Tese de doutorado sobre a Rádice

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE DOUTORADO Alessandra Daflon dos Santos Rádice: muito prazer! Crônicas do passado e do futuro da Psicologia no Brasil Rio de Janeiro Maio, 2008.

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Tese de doutorado sobre o jornal Rádice

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

CURSO DE DOUTORADO

Alessandra Daflon dos Santos

Rádice: muito prazer!

Crônicas do passado e do futuro da Psicologia no Brasil

Rio de Janeiro

Maio, 2008.

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL

CURSO DE DOUTORADO

Alessandra Daflon dos Santos

Rádice: muito prazer!

Crônicas do passado e do futuro da Psicologia no Brasil

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em

Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título

de Doutor em Psicologia.

Orientadora: Profa. Ana Maria Jacó Vilela

Rio de Janeiro

Maio, 2008.

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BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________

Profa. Dra. Ana Maria Jacó Vilela

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(Orientadora)

_____________________________________

Prof. Dr. Luís Reznik

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

_____________________________________

Prof. Dr. Francisco Teixeira Portugal

Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________

Profa. Dra. Cecilia Maria Bouças Coimbra

Universidade Federal Fluminense

_____________________________________

Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Suplentes:

_____________________________________

Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________

Profa. Dra. Irene Bulcão

Universidade Cândido Mendes

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4

AGRADECIMENTOS

“Com açúcar e com afeto”, abraços, chamegos, cafunés, apertos, beijinhos, amassos em

Carlos Ralph e todos que colaboraram com esta tese com suas histórias e memórias.

Aos meus amigos companheiros de viagem da aventura-doutorado: Renato, Marcelo,

Tininha, Irene, aos leitores Isabel e Tutuca e ao “povo do Clio”. À minha família: Francisco,

Fátima, Mônica, René (in memorian), Simone, Paulo, Lucas, Isabela, Alexandre, Carla,

Johann, Hyago e Ícaro.

À banca de avaliação: Cecília Coimbra, Francisco Portugal, Luis Reznik, Edson L. A. de

Sousa e, à minha orientadora, Ana Jacó-Vilela.

Aos funcionários da secretaria da Pós-graduação em Psicologia Social – sempre

quebrando todos os nossos galhos: Aníbal, Marcos, Jussara e Matheus (in memorian).

Aos meus companheiros e amigos do CRPRJ: conselheiros, funcionários (em especial

para Zarlete, Juliana, Mirthes e o pessoal do setor de atendimento, tirando algumas dúvidas e

me ajudando a encontrar alguns psicólogos que colaboraram com a Rádice) e aos

colaboradores do conselho.

À FAPERJ pela bolsa.

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“... quantas coisas perdidas e esquecidas no teu baú

de espantos...”

Esconderijos do tempo

(Mário Quintana)

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RESUMO

O objetivo desta tese é apresentar a revista Rádice – revista de psicologia, produzida por

psicólogos cariocas entre 1976 e 1981. Esta revista foi de grande importância (intelectual e

afetiva) para a geração que, durante o período da ditadura militar brasileira, graduava-se em

psicologia. Levava aos seus leitores matérias sobre temas variados e polêmicos, não

existentes nas revistas de psicologia da época, como a repressão política, o tratamento

desumano nos hospitais psiquiátricos, a regulamentação da profissão de psicologia, as terapias

corporais. Participava, com outras publicações “nanicas”, do Comitê de Imprensa

Alternativa, indicando sua participação ativa nos debates políticos ocorridos à época. A

Rádice é, pois, um analisador da constituição histórica da psicologia no Brasil, sendo um dos

poucos dispositivos de divulgação de outras formas de se fazer psicologia.

Palavras-chave: história; psicologia; Rádice.

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ABSTRACT

The aim of this work presents “Rádice – a psychology magazine”, published by

psychologists from Rio de Janeiro between 1976 and 1981. This publication had a huge

intellectual and emotional importance for a generation of psychology students graduated

during the period of militar dictatorship in Brazil. “Rádice” offered to its readers papers on

diverse and polemical themes, unusual to psychology publications of that epoch, such as

political repression, nonhuman treatment in psychiatric hospitals, regulation of the

psychologist profession, and corporal therapies. “Rádice” was, like other small publications,

part of the Alternative Press Committee, and had an active participation on the political

debates of that time. “Rádice”, thus, allows us to analyze the history of psychology in Brazil,

being one of the fews devices to present other ways of doing psychology.

Key words: history; psychology; Rádice.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10

CAPÍTULO 1

EMERGÊNCIA ............................................................................................................... 26

1.1. Do campo de batalhas ...................................................................................... 28

1.2. Há vida no campus ........................................................................................... 43

1.3. “Rádice, Muito Prazer!” .................................................................................. 52

1.4. “Jornalismo da psicologia” – loucura, loucura... ............................................ 61

CAPÍTULO 2

ALTERNATIVO .............................................................................................................. 76

2.1. Rádice – Revista de psicologia ......................................................................... 79

2.2. Reich e Sexo na Rádice .................................................................................... 82

2.3. O novo sindicalismo e as articulações políticas no campo da psicologia ..... 100

2.4. A mobilização contra o “Pacote de Abril da Psicologia” ............................. 112

2.5. Rádice e sua família: a Imprensa Alternativa .............................................. 118

2.6. Anistia e Tortura: o que a Rádice tem a ver com isso? ................................. 122

CAPÍTULO 3

DOS ENCONTROS ....................................................................................................... 130

3.1. Transformações no universo “Psi” ................................................................ 131

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3.2. Os últimos números da Rádice ...................................................................... 139

3.3. Rádice-movimento: promovendo encontros .................................................. 149

3.4. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante... .............................................. 156

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 166

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 168

Anexo 1 – Capas das Rádice .......................................................................................... 176

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INTRODUÇÃO

O objeto de investigação desta tese de doutorado é a revista Rádice, produzida por

psicólogos, estudantes de psicologia, artistas e jornalistas durante a segunda metade da década

de 1970, no Rio de Janeiro. O trabalho partiu da vontade de saber como a revista foi possível

e como foi, para o grupo de colaboradores, produzí-la. A idéia que sustenta este trabalho é a

de que existem movimentos instituintes1 no campo da psicologia, e que a Rádice é um deles.

Meu objetivo é apresentar a trajetória desta revista-acontecimento irradiadora de idéias,

pensamentos e discussões que marcaram determinado momento histórico da psicologia no Rio

de Janeiro e, porque não dizer, no Brasil.

Esta pesquisa é fruto de vários e significativos encontros que tenho feito desde a

graduação até os dias de hoje. É o trabalho de alguém que se incomoda com certo sentido

para a psicologia ou, pelo menos, desencontrar o sentido dominante que lhe é atribuído.

Atualmente, estou vinculada ao Clio-Psyché, Programa de Estudos e Pesquisas em História da

Psicologia, onde se encontram pesquisadores de graduação e de pós-graduação, orientados por

“Dona Clio” e “Dona Psyché”2, e preocupados com os “fazeres e dizeres” da psicologia no

Brasil. No encontro da psicologia com a história, esta tornou-se ferramenta de análise sobre a

constituição do “universo psi” no Brasil.

De acordo com Jacó-Vilela, Jabur e Rodrigues (1999), o I Encontro Clio-Psyché –

Histórias da Psicologia no Brasil, realizado na UERJ em 1998, deu origem ao programa de 1 De acordo com a análise institucional, os movimentos instituintes são aqueles que irrompem num dado

momento da história e que retiram as coisas de seus lugares demarcados, que estava institucionalizado. Os

movimentos instituintes provocam o caos, desorganizam o que antes estava organizado. A esses movimentos,

segue o momento de institucionalização que captura alguns desses movimentos irruptivos, tornando-os uma nova

norma geral. Essa é a forma como os autores da análise institucional interpretam os movimentos que produzem

a história. O que foi instituído é interpelado pelo instituinte que, em alguns pontos, em alguns momentos, é apreendido sob a forma de nova regra. O que me interessa dessa idéia é a potência característica dos

movimentos instituintes, eles continuam a vibrar, têm potência. Por isso a Rádice é instituinte. 2 Estas são as “identidades secretas” das professoras Ana Maria Jacó-Vilela e Heliana de Barros Conde

Rodrigues, mas não estamos autorizados a revelar quem é quem.

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pesquisas, além de promover um intercâmbio entre professores e pesquisadores de outras

instituições.

O Clio – como é carinhosamente chamado por todos – também se preocupa em organizar

e produzir um sistema de informação, como a criação do acervo áudio-visual e também

bibliográfico. Centros, núcleos ou programas como esse têm surgido em outros estados

brasileiros, como em Minas Gerais e São Paulo, com o objetivo de não apenas organizar

material sobre história da psicologia no Brasil, mas produzir conhecimento, traduzido como

um vasto material escrito, visual e em áudio sobre essa temática.

Esse movimento, esse grande esforço, embora esbarre em dificuldades de toda ordem – o

parco financiamento das agências de fomento que não privilegiam as pesquisas no campo das

Ciências Humanas; as dificuldades institucionais para conseguir material de trabalho como

computadores, livros e outras ferramentas, além do espaço físico que hoje tem sido pequeno

para a quantidade de alunos que desenvolvem inúmeras atividades na sala 10.120 do bloco F,

da UERJ (como grupos de estudo, orientações, relatórios, pesquisa, etc.) – tem feito com que

os psicólogos possam se encontrar com múltiplas histórias sobre a institucionalização desse

campo no Brasil e também com as tensões e questionamentos que emergiram desse processo.

O Clio é um espaço multidisciplinar onde a história e a psicologia se encontram, fazendo

com que ultrapassemos os limites estabelecidos institucionalmente por nossa formação

acadêmica. Das técnicas de formação, comprometidas com a reprodução dos especialistas e

seus especialismos, adquirimos o hábito do respeito aos limites do campo ao qual nos

sentimos pertencentes. Aos psicólogos, a psicologia! A qualificação universitária

contemporânea nos encerra dentro de um campo disciplinar. Por um lado, ultrapassar os

limites pode significar, ao mesmo tempo, a renúncia a determinado “conhecimento” e a

desqualificação, pois não se está autorizado à utilização de ferramentas “estranhas” ao campo

que lhe é próprio. Por outro lado, Ewald (1996) incita-nos a pular os muros e propõe que,

para conhecermos a psicologia, devemos nos encontrar com a sociologia, com a antropologia,

com a filosofia, com a arte e com a história. Diante desse impasse, deve-se correr o risco.

Foi na sala do Clio que ocorreu meu primeiro encontro com a revista Rádice. Procurando

na biblioteca do Núcleo textos relacionados à dissertação de mestrado que elaborava na

época, esbarrei com a revista e me apaixonei. Muito esforço foi feito para não abandonar o

tema original da dissertação – que já se encontrava com a pesquisa realizada – e me dedicar

exclusivamente à nova paixão.

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Surpreendi-me com ela ao reconhecer ali um movimento diferente do que ouvia e lia

sobre a psicologia nos anos 70 do último século. Ao contrário dos Guardiões da ordem3,

encontrei psicólogos rompendo com uma forma de compreender a psicologia que era

hegemônica naquele período, criticando seu modelo positivo-científico e biológico,

ultrapassando seus limites, promovendo encontros de toda ordem, de coisas diferentes,

apresentando uma novidade, algo fresco e vigoroso. Interessei-me por tal força, pela

intensidade, pela criatividade, pela audácia, pelo riso, pela crítica, dizendo, sem ter medo, que

era possível fazer diferente e fazer diferença.

Para documentar a existência da Rádice, mesmo correndo o risco de paralisá-la no tempo,

congelando-a feito passado em uma tese de doutorado, orientei-me por dois “efeitos-Rádice”4:

o primeiro relaciona-se com as memórias construídas em torno da Revista. Quando falo dela,

percebo forte emoção nas pessoas e logo surgem memórias e histórias sobre a festa que

participou, o simpósio no Parque Lage, os artigos que leu, a primeira vez que teve contato

com a Rádice. São interessantes as marcas que deixou em seus leitores e colaboradores, na

memória que cada um guardou daquela experiência, não confundindo com uma memória

“pessoal”, já que os elementos sociais, culturais e políticos constituem essa memória,

tornando-a sempre memória coletiva.

São vários os “dizeres” sobre a Rádice. Algumas pessoas se referem a ela como uma

revista de “bioenergética”, outras, como de “psicologia”, ou de “terapias corporais”, ou

“aquela do Reich”, ou, ainda, como “porra-louca, mas muito legal”. Uma grande comoção

misturada com lembranças de aventuras vividas que se atualizaram no momento dos

depoimentos para este trabalho.

Inicialmente me perguntava: como algo de que as pessoas se lembram de forma tão

carinhosa e emocionada foi abandonado ou esquecido, guardado, empoeirando nos armários

ou nos “baús de espantos”?

O outro “efeito” se direciona aos alunos de psicologia que, como eu, não conheciam a

Revista. Ela nos enche de vontade de fazer alguma coisa tão vigorosa, tão potente. Como

inventar novas práticas no campo da psicologia?

3 Título do livro-referência de Cecília Maria Bouças Coimbra sobre a psicologia nos anos 70. Ver Coimbra,

1995. 4 A expressão “efeito-Rádice” foi apropriada de Heliana de B. C. Rodrigues que, ao se referir ao institucionalista

René Lourau, cunhou a expressão “efeito-Lourau”.

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Compreendo a Revista como uma expressão de um campo político-cultural marcado

pelos movimentos de contestação e de resistência que eclodiram no ano de 1968. Pergunto

então: Como um campo do conhecimento – a psicologia – comprometido com a produção de

normatização social, de controle das condutas dos sujeitos, com a testagem dos indivíduos,

com a produção e afirmação de rótulos e estereótipos, foi parar no “campo das resistências”,

das lutas contra o pensamento dominante, do enfrentamento da ordem? Ou terá sido a força

desses movimentos que invadiu os espaços bem constituídos e delimitados da vida, retirando

as coisas, a psicologia, de seus lugares e interrogando-as?

Rádice surgiu a partir da vontade do psicólogo Carlos Ralph5, ou Cê Ralph, como

assinava nos editoriais e matérias, e de um grande número de colaboradores. Este grupo,

além de muito grande, era também heterogêneo, expressando uma das marcas da revista – sua

diversidade, pluralidade e polifonia.

Carlos Ralph formou-se em psicologia em 1975 pela UFRJ. Logo em seguida, iniciou o

curso de Mestrado em Comunicação Social na Fundação Getúlio Vargas. Ao mesmo tempo,

começou a lecionar na Universidade Gama Filho (UGF). Saiu da UGF para aquilo que

chamou “um salto de pára-quedas”, sua aventura-Rádice. Segundo Ralph, todo o processo de

construção e realização da Revista o tomou: ele, um ex-militante da Ação Popular (AP)6, que

fora torturado pelos órgãos de repressão, estava construindo um veículo de comunicação para

poder se expressar. O país vivia sob o regime de exceção imposto por um golpe de Estado

articulado pelas Forças Armadas. Foram quatro anos e sete meses de intensa dedicação para

manter a revista viva e crescendo, o prazer de escrever e a descoberta da arte gráfica – o que

fica muito claro nas páginas da Rádice.

