Tese de Sociologia Sobre Rituais de Cura.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
A CURA PELA FE:
Crenas, Saberes, Prticas e Poderes no Mundo Rural do
Nordeste Brasileiro
Maria da Conceio Mariano Cardoso van Oosterhout
RECIFE
2010
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA
A CURA PELA F: Crenas, Saberes, Prticas e Poderes no
Mundo Rural do Nordeste Brasileiro
Maria da Conceio Mariano Cardoso van Oosterhout
Tese elaborada por Maria da Conceio
Mariano Cardoso van Oosterhout, sob
orientao da Profa Dr
a Josefa Salete Barbosa
Cavalcanti e apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Sociologia da Universidade
Federal de Pernambuco para obteno do grau
de Doutora em Sociologia.
Recife, dezembro de 2010
-
Catalogao na fonte
Bibliotecria, Divonete Tenrio Ferraz Gominho, CRB4-985
O58c Oosterhout, Maria da Conceio Mariano Cardoso Van
A cura pela f : crenas, saberes, prticas e poderes no mundo rural
do nordeste brasileiro / Maria da Conceio Mariano Cardoso van
Oosterhout. Recife: O autor, 2010.
281 f. ; 30 cm.
Orientadora: Profa. Dra. Josefa Salete Barbosa Cavalcanti
Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.
Ps-Graduao em Sociologia, 2010.
Inclui bibliografia.
1. Sociologia. 2. Catolicismo. 3. Populao rural. 4. Cura. 5. F. 6.Crenas populares. I. (Orientadora). Cavalcanti, Josefa Salete Barbosa. II. Ttulo.
301 (CDD) 22.ed. UFPE(BCFCH2011-15
B UFPE ( CFCH).2011-13
-
Dedico este trabalho aos romeiros e
romeiras, que tanto me acolheram e me
mostraram a fora da f.
memria do meu pai, Jos Mariano
Cardoso, homem do campo, que me
mostrou o cu e a terra.
-
AGRADECIMENTOS
Muitas foram as pessoas que colaboraram para a produo dessa tese.
Agradeo, especialmente, a Professora Dra. Josefa Salete Cavalcanti por sua valiosa
contribuio, marcada por compreenso, estmulo e apoio, fundamentais para a realizao
desta tese.
Ao Professor Dr. Roberto Motta agradeo as preciosas contribuies na fase inicial desta tese.
Agradeo aos demais professores do PPGS/UFPE pelas discusses, pelo aprendizado
compartilhado em sala de aula, e por todas as oportunidades que este programa me ofereceu.
Aos colegas do curso, por tudo que compartilhamos. Pelos momentos agradveis e por
aqueles desafiantes que nos serviram de reflexo e aprendizado coletivo. Particularmente
agradeo a sintonia com Tarcsio e Assuno, pelas afinidades da nossa ruralidade.
Secretaria e demais colaboradores do programa, especialmente a Vincius e Priscila pela
disposio com que nos atenderam.
CAPES pela bolsa concedida que possibilitou a realizao deste trabalho.
Especialmente agradeo ao curador Jacinto e sua famlia pelo acompanhamento nesta
pesquisa, pelas infinitas colaboraes, esclarecimentos e a disposio que demonstraram em
me atender e acolher, a qualquer dia, em sua casa.
Aos padres amigos que se dispuseram com preciosas reflexes e colaboraes escritas.
s irms da Congregao do Amor Divino por tudo que me ensinaram.
Aos meus irmos que mesmo distantes e sem saber muito do que eu pesquisava, estiveram
presentes em orao para que meu trabalho desse certo.
minha me pelas infinitas lies de vida. Foram ela e o meu pai que me motivaram para
conhecer melhor a religio e a espiritualidade no campo.
-
Por fim, agradeo ao meu marido Wouter van Oosterhout e aos meus filhos Jane Janaina e
Joel Sebstian, pelo suporte e compreenso da minha luta na priorizao desta tese. Wouter, o
antroplogo viajante que, quando esteve presente, sempre se disps para comentrios,
sugestes e documentao fotogrfica.
A Deus e as demais foras divinas por no faltar comigo neste trabalho.
-
RESUMO
Esta tese busca analisar a cura religiosa no catolicismo popular e contemporneo, entre as
populaes rurais do interior da Paraba, do Nordeste brasileiro. O estudo investiga a cura
ministrada por vrios curadores, os tipos de curadores populares, as prticas de devoo
pessoal e as experincias em perspectivas holsticas no universo religioso da cura. Constata-se
que as aes dos agentes de cura no so excludentes entre si. Elas se associam e at certo
ponto se complementam de acordo com a situao e o pblico atendido, configurando aes
em torno de um hibridismo religioso-cultural. Na anlise, o trabalho confere especial
relevncia s expresses simblicas distintas, ressignificao de valores culturais e a ddivas
e reciprocidades que se constituem no mbito da cura. Neste sentido, discute a cura em
perspectiva que vai alm da cura de um mal fsico e focaliza os elementos que sugerem a cura
psquica, introduzindo-se assim para os propsitos deste estudo, o conceito denominado de
cura social. A cura social se expressa a partir de particularidades culturais, polticas,
econmicas e sociais que o processo de cura envolve e revela. Ganham destaque alguns
aspectos considerados relevantes nas diferentes trajetrias pessoais dos curadores e suas
repercusses na aquisio e no desempenho para com o Dom da cura. A cura religiosa
entendida como algo que ultrapassa classes e categorias sociais; a cura est ao alcance de
qualquer indivduo que nela confira f. O estudo foi desenvolvido com base em princpios
metodolgicos etnogrficos, apoiados pela observao participante, seguida por entrevistas
semi-estruturadas, por conversas informais e por demais contatos com pessoas dos dois
segmentos curadores e curados. A pesquisa permitiu revelar de modo abrangente as
concepes do publico na regio pesquisada em relao ao conceito de cura e doena, bem
como verificar a relevncia social das experincias de cura.
Palavras chave: cura - f crenas - ddiva catolicismo catolicismo popular rural
nordeste Paraba
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ABSTRACT
This thesis investigates religious healing practices in the context of popular and
contemporaneous Catholicism, among the rural population of Paraba, in the Northeast of
Brazil. The study focuses on the healing practices of various healers, types of popular healers,
personal devotion habits and the experiences related to holistic perspectives in the context of
religious healing. It is observed that the actions of religious healers are not exclusive. These
actions can be associated to complement each other in accordance with the situation and the
public that is being attended, resulting in actions characterized by a religious-cultural
hybridism. Specific attention is directed towards distinct symbolic expressions, to the re-
signification of cultural values and to exchange and reciprocity that are established in
connection with healing practices. Healing is discussed within a perspective that is not limited
to the healing of physical defects and focuses on the elements that suggest psychic healing,
introducing for the benefit of this study the concept of social healing. Social healing is
expressed on the basis of cultural, political, economical and social factors that the healing
process involves and reveals. Several relevant aspects of the personal trajectories of healers
and their repercussion on the acquisition and performance of the Gift of healing are brought
into the spotlight. Religious healing is understood to surpass social categories and classes; any
individual that beliefs in religious healing can be healed. The investigation was developed on
the basis of ethnographic methodological principles, assisted by participant observation, semi-
structured interviews, informal conversations and other contacts both with healers as with
healed persons. The study has permitted to reveal the conceptions of the public in the region
concerning the concepts of healing and health, as well as to verify the social relevance of
healing experiences.
Keywords: healing belief popular belief gift Catholicism popular Catholicism rural
Northeast - Paraiba
-
RESUME
Cette thse analyse la gurison religieuse dans le catholicisme populaire contemporain, chez
les populations rurales de Paraba, dans le nord-est brsilien. L'tude examine la gurison
dispens par plusieurs gurisseur, les types de gurisseurs populaires, les pratiques de
dvotion personnelle et leurs expriences sous la perspective holistique dans l'univers
religieux de la gurison. On constate que les actions des agents gurisseurs ne s'excluent
aucunement. Elles sont relis et dans une certaine mesure elles se compltent suivant la
situation et le public vis. Dans le cadre de l'analyse la recherche met en relief les distinctes
expressions symboliques, la re-signification des valeurs culturelles et les dons et rciprocits
qui se constituent dans le domaine de la gurison. Dans ce sens on aborde le sujet dans une
perspective qui va au de-l de la gurison des maux physiques et on le dirige vers des
lments qui suggrent la gurison psychique en introduisant par ce biais le concept de
gurison sociale. Celui-ci s'exprime partir de certaines particularits culturelles, politiques,
conomiques et sociales enveloppes et dvoils par le processus de la gurison . On met en
relief certains aspects significatifs dans la trajectoire personnelle des gurisseurs et leurs
consquences dans l'acquisition et la pratique du don de gurir. La gurison religieuse est
conue comme allant au de-l des classes et catgories sociales; elle est la port de n'importe
quel individu qui y met de la foi. L'tude a t dveloppe sur des principes mthodologiques
ethnographiques et appuye par l'observation participative suivie des entretiens demi
structurs, par des conversations informelles et par d'autres contacts avec des personnes des
deux segments, gurisseurs et guris. La recherche a permis de dvoiler de faon tendue les
conceptions du public de la rgion tudi par rapport aux concepts de gurison et maladie, et
elle a permis d'lucider le rle sociale des expriences de gurison.
Mots-cl: gurison, foi, croyance, don, catholicisme, catholicisme populaire
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SUMRIO
INTRODUO 13
i Universo e objetivos da pesquisa. 13
ii O perfil dos entrevistados. 17
iii Recorte da pesquisa, a capela e os pontos de devoo. 19
I PERSPECTIVAS METODOLGICAS E DELIMITAO DOS
CAMINHOS DA PESQUISA
24
1.1 Especificidades metodolgicas. 24
1.2 Aspectos relevantes da prtica metodolgica: uma incurso pelos
passos dos romeiros.
32
1.3 Aprendendo com a pesquisa: as lies oferecidas pela prtica de
campo.
45
II O CAMPO RELIGIOSO: FACES DO CATOLICISMO NO BRASIL
E NA REGIO NORDESTE
50
2.1 Histria do catolicismo na regio. 60
2.1.1 Idas e vindas entre espiritualidade e ao: o trabalho das
Pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base.
