava um verso do samba, da msica [...] E a pessoa tinha que na
hora, da sua cabea, voc responde aquele verso [...] Seno voc
ficava amarrado ali na roda do samba at voc responder. (DONA
LOLA, Samba Paulista, 2007, parte I, 3914)
Notamos que Pirapora do Bom Jesus se tornou uma centralidade em termos
de samba, tanto para os moradores do interior que para l se dirigiam como para os
negros da cidade de So Paulo.
Vemos tambm que, mesmo com a introduo de outros instrumentos no
samba (pandeiros e chocalhos), o bumbo ainda reinava absoluto, no toa que o
samba rural paulista at hoje conhecido como samba de bumbo.O que acontecia nos barraces de Pirapora era uma espcie de
competio, s que ao invs dos quesitos atuais como alegorias e adereos, o que
contava era a capacidade dos sambistas na improvisao e a habilidade para tocar
o bumbo, como explica Dona Lola.
Ento, restritos aos barraces, reuniam-se de acordo com os lugares de
origem e aps os cultos religiosos, durante a noite, os debates se estabeleciam.
Moraes (1995, p.92) afirma: Nesse momento, alguns blocos se destacavam pelacompetncia musical e coreogrfica, sublimando os desafios entre eles.
Verificamos ainda que, alm da parte musical, tambm, existia a coreografia
com os passos dos sambistas marcando as batidas de bumbo. Esta coreografia era
um pano de fundo para os partideiros que declamavam os desafios. Tudo isso
ocorria em uma fuso entre o sagrado e o profano - apesar do autor separar o
samba como algo depois do religioso - entretanto, a viso que nos fica que o
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samba detinha muitos elementos da religiosidade afro-brasileira. Moraes, quando se
refere dimenso religiosa, usa como indicador o catolicismo, esquecendo-se que
os negros professavam outras religies (aruanda, quimbanda, iketo). A Foto 10
ilustra muito bem a relao dos instrumentos de percusso com a religiosidade dos
negros.
Foto 10Autor desconhecidoTambu e candongueiro. Jongo.Pindamonhangaba SP
c. 1950 - 1960Museu do Folclore Rossini Tavares de LimaAspecto religioso relacionado aos batuques, note asexpresses dos jongueiros, como em transe tocandoseus instrumentos. O jongo antecessor ao samba,antigos sambistas falam do jongo como grandeinfluncia para a formao do samba rural paulista, foiuma modalidade de batuque muito praticado do Valedo Paraba em So Paulo no final do sculo XVIII esculo XIX.
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Dentre aqueles grupos de pessoas que iam festa de Pirapora, alguns se
tornaram famosos, como o de Campinas, comandado por Joo Diogo, o Pai Joo,
um negro com uma perna de pau e tratado como o general do samba, um outro de
Itu, chefiado por Joo Mundo, alm dos blocos de So Paulo dirigidos por Z
Soldado, sambista do Jabaquara e Dionsio Barbosa, sambista da Barra Funda.
(CUNHA, 1937, vol. XLI, p.21)
Vemos ento que comeam a surgir lderes regionais e, dentre eles, h
Dionsio Barbosa, particularmente interessante para nosso trabalho, criador do
Cordo da Barra Funda de 1914 que, posteriormente, dar origem Escola de
Samba Camisa Verde e Branco no mesmo bairro.
Observamos tambm que, alm de irradiar o samba para a cidade de SoPaulo, Pirapora do Bom Jesus espraiava o samba para outras cidades do interior
paulista, como Itu e Campinas.
Alm de exmios com o bumbo, comandando as entradas e o ritmo do
batuque, essas pessoas se tornavam lderes por terem a responsabilidade de
improvisar os versos iniciais, a deixa. Segundo Moraes:
A deixa dada pelo chefe era fundamental para influir no bomandamento do samba e na maneira de dan-lo, j que todos os
danarinos o rodeavam esperando o momento inicial. O debate e
desafios entre barraces e cidades ocorriam justamente no
instante de improvisar a deixa, logo seguida pela percusso e
batalhes de danarinos. (MORAES, 1995, p.92)
E Moraes completa demonstrando que havia uma separao de gneros, ou
seja, as mulheres apenas danavam, evocando a sensualidade, como fazem aspassistas atuais e os homens cuidavam da percusso, algo superado nos dias
atuais, quando as escolas de samba j contam com vrias integrantes femininas na
bateria.
