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    Universidade Federal Fluminense

    Centro de Estudos Sociais Aplicados

    Faculdade de Educao ESE

    Programa de Mestrado e Doutorado em Educao S.P.U.

    Helenice Aparecida Bastos Rocha

    O lugar da linguagem no ensino de Histria:

    entre a oralidade e a escrita

    Volume I

    Niteri

    2006

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    Helenice Aparecida Bastos Rocha

    O lugar da linguagem no ensino de Histria:

    entre a oralidade e a escrita

    Tese apresentada ao Programa dePs-Graduao em Educao daUniversidade Federal Fluminense,como requisito parcial para obteno

    do grau de Doutor em Educao.Campo de Confluncia: Linguagem,Subjetividade e Comunicao.

    Orientadora: Ceclia Maria Aldigueri Goulart

    Niteri2006

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    R672 Rocha, Helenice Aparecida Bastos.O lugar da linguagem no ensino de Histria: entre a oralidade

    e a escrita/ Helenice Aparecida Bastos Rocha. 2006.

    462 f.

    Orientador: Ceclia Maria Aldigueri Goulart

    Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense,Faculdade de Educao, 2006.

    Bibliografia: f. 382-394.

    1. Histria Estudo e ensino. 2. Professores - Formao. 3.Letramento. I. Goulart, Cecilia Maria Aldigueri. II. UniversidadeFederal Fluminense. Faculdade de Educao. III. Ttulo.

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    Dedico esta tese aos

    professores e alunos que esto

    na escola pblica, acreditando

    e investindo para que ainda

    valha a pena estar ali.

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    Agradecimentos

    As dvidas criadas a partir da extenso de tempo do doutorado sograndes. Correndo o risco de esquecer algum, a quem desde j peodesculpas, agradeo as sucessivas liberaes do Colgio Pedro II e aconcedida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ao longo dos trsltimos anos. Nesse sentido, tambm agradeo aos amigos e colegas dedepartamentos que, de alguma maneira, batalharam junto comigo por essasconcesses. Esta tese, com um trabalho de campo extenso e com muitosdados, alm de uma longa escrita, resultado dessas liberaes e espero queo resultado tenha valido a pena.

    Em segundo lugar, agradeo a todos das escolas onde a pesquisa se

    desenrolou, ficticiamente denominadas de CEIM e EMEM: diretores,coordenadores, professores, demais funcionrios e alunos. Especialmente agenerosidade da abertura da sala de aula resultou em um trabalho queconsidero poder contribuir com o ensino de maneira geral e o de Histria em

    particular. Serei grata eternamente e compartilho esse resultado com cada umde vocs.

    Em terceiro lugar agradeo minha orientadora, que ao longo dosltimos sete anos, entre o mestrado e o doutorado, mostrou-se um exemplode pessoa que todos ns desejamos ser, quando crescermos. Sempreacolhedora, atenta, sensvel. As aprendizagens que Ceclia me oportunizouforam muito alm do doutorado, como a da cordialidade e da sutileza. Comsua crena na troca intelectual e afetiva, tivemos encontros no s produtivoscomo carinhosos, no grupo de orientao e no grupo de pesquisa. Todos seinspiram em seu jeito de ser para tambm oferecer dicas sutis, que fazem

    pensar. Procurei aprender esse modo de interagir e creio estar no caminho.Sentirei falta de todos.

    Em momentos importantes de escrita tive sugestes fundamentais detrs companheiros intelectuais e fraternos: Mauro Csar Coelho, ValdeteCco e Marcelo de Souza Magalhes. Este ltimo, alm de sugerir umaentrada que mudou o rumo da tese, pela Antropologia, realizou uma leituraatenta da verso preliminar e ofereceu contribuies relevantes para a edio

    final da tese. Nunca demais registrar que a responsabilidade pelo resultadofinal totalmente minha. Agradeo ainda a Luciana Gandelman pelo socorroda verso do resumo para o ingls e a ngela Borba pela prontido emajudar.

    Finalmente, agradeo a minha grande famlia (me, irmos,sobrinhos) pela sua compreenso ao exlio forado. Foram muitos feriados efinais de semana sem sair de casa, sem viajar, em recluso. Agradeoespecialmente generosidade e pacincia de Rocha, pelo seu empenho emque eu encarasse o doutorado, apesar de no ter todas as condiesnecessrias, sabendo que isso sacrificaria nossa vida em casa. Ele ainda estaqui. E agradeo a meus dois filhos, j adultos, que diariamente me mostram

    que vale a pena apostar no que vir, se a gente investir.

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    SUMRIO

    Lista de figurasLista de abreviaturas e siglasLista de tabelasLista de quadrosLista de anexos e apndices

    INTRODUO 18

    PARTE I

    No percurso da pesquisa entrei por uma histria e

    sa pela outra... 32

    CAPTULO 1: O enfrentamento do problema e seus desafios

    1.1 A aula de Histria como espao de observao

    1.2 Eles no conseguem compreender o contedo

    1.3 Oralidade e escrita na aula de Histria

    1.4 O problema deles de alfabetizao

    1.5 Esse livro tem Histria para a classe mdia

    33

    34

    42

    50

    55

    63

    PARTE II

    Jogar a rede recolher tudo jogar de novo...

    O estudo da relao de ensino em culturas escolares

    77

    78

    CAPTULO 2: CEIM escola-modelo em outros tempos

    2.1 A chegada escola:dia de reunio de professores

    2.2 O CEIM e sua histria

    2.3 Trs momentos

    2.4 CEIM: prticas, normas, saberes...

    91

    93

    94

    99

    102

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    2.5 O conhecimento histrico escolar no CEIM

    Dois lados da moeda da precarizao do ensino pblico

    APNDICE A: Quadro de Normas e Prticas do CEIM professores ealunos

    CAPTULO 3: Projeto coletivo de escola

    3.1 Uma contradio aparente

    3.2 A histria de um projeto a muitas mos

    3.3 Trs momentos, trs projetos em andamento na

    EMEM

    3.4 EMEM: prticas , normas, saberes ...

    3.5 O conhecimento histrico escolar na EMEM

    Alunos letrados em uma escola de projeto humanista

    APNDICE B: Quadro de Normas e Prticas da EMEM professores e

    alunos

    134

    138

    143

    143

    144

    148

    151

    170

    173

    PARTE III

    A linguagem na aula de Histria: miudezas e

    monumento

    Rotina e acontecimento na linguagem da aula

    178

    182

    Captulo 4 : Miudezas faladas e vividas na aula de Histria

    4.1 Marcos da aula

    4.2 Indicadores de manuteno do contrato de

    enunciao

    4.3 Indicadores de sociabilidade informal

    O significado da miudeza da linguagem na aula:

    Sua organizao e o estabelecimento de um tom

    187

    188

    197

    216

    222

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    CAPTULO 5 : O circuito de atividades e a rotina das aulas

    5.1 As aulas no CEIM

    5.2 As aulas na EMEM

    Um circuito que se repete: a rotina e o acontecimento

    na interao da aula

    Apndice C: Quadro de Atividades do CEIM

    Apndice D: Quadro de Atividades da EMEM

    CAPTULO 6: Sete formas de contar a Histria ou

    A articulao entre prticas de linguagem oral e

    escrita na aula de Histria

    6.1 O resumo na aula de Histria

    6.2 O esquema na aula de Histria

    6.3 Aulas pautadas em outras prticas

    O delicado lugar da linguagem no ensino de Histria

    CONCLUSO FINAL

    Que os professores e alunos contem outra...

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ANEXOS

    224

    224

    228

    231

    240

    242

    271

    323

    353

    373

    382

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    LISTA DE FIGURAS

    1. Diagrama:A cultura escolar em funcionamento 80

    2. Fotografia: Exterior da biblioteca do CEIM 92

    3. Fotografia: Sala de aula do CEIM no horrio do recreio 118

    4. Fotografia: Um dos corredores do CEIM 122

    5. Fotografia: Espao de comunicao entre as salas na EMEM 145

    6. Fotografia: Sala de aula da EMEM 150

    7. Fotografia: Biblioteca da EMEM 161

    8. Fotografia: Escaninho dos alunos da EMEM, na entrada da escola 161

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CEIM escola pblica do trabalho de campo

    DC- dirio de campo

    EMEM escola particular do trabalho de campo

    FFP- Faculdade de Formao de Professores da UERJ

    PNLD Programa Nacional do Livro Didtico

    RPP1 1 Relatrio Parcial da Pesquisa (CEIM)

    RPP2 2 Relatrio Parcial da Pesquisa (EMEM)

    SD

    Seqncia discursiva

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    LISTA DE TABELAS

    1: Prticas familiares de leitura no CEIM 126

    2: Preferncia revista/tema CEIM 127

    3: Ateno aula turma 502 129

    4: Ateno aula turma 505 129

    5: Ateno aula turma 603 129

    6: Ateno aula turma 702 129

    7: Ateno aula turma 802 129

    8: Sntese das respostas sobre temas em estudo CEIM 131

    9: Detalhamento sobre temas em estudo CEIM 131

    10: Finalidade do estudo da Histria CEIM 136

    11: Prticas familiares de leitura na EMEM 164

    12: Preferncia revista/tema EMEM 164

    13: Ateno aula 5 srie 16614: Ateno aula 6 srie 167

    15: Ateno aula 7 srie 167

    16: Sntese das respostas sobre temas em estudo EMEM 168

    17: Detalhamento sobre temas em estudo EMEM 168

    18: Finalidade do estudo da Histria EMEM 170

    19: Mdia de atividades por aula CEIM/EMEM 235

    20: Temas em estudo na turma 603 26721: Detalhamento do tema em estudo na turma 603 268

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    LISTA DE QUADROS

    1. Aulas acompanhadas no perodo da pesquisa (CEIM e EMEM) ANEXO 1

    2. Normas e prticas CEIM professores APNDICE A

    3. Normas e prticas CEIM alunos APNDICE A

    4. Normas e prticas EMEM professores APNDICE B

    5. Normas e prticas EMEM alunos APNDICE B

    6. Atividades do CEIM APNDICE C

    7. Atividades da EMEM APNDICE D

    8. Agrupamento de prticas orais e de escrita 241

    9. Seqncias discursivas de 12 de maro na turma 502 245

    10. Legenda de seqncias discursivas e tipos textuais 245

    11. Seqncias discursivas de 20 de setembro na 5 srie 274

    12. Seqncias discursivas de 22 de setembro na 7 srie 292

    13. Seqncias discursivas de 16 de maro na turma 802 310

    14. Seqncias discursivas de 25 de maro na turma 505 326

    15: Comparao entre o escrito e o comentado na aula da 505 337

    16. Seqncias discursivas de 30 de setembro na 6 srie 346

    17. Relao de figuras e temas da aula de 12/03 362

    18. Relao de figuras e temas da aula de 16/03 362

    19. Relao de figuras e temas da aula de 20/03 362

    20. Relao de figuras e temas da aula de 22/09 362

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    LISTA DE ANEXOS E APNDICES