63
2.2 Os Santurios religiosos como espaos de vivncia da cura e da F. 68
2.3 O Centro Alternativo de Cura Bom Samaritano. 76
2.4 A capela do Stio Olho dgua. 76
2.5 Rstico ou Renovado: o Catolicismo como referncia. 80
III CONCEPES E PRTICAS DE CURA: DO SOFRIMENTO
RESISTNCIA NO COTIDIANO
84
3.1 Problemas, doenas e solues nos altares de cura. 91
3.2 Vozes das mulheres do passado ao presente: entre angstias, perdas
e formas de resistncia.
94
3.3 Do cuidado com os filhos: a dana dos obstculos e a fora da f. 111
3.4 Os casos espirituais. 114
3.5 As prticas de cura e a recomposio do cotidiano. 116
-
IV AGENTES DE CURA: TRAJETRIAS E HISTRIAS DE VIDA DE
CURADORES E BENZEDORES
118
4.1 Do antigo curador: a topografia espiritual e a venerao natureza. 120
4.2 Tabus, permisses, regras, lugares - o Stio Olho dgua como um terreno do sagrado.
126
4.3 Aes de reciprocidade para alm da cura religiosa: a bodega nos rumos de uma experincia de fundo rotativo.
128
4.4 A metfora da passagem para outra vida. 130
4.5 Os rezadores e benzedores. 135
4.6 As irms curadoras. 140
4.7 Os Curadores Consagrados ou Almas Santas: Padre Ibiapina, Frei
Damio e o Padre Ccero.
142
4.7.1 Padre Ibiapina, o Apstolo da Caridade. 142
4.7.2 O Padre Ccero. 147
4.7.3 Frei Damio: um pregador itinerante da palavra de Deus. 153
V A AQUISIO DO DOM DA CURA: O DOM VEM DE DEUS 158
5.1 O sofrimento como passaporte para alcance e plenitude do Dom. 161
5.2 O Dom em trs faculdades: a vidncia, a escuta e a linguagem. 172
5.3 Penitncia e renncia na esfera do Dom. 176
5.4 Devoo e Pregao expressando capacidades no Dom. 179
5.5 Transferncia ou continuidade do dom? 181
VI O PROCESSO DE CURA: DAS GRAAS ALCANADAS E DO
MERECIMENTO
188
6.1 Promessas, devoes e a interveno dos cones religiosos: Padre
Ibiapina, Padre Ccero, Frei Damio e os Santos de Proteo.
192
6.2 Os curadores e suas formas de atendimento. 202
6.3 Dos curadores aos mdicos: caminhos de mos duplas. 210
6.4 A eficcia simblica da cura. 214
CONCLUSO 229
BIBLIOGRAFIA 237
-
ANEXOS
I Mapa da regio da pesquisa
II Ensaio fotogrfico
III Perfil dos Entrevistados
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13
INTRODUO
A compreenso do fenmeno da cura atravs da f constitui a principal finalidade desta tese.
Estudar as experincias de cura no mbito da religio implica em dar ateno re-
significao das crenas religiosas e suas expresses. Particularmente, procuramos identificar
a configurao de reciprocidades e mltiplas ddivas caractersticas de trocas simblicas
nas relaes entre pessoas, divindades, Santos, Almas Santas e os agentes de cura.1 Com
essas delimitaes iniciais, a nossa agenda emprica e terica foi acolhida pelo Doutorado no
Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE.
Desde cedo tivemos a oportunidade de nos envolver com trabalhos sociais na rea da
pesquisa atual. Ainda, enquanto estudante universitria, participamos de trabalhos voltados
aos Movimentos Sociais Populares que inicialmente surgiram vinculados Igreja Catlica da
Paraba. Trabalhamos com ONGs, comeando pelo Projeto Educativo do Menor (PEM) numa
experincia de educao popular na alfabetizao de crianas e adultos. Posteriormente, no
Servio de Educao Popular (SEDUP), trabalhamos na formao de trabalhadores rurais e
em atividades de assessoria junto aos Movimentos e Pastorais Populares, em dois momentos:
primeiro por dentro da Igreja Catlica, quando ela criou esses organismos chamados
Servios; depois em interface com essa mesma Igreja quando os Servios se tornaram
autnomos, na dcada de 90. Nessa regio desenvolvemos tambm a pesquisa para minha
dissertao de mestrado, na rea de sociologia rural.2 Mais recentemente, j como professora
universitria, pudemos contribuir pesquisa e extenso na regio, o que nos inspirou para
formular a proposta que hoje culmina na nossa tese.
i Universo e objetivos da pesquisa
Inicialmente quisemos visualizar, amplamente, a paisagem religiosa na regio
pesquisada, situada dentro do Brejo e Curimata paraibano. Os Santurios religiosos
chamaram nossa ateno, pela novidade que traziam com a atrao dos fiis s romarias.
1 O termo almas santas nesta pesquisa se refere a pessoas que em vida demonstraram aes religiosas
importantes no catolicismo e que aps suas mortes continuam de alguma forma dando assistncia, conforme se
acredita no mbito da religiosidade popular. Nesse sentido, introduzimos no decorrer do trabalho, os padres
Ibiapina , Ccero e Frei Damio; tambm inclumos nesta classificao um dos curadores falecidos que ainda tem
significado especial na sua localidade de origem. 2 Que se dedicou ao estudo da formao das lideranas de trabalhadores rurais naquela localidade.
-
14
Romeiros vindos de muitos lugares, stios, cidades, povoados e mesmo outros estados trazem
elementos novos ao campo religioso na Diocese de Guarabira.3
Percebemos que experincias consideradas tradicionais, associadas ao catolicismo
popular ou catolicismo rstico, estavam entrando em cena com expresses diversas e
ampla aceitao por parte da populao catlica. Preocupamo-nos em entender o significado
desse acontecimento. O que estava realmente acontecendo naquele cho to marcado pelo
trabalho pastoral social, onde num passado prximo eu estive muito presente? Aparentemente
a Igreja Catlica enquanto instituio estava investindo na retomada dos cultos aos antigos
santurios e na implantao de novos. Entretanto, a instituio entendia essa retomada e
investimento como algo relacionado no apenas vivencia religiosa, mas tambm como uma
continuidade do trabalho social, do qual falaremos adiante.
Vimo-nos atradas pela novidade. Inicialmente optamos por aprofundar a aparente
influncia da religio nos processos de recuperao da sade das pessoas. Direcionamos nossa
ateno para o pblico rural; com o qual compartilhamos nossas origens e que tm
influenciado nossa sensibilidade prtica e profissional. Direcionamos nosso olhar tambm
para outros lugares e experincias de destaque na regio. Priorizamos as mais localizadas,
onde a vivencia da religiosidade dialogava com minha inteno de entender o significado
social implcito nas prticas religiosas atravs da cura. Com esse propsito, entramos no
estudo pela porta da Capela So Pedro do Stio Olho dgua no municpio de Tacima/PB,
pelo Centro Bom Samaritano em Pirpirituba/PB e pelo acompanhamento a alguns Santurios,
citados nas primeiras entrevistas que foram realizadas.
A partir desse percurso na regio, procedemos neste estudo, guiadas por alguns
questionamentos: Por que as pessoas recorrem cura religiosa? Tem relao com assistncia
mdica insatisfatria na rede pblica? Como que locais aparentemente sem destaque
ganham visibilidade e se tornam referncia para cura na vida das pessoas? Quem recorre e
quem ministra a cura e em que procedimentos ela se firma? Quais as repercusses das
prticas de cura, considerando o bem-estar fsico, social e at simblico? Como ocorre a
reintegrao das pessoas ou fortalecimento social pelas prticas de cura, e como isso repercute
na sobrevivncia e resilincia das pessoas e das comunidades envolvidas? Entender como
circulam os saberes atuantes como reguladores entre curadores e curados nas relaes entre
a pessoa, seus parentes e a comunidade, Deus e seus enviados, mortos e vivos, se tornou um
tema transversal.
3 A Diocese de Guarabira situa-se na regio do Agreste paraibano, a 98 quilmetros da Capital do Estado. Rene
32 municpios, somando um total de 410 mil habitantes. Os dados provm do acervo da secretaria diocesana.
-
15
Agrupamos essas questes ancoradas em trs vertentes de investigao. A primeira
vertente diz respeito existncia e funo dos curadores e rezadeiras4, ao resgate de suas
trajetrias e origem ou forma de aquisio e/ou transmisso do dom de cura; a segunda
vertente se refere existncia da cura pela devoo, relao da pessoa devota a um Santo
Protetor ou s Almas Santas, como nos casos do Padre Ibiapina, Frei Damio e o Padre
Ccero; a terceira vertente diz respeito a entender a cura numa perspectiva holstica religiosa,
incluindo o exemplo de um grupo de Irms catlicas.
Os curadores, geralmente, no se autodenominam como tal. Quem cura Deus.
Eles so intermediadores ou mediadores da ao divina. Eles emprestam seus corpos e suas
disponibilidades, seu tempo causa. So agentes de cura. Essa perspectiva serve para todas
as denominaes de cura trazidas pela pesquisa.
Analisamos duas geraes de curadores de uma mesma famlia, av e neto.
Entrelaam-se ciclos de vida distintos, pocas histricas diferenciadas, bem como formas de
aquisio e transmisso de dons especficos, abordando desde os anos 1950 at a atualidade,
porm com grandes semelhanas entre uma histria e outra.
A devoo surge como modalidade importante entre agentes e pacientes no
processo de cura.5 Conforme veremos no decorrer deste trabalho, na devoo no figura uma
pessoa fsica de um ser curador, mas a pessoa espiritual: o Santo, ou a Alma Santa. Para os
fiis, o merecimento define tanto a necessidade a qual o ato da orao se destina, como a
graa alcanada. a relao da pessoa com o Santo ou com a Alma Santa que vai atuar na
cura. O merecimento visto de forma diferenciada entre o conjunto dos informantes. Ele pode
ou no determinar a cura, pois, a princpio, Deus atende a todos que a ele recorrem.