Os instrumentistas eram todos homens e na parte coreogrfica
encontravam-se homens e mulheres quando se concretizava a
umbigada, movimento prprio do sambista paulista, cheio de
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sensualidade e malcia. Com o tempo os setores mais
conservadores de So Paulo passaram a perseguir esse tipo de
dana, pois o achavam lascivo e libertino. (MORAES, 1995, p.92)
Desse modo, podemos concluir pelo depoimento de Dionsio Barbosa que
os agentes sociais presentes na festa tinham seu vis religioso e profano, ao mesmo
tempo em que esclarece porque o samba rural paulista tambm conhecido como o
Samba de Bumbo ou Samba de Pirapora:
Os negros iam por devoo ao Santo e por causa do samba nos
barraces [...] l surgiu o Bumbo Grande, feito com barrica de
banha ou azeitona, e couro de cabrito (BARBOSA, fita n.32,
Acervo MIS-SP)
Mario de Andrade (1965, p.147) achou estranho e curioso, seno
humorstico, ter em Pirapora um grupo de samba paulistano, no havia percebido
que os negros para l se dirigiam para um interesse alm da questo religiosa, era a
questo da busca de suas razes culturais (vide Fotos 11 e 12).
Geraldo Filme, sambista da segunda metade do sculo XX, conta que suame organizava caravanas para Pirapora em jardineiras, burros ou trens, e que, na
cidade, durante os festejos, havia quitutes, o samba-leno, desafios e tudo que
remetesse tradio do negro, chegando a afirmar:
L o negro relembrava suas razes, na cidade ele no tinha mais
condies. (FILME, fita n. 112.14-15-16 e 17, acervo MIS-SP)
Segundo Moraes, citando o sambista Geraldo Filme:
Geraldo Filme reconhece, portanto, a identificao das razes
negras brasileiras com as festas populares catlicas e a
deteriorao dessa relao nos centros urbanos, que agravava a
situao dos negros, marginalizando-os ainda mais de qualquer
participao ou influncia no processo de transformao e
crescimento da cidade. (MORAES 1995, p.93)
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Foto 11Autor desconhecidoGrupo Barra Funda na festa de Pirapora.Pirapora do Bom Jesus - SPc. 1915Centro de Memria da UnicampDionsio Barbosa, o fundador do Grupo Barra Fundaera freqentador das festas de Pirapora do Bom Jesusmesmo depois da fundao do seu grupo (1914),continuou a participar da festa com o Grupo Barra
Funda buscando suas razes.
Geraldo Filme percebe que, no espao urbano, a identidade do negro era
muito mais fcil de se esfumaar e viu, em uma reunio no interior de So Paulo,
como o contato com a terra, a lavoura, enfim o espao outrora da escravido, estava
mais prximo do que no centro urbano que retirava as referncias do perodo
escravista e tambm as referncias culturais do negro paulista, da a explicativa da
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importncia de Pirapora do Bom Jesus para a compreenso do samba urbano na
cidade de So Paulo.
Foto 12Claude Lvi-StraussSamba de bumbo do Bairro da Liberdade SP na Festa de Pirapora.
Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Coleo particularSambistas de So Paulo buscam suas razes em Pirapora do Bom Jesus - SP.
Geraldo Filme afirma essa busca de identidade dos negros e ainda
classifica o samba de So Paulo:
O nosso samba no tem nada a ver com o samba do Rio, to
diferente em tudo, os tipo de manifestao da gente, noandamento, o nosso vem mesmo daqueles batuques, daquelas.
festas que eram dadas aos escravos quando tinham boas
colheitas de caf. Ento aquelas festas pros escravos nas quais
eles se manifestavam com aquelas danas, aqueles [...] era
batuque, era aquele [...] umbigada. (FILME, Samba Paulista,
2007, parte I, 1250)
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As palavras de Geraldo Filme talvez expliquem a contradio dos negros
utilizarem uma festa catlica para poder afirmar e reafirmar a sua cultura, pois o
espao rural era uma referncia para os negros, j que a reunio dos mesmos era
mais fcil em virtude da festa realizada em Pirapora do Bom Jesus. Na cidade de
So Paulo, o distanciamento entre os negros era mais comum em virtude do
tamanho da aglomerao.