5 Carlos Ralph Lemos Vianna, um dos “pais” da Rádice tem colaborado com minha tese, doando materiais e

concedendo várias entrevistas. Depois da Rádice, publicou o jornal Luta & Prazer, permanecendo neste apenas

nos primeiros números, desvinculando-se em 1984; em seguida publicou a revista Orgón que teve apenas um

único número. Em 1985, participou da “Caravana Voadora” do Circo Voador, projeto cultural do Rio de

Janeiro, elaborado por Mário Portella e Márcio Galvão que percorreu o país, do Rio de Janeiro até o Maranhão,

documentando a diversidade cultural do Brasil. O nome de Carlos Ralph está ligado às Terapias Corporais e à

difusão do pensamento de Willhem Reich e A. Lowen no Brasil. Atualmente, viaja pelo Brasil ministrando

cursos, wokshops, palestras e organizando diversos encontros nos quais são debatidas essas temáticas. Também

trabalhou fora do país acompanhando pacientes com câncer na Argentina. Ralph nunca abandonou seu lado

“comunicólogo”: hoje dirige o jornal Qualitá! órgão informativo do Espaço Saúde, localizado no Rio de Janeiro, com circulação no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Florianópolis. 6 A Ação Popular (AP) teve suas origens no grupo Juventude Universitária Católica (JUC), criado nos anos 50.

Porém, não podemos relacioná-la apenas a essa origem, pois foi se unindo a várias tendências de esquerda ao

longo de sua história, culminando em 1973 com a integração ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). A

história da AP é representativa de outras histórias de grupos cristãos em toda a América Latina que passaram a

defender as idéias marxistas, principalmente o marxismo-leninismo. (RIDENTI e REIS FILHO, 2002).

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A Revista foi palco de debates sobre temas variados, muitos deles até então não

compreendidos como relativos ao campo “psi” (psicologia, psicanálise e psiquiatria). Em

suas páginas lê-se sobre as relações de poder no campo da medicina, a psiquiatria preventiva,

a educação, a cientificidade da psicologia, o uso de drogas, o preconceito racial, sexo,

casamento, macumba, prisões e desaparecimentos de presos políticos no Brasil e na América

Latina, os efeitos da tortura, as transformações no campo da saúde mental no Brasil e em

outros países, a experiência da antipsiquiatria, além de entrevistas e matérias com inúmeros

autores conhecidos no cenário brasileiro como Nise da Silveira, Luiz Alfredo Garcia-Roza,

Gilberto Velho, Samuel Chaim Katz, Jurandir Freire Costa, Eduardo Mascarenhas, Hélio

Pellegrino, e, também, nomes internacionais Ronald Laing, Franco Basaglia, Félix Guattari,

Wilhelm Reich, Carl Rogers.

O período em que a revista Rádice foi produzida compreende o momento no qual os

movimentos sociais e populares materializavam a denúncia dos atos violentos da repressão,

reivindicando o fim da ditadura militar; a volta dos exilados (obtida com a Lei de Anistia); a

cobrança de respeito aos direitos humanos feita ao governo brasileiro pelos organismos

internacionais; as transformações no campo da saúde que serviriam de base para a

organização de movimentos singulares como o sanitarista e a luta antimanicomial, nos anos

80; as mudanças nas expressões culturais e nas formas de compreensão e organização da luta

política, confirmando novos modos de resistência.

A Revista teve 15 números, contando ainda com dois extras: a edição de comemoração de

4 anos e a edição Rádice Teoria/Crítica, uma publicação voltada para a divulgação de textos

considerados mais acadêmicos, que teve somente um exemplar.

A crítica, o bom-humor, o riso são marcas desta “Revista menina”7, que participava do

Comitê de Imprensa Alternativa. No Brasil, na segunda metade dos anos setenta, houve um

boom de publicações chamadas “nanicas”. Antes mesmo deste boom, ainda nos anos 60, dois

jornais tornaram-se emblemáticos desse tipo de imprensa: O Sol e O Pasquim, por

questionarem não só as questões relativas à política brasileira, mas também o próprio modelo

de imprensa que havia. Essas publicações reuniam, além de jornalistas, escritores, poetas,

cartunistas, pessoas ligadas aos meios de produção cultural do país.

O esforço na construção (e manutenção) de uma revista como essa, em períodos tão

difíceis, é, por isso só, um ato de resistência. Ela pôde ser percebida como um instrumento,

7 Expressão utilizada por Ralph, para se referir à Revista, presente em vários editoriais.

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uma ferramenta para o protesto, a ironia, a irreverência, a denúncia, o pensamento, a

provocação, o encontro, o riso.

Ao mesmo tempo que a revista apresentava características regionais, pois foi feita no Rio

de Janeiro, irradiou para outros lugares e espaços, não só porque teve uma distribuição

nacional através da organização dos grupos sucursais (mesmo precariamente), mas porque os

temas explorados faziam parte do debate da época de questionamento da psicologia.

Como dito, esta pesquisa objetiva contar a trajetória da revista, mapeando movimentos

nos quais se engajou, rompendo com o que se encontrava consolidado, constituindo futuros

possíveis.

A organização dos dados, a escritura, a narrativa (o documento escrito), a delimitação do

objeto de pesquisa (os fatos, os conceitos, as práticas a serem investigadas), o estabelecimento

das fontes (os dados oficiais, os monumentos, as práticas sociais, as memórias), antes tão bem

delimitados na forma tradicional de se pensar a pesquisa histórica, chamada ora de

continuísta, ora de dialética, atualmente podem se definir a partir do que até há pouco tempo

não era considerado acontecimento histórico: os modos de sentir e ver o mundo, o medo, o

amor, a consciência, e outros tantos (CERTEAU, 2002).

No campo da historiografia, vários movimentos surgiram no final dos anos vinte do

último século, contestando a história dita positivista, na qual o documento oficial era a fonte

que expressava a verdade dos fatos, organizados em uma linha temporal sucessiva de

acontecimentos, descritos pelo historiador neutro que olhava para o passado distante.

Desde então, a história tem se diferenciado daquilo que reconhecemos como sendo o

trabalho clássico do historiador: o pesquisador envolvido por poeira, mergulhado nos arquivos

das grandes bibliotecas, procurando documentos como atas, leis, livros de registro etc.

A partir do final dos anos 20 do século XX, essa tradição historiográfica sofreu abalos em

suas estruturas quando, em torno de uma revista – Annales-histoire, sciences sociales – ,

organizaram-se historiadores que propunham novos objetos para a pesquisa histórica,

implicando novas técnicas e métodos que dariam a esse campo um caráter diferente: o da

interdisciplinaridade. A nova história passou, então, a dialogar com outros saberes como a

sociologia, a antropologia, a psicologia e a psicanálise.

As transformações técnicas e tecnológicas que ocorreram no século XX contribuíram de

forma definitiva para essa nova forma de investigação, através do surgimento do cinema, da

televisão, do vídeo, da informática, da reprografia. Segundo Voldman (2002), novas

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possibilidades documentais apareceram e os pesquisadores desse período passaram a

reconhecer e construir novas fontes.

A autora assinala a discussão sobre o testemunho que os antigos historiadores utilizavam

e que a história positivista, com o seu rigor e desconfiança sobre o presente, recusou, pois as

palavras dos sujeitos não eram confiáveis. Somente no século XX, reavivou-se o interesse

pela testemunha ocular e objetivou-se que sua mensagem fosse acessível a todos. A invenção

do gravador permitiu que fosse possível o registro de tais depoimentos, garantindo, assim, a

“prova” científica. A palavra gravada tornou-se o documento sonoro, uma nova fonte para a

pesquisa histórica. Segundo ainda Voldman (2002), existem dois modos de tratar o

documento:

um que confere maior importância à precisão factual e à informação, e outro

mais preocupado com o que revelam os interstícios do discurso. Os primeiros se atêm essencialmente à elaboração de um documento legível

para suas pesquisas; eles privilegiam “os modos de proceder”. Os outros dão

também atenção ao depoente, sensíveis à dimensão da presença dos corpos e

aos “modos de dizer” (p. 35).

A historiadora francesa faz ainda outra distinção, entre arquivo oral e fonte oral. O

primeiro seria um documento sonoro, o registro da palavra através do gravador, realizado por

um pesquisador, sobre um assunto específico e cuja guarda está a cargo de uma instituição

que irá preservar o conteúdo do documento para os pesquisadores do futuro. Já a fonte oral é

o material extraído através das entrevistas por um pesquisador, para as necessidades de sua

pesquisa, confirmando ou não hipóteses e orientando-se a partir daquilo que lhe pareça

necessário obter. Por exemplo, os depoimentos colhidos para esta tese foram fontes orais e

não um arquivo oral.

Para Amado e Ferreira (2002), entre as novas metodologias que surgem, a história oral

emerge trazendo temas antes inusitados: as relações entre a história e a memória, novos

conceitos, organização de novos arquivos (orais), o uso de entrevistas – o depoimento –,

novas formas de narrar (biografias, autobiografias, história de vida), o tempo presente como

campo de investigação. As autoras destacam também a diversidade e a polifonia como

características do campo da história oral.

Porém, este termo “história oral” é considerado ambíguo entre os historiadores. Amado e

Ferreira (2002) apresentam as três principais posturas existentes: a história oral como uma

técnica, como uma disciplina e como uma metodologia. À história oral, vista como uma

técnica, interessa as experiências com o gravador, transcrições e conservação do material e

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tudo o que envolve tal procedimento: aparelhagem moderna, forma de transcrição, modelos

de arquivos. Os defensores desta postura estão envolvidos na constituição e conservação de

acervos orais.

A história oral vista como disciplina pretende unir os procedimentos técnicos com as

explicações e conceituações teóricas, como forma de garantir unicidade ao novo campo do

conhecimento. Requer o status de disciplina autônoma para a história oral. Citando o

historiador Ian Mikka (1988), as autoras enunciam seus postulados: o testemunho oral é o

núcleo da investigação, o que obriga o historiador a fazer uma reflexão sobre as relações entre

a história e a memória, escrita e oralidade; o uso desse tipo de testemunho possibilita o

esclarecimento de trajetórias individuais e eventos que não têm como serem elucidados de

outra forma e a geração de documentos, as entrevistas, o que leva o historiador a debater a

relação sujeito/objeto; a história do tempo presente é a perspectiva temporal por excelência da

história oral; o objeto de estudo do historiador é recriado através da memória dos

entrevistados; a forma de construção e organização do discurso é a narrativa e, por fim, a

história oral guarda uma pluralidade de técnicas, pois é praticada também fora dos meios

acadêmicos e por pesquisadores de outros campos do conhecimento.

A terceira postura, apresentada pelas historiadoras, defende a história oral como

metodologia, ou seja, o que estabelece e ordena procedimentos de pesquisa. Segundo as

autoras, a história oral suscita questionamentos, formula perguntas e, para Amado e Ferreira

(2002), as respostas devem ser buscadas onde sempre estiveram, na teoria da história, que se

dedica a pensar os conceitos de história e memória, bem como as complexas relações entre

eles.

Das três posturas apresentadas pelas historiadoras, me agenciei com a segunda e a

terceira: para realizar este trabalho foi imprescindível colher depoimentos para saber sobre as

condições de produção da revista; ao ouvir os depoentes, pude perceber que os relatos sobre a

revista confundiam-se com a vida de cada um; a cada encontro uma “nova” Rádice surgia

através dos afetos e da forma como cada um foi marcado por aquela experiência. Os

questionamentos suscitados através desses encontros me fizeram querer saber sobre a relação

tempo-memória-subjetividade: o tempo, sempre o do presente; a memória vista como marcas

impressas no corpo a partir das experiências vividas; a subjetividade entendida como o modo

singular de ver, pensar e perceber o mundo, efeito das experiências e dos encontros ao longo

da vida.

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Ao se debruçar sobre o presente, um desafio se fez para a história. Segundo Chauveau e

Tétart (1999), as primeiras gerações dos historiadores dos Annales preocuparam-se com as

estruturas duráveis, os longos períodos. Suas inovações metodológicas não modificaram,

necessariamente, as relações da história com o seu fundamento: o tempo. Assim, pensar o

tempo presente implica a ultrapassagem do campo disciplinar historiográfico, tendo, que se

confrontar consigo e dialogar com outros campos do conhecimento como a sociologia, a

antropologia, a psicologia, o jornalismo.

Já o retorno do tema da memória ao campo da história foi marcado pelo editorial escrito

por François Bédarida (2002), intitulado “A nova oficina de Clio”, publicado no primeiro

Boletim do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), na segunda metade dos anos 70

do século XX. O autor destaca três linhas de reflexão sobre o tema da memória que giram em

torno dos binômios: história e verdade, história e totalidade, história e ética.

O primeiro binômio é marcado pela afirmação do autor de que a verdade é a regra de

ouro do historiador, e que a verdade da história tem sua origem nos complexos elementos do

passado que chegam até nós através de documentos, vestígios do tempo. A tarefa do

historiador é conferir/interpretar esses documentos.

Nesse ponto o autor se depara com a questão da objetividade, imposta pela história

positivista e as críticas endereçadas tanto pelos historiadores dos Annales, que lançavam seus

questionamentos na direção do fetiche dos fatos e à ênfase ao papel que o historiador exerce

ao construir a história quanto pela fenomenologia ao objetivismo, apontando a

impossibilidade de separar sujeito e objeto, pois a realidade depende da consciência que a

apreende. Mesmo considerada como um ideal, para Bédarida (2002) a verdade deve ser o

objetivo do historiador que deve distinguir níveis de verdade com maior ou menor grau de

aproximação e diferentes estágios de certezas.

Ao contrário do historiador, não há a preocupação, neste trabalho, com a definição de

uma história verdadeira sobre a Rádice, muito menos construir sua “história oficial”. Esta é

uma história possível, entre outras tantas que se seguirão. Aqui, de braços dados com Michel

Foucault, afirmo a transitoriedade de qualquer verdade e que seu estabelecimento depende do

momento histórico no qual é produzida.

Retomando Bédarida (2002), a fim de compreender esses novos movimentos no campo

da história, apresentamos o segundo binômio: história e totalidade. Esse lança luz sobre as

transformações no campo historiográfico, constituindo novos campos, multiplicando as

Page 19: Tese de doutorado sobre a Rádice

19

fontes, diversificando abordagens e assumindo novos problemas. O autor chama a atenção

para a complexidade do estudo do tempo presente, que deve se concentrar em problemáticas

globais, que gerem esquemas explicativos para a produção de sentido sobre o mundo

contemporâneo: o importante é estudar os problemas e não os períodos. Por isso, a Rádice

tem uma tripla função: é objeto, é fonte e também o problema desta tese: como foi possível?

Quais foram as condições de sua emergência? Que efeitos produziu no mundo?

O último binômio diz respeito ao posicionamento do historiador. Como realizar um

estudo do presente sem se transformar em um tribunal? Manter um posicionamento crítico

em relação ao objeto de pesquisa não quer dizer neutralidade. Segundo Bédarida (2002), o

historiador deve se colocar o problema da responsabilidade e da sua função social. Desafio

posto para nós psicólogos também, pois a reflexão ética deve ultrapassar os códigos

deontológicos que normatizam nossas ações. Um posicionamento ético necessariamente

implica na reflexão cotidiana, não tem norma ou manual decidindo por nós. Bédarida afirma

que a história do tempo presente é uma história inacabada, em constante movimento, a

história não tem fim, pois é fruto da experiência humana.

Para Roger Chartier (2002) a história do tempo presente “não é uma busca desesperada

de almas mortas, mas um encontro com seres de carne e osso”. Para esse autor, as relações

entre a escrita histórica e a escrita ficcional são pertencentes à categoria das narrativas. Toda

história constrói suas próprias entidades, suas temporalidades, suas causalidades como toda

narrativa de ficção. Ricouer (s/d), por sua vez, cotejou que narrativa e tempo estão ligados,

definindo temporalidade como forma da existência e narrativa como estrutura da linguagem,

estabelecendo uma relação recíproca entre estas duas funções. A história, para esse autor, é

sempre narrativa, seqüência das ações humanas que se tornam reais, quer dizer, a ação do

homem produz sua própria realidade, ou seja, sua história. Para ele, a criatividade narrativa e

as práticas constituem o campo da história.

