A Posição do Parmênides nos diálogos de Platão - Hector Benoit
Tese Doutorado - O Poema de Parmênides e a Incisão Entre Ser e Devir
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sobre a verdade e as opinies: o Poema de Parmnides e a inciso entre ser e devir
Alexandre Costa
2010
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Sobre a verdade e as opinies: o Poema de Parmnides e a inciso entre ser e devir
Alexandre Costa
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Orientador: Fernando Jos de Santoro Moreira
Rio de Janeiro Maio de 2010
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Sobre a verdade e as opinies: o Poema de Parmnides e a inciso entre ser e devir
Alexandre Costa
Orientador: Fernando Jos de Santoro Moreira
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Filosofia, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutor em Filosofia.
Aprovada por: ____________________________________________ Prof. Dr. Fernando Jos de Santoro Moreira, UFRJ ________________________________________________ Prof. Dr. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues, UFRJ _____________________________________ Profa. Dra. Izabela Aquino Bocayuva, UERJ _______________________________________ Prof. Dr. Lus Felipe Bellintani Ribeiro, UFF ______________________________________________ Prof. Dr. Nestor-Luis Cordero, Universit de Rennes 1
Rio de Janeiro Maio de 2010
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AGRADECIMENTOS
Ao programa de Ps-graduao em Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF/IFCS/UFRJ) pela generosidade ao ter acolhido em carter excepcional o projeto de pesquisa que resultou nesta tese de doutorado; Ao orientador desta tese, professor Fernando Jos de Santoro Moreira, pela amizade e transigncia, aceitando orientar uma tese cuja interpretao acerca do Poema de Parmnides difere consideravelmente da sua; Ao professor Heribert Boeder, orientador da minha tese de doutorado na Universidade de Osnabrck, Alemanha, pela difcil convivncia que, entre concrdias e discrdias, valeu-me como um mulo frtil especulao e crtica, aspectos decisivos na concepo deste trabalho; Ao professor Fernando Rodrigues que, como de hbito, mostrou-se sempre cordialmente disposto a auxiliar-me na resoluo dos mais diversos problemas e assuntos; professora Carmen Lucia Magalhes Paes, orientadora de um mestrado j longnquo mas nem por isso distante, que sequer imagina o quilate da sua presena no meu modo de (tentar) fazer filosofia; professora Mrcia Cavalcante Schuback, pelo dilogo de sempre; Ao professor Henrique Murachco, pelas reiteradas lies de grego; Pilar, que durante um belo tempo da gestao deste trabalho me foi o que o seu nome significa; Aos mais ntimos, por todos e nenhuns motivos: Amoreau, Bahia, Patri e PC; Ao carssimo Pedro Paulo, pelas cartas e pelas plantas; tambm Carlota e ao Chico; A algumas pessoas que foram especialmente importantes ao longo deste percurso: Ins, Carol, Sandra, Silvia, Liz, Luci e Gio; Anita, pela dinmica; Ana Flaksman, Luisa e Marquinhos; ngela, ao Leandro e ao Renato, amigos da filosofia; Olga, por duas valiosas conversas; Ao Portuga e tambm ao Victor, pelas discusses;
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Bete e Eva, pelo apoio sempre que foi necessrio; Mnica, pela relao entre os deuses gregos e os orixs; Aos meus amigos do grupo de Plato, Daniela, Helosa, Lcia, Meri, Paulo, Rui e Stella, por aturarem e escutarem com crtica pacincia os muitos paralelos que fao entre os dilogos platnicos e o Poema de Parmnides, tentando realar-lhes a diferena; Aos mais diversos alunos com quem tenho tido o prazer de ter contato; especialmente os da EDEM: Ana Chacel, Barata, Jack David, Jonas e Bruna, Jlia, Jlia Serran, Jlia Almeida, Lu, Mateus, Paula, Rafael, Salim e Sofia, dentre tantos outros igualmente importantes que mal souberam ter servido de cobaias s minhas interpretaes sobre o pensamento de Parmnides e que as aperfeioaram com uma incrvel dose de resistncia crtica para a idade que tinham poca, sem que por isso me fossem menos amveis; da mesma forma agradeo a alguns dos meus ex-alunos do IFCS (primeiro e segundo semestres de 2004 e 2005), que toleraram e avaliaram as primeiras exposies desta minha interpretao do Poema de Parmnides, ajudando-me a matur-la. Eles tiveram ouvido para tanto: Adriana, Eduardo, Marcelo, Marcos, Nathlia, Rafael e Vitor Mauro; minha me, minha av e aos meus irmos.
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RESUMO
COSTA, Alexandre da Silva. Sobre a verdade e as opinies: o Poema de Parmnides e a inciso entre ser e devir. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
O ponto de partida desta tese consiste em avaliar o Poema de Parmnides atravs da clivagem que lhe serve como principal orientao: a absoluta incompatibilidade entre verdade e opinies. a partir dela que se torna privilegiadamente possvel analisar a obra parmendica em sua integridade, na medida em que configura o gesto que determina a prpria estrutura tripartida do Poema. Essa incompatibilidade que cinde verdade e opinies de forma irreconcilivel depende, no entanto, de uma deciso de pensamento que a sustenta e que lhe anterior, servindo-lhe como fundamento a clara e distinta inciso entre ser e devir. Defende-se, deste modo, que o verbo ser aplica-se to-somente verdade, assim como o devir caracteriza as opinies, o que exige a pergunta: ao que se pode aplicar, ento, cada um desses verbos em sua restrita propriedade, uma vez imiscveis? Propondo uma nova semntica e mesmo uma nova gramtica para o verbo ser, a verdade parmendica e o ente de que trata sero aqui compreendidos como um artifcio e um exerccio de autonomia da linguagem, de uma linguagem, por conseguinte, necessariamente autoreferente; ao passo que a linguagem que se faz como uma fala acerca dos sensveis, aquela que se prope a responsabilidade de discorrer acerca do que costumamos nomear realidade sensvel, necessariamente plural e, portanto, opinativa. Verdade e opinies no so dois modos distintos de pensar o mesmo, mas modos distintos do pensar: o notico e o frentico, cabendo a cada uma dessas modulaes no apenas uma propriedade especfica de operar o pensamento e a linguagem, mas tambm a submisso quele que que determina o seu gnero e carter: o motivo pelo que se fazem, respectivamente, verdade e opinies deve-se justamente quilo sobre o que versam. No h verdade sobre o mundo, posto que este no , devm; plural e diverso, ele exige da linguagem a diversidade e a pluridade das opinies. Em contrapartida, s possvel verdade sobre o que no devm. E o que no devm? Seria pouco responder o ente. O desafio maior do Poema de Parmnides resulta em saber do que se diz quando se diz o ente. Que seja feita, finalmente, a pergunta: o que o ente?
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ABSTRACT
COSTA, Alexandre da Silva. Sobre a verdade e as opinies: o Poema de Parmnides e a inciso entre ser e devir. Rio de Janeiro, 2010. Tese (Doutorado em Filosofia) Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. The starting point of this thesis consists in evaluate Parmenides poem from the cleavage that primarily orientates it: the absolute incompatibility between truth and opinions. Starting from this cleavage, it is especially possible to analyze Parmenides work in its integrity, since it is the fundamental gesture that determinates the tripartite structure of the Poem. Nevertheless, the incompatibility that separates irreconcilably truth and opinions depends on a thought decision that supports it, and that must be anterior to it, and that serves as its foundation: the clear and distinct division between being and becoming. In this way, we support that the verb to be only apply to truth, just as to become characterize the opinions, which takes us to the question: since they are immiscible, to what may we apply each of these verbs in their restricted proprieties? Since it proposes a new semantics and even a new grammar to the verb to be, Parmenides truth and the being that it deals with will be understood here as a skillful making and an exercise of the autonomy of language, that is, of a necessarily self-referred language; on the other hand, the language that exists as the discourse about the sensibles, the one which has the responsibility of describing what we usually call the sensible reality, is necessarily plural, and in this way, opiniative. Truth and opinions are not two distinct ways of thinking the same reality, but two distinct ways of thought: the noetic and the phrenetic, each of these modulations depending not only on a specific mode in which thought and language operates, but also being submitted to that reality which determines its kind and character: the final reason by which truth and opinions are made depends exactly on that which they treat of. There is no truth about the world, since it is not, but becomes; plural and diverse, it demands from language the plurality and diversity of opinions. And what does not become? It would be too simple to answer the being. The major challenge of Parmenides Poem turns out to be to know what one says when one says the being. So, it must be put, finally, the question, what is being?
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SUMRIO
Introduo 10 1 A procedncia potica da filosofia de Parmnides 26 e a singularidade do carter divino do seu poema 2 Os dois caminhos de inquerimento e o caminho 44 das opinies dos tombados pela morte 3 O elo comum entre o caminho das opinies e o caminho 71 do no-ente: a dupla constituio da inverdade e a crti- ca tradio de pensamento dos primeiros tempos da filosofia 4 O caminho da petho: verdade e plenitude do ente 86 4. 1 Por uma breve genealogia desta interpretao 114 5 A distino entre doken e noen: as opinies dos mortais 125 em oposio verdade. A inevitabilidade das dokonta e a antropognica cosmologia parmendica Eplogo 159 Bibliografia 166
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A razo est sempre com dois lados
Candeia, Filosofia do samba
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Introduo
No que se refere filosofia de Parmnides, julgo que o primeiro tema a ser
considerado e analisado em seu poema diz respeito sua deciso pelo pensamento.
Refiro-me deciso que me parece a mais determinante de sua obra, aquela que a
orienta e a partir da qual ela se realiza: a filosofia parmendica vem a ser a primeira a
tomar explicitamente o prprio pensar como motivo do seu pensamento. Comeo,
pois, com uma afirmao de grande arrojo: o principal tema da obra do Eleata no o
ente, nem a verdade, nem as opinies, mas sim demonstrar as possibilidades do
pensamento atravs da avaliao do que significa pensar e da discriminao das
naturezas distintas que o pensamento pode assumir. Decidido pelo cumprimento dessa
tarefa, o filsofo acaba por desenvolver, inevitavelmente, os clebres conceitos acima
aludidos, idias ou conceitos pelos quais a sua obra justamente se destaca, sendo todos
eles, porm, desdobramentos correspondentes a essa questo e deciso primeiras;
correspondentes, portanto, s diferentes possibilidades internas do pensar e que por
isso e precisamente por isso vm a ser metodicamente desfiados e analisados ao
longo do poema: o ente, o no-ente, a verdade e as opinies referem-se s supracitadas
possibilidades de diferena.