Moraes segue, agora discutindo sobre o esfacelamento da Festa de
Pirapora:
A decadncia da festa manifestou-se por volta de 1930, segundo
Mrio W.V. da Cunha, Mrio de Andrade e alguns sambistas, eteria ocorrido por dois motivos: a reao da igreja catlica contra a
supremacia da parte profana em detrimento da religiosa, havendo,
por isso, proibio do samba nos barraces em 1937; e a
represso da polcia contra o festejo profano. Como os dois
momentos estavam umbilicalmente vinculados, a decadncia da
parte profana leva ao empobrecimento de toda a festa em
comemorao ao Bom Jesus de Pirapora. Com o tempo, portanto
a festa deixa de ser referencial para os sambistas paulistanos,
permanecendo apenas as comemoraes estritamente religiosas.
(MORAES, 1995, p.95)
Fato este muito claro em nossa presena na referida festa em 2005 e em
2006, em que ainda h uma memria no Espao Samba Paulista Vivo Honorato
Miss, localizado no centro da cidade de Pirapora do Bom Jesus (vide Foto 13),
mas que existe apenas em nvel do concebido, segundo nossa anlise baseada em
Lfbvre (SEABRA, 1996, p.7-13), proposito da produo do espao, j que umconhecimento que ganha intencionalidade, ou seja, quando a produo do espao
concebida para tal, e quando o saber a define como prtica e teoria, pois, a festa
atual divulgadora da nova msica sertaneja, no tendo relao com o samba,
mas que h tambm um movimento por parte da Prefeitura de Pirapora do Bom
Jesus para resgatar essa origem das festas antes da proibio por parte da igreja,
que consiste em realizar festejos e atrair antigos sambistas com seus sambas para
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divulgar assim aos mais jovens a histria da prpria cidade, atitude louvvel na
manuteno da histria da prpria cidade como do samba paulista.
Foto 13
Mrcio Michalczuk MarcelinoFesta de Pirapora do Bom Jesus - SPEspao Cultural Samba Paulista VivoAgosto de 2006Coleo ParticularSamba de Bumbo no sculo XX, antigas escolas de samba paulistanasreconhecem e prestigiam a Festa de Pirapora do Bom Jesus em funo dasorigens do samba paulista. Samba Rural e Urbano em momento de reflexo paraos sambistas.
Na anlise supracitada de Moraes (1995), ele afirma que o samba rural
pode ser definido alm das coreografias caractersticas. A grosso modo, ele sustentaque a consulta coletiva de compor uma melodia e um texto, lanados pelo deixa
(improviso) do chefe do samba so caractersticas do samba rural.
necessrio de nossa parte, transcrever um samba que, feito por Geraldo
Filme e B. Lobo, em 1969, foi samba enredo da Unidos do Peruche e, de maneira
muito simples, fala das razes rurais do samba paulistano sintetizando as idias
tratadas nesse captulo denominado Samba Rural:
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s margens do lendrio Tiet
Uma nova cidade surgiu
De toda parte vinha romaria
Festejar o grande dia
E cantar em seu louvor
Trazemos nessa Avenida Colorida
Festa do povo e costumes tradicionais
Dar ao povo o que do povo
O que fazemos nesse carnaval
Pirapora h
Pirapora hBate o bumbo negro
Quero ver o boi gemer
L no jardim era festa de branco
A banda tocava um dobrado
As negras ditavam preges
E as moas casadoiras
Procuravam namorados
Nos barraces se sambava
A noite inteira
Batia zabumba
Jogava rasteira
,,
Cantando alegre a lua
De um trovador
Tem branco no samba
Tem sim senhor
Ele batuqueiro saninha
Ou cantador
(TRADIO E FESTA DE PIRAPORA, Geraldo Filme e B. Lobo,
1969)
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Nesta msica, percebemos alguns elementos presentes da ruralidade, como
a religiosidade (romaria), dois instrumentos referidos na letra (bumbo e zabumba),
que so exclusivos do samba rural, alm do jogo de rasteira (tiririca ou capoeira).