    ANEXOS

    1. Aulas acompanhadas no perodo da pesquisa (CEIM e EMEM)

    2. Questionrio do aluno (CEIM e EMEM)

    3. Questionrio do professor

    4. Protocolo de observao das aulas5. Fotografia area do CEIM

    6. Reportagem: Estado economiza com resultados da educao

    7. Folder-desconto de cursos para aluno do CEIM

    8. Plano denominado Projeto de Histria do CEIM

    9. Planta baixa da EMEM produzida por uma aluna

    10. Cpia de folder de divulgao da EMEM

    11. Divulgao interna de evento literrio na EMEM

    12. Texto produzido por aluna no Projeto Ouro Preto da EMEM

    13. Orientao para desenvolvimento de recuperao paralela da EMEM

    14. Parte de plano de curso da EMEM (5 srie)

    15. Texto de aluno do CEIM sobre sua vida (t. 502)

    APNDICES

    A.Quadro de normas e prticas do CEIM professores e alunos Captulo 2

    B. Quadro de normas e prticas da EMEM professores e alunos Captulo 3

    C. Quadro de atividades do CEIM Captulo 5

    D. Quadro de atividades da EMEM Captulo 5

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    RESUMO

    Neste estudo, realiza-se uma investigao sobre o lugar dalinguagem no ensino de Histria a partir do problema dacompreenso desta disciplina no Ensino Fundamental. Paraisto, parto de alguns pressupostos, entre eles: que existe umarelao entre linguagem e compreenso e que a relao deensino de Histria que envolve professor, aluno econhecimento histrico escolar deva ser investigada nofuncionamento da prpria relao. Na realizao do estudo, realizado um trabalho de campo envolvendo turmas de cinco

    professores da disciplina em que se recolhem indcios dofuncionamento da cultura escolar em duas escolas de umacidade do Rio de Janeiro, de caractersticas diversas: uma darede pblica estadual e a outra da rede particular. Na primeirase observa a gradual precarizao que vem sofrendo a educaopblica contemporaneamente. Na segunda, uma associao depais e professores, o objetivo produzir um ensino e umaaprendizagem de qualidade, com nfase na culturahumanstica. O primeiro objetivo do estudo nesses doisuniversos dspares conhecer efeitos do processo de

    letramento dos alunos, a partir da inter-relao de condiesdiversas. O segundo objetivo conhecer a importncia dessascondies e de outras para a aula de Histria que acontece ali,no exame das interaes que ocorrem na relao de ensino, naaula. A partir de referencial de inspirao etnogrfica, quefundamenta tambm a escrita do trabalho, a anlise dasinteraes verbais se baseia principalmente na TeoriaEnunciativa de Mikhail Bakhtin. O estudo conclui pelacomplexidade de condies para o ensino de Histria na

    contemporaneidade e pela delicadeza do lugar da linguagemneste ensino, ao analisar o oral e o escrito nessas aulas. Quandose constitui sob o signo da precariedade, a prpria linguagem seprecariza. Este processo pode comprometer a curiosidade, aexplicao, a busca do conhecimento de uma histria dopassado e do presente que contribua para ressignificar outrostempos com mais sentido para todos, professores e alunos.

    Palavras-chave: ensino de Histria, interao verbal,letramento escolar, economia do ensino, formao deprofessores.

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    ABSTRACT

    The present thesis focuses on investigating the roleplayed by language on the teaching of History tostudents of primary and secondary schools. Myinvestigation aims at analyzing the connections betweenlanguage and comprehension in the teaching of theHistory content. In order to achieve this goal, I didresearch in five classes belonging to two differentschools, one private and the other one public, located inone city of Rio de Janeiro. On the public school theteaching of history had undergone a clear deterioration.On the private one, on the other hand, it was possible tofind concern for the quality of the teaching with aninfluence of the humanistic approach. The first objectiveof this research, while comparing these two distinctschool realities, was to analyze the effects of the learningof literacy under different circumstances. The secondobjective was to find out the importance of thisconditions and circumstances in the learning of History.

    Taking on an ethnographic approach, this thesis analysesthe verbal interactions in the classrooms according toMikhail Bakhtin's proposals. This research concludesthat there is a complex array of conditions concerningthe teaching of history and its relationship with language,

    both written and spoken. Surrounded by difficultconditions, language itself can get undermined. As aresult, both curiosity and comprehension of History can

    be impaired preventing teachers and students fromprofting from the subject.

    Key words:History teaching, verbal interaction, schollliteracy, teaching economics, teachers formation.

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    RSUM

    Dans cette tude, on fait une recherche sur la place du langage danslenseignement de lHistoire partir du problme de lacomprhension de cette discipline dans lenseignement niveau descollges. Pour cela, on part de quelques prsupposs, parmi lesquelscelui quil existe um rapport entrelangage et comprhension et quele rapport entre lenseignement de lHistoire, qui comprend leprofesseur, llve et la connaissance historique scolaire doit trerecherch dans le fonctionnement de la relation elle-mme. Pour laralisation de cette tude on ralise un travail de terrain comportant

    des classes de cinq professeurs de la discipline, dans lesquelles onrecueille des indices du fonctionnement de la culture scolaire dansdeux collges dune ville de Rio de Janeiro, avec des caractristiquesdiverses: lune du rseau public de ltat de Rio de Janeiro et lautredu rseau priv. Dans la premire, on note la prcarit graduelle quiafflige, de nos jours, lducation publique. Dans la deuxime, uneassociation de parents et professeurs, le but est de produire unenseignement et une apprentissage de qualit, en soulignant laculture humanistique. Le premier objectif de ltude dans ces deuxunivers dissonants est de connatre les effets du processus delettrage des lves, partir de la relation parmi des conditionsdiverses. Le deuxime objectif est de connatre limportance de cesconditions et dautres pour la classe dHistoire qui a lieu l-bas, danslanalyse des interactions qui se passent dans la relation delenseignement, dans la classe. partir dun rfrentiel dinspirationethnographique, qui sert aussi de fondament lcrit de cette tude,lanalyse des interactions verbales est base, surtout, dans la thorieennonciative de Mikhail Bakhtin. Ltude conclut par la complexit,de nos jours, des conditions pour lenseignement de lHistoire et par

    la dlicatesse de la place du langage dans cet enseignement, quandon analyse loral et lcrit dans ces classes. Quand il est constitusous le signe de la prcarit, le langage lui-mme devient prcaire.Ce processus peut compromettre la curiosit, lexplication, larecherche de la connaissance dune histoire du pass et du prsentqui puisse contribuer pour la nouvelle signification dautres temps,avec plus de sens pour tous, professeurs et lves.

    Mots-cl: enseignement dHistoire, interaction verbale, lettragescolaire, conomie de lenseignement, formation de professeurs.

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    INTRODUO

    O incio de uma caminhada

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    Alunos-mestres do curso de formao de

    professores preparam uma aula para ministrar

    turma em que fazem estgio. A professora da turma

    adverte: No falem nada muito complicado, queeles no entendem. Mesmo se vocs forem simples,

    ainda correm o risco de eles no entenderem. Se

    derem um texto escrito, usem palavras de

    vocabulrio simples. (anotaes de Prtica de

    Ensino1)

    ***

    Professores do CEIM2 me explicam o que o

    Projeto de Histria: a resposta ao diagnstico de

    dificuldade de interpretao, leitura e escrita dos

    alunos do Ensino Fundamental, em que os

    professores abordam de uma forma mais lenta,repetida, com menos contedos, o currculo de

    Histria. Para alguns um ensino mais conceitual.

    (DCCEIM)3

    ***

    Muitos alunos da 802 registraram nos

    questionrios que no prestavam ateno na aula de

    Histria, apesar de muitos terem respondido qual

    era o tema que estudavam naquele momento. Ao

    serem perguntados sobre porque no estavam

    atentos, disseram que o professor era confuso, falava

    de forma desordenada. Explicava, mas de um jeitoque no dava para entender. (RPP1)4

    A repetio de uma fala e suas variaes, na forma do desnimo, da descrena, ou

    da angstia desenhou o problema que instigou inicialmente esta tese. Alguns professores

    de Histria diziam, em minha atuao como professora de Prtica de Ensino em escolas

    pblicas,5

    que seus alunos apresentavam dificuldades para interpretar o contedoprogramtico que eles tentavam ensinar-lhes, em suas aulas. Aprofundando a conversa e a

    1Essa observao no faz parte da documentao da pesquisa, e sim, de minha atuao como professora dePrtica de Ensino. Eventualmente registrarei observaes desse campo de atuao.2CEIM: escola pblica da pesquisa.3DC: dirio de campo.4RPP1: 1 Relatrio Parcial de Pesquisa, relativo ao CEIM.5O contexto dessas conversas o de minha atuao como professora de Prtica de Ensino junto a escolaspblicas. Sou professora de uma Universidade no Rio de Janeiro, atuando com alunos na disciplina de Prticade Ensino de Histria. Paralelamente a essa atividade, sou professora das sries iniciais do Ensino

    Fundamental em uma instituio federal do Rio de Janeiro. Anteriormente, atuei durante muitos anos comocoordenadora pedaggica junto a professores do Ensino Fundamental e Mdio em escolas pblicas eparticulares.

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    partir de depoimentos e observao em diversas escolas, conclu que o fenmeno mais

    amplo que o dessas queixas, abrangendo a aula de Histria como um todo. Tambm

    descobri que elas tm relao direta ou indireta com as atividades orais e escritas que os

    professores desenvolvem e com outros aspectos da aula que estarei detalhando ao longo do

    trabalho.

    A partir desse contexto inicial, que apresenta o problema da compreenso no

    ensino/aprendizagem de Histria, este estudo se prope a avanar no conhecimento acerca

    do lugar da linguagem na aula de Histria do Ensino Fundamental. Para isto, analiso o

    ensino de Histria que acontece em uma escola pblica e em outra, particular, ambas

    voltadas ao Ensino Fundamental. As condies em que esse ensino ocorre so bem

    diferenciadas, como se poder constatar. Entre essas condies esto includos oselementos centrais da relao de ensino: professor, aluno e conhecimento histrico escolar.

    Tambm so consideradas duas outras condies como relevantes para o ensino: a cultura

    escolar que constrange a relao de ensino e o conjunto de prticas orais, de leitura e de

    escrita que ocorrem na aula. A articulao dessas condies, nas duas escolas, configura

    aulas diversas, conforme poderemos constatar.