Uma tal iniciativa lega a Parmnides a possibilidade de descobrir e expor as
diferenas internas ao prprio pensamento, diferenas que se situam menos na ordem
do contedo do que se pensa do que na ordem do modo como se pensa, ainda que os
possveis contedos de um pensamento estejam necessria e intimamente ligados
natureza ou ao carter de como se pensa.
Na medida em que o pensamento filosfico de Parmnides decide debruar-se
sobre o prprio pensamento, revela-se esta uma deciso que antecede sua realizao
sob a forma de obra: o que ali sempre j se encontra decidido e que, portanto, se
apresenta como a fora motora do poema parmendico, remete determinao (A) do
que se pode pensar; (B) do que se deve pensar e (C) de como pensar este que se deve
pensar. So esses que e como que prometem, uma vez identificados e reconhecidos, um
acesso privilegiado tanto motivao como ao contedo da filosofia de Parmnides.
Alm desses qu e como no se negligencie a outra diferenciao capital aqui em
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jogo, exatamente essa entre o que se pode e o que se deve pensar. Esses trs pontos,
juntamente s suas inevitveis implicaes, compem o tema desta tese.
A obra de Parmnides mostra-se como um daqueles casos em que se pode
reconhecer uma deciso e um movimento inicial do pensamento que j incluem o
preenchimento pleno da sua finalidade, o cumprimento do seu tlos. Esta disposio
provoca, inclusive, conseqncias formais na elaborao da obra, que se desenvolve e
se avoluma como se estivesse e de fato est em marcha, indo em direo de si
mesma no sentido de cumprir a tarefa e a promessa que a si mesma impe desde o seu
incio. Intimamente relacionado com essa disposio encontra-se o clebre promio do
poema parmendico, ao descrever o progresso de uma viagem em que a diferena entre
o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada indica uma transformao
radicalssima: aquela em que o pensar se despede de um saber que , de algum modo,
um no-saber, encaminhando-se paulatinamente consolidao de um saber efetivo,
batizado como verdadeiro. Com efeito, a viagem que nos relata a deusa descreve o
itinerrio da ignorncia verdade1.
Se causa espcie ou mesmo espanto o que at aqui exponho, ou se parece
incompreensvel o que aqui ora se diz, seja introduzido a ttulo de contextualizao da
situao histrica em que desponta o poema de Parmnides, que o ltimo passo dado
pela filosofia imediatamente anterior a ele, passo este dado por Xenfanes2, afirmava a
impossibilidade de um conhecimento per pnton3 que fosse efetivo e exato, considerado
que o prprio conhecimento , em si mesmo, vacilante e cambiante, no tendo pois
qualquer segurana para afirmar-se mais do que mera opinio. Este antecedente vale
para Parmnides como uma herana, um legado de carter negativo quanto
possibilidade do conhecimento e que, como tal, dever ser confrontado e superado
caso se queira e pretenda afirmar positivamente a possibilidade de conhecer e saber de
1 O fato de o viajante ser qualificado logo no terceiro verso do promio como o homem que sabe, eido/ta fwta, no implica objeo ao que ora se afirma: ele no sabe, neste exato momento, o que seja a verdade, posto que esta ainda h de lhe ser revelada pela deusa que conduz o discurso ao longo de todo o poema. em relao a esse saber na ordem da verdade e do verdadeiro que aquele saber do edota fta ter necessariamente que ser considerado um no-saber, justo porque no-verdadeiro. O teor preciso dessa distino exige que se constate o que e qual o carter daquilo que no poema parmendico apresentado como verdade, incluindo-se nisso a sua distino perante as opinies. 2 Xenfanes nasceu em Colofo, na Jnia. Levou, contudo, uma vida de andarilho em nome da divulgao da sua filosofia, fato que ele mesmo refere em sua obra (B8), tendo-se fixado finalmente, e j em idade avanada, em Elia, a mesma cidade em que nasceu Parmnides. Boa parte da doxografia da poca aponta-o como o seu mestre. A relevncia, porm, de defender ou rejeitar uma eventual relao pessoal entre ambos me parece desimportante, visto que o que deve nos interessar filosoficamente a relao entre as obras, esta sim inegvel e francamente decisiva. 3 XENFANES B34, 2.
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modo efetivo e seguro. essa a tarefa de que Parmnides se investe de forma decisiva e
categrica: na afirmao da incontornabilidade da dxa, segundo a determinao
xenofnica, que Parmnides encontra o mulo que o catapultar da ordem das opinies
eis inicial e elementarmente o sentido do edota fta logo ao incio do seu poema
ordem da verdade, transitando assim da afirmao da impossibilidade de um saber
perfeito perfeio do saber, que ele, Parmnides, denominar verdade4.
Enquanto Xenfanes nega de todo a possibilidade de um saber perfeito,
Parmnides ocupa-se no exatamente com essa possibilidade, mas imediatamente com
a sua concreo, com a construo de um saber assim caracterizado. Trata-se de
assumir uma atitude diametralmente oposta do seu antecessor. E se a onipresena da
dxa o que impede, segundo Xenfanes, a realizao efetiva desse saber, ento
necessrio que seja ela, primeiro, conhecida a fundo e, segundo, superada, visto que
apenas o conhecimento sobre as dxai pode prometer essa superao. Por isso to
necessrio, diz-lhe a deusa, intruir-se plenamente a respeito das opinies dos mortais5.
Mas no se pode incorrer no equvoco de pretender que essa superao a que me refiro
signifique a eliminao das opinies como se elas no viessem mais a ocorrer aps a
consolidao da verdade, mesmo para o filsofo que conquistou a possibilidade de
conhec-la: as opinies so um risco constante precisamente para o pensamento
verdadeiro, pois, de fato, elas representam uma modalidade do pensar que, como tal,
no s permanentemente possvel, como se mantm sempre e continuamente como
uma presena, visto indicar a modalidade em que sempre j operamos o nosso
pensamento, e isto ocorre, por sua vez, porque em Parmnides as opinies esto
comprometidas com o pensar a realidade sensvel. Antecipo aqui uma posio que
necessito fundamentar a contento no decorrer desta empresa, mas que por ora deve ser
anunciada de antemo: em que pese a distrao tpica e a amechane6 caracterstica de ns
mortais, o que qualifica a opinio como opinio no to-somente uma suposta
4 No se pode deixar iludir pelo uso coloquial e ordinrio da palavra perfeio em nosso idioma. Aqui ela assume o seu valor original, que significa fazer inteiramente, concluir, finalizar, encontrando-se, por extenso, em absoluto acordo com a mencionada disposio do poema em cumprir o tlos que a filosofia de Parmnides estipula para si mesma, neste caso, a concluso cabal e final perfeita como o crculo e a esfera (B8, 43) de algo ento declarado como uma impossibilidade: o saber. No se trata, pois, de um saber qualquer, mas sim de um saber perfeito, a mais alta pretenso a que o pensamento pode se erguer. Sublinhe-se aqui o quanto esta pretenso, nomeadamente a de almejar a perfeio do saber e t-la como norte, constitui um elemento primordial para que se compreenda a natureza do conceito de verdade que o poema oferece. 5 PARMNIDES B1, 29-30. 6 PARMNIDES B6,5.
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deficincia do pensamento ou da atividade do pensar, mas sim o seu objeto; as
opinies esto muito mais fundamentadas na natureza e no carter daquilo que sempre
tomamos porque impossvel que assim no o seja como o nosso objeto privilegiado
do pensamento: a realidade nossa volta, o ksmos, e tudo que nele se inclui. Mltiplo e
inesgotvel e, porque inesgotvel, imperfeito para o conhecer, no sentido que
impossvel conhec-lo inteiramente, no h sobre ele, impossvel haver, um nico e
unvoco discurso. Desta forma, a perfeio de um saber a seu respeito torna-se
irrealizvel, da que consider-lo impe ser contaminado pelo seu carter, motivo
pelo que, note-se bem, as opinies so sempre plurais, o que Parmnides respeita com
incrvel preciso textual: no h a opinio, mas sim as opinies, plurais como o ksmos a
que se dedicam.
Em contrapartida, a verdade sempre singular, unvoca. Assim, so as opinies
necessrias no sentido de serem inevitveis, e so inevitalmente muitas, infindas,
equvocas. Por esse motivo, a possibilidade de pensar ou poder pensar segundo uma
outra modalidade do pensamento a verdade exige do pensamento, ainda que
pontualmente, no s um mtodo e um procedimento crtico que lhe garanta uma ao
e uma maquinao distintas daquela amechane que caracteriza as opinies. Bem mais
do que isso, pensar verdadeiramente, isto , pensar consoante o modo da verdade, exige
a eleio de um outro objeto do pensamento que no aquele a que nos acostumamos a
chamar realidade. neste sentido que se esclarece por que concebo que o
movimento fundamental e mais decisivo da filosofia parmendica condiz com a sua
deciso pelo pensamento: pela primeira vez o pensamento pensa a si mesmo, e no
apenas o que desde sempre no s a filosofia mas todas as expresses possveis do
saber elegeram como o seu objeto por excelncia: o real, o que gregamente significou
tomar sempre e insistentemente temas como a phsis, o ksmos e a noo de t pnta7
como as realidades a que se dedica e se dirige todo e qualquer pensamento.
Aqui antecipo novamente uma outra posio no menos polmica e que deve
ser igualmente desenvolvida a contento, mas que por ora reduzo a esta breve
7 Privilegio o emprego da forma neutra, acusativa e plural, t pnta, em detrimento da forma nominativa e singular, t pn, no intuito imediato de realar a questo da multiplicidade do cosmo e o contraste que sua natureza mltipla oferece ao carter uno da verdade em Parmnides. Alm disso, vale lembrar ser essa uma forma j absolutamente comum ao vocabulrio filosfico dos sculos VI e V a.C., sendo predominante em Xenfanes (inclusive no j citado fragmento 34, absolutamente relevante para a compreenso da filosofia parmendica), Herclito e no prprio Poema de Parmnides, onde o filsofo privilegia o uso de t panta ou de suas demais formas plurais (cf. B1, 3; B1, 28; B1, 32; B4, 3; B6, 9; B8, 33; B8, 38; B8, 60; B9, 1; B10, 1; B12, 3; B12, 4; B13; B16, 4).
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formulao, a de que o pensamento que pensa a verdade no e nem pode ser
pensamento sobre sensveis. Conseqentemente, se a filosofia parmendica decide-se
em favor do pensamento como objeto do prprio pensamento, o que constitui a sua
deciso primeira conforme j exposto, esta deciso porm antecedida pela necessidade
do Eleata de superar o interdito imposto por Xenfanes: o que Parmnides ambiciona,
ao debruar-se sobre a natureza do pensar, consiste em tornar possvel o perfeito saber.