Os historiadores Chauveau e Tétart (1999) apontam, ainda, outros dois fatores que se

tornaram relevantes para o debate sobre história do presente: a questão da geração e a

demanda social. Sobre o primeiro fator, assinalam o impacto dos acontecimentos sobre os

sujeitos, a partir do século XX. A experiência dos “sujeitos históricos”, agentes das

transformações que ocorreram em todo o século, nos leva a pensar sobre a função do

“historiador-narrador” dos acontecimentos, o historiador como testemunha do seu tempo. O

segundo fator deve-se à divulgação nos meios extra-universitários das obras historiográficas,

o crescimento da produção editorial promovida pelos novos meios de comunicação e a

Page 20: Tese de doutorado sobre a Rádice

20

ampliação do acesso às obras (as coleções de bolso, a distribuição e venda em bancas de

jornal, os preços mais acessíveis, a linguagem mais simplificada, o formato de revistas).

Em um pequeno artigo sobre a verdade e a memória na história, Gagnebin (1998)

pergunta o porquê de falarmos em memória e o porquê da tarefa dos historiadores. Com essas

questões, a autora afirma que a relação entre o passado e o presente é também histórica.

Apoiando-se no pensamento de Walter Benjamim, Gagnebin (1998) recusa o ideal de ciência

histórica e seu fim último de estabelecer a verdade dos fatos, objetivando os acontecimentos.

Não há possibilidade de conhecer o passado tal como ele foi, afirma Benjamim (1987).

Para este autor, os fatos adquirem tal estatuto a partir de um determinado discurso que os

constituiu assim, tornando-os reais. Também não há como descrever o passado como um

objeto físico, pois não podemos pegá-lo, não é uma coisa com massa, volume, profundidade.

Mas através do que o passado se manifesta? Podemos arriscar num primeiro momento uma

resposta: nos documentos, nas pistas, rastros, marcas, na memória. Em primeiro lugar é

preciso um trabalho arqueológico para identificá-lo. Mas não podemos pensar que iremos

encontrá-lo precisamente. O que encontramos são cacos, restos de antigas construções,

objetos pessoais, pedaços de roupas, de tecidos, pequenas lembranças embaraçadas,

distorcidas, marcas nos corpos (o tempo fica impresso no corpo) – fragmentos, rastros. Não

encontramos “O Passado”, já que não é uma substância.

Notamos primeiro que o rastro, na tradição filosófica e psicológica,

foi sempre uma destas noções preciosas e complexas (...) que

procuram manter juntas a presença do ausente e a ausência da

presença. (...) O rastro inscreve a lembrança de uma presença que não

existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente.

(...) Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão freqüentemente a

imagem – o conceito de rastro? Por que a memória vive essa tensão

entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do

passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido

que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da

memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro.

(GAGNEBIN, 1998, p. 218)

Segundo Gagnebin, é percebendo a fragilidade dos conceitos de rastro e memória que se

torna necessário lutar contra o esquecimento. Mas precisamos ficar atentos às estratégias

formadas para apagar rastros: por exemplo, os nazistas, nos últimos dias de guerra,

queimaram documentos, destruíram câmaras de gás e campos de concentração. Contudo, não

puderam apagar os pesadelos dos que sobreviveram às crueldades as quais foram submetidos

nestes campos.

Page 21: Tese de doutorado sobre a Rádice

21

Assim como não se conseguiu apagar a memória daqueles que foram torturados durante

os períodos de ditadura militar, que dominaram por longo tempo os países da América Latina.

A luta das Mães da Praça de Maio é um exemplo de resistência e luta contra o esquecimento:

exigir que se encontrem os restos mortais de seus filhos é fazer com que o Estado reconheça

seus crimes; por outro lado, o modo como resistem é ensinando os jovens argentinos a pensar,

através de iniciativas como a Universidade do Povo. A luta das “madres” não é nem

ressentida, nem lamuriante, mas representa um posicionamento de enfrentamento no presente.

Lutar contra o esquecimento é tarefa política, capaz de tirar do lugar a memória que se tornou

oficial sobre estes fatos.

O esquecimento dos mortos e a denegação do assassínio permitem

assim o assassinato tranqüilo, hoje, de outros seres humanos cuja

lembrança deveria igualmente se apagar. (GAGNEBIN, 1998, p. 221,

grifo da autora)

E ainda,

o historiador atual (...) precisa transmitir o inenarrável, manter viva a

memória dos sem-nomes, ser fiel aos mortos que não puderam ser

enterrados. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a

denegação é também lutar contra a repetição do horror. Tarefa

igualmente ética (...): as palavras do historiador ajudam a enterrar os

mortos do passado e a cavar um túmulo para aquele que dele foram

privados. Trabalho com o luto que deve ajudar, nós, os vivos, a nos

lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. (GAGNEBIN, 1998,

p. 221)

A produção da memória oficial dos acontecimentos acaba por silenciar outras narrativas,

ou pelo menos, desqualificá-las como “lembranças pessoais”, porque são confusas, não

corresponderiam à “verdade dos fatos”. De acordo com Pollak (1989), as “lembranças

pessoais” são transmitidas oralmente dentro de certas redes de sociabilidade, como a familiar,

por exemplo. São memórias subterrâneas que nem sempre reproduzem a “memória oficial”,

tornando-se proibidas ou vergonhosas. Como exemplo, o autor cita a memória dos judeus

que, num primeiro momento, acreditavam que podiam negociar com os nazistas a título de

sobrevivência nos guetos. Existem nessas lembranças zonas de sombras ou de silêncio, pois

não encontram uma escuta para elas. A fronteira entre o dizível e o indizível, ou seja, entre

uma memória coletiva subterrânea ou de grupos específicos e uma memória coletiva

organizada, resume a imagem que uma sociedade ou Estado deseja passar ou impor.

Page 22: Tese de doutorado sobre a Rádice

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A história oral, ao se debruçar sobre novos temas e métodos na pesquisa historiográfica,

ao se preocupar com a memória – a memória dos “vencidos” –, diferente da memória oficial,

introduz a dimensão da subjetividade na narrativa histórica. Essa subjetividade não se refere a

um “interior”, não está presa dentro do corpo. Refere-se aos modos como nos constituímos a

partir das conexões que estabelecemos com as coisas do mundo. Félix Guattari e Gille

Deleuze definem a subjetividade, ou melhor, as subjetividades, como algo que é produzido,

criado, inventado, não possuindo uma natureza objetivamente localizável. Por isso, a

memória e as subjetividades não podem ser pensadas a partir dos modelos que inserem uma

na outra. A memória não está contida nas coisas, ela é efeito, marca impressa no corpo que

vibra com os encontros, conexões, ou agenciamentos que promove.

A memória não está fixada a um fato. Quando um grupo de amigos se reúne, por

exemplo, para contar sobre os “velhos tempos”, as lembranças suscitadas estão impregnadas

da experiência de cada um com as coisas que ocorreram, ou seja, efeitos daquilo que foi

experimentado, como foi experimentado. São efeitos de como as coisas nos afetam e como

nos misturamos com elas. A memória e os modos de ser, ver e pensar o mundo são uma

invenção.

A história (ou as histórias) sobre a Rádice que é (serão) apresentada(s), aqui, também foi

(foram) inventadas. Parte(m) de uma interrogação contemporânea, no presente, que implica o

questionamento sobre a psicologia e a formação, o envolvimento com instituições

representativas da profissão, a constituição de novas práticas. Essas questões ganham

destaque na medida em que, hoje, pensamos a psicologia como prática social, possível no

campo das resistências, buscando formas de escapar aos modelos há muito naturalizados. A

psicologia deve ser um instrumento de interpelação e análise das relações sociais e históricas

e nossas implicações com o mundo. Ao abrir a Rádice, o que nos fez apaixonar foi perceber

nela tal afirmação, da psicologia como resistência: a Revista torna-se, assim, instrumento de

atualização das questões do presente.

Ao delimitar a revista como objeto, iniciei um movimento de “rasgá-la” em pedaços para

compreendê-la: sua organização, os temas abordados, o lugar das pessoas que se envolveram

com ela. Elaborei mapas com resumos do conteúdo de cada número. Isso me ajudou a

conhecer seus temas, saber seu conteúdo e a localizá-lo quando necessário – especialmente

durante as entrevistas. Também fiz uma extensa lista com todos os nomes que aparecem nos

expedientes de todos os números, qualificando-os, ou seja, dizendo onde aparecem, em quais

números, a “função” e suas mudanças, se fizeram matérias, resenhas, notas, etc.

Page 23: Tese de doutorado sobre a Rádice

23

Também estabeleci modos diferentes de lê-la: primeiro, fazia uma leitura geral, sem parar

e sem me preocupar com anotações. O objetivo era criar uma idéia geral sobre cada número.

Em seguida, já preocupada com os registros, pois aí a Revista torna-se fonte, concentrava-me

na leitura dos editoriais e da seção “Geralmente”, desta vez com dois objetivos: primeiro,

nesses dois espaços da revista encontram-se dados referentes ao momento histórico,

relacionando Rádice com o tempo; segundo, para relacionar uma revista com a outra,

constituindo mapas comparativos, para saber as especificidades estruturais de cada

publicação.

Não existe documento oficial sobre a Rádice, a não ser o seu registro no DCDP/DPF

(Divisão Cultural de Diversão Pública/Departamento de Polícia Federal) e a Revista

materialmente. Isso fez com que tivesse que escolher ferramentas auxiliares na construção do

trabalho. Por isso, a necessidade dos depoimentos daqueles que fizeram a revista e, também,

dos que se encontravam ali no mesmo campo das resistências.

Outra estratégia metodológica foi a realização de entrevistas, ou depoimentos como

prefiro chamá-las atualmente. Entrevista parece algo oficial, que tem um roteiro prévio

estabelecido para orientar a análise, por comparação, das respostas dadas e a formalização

como documentos. Depoimento me soa menos tenso, menos rigoroso, no sentido do respeito

a formas instituídas de se realizar uma pesquisa. Não estabeleci roteiro, pedia somente que o

depoente me contasse sobre sua formação, sua trajetória e seu encontro com a Rádice – era o

que bastava. Esses depoimentos não foram analisados ou interpretados formalmente, foram

instrumentos que me faziam vibrar.

Para os depoimentos levava, além do gravador, as Revistas, ação que chamei de

“instrumento para suscitar memórias”. Quando o depoente havia colaborado com a Revista,

tinha o cuidado de levantar tudo que havia feito, conforme estivesse registrado no corpo da

revista e nos expedientes (nem sempre os colaboradores estão referenciados nos expedientes).

A escolha dos depoentes ocorreu sob critérios diversos: ao esmiuçar a revista, localizei

pessoas que se destacavam pela quantidade de trabalho, observada pelo número de notas e

matérias. Nem todos foram localizados; aos que conseguia encontrar, pedia indicação de

nomes para novos depoimentos. Para mapear os possíveis depoentes entre os que leram a

revista e participaram dos simpósios e festas, contei com a colaboração de antigos professores

e amigos.

Os depoimentos também foram importantes para conhecer as condições nas quais ocorria

a produção da revista, sua manutenção, seus objetivos, dificuldades e impasses, encontros e

Page 24: Tese de doutorado sobre a Rádice

24

desencontros, alianças e rupturas, escolha das pautas, das matérias, das imagens que aparecem

em suas páginas. Todo este movimento, possibilitou que a escritura da tese percorresse três

capítulos.

No primeiro capítulo, denominado emergência, objetivei indicar as condições históricas

que possibilitaram o surgimento da Revista, dividindo-as em dois momentos: primeiro, o

período final da ditadura militar com a emergência dos movimentos sociais e a exigência da

anistia; as transformações nas universidades brasileiras e a vida que borbulhava no campus.

Segundo, descrevo meu objeto, os seus primeiros passos representados pelos quatro primeiros

números publicados: o início da organização do grupo, como se encontraram, como

produziram a revista, as dificuldades, desafios e atropelos para conseguirem colocá-la no

mundo. Os dados referentes às condições de produção da Revista estarão presentes em todos

os capítulos, pois são efeito das mudanças que ocorreram no grupo, na captação dos recursos,

etc. Para encerrar, os “primeiros incômodos” publicados em suas páginas: denúncias das

violências institucionais, como as que ocorriam nos hospitais psiquiátricos e as formas de luta

e resistência nesse campo, representadas pela Drª. Nise da Silveira e a história do boiadeiro

messias Aparecido Galdino.

Com as questões relacionadas aos “alternativos”, apresento o capítulo dois,

problematizando essa idéia de “alternativo” e afirmando as expressões singulares de modos de

ver o mundo e de transformá-lo. Essa é uma fase mais propositiva da Rádice. É o momento

de encontrar caminhos para a construção de novas formas de resistência e luta política. Como

expressão desses modos resistentes, destaquei: as idéias de Wilhelm Reich, devido à grande

importância que este autor teve nessa fase da Revista, permanecendo até o seu final; a

imprensa alternativa e seu papel de difusora do pensamento da esquerda brasileira naquele

período; o período da anistia e as denúncias de tortura que começavam a despontar nas

páginas da imprensa alternativa e, claro, na Rádice, um dos primeiros veículos que publicou

um número exclusivo sobre o tema. Relato também duas experiências que considero

singulares no campo da psicologia e das quais a Rádice participou: a mobilização contra as

propostas de currículo para os cursos de formação em psicologia e a constituição do Sindicato

dos Psicólogos no Rio de Janeiro.

Nesse capítulo serão analisados os números 5, 6, 7, 8, 9, e 10. É o momento em que

Rádice se afirma como “revista de psicologia”, marcado por sua ampliação de várias formas:

Page 25: Tese de doutorado sobre a Rádice

25

em cada publicação, um tema específico é tratado8; além de mudanças estruturais – muda o

papel utilizado e a arte gráfica; o grupo torna-se mais organizado, definindo funções para

todos; aumenta o número de páginas, o número de colaboradores; e a Revista passa a ser

vendida em bancas de jornais, ampliando a circulação e ganhando maior visibilidade.

Consideramos esse momento como o de afirmação política da Revista: estava mais engajada

nas críticas ao governo ditatorial no Brasil e na América Latina, assim como também

reproduzia severas críticas à formação universitária psi e à própria prática profissional.

No último capítulo, falo dos encontros que ocorreram ao longo da trajetória da revista –

os simpósios alternativas no espaço psi, os ciclos Reich, as batalhas psicanalíticas, o encontro

com o IBRAPSI (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições) – e de sua

metamorfose no jornal Luta & Prazer. Os números 11, 12, 13, 14 e 15 e alguns números do

jornal Luta & Prazer serão as fontes para este capítulo.

8 Número 5: Macumba; número 6: Tortura; número 7: Hospitais psiquiátricos brasileiros; número 8: Sexo;

número 9 e 10, as transformações no campo da assistência psiquiátrica na Itália, primeira matéria internacional

da Rádice, as transformações no campo da assistência psiquiátrica na Itália.

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CAPÍTULO 1

EMERGÊNCIA

Vocês que vão emergir das ondas em que agora nos

afogamos, pensem quando lembrarem de nossas

fraquezas dos tempos sem sol de que tiveram a sorte

de escapar.

(Bertold Brecht, em Rádice, nº 5)

Apresento neste capítulo alguns encontros que possibilitaram a emergência da Revista

Rádice – Revista de Psicologia. Tais encontros ocorreram nos gramados da universidade, nas

lutas políticas contrárias à ditadura militar, nas ações dos movimentos sociais que se

fortaleciam, todos implicados com a possibilidade de transformar a realidade. Parto da idéia

de que essa Revista é uma expressão do campo político-cultural dos anos 70, período marcado

pelas experiências irruptivas do ano de 1968.