A perspectiva holstico-religiosa focaliza a cura na totalidade da pessoa em
tratamento. Partindo da f, como nas demais vertentes, as irms trabalham com orientaes
alimentares e terapias especiais. Csordas (2008:33) entende a perspectiva totalizante da cura
4 Utilizamos os termos curadores e rezadores de forma diferenciada. Ambos podem compartilhar saberes,
dons e prticas. No entanto, apresentam diferentes abordagens nos procedimentos de cura e na aquisio e mesmo na transmisso do conhecimento. Muitas vezes o rezador apenas um benzedor, como se atendesse aos primeiros socorros da cura. O termo curador tambm utilizado para diferenciar de curandeiro, para evitar que seja confundido com o curandeirismo, no sentido negativo da palavra. O curandeirismo tambm tem uma origem mgico-fetichista. Segundo Artur Ramos (1940), citado por Arajo (2004), a medicina nasceu do empirismo sacerdotal. O feiticeiro tambm um medicine-man, o homemmedicina do grupo social primitivo. Estas funes se separam, no Brasil. O medicine-man virou curandeiro. Todas as prticas de medicina e de feitiaria obedecem s leis de Frazer, da magia imitativa e da magia simptica (ARAJO 2004:186). 5 Usamos o termo devoto/a aqui para designar aquele/a que tem devoo, que segue um ritmo dirio nas suas
prticas religiosas. Para estudiosos do catolicismo, o termo se refere a uma categoria religiosa que atravs de
prticas devocionais capaz de atrair poderes para si e para o grupo social e podem at alterar a ordem natural
das coisas, lugares, objetos, pessoas, smbolos, e ritos considerados sagrados.
-
16
enquanto um compsito tripartite que situa o processo de cura em trs dimenses: o corpo,
a mente e o esprito. Procuramos entender a cura religiosa para alm da cura de um mal de
natureza fsica. Ela principalmente uma cura psquica e com isso, torna-se tambm uma cura
social. A cura no apenas tenta recompor a sade fsica e mental, mas serve para recuperar a
segurana, o prestgio, a honra, contribuindo, assim, para reorganizar o caos (CSORDAS,
2008).
Thomas Csordas um dos autores que muito tem contribudo interpretao da cura
religiosa no pas.6 Com sua pesquisa Corpo, Significado, e Cura, Csordas (2008) aborda
diretamente a questo da cura religiosa e explora as implicaes tericas e metodolgicas que
visam dar conta da experincia de quem passa pela cura. A preocupao fundamental desse
autor a configurao de um paradigma para a interpretao dos sentidos do ser humano,
um paradigma que seja capaz de dar conta tanto do vivido e de suas transformaes quanto do
culturalmente estabelecido, do compartilhado e dos significados j sedimentados. Dentre
outros grupos estudados, Thomas Csordas pesquisou os rituais de cura entre Catlicos
Carismticos atentando para questes transculturais de procedimentos envolvidos no adoecer,
no curar e nas relaes com o sagrado.
Nesta tese, analisamos dimenses conceituais de cura bem como de doena que
abrangem as esferas do pessoal, do familiar e do social. Tais esferas correspondem a casos em
que uma pessoa ou sua famlia est procura de cura. Porm, no podemos desconsiderar que
mesmo quando procurada por indivduos, a repercusso da cura tambm coletiva e tem um
efeito social mais amplo, como atestam casos de reintegrao da pessoa na comunidade, de
mudana de comportamento e de soluo de problemas relacionados relao conjugal e
familiar, ao desemprego, depresso, a vcios e a algumas doenas fsicas e mentais.
Realizamos o estudo no interior da Paraba nas micro-regies do Brejo, Curimata e
Agreste.7 Parte dessas micro-regies localiza-se no semirido. O estudo compreendeu reas da
Diocese de Guarabira abrangendo cerca de cinco municpios8, delimitados a partir da
referncia relevante s atividades de cura. A regio do Curimata caracteriza-se pelos
impactos negativos causados pelas secas, que geram frgeis condies do solo para o trabalho
na terra. A situao atual do Stio Olho dgua est em pleno contraste com o passado,
quando o local era conhecido por sua vegetao abundante.
6 Csordas tem influenciado os estudos mais destacados no campo da cura no Brasil como os trabalhos de Negro
(1997); Minayo (1994); Maus (2000; 2002); Rabelo (1994; 1993); Monteiro (1985) dentre outros. 7 Essas regies se diferenciam por clima, relevo e vegetao, no entanto, de acordo com a linguagem comum da
diocese, em funo de sua rea de atuao, costumeiramente denomina-se em geral, regio do Brejo. 8 Os municpios Tacima, Pirpirituba, Bananeiras, Solnea e Guarabira.
-
17
Os sujeitos da pesquisa tm em sua maioria origem camponesa. Vale salientar que, em
virtude de suas caractersticas scio-polticas particulares e experincia de carncia
econmica, esses indivduos combinam, ao longo de suas histrias, o trabalho na agricultura
com outras atividades.9 No entanto, como assinalam Cavalcanti (1984) e Garcia Jr. (1990), a
migrao temporria para os grandes centros do pas, especialmente para o sudeste, constitua
uma estratgia de sobrevivncia importante. Nas ltimas dcadas, problemas conseqentes da
seca, violncia e assaltos, dos quais os idosos e aposentados so vtimas preferenciais,
provocaram a migrao definitiva para as cidades do interior. Esses problemas interferem no
livre trnsito das pessoas, inclusive na sua ida aos locais religiosos.
ii O perfil dos entrevistados
Foram entrevistadas 50 pessoas. Dadas as condies de realizao da pesquisa, com as
50 entrevistas reunimos um total de 61 informantes (37 mulheres e 24 homens). Isso ocorreu
devido forma como procederam as entrevistas. Freqentemente, a pessoa entrevistada esteve
acompanhada do cnjuge, do filho ou da filha. Em alguns momentos pessoas interessadas se
juntaram ao grupo, fazendo com que tivssemos de adotar uma abordagem adequada para um
tipo de grupo focal. Das pessoas que entraram nas entrevistas ao lado de um narrador
principal, no foram registrados dados especficos. Das 50 pessoas entrevistadas, 7 pertencem
ao grupo dos curadores.
Sexo, estado civil, composio da famlia
Do grupo dos cinqenta entrevistados 24 so homens e 37 mulheres. Destes, 12 se
descrevem como solteiros, incluindo algumas pessoas acima de 80 anos. Outras 12 pessoas
no informaram o estado civil. Alguns se definem como moa ou rapaz e com isto
sugerem ser celibatrios. O nmero de filhos entre os entrevistados variou de 1 a 22
descendentes por famlia.
9 Destaca-se o trabalho artesanal, a criao de animais para o corte e o servio pblico, basicamente na qualidade
de professores municipais. So exemplos de estratgias para a vida rural, entendendo que prevalece o auto-
reconhecimento como agricultor.
-
18
Faixas Etrias
Quinze pessoas entrevistadas tm idade entre 21 e 50 anos, vinte pessoas entre 51 e 70
anos e 15 entre 71 e 90 anos de vida. Os outros 11 informantes agregados no informaram a
idade.
Origem
Do meio rural procedem a 44 entrevistados. Outros 4 provm da cidade; 3 pessoas no
informaram sua origem. Entretanto, mesmo constatando uma maioria de origem rural, a maior
parte do pblico entrevistado hoje reside na cidade: so 42 que residem nas cidades e
povoados e 19 no campo; 5 pessoas no informaram sua procedncia. Parte das pessoas que
hoje reside na cidade continua trabalhando no campo.
Ocupao principal e secundria
Os entrevistados se ocupam na agricultura, comrcio e servio pblico municipal;
incluindo auxiliares de servios gerais, vigilantes e um motorista. Os aposentados somam 28
do total. Alguns destes aposentados, mesmo vivendo nas cidades, ainda trabalham no campo.
As ocupaes no so excludentes: as pessoas diversificam quando possvel e conveniente. A
maioria dos aposentados rurais ainda trabalha em atividades agrcolas.
Orientao religiosa
Os entrevistados so de origem catlica e enfatizam seu catolicismo, exceto um deles
que frequenta a Igreja Universal do Reino de Deus. Este explicou que, mesmo sendo
evanglico, gosta de participar de tudo que representa coisa de Deus. Por isso estava presente
no Santurio de Ibiapina. Os religiosos consagrados que foram entrevistados somam 05
homens (trs padres, um bispo e um missionrio) e trs freiras. Alguns outros religiosos
forneceram informaes por via escrita.
Problemas citados
Identificamos um total de cinqenta e dois casos caracterizando: dificuldades
relacionadas a deficincias fsicas; consultas a respeito de negcios, venda de imveis, por
exemplo; representao comercial; relaes familiares; atendimento com filhos deficientes
que se perdem na capital do Estado; livrar-se de sujeio a patres; documentos perdidos;
aposentadorias atrapalhadas; previses para o enfrentamento de situaes difceis; problemas
-
19
graves de sade como doenas cardacas; parto, ps-parto e aborto; e at casos de objetos
perdidos.
Somam-se aos 52 casos mais 45 sobre conselhos, previses, orientaes e doenas
referentes a parentes e outras pessoas ligados aos entrevistados. Desse modo, o total de casos
no mbito da cura religiosa, dentro do escopo da pesquisa, chega perto de 100 casos, a
maioria destes registrada na Capela dos Avelinos.
iii O campo da pesquisa, a capela e os pontos de devoo
Realizamos um mapeamento preliminar das experincias de cura na regio e
identifiquei experincias e campos distintos da cura. O recorte para a investigao foi
orientado pela maior expressividade das experincias relacionadas cura. Dentro dos
municpios mencionados centralizamos a investigao em trs espaos, considerando as trs
vertentes de anlise, e abrangendo cinco locais conhecidos e considerados como espao-foco
de cura religiosa: a Igreja do Stio Olho dgua, conhecida como a Capela dos Avelinos, o
Santurio de Padre Ibiapina, o Santurio de Frei Damio e o Santurio de Roma, e o Centro
Bom Samaritano em Pirpirituba. Desse modo, o estudo rene pessoas e experincias dos
municpios Guarabira, Pirpirituba, Tacima, Bananeiras e Solnea, incluindo nesses
municpios povoados circunvizinhos: o povoado Bola e o povoado de Cachoeirinha.
De acordo com os eixos analticos pr-estabelecidos, iniciamos o estudo atravs da
Capela dos Avelinos por consider-la favorvel para uma interpretao nos rumos e princpios
de uma investigao etnogrfica. A Capela tornou-se o nosso laboratrio bsico para o
entendimento e acompanhamento de uma srie de aes que um processo de cura religiosa
possa conter. A partir da presena neste local e, principalmente, do acompanhamento dos fiis
dessa Capela tentamos entender aspectos da circulao dos romeiros, em sua devoo e busca
de graas, nos caminhos que os levam tanto aos Santurios como ao Centro Bom Samaritano.