A verdade, em Parmnides, corresponde satisfao dessa necessidade; equivale
portanto resposta positiva de Parmnides ao no xenofnico. nesse contexto que
a assim chamada realidade sensvel ser o outro em detrimento de quem essa opo
por realizar o at ento irrealizvel feita: o sensvel pode ser pensado, mas no pode
ser pensado verdadeiramente, posto ser o motivo, por sua natureza e condio, daquilo
mesmo a que Parmnides opor a verdade as opinies. Aqui, devo frisar claramente
esses dois momentos pelo que a obra de Parmnides se orienta: (A) readquirir e
reafirmar a possibilidade de um conhecimento to efetivo quanto perfeito o intuito
maior de que a filosofia parmendica se investe e (B) inquerir sobre a natureza e o
carter do pensamento o nico meio de consegui-lo.
Essa deciso no promove, porm, a excluso da realidade sensvel como objeto
do inquerimento de cariz filosfico, uma vez que a ela que Parmnides dedica a ltima
parte do seu poema; ela implica sim, contudo, o estabelecimento de uma clara
hierarquia no que concerne ao saber, posto que pensar a realidade sensvel produz
necessria e inevitavelmente opinies, uma regio do pensamento em que impossvel
conhecer com firmeza e absoluta certitude: ser excluda da esfera da verdade, tendo
afirmada a sua fragilidade diante da segura consistncia do pensamento verdadeiro o
detrimento que esse outro sofre. Tem-se, portanto, que, segundo o critrio do saber, isto
, de um saber que se quer pleno e perfeito, o pensamento sobre o que sensvel est
sempre condenado a uma insegurana e a uma variabilidade que o determinam como
necessariamente inferior em relao a este rgido e especfico conceito de verdade.
Eis ento a mais radical e definitiva ruptura promovida pelo filosofia de
Parmnides em relao ao legado que recebe: a construo de um saber perfeito exige a
criao de um novo campo de reflexo para o pensamento filosfico que no aquele
por onde sempre se moveu, tradicional e historicamente; campo ou regio do
pensamento jamais adentrado anteriormente. Por isso configura essa aludida deciso
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em prol do pensamento a tomada de uma via apartada e nunca antes trilhada por
qualquer mortal8.
Obviamente, a tomada dessa deciso igualmente algo pensado. Permitindo-me
o uso de uma tautologia, que aqui refora o sentido que me interessa expor, essa
deciso pensada pelo pensamento. O que pretendo com isso sublinhar com o qu,
isto , com qual teor de pensamento d-se incio ao pensamento que Parmnides nos
apresenta em seu poema, que desde o comeo mostra-se ciente e convicto de sua
finalidade e para onde esta o dirige. preciso perceber aqui uma determinada sutileza, a
de que essa deciso j deriva de um raciocnio que recai sobre si mesmo e no sobre
aquilo que, estando fora do pensamento, vem a ser por ele pensado. H aqui, por
princpio e partida, uma certa autonomia do pensar na mais restrita acepo da
palavra. J foi dito, mas vale repetir, reconhecer essa convico ajuda a esclarecer por
que o poema comea com o detalhado relato de uma viagem, atravs da qual o viajante
conduzido concepo de um perfeito saber, verdade. E muito embora Parmnides
descreva passo a passo o proceder e o desenvolvimento dessa viagem, assim como
expe o pensamento que se desenvolve e se constri em torno verdade na parte
intermediria do poema, nada disso contraria o que aqui vem sendo dito: uma tal
exposio e uma tal descrio s podem resultar como ali se encontram elaborados se
construdos de forma retroativa, iniciando-se portanto a partir da certeza de qual o
ponto de partida e qual o ponto de chegada desse percurso, o que o prprio
Parmnides expressa, como que numa autoreferncia, no fragmento 5: para mim,
porm, indiferente de onde eu comece; pois para l mesmo voltarei de novo e de
novo9.
Decidido a saber e pelo saber, ele j sabe; sabe em que se deve basear aquele
saber cuja qualidade declarada impossvel por Xenfanes. Mas preciso demonstrar e
exibir o caminho trilhado para tamanha conquista e expor tambm as pr-condies
que a tornaram possvel. Estas so, entre outras, funes cumpridas metafrica e
alegoricamente pelo promio. Uma dessas pr-condies, imprescindvel para a
elaborao desse perfeito saber, consiste em conhecer a tradio filosfica que lhe
anterior e o tipo ou o modo de saber que professa. Se assim no fosse, como realizar
uma modalidade do pensar que lhe seja uma alternativa, que lhe seja um outro mais
8 Ver B1, 26-27. 9 B5. Traduo minha. Salvo meno em contrrio, todas as tradues apresentadas so de minha autoria.
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apto a conquistar o que os demais no teriam logrado, a saber, a irresistibilidade
persuasiva porque convincente de um modo de conhecimento que Parmnides
nomear verdade? No pois por mero acaso que Parmnides, o prprio viajante
referido pelo promio, seja caracterizado no imediato comeo do poema como o
homem que sabe10.
Sua deciso pelo pensamento , primeiro, uma deciso pelo pensamento
verdadeiro, na medida em que este e apenas este modo de pensar garante plenitude e
concluso ao saber, intentando solucionar, desta forma, o impasse histrico quanto ao
problema do conhecimento, problema este que, como exposto, agudiza-se de tal forma
em Xenfanes que o obriga a declarar a sua impossibilidade, introduzindo, por sinal,
pela primeira vez e de forma definitiva o problema da dxa na histria da filosofia. Mas
a deciso parmendica pelo pensamento inclui conceber e averiguar como o
pensamento opinativo age e pensa, qual o procedimento e a natureza do pensar que se
traduz na emisso de opinies. Tambm aqui a modalidade do pensar dxico que
importa e ocupa principalmente a filosofia parmendica. Assim sendo, pretendo expor e
defender a idia de que o pensar, seja no seu modo verdadeiro, seja em seu modo
opinativo, constitui o objeto primordial do pensamento de Parmnides, um
pensamento que se empenha por distinguir e fundamentar a distino entre as duas
modalidades possveis ao pensamento. Sendo que a possibilidade do pensar
verdadeiramente exige que o pensamento debruce-se sobre si mesmo e de modo algum
sobre algo externo ao pensamento mesmo, sendo-lhe portanto exterior.
Talvez ainda no seja possvel compreender de todo o que venho
desenvolvendo at aqui sem que se introduza, uma vez mais, uma aluso de carter
histrico. sem dvida que essa deciso parmendica em prol do pensamento deve ser
esclarecida a partir de uma perspectiva histrica, na medida em que representa uma
deciso pela possibilidade de construo e concretizao de um saber que venho
denominando perfeito e efetivo. Isto significa, imediatamente, que ao lanar o seu
olhar para as obras dos filsofos que o antecederam, Parmnides no reconhece neles
um saber verdadeiro. Antes de Parmnides decidiu-se toda a tradio filosfica grega
e tambm a potica, sua maneira e diferena por ocupar as suas investigaes com
algo a princpio exterior ao pensar, pelo que essa tradio escolheu, a cada vez,
diferentes porm similares objetos de reflexo e questionamento. Predominam assim
10 B 1, 3.
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nessa tradio filosfica a tematizao da phsis, do ksmos e do todo ou mesmo
totalidade que engloba todas as coisas e fenmenos sensveis, sejam naturais ou
artificiais, presentes espontanemente na natureza ou produzidos pelos afazeres e
relaes humanas; a esse todo referiam eles sob a palavra t pnta. Esses trs temas so
a um s tempo to prevalecentes nessa tradio e, de fato, to entrelaados que no
seria exagero afirmar que formam, em conjunto, o tema principal da filosofia hoje
convencionalmente chamada pr-socrtica, mesmo aquela ps-parmendica. A despeito
de como os mais distintos filsofos dessa poca abordaram essas questes
diferentemente em comparao um ao outro, persistem na natureza desses temas uma
identidade radical quanto ao carter daquilo que constituiu o objeto comum a todo
pensamento filosfico pr-parmendico, que dele se ocupou de forma no apenas
privilegiada mas absoluta; essa identidade refere-se ao fato de que esse objeto, mesmo
em suas nuances e distines possveis, tal como aludido acima, fosse ao tratar da phsis,
do ksmos ou de t pnta, encontra o seu lugar no no pensamento, mas fora dele.
Assim, o pensar tpico e caracterstico dessa tradio se orienta para a reflexo acerca
desses objetos de investigao, permanecendo esse pensamento inteiramente ocupado
com algo declarado distinto e externo ao prprio pensamento, de modo a jamais lhe ser
possvel pensar-se a si mesmo, assumindo o prprio pensar como objeto de
inquerimento filosfico11. Esse passo dado primeira e to-somente por Parmnides,
no que foi seguido por Zeno de Elia, seguimento este no-livre, porm, de
significativas divergncias.
Pertence de fato filosofia, desde o seu comeo, um historiar acerca daquilo que
est a volta do homem e que lhe aparece ante os seus olhos. Com efeito, o prprio termo
histora em grego significa algo como ver com os prprios olhos, pelo que se entende
como esse historiar exige dos primeiros filsofos uma arte da observao e da apreenso
do mundo sensvel que, mediatamente elaborada pelo pensamento, ser enunciada sob
a forma de uma compreenso sobre isso mesmo que se observou e apreendeu. Essa histora
para o comeo da filosofia to decisiva que o primeiro emprego textual da palavra
filsofo de que se h notcia surge ladeado pela necessidade desse historiar, a tal ponto
11 Para uma detalhada e enriquecedora considerao a respeito do objeto prprio e predominante do pensamento que caracteriza a filosofia grega em suas origens e em suas respectivas diferenciaes histricas apesar da sua identidade geral, indica-se a seguinte obra de H. BOEDER: Grund und Gegenwart als Frageziel der frhgriechischen Philosophie. Den Haag, Martinus Nijhoff, 1962.
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de ser ali qualificado como a pr-condio para que a filosofia seja filosofia12.