A Rádice foi um instrumento de crítica aos modelos de psicologia, comprometidos com a

produção da normatização social, de controle das condutas dos sujeitos, com a testagem,

medidas e esquadrinhamento dos indivíduos, com a produção e afirmação de rótulos e

estereótipos, que se tornaram hegemônicos naquele momento. Os questionamentos a tais

modelos promoveram uma problematização da própria psicologia, aproximando o “universo

psi” das críticas que aconteciam em outros campos do conhecimento, como a filosofia, a

história e também com a política, a cultura, a arte. Ao problematizar a ciência, a formação e a

prática “psi”, a revista se inseria no “campo das resistências”, das lutas contra o pensamento

dominante, enfrentando a ordem instituída.

Page 27: Tese de doutorado sobre a Rádice

27

Sem pedir autorização e colocando em análise aquilo que se colocava como “verdadeiro”,

“científico” ou como “a solução para os males sociais”, a Rádice inventou para si um espaço

de luta diversificado, não-unitário, misturado com bandeiras, desejos, risos, utopias,

militância, crítica, arte, vontade de mudar tudo.

Não circulava nas páginas da Rádice o conhecimento erudito ou acadêmico em forma de

textos técnicos, como acontecia nas demais publicações das instituições de formação ou

associações dos diferentes campos da psicologia, que apresentavam – não debatiam – temas

como cognição, seleção e orientação profissional, psicometria, educação (e seus temas

clássicos: crianças consideradas “excepcionais”, os superdotados, os alunos-problema etc.),

métodos de controle do processo de aprendizagem, produção de diagnósticos, os testes

psicológicos etc. Nem tão pouco se interessava pela divulgação da psicologia nos termos que

outras publicações, também vendidas em bancas de jornal, promoviam, como destacado nesse

trecho de um editorial: “as páginas de Ego possibilitam a compreensão dos diversos

problemas que dificultam o perfeito relacionamento humano” (Revista Ego – Guia do

Comportamento Humano, 1975, p. 1).

Aberta para as possibilidades, a revista não tinha um projeto inicial que orientasse sua

produção. Nasceu do desejo de colocar alguma coisa em movimento, da luta contra o

presente. Como não havia um caminho pré-determinado, foi feita no dia-a-dia, na batalha,

letrinha por letrinha, efeito das experiências – e inexperiências – daqueles que colaboraram

com idéias e trabalho.

Começo essa narrativa conectando alguns fios do emaranhado da história para dar conta

do objetivo deste primeiro capítulo que é mapear as forças constitutivas do acontecimento-

Rádice. Neste capítulo, destaco as transformações que ocorreram no ano de 1968 em alguns

países e no Brasil; apresento, também, as principais características do período de

autoritarismo que o país viveu. Os movimentos de enfrentamento e de resistência à ditadura

estão presentes ao longo da tese, pois estão relacionados com a trajetória da Revista. Neste

primeiro momento, detenho-me sobre as transformações nas universidades brasileiras

impostas pela reforma universitária de 1968 e sobre as primeiras denúncias de violência e

maus tratos aos que encontravam-se internados nos hospitais psiquiátricos, que partiam dos

profissionais de saúde mental e que fizeram eclodir a luta antimanicomial no Brasil. Esses

movimentos imprimiram suas marcas na Revista: o enfrentamento e a denúncia.

Page 28: Tese de doutorado sobre a Rádice

28

1.1. Do campo de batalhas

O ano de 1968 foi emblemático e ficou assinalado como um momento especial, de

modificações radicais na história do século XX. O historiador Reis Filho (1988), ao analisar

os acontecimentos daquele ano no Brasil, apresenta, ao final do livro 1968, a paixão de uma

utopia, outra forma de interpretação que foge aos padrões dos textos acadêmicos e científicos

Houve uma grande conjunção de Plutão com Urano no signo de

Virgem. Até 1968, os dois planetas transitavam neste signo, mas em

graus distantes, e foram se aproximando, até que em janeiro de 1968

eles estavam a uma distância de seis graus. Formaram então uma

conjunção, que é um aspecto planetário que se forma quando dois ou

mais planetas estão muito próximos. É um aspecto de soma de

energias, como se fosse a força de uma ignição. [...] Houve então a

combinação de duas forças simbólicas revolucionárias. Plutão com a

vontade de transformar, romper, depurar, limpar o sistema vigente, de

maneira radical, profunda, explosiva, e Urano, com seu movimento

inovador, libertador, imediatista, revolucionário. (MENEZES apud

REIS Filho, 1988, p. 196)

As interpretações astrológicas para os acontecimentos que ocorreram em 1968 baseavam-

se na observação da posição dos planetas e suas conjunções; já a história olha para os

acontecimentos como produzidos pelos homens. Na história, não há transcendência, há forças

múltiplas e intensas, que produzem acontecimentos em diferentes direções e sentidos,

constituindo realidades distintas. Como não podemos prever essas direções, não há como

predizer o futuro. O futuro está no desvio, na mudança de sentido, na emergência das coisas.

Como já assinalado, o ponto de partida deste trabalho são as revoluções e transformações

do ano de 1968. Transformações que ocorreram em países pobres e ricos, dentro dos sistemas

ditos democráticos e das ditaduras, disparadas por questionamentos de toda ordem. Não

houve em 1968 uma comunhão de valores e opiniões, pelo contrário, houve questionamentos

dirigidos aos problemas específicos de cada coletividade. O surpreendente foi a dimensão

mundial desses questionamentos, presentes nas ações dos grupos mais oprimidos e

desqualificados socialmente, com participação significativa dos mais jovens.

Surgiu uma nova visão, uma nova abordagem dos problemas

militantes [...]. Bruscamente estudantes, jovens trabalhadores

„esqueceram‟ o respeito ao saber, o poder dos professores, dos

contramestres, dos responsáveis etc. Eles romperam com uma certa

forma de submissão aos valores do passado e abriram uma nova via.

(GUATTARI, 1987, p. 24)

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29

Para os jovens de então, era urgente modificar a realidade através da ação violenta,

imediata, tomar os controles nas mãos, realizar a política como haviam aprendido nos textos

marxistas. De acordo com Araújo (2000), criticavam os chamados “teóricos revisionistas” do

marxismo, acadêmicos e intelectuais de esquerda vistos como “contemplativos” demais do

cenário social. Havia uma paixão pela ação, um sentido de urgência lançava fogo sobre tudo

que era relacionado à tradição e ao conservadorismo. Era preciso agir, misturar-se, agitar.

Vários grupos de jovens espalharam-se pela Europa, E.U.A., Japão e América Latina nos

anos 609. Os estudantes norte-americanos questionavam a hierarquia universitária e todo o

sistema social e econômico, recusando-se a ingressar nas empresas a que, naturalmente, seus

estudos especializados se destinavam. As reivindicações desses estudantes estavam ainda

vinculadas a duas questões que eram obscuras para a sociedade naquele momento: os negros e

o Vietnã. A hostilidade à política tradicional fez com que esses jovens encontrassem nas

experiências de Cuba e da China sua inspiração de luta.

O movimento hippie, o rock mais pesado e distorcido – a guitarra de Jimi Hendrix e a voz

rouca de Janis Joplin, por exemplo – que aquele outro da década de 1950, agora visto como

“bem comportado”, são expressões desse momento que questionavam o modo de vida norte-

americano, o american way of life, um estilo de vida fundado na tecnocracia e no consumo. A

busca de novas experiências na vida coletiva, no orientalismo e no uso de drogas alucinógenas

misturavam-se com um espírito de contestação.

No Leste Europeu, o totalitarismo burocrático começava a gerar forças contrárias. Os

jovens dirigiam críticas ao modelo político implantado na antiga Alemanha Oriental, na antiga

União Soviética, na Polônia, na Tchecoslováquia – com sua primavera – e em outros países da

“cortina de ferro”. Unidos aos operários, afirmavam que a burocratização do Estado era

nociva à revolução.

Os jovens ingleses encontraram sua primeira expressão no movimento antinuclear,

tornando pública a descoberta de abrigos nucleares ultra-secretos reservados aos membros do

governo. O arcaísmo da vida cotidiana inglesa, com suas tradições arraigadas, também foi

alvo das críticas desses jovens.

No Japão, ocorreu a união entre os estudantes e os operários, o que foi uma realização

importante, com a criação da Zengakuren (Organização dos Estudantes Revolucionários) e

sua união com a Liga dos Jovens Trabalhadores Marxistas sob orientação comum da Liga 9 As informações sobre os grupos de jovens foram retiradas do livro Situacionista: teoria e prática da revolução

– Internacional Situacionista. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna.

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30

Comunista Revolucionária. Os alvos principais eram o capitalismo do ocidente e a burocracia

dos países ditos socialistas.

Os estudantes franceses reivindicavam a demolição completa da sociedade capitalista. O

socialismo real era possível, era preciso superar o capitalismo para se chegar ao socialismo,

atingindo, assim, o objetivo de materialização de uma sociedade sem classes, sem exploração

– a sociedade comunista (SADER, 1995, p. 27). Para isso, era necessária uma ação violenta e

radical e não apenas a substituição no poder da burguesia pela classe operária. Segundo as

leituras marxistas vigentes, isso implicava a destruição dos aparelhos de Estado, de suas

formas de funcionamento, a destituição de seus agentes. O “Projeto Revolucionário”

implicava a dominação consciente da história pelos homens que a constroem.

Como assinala Guattari (1987), os acontecimentos de Maio de 68, na França, provocaram

pequenas fraturas nos modelos militantes tradicionais e seus efeitos se estenderam e se

fizeram sentir de diferentes formas, com conseqüências profundas infiltrando-se em toda a

sociedade. Após a onda transformadora, são visíveis dois movimentos em sentidos diferentes:

a captura de algumas dessas expressões revolucionárias pelo capitalismo, reorganizando-as

sob as mesmas bases que contestavam e, outro, o surgimento de novas formas de luta política,

que se distanciavam da tríade partido-representação-vanguarda, voltando-se para a

modificação do cotidiano, segundo seu interesse e vontade, expressas nos movimentos de

mulheres, dos negros, dos trabalhadores, dos homossexuais, das pessoas em confinamento –

nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, etc. Segundo Foucault (1999, p. 72), uma ação

revolucionária que por seu caráter parcial está decidida a colocar em questão a totalidade do

poder e de sua hierarquia.

A constituição desse novo campo político ocorreu a partir das críticas dirigidas aos

partidos comunistas no mundo inteiro, acusados de imobilismo e de optarem por estratégias

de ação consideradas conservadoras. De acordo com Sader (1995), no Brasil, surgiram

grupos dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, na luta contra a ditadura

militar, promoveram ações armadas nas cidades e no campo, no final da década de 1960.

Esses grupos foram eliminados pelos órgãos de repressão, seus militantes ou se exilaram ou

foram presos e torturados, muitos mortos e desaparecidos. Na segunda metade da década de

1970, surgiram novos movimentos comprometidos com as pequenas revoluções do cotidiano

e o debate sobre temas que, segundo Araújo (2000), eram considerados “tabus” ou silenciados

porque eram “imorais”, como sexualidade, aborto, corpo, drogas, religião, pílula, temas

Page 31: Tese de doutorado sobre a Rádice

31

sintetizados na frase “é proibido proibir”, a livre expressão sobre o mundo e o modo como nos

relacionamos com ele.

Os movimentos contestatórios da década de 1960 não concretizaram, necessariamente, o

projeto revolucionário marxista, mas, inspirados nele, promoveram o rompimento com tudo

que estava há muito institucionalizado, até mesmo as formas de reivindicação e de luta

política. Por outro lado, As experiências de contestação vividas pelos povos dos países

periféricos e mais pobres do globo foram marcadas por reações violentas de seus governantes.

No Brasil, o “maio” durou muito tempo e foi cinza, período marcado pela ditadura e a

violência de Estado.

O golpe militar no Brasil foi tramado desde o momento da renúncia de Jânio Quadros, em

1961 (Sodré, 1979). Com a cadeira presidencial “vaga”, pois o vice-presidente João Goulart

fazia uma viagem oficial à China, criou-se um clima de conspiração entre os ministros

militares que negavam os direitos do vice, planejando sua prisão. Manifestações de

resistência surgiram, tendo na figura do Marechal Teixeira Lott uma de suas expressões,

seguida do então governador do estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que

surpreendeu os militares com uma resistência não só expressa em palavras, mas em ações,

mobilizando o povo e um agrupamento militar. O autor assinala que a atitude de Brizola

desestabilizou o grupo golpista, que não esperava uma atitude tão radical de um governador.

Acredito que só a contestação de Brizola não teria desestabilizado o golpe, se não houvesse

uma frente que defendesse e garantisse a posse de João Goulart, composta, além dos nomes e

grupos citados acima, dos movimentos dos sargentos, dos estudantes e dos militantes do PCB.

Com o fiasco do “golpe branco”, os militares e seus apoios na burguesia recuaram, mas

impuseram uma alteração do regime político, inaugurando um período parlamentarista. Essa

manobra visava controlar os rumos da política nacional-reformista de João Goulart. Porém, o

parlamentarismo durou um curto tempo, tendo o seu fim decretado com o posicionamento

popular a favor do presidencialismo no plebiscito realizado em 1963.

João Goulart tornou-se presidente contrariando as expectativas de empresários associados

às multinacionais, bem como dos militares que, de acordo com as análises de Dreifuss (1981),

iniciaram uma articulação civil-militar a fim de conter as aspirações reformistas do novo

presidente. Stepan (1975) salienta que no período de 1961 a 1963 desenvolveu-se no país

uma crescente sensação de crise e insegurança institucional, marcada por um decréscimo do

crescimento econômico e pela incapacidade do governo em converter as promessas em

políticas concretas. Somam-se a isso as críticas que o presidente passou a receber advindas de

Page 32: Tese de doutorado sobre a Rádice

32

sua base de apoio – militantes do PCB, trabalhadores, industriais e a classe média,

intensificando o estado de crise.

A articulação civil-militar citada por Dreifuss (1981) percebeu, nesse estado de

fragilidade do governo, o momento ideal para agir. Através de uma estratégia política de

desestabilização e desmoralização do governo, as Forças Armadas interviram tomando de

assalto a direção do país, para “salvar” o país da “subversão”, da “corrupção”, do “perigo

comunista” e do populismo. O golpe militar recebeu apoio da população, especialmente, da

classe média urbana, que demonstrava seu contentamento participando das “Marchas com

Deus e pela Família”.

Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e

alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível pára

perto do „Six‟ e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também

nacional e declaram todos que a Pátria está salva. Minha filha, ao meu

lado, exige uma explicação para aquilo tudo.

É carnaval, papai?

Não.

É campeonato do mundo?

Também não.

Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego

e sinto na boca um gosto azedo de covardia. (CONY, 2004, p. 12)

Segundo Fico (1997), os militares lançaram campanhas que motivavam a sociedade a

participar da grande empreitada de colocar o país em seu “devido lugar”, entre as grandes

potências mundiais, visando a modernização e o aumento do prestígio internacional do Brasil.

Os militares governaram o país através de “atos institucionais”, instrumentos utilizados

para legitimar suas ações truculentas e violentas. Fecharam o Congresso Nacional,

extinguiram os partidos políticos10

, além de realizarem cassações de mandato, exílio,

aposentadoria compulsória, banimento, prisões e assassinatos dos que expressassem críticas

às políticas restritivas que impunham. A proposta de “reconstrução econômica, financeira,

política e moral do Brasil”11

era fundamentada nos projetos liberais (abertura para o capital

estrangeiro, venda de divisas internas, traduzido no lema “crescer para multiplicar”) que

passaram a nortear a economia do país e foram garantidos através de ações autoritárias.