    A diversidade de prticas de linguagem, pautada na precariedade de condies, me

    conduz a uma reflexo acerca da viabilidade de uma aula de Histria cuja marca seja aexcluso cultural. Ou seja, o movimento que realizo em busca do conhecimento sobre o

    lugar da linguagem no ensino de Histria pretende apontar condies necessrias para a

    estruturao de um ensino de Histria que possa ocorrer para todos.

    Destaco que o problema da compreenso foi abordado a partir de uma perspectiva

    etnogrfica e focalizando especialmente o docente. Ou seja, considerei que, se este um

    problema para os professores, valia a pena investigar quais investimentos eles realizavam

    para resolver (ou no) esse problema. Vale ressaltar que, na busca dessas estratgias,destacou-se o funcionamento de uma economia docente de aspectos como a prpria

    linguagem, como poderemos conhecer no desenvolvimento do texto.

    Nas relaes de ensino e na interao entre professor e aluno, destaca-se a

    apreciao social contnua entre ambos. Isto porque, entre outros fatores, este acento

    apreciativo permeia o investimento de professores e alunos nas atividades que concretizam

    as relaes de ensino. importante destacar que eles trazem para a aula histrias j

    marcadas por outras apreciaes, relativas a seus lugares sociais e institucionais.

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    Para efeito de clareza, enuncio os objetivos mais gerais que estabeleci para a

    pesquisa:

    Conhecer as condies que propiciam a existncia de relaes de ensino na

    aula de Histria que produzem uma aprendizagem dspar, considerando

    que essas aulas acontecem em escolas com caractersticas diversas;

    Descrever as relaes de ensino na aula de Histria, destacando entre seus

    componentes as escolhas do professor como condutor do processo didtico

    e a interao que se estabelece entre os componentes dessas relaes, a

    partir dessas escolhas;

    A partir de descrio de inspirao etnogrfica, meio privilegiado para

    conhecimento das condies e das relaes de ensino, analisar

    exploratoriamente as interaes da aula de Histria, destacando prticas

    de linguagem oral e de escrita e sua articulao.

    ***

    De algum modo, este trabalho se inicia na dissertao que produzi em 2000, sobre

    a leitura de professoras. Ali buscava trabalhar com o tema de constituio de sentido da

    leitura entre a casa e a escola, como espaos de socializao na trajetria de professoras.

    Em 2002, comecei a trabalhar com alunos do curso de formao de professores de

    Histria na disciplina Prtica de Ensino II, voltada aos alunos do stimo perodo. Animada

    com a possibilidade de estar multiplicando uma experincia positiva que eu tivera anosantes, com alunos da escola pblica, percebi que os estagirios apresentavam vises

    diversas acerca da escola e do trabalho possvel ali. Alguns no tinham a menor idia do

    que seria a escola pblica, outros apresentavam uma viso romntica, outros possuam uma

    viso to negativa que concluam no ser possvel fazer nada, a priori. Alm disso, sua

    preocupao era sempre com o contedo a ser ministrado e com o seu prprio domnio

    desse contedo. Assim, apesar de terem cursado ndisciplinas pedaggicas, enxergavam

    apenas dois elementos da relao de ensino: o conhecimento histrico e o professor, como

    aquele que transmite o conhecimento histrico.

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    Ao chegarem escola, ouviam recorrentemente dos professores que os alunos no

    compreendiam, que era para eles facilitarem a mensagem ou diminurem o texto e

    pensavam nessas dicas ou outras estratgias desses professores mais experientes. Na aula,

    eles mesmos constatavam que, muitas vezes, os alunos ficavam em um estado aparente de

    prostrao ou de passividade tal, que aparentavam no estar ali. Assim, frustravam-se e

    recorriam, no momento do exerccio, a tarefas de localizao de palavras ou de

    completamento de lacunas, o que traduzia sua interpretao do problema apresentado.

    Assim, juntamente com os professores experientes, logo chegavam concluso que

    os alunos no aprendiam por terem sido mal-alfabetizados ou por conta da precariedade

    existente em suas vidas. Tive a impresso que a formao em seu curso e o incio do

    estgio na escola no haviam possibilitado a elaborao de um conhecimento sobre osalunos e a escola de forma diferenciada dos professores que j estavam l. Afinal, que

    sentidos e que prticas esto se constituindo para todos esses professores, novos e antigos,

    acerca da Histria como conhecimento escolar, das formas de realizar seu ensino, dos

    alunos como capazes ou no de aprender a Histria?

    Esse conjunto de perguntas passou a acompanhar a questo inicial colocada pelos

    professores, acerca da compreenso dos alunos, como questes de uma professora de

    linguagem e de Histria e professora de formao de professores de Histria.

    1 Linguagem e Ensino de Histria

    A partir do quadro de questes apresentado acima, tornou-se necessrio realizar

    dois deslocamentos para o estabelecimento desta pesquisa. Em primeiro lugar, em uma

    tradio ainda estabelecida na rea do ensino e especialmente na do ensino de Histria, o

    saber disciplinar considerado como um dado a ser transmitido atravsda linguagem. Ou

    seja, nessa concepo relativa ao saber disciplinar, a linguagem existe apenas como

    instrumento de comunicao, tendo como principal funo a transmisso de informaes

    entre professor e alunos. Assim, a linguagem seria transparente, ou natural. Por

    conseguinte, seria natural que, se o professor explicasse de um lado, o aluno entenderia do

    outro. Se isso no ocorresse, o aluno teria algum problema.

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    Aqui opero o primeiro deslocamento. Considero que a linguagem constitutiva,

    porque como discurso, ela uma forma de ao e interao (Franchi, 1992). Ou seja, uma

    atividade ou ao interindividual finalisticamente orientada6.

    Ingedore Koch apresenta as concepes dominantes de linguagem, das quais a mais

    antiga, evidenciada desde a filosofia clssica, seria aquela em que o homem representa o

    mundo para si atravs da linguagem. Sua funo de representao do pensamento e do

    conhecimento. A segunda, respaldada na idia de elementos da comunicao, a da lngua

    como um cdigo atravs do qual um emissor comunica a um receptor determinadas

    mensagens, sua principal funo a da transmisso de informaes (Koch,1997). Destaco

    sua proposta para a terceira concepo, que se aproxima da que apresento e com que

    procuro trabalhar aqui (1997, 9-10):

    ... [a linguagem ] lugar de interao que possibilita aos membros da sociedade a prtica

    dos mais diversos tipos de atos, que vo exigir dos semelhantes reaes e/ou

    comportamentos, levando ao estabelecimento de vnculos e compromissos anteriormente

    inexistentes.

    A linguagem lugar de interao. Qual seu lugar no ensino de Histria?

    Preliminarmente, compreendo que ela constitua esse ensino, pois o ensino ocorre na

    interao da linguagem. E ela uma ao que supe a relao de ensino e seus

    componentes essenciais: o professor, o aluno e o conhecimento histrico escolar. A partir

    dessas afirmaes, o conhecimento histrico escolar, no sendo um objeto dado e sim

    constitudo pela ao da linguagem, no pode ser separado do discurso produzido em sala

    de aula, entendendo-se esse discurso como o conjunto das atividades faladas e escritas que

    acontecem de forma articulada durante a aula7.

    Cabe esclarecer outra desnaturalizao assumida neste trabalho. A do fracasso

    escolar dos alunos de camadas sociais populares. Neste estudo, o ensino de Histria est

    sendo examinado em duas escolas com caractersticas muito diferenciadas, ou seja, com

    condies diversas de ensino e de aprendizagem. Isto no significa que esteja atribuindo

    apenas ao aluno dessas escolas a condio de sucesso ou fracasso na tarefa de compreender

    o conhecimento histrico escolar.

    6Esta concepo de linguagem, denominada discursiva, ou enunciativa, inspira-se especialmente na teoria de

    Mikhail Bakhtin e Emile Benveniste.7A organizao deste trecho dialoga com o trabalho de Antonio Augusto G. Batista acerca do que se ensinano ensino de Portugus (1996).

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    Considerar a linguagem como ato de produo de sentidos significa que o professor

    e o aluno esto produzindo sentidos na interao da aula, nas condies existentes. Esse

    aluno, bem como o professor que lhe ensina, produzido socialmente, entre a casa e a

    escola como espaos de socializao, conforme diferentes estudos reconhecidos da

    Sociologia da Educao j tm estabelecido no campo8. E ambos possuem uma histria de

    insero na cultura da escrita, o que vai conferir determinados sentidos s prticas que

    constituem as relaes de ensino e o prprio conhecimento histrico nessa aula.

    2 O campo de estudo e o olhar sobre ele

    Ao aceitar a provocao contida no problema da compreenso dos alunos, pretendi

    descrever e analisar as prticas e categorias nativas9 dos professores acerca da

    compreenso dos alunos, que funcionavam na escola e na aula de Histria. As prticas,

    inclusive as de linguagem, as categorias nativas, bem como a cultura escolar vigente,

    seriam ou constituiriam boa parte da explicao. Decidi acess-las atravs de uma pesquisa

    emprica de inspirao etnogrfica10. Estruturei a pesquisa como um trabalho de campo

    previsto inicialmente para ocorrer em uma escola pblica ao longo do ano de 2004.

    Posteriormente a pesquisa se reconfigurou para duas escolas com caractersticas

    diferenciadas.

    Precisava conseguir uma escola em que o ensino de Histria ainda acontecesse de

    maneira razovel, ou seja, a escola estivesse funcionando, o que no to normal quanto

    pode parecer, o professor fosse presente, o aluno freqentasse a escola e o currculo

    estivesse minimamente organizado. Evidentemente so necessrias outras condies, mas,

    ao menos essas seria necessrio prever. A escola escolhida, e que concordou com a

    pesquisa o CEIM, escola estadual de mdio porte que funciona em um bairro

    denominado ficticiamente de Pindorama, que se localiza em uma cidade da regio

    metropolitana do Rio de Janeiro.

    8Maria Alice Nogueira apresenta suas tendncias em conjunto de estudos que contempla o tema (2000).9

    Esse termo ser esclarecido adiante.10A referncia etnografia vinculada diretamente Antropologia, com que tomei contato em disciplinacursada no PPGAS/UFRJ, durante o doutorado.