Conseqentemente, quanto ao seu mtodo e propsito, pode-se considerar que a
filosofia nascente entende-se a si mesma como um historiar acerca do que aparece e
acontece no ksmos, acerca, portanto, de coisas e fenmenos literalmente sensveis. Essa
sua disposio no deixou de ser notada por aqueles que primeiro a tomaram como
objeto de anlise e investigao histrica. Refiro-me a Plato e Aristteles que em suas
consideraes sobre o contedo do pensamento dos primeiros filsofos identificaram
como principal tanto o historiar como a ocupao dele com os sensveis13 e seu carter
ou natureza essencial. Plato definiu toda essa filosofia como per phseos historan14, ou
seja, um historiar acerca da phsis, como de resto j indica o uso quase sistemtico do
ttulo per phseos para boa parte das obras filosficas escritas poca. Pelo mesmo
motivo denominou-os Aristteles physiolgoi ou phsiko, ressaltando assim que a
investigao caracterstica a esses primeiros filsofos toma a phsis como aquilo a que
consagram o seu pensamento. Isso faz da phsis a palavra central de toda uma primeira
poca da filosofia, um perodo que encontra o seu limite justamente no poema de
Parmnides, a partir do qual a filosofia deixa de ser necessariamente uma investigao
acerca disso que aparece e do seu modo de aparecimento.
preciso ainda dizer sobre essa phsis, que constitui o objeto principal da
filosofia nascente, que a sua traduo usual por natureza acaba por obscurecer o
efetivo significado desta palavra dentro do contexto aqui referido. Com uma tal
traduo apenas aproximamos da nossa experincia mais freqente e atual uma idia
que a ela no corresponde. Primeiramente refere-se phsis natureza de cada coisa
sensvel, pelo que se constata uma multiplicidade de phseis15 consoante a diversidade
dos fenmenos que se do no ksmos. Essa diversidade pode ser igualmente considerada
em seu conjunto ou totalidade, conformando assim a idia de um todo composto, no
12 Trata-se do fragmento 35 de Herclito, em que se l: bem necessrio historiar muitas coisas para os homens serem amantes da sabedoria. Grifo meu. Sobre a criao do termo filsofo e, por extenso, filosofia, difcil precisar quando surgiu e por quem. comum encontrar a aluso ao fato de ter sido Pitgoras o primeiro a empreg-lo, o que de resto bastante plausvel. Mas a passagem textual mais remota em que aparece o termo vem a ser este fragmento de Herclito ora citado. 13 Em nome da preciso, considero terminantemente inapropriado o emprego da palavra ente aplicada aos filsofos anteriores a Parmnides. Como pretendo ainda demonstrar, a idia de ente ocorre pela primeira vez em seu poema. No cedo, pois, tentao de empregar aqui a expresso entes sensveis, por exemplo. 14 PLATO. Fdon 96a-b. 15 tambm este o sentido do termo phsis em sua primeira ocorrncia na literatura grega (Cf. Odissia, X, 303). A esse respeito, ver NADDAF, G. Le concept de nature chez les prsocratiques. Paris, Klinksieck/Les Belles Lettres, 2008, p. 25.
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por entes, mas por aparecentes, sem que essa concepo despreze ou desconsidere a
phsis de cada aparecente em particular. Tambm essa totalidade pode ser nomeada
como phsis, pelo que este termo pode remeter tanto natureza especfica de cada
aparecente16 como tambm natureza unvoca ou comum a todos eles. Neste
sentido, v-se recorrentemente nos escritos da filosofia desse perodo o emprego de
uma outra palavra muito prxima phsis. Mais exatamente do que uma palavra, uma
expresso: t pnta. Ela se origina de ps que significa, uma vez mais de forma
ambivalente ou mesmo plural, tanto tudo e todo como cada, assumindo este ou
aquele sentido conforme se queira salientar o pensamento sobre a totalidade ou sobre a
especificidade17. A duplicidade semntica desses dois termos encarna-se sob a forma de
uma expresso aplicada de forma absolutamente freqente a este mbito de
pensamento, o uno-mltiplo, o tudo-um utilizado por Herclito18, que, mais do que
uma expresso, vem a ser a declarao definitiva de qual seja o tema primordial da
filosofia pr-parmendica19.
A noo de phsis e de t pnta e a conseqente distino no que diz respeito
natureza e carter de cada aparecente valem para a filosofia anterior de Parmnides
como o seu tema principal. Forma-se assim um pensar de teor filosfico em que a
pergunta pelo ksmos ser igualmente fundamental, configurando assim um pensamento
cuja caracterstica maior consiste em deixar-se orientar pelo que lhe exterior e,
portanto, pelo que lhe de outra natureza e tessitura. Enquanto o pensar i/)dioj (dios), particular, o cosmo e sua linguagem so comuns, cuno/i(xyni)20.
Mesmo quando phsis, t pnta e ksmos no so explicitamente tematizados, vm
sempre implicitamente fala e permanecem sendo o fundo e tambm o horizonte
desse pensamento. Pode-se constat-lo fcil e nitidamente tanto nos primeiros filsofos
Jnios, inclusive e sobremaneira em Herclito, bem como em Xenfanes, em Pitgoras
e nos pitagricos em geral. Os primeiros pr-socrticos pensam primordialmente os
temas acima aludidos, com especial destaque para a questo da phsis. Quando se
afirma, ento, que Parmnides decide-se pelo pensamento como objeto do pensar de
teor filosfico no deve isto dar a entender que os filsofos pr-parmendicos no
16 HERCLITO B1. 17 Para uma extensa reflexo sobre o uso e o significado do vocbulo phsis nos primeiros tempos da filosofia indico o artigo Was ist phsis? de H. BOEDER. In: Das Bauzeug der Geschichte. Wrzburg, Knigshausen und Neumann, 1994. 18 Consultar HERCLITO B50. 19 Ver HERCLITO B50 e B10. 20 Consultar os fragmentos B2 e B30 de Herclito, por exemplo.
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pensaram; por suposto que sim, mas no o prprio pensamento em suas possibilidades
e modos21. Conseqentemente, no por mero acaso que a filosofia em seus primeiros
tempos tenha assumido as formas absolutamente predominantes de uma cosmologia e
fisiologia.
Um rico e variegado saber fsio-cosmolgico, eis o que realizou a filosofia antes
do surgimento do poema de Parmnides. No se deve salientar aqui apenas a escolha
pela phsis como objeto de investigao, bem como pelo todo dos aparecentes, t pnta,
e pelo lugar em que estes aparecem, o ksmos, como o trao mais decisivamente
fundamental dessa tradio filosfica pr-parmendica, mas tambm o fato
filosoficamente cristalino de que essa tradio determina o saber como algo que se deve
ajustar ao que essas realidades sensivelmente apreensveis mostram ou fazem aparecer.
Os physiolgoi, para usar o termo consagrado por Aristteles, persistem
fundamentalmente na idia e na convico de que o seu prprio conhecimento, aquele
que se pode ter e desenvolver tanto quanto possvel22, deve retirar-se daquilo que nos
presente e apreensvel, logo da realidade sensvel em que estamos inseridos e da qual
fazemos parte de onde mais?, perguntaramos todos ns. Parmnides, porm,
procura uma alternativa para essa resposta e, ao respond-la, oferece-nos esse novo
campo ou regio de pensamento, como tenho aqui aludido. Mas no que se refere ento
a esses filsofos anteriores a ele, e no somente a eles, claro est, a partir dessa
conjuntura acima exposta, a partir daquela referida convico que se explica a mais
decisiva importncia que os sentidos adquirem para o historiar do filsofo, sentidos que
Herclito, por exemplo, nomear mrtyres23, testemunhas, e de um modo tal que
estabelecer: Do que h viso, audio, aprendizado, eis o que eu prefiro24.
21 Deve-se reconhecer que a filosofia de Herclito inclui um discurso que aborda uma diferenciada qualificao do pensamento, mas isso no o aproxima de Parmnides naquilo que ora exponho a respeito da deciso parmendica em favor do pensamento como o objeto que a filosofia deve adotar em nome da ambio por um conhecimento efetivo. Ver HERCLITO B113 e B116. 22 bom que se observe que a filosofia grega logo em seu incio demonstra ter cincia de que seu empenho por conhecer esbarra na questo dos limites do conhecimento. Impossvel saber se essa descoberta j havia se dado nos Milsios, mas em Xenfanes, como visto, coetneo de Pitgoras, essa descoberta categoricamente expressa e assumida. Vir a ser um trao marcante do pensamento grego, provocando, entre tantas outras a ela anlogas, a mais clebre formulao socrtica. Resta-me dizer que tambm em Parmnides esse limite afirmado e defendido, mas de forma dual: um limite de mesmo carter, se se toma a realidade sensvel como tema; e um limite formal para o conhecimento verdadeiro, posto que ele s pode ocorrer numa regio de pensamento igualmente precisa e definida, a abstrao de carter lgico. Eis mais uma posio que ser defendida em momento oportuno. 23 HERCLITO B107. 24 HERCLITO B55. Permito-me citar a traduo publicada por mim. In: COSTA, Alexandre. Herclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro, Difel, 2002. p. 111-113.
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O que se sabe e o que h; o que se conhece primeiro atravs da apreenso
sensorial e, em seguida, atravs da atividade do pensar e o que aparece, isto deve ser
um e o mesmo, ainda que no em sua prpria natureza, mas em seu teor e significado.
O saber possvel ao homem ento obrigatoriamente dependente dessa equivalncia25.
Isto faz com que esse modo de proceder com o pensamento torna-o no-livre, no
sentido que a sua deciso implica obedincia e submisso quilo que a phsis, o ksmos e
t pnta revelam. Trata-se de um modo de saber que se decide deliberadamente por essa
dependncia perante o mundo de que trata e que , em relao ao prprio pensamento,
um outro. Essa deciso convicta, franca e ciente de si mesma justifica-se por no haver
um outro modo possvel de conhecer. Ao pensar o pensamento, como pretende
Parmnides, essa alteridade entre o pensamento e o seu objeto encontra-se excluda e
vige, assim, uma relao pensamento-pensamento, ou seja, uma relao de identidade
absoluta, uma auto-relao. Pense-se aqui no fragmento 8 do poema, em que a excluso
do diverso serve afirmao de que o ente total e absolutamente idntico apenas a ele
mesmo. Por conseqncia, o saber de carter fsio-cosmolgico, o saber promovido e
conquistado pela tradio filosfica aqui mencionada, faz da natureza a fonte e o
fundamento a partir dos quais ele mesmo se constri e desenvolve, e isto at um ponto
em que esse saber e essa fonte sejam, tanto quanto possvel, um mesmo. Da, por
exemplo, o ideal de homologa em Herclito e a sua palavra, no atual fragmento 1 do que
nos restou de sua obra, em que se fundem o lgos ouvido pelo filsofo e o prprio lgos
do filsofo26.