10 Foram criados dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático

Brasileiro (MDB). O primeiro representava os interesses dos militares, dos empresários e latifundiários e o

segundo era o partido oficial de oposição. 11 Ato Institucional nº1. Fonte: www.acervoditaduras.rs.gov.br/legislação_2.htm, acessado em 29/05/2002.

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33

Em 31 de março de 1964 foi desencadeado o golpe e em 9 de abril o Comando em Chefe

das três Armas formado pelo General do Exército Arthur da Costa e Silva, pelo Tenente-

Brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e pelo Vice-Almirante Augusto Hamann

Rademaker Grunewald, editou o Ato Institucional nº 1, o primeiro de uma série de outros que

se seguiram. O general Castello Branco foi o primeiro general a ocupar o poder, de 1964 até

1967, seguido de Arthur da Costa e Silva (1967 a 1969), Emílio Garrastazu Médici (1969 a

1974), Ernesto Geisel (1974 a 1979) e João Batista Figueiredo (1979 a 1985).

A principal marca de todo o período autoritário foi a tensão constante entre grupos no

meio militar que disputavam o comando do país: os da “linha dura” e os da “Sorbonne”. Aos

primeiros eram relacionadas as ações de radicalização da política de repressão; aos do

segundo grupo, a elaboração das estratégias político-administrativas, considerados os

“intelectuais” do regime de exceção.

As ações truculentas e arbitrárias contra seus opositores também marcaram todo o

período ditatorial. De Castello à Figueiredo, da “limpeza” moral contra os “corruptos” e

“comunistas” às ações terroristas dos grupos de direita no começo da década de 1980. No

governo de Costa e Silva e de Médici a “linha dura” tomou as rédeas do poder político. Estes

são considerados os momento mais duros, arbitrários e prepotentes de todo o ciclo militar,

regido pelas palavras-chave: autoritarismo, repressão, guerra e radicalização.

O período de 1964 a 1968 foi marcado pelas manifestações populares contrárias ao golpe.

Mesmo sob controle e violência da polícia, foram organizadas passeatas em vários pontos do

país. O descontentamento também se expressava no campo das artes. As músicas de Geraldo

Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo, Carlos Lira levaram multidões aos

festivais de música popular. No teatro, em peças como “Opinião” interpretada por Nara Leão

(que depois foi substituída por Maria Bethânia), Zé Kéti e João do Vale; no Teatro de Arena,

Augusto Boal encenava obras sobre Zumbi dos Palmares e a conjuração de Tiradentes; no

Teatro Oficina de José Celso Martinez Correia, “O Rei da Vela” (Oswald de Andrade) e “Os

pequenos burgueses” (Máximo Górki); no TUCA (Teatro da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo), “Morte e vida Severina” (João Cabral de Mello Neto). No cinema, Glauber

Rocha, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos produziam os filmes “Terra em transe”, “Os

fuzis” e “Vidas secas”, respectivamente. Nas artes plásticas, Lygia Clark, Hélio Oiticia e seus

Parangolés, revolucionavam a linguagem artística, interpelando também os modos de se ver e

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fazer arte. Implodir, inquietar, desconstruir a maneira de pensar, produzir e contemplar12

a

arte, tornou-se uma atividade política.

A partir de 1967, intensificaram-se as ações dos grupos de esquerda que vislumbravam a

possibilidade de uma insurreição popular. Os movimentos ligados à luta armada apontavam

que a estratégia política de alianças do PCB havia falhado e, influenciados pela experiência

cubana e as teses de Régis Debray13

, iniciaram ações voltadas para o financiamento e a

organização da revolução. Outros grupos dissidentes do PCB ganharam destaque como a

Ação Libertadora Nacional, liderada por Carlos Marighela14

; o Partido Comunista Brasileiro

Revolucionário; o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8); a Vanguarda Popular

Revolucionária (VPR), que contava com a liderança de Carlos Lamarca15

. Marighela e

12 Aliás, a palavra “contemplar” não cabe nesse movimento, pois a arte deixa de ser contemplativa para ser um

instrumento de afetação: deve-se tocar, mexer, perceber a arte no corpo, nos poros, misturar-se com ela, exprimentá-la. A arte não é mais feita para o olho, mas para o corpo inteiro, introduzindo novas percepções e

sentidos. 13 Jules Régis Debray (1940 - ), seguidor de Louis Althusser, teve grande influência sobre a juventude dos anos

60, do último século, a partir da publicação do livro “A Revolução na Revolução”, onde relatava a trajetória de

Fidel Castro e Che Guevara e o êxito da Revolução Cubana. Desenvolveu a teoria do “foco guerrilheiro”, ou

“foquismo”, que, de acordo com Ridenti (2002), articulava três teses: “opção pela luta armada; opção pela guerra

de guerrilhas como método para desenvolvê-la; e opção pela montagem imediata de um foco guerrilheiro no

campo como forma de iniciar a guerra de guerrilhas” (p. 275). Acompanhou Che na guerrilha da Bolívia, quando

este foi assassinado, em 8 de outubro de 1969, ficando preso neste país no período de 1967 a 1971. Após uma

rápida passagem pelo Chile, regressou à Paris em 1973. Segundo Loïc Wacquant, em seu livro Prisões da

Miséria (1999), na década de 1990 Debray participou do governo Francês defendendo a implementação da

política de “tolerância zero” naquele país. (Fontes: SADER, E. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995 e RIDENTI, M. Capítulo 6: Ação Popular: cristianismo e marxismo. Em: RIDENTI,

M. e REIS FILHO, D. A. (orgs.) História do marxismo no Brasil: volume V – partidos e organizações dos anos

20 aos 60. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2002). 14 Carlos Marighella (1911-1969), nascido em Salvador, BA, foi membro do Partido Comunista Brasileiro

(PCB), fundador do grupo revolucionário Ação Libertadora Nacional (ALN) e um dos mais combativos

militantes implicados no combate ao autoritarismo no Brasil. Marighella aderiu ao PCB em 1929, ainda

estudante de Engenharia da Escola Politécnica da Bahia. No combate à ditadura de Getúlio Vargas, foi preso

inúmeras vezes, sendo anistiado em 1945, momento do processo de democratização do país marcado pela

deposição de Vargas e pela saída do PCB da clandestinidade. O apoio popular à Marighela foi expresso na

eleição à Assembléia Constituinte, em 1946, onde representou o estado da Bahia como deputado federal. Dois

anos depois, cassado pela repressão do governo Dutra, voltou, junto com o Partido, às atividades clandestinas, condição que manteria até sua morte. Depois de anos criticando a política de alianças com a burguesia e o

imobilismo do PCB diante do golpe de 1964, Marighela requereu seu desligamento do Partido, em dezembro de

1966, explicitando sua posição de lutar junto às massas, em vez de ficar à mercê do jogo político. Em dezembro

de 1967 fundou ALN, afirmando a luta armada como caminho para a derrubada da ditadura e a instalação de um

Governo Popular Revolucionário. Marighella foi assassinado por policiais comandados pelo delegado Sérgio

Paranhos Fleury, em uma armadilha em São Paulo, em 4 de novembro de 1969. (Fontes: SADER, E. O anjo

torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995 e Escritos de Carlos Mariguella. São Paulo:

Editora Livramento, 1979). 15 Carlos Lamarca (1937-1971), um dos fundadores do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que,

junto com a ALN, viria a ser uma das principais organizações da luta armada contra a ditadura militar, que se

instaurou no Brasil a partir de 1964. O Capitão Lamarca, como era conhecido, fez parte de um movimento de

militares que optou pelo enfrentamento da repressão. Em 1971 desligou-se da VPR e ingressou no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e, com a finalidade de estabelecer uma base desta organização no interior

do país, foi para o município de Brotas de Macaúbas,no sertão da Bahia, onde foi morto pela repressão. (Fontes:

SADER, E. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995 e

WWW.torturanuncamais-rj.org.br acessado em 23 de junho de 2008, às 13:45).

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35

Lamarca foram assassinados pelos militares que, como estratégia para conter as ações, se

fixavam na eliminação dos líderes desses grupos.

O movimento estudantil foi o responsável pelas primeiras manifestações contrárias à

ditadura militar que se espalharam pelas ruas do país. Durante todo o ano de 1968, as ações

de enfrentamento à ditadura tornaram-se mais constantes e visíveis. Em 28 de março, o

estudante Edson Luis de Lima Souto foi assassinado pela polícia militar no restaurante

universitário Calabouço, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Rio de

Janeiro. Esse fato intensificou as manifestações populares através de passeatas e greves,

culminando na maior delas, a Passeata dos Cem Mil, também no Rio, em 26 de junho. Os

militares aumentavam a truculência invadindo universidades, prendendo, seqüestrando e

assassinando todos aqueles considerados “inimigos” da ordem pública. Em outubro, um

último ato, a realização do XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em um

pequeno sítio em Ibiúna, interior de São Paulo, a polícia invadiu o local prendendo os 920

estudantes que ali estavam, entre eles, os principais líderes estudantis da época: Vladimir

Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos e Jean-Marc Charles Frederic von der Weid

(POERNER, 2004, p. 273).

O acirramento do autoritarismo veio em 13 de dezembro de 1968 com o Ato Institucional

Nº 5, cuja justificativa era a manutenção da “ordem democrática” objetivando o impedimento

de ações de “grupos anti-revolucinários, oriundos dos setores políticos e culturais” que

trabalhavam contra a “revolução”, dando pleno poder ao Presidente da República de decretar

o recesso parlamentar e cuja. Também foram suspensas as garantias constitucionais ou legais

de vitalicidade e estabilidade, bem como a garantia de habeas corpus, nos casos considerados

como crime político, “contra a segurança nacional, a ordem econômica e social”.16

Segundo Hollanda (2004), na virada dos anos 60 para os 70, instalou-se definitivamente a

repressão, sendo o AI-5 o que ficou conhecido como “golpe dentro do golpe”. Os militares

asseguravam para os demais países a imagem do Brasil como país calmo, organizado, onde o

capital estrangeiro poderia investir tranqüilamente. Viveu-se um clima de ufanismo, com

construção de grandes monumentos, de estradas (como a Transamazônica), de hidrelétricas,

pontes (como a Ponte Rio-Niterói), etc. A classe média, motivada pelo “milagre econômico”

brasileiro, adquiriu alto poder de consumo de bens como automóveis, apartamentos,

televisões coloridas. Porém, no campo da cultura, a censura tornou-se impiedosa,

16 As palavras e frases entre aspas fazem parte do texto Ato Institucional N º 5. Fonte:

www.acervoditaduras.rs.gov/legislação_2.htm, acessado em 29/05/2002.

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dificultando e até mesmo impedindo a realização de peças de teatro, de filmes e a circulação

de publicações impressas.

O começo da década de 1970 foi o mais duro no que diz respeito às ações de repressão da

ditadura em relação aos movimentos de resistência. Os grupos de esquerda tornaram-se alvo

das ações truculentas do Estado que perseguiu, capturou e torturou militantes políticos,

culminando com o massacre de um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil

(PCdoB) na região do Araguaia, no norte do país, no ano de 1972.

Na segunda metade da década, a ditadura militar atravessou um período de mudanças:

houve a posse do general Geisel, em 1974, as eleições parlamentares que deram vitória

esmagadora ao MDB, na disputa pelo Senado. Paralelamente, vivia-se no plano interancional,

a crise mundial do petróleo. Sader (1995) assinala dois fatores que mudaram o sistema de

forças da ditadura: um, a vitória expressiva do MDB nas eleições parlamentares – a derrota

dos grupos de esquerda tornou o partido um eixo de combate à ditadura; dois, a crise do

capitalismo mundial que desestabilizou as bases da economia brasileira, contribuindo para o

fim de um período de ascensão econômica no Brasil.

O fenômeno do “milagre econômico” estava em enfraquecimento. Singer (1977) aponta

que desde 1973 havia sinais de esgotamentos da economia refletidos em um movimento de

diminuição da capacidade de produção, ao mesmo tempo que aumentavam o subemprego e o

número de vagas ociosas na indústria. Nesse ano, houve um surto inflacionário e a

diminuição no ritmo do processo de industrialização do país. A entrada de capital estrangeiro

acabou gerando um deficit na balança comercial, aumentando a dívida externa brasileira.

A passagem de uma fase de intenso crescimento para uma fase de recessão foi uma

conseqüência inesperada pelos economistas cuja matriz econômica orientava o pensamento e

ação do grupo militar. As condições para a expansão rápida da economia deixaram de existir.

O país precisava adotar com urgência políticas para conter os efeitos negativos do fim do

“milagre”. De acordo com Fico (1997), isso provocou, inicialmente, um aumento do delírio

de construção do país como grande potência até o ano 2000. As expressões de confiança e

otimismo nos planos de desenvolvimento do governo eram veiculadas através dos principais

meios de comunicação. Ainda segundo o autor, foi nesse período do governo Geisel e do fim

do “milagre” que mais se reiterou o pedido de sacrifícios da população mais pobre no

combate à inflação e na criação de um clima de ordem, dedicação ao trabalho e “confiança no

futuro”.

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O outro golpe que contribuiu com a desestabilização do poder dos militares foi o

resultado das urnas. Com o fortalecimento do MDB nas eleições, a ARENA, objetivando

desacreditar o MDB, vinculou nomes do partido oficial de oposição ao comunismo, utilizando

instrumentos como intervenção e cassação do mandato dos parlamentares do MDB e

instauração de CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito). Havia uma tensão dentro do MDB

entre dois grupos que o compunham, denominados “moderados” e “autênticos”. Os primeiros

tentavam uma estratégia mais cordata com o regime, visando não comprometer o processo de

distensão política acenado pelo general Geisel e, assim, procuravam conter os ditos

autênticos, considerados mais “radicais”.

De acordo com Kucinski (1982), assim começou a “abertura”, um período de transição

causado pelo choque desses dois abalos. Outro tipo de pressão também contribuiu nesse

momento: foram as denúncias sobre as violações dos direitos humanos e tortura praticados

pelos militares dentro das prisões brasileiras que começaram a chegar no exterior,

principalmente na Europa. A imagem do Brasil como um país pacífico, onde reinava a alegria

do carnaval estava comprometida. Os movimentos internacionais e nacionais de defesa dos

direitos humanos passaram a pressionar o regime autoritário e exigiam, além da liberdade dos

que estavam presos, esclarecimentos sobre o paradeiro de inúmeros militantes que haviam

“desaparecido”.

O estado de crise agravava-se. Kucinski (1982) ressalta os efeitos sociais do fim do

“milagre” que eclodiram nas cidades e no campo: houve um êxodo rural jamais visto – os

trabalhadores rurais foram expulsos do campo pelas novas culturas mecanizadas – que teve

como conseqüência o inchamento das cidades, provocando um colapso nos serviços públicos,

nos transportes, e o deterioramento das condições de vida (condições sanitárias, na qualidade

do ar e da água, no aparecimento de grandes epidemias). Tudo isto afetava diretamente as

populações mais pobres que ocupavam a periferia e as favelas dos grandes centros urbanos e

eram, em sua maioria, resultantes do êxodo rural.

O terror institucional continuava nas unidades do DOI-CODI (Destacamento de

Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). Em 1975 o jornalista e

professor Vladimir Herzog foi preso e a notícia de sua morte se espalhou através da edição do

número 16 do jornal alternativo EX17

que, ao chegar às bancas em 6 de novembro, sofreu dois

17 Com a manchete “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, circulou a última edição do EX que trazia

como tema principal a morte de Herzog sob o título “A morte de Vlado”, reunindo depoimentos de amigos do

jornalista e familiares, documentos oficiais, laudos e notícias veiculadas em jornais e revistas. Em 1977, essa

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duros golpes: a apreensão pela polícia federal da Edição Extra, “O Melhor do EX”, contendo

trabalhos publicados nos 12 primeiros números e a submissão do jornal à censura prévia

(ALMEIDA FILHO, 1977, p. 66). O assassinato de Herzog dentro das dependências do DOI-

CODI18

transformou-se em gatilho para uma grande mobilização de protesto realizada na

Catedral da Sé, em São Paulo, reunindo milhares de pessoas que passaram por cima de suas

diferenças partidárias, de classe, religião etc., e se reuniram contra a violência, contra a

ditadura militar e pela defesa dos direitos humanos. (COIMBRA, 1995, p. 48).