Embora separados fisicamente, esses locais complementam um ao outro, numa espcie de
sintonia que se amplia dos espaos fsicos aos seres protetores, sejam eles Deus, Jesus, as
Entidades Santas, as Almas Santas: Padre Ibiapina, Padre Ccero, Frei Damio e os agentes de
cura.
O pblico que freqenta a Capela dos Avelinos tem uma devoo especial a Frei
Damio, em funo da histria desse Frade com a Capela. H tambm a articulao dos
romeiros da Capela com o Centro Bom Samaritano e vice-versa. Encontramos romeiros do
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Padre Ibiapina que conheciam no apenas a Capela, mas estavam em tratamento l. Esses
exemplos revelam a importncia desses locais na vida dos romeiros. No mbito desse
catolicismo, o romeiro faz seu prprio caminho, at certo ponto com total autonomia.
Considerando aspectos particulares dos romeiros e tentando compreender a
diversidade que esses romeiros representam no estabelecer do contato com os diferentes
locais de cura, reunimos informaes mais precisas referentes s relaes estabelecidas
entre romeiros e esses cones religiosos e atentamos para a interferncia desses ltimos no
processo de cura. Estendemos a investigao ao mbito de ao de algumas lideranas
religiosas citadas no decorrer da pesquisa, como por exemplo, padres e o bispo na regio.
Observamos que cada local possui suas especificidades e modalidades de atendimento
que dependem das disposies locais dos santurios, calendrios de atividades dentre outros.
O romeiro estabelece sua devoo com um ou mais santurios, em momentos singulares ou
mesmo num ciclo de romarias passando pelo menos por dois Santurios. Este tipo de circuito
ocorre principalmente nos finais do ano - a partir de outubro - e culmina num dos locais onde
esteja acontecendo uma missa ou atividade maior do calendrio religioso.
Considerando aspectos da histria dos focos de cura na regio, a Capela dos
Avelinos constitui um caso pouco comum. Embora esteja inserida entre os demais, ela se
mantm particular e at certo ponto meio reservada. A Capela dos Avelinos faz parte da
simblica rede de cura constituda na regio, mas com uma experincia impar. conhecida
pelos romeiros locais desde o perodo de 1955 e est em plena rede de sintonia entre romeiros
e outros curadores da regio. Por sua histria particular e considerando o perodo de criao,
essa Capela tem vivenciado distintas pocas e paradigmas do catolicismo na regio. Data da
dcada de 50 seu conhecimento que restrito aos fiis romeiros e pouco notado pelos
religiosos da Diocese. No h uma divulgao por parte do atual agente de cura local, nem
pelo proco que s vezes celebra no local. Os prprios fiis estabelecem a divulgao e
qualquer elo entre a Capela e a comunidade local.
As terapias religiosas curam ao impor ordem sobre a experincia catica do sofredor e
daqueles diretamente responsveis por ele. No processo teraputico religioso no apenas a
devoo, base da f, mas tambm os smbolos religiosos funcionam de modo tal que
produzam a cura. preciso que sejam compartilhados pelo agente curador, o doente e sua
comunidade de referncia; o espao propcio em que os religiosos entram em cena para
expressar sua f est na comunidade de referncia. Esta relao com a comunidade se torna
pressuposto bsico onde smbolos e significados interagem no processo de cura. Neste estudo
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veremos tambm alguns exemplos em que no caso da cura realizada atravs da relao do fiel
com um santo, via promessa ou devoo, torna-se elemento comum aps a cura o devoto
oferecer um smbolo, representando um rgo, cabea, brao, p, perna, seios, fotos, objetos,
casa, moldura de animais. So os conhecidos casos dos os ex-votos.
Clifford Geertz (1989:104-105) definiu a religio como um sistema de smbolos
agindo para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposies e motivaes nos
homens, atravs da formulao de conceitos de uma ordem de existncia geral, e vestindo
essas concepes com tal urea de fatalidade que as disposies e motivaes parecem
singularmente realistas.
Eliade (2002) tratando do simbolismo e a psicanlise entende que, o pensamento
simblico no uma rea exclusiva da criana, do poeta ou do desequilibrado: o pensamento
simblico consubstancial do ser humano, da linguagem e da razo discursiva. O smbolo
revela aspectos da realidade, os mais profundos, que desafiam qualquer outro meio de
conhecimento. As imagens, os smbolos e os mitos no so criaes irresponsveis da psique,
mas respondem a uma necessidade e preenchem uma funo: revelar as mais secretas
modalidades do ser. nessa linha de raciocnio que situamos a compreenso do simbolismo
no catolicismo popular. No catolicismo popular tanto a expresso simblica como as
concepes temticas envolventes do sentido dado vida e morte so aspectos profundos
das realidades enfrentadas pelas diferentes pessoas envolvidas. Eliade reconhece a
abrangncia e importncia que o smbolo representa numa cultura. Neste estudo, quisemos
observar o alcance e significado dos smbolos quando relacionados f no processo de cura.
Os casos de cura investigados com este trabalho so ligados ao universo catlico. No
entanto, a cura rene caractersticas que so pertencentes a outros credos e a outras religies.
Embora o catolicismo popular j seja algo diverso em si, as experincias apontam para outras
crenas, principalmente criaes indgenas e afro-brasileiras. Essa constatao levou a
introduzir o debate acerca do sincretismo religioso10
, numa abordagem enquanto hibridao
intercultural, usando este termo emprestado de Canclini (1997).11 Sanchis (1997) entende o
campo religioso a partir da perspectiva de sincronia/diacronia e sugere, assim, uma condio
10
O termo sincretismo religioso tem uma longa tradio no mbito das cincias sociais e dos estudos da religio
em geral. Bastide (1978) se destacou com a compreenso de representao coletiva. A explicao sociolgica aponta para uma situao em que os africanos tiveram que mascarar suas crenas sob um catolicismo emprestado, resultando numa fuso de orixs com os santos catlicos. 11
Canclini (1997) no tratou especialmente da nossa temtica, pois suas investigaes foram centralizadas nas
culturas urbanas. Entretanto, sua anlise acerca das prticas culturais enquanto campos hbridos so relevantes
para a nossa compreenso.
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dialgica na compreenso do passado e presente, em que h lugar para percepes e
elaboraes prprias de cada grupo envolvido.
No decorrer deste trabalho, dialogamos com diferentes estudiosos da religio e da cura
religiosa. O marco terico da tese prioriza Marcel Mauss, Thomas Csordas e Emile Durkheim
por suas contribuies tericas. Seus conceitos de dom, ddiva, religio e a prpria
compreenso do sagrado em sua relao com o real so pertinentes para este trabalho.
Esta tese no visa questionar descobertas realizadas no campo da medicina, nem fazer
apologia a poderes supremos. Ns pretendemos trazer luz algumas explicaes para melhor
compreender as prticas populares significativas, mas relegadas a um lugar marginal na
sociedade. Reconhecemos que no dia-a-dia as pessoas transitam entre as diferentes
especialistas da sade como tambm procuram os especialistas e locais religiosos em busca de
assistncia. Elas circulam entre as solues possveis e acessveis, de acordo com suas
carncias e/ou as ofertas predominantes no local.12
Diferente das explicaes por vezes reducionistas da medicina, os sistemas religiosos
de cura oferecem uma explicao para a doena que se insere no contexto scio-cultural mais
amplo do sofredor.13
Ou ainda, mais do que atribuir a estados confusos e desordenados, a
interpretao religiosa organiza tais estados em um todo coerente (LVI-STRAUSS, 1967).
Enquanto o tratamento mdico despersonaliza o doente, o tratamento religioso visa agir
sobre o indivduo, como um todo, reinserindo-lhe como sujeito em um contexto de
relacionamentos (TAUSSIG, 1980). A passagem da doena sade pode ser vista como
reorientao mais completa do comportamento do doente, na medida em que transforma a
perspectiva pela qual este percebe seu mundo e se relaciona com os outros.
A tese est organizada em seis captulos e a concluso. No primeiro captulo
registramos o processo metodolgico da pesquisa, com nfase na dimenso etnogrfica. No
segundo captulo contextualizamos o campo religioso no Brasil e na regio da pesquisa,
trazendo o debate acerca da constituio do catolicismo contemporneo e sua relao com o
catolicismo tradicional voltado para a cura religiosa. O terceiro captulo analisa a percepo
12
Esse fenmeno bastante recorrente na pesquisa e na literatura afim tem adquirido denominaes diferenciadas
que variam da terminologia de sincretismo ao transito ou mercado religioso. (BASTIDE, 1973; VALENTE,
1976; SANCHIS, 2001). Tambm tem sido denominado por Heelas (1994) de prticas dos sem religio (HEELAS, 1994). No catolicismo popular o transito religioso existe e apresenta uma caracterstica bastante
peculiar na juno de diferentes elementos num processo de cura. Por exemplo, a combinao da orao com os
medicamentos fitoterpicos e muitas vezes a alimentao. Por esta razo daremos prioridade ao termo hibridismo
cultural religioso em substituio do termo sincretismo. 13
Este uma opinio que muitos estudiosos da cura religiosa compartilham; tanto a partir os analistas clssicos
da teoria, a exemplo de Csordas (2008) e Taussig (1980), como entre os especialistas em estudos de carter mais
local como Rabelo (1993; 1994), Minayo (1994), Vasconcelos (2006) e Maus (2002).
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do publico informante acerca do sofrimento, da doena e da cura, contextualizada pelas
ponderaes tericas atuais. No quarto captulo tratamos das trajetrias de vida e
caractersticas de alguns curadores, identificando fatores relacionados ao dom de cura. No
quinto captulo tratamos da aquisio do dom de cura em suas diversas modalidades e
relacionado a exigncias e reciprocidades estabelecidas. No sexto captulo ponderamos os
processos de cura relacionados percepo da eficcia dos procedimentos, com destaque
para a orao e a f. Na concluso retomamos alguns aspectos referentes s concepes de
cura e dos procedimentos utilizados. Inclumos informaes referentes posio da hierarquia
religiosa a respeito da cura, abordamos o tema da relevncia social da cura religiosa e
propomos algumas questes para investigao futura.
As totalidades - prticas e simblicas - no campo religioso, no contexto dos
saberes do passado e do presente, so ncoras na vida das pessoas. Na cura religiosa, uma
cadeia de solidariedades e reciprocidades se faz presente nas ddivas construdas a partir da
religio. Ddivas que so re/criadas no universo dos curadores e curados; que envolvem
pessoas, geraes e pocas histricas, e Deus, Santos, Almas Santas e os agentes
intermediadores no mbito da f e da cura.