Fixando sua base tanto no conjunto das coisas e fenmenos sensveis e em suas
respectivas phseis, o conhecimento promovido por essa filosofia nascente oferece-nos
um saber per phseos. Ou, ainda mais precisamente, um saber que determinado por
aquilo em torno do qual ele orbita: assim revela o sentido e o significado literal da
preposio per/, em torno a, acerca de. Neste caso, trata-se de uma tarefa de
conhecimento que situa o seu inquerimento em torno phsis, conformando assim um
25 Pense-se, por exemplo, na analoga pitagrica e na homologa heracltica. 26 HERCLITO B1. Neste primeiro fragmento, que segundo o testemunho de Sexto Emprico corresponde introduo do livro escrito por Herclito, o lgos que se depreende e se apreende a partir da phsis de cada coisa funde-se textualmente com o lgos do prprio filsofo. A partir dessa fuso, categoricamente ressaltada na apresentao do seu pensamento, reconhece-se aquilo em que consiste e o que constitui o saber para Herclito ou)k e)mou= a)lla\ tou= lo/gou a)kou/santaj o(mologei=n sofo/n e)stin e(\n pa/nta ei=)nai. (B50). O que se ouve e se colhe do lgos, deve tornar-se lgos da filosofia, desde que esta se entenda como pretendente a um saber efetivo. Essa idia de tal forma decisiva para o pensamento de Herclito que reaparece em distintas passagens do que restou dos seus escritos. Sejam aqui referidos, alm dos j mencionados fragmentos 1 e 50, os fragmentos 19 e 112.
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saber que se movimenta em volta dela, mantendo-se igualmente atrado e enrazado em
sua rbita, encontrando justamente a o seu limite e extremidade. Permanece, assim,
sendo a phsis e seus temas correlatos tanto o objeto principal como o pensado pelo
pensamento dessa tradio filosfico-cosmolgica.
Com a incluso do poema de Parmnides na histria da filosofia, esta passa a
conhecer uma deciso para uma possibilidade de saber que lhe era totalmente inaudita.
Decide-se no mais pelo tema central e mais importante dessa tradio; decide, ento,
que no estritamente necessrio que o objeto primordial da filosofia seja este que
sempre foi, e que o pensamento no s pode ter a si mesmo como objeto de reflexo
mas, mais do que isso, que essa a alternativa mais certeira caso se queira efetivamente
conhecer. Doravante pense-se sobretudo o pensamento, parece propor Parmnides,
como se bradasse aos seus antecesssores: por que se deve pensar nica e
incondicionalmente os aparecentes e suas respectivas phseis e fazer deles o objeto
exclusivo do conhecimento? Ser de fato inevitavelmente necessrio que o pensamento
tenha que lhes seguir e obedecer, como se fosse esta a sua nica possibilidade?. No,
ao menos para Parmnides no necessrio que seja exclusivamente assim. Pelo
contrrio, a questo que parece remeter aos seus antecessores que partilham da sua
mesma ambio, pode ser ainda mais agudamente formulada: No vem vocs que a
filosofia, atravs dessa sua sempre repetida deciso, perde a sua possibilidade de
conhecer verdadeiramente?. De acordo com esta interpretao da obra parmendica,
Parmnides defenderia que a filosofia deve antes optar pelo prprio pensamento como
o seu objeto por excelncia e, desde que ela mesma, a filosofia, caracteriza-se pelo teor
de pensamento que desenvolve e expe, deve ser exatamente ele, o pensamento, seu
objeto privilegiado de conhecimento. Essa ruptura abre a possibilidade de um modo de
saber que se liberta do que lhe externo. Em Parmnides a filosofia definida, por e
desde o princpio, pela crtica e rigorosa lgica do prprio pensamento de carter
filosfico. Eis ento a deciso definitiva: primeiro a determinao do pensamento e do
seu objeto, o seu qu; somente esta deciso pode mostrar o que e o que no , e
isto depende, por sua vez, de como pensar, de como proceder crtica e logicamente o
pensamento.
Diante desta minha interpretao, poder-se-ia questionar que, se a verdade e o
ente da parte intermediria do poema no se referem phsis, o poema no se chamaria
per phseos. Eis aqui uma objeo infundada. Primeiro porque a phsis est includa na
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totalidade da filosofia de Parmnides; sua excluso se d, apenas, da ordem da verdade.
E, segundo, porque a prpria elaborao do conceito de verdade, assim como os
predicados e o carter do ente verdadeiro dependem de uma determinada concepo de
phsis, concepo esta que condiciona, por contraste e oposio, a criao da verdade
parmendica conforme o seu desejo de obteno de um conhecimento efetivo. Se tudo
que se relaciona phsis envolve gerao e corrupo, o ente parmendico no-nascido
e tambm imorredouro; se, da mesma forma, exige ela a temporalidade de tudo, o ente
extemporneo; se fosse ela chamada fogo, seria o ente gua e assim por diante, o
ente sempre o seu avesso perfeito. Ao fim e ao cabo, o carter da phsis o que define
tudo no poema: para a parte central, indireta e negativamente, s avessas, portanto; para
a sua parte final, direta e positivamente. O poema descreve dois caminhos: a natureza da
verdade e a natureza do ksmos per phseos. notvel, porm, que a parte dedicada
positivamente phsis seja exatamente a que versa sobre as opinies. Simplcio oferece-
nos um testemunho de suma importncia a esse respeito, no qual justifica por que o
poema de Parmnides, assim como a obra de Melisso, possuam esse ttulo, j que, tal
como venho propondo, v-se sim a incluso da phsis nessas obras, mas na qualidade de
um objeto do pensamento claramente sub-ordenado quilo por meio de que se pode
efetivamente conhecer, por isso, no caso de Parmnides, a sua incluso na parte das
dxai. Simplcio27 argumenta que o poema no versa apenas sobre o que est acima e
superior phsis, mas tambm sobre o que lhe diz respeito: a parte final do poema.
Segundo este relato o acerca da phsis o que a deusa considera o acerca das
opinies28.
Determinada pelo seu prprio e interno pensamento, aprenderia a filosofia
consigo mesma, no mais ou apenas com o mundo ao seu redor. O pensamento assim
concebido e pensado ensina ao prprio pensamento o que e como este qu deve ser
pensado, pois ao pensamento deve pertencer, obrigatoriamente, uma coeso e
coerncia internas, caracterizadas pelo rigor crtico, rigor que impede que o pensamento
contradiga ou resista a si mesmo. E isto, este como, deve valer, tambm, para quando
o pensamento elege a realidade sensvel como o seu qu. o que faz Parmnides
27 SIMPLCIO. Testimonia. A14 Diels. 28 Ver PARMNIDES B8, 60.
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quando trata das opinies: a mesma deusa que discursa a verdade, discursa a verdade
das opinies, revelando assim a verdade sobre um dia/kosmon e)oiko/ta pa/nta29. Com isso tambm ocorre na filosofia de Parmnides pela primeira vez um
pensamento que basta a si mesmo, e justamente por isso ser dito pleno e a si mesmo
idntico. O mesmo que dizer livre e autnomo. Mas, quando o , no trata do real
sobre o que o nosso conhecimento est fadado imperfeio , mas do ideal30, nico
terreno em que a perfeio possvel.
29 As tradues para a qualificao desse dikosmos das opinies variam desde de todo enganoso a em todo verossmil. Em todos esses casos, esse um dikosmos no-verdadeiro, sendo a verossimilhana a sua possibilidade mxima. 30 No no sentido metafsico que esse termo ir adquirir mais tarde, mas sim com a denotao de aquilo que se constitui na ordem das idias, uma vez que puramente pensado, sem relao, portanto, com um outro que no o pensamento.
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A alternativa e a deciso de Parmnides tal como as exponho aqui representam
uma ruptura com o procedimento filosfico que lhe anterior, decretando assim uma
transio possvel ao pensar, a de abstrair da realidade sensvel como seu nico e
exclusivo tema, a fim de adentrar-se por um modo ou tipo de conhecimento
assazmente inovador. Um tal movimento define um gesto de transio absolutamente
revolucionrio, tanto no que diz respeito antiga filosofia grega, como no que concerne
histria da filosofia como um todo. Ela abre a essa histria a possibilidade de pensar
no apenas o ksmos dito real e sensvel, mas o ksmos do pensamento. de
fundamental importncia destacar que o poema de Parmnides dedica-se a esses dois
ksmoi, o que de resto justifica e explica a composio formal do seu poema, em que se
separam a parte dedicada verdade e a parte dedicada s opinies: do primeiro desses
dois ksmoi expe o carter e a ao do pensamento opinativo; do segundo, apresenta a
novidade lgico-argumentativa da abstrao exigida ao pensamento verdadeiro. Define,
assim, sem possibilidade de toque ou conciliao entre ambos, dois campos
radicalmente distintos do saber possvel ao homem, um deles apenas aproximativo; o
outro, firme e seguro. Distino esta que corresponde ainda hoje, sem que demos por
ela, ciso entre cincias da natureza e cincias puras. Eis ento a totalidade do poema,
que trata, portanto, dos dois modos possveis ao pensamento consoante os seus dois
distintos objetos. Totalidade esta, diga-se de passagem, desrespeitada pela imensa maior
parte da literatura atual a respeito do poema, que se ocupa quase que exclusivamente da
parte em que versa a deusa sobre a verdade e que se atrapalha de forma geralmente
constrangedora se perguntada por que teria Parmnides escrito a parte final do poema.
Concluo esta introduo deixando claro que tudo o que aqui se exps em
carter ao mesmo tempo afirmativo e proponente deve-se necessidade de apresentar
as intenes desta tese que, exatamente por elas, pretende fazer-se uma tese na acepo
do termo. Sei que ela soa, de incio, estranha e at mesmo quase to hertica quanto
defender o diabo em plena Idade Mdia, de modo que me cabe o desafio de
desmanchar essa estranheza, realando a sua pertinncia. Mas no tenho, em nenhuma
hiptese, a pretenso to tola quanto estril de que seja esta uma interpretao que
invalide as demais; pelo contrrio, o interesse o de mostrar o quanto pode ser mais
uma interpretao cuja arquitetnica , tanto quanto me for logrado, slida, fazendo-se
capaz de enriquecer o j rico acervo interpretativo acerca do poema. Os captulos
seguintes prestam-se a esta inteno e demonstrao e conquista do que aqui foi
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apenas apresentado, o que exige, de imediato, um recuo relao que o poema
parmendico estabelece com a tradio mito-potica grega.
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I A procedncia potica da filosofia de Parmnides e a singularidade do carter divino do seu poema
Constitudo por trs partes31 um promio (B1), uma segunda parte dedicada
verdade (B2 a B8) e uma parte final cujo tema so as opinies (B9 a B19) , o Poema de
Parmnides oferece de imediato uma dificuldade aos seus leitores e estudiosos: sendo
essas trs partes muito distintas entre si, seja no que se refere aos seus contedos, como
tambm s suas formas ou gnero, como concili-las a contento? Esta pergunta, por
sinal, j gera um outro obstculo: ser mesmo que devem ser conciliadas? De onde
nasce a nossa tendncia a conceber o poema como um todo necessariamente
harmnico, um conjunto internamente coerente apesar das referidas diferenas de teor
e de carter que separam suas trs partes?