Tambm diz questo relacionada segregao que os sambistas de Pirapora
sofriam: L no jardim era festa de branco, explica a ntida separao entre os
negros e os brancos, alm do embate sagrado e profano; contudo na letra tambm
claro que mesmo havendo segregao, esta no era uma questo de carter
relacionada cor da pele das pessoas, mas sim s suas prticas, pois aponta que
Tem branco no samba, tem sim senhor, denotando assim tambm a presena de
romeiros brancos na festa (Foto 8), alm da questo que vir mais adiante, com a
chegada do imigrante na cidade de So Paulo e o samba na fase urbana.Outra questo interessante, quando o autor da msica se refere a quero
ver o boi gemer, pois o couro que era preso ao bumbo para dele se extrair o som
era de boi, como nos dias atuais, pois mesmo no existindo mais o bumbo, o couro
de boi ainda usado para grandes instrumentos, como os surdos.
Vimos portanto, que o grande irradiador do samba para a cidade de So
Paulo foi o samba feito em Pirapora do Bom Jesus, o grande centro do samba
paulista. No que fosse ali sua gnese, mas sim a reunio e a coalizo de todas ascomunidades que promoviam o samba pelo interior paulista e principalmente
buscando resgatar a identidade cultural do negro e do escravo.
Este captulo nos d subsdios para analisarmos como se processou a
transformao desse samba rural para o samba urbano, verificando perdas e
metamorfoses. Nas Fotos 14 e 15, observamos a cidade de Pirapora do Bom Jesus
em duas pocas distintas (1937 e 2005) durante a festa que ocorre em todos os
meses de agosto, a primeira, intitulada pelo autor como Samba de Bumbo. Entre oProfano e o Sagrado, e a segunda, intitulada por outro autor como Memria do
Samba de Bumbo. Entre o Consumo e o Sagrado, ilustrando como o modo de
produo econmico, ou seja, como o capitalismo influencia a prpria produo da
festa, revelando em segundo plano os interesses da religiosidade.
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Foto 14Mrio de AndradeSamba de bumbo. Entre o profano e o sagrado.Pirapora do Bom Jesus SPAgosto de 1937Instituto de Estudos Brasileiros USPNesta foto, observamos o grande nmero de negros que parecemassistir a alguma apresentao. Interesse do samba em detrimento religio.
Construmos, no Mapa 1, o percurso do samba rural rumo cidade de So
Paulo. Tivemos grandes dificuldades para podermos constru-lo, pois no obtivemos
registros que pudessem dar as coordenadas das localidades de forma precisa.
Consultamos arquivos da Matriz de Pirapora do Bom Jesus - SP na inteno de
chegar a registros que pudessem levar at as pessoas das localidades que
freqentavam a festa de Pirapora, porm as pesquisas foram infrutferas.
Resolvemos ento utilizar, como fontes, livros, teses e dissertaes,
relativos ao tema, bem como as entrevistas de antigos freqentadores da referida
festa com os quais pudemos dialogar.Por conta das referncias contidas em Britto (1986, p.49), chamamos de
zona batuqueira no s as localidades citadas por ela, mas tambm toda
localidade que tivemos registro da presena de manifestaes que caminharam para
a constituio do samba rural, como o jongo, por exemplo.
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Foto 15Mrcio Michalczuk MarcelinoMemria do Samba de Bumbo. Entre o consumo e osagrado.Pirapora do Bom Jesus - SPAgosto de 2005Coleo ParticularNesta foto observamos diferentes tipos tnicosandandopela feira montada para a ocasio da festa. Interesseconsumista em detrimento religio
Somos conhecedores que h probabilidade de pessoas vindas de outras
regies fora do estado de So Paulo, como norte do Paran, sul do Mato Grosso do
Sul e Gois, para participarem dos festejos de Pirapora, portanto como zonas
batuqueiras, mas no obtivemos referncias para confirmar tal afirmao,
resolvendo no inclulas e deixar apenas o registro para o interesse de possveis
pesquisadores.