No dia 20 de janeiro de 1976, outro assassinato dentro das dependências do DOI-CODI

do II Exército mobilizava novamente a opinião pública,

Às 13 horas de segunda-feira o comando do II Exército divulgou nota

oficial em São Paulo informando que fora encontrado morto em um

dos xadrezes do DOI/CODI o metalúrgico Manuel Fiel Filho. Por

volta de 17 horas do mesmo dia, em Brasília, o Palácio do Planalto

anunciou a substituição do general Ednardo d‟Avila Melo pelo general

Dilermano Gomes Monteiro no comando do II Exército. (Jornal

Opinião, 1976, p. 3)19.

Esses episódios e as denúncias de violações dos direitos humanos pelo Exército abalaram

as estruturas da ditadura. Alguns generais, indignados com a demissão do general Ednardo

d‟Avila Mello, exigiram do general-presidente as cabeças dos opositores. Um novo ciclo de

cassações se instaurou, seguido de ações que visavam neutralizar o avanço” da frente de

oposição que se organizava no MDB, como, por exemplo, a aplicação da Lei Falcão” –

denominação derivada do nome dde seu signatário o então Ministro da Justiça, Armando

Falcão – que determinava o fim do sistema de horário livre na televisão para os candidatos às

eleições municipais. Mesmo com essas medidas, o MDB saiu fortalecido frente ao eleitorado

(KUCINSKI, 1982).

Em 1977, Geisel fechou o Congresso Nacional e promulgou reformas com base nos atos

institucionais. Como estratégia para retomar as rédeas e aplacar a crise política, lançou, junto

com o general Golbery, um pacote de medidas que modificavam o regime político. De acordo

com Kucinski (1982), o “Pacote de Abril” tinha os seguintes objetivos: controle do processo

legislativo, com a redução do quorum mínimo para a aprovação de emendas à Constituição e

grande matéria publicada pelo jornal EX se transformou em um livro intitulado A sangue quente – a morte do

jornalista Vladimir Herzog, de Hamilton Almeida Filho, que era em 1975, editor do EX. 18 Cinco dias depois, a Justiça Militar de São Paulo instalou um Inquérito Policial Militar para esclarecer o caso.

A versão oficial, divulgada em 20 de novembro de 1975, apresentou a tese de que Vlado teria se suicidado com a

tira de pano do macacão de prisioneiro que vestia. (ALMEIDA FILHO, 1977, p. 91). 19 Matéria “Troca de comando em São Paulo”, seção O Brasil. Jornal Opinião, nº 168, de 23 de janeiro de 1976.

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39

a criação de um novo tipo de senador, denominado “biônico” pela oposição, pois seria

indicado pelo colégio eleitoral; ampliação de cinco para seis anos o mandato do presidente;

controle dos executivos estaduais, eleição indireta de governadores de estados; restrição das

campanhas eleitorais, estendendo a “Lei Falcão” para as eleições nacionais. Neste caso, a

oposição perdia o mais poderoso instrumento de comunicação implementado na campanha de

1974 – a televisão.

No Jornal Movimento (1976), na seção “Cena brasileira”, uma reportagem serve para

ilustrar o resultado desta diretriz do governo a partir da população. Em Macaíba, Rio Grande

do Norte, o vendedor Jonas Francisco, depois do seu expediente na “cigarreira” da Estação

Rodoviária, tomava conta do aparelho de TV instalado na estação. O povo se reunia em torno

do televisor púbico e assistia à novela, ao “repórter”, aos jogos de futebol e aos filmes de

Kung Fu. Outro morador da pequena cidade dava seu depoimento:

Venho pra cá quase toda noite, pois não? Só quando tou ressacado,

enfadado, aí eu num venho. Home! Pra falar a verdade, eu apreceio

seja o que for que aparece naquele quadrinho, né? Mas aqui o que sai

direto é novela mesmo, é o que se vê, às vezes um futebol. Agora, pra

falar verdade, eu num lembro bem de nada que andei vendo esses

tempos. É danado! Das vez que eu lembro assim um pedaço da

novela, mas num gravo nadinha. Eu agrado muito do repórter

também, mas também num guardo as fala dele, viste? Só na hora,

adepois passa, como que apaga. Mas acho, sim sinhô, que isso aí

desperta o camarada, né? (depoimento de Celestino Soares ao jornal

Movimento, nº 27, 05 de janeiro de 1976, “Cena Brasileira – tv de

rua”, por Jorge Baptista, p. 2)20.

A sucessão do general Geisel foi marcada por uma crise institucional que contava ainda,

além dos elementos já citados, com o ressurgimento das mobilizações populares – o

movimento estudantil que se reorganizava, o novo sindicalismo, os movimentos ligados à

Igreja Católica como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o movimento dos

trabalhadores rurais, as associações de bairro, os movimentos contra a carestia, o movimento

pela anistia “ampla, geral e irrestrita”.

O final da década de 1970 foi decisivo para as mudanças que ocorreram em todos os

planos da vida dos brasileiros. A população voltava às ruas reivindicando o fim da ditadura e

20 O prefeito da cidade atribuiu à televisão papel importante nas eleições de novembro de 1974, tendo em vista a institucionalização da propaganda eleitoral gratuita. Em seu município, ao contrário do que aconteceu no resto

do estado do Rio Grande do Norte, o seu partido – a Arena – ganhou. Diante do bom resultado, pretendia

instalar outros televisores nos demais distritos já eletrificados, ampliando esse “serviço”, pois, segundo ele, era

uma forma de “educar o povo”. (Movimento, 1976)

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anistia, também é o momento no qual retornam ao país alguns militantes exilados. Segundo

Coimbra (1995), as contas do “milagre” começaram a ser cobradas pelo sistema financeiro

internacional, o país entrou num longo período de recessão, encarecendo o custo de vida e

tendo como principal alvo as classes médias urbanas. Em 1979, tomou posse o último

general-presidente, João Batista Figueiredo, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações

(SNI).

A década de 1980 iniciou-se dando visibilidade às novas formas de luta que se

organizavam para cobrar as contas do “milagre” e também como forma de resistência política:

o fortalecimento dos movimentos sociais, como os sindicatos; a organização das associações

de bairro, na periferia e também, na classe média; os grupos chamados de “minoritários”, em

defesa de causas específicas, como os grupos pela defesa das mulheres, homossexuais e

negros; as questões sobre sexualidade; as preocupações ecológicas; o surgimento do

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

O fim do bipartidarismo e a fundação de novos partidos políticos21

fizeram com que a

população experimentasse um misto de “insatisfação”, “insegurança”, mas também de

“esperança” aventada pela possibilidade de abertura política. Foi vedada a organização dos

partidos comunistas, pois a lei proibia a criação de partidos com “vínculos com governos e

entidades estrangeiras” (Kucinski, 1982, p. 138), como também foram proibidos partidos de

base religiosa, “com sentimentos de raça ou classe” (Kucinski, 1982, p. 138). O governo

mantinha as rédeas do processo chamado de abertura, alargando ou apertando os limites da

abertura partidária, “usando interpretações mais ou menos restritivas da própria lei, aplicando

truques processuais, manipulando a justiça eleitoral” (idem).

Kucinski (1982) observa que durante a gestão Geisel a abertura foi tratada como uma

preocupação periférica que orientava certas decisões e servia de argumento e justificativa de

algumas ações, a sabor do general. Já no governo Figueiredo, a abertura se transformou no

norte político, meta principal do governo – mesmo que à força. Mas Figueiredo foi o

primeiro presidente a cancelar uma eleição. Nos períodos anteriores, as estratégias utilizadas

foram as cassações individuais e as prisões. Impossibilitado de cassar a vontade coletiva,

justificou o cancelamento das eleições de 1980 sob o pretexto de reorganização partidária e

necessidade de constituição de novos partidos. A oposição, por não considerar esse golpe

decisivo e embriagada com as novas “liberdades” formais, não reagiu a tal imposição.

21 O MDB transformou-se no PMDB, a ARENA no PDS e outros atores nasceram como o Partido dos

Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT).

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41

O ano de 1980 foi marcado por violentas investidas de grupos ligados aos militares. No

Rio de Janeiro, no primeiro mês do ano, uma bomba explodiu na Escola de Samba

Acadêmicos do Salgueiro, pouco antes de ser iniciado um ato de apoio ao PMDB. Em março,

explodiram duas bombas no jornal Hora do Povo e, em abril, outra bomba explodiu em uma

loja que vendia ingressos para o show de 1º de maio. Em todo o país, bombas explodiram

bancas de jornais que vendiam publicações da imprensa alternativa. Na capital mineira, no

mês de julho, uma bomba explodiu no auditório do Instituto de Educação de Belo Horizonte,

enquanto falava o ex-governador Leonel Brizola. Em agosto, a cidade do Rio de Janeiro é

mais uma vez alvo dos atentados a bomba, uma carta-bomba foi enviada à redação do jornal

Tribuna Operária e outra à sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Com esta

última explosão, morreu a secretária da OAB, Lyda Monteiro. Uma terceira carta-bomba

explodiu no prédio da Câmara Municipal. O mais noticiado de todos os atentados aconteceu

também no Rio de Janeiro, durante um show de música popular, na Barra da Tijuca. A

bomba explodiu dentro de um carro que manobrava no estacionamento do Rio Centro. O

sargento Guilherme Pereira do Rosário morreu e o capitão Wilson Luis Chaves Machado

ficou gravemente ferido. Ambos do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I

Exército (D‟ARAUJO, M. C. et al, 1995, pp. 313-314).

A OAB elaborou um relatório sobre os atentados e o encaminhou para uma Comissão

Parlamentar de Inquérito – a CPI do Terror – aberta para investigar os atos terroristas. No

relatório são citadas como autoras dos atentados as seguintes organizações – todas de direita:

Comando de Caça aos Comunistas (CCC); Grupo Anti-Comunista (GAC); Movimento

Anticomunista (MAC); Comando Delta, Falange Pátria Nova; Tradição, Família e

Propriedade (TFP); Movimento de Reorganização Nazista (MRN) e Vanguarda de Caça aos

Comunistas (VCC).

Em 1982, foi aprovado pelo Congresso o denominado “emendão”, conjunto de medidas

que alterava o Colégio Eleitoral responsável pela eleição do presidente da República e

instituía o voto distrital misto para 1986. Em novembro, foram realizadas eleições com o

comparecimento maciço do eleitorado. A oposição conquistou maioria na Câmara dos

Deputados, mas o PDS mantém o controle sobre o Senado, garantindo maioria governista no

Colégio Eleitoral, encarregado de escolher o sucessor de Figueiredo. No ano seguinte, uma

campanha por eleições diretas para presidente teve início e o deputado do PMDB, Dante de

Oliveira, apresentou uma emenda constitucional propondo eleições diretas para presidente da

república em 1985.

Page 42: Tese de doutorado sobre a Rádice

42

A campanha adquire amplitude nacional e recebe adesão de figuras importantes da

oposição como Lula, Leonel Brizola, Teotônio Vilela e Ulysses Guimarães. A “campanha

pelas diretas” desenvolveu-se através de comícios em diversas cidades em todo o país e foi

engrossada pela participação das associações de advogados, jornalistas, artistas, professores, e

boa parte da classe média e de trabalhadores brasileiros.

Em 10 de abril de 1984 realizou-se no Rio de Janeiro o “Comício das Diretas-Já”,

objetivando a aprovação da emenda Dante de Oliveira. A manifestação multiplicou-se e em

16 de abril foi realizada também em São Paulo, reunindo um milhão de pessoas – o dobro do

número de participantes no Rio de Janeiro. O governo proíbe que as emissoras de televisão e

rádio façam a cobertura ao vivo do momento de votação da emenda. Em várias partes do país

a população promoveu um “panelaço” para mostrar que não esqueceu a data. Como relata um

participante desta experiência em Brasília:

Em algumas superquadras, os habitantes dormiram um pouco mais

porque passaram parte da noite batendo caçarolas e conversando

excitados sobre o grande espetáculo de protesto que a cidade

produziu. À medida que me aproximo do Congresso, vejo que

algumas pessoas ficaram tão empolgadas que já acordaram buzinando

e fazendo barulho pela abolição da ditadura. A policia baixou o cerco

ao Congresso e ao invés do corredor polonês de ontem, encontro uma

juventude colorida, (...) curiosos para entrar na galeria e ver o que

estava acontecendo lá. Muitos não tinham idéia de como era por

dentro o Congresso de seu país. Diante do prédio, centenas de

universitários escreveram com seus corpos a frase diretas já, pesadelo

dos militares encarregados da repressão (...). Do lado de fora, as

pessoas cantam Caminhando, desfilam com bandeiras do Brasil; aqui

dentro correm noticias sinistras – bomba em Minas, crise na PM de

São Paulo. A democracia não é um piquenique mas as milhares de

pessoas que se agitam nas ruas estão muito mais com cara de quem

espera o nascimento de uma criança do que propriamente pensando no

enterro dos seus sonhos (GABEIRA, 1984, pp. 78-79)

A emenda foi derrotada no Congresso Nacional, reafirmando o projeto dos militares de

eleição indireta para presidente. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves e José Sarney

foram eleitos pelo Colégio Eleitoral, respectivamente como presidente e vice. Às vésperas da

posse, Tancredo Neves foi internado no Hospital de Base de Brasília, onde se submeteu a uma

operação de emergência. O vice-presidente José Sarney assumiu o cargo de presidente da

República. Após 38 dias de internação, em 21 de abril de 1985, morreu Tancredo Neves,

mitificado pela história oficial como o representante da democracia brasileira.

Page 43: Tese de doutorado sobre a Rádice

43

1.2. Há vida no campus

A ditadura militar interferiu em toda a vida social, política e cultural dos brasileiros. Essa

interferência também ocorreu nas universidades através de um processo de reforma em sua

estrutura, que implementou uma lógica voltada para a formação de técnicos para atuar no

mercado de trabalho, ampliou o acesso à universidade com o incentivo à criação e à

ampliação de vagas nas instituições privadas, instaurou o concurso vestibular entre outras

modificações. Houve inúmeras reações contrárias à reforma universitária, devido ao seu

caráter autoritário. Tais críticas partiram de estudantes, professores e funcionários, sendo que

muitos foram punidos por instrumentos criados para controlar a vida nos campi –

afastamentos, aposentadorias compulsórias, cancelamento de matrículas, instrumentos

associados ao terrorismo de Estado. Como o grupo inicial da Rádice era composto, em sua

maioria, por estudantes universitários, é importante contar um pouco sobre as transformações

e a resistência no Movimento Estudantil.

Segundo Cunha (1988), logo no início da década de 1970, vivia-se nas universidades os

efeitos do ano de 1968: o refluxo das lutas estudantis contra a ditadura militar, as prisões e

intervenções na vida acadêmica pelos órgãos de repressão e a implantação da Reforma

Universitária (Lei 5.540 de novembro de 1968). Eram anos de pós-reforma, pós-Lei Suplicy e

pós-Decreto 477 – instrumentos de repressão criados especialmente para controlar a vida nas

universidades. Os militares invadiram os campi, alunos, funcionários e professores foram

perseguidos ou desligados de suas funções. “Silêncio” e “marasmo” são as expressões

utilizadas por quem viveu esse período ao se referirem à vida nas universidades.