Perguntas como essas tm sido respondidas das mais variadas formas,
perfazendo a grande amplitude e diversidade que marcam a literatura a respeito da
compreenso do poema. H um pouco de tudo dentro desse acervo crtico. Desde as
hipteses que apontam no seu interior a mais franca contradio at as que vem no
poema a mais absoluta coerncia, passando por hipteses ou solues intermedirias,
como aquelas que sugerem que Parmnides t-las-ia escrito em pocas distintas, de
modo a conterem o itinerrio do seu pensamento e, portanto, as mudanas que esse
pensamento teria sofrido ao longo do tempo32.
No propsito desta tese fazer aqui uma to longa e erudita quanto cansativa
inventariao a respeito dessas nuances todas. O que se intenta somar a essa j to
extensa e controversa tradio mais uma interpretao do poema, ela mesma
controversa e, qui, polmica. A prpria deusa garante a Parmnides que dela ouvir
uma controversa tese33. No se tem, portanto, o direito de achar que esta no seja
igualmente controversa. Antes, porm, de adentrar pela exposio da interpretao aqui
a ser proposta, devem-se antecipar duas das principais concluses a que cheguei a
respeito: (A) afirmar-se- aqui, relativamente ao todo do poema, uma perfeita coerncia
31 tambm muito freqente considerar o poema como sendo constitudo de duas partes, opo em que o prlogo ou promio considerado uma antesala para as duas demais partes da obra. 32 o caso de Nietzsche, por exemplo. NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trgica dos gregos. Lisboa, Edies 70, 1987. p. 57. Aproveito a oportunidade para antecipar que, salvo em casos muito especficos, preferirei sempre indicar edies em lngua portuguesa quando as houver, naturalmente para os ttulos originalmente escritos em idiomas estrangeiros. 33 B7, 5-6. Sobre esse tema cf. ROBBIANO, Chiara. Becoming Being. Sankt Augustin, Academia Verlag, 2006.
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e concepo, sem negar, entretanto, as referidas distines, mormente entre as suas
duas partes finais, mutuamente excludentes e inconciliveis; isto s se torna possvel a
partir do momento em que se entrev aquela que constitui a finalidade da obra, a
disposio filosfica que move Parmnides; e (B) essa finalidade s se faz visvel se se
considera o movimento histrico em que o poema desponta, posto que a partir do
dilogo que estabelece com a tradio do pensamento a ele anterior, tradio esta no
apenas filosfica, mas tambm potica, que se revela a sua genuna e decisiva
motivao.
As trs partes do poema so classicamente divididas da seguinte forma: um
promio ou prlogo, em que se narra a viagem por que passa o autor; uma segunda
parte, central ao poema, contendo a exposio do caminho da petho, a quem
acompanha a verdade, freqentemente chamada pela literatura especializada a parte
ontolgica ou mesmo metafsica; e, por fim, a parte final, referente ao caminho das
opinies dos mortais.
Quanto ao estilo e gnero literrios, o promio apresenta-se em linguagem
claramente potica e encontra-se versado consoante a mtrica e o idioma picos; a parte
intermediria, por sua vez, ainda que mantenha a mtrica e o idioma picos, adquire um
carter radicalmente argumentativo, sendo a sua pronncia predominante a de uma
argumentao lgica; e a parte final, novamente um tanto mais potica, possui,
contudo, forte carter cosmolgico34, muito semelhante quanto ao gnero, mas nem
tanto quanto ao contedo, aos escritos de mesmo teor produzidos poca,
especialmente na regio em que viveu Parmnides. Essa distino na ordem do estilo e
da linguagem obedece a uma dupla situao: primeiro, em virtude da funo que cada
parte exerce no poema; cada uma delas funcionando de acordo com um determinado
propsito; e, segundamente, porque essas formas ou modos de linguagem so uma
contingncia do contedo cognitivo exposto em cada uma dessas partes. Talvez no
pudessem, portanto, assumir uma outra forma que no aquela mesma que assumem,
pelo que se constata de imediato a copertinncia entre o contedo do que pensado e a
forma pela qual esse mesmo contedo expresso.
O promio cumpre um duplo propsito: ao narrar a viagem de Parmnides,
menciona a sua prpria formao, o dilogo estabelecido com a histria do pensamento
34 Em momento oportuno ser demonstrado como a parte cosmolgica do poema, a sua parte final, constitui tambm uma espcie de antropogonia, a quem os aspectos cosmolgicos e cosmognicos encontram-se subordinados.
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que lhe anterior; a segunda funo do promio a da exortao, anunciando, em seu
final, a clivagem que, per se, justifica a diviso formal do poema.
Quanto ao trecho inicial e majoritrio do promio, a descrio potica de uma
viagem, o que se v uma sucesso de aluses a variados poetas e filsofos da tradio
grega. As menes aos poetas so muitas, realizadas atravs de aluses a passagens de
obras antigas por meio do emprego de determinadas imagens poticas e tambm do
uso de uma mtrica caracterstica. Essas aluses, entretanto, no se justificam apenas
como referncias meramente estticas ou mesmo gratuitas a Homero e Hesodo, por
exemplo, mas constituem, para o prprio sentido do promio, a forma com que o
Eleata acena o seu estreito dilogo com o saber cantado pelas musas e, mais do que
isso, o modo como torna identificvel qual seja a procedncia e o ponto de partida do
seu pensamento. Tais referncias so ento utilizadas sobretudo como um modo de
demonstrar como Parmnides conhecedor dessa forma de saber e, por extenso,
dessa linguagem.
Em seu carter ricamente alegrico e por vezes decididamente minucioso,
passagens h do promio que podem ser igualmente lidas como remisses aos filsofos
ou s idias filosficas anteriores a Parmnides, alguns deles praticamente seus
contemporneos. As noes de necessidade e justia, por exemplo, ainda que tambm
refiram certamente poesia pica, cumprem um papel decisivo nas filosofias de
Anaximandro e Herclito. Aqui, portanto, apenas um meio pelo que se pode atestar o
conhecimento de Parmnides acerca da filosofia de sua poca e o dilogo com ela. Por
outro lado, a persistente referncia s dualidades, tais como noite e dia, luz e trevas,
dentre tantas, no so, novamente, apenas menes a Hesodo, por exemplo, mas
tambm ao pitagorismo, to popular poca, principalmente na Hlade italiota, onde
Parmnides viveu. O mesmo vale para Xenfanes que, tendo sido ou no mestre de
Parmnides, parece um dos seus principais possibilitadores, nem que seja por
necessidade de refutao da posio que ele, Xenfanes, assume em respeito
possibilidade do conhecimento, atuando assim na finalidade fundamental de todo o
poema: Xenfanes o primeiro filsofo a tratar explicitamente do problema da dxa35,
mencionada aqui, no final do promio e, mais que isso, um dos caminhos viveis
apresentados pelo poema, ainda que inferior ao da verdade e dela absolutamente
apartado. A posio final da filosofia de Xenfanes, declarando o imprio da dxa e da
35 B1, 30.
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verossimilhana sendo esta igualmente insuficiente para o conhecimento , condiz
com aquilo contra o qual a filosofia de Parmnides parece se erguer: a fragilidade e a
falta de firmeza que reconhece no saber dos seus anteriores, contra os quais arremesa
a sua fundamentada concepo de verdade, isto , a conquista de um saber plenamente
seguro e confivel.
A ttulo de correo, parece justo informar que tais referncias, tanto a filsofos
como a poetas, no se encontram apenas no promio. Alm de Xenfanes,
Anaxmenes, Pitgoras e o pitagorismo so uma presena marcante na ltima parte do
poema, em que de se reconhecer um indelvel sotaque pitagrico, a despeito da
originalidade do pensamento de Parmnides tambm em sua seara cosmolgica.
Talvez a figura de Herclito esteja presente, seja pela crtica ao seu clebre mobilismo,
seja sobretudo pela idia da simultnea convergncia e divergncia dos contrrios36 que
possibilita reunir, num s n, o que e o que no-37.
Sendo assim, o dilogo histrico com poetas e filsofos38 mostra-se como um
trao marcante no s do promio mas de todo o poema. No promio,
especificamente, um modo pelo qual Parmnides refere o seu conhecimento a
respeito dessas duas tradies, um artifcio pelo que demonstra ter ouvido e assimilado
tudo o que o saber grego j havia oferecido: a ele e a ns. histria. por isso e
apenas por isso que o prprio autor se nomeia o eidta fta, o homem que sabe39. O
que sabe Parmnides? Tudo isso que lhe disse a tradio da filosofia e da poesia ditada
pelas musas, pelo que despontam progressivamente ao longo do promio, de forma
mais especfica, mas tambm ao longo de todo o poema, de um modo geral, passagens
e passagens que dialogam intimamente com diversas obras do perodo pr-parmendico.
Ele nos d testemunho dessa sua formao e, num duplo salto, tanto presta reverncia a
ela pois foi quem o nutriu a ponto de estar preparado para que ele mesmo,
Parmnides, pudesse inserir-se nessa tradio, impondo a sua novidade, a sua diferena
36 Cf. HERCLITO B8 e B10. 37 Parece-me extremamente difcil ler o fragmento 6 de Parmnides sem pensar no Efsio, por exemplo.B49a: nos mesmos rios entramos e no entramos, somos e no somos. (COSTA, Alexandre. op.cit. p. 105). Isto no prova, contudo, que Parmnides tenha tido conhecimento a respeito do pensamento heracltico, ainda que essa possibilidade no deva ser de todo descartada. O fato que os testemunhos histricos com que contamos mostram-se insuficientes para uma constatao inconteste tanto sobre a possibilidade como sobre a impossibilidade de Parmnides ter entrado em contato com o contedo da filosofia de Herclito. 38 necessrio referir que essa distino refere-se muito mais a uma possibilidade atual do que a uma diferenciao de poca. Com efeito, difcil determinar com exatido quando se torna clara prpria tradio grega a mencionada distino. 39 B1, 3.
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, como tambm a critica, posto que, sendo tanta e to vria essa tradio, onde,
efetivamente, o conhecimento, o saber? Da t-la chamado multloqua polu/fhmon
(polphemon)40: tem tanto a dizer e guarda em si tanta divergncia que no diz verdade.
preciso observar com preciso o rico e detalhado texto que compe o
promio. Para legitimar a posio ora exposta, ou seja, para que se compreenda esse
duplo salto acima referido, faz-se necessria uma grande ateno aos primeiros versos
do promio. Inicialmente, o caminho para o qual Parmnides conduzido por
divindades41 ainda o caminho nomeado multloquo. Neste exato momento ele j se
apresenta como o homem que sabe. Por isso a sua condio de sapiente ainda no
pode se referir revelao da verdade, posto que esta s ser-lhe- revelada pela fala da
deusa mais adiante. Corrobora-se assim que esse saber relaciona-se com o saber que
Parmnides aprendeu e reconhece nos antepassados, sejam filsofos ou poetas. Ele
seguir nesta senda at que as Heliades, as filhas do sol, conduzam-no at o ponto em
que se abandonam os domnios da noite, dw mata nukto/j (dmata nykts)42. Fica assim rapidamente definida a dupla disposio que o filsofo assume diante do saber
pensado pelos seus anteriores: foi nessa via que ele, Parmnides, se tornou o homem
que sabe; mas agora, sabendo-a, conhecendo toda a extenso desta via, ele est
finalmente preparado para abandon-la em prol de um outro saber, um saber ainda
superior quele que aprendera com as musas e com os pensadores de seu tempo.