Tambm incluimos no mapa a cidade de Santos, pois no nosso entender
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uma importante cidade para compreendermos o percurso do samba rural ao samba
urbano, visto que obtivemos registros da grande entrada do elemento negro
(escravo) pelo porto desta cidade - principalmente no sculo XIX - portanto,
fundamental para a compreenso dos batuques e demais manifestaes que, como
j dissemos, levaram ao samba rural paulista, sendo certo que os negros so os
principais responsveis por sua gnese.
Notamos tambm uma grande concentrao de negros escravos no Vale do
Paraba (primeiras fazendas de caf em So Paulo), concetrao tal que nos levou a
crer que tenha ocorrido, em um primeiro momento, os batuques e, logo aps,
seguindo este mesmo raciocnio, no centro-oeste do estado de So Paulo, onde as
fazendas de caf se espalharam durante o sculo XIX.Pirapora do Bom Jesus foi eleita a cidade do encontro de todas essas
pessoas que produziam batuques nas mais diversas formas e foi l que as trocas de
experincias se deram em razo da festa religiosa por l realizada. Alguns
moradores, principalmente negros, da cidade de So Paulo tambm freqentavam
Pirapora nos dias de festa, porm se dirigiam para l em busca de suas razes, pois
os mesmos tambm eram provenientes do interior antes de chegarem na cidade de
So Paulo (BRITTO, 1986, p.37).Somente aps o incio do sculo XX que sambistas nascidos em So
Paulo, portanto no urbano, iam at Pirapora, no s para voltar s suas razes, que
era o principal para eles, mas tambm para mostrar as novas possibilidades
musicais; claro que de modo tmido, pois Pirapora do Bom Jesus - SP a cidade do
Samba de Bumbo, do Samba Rural, o que nos faz concluir que So Paulo foi um
ponto de reproduo do samba rural, porm com novas caractersticas influenciadas
pelas novas possibilidades no urbano, mesclando sempre as origens rurais at ofinal da dcade de 1960 e incio da de 1970, como veremos no captulo seguinte.
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MAPA 1
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2. SO PAULO: DO RURAL AO URBANO
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Tebas negro escravo
Profisso alvenaria
Construiu a velha S
Em troca pela carta de alforria
Trinta mil ducados
Que lhe deu Padre Justino
Tornou seu sonho realidade
Da surgiu a velha S
Que hoje o marco zero da cidade
Exalta no cantar
Da minha gente a sua lenda
O seu passado e seu presente
Praa que nasceu de um idealE dos escravos e praa do povo
Velho relgio encontro dos namorados
Me lembro ainda do bondinho de tosto
Engraxate batendo na lata de graxa
E camel fazendo prego
O tira-teima do sambista do passado
Bexiga, Barra Funda e Lavaps
O jogo de tiririca era formado
O ruim caa o bom ficava de p
No meu So Paulo olel
Era moda
Vamos na S que hoje tem
Samba de Roda
(TEBAS, O ESCRAVO3, Geraldo Filme, 1973)
Neste samba, vemos presentes elementos do samba rural, como o tira-
teima do sambista do passado, o samba de roda. Entretanto, j comeamos a notar
a presena de componentes urbanos, o jogo da tiririca, os engraxates e bairros da
cidade de So Paulo (Bexiga, Barra Funda e Lavaps).
A tiririca era uma espcie da capoeira paulista, tambm conhecida como
3FREITAS (1978, p.59-60) descreve o que era ser Tebas, sinnimo de empreendedor, hbil, inteligente, capazde tudo fazer com acerto e perfeio, expresso essencialmente paulistana, em que se confirma a existncia donegro Tebas e todas as obras que realizou na cidade de So Paulo, inclusive com registros arqueolgicosconstando nos anais do Instituto Histrico de So Paulo de 1919.