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CAPTULO I
PERSPECTIVAS METODOLGICAS E DELIMITAO DOS CAMINHOS DA
PESQUISA
1.1 Especificidades metodolgicas
Os caminhos percorridos com esta pesquisa foram diversos, surpreendentes e bastante
sugestivos. Em meio a desafios constituram momentos reflexivos da prpria prtica
metodolgica. Navegamos por guas claras e obscuras, mas sempre instigantes, seja pelas
questes e possibilidades que foram surgindo, seja pelas interferncias que foram traando o
desenvolvimento do caminho a ser seguido.
Cada passo que nos levou a um novo informante somava complementaes que no
estavam previstas no roteiro metodolgico pr-elaborado. O dilogo estabelecido com as
pessoas idosas deu acesso a informaes abrangentes de diferentes ciclos de vida dos
pesquisados e ao resgate de distintas formas de experincias com o sagrado. Experincias que,
conservadas ou ressignificadas em suas formas de expresso na contemporaneidade,
possibilitaram o acesso a um quadro explicativo mais completo acerca da espiritualidade e da
sintonia estabelecidas entre as pessoas e delas com Deus. Deparamo-nos com variados
conhecimentos, exemplos de aglutinaes de crenas, percepo de saberes e foras
consideradas ncoras para o enfrentamento de pocas difcieis, segundo a linguagem e a
observao dos comportamentos comunicados, na medida do possvel.
Neste sentido, pudemos registrar experincias e as estratgias de sobrevivncia
utilizadas por estas pessoas para enfrentar as dificuldades em pocas de fortes carncias, na
maioria dos casos, referentes a tempos de secas. Distantes e carentes de polticas pblicas e
do acompanhamento dos movimentos sociais, que ainda no se destacavam na regio, os
agricultores foram levados a buscar estratgias de autoajuda para garantir a sobrevivncia.14
A cura e as modalidades da cura que tratam primordialmente do corpo ou do esprito
abrangem outros campos da vida humana e das relaes sociais. O somatrio de estratgias e
14
No decorrer do trabalho colocaremos exemplos. Em destaque, o caso de um dos curadores que atravs de um
pequeno barraco colocava alimentos bsicos em circulao e as pessoas iam pagando quando podiam, de modo que os mais carentes no passavam necessidade.
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modalidades de cura vai sendo modelado, segundo as regras de um campo que denominamos
neste trabalho de cura social.15
Por alguns momentos, questionamo-nos acerca de nossas reais competncias para
levar um estudo dessa natureza frente. O questionamento surge no por duvidar de nossas
capacidades terico-metodolgicas para com a pesquisa, mas por reconhecer-nos inseridos em
um meio marcado por uma vivncia espiritual to profunda, cujo processo de apreenso e
explicao exigiria algo mais que nosso conhecimento acadmico e at algo mais de nossa
prpria vivncia religiosa, somados ao trnsito e demais experincias e/ou conhecimentos que
reunimos em torno do catolicismo naquela regio.
Adentrar na esfera de um universo religioso e poder entender as experincias pessoais
e coletivas com o sagrado, to reais nas vidas prticas dos fiis, no se trata apenas de ter
familiaridade com o tema. Essa tarefa exige do pesquisador uma capacidade impar de
constituir sua prpria sensibilidade, sem perder cada detalhe de uma experincia que lhe
apresentada, sem envolver-se emocionalmente com o assunto. Assim pudemos observar que
cada relato de uma experincia religiosa se constitua nico e atuante em conjunto,
complementando-se e explicando outros fenmenos como a prpria abrangncia e
materializao da religio, que por mais abstrata que parea prtica; as experincias so
tambm formas de interferncia e juno em diferentes universos - religioso, psicolgico,
econmico, cultural - que estabelecem suas conexes com o divino ou vice e versa.
Pois, embora se denomine popular, o universo religioso das pessoas devotas do
catolicismo popular e principalmente das residentes no mundo rural, ao primeiro olhar, um
universo impenetrvel, algo fora do comum, para quem de fora. Um coletivo, mas que
extremamente particular repleto de modos prprios, envolventes de mistrios e sentidos
prprios. Coisas vividas que nem sempre so coisas ditas. Conscientes dessa inteireza da cura
no catolicismo prosseguimos com a certeza de estarmos inseridos em um campo muito
instigante. Ao lado dos nossos propsitos e do nosso planejamento inicial, deixamo-nos guiar
tambm pelas possibilidades surgidas, em torno de quem entrevistar e que passo dar; de certa
forma, seguimos o rtmo de como essas possibilidades surgiram; constituindo assim, o prprio
percurso da pesquisa.
15
Cura social um termo que perpassa o conjunto deste trabalho. Mas, sua funo destacar que no contexto
desta pesquisa a cura realizada abrange distintas dimenses na vida das pessoas. Os males que aparentemente so
fsicos quando sanados interferem fortemente nas relaes sociais. A exemplo: o acompanhamento psicolgico
que o curador desenvolve em suas aes ao atender uma mulher cujo relacionamento conjugal ou familiar
constitui um atropelo em sua vida. Incluem-se a tambm os casos de alcoolismo, traies conjugais, e mesmo os
casos extremos como a escassez de alimentos, resolvidos pela estratgia de solidariedade.
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26
Afinal, podemos reconhecer que o ato de pesquisar tambm pode ser considerado uma
arte e o fato de pesquisar a dimenso da f na religio ter acesso a um conjunto de arranjos
que juntos atuam com muita disposio em torno de um ou mais objetivos. Conforme afirma
Geertz (1923:16) Quaisquer que sejam as fontes ltimas da f de um homem ou grupo de
homens, indiscutvel que ela seja sustentada neste mundo por formas simblicas e arranjos
sociais. O que uma religio dada seu contedo especfico - est incorporado nas imagens e
metforas que seus seguidores usam para caracterizar a realidade.
A oportunidade de contato com as pessoas idosas, pioneiras nas experincias de
romaria ao Juazeiro do Padre Ccero do Juazeiro e pioneiras na construo da Capela do Stio
Olho dgua tambm chamada de Capela dos Avelinos ou Capela So Pedro, portanto
pessoas com experincias nas romarias locais, tornou-se um fato muito significativo para a
pesquisa. O dilogo estabelecido e com isto o alcance a informaes abrangentes de diferentes
ciclos de vida dessas pessoas, favoreceu substancialmente o processo de compreenso deste
objeto de estudo. Consideramos essa possibilidade mpar porque ela resultou, tambm, na
valorizao de distintas formas de experincias que as pessoas estabelecem com o sagrado
que ressignificadas ou mesmo conservadas enquanto valores, trazidas ao debate atual
possibilitaram-nos o acesso a um quadro explicativo mais completo acerca no s das curas
ocorridas, mas em geral, das formas de espiritualidade e sintonia estabelecidas entre as
pessoas e Deus; Deus e as pessoas e destas entre si em suas vidas prticas, em seus contextos
especficos. Deparamo-nos com conhecimentos variados, com aglutinadas crenas, a
percepo de saberes e foras, consideradas sustentao, ou arranjos simblicos acionados
para o auxilio e enfrentamento de pocas difcieis, por esses atores a se comprovar nos relatos
e depoimentos concedidos.
Algumas experincias prvias influenciaram as nossas intervenes metodolgicas e
contriburam na investigao do objeto, somados ao nosso conhecimento da regio, fruto de
vivncias e experincias diversas, marcadas por diferentes perodos histricos e formas de
insero. A experincia profissional extensa permitiu que percebssemos a delicadeza do
tema e das pessoas envolvidas no contexto do prprio catolicismo que perpassam diferentes
pocas e formas de construo e vivncia. Entretanto, no campo, as coisas raramente so o
que parecem e raramente so como apresentadas ao pesquisador pelas pessoas do lugar.
(WOLF 2003:349). Mas as possibilidades de aproximao e escuta so valiosos para que a
anlise possa ser apresentada de forma aproximadamente fiel sua existncia, sua essncia e
real expresso.
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27
Priorizamos um trabalho de cunho etnogrfico16
baseado nos princpios da observao
participante - nos termos da participao observante, conforme prescreve Durham (1986).
Prevendo o contnuo vaivm entre interior e exterior de cada situao ou como afirma Velho
(1978) na tentativa de ser ao mximo imparcial para cada caso observado, colocando-se no
lugar do outro e ao mesmo tempo sendo distante fsica e psicologicamente. Esses princpios
constituem elementos das tarefas desafiantes ao pesquisador por requererem dele, at certo
ponto, um desempenho rigoroso que interfere a cada situao. E conforme se sabe, numa
pesquisa h limites em ambos os lados, do pesquisador e do pblico pesquisado; por mais que
o pesquisador seja ousado em suas propostas metodolgicas, dificilmente alcanar a
perfeio em se aproximar metodologicamente dos passos dos mestres fundadores da
etnografia at mesmo porque a realidade do universo das pesquisas difere substancialmente
daquele vivenciado por esses mestres, como apontam as crticas.
Orientamos o nosso olhar, o ouvir e o escrever vigiados sob a tica de Oliveira (1998)
identificado como as trs etapas de apreenso dos fenmenos sociais. De acordo com
Oliveira, o ouvir e o escrever podem ser questionados em si mesmos, e quando essas
faculdades so disciplinadas pela prtica cientfica influem nas formas de percepo que so
expressas pelo ato do escrever; sem esquecer que observar aplicar os sentidos a fim de obter
uma determinada informao sobre algum aspecto da realidade (OLIVEIRA 1998:18).
Munida dessa preocupao chamamos a ateno para certos cuidados no campo da
observao. A observao pode ser sistemtica e assistemtica. Sistemtica, aquela planejada,
estruturada ou controlada; e assistemtica, ocasional e simples (RUDIO, 1985). Neste
trabalho, usufrumos de ambas as modalidades da observao procurando adquirir o mximo
de possibilidades para constituir, com segurana, um campo de elementos explicativos com
coerncias e, portanto alcanar uma dimenso explicativa satisfatria ao nosso objeto.