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    Pindorama um bairro de contrastes, onde h trinta anos a ocupao era esparsa,

    havia hortas e famlias pertencentes s camadas populares, de ocupao local ou em

    pequenos servios na prpria regio. Hoje, o bairro v coabitarem condomnios e

    aglomerados de habitaes populares em locais que beiram a favelizao, e sua populao

    tambm divide esses contrastes11. Na escola so atendidas vinte turmas nas sries finais do

    Ensino Fundamental a partir da 5 srie, que concentram os filhos das famlias mais pobres

    da regio. A escola tambm mudou muito do que havia sido, uma escola-modelo voltada

    formao para o trabalho no Ensino Fundamental ao comear h trinta anos, para agora,

    uma escola estadual pauperizada que atende as sries finais do Ensino Fundamental e ao

    Ensino Mdio, atendendo a crianas e jovens dos quais muitos vivenciam os problemas

    urbanos da violncia e da marginalizao.Realizei esse trabalho de campo procurando compreender como funcionava a

    escola e quais constrangimentos colocava ao funcionamento das relaes de ensino de

    Histria. Para isso, acompanhamos o cotidiano da escola durante todo o primeiro ms de

    aula, seus problemas e rotinas. Um desses problemas veio tona logo no incio do ms de

    maro, com a desclassificao da escola no Programa Estadual Nova Escola12, o que, entre

    outras coisas, diminuiu o adicional ao salrio dos professores, j bastante penalizado. A

    reao coletiva variou da indiferena humilhada revolta.Trabalhei com um princpio de diversidade nas condies existentes nessas

    relaes. Ou seja, com turmas de sries diferentes, com professores diversos, que

    estivessem trabalhando diferentes contedos. Passo seguinte foi compreender o

    funcionamento da aula, e para isso acompanhamos13, eu e os auxiliares da pesquisa, um

    conjunto extenso de todas as suas aulas de Histria durante o ms de maro 14, alm de

    11No ANEXO 5 possvel observar uma fotografia area da escola, onde se v que a mesma est limitadapor condomnios.12Apresento no ANEXO 6 fragmentos de uma reportagem publicada na ocasio, em que se fala sobre osmotivos que teriam levado a Secretaria de Educao a tomar tal atitude e sua repercusso nas escolas. Odocumento que apresenta os resultados da avaliao da escola o da Avaliao Externa do Programa NovaEscola: relatrio da Escola 2003. (SEE, 2003a). O documento que explica as alteraes ocorridas noprograma para 2004 a Cartilha Conhea as Principais Mudanas do Nova Escola/2004.(SEE, 2003b).13 Estou utilizando ao longo do trabalho a primeira pessoa do singular, assumindo minimamente apessoalidade necessria. Quando me referir a ns, esteja claro que tal registro tem a ver com as aes dapesquisa que foram realizadas por mim e pelos auxiliares de pesquisa, dois deles em cada escola, havendo

    combinaes e avaliaes quanto ao melhor caminho a adotar. Evidentemente, a responsabilidade final detodo o procedimento da pesquisa e do trabalho de campo, bem como de seu resultado, inteiramente minha.14V. ANEXO 1 com o total de aulas acompanhadas de cada turma, em cada escola.

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    meu acompanhamento das reunies regulares de professores entre si e/ou com

    coordenadores e/ou direo15, especialmente em fevereiro.

    Percebemos grandes contrastes entre os professores e as aulas que ministravam.

    Havia entre eles alianas e desencontros, que se verbalizavam no lugar do pedaggico mas

    se efetivavam no lugar do pessoal. Alguns que declaravam realizar trabalhos prximos

    possuam menos pontos de encontro do que com outros de quem no eram prximos

    afetivamente. Os alunos pareciam possuir uma percepo mais privilegiada da qualidade

    da explicao dos professores e de sua pacincia. Conforme a srie avanava, ficavam

    mais calados em sala, participando menos da aula. Uns e outros, ao final do ano,

    explicavam com relativa clareza porque haviam ou no aprendido Histria.

    Assim, apesar de ocorrer na mesma escola, a mudana de alguns dos componentesdas relaes de ensino alterava de modo significativo a aula de Histria. O mesmo

    professor, utilizando estratgias semelhantes em turmas que apresentavam perfil

    diferenciado, dava aulas que resultavam parecidas. As explicaes, ou teorias nativas

    desenvolvidas pelos professores e alunos para a compreenso ou incompreenso que

    acontecia, pareciam apontar elementos relevantes para a questo, mas no suficientes.

    Professores apontaram questes como a (m) escolarizao e a limitada insero

    cultural dos alunos como origem do problema. Fator de outra ordem (no apontado pelosprofessores) era a insatisfao com as condies de exerccio da docncia, que transitava

    do salrio ao tempo escolar, que ser tratada ao longo da tese como uma condio presente

    e pouco visvel aos professores. Alunos apontaram problemas como a dificuldade de

    comunicao do professor e a ausncia de perspectivas da escola pblica e de seu ensino,

    alm de uma avaliao negativa sobre as aulas, que no despertariam a sua ateno. Alm

    disso, parecia haver algum problema com o conhecimento histrico ensinado. Muitos

    alunos pareciam no saber para que estudavam esses conhecimentos, alm de algunsapontarem apenas o objetivo escolar de tirar notas para aprovao16.

    Esse leque aparentemente desconjuntado de indcios me levou a alterar o rumo de

    continuidade da pesquisa de campo. At ento minha pretenso era de realiz-la apenas

    nessa escola pblica. A partir da anlise realizada nessa primeira fase do trabalho de

    campo, decidi buscar a insero em uma escola particular em que busquei conhecer, com a

    15O perodo aproximado em cada escola, foi de aproximadamente de trs meses no CEIM e dois meses na

    EMEM. Foram realizadas idas posteriores para entrevistas ou conversas com a coordenao, professores oualunos.16V. anlise de questionrios dos alunos, (RPP1).

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    alterao radical de algumas condies, como ocorriam ali as relaes de ensino de

    Histria (levando ao extremo um princpio buscado de diversidade nessas condies). Os

    fatores de ateno mais visados eram o do letramento dos alunos e o das condies

    materiais e simblicas de trabalho de professores. Visava ter, no contraste de condies

    registrado na descrio, melhor visibilidade para a anlise dos problemas apontados, alm

    de poder conhecer uma diversidade de prticas relacionadas ao ensino de Histria.

    Da buscar uma escola particular que:

    atendesse a alunos de segmentos sociais potencialmente letrados;

    remunerasse seus professores de forma diferenciada ;

    oferecesse condies de trabalho (nmero de alunos em sala, recursos

    materiais e audiovisual, acompanhamento de coordenao de rea) e

    estimulasse seus professores a realizar o melhor trabalho possvel.

    A busca, nesta incurso diferenciada, foi a de conseguir alcanar maior clareza

    sobre fatores que podem provocam a dificuldade de compreenso apontada nas escolas

    pblicas. Ao mesmo tempo, perceber a existncia de outros fatores que podem atuar

    juntamente com os anteriores ou em seu lugar, atravs da anlise comparativa decondies. Vale chamar a ateno para que a comparao a no se reveste de carter

    avaliativo (enquanto finalidade), pois no se busca a melhor prtica ou resultado, e sim a

    clareza de relao entre prticas culturais e seus efeitos, por mais complexas que possam

    resultar suas combinaes. Agnes Van Zanten argumenta que a produo de conhecimento

    de um nvel superior de interpretao passa, em grande parte, pela comparao (2004, 39-

    40). Considero que no necessariamente a comparao, mas a inter-relao de descries

    pode contribuir para anlises produtivas, e isto que busquei na continuidade da pesquisaem uma escola com caractersticas muito diferenciadas.

    A escola, denominada como EMEM, uma associao comunitria de pais e

    professores, sem fins lucrativos, que atende a alunos de segmentos sociais da denominada

    camada mdia alta, com a configurao de fatores apresentados acima e que detalharei

    mais no corpo da anlise. Aqui basta dizer que esta escola instalou-se em Pindorama j em

    pleno processo de transformao do bairro em reduto dessa camada social e uma escola

    situada em um stio que busca agregar as vantagens de uma rea verde valorizao de

    uma cultura humanstica. Aps aprovao da pesquisa pela direo, coordenao

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    pedaggica e concordncia dos professores, o trabalho de campo seguiu em linhas gerais

    desenho metodolgico relativamente semelhante ao do CEIM, ocorrendo entre setembro e

    dezembro de 2004.

    Em agosto, eu e os auxiliares de pesquisa ainda retornamos ao CEIM,

    acompanhamos em torno de duas semanas de aulas de cada turma j observada e

    registramos mudanas ou permanncias relevantes no desenvolvimento do trabalho ou no

    perfil das turmas. O objetivo foi procurar conhecer melhor o critrio utilizado pelos

    professores para definir os alunos com mais dificuldades de compreenso. Outro objetivo

    foi o de compreender mais detalhadamente em que prticas se localizavam suas

    dificuldades, realizando com eles (individualmente e de forma comentada) atividades que o

    professor realizaria com a turma inteira (durante duas semanas). Retornei escola aindaem outubro, para a reunio de conselho de classe e em dezembro daquele ano, para

    reunies com os alunos. Nesse momento, ofereci retorno dos questionrios e conversei

    sobre suas respostas, fazendo mais algumas perguntas em busca de maior clareza sobre

    alguns aspectos.

    ***

    Contei com a importante colaborao de quatro auxiliares de pesquisa, dois em

    cada escola, j que precisava acompanhar as aulas de turmas diferentes simultaneamente

    (at trs ao mesmo tempo). Alm disso, o nmero de transcries de aulas era

    extremamente alto e fundamental para a anlise da interao verbal entre professor e aluno.

    Dessa maneira, no CEIM contei com a colaborao de Pollyana Silva de Assumpo e de

    Leonardo Pereira Reis. Na EMEM os auxiliares foram Suzanne Amncio Azevedo eTatiana Almeida Costa. Todos esses auxiliares so ou foram alunos do curso de formao

    de professores de Histria, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, passando por um

    perodo de preparao, reunies e acertos da pesquisa17. Ainda contei com a colaborao

    de Daniele de Lima Tavares18na transcrio de fitas, na fase final do trabalho.

    17Leitura prvia de projeto para informao sobre a proposta, reunies para orientao sobre procedimentos

    da pesquisa, registro de dirio de campo e formulrio de protocolo, orientao sobre transcrio ao longo doprocesso. Reunies para troca de impresses sobre a pesquisa de campo.18Mestranda do Programa de Ps-Graduao de Educao da UFF.

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    Por ltimo, registro que, em ambas as escolas, procurei acompanhar quatro turmas

    de ensino fundamental, uma de cada srie (O CEIM distribui quase regularmente uma srie

    para cada professor). A realidade da pesquisa, entretanto, estabelece seus contornos finais.

    No CEIM uma professora, a da stima srie, no concordou em participar da pesquisa.