Ao se tornarem o modelo do que ficou conhecido como “bloco capitalista” a partir de

1945, os norte-americanos viam-se como os defensores da democracia, impondo seu modelo

econômico aos demais países da América Latina e também em outros continentes. Os

problemas que surgiam nos países mais pobres da América Latina eram tratados como

questão de “política interna” dos E.U.A.. Para consolidar o poder das classes dominantes,

suas aliadas, nesses países, eram empregadas todas as forças, como, por exemplo, o apoio à

militarização da política local (IANNI, 1968).

Cunha (1988) e Ianni (1968) observam que a influência norte-americana nos projetos

voltados para o que se considerava “desenvolvimento” e “progresso” no Brasil ocorria antes

do golpe militar, este só aprofundando e intensificando os acordos e convênios. Era o espírito

Page 44: Tese de doutorado sobre a Rádice

44

“modernizador” (desenvolvimento, progresso, industrialização, formação de profissionais-

técnicos competentes para implantar e administrar as novas tecnologias produzidas pelos

países ricos) que impulsionava a reformulação do ensino superior no Brasil dos anos 60. Esse

“espírito” motivou a transformação da universidade brasileira, afeita ao conservadorismo

colonial, na universidade-empresa necessária ao desenvolvimento do capitalismo moderno.

Por outro lado, Cunha (1988) nos adverte que as bases dessa transformação já estavam

presentes nos anos 40/50 no pensamento intelectual e nas universidades, idéias propagadas

por aqueles que, dez anos depois, seriam os críticos da reforma implementada pelos militares

– professores e estudantes.

A implantação de uma “nova universidade” fazia parte do plano desenvolvimentista da

ditadura militar, que apostava na ciência e na tecnologia como fatores importantes para o

crescimento econômico do país. Principalmente na fase do “milagre”, o governo investiu

massivamente em projetos nas áreas das telecomunicações, indústria bélica e aeronáutica,

energia nuclear, pesquisa espacial etc., campos de interesse das Forças Armadas.

Houve grande reação dentro dos muros das universidades brasileiras ao projeto

“modernizador”, devido ao caráter autoritário e privatizante de seu conteúdo e propósito. A

Reforma Universitária brasileira foi garantida à base de demissões de reitores e diretores,

cassação de professores, banimento de estudantes, aposentadorias compulsórias, tornando

ilegais as entidades de representação estudantil.

Fernandes (1979) aponta os principais efeitos dessa mudança: a esterilização das

atividades políticas e culturais nas instituições; a consolidação do caráter elitista do projeto

refletida nas ligações com as profissões liberais; a afirmação das expressões culturais que

apoiavam a “nova ordem”; a institucionalização da tutela externa; e o efeito mais dramático, a

produção da “universidade do silêncio” nos dez anos que se seguiram (1968-1978), com a

marginalização e afastamento dos que contestavam tal modelo.

Entre as medidas “saneadoras” estavam a repressão ao movimento estudantil; a

fragmentação do conhecimento em disciplinas; a organização das universidades segundo o

princípio taylorista; a implantação do regime de créditos; o fim das cátedras; a transformação

das faculdades em unidades menores, os departamentos. Além disto, houve medidas de

expansão das universidades, em dois sentidos: um, expansão/financiamento das universidades

Page 45: Tese de doutorado sobre a Rádice

45

privadas, que passaram a contar com uma porcentagem do Fundo Nacional de Educação

(FNE) e, outra, a implantação da extensão universitária e a idéia do campus avançado.22

Essas propostas de transformação das universidades brasileiras foram recebidas com

muitas críticas pelo meio acadêmico. Em 1965, os estudantes organizaram passeatas

reivindicando mais verbas para as universidades, mais vagas nos cursos de graduação, contra

os acordos MEC-USAID (United States Agency for International Development),

estabelecidos entre estas instituições para a elaboração do projeto de reforma, contra a política

educacional dos militares e os instrumentos de repressão utilizados para a contenção dos

protestos dentro dos campi.

Nos anos 60, a mobilização nas ruas, a organização de passeatas, a expressão crítica

através de músicas, peças de teatro, cinema, livros, artigos em jornais, ainda era possível.

Mas, à medida que a ditadura endurecia através dos métodos de controle e de repressão sobre

aqueles considerados opositores aos seus projetos, essas expressões tornavam-se mais difíceis.

O ano de 1968 foi marcado por vários acontecimentos: atentados realizados por grupos

paramilitares de direita nos grandes centros urbanos; pedidos de cassações de parlamentares;

intervenções em instituições de ensino superior – nos moldes das que foram realizadas no ano

do golpe. Entre 1964 e 1968 várias universidades sofreram intervenções dos militares, como

a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade Federal de Goiás (UFGO), a

antiga Universidade do Brasil (UB, hoje UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a

Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Brasília (UnB). Destaco, a seguir,

alguns relatos sobre tais invasões:

junto com a notícia do golpe, veio a notícia de que a Maria Antônia ia

ser ocupada pela polícia. Então nos organizamos para impedir a

ocupação. E nos distribuímos por todos os prédios, e pelas portas e

janelas. E ficamos na porta central, de braços dados, Florestan,

Antônio Cândido – a tropa de choque -, Mário Schemberg, Simão

Mathias, Maria Isaura, Fernando Henrique, Eder Sader, e eu com a

minha barriga. [...] É daqueles períodos em que as casas dos principais

professores foram invadidas. [...] Esse período é um período de

22

A extensão universitária surgiu para levar conhecimentos técnicos às áreas mais isoladas do país visando

promover o desenvolvimento destas regiões. Além disso, a idéia de integração nacional estava bastante presente nestes projetos. O RITA (Rural Industrial Technical Administration)/UFCE, fruto de um dos acordos

estabelecidos com a USAID, foi o projeto que inspirou os demais. Os mais conhecidos e emblemáticos destes

projetos de extensão são os CRUTACS (Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária)

desenvolvido pela UFRN em 1966 e o projeto RONDON, de 1967 (Cunha, 1988).

Page 46: Tese de doutorado sobre a Rádice

46

enorme silêncio, de muito temor, e da primeira partida, a primeira leva

dos exilados. (CHAUÍ, 2001, p. 79)23

O relato seguinte refere-se à invasão da UnB:

Foi no dia 29 de agosto de 1968 [...] um monte de estudantes se

movimentava por ali, numa grande agitação. Carros da polícia

fechavam a passagem. Não pudemos entrar, impedidos por policiais

com metralhadoras, que tinham cercado a universidade. [...] Um

pouco depois, os policiais entraram na universidade, e ouvi barulho de

tiros, bombas, tilintares. [...] Logo vieram caminhões do Exército,

soldados cercaram o gramado e as pessoas que estavam ali foram

levadas para as carrocerias dos veículos, debaixo da mira de armas.

[...] Fomos carregados para um quartel. [...] No final da tarde,

terminada a triagem, os estudantes foram soltos. [...] Já era um tempo

de medo, já sabíamos das torturas, dos desaparecimentos de colegas,

exílio e morte eram palavras constantes nas nossas conversas. Mas a

paixão pela liberdade, pela justiça social, pela luta em si, cegava

nossos olhos jovens aos perigos. (MIRADA, 2002, p. 11)24

No Rio de Janeiro, a polícia militar e os estudantes se enfrentavam...

Era uma quinta-feira, 28 de março, entardecia no Rio e os estudantes

preparavam nova manifestação pelas ruas do centro da cidade,

armavam faixas e bandeiras, desenhavam cartazes. Os choques da

polícia militar chegaram, como sempre, pretendendo fazer medo,

intimidar. Receberam vaias e assobios. Os policiais resolveram então

invadir o restaurante – e já o fizeram de armas na mão. Diante da

vaia, agora ensurdecedora, foram os policiais que se amedrontaram – e

começaram a atirar. Mataram Edson Luis de Lima Souto. (REIS

FILHO, 1988, p. 14)

De acordo com Cunha (1988), uma das primeiras ações voltadas para acabar com as

resistências dentro das universidades brasileiras foi a desorganização e o aniquilamento do

movimento estudantil. Dois instrumentos foram utilizados para tal fim: a Lei 4.464 de

novembro de 1964, que ficou conhecida como “Lei Suplicy” e o Decreto 477 de fevereiro de

1969.

A Lei Suplicy extinguiu as representações estudantis, a União Nacional e as estaduais dos

estudantes – UNE e UEEs – impondo uma nova entidade, pretensamente representativa, o

Diretório Nacional dos Estudantes (DNE). A representação estudantil imposta era obrigatória

em cada faculdade, sua diretoria eleita pelos alunos, com voto obrigatório e medidas punitivas

23 Entrevista com Marilena Chauí, As grandes entrevistas de Caros Amigos. Revista Caros Amigos, número 3,

abril de 2001. 24 Miranda, Ana. Barra 68. Revista Caros Amigos, ano VI, número 63, junho de 2002.

Page 47: Tese de doutorado sobre a Rádice

47

para aqueles que não votassem (como, por exemplo, ficar impedido de prestar exames). Em

cada universidade deveria existir um Diretório Estadual dos Estudantes (DEE), composto por

representantes dos diretórios acadêmicos. O DNE seria composto por representantes do DEE,

as reuniões só poderiam ocorrer em Brasília para debates de natureza exclusivamente técnica

(CUNHA, 1988).

Os estudantes organizaram um plebiscito em repúdio à “Lei Suplicy”, não reconhecendo

as entidades criadas pela ditadura como representativas. Duas formas de enfrentamento se

destacaram naquele momento: uma, acreditando que deveriam concorrer à direção dessas

entidades, “ocupando o espaço possível” (CUNHA, 1988, p. 63) para, por dentro, modificá-

las. Outra postura, mais radical, defendia os diretórios livres, independentes da política

oficial. Esta segunda forma foi a mais comum entre os estudantes, que continuaram a se

organizar em conselhos de representantes e a eleger representantes de turma, mesmo não

sendo reconhecidos formalmente.

Em 1967, a Lei Suplicy foi substituída pelo Decreto Aragão, Decreto-Lei 228 de

Raymundo Moniz de Aragão, então Ministro da Educação, que extinguiu os DEE‟s e o DNE e

instituiu a Conferência Nacional do Estudante Universitário (CNEU) que, de acordo com

Cunha (1988), nunca se realizou.

Fundamentado no AI-5, o Decreto 477, definia as infrações disciplinares praticadas por

professores, alunos e funcionários das universidades acusados de envolvimento com

atividades “subversivas”, prevendo punições como demissões, desligamento para os

estudantes e a proibição de se matricular em qualquer outra instituição no prazo de três anos.

A partir de 1972, os processos contra estudantes passaram a ser arbitrados pelo MEC, o que

não diminuiu a perseguição e fez com que os institutos e faculdades criassem seus próprios

instrumentos de coerção. O Decreto 477 vigorou por pouco tempo, mas permaneceu como

prática dentro das universidades. O acompanhamento e avaliação permanentes dos alunos

considerados “desviantes” eram feitos por conselhos e comissões formados por professores

nomeados especialmente para tal tarefa que, em alguns casos, utilizavam-se de instrumentos

de medidas psicológicas25

.

25 Em 1977, a Faculdade de Medicina da UFRJ compôs uma comissão para estudar medidas a serem aplicadas

aos alunos matriculados no primeiro e no quinto anos do curso. Tais medidas tinham como objetivo identificar

sinais de “distúrbios mentais”, com o objetivo de “recuperar e evitar a exclusão desses alunos”. O deferimento do pedido de matrícula estava condicionado a tal avaliação e os alunos diagnosticados como “doentes mentais”,

através de instrumentos de medidas psicológicas, poderiam ser afastados do curso (Rádice, ano 1, nº 4, 1977).

Em 1980, uma aluna do curso de psicologia da então Faculdade Celso Lisboa, que havia posado nua para uma

revista, respondeu a um inquérito aberto pela direção da instituição, sendo punida com trinta dias de suspensão.

Page 48: Tese de doutorado sobre a Rádice

48

O acirramento da repressão e o aumento das restrições com a aplicação dos instrumentos

de punição, não conseguiu pôr um fim ao movimento estudantil. Já em 1964, a União

Estadual dos Estudantes (UEE), havia conseguido compor uma junta governativa para dirigir

a UNE, que tinha sido esvaziada. A junta deu lugar a uma diretoria eleita pelo Conselho

Nacional de Estudantes, que tinha sua base na União Metropolitana dos Estudantes (UME) do

Rio de Janeiro. Em julho de 1965, realizaram em São Paulo o XXVII Congresso da UNE, o

último não-clandestino (CUNHA, 1988).

Quem entrou na universidade na segunda metade da década de 1970 deparou-se com a

lógica empresarial que orientava a educação superior, e com a expansão da rede universitária,

motivada pela implantação dos programas de pós-graduação e o aumento da rede privada de

ensino, ambos dispondo de generosos recursos públicos. A classe média vislumbrava no

diploma universitário o passaporte para ascender socialmente. Dois mitos foram construídos:

do profissional liberal e da universalização do acesso à universidade.

Esse “acesso universal” era garantido através do vestibular, concurso pretensamente

democrático, criado para selecionar aqueles “aptos” para o exercício da vida acadêmica ou,

nos contornos cartoriais do Brasil, para o exercício de determinadas profissões. O vestibular

evidenciava que o ensino superior não era para todos26

. Quem tinha melhores condições

econômicas, estudava em boas escolas (privadas) e garantia sua vaga nas universidades

públicas. Aos estudantes mais pobres destinavam-se as vagas nas instituições particulares de

ensino superior que ofereciam ensino de baixa qualidade. Eram pirâmides que que

mostravam a crueldade da desigualdade brasileira.

Enquanto as instituições públicas cresciam com os investimentos no campo das ciências

tecnológicas, principalmente no campo da pós-graduação, entendidas como necessárias para o

desenvolvimento do país, as particulares contribuíam com a expansão da rede de ensino

superior através da abertura, em qualquer esquina, de cursos diversos, principalmente no do

campo de humanas, em função do seu baixo custo.

A universidade “aberta a todos”, instrumento para formar profissionais “competentes”

visando seu engajamento no projeto desenvolvimentista militar, vivia as conseqüências dos

desmandos de alguns reitores, do desvio de verbas destinadas à manutenção dos laboratórios e

salas de aula, de bibliotecas sem condições de funcionamento, da desorganização

Um documento com seu nome completo seguido de todos os artigos em que se considerava que ela havia

infringido foi colado em todas as portas da faculdade (Rádice, ano 4, nº 14, 1980). 26 Pois levava em consideração as respostas a provas de conhecimento, sem levar em consideração as diferenças

sócio-econômicas para obter os referidos conhecimentos.

Page 49: Tese de doutorado sobre a Rádice

49

administrativa, do descaso com a assistência aos estudantes (as moradias precárias, os

“bandejões” com filas quilométricas etc.).

Na primeira avaliação dos primeiros cinco anos de efetivação das mudanças preconizadas

no projeto Reforma Universitária, os técnicos do MEC se depararam com um elemento

inesperado: o aumento do número de matrículas, mas também o alto índice de evasão

escolar27

. A insatisfação com a qualidade do ensino, as perseguições políticas, a necessidade

de trabalhar para pagar as contas, eram as justificativas apontadas.

Se houve um silenciamento das expressões de resistência dentro das universidades no

começo dos anos 70, a partir da segunda metade da década, contudo, surgiram outros modos

de se organizar. Não era mais possível uma revolução macro, grandiosa, com desfile de

bandeiras pela avenida depois da derrubada do poder opressor. A resistência passou a ser

micro, local, algo que deveria ser exercido todos os dias, ao acordar, ao ir para o trabalho, na

praia, no convívio com familiares, com amigos. O riso, a ironia, a galhofa tomaram o lugar

das armas, e a arte passou a ser a expressão dessa resistência.