Na busca por respostas aos objetivos formulados, percorremos um caminho de
mltiplas entradas. Resgatar histrias vividas, percorrendo uma trajetria dos anos 50
atualidade, em um dos locais da pesquisa, tornou-se uma perspectiva bastante desafiante. Esta
possibilidade fez do trabalho de resgate da memria um dos aliados importantes no processo.
O trabalho com a oralidade no corresponde apenas a um ato ou procedimento nico.
A histria oral a soma articulada, planejada, de algumas atitudes pensadas enquanto um
conjunto. Atravs da tcnica da entrevista o resgate da oralidade prope um processo
16
Etnografia no nos modos clssicos de Malinowski (1978), mas na possibilidade de poder etnografar
experincias que possibilitem a descrio e explicao das experincias vividas pelos informantes, com o
mximo de detalhes possveis ao registro no mbito da cura, conforme descreve Geertz (1989).
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dialgico, em virtude da possibilidade do contato direto de pessoa a pessoa (MEIHY e
HOLANDA, 2007). Neste sentido, interpretar as histrias orais pode se tornar complexo em
funo de interferncias de um acontecimento que entra no jogo dos relatos, a fim de explicar
outro. Essa situao exige bem mais que o pesquisador consiga encontrar a convergncia
efetiva dos narradores, com cuidados essenciais a explicao do que est sendo pesquisado.
(QUEIROZ, 1988). Na apreciao dos casos de curas realizados tornou-se possvel observar
uma linha explicativa de cada indivduo que prossegue em sequncias, como se obedecessem
a determinaes que no so exclusivamente suas. Ela at certo ponto reflete um coletivo,
uma situao econmica, uma vivncia individual que ao mesmo tempo coletiva; um
coletivo que envolve pessoas e entidades divinas. Influncias se cruzam e interagem, e
repercutem nas identidades individuais.
No novidade alguma afirmar que o indivduo cresce num meio scio-
cultural e est profundamente marcado por ele. Sua histria de vida se
encontra, pois, a cavaleiro de duas perspectivas: a do indivduo com sua
herana biolgica e suas peculiaridades, a de sua sociedade com sua
organizao e seus valores especficos. A histria de vida, em resumo, se
encontra apoiada em duas disciplinas, a psicologia e a sociologia.
(QUEIROZ 1988:36)
Em funo das especificidades do nosso campo da pesquisa, dentre estas, o desafio do
dilogo entre diferentes geraes, estados civis e gnero17
, optamos por priorizar e investir na
valorizao das trajetrias de vida e da memria. A escolha pelo caminho da oralidade
facilitou o trabalho de pesquisa, uma vez que as pessoas idosas se tornaram as principais
fontes de informao acerca no s de suas experincias de cura, mas a respeito da trajetria
de vida e da existncia dos curadores em diferentes pocas. Nesse trajeto, uma informao
completava a outra, e todas traziam elementos importantes para compreender o processo de
implantao e legitimao do atual agente de cura, assim como a legitimao daquele local
originado na dcada de 1950.
Entendemos a oralidade de acordo com Pollak (1992:201): (...) a memria parece ser
um fenmeno individual, algo relativamente ntimo, prprio da pessoa. Mas, a memria deve
ser entendida tambm, ou, sobretudo, como fenmeno coletivo e social, ou seja, como um
fenmeno construdo coletivamente e submetido a flutuaes, mutaes constantes. Em
conformidade com as observaes do autor tivemos a oportunidade de observar como na
maioria dos relatos existem marcos e pontos relativamente invariantes e imutveis. No resgate
17
Cf. Perfil dos entrevistados.
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de uma trajetria de vida, por exemplo, a ordem cronolgica no , necessariamente,
obedecida. H uma permanente interao entre o vivido e o aprendido, o vivido e o
transmitido. Surpreendeu-nos como para os mais idosos, situados numa faixa de 70 a 90 anos,
os fatos relacionados cura so trazidos e revividos com grande emoo congregados a outros
acontecimentos que foram importantes em suas vidas. A experincia de cada um tornou-se
relevante para a anlise e compreenso da importncia da f e da devoo nas graas
alcanadas, conforme os depoimentos e relatos fornecidos. H, inclusive, tradues de cantos
e oraes que nos foram trazidos por essas pessoas, que foram utilizados em dcadas passadas
quando seguiam os passos de romeiros do Juazeiro.18
Outro ponto importante da investigao foi o acesso ao acervo de documentos escritos
tais como as cartas de Frei Damio a um dos curadores antigos, embora afetadas pelo tempo
da escrita, contendo aconselhamentos, reflexes e regras de comportamento dirio a serem
praticados pelo curador.19
Objetos e lembranas do antigo curador, alguns ainda guardados,
que trazem elementos explicativos de sua vida no cenrio, suas crenas, seu trabalho e de sua
total dedicao religio.
Constatamos que Frei Damio tambm se constituiu em conselheiro e orientador
pessoal com o atual agente de cura, porm no caso deste, diferentemente do que ocorreu
com o curador anterior, as orientaes fornecidas no foram escritas, mas obtidas atravs de
contatos pessoais. Podemos dizer que atravs de Frei Damio originaram-se as orientaes
especficas e esclarecedoras favorveis iniciao e desempenho do atual curador,
considerando o momento oportuno em que ele se encontrava no sofrimento como na fase de
introduo sua misso de intermediador da cura. Esta informao foi confirmada, no
apenas pelo agente atual de cura, mas pelos idosos conhecedores da histria daquele local de
cura. O relato a seguir explica a afirmao anterior.
A respeito do primeiro curador:
O pessoal vinha de muitos cantos, recorria a ele e ele era muito feliz na casa
dele. Foi muito feliz. O pessoal gostava muito dele. E as oraes dele,
porque ele vivia de devoo, no sabe? Frei Damio adorava ele.
Frei Damio podia estar no meio de muita gente, mas ele chegasse, parece
que adivinhava! Quando ele chegava assim, ele podia est no fim do povo de
onde vinha gente, Ele dava com a mo e fazia assim (sinal de chamar) e ele
(Avelino) ia bater nos ps dele. Ele tinha muita f em Frei Damio. E ele
nele.
18
Citaremos alguns exemplos na descrio sobre o processo de cura. 19
H uma citao no captulo V deste trabalho.
-
30
Porque ele fazia uma devoo, no sabe? O povo dizia que era pecado, no
era pecado porque a sorte dele era aquela, no era?
Sobre o atual curador:
Sabe? Ele tinha uma f nele (em Frei Damio) e no Padre Ccero. Ave
Maria! Ele disse que tinha hora que parece que via ele assim na frente, perto
dele... Ele era muito devoto, rapaz! Ele era muito devoto, desde criana. Ele
disse que quando era criana todo dia rezava um Pai-Nosso para o padre
Ccero!
Esse camarada (referindo-se ao atual curador) comeou com sofrimento
tambm a o povo tambm a porque vira e por que... A foi bater onde
estava Frei Damio. Quando chegou l ele disse que ele podia seguir com a devoo dele. Mas a
famlia, muita gente da famlia dele dizia que no tinha futuro no. Mas Frei
Damio deu apoio a ele.
(Josefa Barbosa, 90 anos)
Dedicamo-nos com ateno a ouvir as histrias que foram contadas. De acordo com
Queiroz (1988:20), a histria de vida atua como a tcnica que capta o que sucede na
encruzilhada da vida individual com o social. Desta forma, as informaes recolhidas e
registradas renem fatos que articulam vrias dimenses. Os relatos retratam, por exemplo,
especificidades das comunicaes entre os pacientes e os curadores, os pacientes e os
cones religiosos. H um entrelaamento da vida individual com o social, e da vida social com
outros fenmenos da religiosidade. As formas especficas de se cumprir uma devoo
chamam ateno; incluindo as prticas comuns no catolicismo, como rezas, oraes; a
comunicao atravs dos sonhos e/ou mensagens recebidas pelos informantes, ou de suas
relaes com os curadores, nas distintas pocas, tanto em vida, como aps a morte. Neste
contexto, destaca-se a histria do primeiro curador ao lado de outras figuras importantes no
catolicismo popular na regio como nos casos do Frei Damio e o caso do padre Ibiapina. Da
mesma forma, foi-nos possvel compreender as especificidades com que essas pessoas
estabelecem e mantm as suas relaes com os Santos Consagrados em suas devoes.
Alguns exemplos sero citados no decorrer deste trabalho, mas em relao ao fenmeno da
interveno dos sonhos na vida prtica das pessoas faz-se necessrio um pequeno comentrio:
Eliade (1957:11) se refere aura religiosa de que certos contedos do inconsciente no
surpreendem o historiador das religies, ele sabe que a experincia religiosa implica o homem
na sua totalidade e, por conseguinte, tambm as zonas profundas do seu ser. H outro fato
importante em que Eliade (1957:12) diz que isto no quer dizer que se reduz a religio aos
seus componentes irracionais, mas simplesmente que se reconhea a experincia religiosa tal
-
31
como ela : experincia da existncia total, que revela ao homem a sua modalidade de ser no
mundo.
Neste sentido, os depoimentos concedidos, as situaes observadas, os objetos de
alcance como as fotos, aquelas apresentadas pelos informantes bem como as produzidas nesta
pesquisa; somadas s demais fontes, como cartas escritas por padres e por fiis ao agente de
cura, tornaram-se valiosos complementos ao nosso campo de investigao.
Por outro lado, saindo um pouco do mbito das tcnicas voltadas para a oralidade, a
opo pela incluso de um questionrio no processo da pesquisa objetivou alcanar
informaes para auxiliar a identificao de alguns pontos considerados importantes para a
anlise. O uso do questionrio possibilitou o acesso a outras informaes de carter particular
dos informantes, tais como dados sobre: sexo, ocupao, famlia, profisso, residncia, estado
civil e moradia, e dados da prpria religio. Dessa forma, acreditamos que construmos um
quadro explicativo que auxilia na construo do perfil dos entrevistados. Introduzir o
questionrio num trabalho guiado pela observao, cujo objetivo manteve-se centrado na
possibilidade de etnografar as experincias foi uma forma eficaz para recolher e adicionar
informaes mais detalhadas acerca dos entrevistados. Entretanto, o ato de recorrer ao uso do
questionrio no necessariamente resultou numa associao completa entre tcnicas
qualitativas e quantitativas, em funo dos prprios limites e dimenso dessa introduo.