    Assim, nessa escola ficamos com duas quintas sries, uma sexta e uma oitava. Na EMEM

    no havia turma de oitava srie e a pesquisa ocorreu em trs sries. Ao final, a pesquisa se

    realizou com sete turmas: trs de quinta srie, duas de sexta, uma de stima e uma de

    oitava. Por conta da repetio de professores em algumas turmas, o nmero de professores

    ficou em trs na escola pblica e dois na escola particular, totalizando cinco professores.

    Acompanhamos tambm as aulas de outras disciplinas que acontecessem

    imediatamente antes ou depois da aula de Histria, visando perceber a permanncia oumudana de qualquer ordem que partisse do professor ou da turma na relao de ensino. O

    material de pesquisa relativo a essa observao foi excludo da pesquisa por conta do

    escopo da tese e ser aproveitado em outros trabalhos.

    Aqui e ali, cito casos de um outro campo, que o de minha experincia cotidiana

    como professora de Prtica de Ensino, em que freqento escolas pblicas (de Niteri e So

    Gonalo) e eventualmente de outra experincia, que de professora das sries iniciais do

    Ensino Fundamental em outra escola. O registro dessas incurses isoladas em outroscampos tem me permitido perceber identidades e diferenas entre escolas da rede pblica,

    bem como entre atuaes de professores e de alunos. Isso contribuiu para que escolhesse

    com cuidado e critrio as escolas em que iria realizar a pesquisa, o que ser esclarecido

    oportunamente.

    A tentativa de, na medida do possvel, me estabelecer sem uma funo alm da de

    observadora, foi uma tarefa difcil. As professoras da escola logo tentavam me associar,

    diante dos alunos, identidade de professora:Esta a professora Helenice, que veio fazeruma pesquisa na escola. Ocorre que, ser identificada como professora, em uma escola

    pblica como aquela em que eu chegava, poderia ser mau negcio. Pelo distanciamento

    emocional de muitos professores e o investimento que faziam em sua autoridade, essa

    identificao com a imagem de professor no seria o melhor lugar para mim. Se fosse

    associada a eles, possivelmente teria que assumir esse mesmo lugar, junto aos alunos.

    Mesmo buscando romper com essa tendncia, houve aproximaes e

    distanciamentos de alunos, decorrentes de momentos em que professores me pediram para

    ficar em seu lugar na sala, e eu tive que fazer algumas negociaes para no colocar a

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    pesquisa a perder. Uma identificao com que no consegui romper satisfatoriamente, pois

    ela respondia defesa da intimidade cultural dos professores19, foi com a depesquisadora

    que no conhece a realidade da escola e que est ali para avaliar o trabalho dos

    professores, mesmo procurando afirmar os objetivos da pesquisa20.

    Em pesquisas de campo de inspirao etnogrfica, a identificao do pesquisador

    com um grupo acusatrio situao comum. Cabe ao pesquisador demonstrar habilidade

    para superar situaes que possam comprometer seu trabalho. Seguramente, nem sempre

    tive toda a habilidade necessria, mas a pesquisa chegou ao fim. Esta uma questo para a

    pesquisa em Educao que necessita ser mais refletida para que se consiga, sem

    falseamentos, mas tambm sem desgastes desnecessrios, avanar no conhecimento sobre

    a educao escolar existente e a necessria, especialmente para os alunos da escola pblica.O conjunto do trabalho de campo est registrado em dois relatrios parciais 21, em

    que apresentada a anlise de uma aula de cada turma acompanhada. Em cada relatrio

    tambm constam snteses de questionrios respondidos pelos alunos dessas turmas22, como

    anexos, que sero citados na tese. Os professores tambm responderam a questionrios23,

    que contriburam para dilogo mais informado na entrevista que realizamos posteriormente

    para elaborao de seus perfis, presentes nos relatrios e na tese.

    3 A estrutura da tese

    O trabalho est dividido em trs partes, precedidas pela Introduo e com uma

    Concluso Final. A Parte I formada apenas do Captulo 1. Nela, apresento as principais

    referncias terico-metodolgicas do trabalho, os debates relativos ao tema tratado e suas

    inter-relaes. Para isto, nesse captulo utilizo algumas falas emblemticas, ouvidas de

    algum dos professores diretamente participantes da pesquisa ou em meu cotidiano como

    19 Para Michael Herzfeld o senso-comum equivale a essa intimidade de que gozam os que vivem umamesma cultura (1997,1-37).20 Seguramente, outros pesquisadores que possuem uma identidade anterior com o campo no qual vorealizar sua pesquisa passam por problemas semelhantes.21Refiro-me ao 1 Relatrio Parcial de Pesquisa, relativo pesquisa n CEIM (RPP1) e ao 2 Relatrio Parcial

    de Pesquisa, relativo pesquisa na EMEM (RPP2).22V. ANEXO 2.23V. ANEXO 3.

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    professora de Prtica de Ensino, lugar de onde saiu o desafio inicial da tese. Este captulo

    completado por dois pequenos estudos tericos que dialogam com algumas idias que

    atravessam a tese: a da relao entre a oralidade e escrita, envolvendo o valor da escrita no

    desenvolvimento da noo de pessoa ocidental e a da disciplina escolar Histria no

    processo de letramento dos alunos do Ensino Fundamental.

    Na Parte II, inicialmente apresento as noes que sero fundamentais para esta

    parte da tese, ou seja, a opo metodolgica do trabalho de campo, que me orientou na

    pesquisa nas escolas e posteriormente, na anlise do material registrado e recolhido. A

    busca de um caminho para operar com as noes essenciais me levou etnografia, que

    detalho ali. No Captulo 2, apresento a descrio e anlise da primeira escola

    acompanhada na pesquisa, o CEIM. No Captulo 3, apresento a segunda escola, a EMEM.Cada captulo completado por um apndice constitudo por Quadros de Normas e

    Prticas em funcionamento para professores e alunos de ambas as escolas.

    Na Parte III, inicialmente apresento algumas noes necessrias para a anlise das

    prticas de linguagem que ocorrer nos Captulos 4, 5 e 6. No Captulo 4, analiso algumas

    prticas que denomino atos de linguagem, que compem a miudeza ou o ordinrio da

    rotina da aula.

    No Captulo 5, aps apresentar a sntese das aulas e atividades de cada turma emcada escola, no final do captulo apresento APNDICEScom quadros em que descrevo

    sucintamente essas atividades e o conjunto de aulas que serve de base para uma anlise do

    circuito de atividades da aula. Destaco que, nesse captulo, de carter auxiliar aos demais,

    as informaes presentes no texto, relativas s turmas separadamente, se articulam s

    informaes existentes nos apndices, devendo ser lidas paralelamente, texto e quadro.

    Finalmente, no Captulo 6, apresento as prticas orais e escritas que compem o

    ncleo da aula, naquilo que se refere apresentao do conhecimento histrico escolar.Ali, analiso sete interaes que envolvem exposies orais ou registros escritos em

    determinados gneros do discurso e sua explorao, bem como procuro observar a

    responsividade existente, especialmente na escrita de alunos, em suas avaliaes.

    Na Concluso Final, procuro recuperar algumas concluses parciais presentes nos

    captulos da tese, relacionando-as aos objetivos estabelecidos inicialmente. Tambm

    procuro observar em qu a pesquisa extrapolou esses objetivos.

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    PARTE I

    No percurso da pesquisa

    entrei por uma histria e sa pela outra...

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    CAPTULO 1

    O enfrentamento do problema e seus desafios

    A ltima unidade de trabalho, a ltima aula da pesquisa

    Nesse dia da semana, acontece apenas uma hora-aula de Histria na quinta srie e aprofessora entra na sala com 25 minutos de atraso, devido prova que aplicara na turma de sextasrie.

    Adriana d incio aula, anunciando que comear um novo assunto: Roma Antiga.Ento, ela pede que todos os alunos escrevam nos seus cadernos o ttulo do novo assunto e abramo livro didtico no captulo 8. Anuncia que a ltima unidade de trabalho.

    A apresentao do tema ocorre com o apoio do livro didtico e a aula conta com aparticipao de quase toda a turma, mas tambm com conversas paralelas e uma certa dispersodos alunos.

    [...]P: Olha, agora ns vamos, ns vamos analisar as gravuras e

    o captulo, na verdade, o captulo 8. As gravuras e a diviso, euquero que vocs observem a pra vocs se introduzirem no assunto.O captulo 8, olha o ttulo Roma, das origens Repblica. Ento,

    como o ttulo t dizendo, ns vamos comear estudando as origensde Roma, isso quer dizer o qu?A: Da onde vem.P: Como que Roma...?Alunos: ...surgiu.P: Surgiu, n? A tem um mapa embaixo, na pgina 110.

    Vo acompanhando gente. Tem gente que no t acompanhando,no.

    [...]

    A professora pede que faam a leitura silenciosa de uma parte do captulo. Logo aps,

    pergunta o que eles entenderam e pede que contem com as suas prprias palavras. Destaca algunsaspectos como ttulos e imagens, antecipando o prosseguimento da leitura. [...]

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    A professora se ausenta rapidamente, pois tem que levar alguns trabalhos da MostraPedaggica a outro espao da escola. Com a sua volta, termina o tempo da aula e a professoraanuncia a atividade de casa.

    (EMEM, 5 srie, 25/10/2004,DC.1)

    1.1 A aula de Histria como espao de observao

    Estarei retornando a esta breve aula em alguns trechos desta tese, por conta do queapresenta de recorrente em uma aula de Histria. Recolhi um mar de indcios em cada

    escola e em muitas aulas de Histria. Esses indcios precisavam ser interpretados a partir

    de referenciais especficos. Nos prximos itens apresento o contexto dos estudos sobre o

    ensino de Histria e o que tiveram a contribuir direta ou indiretamente para a organizao

    dos referenciais que orientaram sua escolha. Em seguida, apresento outros estudos, da rea

    da linguagem e/ou das pesquisas sobre o ensino, com objetivo semelhante: apresentar o

    dilogo estabelecido com eles na organizao de referenciais especficos.

    1.1.1 As pesquisas no ensino de Histria

    Uma breve reviso de literatura acerca do ensino de Histria a partir da dcada de

    noventa, evidencia que, aps a redemocratizao, os estudos sobre este tema se voltaram

    especialmente para o estudo dos currculos e sua reformulao2. Thais Nivia de L.

    Fonseca, em levantamento realizado em peridicos, dissertaes e teses, no perodo entre

    1988 e 2002, afirma que 66% desses trabalhos tratam desse tema (2003, 30). A orientao

    desses estudos, logo aps a redemocratizao do pas, parecia estar pautada na

    compreenso de que, com a mudana necessria dos currculos formais, mudariam os

    currculos em ao (Moreira, 1997, 9-13).