Mas se assim, significa isto que o prprio Parmnides, na qualidade de
personagem do poema, ainda tem algo a aprender e a experimentar. No fundo, todo
esse saber que faz dele o homem que sabe consiste agora naquilo que ter de deixar
para trs. Neste momento, o viajante encontra o ponto da sua deciso, o seu marco
zero no caminho: o que ele decididamente tem que saber ainda est por vir. E vir
alegoricamente a partir de um outro, uma deusa que a ele tudo revela. Por ser o
discurso do poema o discurso da deusa, Parmnides tratado no promio no como
sujeito das oraes, mas como pronome oblquo. Ele no jamais um eu, mas
permanentemente um me ou mim, at tornar-se definitivamente um tu to logo
a deusa tome para si a palavra, indicando com isso que, no cenrio do poema, nem a
ao nem o contedo do saber lhe cabem, mas sim deusa. O saber no seu, eis do
que tem que se convencer e no que confiar: que o verdadeiro saber lhe vai ser revelado,
40 B1, 2.7. 41 B1, 3. 42 B1, 9.
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o que significa, para ele, que a sua tarefa consiste num deixar-saber, tal como ocorre a
Homero e a Hesodo relativamente s musas que lhes ditavam os poemas.
Estilisticamente considerado, a adoo do pronome oblquo constitui um
recurso inusitado, uma vez que a poesia grega no parece ter conhecido um tal uso,
especialmente se se toma Homero como critrio literrio. Mas para Parmnides est em
jogo essa situao filosfica, pelo que seu estilo assume exatamente essa forma. E uma
vez sendo assim, percebe-se que ele o sapiente no apenas por ter sabido e por ter
aprendido com os seus antepassados, mas porque est disposto, com todo ardor do seu
mpeto, thyms43, a saber o que ainda no sabe: disposto a descobrir a verdade. Esse
outro lado da sua condio de o homem que sabe reaparecer indicada no fragmento
2 do poema, em que se percebe que por motivo de um questionamento que ele se abre
para a aludida disposio em saber e descobrir o que ainda no sabe nem descobriu.
Aqui, neste momento, em que os portais da noite e do dia j ficaram pra trs mas a voz
da deusa ainda no se pronunciou, aqui se encontra Parmnides diante dessa sua
disposio e diante da sua prpria necessidade de decidir. Por esta razo, ele encontra-
se numa dizsis44, isto , diante de um caminho de questionamento que se bifurca e,
diante desta bifurcao, dever decidir por que caminho continuar. O discurso, bem
como a apresentao desta bifurcao so da deusa; mas a deciso dele. E decidir-se
pelo caminho que a deusa o induz significa, para ele, no saber o que est por vir. E se
isso que ainda lhe est por vir ele no sabe nem pde ainda saber, a despeito de tudo o
que tanto conhecia, significa que se trata de um saber e de uma experincia que no lhe
vm pela observao nem pelos sentidos, nem pela memria do que j sabia a partir da
aqui mencionada tradio filosfica e potica, mas apenas e to-somente pelo
pensamento.
O promio evidencia portanto que Parmnides passou por esse caminho
multloquo, mas tambm que o sentido de sua viagem consiste justamente em
ultrapass-lo. Nessa passagem e nessa ultrapassagem, o encontro entre a reverncia
diante de quem lhe formou e preparou, mas tambm a despedida e o desvencilhamento:
chegada a hora de abandonar a tradio e dar o prximo passo. Chegou a hora de
abandonar a noite em prol da luz, a hora de libertar-se dos vus45. H no promio um
trecho em que essa ambigidade que une e separa Parmnides de seus antecessores faz-
43 B1, 1. 44 B2, 2. 45 B1, 9-10.
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se especialmente clara, sendo a tradio algo a se reverenciar, pois ela mesma que o
possibilita e, ao mesmo tempo, ela tambm algo de que se despedir, porque equvoca.
Entre os versos 26 e 28, a deusa lhe diz que no foi uma m mora, um mau destino,
quem lhe conduziu at ali, mas, tendo-o portado at ali, j se encontra agora
Parmnides trilhando um caminho jamais desbravado por qualquer mortal. Parmnides
adentra um novo domnio, no o da mortalidade das opinies, que passam e devm,
mas o da imortalidade da verdade, que e permanece46. O discurso sobre uma mora
kak no promio do poema adquire outros significados igualmente relevantes. Trata-se
de uma expresso homrica (Ilada, XIII, 602) pela qual se designa o mau destino, isto
, a morte. A saudao chair (B1, 26), pronunciada pela deusa e dirigida ao seu ouvinte,
aliada ao esclarecimento de que este mesmo ouvinte chegava at ela no por intermdio
de uma mora kak, ou seja, no por intermdio da morte, revela no apenas que o
viajante chega onde chega sem ter morrido, mas ainda vivo, como revela tambm, por
extenso, que dificilmente se pode aceitar a hoje em voga interpretao de que
Parmnides teria descrito no promio do seu poema uma experincia de katbasis. A
saudao acima mencionada refora esse impedimento quanto opo pela
interpretao a favor de um mergulho no mundo dos mortos. A morte no pontua
aqui, como usual em Homero, na qualidade de um destino funesto, mora kak, mas
muito mais como a morte do no-saber, como o desvencilhar-se da ignorncia dxica
dos mortais. Vale notar, Parmnides frisa que se trata de um caminho parte dos
homens (B1,27), pelo que se pode interpretar que o novssimo territrio agora
explorado promete na verdade uma feliz e promissora experincia, uma indita
experincia do prprio pensamento ao descobrir suas possibilidades jamais antes
pensadas. Trata-se ento da experincia de um pensamento puro, mas puro apenas e
to-somente porque depurado daquilo que turva o pensamento dos mortais, e que logo
ser objeto de considerao da prpria deusa (B1, 30)47. por isso que,
sintomaticamente, o promio culmina com o encontro entre o filsofo e a deusa
46 B1, 26. 47 A interpretao do promio como o relato acerca de uma viagem mstica ao mundo dos mortos, uma katbasis, ganhou um novo alento a partir da publicao do artigo Parmenides and Er por J. S. MORRISON (In: Journal of Hellenic Studies, 75, 1995, pp. 59-68) que, por sua vez, baseia-se nos estudos de W. BURKERT (Das Promion des Parmnides und die Katabasis des Pythagoras. Phronesis, 14, 1961) e tambm nos de D. FURLEY (Truth as what survives the lenchos. In: Cosmic Problems. Cambridge, Cambridge University Press, 1989). Os argumentos aqui arrolados so suficientes para descartar essa possibilidade interpretativa. Em todo caso, indica-se o recente artigo de C. KAHN, intitulado some disputed questions in the interpretation of Parmnides (In: Anais de filosofia clssica. I, 2, 2007), em que este autor oferece a sua crtica interpretao do promio como resultante de uma katbasis.
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anunciadora da verdade48, pois essa a diferena e a novidade que Parmnides tem a
revelar, somando-a tradio: o ainda no pensado, a verdade49.
Mas para que adentre esse novo domnio, preciso abandonar o anterior, aquele
em que se encontrava. Assim, uma vez abandonado o domnio da noite e ultrapassados
os portais da noite e do dia50, s ento que o viajante se encontra no local e na
condio exata e necessria para que se lhe revele o que verdade .
A figura dos portais da noite e do dia compe uma imagem valiosa, uma das
muitas que atestam as referncias que Parmnides faz tradio do pensamento a ele
anterior. Atravs de uma s imagem, Parmnides alude tanto ao pensamento e obra
de Hesodo como tambm ao saber filosfico de sua poca, uma vez que reconhecer
que tudo ocorre ou move-se por meio de oposies e antteses constitui um dos traos
mais marcantes de ambas essas matrizes de pensamento. Parmnides explicita atravs
dessa imagem a necessidade de abandonar esse pensamento antittico e, porque
antittico, plural, em favor do que seja uno. O mbito ou domnio da oposio dia-
noite, que perpassa todo conhecer humano em suas vrias possibilidades, deve ser
superado em favor do seu unvoco territrio de origem, que se mantm atrs dos
48 Tecnicamente, a deusa que, no poema, quem detm e mantm o discurso, no nomeada em nenhum momento. Ainda assim, parece-me justa a considerao dos intrpretes que afirmam ser ela a deusa da verdade. Segundo essa perspectiva a deusa seria a prpria altheia. Com efeito, o fato de o poema apresentar uma clara hierarquia quanto s possibilidades de conhecimento entre a verdade e as opinies dos mortais, alm da observao de que s aquele que conhece a verdade pode descrever o efetivo carter da no-verdade, so argumentos bastante convincentes em prol dessa posio. de especial interesse e valor a argumentao de Martin Heidegger a respeito (HEIDEGGER, M. Parmenides. Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1982, pp.1-23). 49 No Parmnides o primeiro a utilizar o termo. Em Herclito, v-se j o emprego de ta/ a)lhqe/a, (t althea) forma neutra plural de valor adjetivo (Cf. B112), da ser comumente traduzida por coisas verdadeiras. Mais remotamente, a forma substantiva, tal como utilizada pelo Eleata, aparece uma nica vez na Ilada, quando Homero relata um dilogo entre Pramo e Hermes, este disfarado de escudeiro de Aquiles. O curioso no emprego do substantivo no poema homrico o fato de estar inserido numa expresso pa=san a)lhqeihn kata/lecon (Ilada, XXIV, 407) atravs da qual o rei de Tria pede ao escudeiro para que lhe conte toda a verdade, o que deixa entrever a possibilidade de uma gradao da verdade, isto , de ela ser parcialmente verdadeira e, ainda assim, verdade. Este uso seria absolutamente absurdo em Parmnides. A verdade, se no inteira e ntegra, a verdade que no toda, perfeita, j no verdade. Essa clareza sobre o peso conceitual de um uso substantivo do verdadeiro, a verdade, o que faz a grande fora e a revolucionria novidade do emprego da palavra no poema parmendico. Nesse sentido, no se deve tomar por incorreto que se declare que, ainda que no seja o criador do termo, Parmnides venha a ser o inventor da verdade, posto que s a partir dele, gostemos ou no, a verdade , efetivamente, a verdade: substantiva e unvoca; integral e completa. nica, a verdade. Alm disso, considerando que a palavra, antes dele, era de rarssimo uso em sua forma substantiva, o papel de absoluto destaque do termo em seu poema, aliado ao novo e radical sentido que lhe confere, conforme aludido acima, fazem do Eleata, do ponto de vista filosfico, o criador da idia de verdade. Para uma detalhada exposio sobre o uso textual do termo altheia no antigo idioma grego, aconselho a leitura de Die Entwicklung des Wahrheitsbegriffs bei den Griechen. In: SNELL, B. Der Weg zum Denken und zur Wahrheit: Studien zur frhgriechischen Sprache. Gttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, (1978) 1990, pp. 91-104, e tambm Der frhgriechische Wortgebrauch von Logos und Aletheia. In: BOEDER, H. Das Bauzeug der Geschichte. Wrzburg, Knigshausen und Neumann, 1994. 50 B1, 9-21.