Em relao associao de tcnicas, at certo ponto aspecto comum nas pesquisas
qualitativas, Aguiar (1978), tratando especificamente dos surveys (levantamentos), observou
que dados obtidos pelos usurios dos surveys so duros, isto , atingem um nvel de
mensurao que a observao participante no conseguiria atingir. Entretanto, o grau de
exatido atravs dos surveys, embora duros, com frequncia deixa o interprete em
dificuldade quanto interpretao das correlaes alcanadas. E, os dados obtidos tanto
atravs de observao participante, quanto atravs de surveys podem carecer de
generabilidade na medida em que os de observao participante possam se ater a formas
muito exclusivas ao contexto investigado, os de surveys, alm deste risco, podem gerar
tambm outro risco de que a exatido tima no corresponde alcanada, dada a baixa
explicao da varincia que possvel obter com esse recurso. Neste sentido, como
demonstramos, nenhum caminho pode ser por si s suficiente no procedimento de uma
pesquisa.
necessrio enfatizar que as escolhas metodolgicas foram tratadas como campo de
possibilidades, como caminhos possveis, avaliados mediante os critrios de aplicabilidade.
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Assim fomos revendo formulaes e efetuando alteraes e complementos para cada situao
a ser investigada, de acordo com as necessidades de viabilizar o trabalho de pesquisa.
Entendemos que o campo de pesquisa se constitui em um campo de possibilidades, um
espao social simblico (BOURDIEU, 1987; 2004; 2005). Sujeito a constantes interferncias,
ele no est imune s contradies e pode se constituir, tambm, em um campo de poder
(BOURDIEU, 1987). Neste, os sujeitos sociais elaboram suas estratgias. Na relao
pesquisador-pesquisado, os atores podem recorrer a distintos argumentos no mbito de uma
questo, dependendo dos diferenciados papis por eles vividos.20
Nessa relao
experimentam-se situaes que tanto podem favorecer o processo de pesquisa como dificult-
lo.
Em temos gerais, nosso contato com o objeto se beneficiou do nosso conhecimento na
rea e uma relao fortalecida com parte dos informantes. Durante esta pesquisa pudemos
usufruir de outras opes. Pudemos sempre que necessrio recorrer s pessoas fontes da
pesquisa, a quem recorrer para tirar dvidas referentes a alguma questo que fora considerada
obscura, aps anlise dos dados. Dispor do acesso a esse esclarecimento, principalmente
quando se tratava de depoimentos dos idosos e das suas experincias de cura e de
espiritualidade, foi bastante proveitoso para que pudssemos elaborar um quadro de referncia
para um Modelo da Cura no Catolicismo Popular, desenvolvido no sexto captulo deste
trabalho.
Salientamos que as lideranas religiosas, responsveis pelos locais de cura, dentre
estas, os agentes de cura, estiveram sempre dispostas a responder s nossas perguntas, at
onde elas puderam ser respondidas. Essas pessoas, sempre com bastante disposio, prestaram
esclarecimentos de situaes, completaram informaes fornecidas por outros informantes.
Outro aspecto particular da investigao foi a colaborao de padres da Igreja Catlica que,
mesmo distncia, estiveram dispostos a completar nosso quadro de informaes enviando
depoimentos escritos.
1.2 Aspectos relevantes da prtica metodolgica: uma incurso pelos passos dos
romeiros
Podemos afirmar que no decorrer da pesquisa re/vivemos e acompanhamos momentos
emocionantes da vida dos romeiros. Tanto em suas histrias narradas como na expresso de
20
Goffman (1988, 1996) referncia neste aspecto.
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suas prticas de espiritualidade, nas suas disposies diante do compromisso com o religioso
e entre os agricultores, a disposio com que se dedicam ao trabalho na terra. Ao falar com
um senhor de 69 anos perguntei: O senhor ainda trabalha no campo? Ele respondeu com
muita nfase e espontaneidade, mostrou suas mos e disse: trabalho at o dia que Deus
permitir.
Embora o romeiro apresente de forma geral caractersticas identitrias que se
assemelham nas diferentes regies do pas - conforme descrito nos trabalhos de Steil (1996);
Barbosa (2007), dentre outros - podemos afirmar que o romeiro circulante nos Santurios e
Capelas do Brejo da Paraba se diferencia substancialmente de outros romeiros participantes
das grandes romarias, tal como acontece nas romarias de Juazeiro do Norte, de Aparecida.
H diferena na forma como ocorre a romaria nesta regio. Embora existam calendrios de
eventos e uma programao especfica, proporcionados pela Pastoral das Romarias, a romaria
no Brejo tende a ser mais especfica, ou seja, trata-se de um evento menos espetaculoso.
Talvez pela proximidade tanto entre os locais dos santurios como as facilidades de
locomoo das pessoas, no circuito das suas casas aos locais de celebrao por si j ofeream
um aspecto especfico daquele conhecido nos grandes Santurios, seja em Juazeiro, ou mesmo
em Aparecida. Dessa forma, aspectos conhecidos como o fator da peregrinao no deixam
de existir, mas percebemos que essa peregrinao adquire outro significado e/ou se torna
mais leve, seja no aspecto da peregrinao em si, seja em outros aspectos comuns
caminhada do romeiro. As facilidades de movimentao permitem um ir e vir muito
especfico nesta regio.21
Vale destacar que esses romeiros da regio do Brejo so e/ou foram tambm romeiros
de Juazeiro do Norte, no Cear. H expresses de fidelidade e devoo que so mantidas
mesmo entre aqueles que no conseguem mais viajar ao Juazeiro. Neste caso, mudam as
condies em termos de espaos celebrativos, mas aqueles que ainda viajam para Juazeiro, ao
lado de outros romeiros, certamente mantm a identidade de um romeiro peregrino.
Um caso bastante particular acontece entre os romeiros frequentadores da Capela do
Stio Olho dgua, tambm chamada Capela dos Avelinos. Entre estes, observamos
momentos de muita emoo tambm quando eles resgataram fatos relacionados trajetria de
vida e prtica espiritual do primeiro curador. Um homem comum, mas conhecido e
relembrado nas memrias dos seus seguidores. Em relao cura, colocado em mesmo
21
Pudemos observar que muito comum que os Santurios do Brejo recebem romeiros Rio Grande do Norte e
Pernambuco e uma concentrao maior de cidades paraibanas. Porm, a falta de infra-estrutura, at certo ponto
adequada para hospedagem dos romeiros, nos locais de celebrao, favorece um ritmo de chegadas e sadas concentrados em um nico dia.
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grau de importncia e ao lado dos grandes cones religiosos: Frei Damio e o Padre Ccero.
Esse curador foi um devoto fervoroso do Padre Ccero e um amigo fiel do Frei Damio, com
quem manteve contato pessoal e tornou-se um amigo. Uma amizade que se estendeu
famlia, demonstrada por um dos seus filhos, que mesmo aps a morte do seu pai, o curador,
deu continuidade amizade e ainda auxiliava o frade fornecendo o transporte nas misses
da localidade.
As senhoras que foram pioneiras do trabalho religioso ao lado do primeiro curador
chegaram a se emocionar e chorar ou ficaram muito trmulas ao resgatarem os fatos que
vivenciaram e curas que alcanaram com a intermediao do antigo curador que hoje falecido,
no vive mais entre elas. A fidelidade e a cura continuam vivas na pessoa do atual curador
que descrito pelos romeiros como reconhecido e legitimado por possuir dons semelhantes ao
seu antecessor.
O fato repetiu-se entre os novos romeiros ao relatarem graas alcanadas com o
curador atual. H emoes fortes e expresses de gratido a Deus, em primeiro lugar, e em
seguida ao curador. H tambm casos em que as pessoas chegam a rir das complicaes
vividas. H relatos de situaes extremas, envolvendo jovens mes e filhos menores. Nesses
casos os depoimentos ocorreram com choros e interrupes devido a essa penosa recordao.
Escutamos a histria de trs mulheres de faixa etria diferenciadas. Duas em idade inferior a
quarenta anos e uma acima de sessenta. Das duas mulheres abaixo de quarenta anos, uma teve
um filho curado; a outra foi ela a prpria curada. Aquela que teve o seu filho curado
permaneceu chorando todo tempo da entrevista. O relato continuou com uma segunda pessoa,
no caso uma tia, conhecedora da histria, que, naquele momento a acompanhava em visita
Capela.
De forma semelhante, a outra senhora, que alega ter sido curada de uma febre
reumtica, pausou o seu depoimento, por vrios momentos, pela dificuldade em reviver o seu
incmodo. As demais senhoras de idade superior a 40 anos, alcanaram a cura numa
associao estabelecida entre a Capela e Frei Damio; uma senhora por meio de uma
promessa ao j falecido Frei Damio; a outra foi curada por contato direto envolvendo a
Capela e Frei Damio, h 17 anos. Segundo o relato, essa cura se realizou atravs de uma
bno que ela recebeu de Frei Damio. Nesse dia, ele pregava misso no povoado vizinho
rea da Capela.
Durante esta pesquisa os informantes s vezes recuavam. Se por um lado foram muito
espontneos, por outro, se mostraram reservados, a depender do tema. Nas falas referentes
sade da mulher, principalmente aquelas mulheres que vivenciaram situaes crticas nos
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perodos de resguardo e/ou com a experincia de abortos mantinham reservas. Embora todas
essas mulheres tenham falado de abortos naturais, elas no relataram, em detalhes, a respeito
das suas causas efetivas e nem falaram de suas conseqncias. Foi s posteriormente que
pudemos perceber que alguns problemas enfrentados pelas mulheres, bem como alguns dos
abortos acontecidos, envolviam direto ou indiretamente a relao com os maridos e com os
resguardos, conforme relatos sobre a frequncia de problemas ocorridos no ps-parto.
Perguntamo-nos se o silncio existia em virtude de reservas pessoais, morais ou
religiosas, ou quem sabe, do conjunto desses fatores. Pois, foi atravs de informaes
paralelas que ficamos sabendo que em muitas situaes e necessidades as mulheres
procuravam o curador, mas quando se tratava de casos muito particulares essa procura
acontecia sem o conhecimento dos seus maridos. Foram citados exemplos de problemas
srios de relacionamentos conjugais, envolvendo at violncia domstica.