    1

    Foi realizada uma montagem entre parte do registro de dirio de campo e um trecho da transcrio dessaaula.2Cf. Cruz (1988); Alcntara (1995); Siman (1996); Martins (1996).

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    Outra tendncia, no necessariamente posterior, foi aquela relativa a diferentes

    abordagens dos livros didticos de Histria. desde o enfoque ideolgico at o do papel do

    mercado editorial sobre as caractersticas dessas publicaes. Essa diversidade de

    abordagens esteve vinculada riqueza dos debates ocorridos nas pesquisas em Educao,

    em que a viso preponderante ainda atribua ao texto escrito uma influncia por demais

    poderosa, ignorando a existncia de um espao de apropriao por parte dos professores e

    alunos como leitores. Os trabalhos mais recentes sobre o livro didtico como parte de uma

    prtica de linguagem, que procuram incorporar a complexidade do leitor, se aproximam da

    discusso desta tese, ao se propor a pensar como os livros didticos entram no circuito das

    prticas de linguagem e do ensino3. Ao analisarmos essas prticas trataremos desses

    referenciais.Ana Maria Monteiro registra a existncia de outra vertente nos estudos sobre o

    ensino de Histria, ainda na dcada de noventa, que rene os estudos que buscam

    investigar a relao entre o ensino de Histria e a imposio de uma certa viso de mundo

    ou de sociedade4. Segundo a autora, esses trabalhos esto referenciados na historiografia e

    buscam analisar a lgica da construo ideolgica realizada, tendo como pano de fundo o

    contexto histrico e os interesses em jogo (2002, 21). Fonseca tambm registra a existncia

    desses trabalhos, mostrando que, em muitos deles, so realizadas vinculaes entre oensino de Histria e a trajetria da historiografia, com a justaposio ou com a oposio

    entre ambas, com claro valor positivo atribudo segunda. Conforme apresentarei adiante,

    a concepo de um valor positivo ao saber acadmico em contraposio ao saber escolar

    no cabe neste trabalho, por conta da relao j estabelecida entre linguagem e

    conhecimento, bem como pela compreenso de que as injunes ou constries sobre cada

    um desses campos so diferenciadas.

    interessante observar que ambos os movimentos de pesquisa se concentram sobrefontes escritas e se restringem ao espao exterior ao da sala de aula, excluindo as prticas

    efetivas do professor e do aluno na escola, diante de inmeras presses e exigncias, alm

    de limitaes. Na virada do sculo XX para o XXI houve uma reflexo nas prprias

    pesquisas sobre o ensino acerca de suas tendncias. Considero emblemtico o ttulo da

    dissertao Quando a teoria inventa a prtica: os discursos de renovao frente ao ensino

    tradicional de Histria, de Mauricio Liberal. Nesse trabalho, o autor questiona a tendncia

    3Cf. Bittencourt (1996); Munakata (1997); Gatti Jnior (2004).4Cf. Abud (1998); Almeida (1998); Cerri (1998).

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    crtica e a normatividade sobre o ensino de Histria vindas da Educao e, eu diria, da

    prpria Histria (2003).

    Nesse momento, as pesquisas sobre o ensino se diversificam e na rea de Histria

    podemos conhecer trabalhos que vo tratar dos saberes docentes do professor de Histria,

    como o de Ana Maria Monteiro (2002). Este trabalho realizado na escola e parcialmente

    na sala de aula, baseando-se parcialmente em entrevistas dos professores pesquisados, e o

    critrio para a definio dos professores o reconhecimento de seu sucesso e sua

    experincia. A pesquisa se d na busca de esclarecimentos acerca dos saberes docentes,

    atravs do conhecimento das prticas e trajetrias desses professores, interrogando-se em

    especial acerca da tendncia de os professores de Histria encaminharem suas aulas

    atravs da aula expositiva, mesmo quando pretendem formar alunos crticos eparticipativos. Ou seja, tangencia questes relativas linguagem, mesmo no focalizando

    diretamente este objeto. Entretanto, a autora parece estar intrigada com a persistncia do

    ensino expositivo ou magistral da Histria, enquanto aqui no esse o foco, ou problema

    colocado.

    Outros trabalhos vo se dedicar ao conhecimento histrico escolar com a

    preocupao sobre o seu aspecto de conhecimento social ou acadmico modificado ou de

    transposio didtica, como o de Carmen Gabriel Anhorn (2003). Apesar do lugarhierarquizado para os conhecimentos acadmicos e escolares previsto na teoria da

    transposio didtica, no trabalho a autora estabelece relaes produtivas entre o ensino

    de Histria e a linguagem, e prope a importncia do dilogo ou debate entre o que

    denomina de Razo Pedaggica com a Razo Histrica, saber mais valorizado na

    formao do professor de Histria. Destaco que este trabalho tambm teve a insero

    parcial do pesquisador em sala de aula, mas ela foi secundria na proposta, que teve

    outras formas de acesso ao seu objetivo. Como tratava dos PCNs como uma esfera dadidatizao dos saberes, era a fonte escrita seu principal material de anlise.

    Paralelamente pesquisa sobre o ensino de Histria hoje, uma vertente dos

    trabalhos em Histria da Educao vem investindo em pesquisas sobre prticas escolares

    a partir da categoria de anlise cultura escolar, que tem se mostrado produtiva nessa rea

    e em pleno debate dos especialistas, no sentido de seu aperfeiamento5. Propostas como a

    apresentada por Fonseca, que relaciona representaes, materiais de leitura e o ensino de

    Histria, parecem ser um caminho produtivo para a pesquisa acerca das apropriaes do

    5Essa noo ser explorada no prximo captulo.

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    conhecimento histrico na linguagem, inclusive na contemporaneidade (2003). Estarei

    incorporando algumas das pistas fornecidas por esses trabalhos nesta tese6.

    Como possvel concluir, de acordo com a pesquisa realizada at 2003 para

    iniciar esta tese, no encontrei trabalhos na rea especfica de ensino de Histria que

    contribussem alm do que evidenciei aqui para o encaminhamento da pesquisa em torno

    do problema colocado. Evidentemente, o que est plantado no territrio sobre o tema

    funciona, no plano do conhecimento, como o solo sobre o qual se caminha. Assim, fui em

    busca, especialmente na rea de Estudos da Linguagem e em pesquisas sobre o ensino, de

    outras referncias para estabelecer os pressupostos e categorias que permitissem organizar

    o mar de indcios j citado.

    1.1.2 As pesquisas acerca da interao no ensino

    A interao em sala de aula tema de muitas pesquisas em educao. Ana Luiza

    B.Smolka afirma que muitos textos se propem a trabalhar dentro do espectro desta noo,

    existindo ao menos quatro tendncias para sua orientao (1997). Descreverei brevementeessas tendncias para esclarecer um pouco mais o caminho a seguir, pelo contraste.

    A primeira tendncia seria a cognitivista, cuja preocupao central est nos

    aspectos relativos ao desenvolvimento cognitivo. Se realiza em estudos empricos,

    conduzida por psiclogos e pedagogos que exploram as relaes ensino/aprendizagem

    analisando relaes professor/aluno ou aluno/aluno em situaes controladas de pesquisa.

    A segunda tendncia efetivamente interacionista no sentido das cincias sociais,

    tambm de estudos empricos desenvolvidos por antroplogos, etnometodlogos,

    socilogos, e sociolinguistas, que priorizam as formas de organizao social do

    comportamento nas salas de aula. Para isto, realizam observaes participantes7.

    A terceira tendncia tem carter terico, pois est preocupada com as relaes

    escola/sociedade e apresenta, previamente anlise, categorias relacionadas ao macro-

    6 Dominique Julia e Luciano Mendes Faria Filho (2001;2004).7

    Vale esclarecer que a observao participante na etnografia no necessariamente interacionista, sendo essaapenas uma possibilidade, de acordo com a relao predominante que se estabelece para o agente ou sujeitosocial em relao ao.

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    social que explicam os problemas e relaes entre elas (controle, reproduo,

    transformao scio-cultural).

    Por ltimo, Smolka apresenta uma tendncia que busca trabalhar com o emprico e

    com o terico, agregando questes relacionadas teoria e prtica da escola. Para isto,

    busca articular as dimenses micro e macro da instituio escolar. Afirma que esto sob

    esta tendncia os estudos que se desenvolvem a partir dos pressupostos terico-

    metodolgicos da perspectiva scio-histrica.

    A autora, j em 97, diagnosticava serem predominantes os trabalhos da primeira e

    terceira tendncia. E registrava a existncia de trabalhos que priorizavam a linguagem

    como interao, que podem ser situados na quarta tendncia, apesar de no completamente

    sob a perspectiva scio-historica.Efetivamente, o que assistimos um cruzamento muito grande de influncias, pois

    como pesquisadores possumos objetivos relacionados educao e vamos buscar em

    outras reas de conhecimento instrumentos, conceitos e noes para realizarmos nosso

    intento. Sendo o campo da Educao sujeito a essa busca de referncias em diferentes

    reas, pode ocorrer (o que parece de fato existir), uma fragmentao e cruzamento de

    referncias8.

    Assim, o trabalho que apresento, como se poder perceber, buscou referncias naetnografia por trabalhar com prticas escolares de linguagem, formas de organizao da

    aula de Histria e por estabelecer, em relao ao pensamento do professor sobre o aluno,

    um estatuto de teoria, no sentido de conformar categorias nativas que merecem ser levadas

    a srio, nem mais nem menos que uma categoria cientfica, no sentido de lhe servirem

    como explicaes e orientaes no mundo. Ademais, trabalhei com a idia de que no

    apenas o macro-social, mas o que acontece cotidianamente na escola relevante9,

    adotando a inspirao etnogrfica tambm neste sentido, de buscar as inter-relaes entre ofuncionamento e organizao da escola como um todo (e no s o funcionamento

    institucional stricto sensu) e a aula de Histria. Mas no um trabalho etnogrfico, no

    sentido de ter como finalidade produzir uma etnografia. Eu buscava o lugar da linguagem

    8 Atualmente todos os campos de conhecimento esto sujeitos a essas buscas. Entretanto, a pesquisa emEducao est mais sujeita a essas interfaces. A partir de Pierre Bourdieu, podemos afirmar que ela umcampo dominado nas relaes de poder existentes no campo acadmico (1983,89-94).9

    Essa proposta se aproxima do que se denomina na histria de micro-anlise, ou micro-histria, que noestou utilizando pela homonnia nos estudos em educao com a anlise de episdios de interao em umnvel micro, que no o objetivo aqui.

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    nas prticas de linguagem pensando em um problema colocado pelos professores.

    Esclarecer este problema no saiu de meu horizonte de educadora.