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portais fechados51. Trata-se pois de uma viagem que tem o equvoco como ponto de
partida e o unvoco como porto de chegada.
Entre um ponto e outro, Parmnides guiado por divindades, at que seja
tomado pela mo52, finalmente, por uma deusa cujo discurso responsvel no apenas
pelo restante do promio, mas sim por todo o contedo do poema. Dessa forma, no
s no promio, mas ao longo de todo o poema, o conhecimento que nos oferecido
por Parmnides textualmente movido e ditado por uma deusa. Qual seria o porqu
dessa escolha? Por que preferiria Parmnides esse estilo de literatura, uma alegoria
potica, quando pertence a um crculo em que tal modo de pensar e tal maneira de
expresso eram vistos como risveis? Pense-se nos escritos de Xenfanes, por
exemplo53. Plato, no seu Parmnides, aponta o fato de ter sido o Eleata ridicularizado
pelo seu pensamento e obra54. Ser que uma tal escolha condiz apenas e to-somente
com o artifcio literrio pelo qual Parmnides d mostra da grandeza do seu espanto,
espanto a quem tanto Plato como Aristteles consideraram a origem de todo e
qualquer filosofar? bem possvel que sim. Mas para alm dessa resposta possvel,
duas outras inscrevem-se igualmente como possibilidades: (A) para indicar, como
relatado no promio, que se trata de um caminho nunca antes percorrido por qualquer
humano, isto , por qualquer mortal, pelo que, no sendo pertencente ao mundo dos
mortais, tem que s-lo do dos imortais, do divino; (B) e tambm para alegar a sua
procedncia homrica, a quem deve uma deciso primordial para a sua filosofia.
Com efeito, essas duas possveis respostas questo aqui proposta no se
excluem mutuamente; pelo contrrio, complementam-se. preciso pois desenvolv-las
para que se torne claro o que com elas se quer dizer.
no verso 27 do promio que a deusa diz a seu ouvinte que o caminho que ora
se lhe abre um caminho parte dos homens. No verso anterior, ela antecipa-lhe
que no se trata de uma mora kak/ quem o destinou a esse caminho. Essa antecipao
necessria para que no se julgue que se trata aqui de uma viagem post-mortem. O
promio indica um caminho, sem dvida, e tambm diz o para onde ir desse caminho.
A ltima destinao humana, o seu ltimo para onde a morte. Isso bvio e
flagrante, por isso tem a deusa que mostrar ao seu ouvinte que, neste caso, no se trata
51 B1, 16-17. 52 B1, 22-23. 53 XENFANES B1, B2, B11, B15 etc. 54 PLATO. Parmnides. 128 d.
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dessa obviedade, porque, afinal, ela lhe diz que no nenhuma m Moira, a morte,
quem o trouxe at ali. Pelo contrrio, fala de um regresso: salve!, porque nenhum
destino funesto te enviou a voltar por este caminho55.
Assim quebrado o entendimento usual da morte como mau destino atravs da
idia de um regresso, um regresso no sentido de um refgio ou isolamento em relao a
todos os caminhos humanos, mortais. nesse sentido que, no sendo mortal o
caminho, ser ele necessariamente divino. E tambm nesse isolamento, nesse estar
parte dos homens, que Parmnides receber da deusa a revelao de suas palavras.
Mas o verso acima citado impe uma delicada pergunta: em que sentido pode
ser entendido o caminho pelo qual Parmnides agora adentra como um caminho de
retorno? A traduo se justifica pelo fato de que a forma ne/esqai (nesthai)
normalmente traduzida para o portugus pelo verbo vir ou verbos anlogos pode
ser tranqilamente vertida para voltar, retornar, regressar; com efeito, so estes
os seus significados mais exatos, uma vez sendo forma verbal de noste/w (nosto) e dado
o parentesco deste com no/stoj (nstos), assumindo assim o significado de regresso e, mais do que isso, de um regresso ao pensamento no/oj (nos)56. Isso d consistncia textual idia de um retorno ou reencontro com um pensamento puro que, por sua
vez, para que seja puro, necessita depurar-se da errncia57 tpica do ir e vir do pensar
humano que, desorientado, se movimenta sem meta, caminho ou destino prprios,
consumindo-se inteiramente em suas banais preocupaes.
Assim sendo, o ouvinte da deusa deve penetrar uma regio em que igualmente
afastados se encontram aquilo com que os homens geralmente se ocupam: o mundo
sua volta. Isolado no mais radical ensimesmamento do pensar, Parmnides adentra o lar
dessa deusa, onde todos e quaisquer aparecentes encontram-se ausentes. s nessa
regio do pensamento que lhe pode ser revelada a verdade. nesse domnio que ante
ele se abre, a partir que fiquem para trs os portais da noite e do dia, a onde nada mais
h para ver e ouvir mas apenas para pensar, a que ele conquista a condio de
55 B1, 26-27. 56 A esse respeito, ver WINTER, S. Die Gegenwart der Themis bei Parmenides und der Entzug der Bestimmung in der Heideggers Lichtung. In Sapientia. LIV, 205, 1999, pp. 5-21. 57 Cf. B6, 5: pla/ttontai (plttontai). interessante notar que tambm o vocbulo pa/toj(ptos; B1, 27) atalho, trilha, caminho pode ser traduzido por vagueao, o que reala, tal como tambm o faz a sua traduo por atalho, que o caminho de Parmnides um caminho apartado da falta de rumo caracterstica ao humano. Esta traduo mostra-se novamente adequada quando se considera que o uso deste termo em linguagem homrica adquire muitas vezes o significado aludido. A esse respeito, indico o artigo WINTER, S: Die Gegenwart der Themis bei Parmenides und der Entzug der Bestimmung in der Heideggers Lichtung . In Sapientia. LIV, 205, 1999, pp. 5-21.
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experimentar o que a deusa lhe tem a dizer, recebendo-o assim para alm de toda
sensibilidade, uma regio do pensamento que s pode ser explorada a partir que o
prprio pensamento sofra uma total desmundificao.
A casa da deusa portanto esse ensimesmamento do pensar, em que o
pensamento recai sobre si mesmo, fazendo de si o seu objeto. O isolamento onde se
calam as vozes que compem aquela via multloqua. Se, por um lado, no foi uma m
Moira que o conduziu at aqui, por outro cabe perguntar: quem ento? Anteriormente
j se havia afirmado que essa conduo dado o dilogo histrico com poetas e
filsofos da tradio que Parmnides deixa entrever ao longo do promio relaciona-se
com a formao do saber do prprio viajante. Mas agora preciso mais do que isso
para que se complemente a razo pela qual permitido a ele a entrada nesse novo e
inexplorado terreno; preciso pois dizer o que foi e sempre decisivo nesse
aprendizado que o ouvinte da deusa colecionou da tradio, isto , qual o contedo
positivo a partir do qual ele foi portado aonde ora se encontra, pelo que se revela,
igualmente, qual o ponto de partida do pensamento de Parmnides. a prpria deusa
quem h de responder a essa pergunta: no uma m mora, mas thmis e dke portaram o
viajante at o seu domnio58.
Se o encontro com a deusa significa um retorno, um reencontro do pensamento
consigo mesmo, esse regresso, por outro lado, foi-lhe propiciado por essas duas deusas,
uma, thmis, a fundadora de toda lei, e outra, dke, literalmente, a indicadora, aquela que
indica a obedincia e a observncia daquilo que j fora decidido como lei por sua me,
thmis. Dke, a filha, assume a misso de no permitir que se transgrida a lei59, cuida para
que o seu contedo, aquilo que thmis estipulou, no se desvanea e perca valor. Dke
indica, separando, o que justo e o que injusto de acordo com essa lei, e por isso
que comumente referida como a deusa da justia; sempre atenta, ela quem pune
todos os possveis desvios, todas as agresses ao que j sempre se encontra decidido e
estipulado por thmis60. na segurana dessa indicao, na firmeza desse mostrar o que
58 B1, 26-28. 59 O sol no exceder as medidas, afirma Herclito; se o fizer, as Erneas, servas de dikh, ho de o encontrar. HERCLITO B94. In: COSTA, Alexandre. op. cit. p. 151. 60 Sobre dke como punidora, o prprio promio oferece um belo exemplo dessa sua funo ao nome-la dikh polu/poinoj(dke polpoinos): justia de muitas penas ou justia de muitos castigos/condenas (B1, 14). Mostra-se relevante notar que ela, no promio, quem controla o acesso aos portais do dia e da noite, tendo ela se deixado persuadir pelas Heliades a fim de que o viajante pudesse transpass-los (B1, 14-18). Que a deusa da justia se tenha permitido persuadir significa: (A) bons argumentos apresentaram as Heliades a favor de Parmnides e (B) que neste exato momento, Parmnides julgado por dke como merecedor ou no dessa permisso, o que refora a idia de que o acesso verdade, mesmo que revelada,
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ou no justo, ou seja, o que deve e o que no deve ser, que se engaja pstis, termo que
significa tanto confiana, como convico e que no s adjetiva a verdade61 no
promio como tambm o modo da experincia puqe/sqai (pythsthai)62: instruir-se,
aprender pela experincia do que fivel, convicto e convincente a que a deusa
exorta o seu ouvinte em total confiana e intimidade.
Tratam-se de deusas absolutamente tradicionais cultura grega em geral e cuja
origem to remota que imemorial. Aqui Parmnides recorre a um modo de
pensamento que julga deter princpios e valores que devem ser recuperados. porque
observou e obedeceu aos princpios e significados a que se associam thmis e dke que ele
pode, agora, estar onde est, ou seja, na iminncia de ouvir a verdade atravs do
discurso da deusa.
Que princpios so esses, mais exatamente? E por que devem ser recuperados?
Comece-se pela primeira pergunta. Se thmis a fundadora, vale inquerir: o que