No temos a pretenso de induzir segundas interpretaes acerca dos problemas
enfrentados pelas mulheres rurais. Queremos apenas chamar a ateno para as duas questes
que se colocam: uma, da predominncia de abortos em nmeros considerveis, e a segunda, a
existncia de problemas de violncia domstica no campo dos relacionamentos conjugais. De
acordo com os relatos, no perodo ps-parto, algumas mulheres chegavam a enfraquecer o
juzo, conforme elas mesmas relatam. Os filhos tambm mantm a lembrana, como
expressada nos prprios relatos que nos foram fornecidos. Aqui, queremos destacar tambm
que esse tipo de informao tornou-se possvel em virtude dos procedimentos metodolgicos
adotados. Reconhecemos que a opo por uma tcnica isolada, tal como a opo unicamente
por entrevistas, no teria permitido adentrar neste universo.
Problemas semelhantes aos citados, e outros atuais, eram e ainda so trazidos Capela
e chamam a ateno quando suas solues decorrem da interveno do curador.22
No passado,
para os problemas fsicos, receitava-se algum tipo de remdio, ou quando o caso estava fora
do seu alcance, o curador encaminhava as pessoas ao mdico ou farmacutico. Na maioria dos
casos, a cura acontecia tambm sem a interveno de medicamento ou de receita. Houve
tambm os casos para os quais as solues estariam apenas disponveis em forma de
orientaes psicolgicas. Casos em que se contou apenas com a fora do dilogo e a
orientao. Boa conversa, uma escuta, s vezes realizada de forma descontrada, nem sempre
na capela, mas na prpria residncia do curador, resolvia-se a situao. Esse tipo de narrativa
22
H por exemplo, casos de mulheres que procuram o atual agente de cura por motivo problemas com gravidez.
H mulheres que o procuram por traio do marido; outras que o procuram em busca de auxlios espirituais para
obter foras para se manter, para enfrentar situaes de muita carncia. Assim como h casos de mes que no
conseguem paz em casa na relao com os filhos.
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envolve fortemente os acontecimentos nas dcadas de 50 e 60, mas deve-se destacar que tanto
as narrativas citadas quanto os procedimentos utilizados so atividades muito semelhantes
com ocorrncias vividas e narradas por outros atores que compem o pblico cliente na
atualidade, bem como so semelhantes os procedimentos efetuados pelo atual agente de cura.
Conforme j dito, cada caso que pudemos escutar foi mpar. Mas surpreendeu a
quantidade de casos referentes sade da mulher. Alguns relatos sero analisados no decorrer
dos captulos e so reveladores de que houve interveno dos curadores como forma de
soluo. H casos em que um simples ch de alecrim, ou a utilizao de gua inglesa serviram
de meios para a cura. Isto sugere os mistrios da funo e do poder dos curadores
enquanto assistentes espirituais e sua funo de psiclogo pela especificidade das orientaes
que fornecem.
Conforme se pode imaginar, penetrar no universo dos curados bem como dos
curadores, deparar-se com um campo de muitas possibilidades, mas deve-se saber que o
terreno frtil para muitas reservas e essas se tornam maiores quando se trata de trajetrias
pessoais. Seja em relao experincia dos(as) romeiros(as) com Deus e seus enviados. No
entanto, deparamo-nos tambm com relatos extremamente abertos e espontneos, mesmo em
casos de histrias pessoais de carter mais ntimo.
Atravs dessas constataes fomo-nos adequando situao conforme cada caso ia
chegando a nos no desenrolar da pesquisa. Procuramos investir nas visitas regulares e nas
possibilidades de aumentar o contato com as pessoas aps cada entrevista, quando era
possvel. Com isto, acreditamos que adquirimos maior confiana e obtivemos mais
informaes para a pesquisa. Embora essa estratgia no represente algo incomum ou novo
para os especialistas em pesquisa de campo, insistimos em enfatiz-la porque tem sido
bastante proveitosa no processo de observao. Essa estratgia facilitou o acesso s pessoas e
fortaleceu a relao de confiana mtua. De um lado, da relao de confiana com o pblico,
as conversas em coletivo com o curador; de outro, o acesso s histrias pessoais em suas
dimenses possveis.
A participao nos eventos acontecidos nos santurios foram momentos nicos para o
contato com os romeiros e o resgate dos seus relatos acerca das graas por eles alcanadas.
Foi surpreendente observar o fervor com que os romeiros expressam seus sentimentos, pagam
as promessas e louvam as graas alcanadas. Esse tipo de expresso do romeiro pode passar
rapidamente despercebido por um observador, mas se dada a ateno necessria, possvel
destacar caractersticas relevantes acerca das especificidades do ser romeiro.
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Os romeiros representam um pblico muito variado, que inclui diferentes idades,
origens, classes sociais, dentre outros atributos. Porm, observamos que nas romarias do
Brejo paraibano prevalecem pessoas idosas, boa parte de origem rural dos diferentes
municpios da regio e at de outros estados. Observamos que entre aqueles de idade
avanada, segundo comentam, a idade no constitui um obstculo.23
Pelo contrrio, indica que
h algo que sugere um amadurecimento da espiritualidade e da experincia com a f. As
trajetrias de vida dessas pessoas renem e expressam essas caractersticas. Conversamos
com pessoas de idade acima de 70 anos que dizem estar presentes a cada ano nas romarias que
acontecem. Muitas vezes saem doentes de suas casas, mas segundo elas, ao chegar aos
Santurios melhoram.
Pelas especificidades prprias dos santurios, incluindo aqui tambm as formas de
gerenciamento e as razes que explicam suas origens, estabelece-se uma sequncia de
acontecimentos especficos a cada um deles. Combinam-se as iniciativas diocesanas com o
ritmo prprio do romeiro, cuja presena no local obedece s suas vontades. Essa presena
pode ser espordica e diversificada, mas no h superposio de calendrios. Se a visita dos
romeiros se concentra em uma poca do ano, particularmente julho e mais forte a partir de
setembro, a Diocese tambm se insere nessa demanda e at certo ponto, no impe um
calendrio; tende a se adequar a esse ritmo.
Nos Santurios, principalmente nos momentos de realizao dos grandes eventos,
renem-se romeiros de vrias localidades e com variados fins. H pessoas que podem
participar apenas do turismo religioso, j outros por aspectos atrativos do local se detm no
necessariamente ao turismo; por ocasio do evento encontram no local a possibilidades de
usufruir do clima festivo, s vezes apenas para sentar nos locais de lazer, ou apenas para
caminhar por entre as ruelas portadoras de objetos venda. Porm, o pblico romeiro que
devoto participa, portanto, por fins de sua f; um pblico que, do comeo ao fim da
romaria, se dedica aos acontecimentos religiosos e segue todos os traados das visitas
especficas presena nas celebraes cumprindo cada passo do ritual em clima de total
concentrao. Vale salientar que considerando os objetivos desta pesquisa, nos espaos dos
23
Essa questo refere-se aos estudos desenvolvidos por Debert (1999) quando analisa as reaes em relao
idade cronolgica. Essa autora cita Thompson (1991) em uma argumentao sobre histria de vida de idosos de
diferentes classes sociais, na Inglaterra, e considera que a imagem que os idosos fazem de sua experincia
pessoal radicalmente contrria do senso comum. Os idosos que no esto doentes ou emocionalmente deprimidos no se consideram velhos. No o avano da idade que marca as etapas mais significativas da vida; a velhice antes, um processo contnuo de reconstruo (DEBERT 1999: 95). De certa forma esses romeiros tambm atribuem sua suposta fora s suas devoes.
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santurios focalizamos esse ltimo tipo de romeiro dando especial ateno queles que de
alguma forma demonstravam estar cumprindo um ritual por graas alcanadas.
Dessa forma, seguir o caminho dos romeiros nos santurios nos levou ao encontro com
pessoas diversas e originrias de diferentes municpios. Pudemos observar que os momentos
de celebrao nos Santurios contam tambm com romeiros que residem fora da regio, seja
em outros estados do Nordeste ou da regio Sudeste do pas. Em geral so pessoas que
migraram e fixaram residncias fora. Essa constatao nos leva a pensar at onde caminha a
devoo e, nesses termos, entender que a devoo vai alm daquilo que se representa e cultua
perante os altares. Os romeiros viajantes carregam consigo no apenas os ensinamentos
adquiridos, provavelmente no seio da suas famlias, mas aparentemente em suas vidas dirias
se alimentam dos valores religiosos que fazem da religio uma fora atuante nos desafios que
por ventura possam enfrentar nas grandes cidades. Portanto, para o migrante de f, a volta
regio se constitui tambm num reencontro ou um reforo com os pilares sustentadores de sua
religio. Esses retornos muitas vezes vo alm de uma visita usual, constituem-se
momentos de se pagar uma promessa.
Vale salientar que no mbito dos Santurios a escolha das pessoas para entrevistar
ocorreu de forma aleatria. Em geral, dirigimo-nos s pessoas que aparentemente pagavam
uma promessa e estabelecemos um dilogo com elas. Muitas vezes, esse dilogo foi rpido
por conta das circunstncias do momento.
Num dia de evento nos Santurios, por exemplo a comemorao da morte do Padre
Ibiapina, os romeiros esto a correr de uma atividade para outra. Nesses eventos eles podem
recorrer confisso individual com o padre e at com o Bispo, visitar os lugares sagrados,
fazer as penitncias e ainda estarem prontos para a grande celebrao. As atividades de um
dia destes so muito importantes para acompanhar o delineamento de um fiel. Ele est atento
a tudo aos momentos de encontrar religiosos/as conhecidos ou um amigo que h muito no
v. Mesmo assim, surpreendeu-nos que muitos romeiros ao serem informados do que se
tratava a pesquisa vieram a mim querendo falar e prestar seus depoimentos.
Embora a escolha dos informantes nos santurios tenha sido aleatria, constatamos
que a maioria dos entrevistados tratava-se de agricultores(as), conforme descrevo no perfil
dos entrevistados. O fato de pertencerem, em maioria, ao meio rural contribuiu para o
processo de anlise. Consideramos este aspecto bastante gratificante pesquisa, pois mesmo
incluindo romeiros de locais diferenciados, boa parte frequentadora tambm dos outros
locais selecionados para esta pesquisa e assim pudemos observar o circuito de suas
movimentaes e como cada romeiro concebe as especificidades dos distintos locais e como
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caracterizam os prprios momentos de suas movimentaes. H em cada visita um aspecto de
fidelidade muito forte, que se deposita em cada cone religioso daquele local. Por outro lado,
essas pessoas romeiras estendem a rede de relaes aos prprios cones religiosos que, entre
eles, acabam sendo inseridos e caracterizados por formarem uma espcie de red