    Dessa maneira, entendo que a quarta tendncia abordada por Smolka pode assumir

    a forma de interao como discurso, apresentada por Roxane Rojo, em que no se dissocia

    interao, discurso e conhecimento, e cuja base de anlise essencialmente a linguagem e

    no a interao ou os conceitos10, o que tambm no impede de agregar elementos da

    segunda tendncia, medida que contribuem para atingir os objetivos apresentados.

    1.1.3 As relaes de ensino

    Na dcada de noventa, especialmente sob a inspirao da teoria de Vygotsky, Ana

    L. B. Smolka e posteriormente Roseli A. C. Fontana apresentam a proposta terica de

    exame da interao discursiva que ocorre na aula na perspectiva das relaes de ensino

    (1993,30;1993,127). Smolka refere-se a tais relaes como aquelas que implicam quem

    ensina, o que ensina, para quem ensina e onde ensina, relacionando tais perguntas

    relao pedaggica e sua iluso11

    . A segunda autora avana na formulao, afirmando queas condies concretas da atividade da criana dizem respeito s relaes de conhecimento

    produzidas na sala de aula e que, consideradas em sua especificidade, caracterizam-se

    como relaes de ensino.

    Prosseguindo, Fontana afirma que a finalidade imediata dessas relaes ensinar e

    aprender o saber social historicamente produzido, sistematizado e acumulado, sendo

    explcitas para seus participantes (professor e alunos), cada qual em sua posio

    hierrquica e socialmente definida (1993, 127). A partir desses pressupostos, a autora

    compreende que as caractersticas da relao de ensino como ao intencional de formao

    ideolgica e a hierarquizao dos lugares ocupados pelos interlocutores, juntamente com a

    intencionalidade explcita da ao pedaggica, levam a que a aula seja um espao que

    mediatiza interesses antagnicos: o acesso efetivo ao conhecimento historicamente

    produzido e sua articulao aos interesses de classe dos interlocutores (1993,128).

    10 Roxane Rojo, em trabalho de 1998, apresenta uma outra grade de classificao para a interao, quecondensa a proposta por Smolka: uma vertente cognitivista; outra interacionista e uma discursiva, que estou

    associando quarta tendncia proposta por Smolka.11 A autora respalda sua proposta, alm do referencial explicitado, na anlise de discurso francesa, quetrabalha com a perspectiva da iluso do sujeito.

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    Conforme indiquei na introduo, a linguagem compreendida como ao

    constitutiva implica consider-la na interao, mas tambm coloca outras questes, pois o

    conhecimento ao qual se busca ter acesso discurso que se estrutura como organizao da

    experincia do real. Da que professores estruturem o conhecimento escolar a ser ensinado

    com diferenas relativas a formao acadmica, leituras, idiossincrasias... Alm disso, a

    viso apresentada por Fontana sugere que professores e alunos estejam necessariamente

    engajados na tarefa de ensinar e aprender, o que a vida na escola indica que nem sempre

    ocorre, como possvel perceber no breve relato da aula de Histria no incio do captulo.

    Esse conjunto de consideraes busca modalizar a adeso noo de relao de

    ensino de Histria tal como proposta pelas autoras citadas, enfatizando na categoria

    definida:

    Seus componentes : o professor, o aluno e o conhecimento histrico escolar em

    articulao;

    a constrio realizada por condies existentes em cada escola e/ou na rede

    escolar, que envolvem normas e prticas na escola e na aula, bem como condies

    materiais para seu funcionamento (como cultura escolar);

    a linguagem em prticas orais e escritas, que constitui a interao entre

    professor e aluno, bem como o prprio conhecimento histrico escolar.

    1.1.4 As relaes de ensino e outras abordagens

    Um estudo sobre o ensino de Lngua Portuguesa que evidenciou possuir

    preocupaes que se aproximam s deste trabalho o de Antonio A.G.Batista, no que serefere ao saber escolar. Nele, o autor apresentou como objetivo descrever os saberes

    transmitidos no processo de produo do discurso na aula de Portugus, explorando as

    relaes entre esses saberes e aqueles elementos das condies de produo do discurso

    ligados organizao do trabalho na sala de aula (1996, 22).

    Este estudo no estabelece relevncia para a interao no ensino, mas em sua

    concepo de linguagem (enquanto interao) e na nfase que a organizao do trabalho na

    aula adquire no texto, dialoga com a pesquisa realizada neste tese. Alm disso, fornecepistas no que se refere a uma economia da aula, em especial a economia docente, categoria

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    que se revelou importante a partir do trabalho de campo e que aprofundarei na Parte II.

    Apesar de se propor explicitamente a discutir o saber escolar especfico da disciplina

    Lngua Portuguesa, a obra contribui para uma reflexo sobre o saber disciplinar na escola e

    a dinmica e limitao para sua constituio na sala de aula, com as diferentes prticas

    estabelecidas na aula.

    Em relao pesquisa emprica, Batista realiza a observao e registro de 42 aulas

    de uma turma de 5 srie do 1 grau de escola pblica que atende s camadas populares,

    gravando e transcrevendo 16 dessas aulas para anlise em uma perspectiva discursiva.

    Recolheu para anlise grande parte do material didtico utilizado e apresenta e analisa na

    tese uma atividade do livro didtico. O autor procurou elementos das constries escolares

    e do sistema escolar na prpria aula. Demonstrou sensibilidade e conhecimento em relaoaos limites colocados pelos fatores escolares, apesar de no ter aprofundado a pesquisa em

    sua direo.

    Compreendo que o alerta que o autor realiza em relao s injunes da escola e do

    sistema escolar como fatores que constrangem a possibilidade de ao do professor uma

    contribuio efetiva, em relao a uma possvel viso romntica, espontanesta e

    messinica da educao escolar, sob a responsabilidade do professor. Entretanto,

    compreendo e defendo, como se poder conhecer ao longo do trabalho, que existemespaos para a ao do sujeito que o professor, que podemos denominar de autonomia

    docente. Na opo de conhecimento de uma diversidade de prticas, pelo contraste,

    possvel conhecer alguns desses espaos e as escolhas dos professores.

    Outra pesquisa, esta de maior amplitude, foi a fonte de muitas idias iniciais acerca

    da organizao possvel da pesquisa e tratamento de seus dados, que se realizaria com

    muitas turmas e precisaria ser relativamente estruturada. a pesquisa coordenada por

    Roxane Rojo, sob a chancela da FAPESP: Prticas de linguagem no ensino fundamental:Circulao e apropriao dos gneros do discurso e a construo do conhecimento

    (2002). Pesquisa de longa durao, realizada em uma escola da rede particular e em outra

    da rede pblica, ocorreu em turmas de diversas sries do Ensino Fundamental. Teve como

    referencial a Teoria Enunciativa j referida e deteve-se neste aspecto da relao de ensino,

    trabalhando a linguagem como discurso, conhecimento e interao. Apresenta dados

    relevantes acerca da linguagem no ensino das diferentes disciplinas curriculares, inclusive

    Histria, que trago para esta tese, e apresenta desdobramentos para a pesquisa e para o

    ensino das diferentes disciplinas.

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    1.2 Eles no conseguem compreender o contedo

    Aps ter explicado que no ter livros para os alunos da 6 srie no incio do ano,a professora informa que trabalhar com cpias xerox, que os alunos devero tirar no setorda escola. A professora escreve o resumo relativo ao contedo inicial de Roma Antiga noquadro de giz. Ao final da escrita, feita em silncio, pergunta:

    -O que t de errado nesse pargrafo aqui? Aqui, no final.Silncio na turma.- Aqui no final. S um minuto ....para ver se esse pessoal a... um erro muito grave.

    Eu cometi.Um aluno responde e ela retruca:- Continente africano no.

    Alguns alunos respondem:

    - Mediterrneo.O que que t errado em mediterrneo? Que que t errado? na grafia da palavra.

    O que que t errado aqui?-O acento?- No!- Os dois erres!-Mediterrneo um nome o qu?

    A turma responde. E a professora confirma:- Isso. Mediterrneo um nome prprio![...]

    (CEIM, turma 603, 12/03/2004)

    Batista aponta em seu trabalho que, em primeiro lugar, o que se ensina a norma

    gramatical, e como tal, se avalia e corrige (1996,74). Estar o ensino de Histria

    impregnado do mesmo sentido de normatizao e correo? Ser a correo orientadora do

    olhar que o professor dirige ao aluno que no compreende? O trecho transcrito acima

    sugere que sim. O domnio da lngua padro e de suas regras de escrita e notao surge

    como lugar de teste inicial na aula de Histria. E diferencia, aos olhos da professora,

    alguns alunos dos outros.

    O trecho apresentado acima visa aproximar o leitor da escola pblica pesquisada e

    de alguns de seus problemas, relacionados ao tema desta tese. Recupera o problema da

    linguagem e do conhecimento escolar na relao de ensino. Vale observar nesse trecho o

    investimento da professora na reproduo do material de leitura. Ela dedica boa parte de

    sua aula s prticas relativas falta desse material: naquele momento, precisou escrever

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    longamente no quadro e estabelecer um tempo proporcional para a cpia dos alunos12.

    Futuramente, contar com sua capacidade financeira de reproduo de materiais, como

    apostilas.

    1.2.1 Linguagem compreenso e interao na sala de aula

    A professora inicia suas aulas com a turma. Escreve no quadro. Pergunta que erro

    muito grave cometeu. Nesse ato, evidencia que ela cometeu o erro, portanto no ameaa osalunos. Mas, agora sim, ao responderem, eles podem errar. Assim, poucos alunos

    enfrentam a possibilidade de responder a pergunta da professora. Por outro lado, eles no

    conseguem enxergar esse erro to grave ao qual ela se refere. Inclusive porque a

    professora no explica de qual ordem o erro. Quando d a pista acerca da grafia, ouve o

    retorno: o acento? os dois erres? No isso. a letra maiscula do Mar Mediterrneo,

    cujo entorno foi conquistado pelos romanos em seu processo de expanso na Antiguidade.

    Mas no o significado relacionado ao assunto da aula de Histria que interessa para seu

    comeo e sim a letra maiscula que inicia a palavra escrita.

    Bakhtin afirma que no so palavras o que falamos, ouvimos, escrevemos ou

    lemos, mas verdades, ou mentiras, coisas boas ou ms, importantes ou triviais, agradveis

    ou desagradveis, etc. (1992,95). Quando a professora, ao acabar de escrever no quadro o

    resumo, investe apenas no erro notacional de uma palavra, ela estabelece o lugar que as

    palavras do texto teriam na interao dali por diante: apenas o lugar de palavras.