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pernada, o seu jogar consistia em derrubar o planta, que era o tiririqueiro que ficava
no centro da roda, ele s podia movimentar as pernas para se defender sem tir-las
do cho, fazendo um movimento parecido com o do alicate.
Este termo tiririca do tupi guarani e significa mato que espalha, similar
ao planta que quando caia no cho se espalhava todo, o valente. Ento vemos um
gnero de dana urbano cujo nome tem uma origem cabocla que tiririca dos ndios
paulistas.
O valente era aquele que ia pra linha de frente e ficava no centro
da roda, apesar de ser carioca eu participei de muitas rodas de
tiririca na Praa da S. (BARO DO PANDEIRO, entrevista em
09/12/2004)
As disputas de tiririca aconteciam na Praa da S, e reuniam sambistas de
toda a cidade, at do subrbio como diz Alberto Alves da Silva (Seu Nen da Vila
Matilde):
Os jogos de pernada e tiririca [...] olha esses jogos, essa tiririca,
pernada existia na Barra Funda, existia na Praa da S, existia naLapa, existia em tudo quanto era canto que tinha samba, tinha
essa negrada, esses filhos de africanos que eram fogo! Tinha,
ento, em tudo quanto era lugar. (SEU NEN apud CISCATI,
2000, p.159)
Um dos instrumentos utilizados pelos sambistas desta poca era a lata de
graxa, usada pelos engraxates da Praa da S e da Praa Joo Mendes. Jarro, um
desses ritmistas, relatou-nos a atividade.
Ficvamos na Praa da S, esperando os fregueses, e quando
estvamos parados aproveitemo pra fazer um sambinha, com a
latinha e batuque na caixa, era tempo bom lembro do Germano,
Tuniquinho, Gildo Bahia que at hoje toca na Praa da Repblica.
(JARRO, entrevista em 17/01/2000)
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Tuniquinho Batuqueiro, que foi citado por Jarro, fala dos engraxates e da
razo da concentrao dos mesmos na Praa da S:
A eu v a Praa da S [...] Mas pra mim cheg ali sozinho ficava
ruim. A eu encontre o Sirval [...] A que entra o Sirval [...] n?
[...] O Sirval entra nessa parada [...]
E ns pegava um parelepipo, botava ali, o fregus vinha, botava o
p [...] no era nem engrax, era tir barro, porque os cara vinha
l do Lavap, do Jabaquara, tudo com o p cheio de barro. Ento,
botava o p ali em cima daquele negcio l, um pauzinho l, tirava
aquele barro, cobrava ali um tosto [...] duzento Ris [...] no me
lembro nem quanto [...] E da cansamo de tir barro [...] Descia
ali pra Praa da S onde tinha um pessoalzinho melhorzinho [...]
sapato melhorzinho [...] (TUNIQUINHO BATUQUEIRO, Samba
Paulista, 2007, parte III, 0618)
E Silval Rosa, citado por Tuniquinho Batuqueiro, completa sobre a relao
do samba com engraxates, com jogadores de tiririca, com malandros e com a regio
central de So Paulo:
Eu engraxava na Joo Mendes, depois fui pra Crvis e meu
companheiro era o Tunico. Onde o Tunico tava eu tava, onde eu
tava o Tunico tava [...] Tuniquinho.
Muitos era engraxate tambm, mas tambm no era s engraxate.
quem gostava de samba, como Tuniquinho, o Pato Ngua [...]
S, quando o Pato Ngua tava na roda, ningum entrava [...] N?
Porque ele era pobrema [...] Isso a de pernada, ele sabia de tudo.
Era tudo cara da antiga memo. Tudo cara que tinha [...] aquele
tempo, malandro era malandro mesmo. (SILVAL ROSA, Samba
Paulista, 2007, parte II, 1206; parte III, 0610 e 0824)
O ambiente formado por malandros, sambistas, jogadores de tiririca e
engraxates, no centro de So Paulo, era rico para novas experincias musicais, pois
era um espao privilegiado para a criao. Novas possibilidades aconteciam nesse
espao urbano que se descortinava para os sambistas, nesse sentido, at a lata de
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