    Para o mesmo autor, o sentido aquilo que responde a uma pergunta ou

    interrogao (2003, 381). Assim, o sentido teria um carter responsivo. A compreenso

    aconteceria neste processo de constituio de sentido para perguntas e respostas. Conforme

    Bakhtin, toda compreenso concreta ativa (1998, 90):

    ...ela [a vida real do discurso falado] liga o que deve ser compreendido ao seu prpriocrculo[...], ela [a resposta] cria o terreno favorvel compreenso de maneira dinmica einteressada. A compreenso amadurece apenas na resposta.

    12O texto referido ser um dos analisados adiante.

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    Ele afirma que vivemos em um mundo com palavras do outro. E toda nossa vida

    orientada em direo s palavras desse outro. Reagimos e assimilamos suas palavras e

    integramos riquezas da cultura humana (seja em linguagem verbal ou em outro material

    semitico). O autor aponta a complexidade das relaes de reciprocidade com a palavra do

    outro em todos os campos da cultura e da atividade humana (2003,379). A partir dessa

    complexidade, ser possvel perceber no discurso do professor e do aluno a

    heterogeneidade existente na origem de suas falas.

    Estaria a Histria ensinada, em escolas que atendem a diferentes segmentos sociais,

    conseguindo provocar perguntas nas relaes de ensino? Compreendo que os problemas da

    relao de ensino de Histria esto pautados no que ocorre na interao entre a palavra do

    professor e a palavra do aluno, em que so constitudos, ou no, sentidos para oconhecimento histrico escolar. Como proposio/valor que atribui sentido na interao,

    ou seja, na dialogicidade, Bakhtin contribui centralmente para a questo posta nesta tese

    quando prope que a compreenso ocorre no terreno da interao (1998,90):

    ...toda compreenso concreta ativa: ela liga o que deve ser compreendido ao seuprprio crculo (do que ouve)[...] Em certo sentido, o primado pertence justamente resposta,como princpio ativo: ela cria o terreno favorvel compreenso de maneira dinmica einteressada. A compreenso amadurece apenas na resposta.

    [...][...] Desse modo, a compreenso ativa somando-se quilo que compreendido no

    novo crculo do que se compreende, determina uma srie de inter-relaes complexas, deconsonncias e multissonncias com o compreendido, enriquece-o de novos elementos. [...] Ofalante tende a orientar o seu discurso, com o seu crculo determinante, para o crculo alheio dequem o compreende, entrando em relao dialgica com os aspectos deste mbito. O locutorpenetra no horizonte alheio de seu ouvinte, constri a sua enunciao no territrio de outrem,sobre o fundo aperceptivo do seu ouvinte.

    [...]

    O autor prope um ouvinte que elabora o que ouve juntamente com o falante. Ou

    seja, ambos produzem sentidos a partir de seus crculos de sentidos prvios (1998,88).

    Refere-se a uma resposta do ouvinte, que tem o primado do sentido. A responsividade ser

    um dos focos de anlise das aulas, quando professores fazem perguntas, retricas, ou no,

    preparam atividades de diferentes tipos pensando (ou no) nos alunos que tm. E quando

    alunos, s vezes, respondem a partir dessas perguntas.

    atravs da interao que Bakhtin percebe os sujeitos se constituindo na

    assimilao da palavra do outro. No caso desta tese, tanto o aluno, quanto o professor.

    Assim, na arquitetura bakhtiniana, a dialogicidade, a interao com diferentes linguagens

    sociais, a base da constituio subjetiva. Ou seja, os sujeitos e a linguagem na qual e

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    pela qual interagem so histricos, no esto prontos, o que afeta a estabilidade de

    sentidos: nem todos compreendem a mesma coisa a cada tempo, e nem mesmo cada um

    entender a seu modo algo dito pelo outro13, em diferentes tempos.

    Para Bakhtin, portanto, a dialogicidade est posta no necessariamente quando h

    interao face-a-face, mas quando se estabelece a responsividade de um (seja em

    pensamento, em ao, ou em fala) em relao ao dizer do outro (seja esse dizer escrito, ou

    falado). Essa responsividade demarcada pela situao, como as situaes de interao

    em sala de aula j apresentadas aqui e pelo contexto social mais amplo.

    Pensar lembrar compreender: teorias da mente

    Quando professores recm-formados so contratados pela rede pblica

    desenvolvem idias e prticas sobre os alunos, suas possibilidades e limites em relao ao

    aprender: tm um aluno em sua mente. o aluno de carne, osso, sangue e cabea cheia de

    idias da sua vida vivida em seu prprio meio? Ou um aluno cognoscente, que

    corresponde expectativa do professor de pessoa racional e letrada, pronta para receberoscontedos programticosda maneira que o professor aprendeu a fazer, ouvindo e falando,

    lendo e escrevendo certaHistria?

    Possivelmente a resposta a essa pergunta no simples nem uma s, pois os

    professores tambm so diversos. Mas a pergunta apresenta um problema que me levou a

    buscar conhecer as idias de professores sobre seus alunos e sobre suas formas de pensar.

    Ou seja, como professores os vem, partindo do pressuposto de que essas idias seriam um

    dos fatores relevantes na definio de sua forma de interagir com eles nas relaes deensino, quando a interao est pautada a partir de sua avaliao sobre o outro.

    Na Psicologia Cultural, de acordo com Jerome Bruner, tais teorias so denominadas

    de teorias de si e dos outros, ou teorias da mente, porque se referem aos atos relativos ao

    pensamento: compreender, pensar, crer, prestar ateno, lembrar (2000, 142). Bruner alerta

    que, apesar da denominao de teoria, a expresso verbal sobre o pensamento tem muito

    mais a ver, na vida cotidiana, com pressuposies tcitas que com teorias distanciadas e

    refletidas.13Conforme destaca Wanderley Geraldi, a respeito da historicidade da linguagem (1993,5).

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    De fato, na pesquisa de campo, ao conversar com professores sobre o pensamento

    de alunos, eles elaboravam com poucas palavras, constatando a no compreenso, a falta

    de memria e atribuindo m alfabetizao (escolarizao deficiente), ou origem

    familiar (cultural ou material) o problema da compreenso. Quem expressava opinio

    contrria, afirmava os alunos daqui tm bagagem, de forma vaga. Essas definies

    concretizam o conhecimento tcito formulado por Bruner, que orienta os professores no

    seu dia-a-dia.

    Em relao ao campo da pesquisa, Bruner adverte que toda teoria da mente

    necessita ser examinada luz de uma trade: uma perspectiva terica, um discurso sobre a

    mente (que seria uma fonte observvel do pensamento, j que no podemos acess-lo) e

    um contexto de cultura, que daria sentido ao que foi dito sobre o pensamento. Concordoparcialmente com o autor. Entendo que a teoria da mente, enquanto teoria de si, faz parte

    da noo de pessoa que se tem em uma dada cultura, conforme veremos a seguir. A

    questo surge quando o autor restringe a concretizao do pensamento linguagem verbal.

    Concordo que a linguagem (verbal) o espao por excelncia de organizao e

    concretizao do pensamento. Mas, nem sempre a linguagem verbal explica pensamento e

    ao no verbal. Assim, defendo que a ao tambm organiza e exprime o pensamento,

    nem sempre havendo coerncia necessria entre essas trs esferas da vida da pessoa: opensar, o falar e o agir.

    Exemplifico com observaes da pesquisa. H aes que no recebem explicao

    espontnea do professor que, se chamado a verbalizar o motivo de realiz-las, parece criar,

    s vezes, o motivo depois da ao realizada, como justificativa para o pesquisador. o

    caso da busca do contato corporal de alguns professores com os alunos (passar as mos na

    cabea ou acarinhar braos ou mos), a forma de entrar em sala e iniciar a aula,

    determinadas maneiras de encadear a aula, contando uma piada ou apenas fazendo umapausa. Assim, algumas aes ou atitudes do professor parecem se resolver em nvel da

    prpria ao ou atitude, de forma intuitiva. Ao serem indagados, os professores respondem

    no terem aprendido ou formulado teoricamente tais saberes e, sim, na prpria prtica.

    Maurice Tardif et alcolocam tais prticas no rol dos saberes14da experincia do

    professor, mas tambm pretendem uma abordagem apenas discursiva e explicativa para sua

    confirmao como saberes (1991). Apresentarei esta questo e a alternativa adotada nesta

    tese para o problema metodolgico na introduo segunda parte.

    14Aqui comeo a estabelecer uma distino entre conhecimentos e saberes que esclarecerei adiante.

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    Algum que no compreende uma pessoa?

    Se a teoria da mente d conta de uma parte da viso que o professor tem do aluno,

    efetivamente ele no v apenas o ser cognoscente. Assim, me parece mais interessante

    ampliar o espectro conceitual de teoria da mente para a noo de pessoa e a de teoria

    nativa, trazidas do campo da Antropologia. Neste caso especfico, considero que a noo

    de pessoa contribui para a reflexo colocada aqui, do professor que pensa sobre como so

    seus alunos a partir de suas prprias referncias de pessoa e a ento, a partir da distncia

    que percebe entre essas referncias e o aluno real, estabelece as formas de interao

    possveis.

    Segundo Clifford Geertz, fazer antropologia ... analisar as formas simblicas

    palavras, imagens, instituies, comportamentos em termos dos quais as pessoas se

    representam para si mesmos e para os outros (1997, 85). Para Anthony Seeger, Roberto

    da Matta e Viveiros de Castro, o termo pessoa um rtulo til para se descreverem as

    categorias nativas mais centrais aquelas que definem em que consistem os seres humanos

    (1979,6). Neste sentido, as teorias da mente seriam uma das formas simblicas de

    representar a pessoa, restrita ao campo cognitivo: compreender, lembrar, pensar...

    Geertz afirma que no apenas os antroplogos elaboram noes de pessoa. Segundoo autor, este seria um fenmeno universal, havendo diferenas profundas entre os

    diferentes grupos humanos, ao formular essa noo. Assim, a noo de pessoa uma

    teoria nativa, antes de ser um conceito caro aos antroplogos enquanto pesquisadores

    (1997,90). Segundo o artigo citado de Seeger et al, as sociedades ocidentais

    contemporneas construiriam sistematicamente uma noo de indivduo (uma verso

    ocidental da noo de pessoa) onde a vertente interna exaltada15(as categorias do pensar

    estariam nessa interioridade, precisando de externalizao).Aqui destaco a segunda noo da antropologia que trago para a tese: a de teoria

    nativa. Buscando um outro ponto de partida e de chegada, as idias, ou representaes16do

    15 Nas sociedades tribais, a noo de pessoa enfatiza o aspecto coletivo de sua existncia (Seeger et al,1979,4).16 A noo de representao objeto de muitos debates em diversos campos de conhecimento. Nestetrabalho, devido inclusive inspirao antropolgica que busquei, assumo a