O silenciamento nos campi era aparente. Havia burburinho nos bares, nos grupos de

estudos, nas peças de teatro encenadas e nas publicações artesanais organizadas pelos

estudantes. Nos campi ferviam e borbulhavam idéias e milhares de falas. Apesar da

repressão causada pela presença de delatores infiltrados pela polícia nas salas de aula,

constituiu-se uma rede de contatos, de atividades e intervenções que driblavam aquele

impedimento. As perseguições aos estudantes, professores e funcionários tiveram um efeito

paralisador em um primeiro momento, mas, em seguida, as pessoas encontraram novas formas

de subverter tal controle, encontrando-se, mesmo que de forma rápida, pontual e efêmera.

A experiência universitária foi radical para a constituição de novas subjetividades. A

universidade era um elemento importante na vida social, política e cultural. A partir da

segunda metade dos anos 1970, uma nova forma de experimentar a vida acadêmica surgiu. A

universidade tornou-se um espaço de dificuldades e afrontamentos, mas também de vida, de

acontecimento, de alegria. Deixava de ser um lugar exclusivo para o ensino e a aprendizagem

formais, tornara-se espaço de vida, as pessoas se encontravam, estudavam, discutiam,

namoravam, brindavam, sentiam-se entrando em um território novo que, ao mesmo tempo,

era delas também.

27 Matéria: “A evasão de alunos na universidade”, por J. Casado. Opinião, nº 198 de 20 de agosto de 1976, p. 7.

Page 50: Tese de doutorado sobre a Rádice

50

Havia encontro, embaixo da amendoeira depois da aula do Clauze e o

Garcia-Roza era considerado um professor estonteante. Aquele

território era nosso. Havia uma relação de filiação e pertencimento

naquele campus. Você via a vida florescer. As falas eram compostas

no enfrentamento da ditadura. A formação de esquerda acontecia na

universidade. O silêncio não era tão absoluto. (CONDE, Diva Lúcia

Gautério, (depoimento). Rio de Janeiro, 2007)

Novas formas de expressão política se constituíam misturadas com a realidade social dos

grandes centros urbanos. Intervir nessa realidade passou a ser a condição primeira de

transformação. No campo da psicologia, essa preocupação se explicitava no engajamento no

campo da saúde mental, no campo da educação e no trabalho em favelas, que se desenvolviam

através do contato com os líderes e representantes dos moradores. Os estudantes subiam os

morros cariocas levando informações sobre saúde, oferecendo atendimentos a mulheres e

jovens. A formação do psicólogo passa a contar mais com esses “fluídos” do campus

universitário que com as teorias clássicas ensinadas em sala de aula. Foi essa experiência

militante que contribuiu para a afirmação de novas práticas no campo da psicologia.

Depois de massacrar os grupos de esquerda e impor um período de silêncio em toda a

sociedade, a ditadura militar só voltará a ouvir as vozes dos estudantes a partir de 1977.

Como assinala Poerner (2004), as reivindicações foram ampliadas, iam desde a oposição à

ditadura, contra o fechamento do Congresso Nacional, contra a censura, contra as medidas

repressivas, contra os atos de exceção e a exigência da anistia “ampla, geral e irrestrita”, até às

questões relacionadas às condições das universidades, mais verbas para as instituições de

ensino, à limitação do preço das anuidades nas instituições particulares, à melhoria do nível

de ensino, ao funcionamento dos restaurantes universitários e das moradias estudantis, à

defesa do ensino público e gratuito, à revogação das punições impostas aos demais estudantes,

à libertação dos que se encontravam presos. A deteriorização da qualidade do ensino e o

problema dos alunos excedentes também se tornaram bandeiras na década de 1970,

conseqüências da redução de verbas e do modelo de massificação que relegava a qualidade a

um segundo plano.

No ano de 1978, as ações dos estudantes se concentraram nos preparativos para o

Congresso de reconstrução da UNE, marcado para maio de 1979, em Salvador. Essa data foi

uma decisão do 4º Encontro Nacional de Estudantes, realizado na USP. Desse Encontro

também foi tirada outra decisão importante: o apoio aos candidatos do MDB nas eleições de

novembro de 1978, contrariando as propostas dos grupos mais radicais (POERNER, 2004).

Page 51: Tese de doutorado sobre a Rádice

51

De acordo com Araújo (2007), o responsável pela organização do Congresso foi o estudante

baiano Ruy César Costa e Silva, até então presidente do DCE da Universidade Federal da

Bahia.

O XXXI Congresso da UNE foi aberto com uma homenagem ao estudante ex-presidente

da entidade, que estava desaparecido, Honestino Guimarães.

Dos últimos presidentes da UNE, dois (Aldo Arantes e Altino

Rodrigues Dantas Júnior, ambos do PCdoB) estavam na cadeia, três

(José Luís Moreira Guedes, Jean-Marc e Luís Travassos), no exílio, e

um (Honestino Guimarães), desaparecido. (POERNER, 2004, p. 288)

No primeiro Congresso da UNE depois de 1968, os estudantes aprovaram um documento

intitulado Carta de Princípios que assegurava a constituição da UNE como uma entidade

“livre e independente”. Constituiu-se uma diretoria provisória que teria como tarefa organizar

as eleições para a diretoria definitiva. Essa nova diretoria foi eleita pelo voto direto, como

sublinha Poerner (2004), fato inédito na trajetória da entidade, tendo o estudante Ruy César

Costa e Silva eleito como presidente.

Terminada a longa e acidentada travessia de Ibiúna a Salvador, a UNE

rompia as barreiras da proscrição e da clandestinidade. Estava

reconstruída, embora ainda não reconhecida pelo governo.

Representando mais de 1,3 milhão de universitários, era a primeira

entidade nacional de massa a se reestruturar. (POERNER, 2004, p.

290)

Os dirigentes da UNE pretendiam retomar sua antiga sede, um prédio na Praia do

Flamengo, no Rio de Janeiro, ocupado, naquele momento, por cursos de teatro da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. De acordo com Araújo (2007),

policiais militares invadiram o prédio, de posse de um laudo do Corpo de Bombeiros que

recomendava a demolição.

A intenção das autoridades era, exatamente, esta: retirar do

movimento que se reconstruía o patrimônio cultural, o edifício

histórico que representava a sua memória. E que ligava o Movimento

Estudantil do final da década de 70 às lutas dos anos 1950 e 1960.

(ARAÚJO, 2007, p. 134)

O prédio foi abaixo, apesar dos protestos de estudantes e parlamentares, que foram para a

frente do imóvel enfrentar os policiais, e também da liminar do Juiz Carlos Davi Santos Aarão

Reis, da 3ª Vara Federal, para sustar a ação iniciando uma batalha judicial com o Tribunal

Page 52: Tese de doutorado sobre a Rádice

52

Federal de Recursos. Mesmo sob ameaça de morte, o juiz Aarão Reis foi até o local armado

com um revólver para tentar impedir a demolição.

O prédio desabou, toda a frente e o miolo, e ficaram aparentes

somente o fundo e a abóbada do teatro. Foi um episódio extremamente

doloroso. Acho que foi uma agressão à história do Brasil, um atestado

de ignorância não só dos militares, mas também dos dirigentes do

governo e da Prefeitura do Rio de Janeiro. (Ruy César, conforme

citado em ARAÚJO, 2007, p. 236)

As ações de enfrentamento da década de 1960 tornaram-se ações de resistência na década

de 1970. Emergiu outra forma de ação: dizer, falar, nomear. Dizer quem fez o que, com

quem, para quê, exigir o fim da ditadura e a anistia, a punição dos autores dos crimes de

tortura e assassinato e a democratização do país. Deleuze (2005), comentando os trabalhos de

Foucault, assinala que tal tipo de ação representa a primeira inversão do poder, o primeiro

passo para que surjam outras lutas: o discurso – de luta – se opõe ao segredo. Sem a proposta

reformista, sem querer reorganizar o Estado, surgem nessa cena novos movimentos: a

liberação sexual, a luta das mulheres, dos grupos homossexuais, do movimento negro, do

movimento de familiares das pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos, da exigência que

o Estado prestasse contas dos corpos desaparecidos etc. Através de suas lutas específicas,

esses movimentos questionavam o problema do poder, os dogmas do marxismo e a sociedade

burguesa.

Coimbra (1995) estabelece uma diferenciação entre um tipo de militância que ordena e

organiza e outra que constitui novos territórios, a partir da experiência do cotidiano no qual

intervém. As resistências não foram coisas inocentes, em que os puros lutaram e entregaram

suas vidas por um ideal límpido, claro. É um campo de embates, contradições, batalhas,

enfrentamentos, tensões, instabilidades. Consideramos a Rádice como uma das expressões

dessa resistência que questionou os saberes instituídos – a psicologia colocada no alvo das

críticas e problematizações – e renovou a luta política na década de 1970, produzindo muito

barulho, muito ruído.

1.3. “Rádice, Muito Prazer!”

Page 53: Tese de doutorado sobre a Rádice

53

O período em que a revista Rádice foi produzida (de 1976 a 1981) compreende, portanto,

o momento no qual os movimentos sociais e populares materializavam a denúncia dos atos

violentos da repressão, reivindicando o fim da ditadura; a volta dos exilados políticos; a

pressão feita ao governo autoritário pelos organismos internacionais de direitos humanos; as

mudanças nas expressões culturais e nas formas de compreensão e organização da luta

política, confirmando novos modos de resistência.

A Rádice surgiu no Rio de Janeiro em setembro de 1976, a partir da união de um grupo

de pessoas, em sua maioria psicólogos e estudantes de psicologia, mas também artistas e

jornalistas. Muitos outros se uniram depois a esse grupo inicial, fazendo com que a revista

chegasse a outros estados do país, deixando de ser uma experiência somente carioca. O

número de colaboradores da Revista é muito grande e heterogêneo, expressando uma de suas

marcas – a diversidade, a pluralidade. Seu principal responsável foi o psicólogo Carlos

Ralph, ou Cê Ralph, como assinava os editoriais e matérias.

A Rádice teve sua gênese, ainda, nas experiências de Carlos Ralph durante o exílio na

Argentina, na leitura atenta e constante dos jornais da imprensa alternativa e “conversando

com um, com outro”28

. Ainda durante o período de graduação em psicologia, Ralph

participou da editoração da Revista de Psicologia – Revista dos Alunos do Instituto de

Psicologia da UFRJ, proposta do então estudante de psicologia Antônio Geraldo Peixoto

Filho. Do “corpo editorial provisório”, além de Antônio Geraldo, faziam parte os estudantes

Cláudio Smith da Silva, José Virgílio, Maria Cristina Leal Viana, Irene Zaslavsky, Cristina

Rauter, Sheila Feital, Gabriel Atalla e Sandra Medeiros.

Ralph deixou sua marca desenhando as capas dos dois últimos números da Revista de

Psicologia, que teve vida breve, com apenas quatro números29

. Devido às inúmeras

dificuldades – pouco dinheiro, poucos recursos técnicos – sua confecção era artesanal e

amadora: inicialmente, era composta a partir de um original datilografado e, em seguida,

copiada em outras instituições, como a UFF e a PUC-RJ, onde os alunos ainda tinham acesso

à equipamentos como fotocopiadoras.

Essa Revista surgiu da necessidade dos alunos de criar um meio para expressar suas

idéias e críticas relativas à formação e à psicologia. Seu objetivo era abrir um espaço para o

estudo de outras perspectivas da psicologia que não eram oferecidas pela maior parte dos

28 VIANA, Carlos Ralph Lemos Rádice, editorial , número 1, 1976. 29 Número 1, agosto/setembro de 1972; número 2, outubro/novembro de 1972; número 3, maio de 1973; número

4, outubro de 1973. Este material está disponível no arquivo do Núcleo Clio-Psyché/UERJ.

Page 54: Tese de doutorado sobre a Rádice

54

professores, considerados conservadores. Professores como Luiz Alfredo Garcia-Roza,

Antonio Gomes Penna e Clauze Roland são lembrados pelos estudantes dessa época como

aqueles que eram mais próximos dos alunos, pois realizavam grupos de estudos nos quais

outras temáticas apareciam, como a fenomenologia e a gestalt, a epistemologia de Gaston

Bachelard, as críticas à psicologia experimental behaviorista, tão presente na formação

naquele momento. O modelo da formação em psicologia no Instituto de Psicologia da UFRJ

naquele momento, contava com espaços de resistência constituídos pelos debates que

ocorriam em grupos organizados por esses professores e alunos. Em seu primeiro editorial, os

alunos da “Revista de Psicologia” perguntavam o que acontecia com a psicologia brasileira,

apontando as precárias condições da universidade (tanto no que se referia à estrutura física, as

instalações dos laboratórios, quanto às questões relacionadas com a parte teórica).

O debate e a circulação de idéias é um ato de resistência. Como afirma Carlos Ralph

(VIANA, 2005), a Rádice foi um grande movimento, fez vibrar o que era tido como

estabelecido, tinha “potência”. Considero que o esforço na construção (e manutenção) de

uma Revista como essa, em períodos tão difíceis, foi um ato de resistência.

Segundo Ralph, todo o processo de construção e realização da revista o tomou: ele, um

ex-militante da Ação Popular (AP), que fora torturado pelos órgãos de repressão, estava

construindo um veículo de comunicação para poder se expressar em plena ditadura militar.

Foram quatro anos e sete meses de intensa dedicação para visando manter a revista viva e

crescendo, o prazer de escrever e a descoberta da arte gráfica.

Além de Ralph, Rádice contou com inúmeros colaboradores para a elaboração do

logotipo da revista, das matérias, de fotos e imagens, a realização de entrevistas, a divulgação,

distribuição, venda etc.

Seu primeiro número30

foi lançado numa festa, no dia 20 de setembro de 1976, no Teatro

João Caetano, contando com convidados de destaque como Djavan, Ângela Rôrô e

Therezinha de Jesus. Mas um atraso na impressão da Revista impediu que fosse apresentada

aos que compareceram à festa.

30 Em cada número descrito, reproduziremos os nomes dos colaboradores registrados no Expediente da Revista.

No primeiro número, além, claro, de Carlos Ralph colaboraram: Joel Bueno, Jussara Lins, Eduardo Tornaghi,

Regina Salim, David Bocai, Jean dos Santos, Maria da Glória, Solange Perdigão, Ângela Bernardes, Milton Athayde, Tereza Costa Barros, José Novaes, Maria Buschinelli, Sandra Medeiros, Margarida Lopes, Beth,

Regina, Ruben Fernandes, Vera Bernardes, Washington Lessa, Sérgio Falcão, Roberto Dalmaso.

Agradecimentos para Wit-Olaf Prochnick, Charles Esberard, Maria Cecília Tornaghi, Rawlinson P. Lemos,

Raimundo Fagner, Newton Tornaghi, Bernardo Jablonski.

Page 55: Tese de doutorado sobre a Rádice

55

Ao todo foram 15 números, contando ainda com dois extras: a edição de comemoração de

4 anos, lançada em 1980, e a Rádice Teoria/Crítica, uma publicação voltada para a divulgação

de textos considerados acadêmicos, lançada em 1979, e que teve somente um número.

Com uma apresentação cuidadosa, na capa do primeiro número31

aparece uma grande raiz

em sépia, o nome “Rádice” e as chamadas das matérias. O nome foi inspirado na palavra

“Radic” ou “radix”, que significa “raiz” em latim. Ralph inventou um acento na palavra e

assim a revista foi batizada. No editorial, a proposta de ser uma “revista de jornalismo da

psicologia”, ainda que isso não estivesse claro para o grupo. Tal proposta concretizava-se nos

textos que, em sua maioria, abusando da linguagem coloquial, marcava um distanciamento

dos textos acadêmicos.

Sem muita experiência sobre como fazer uma revista e sem muito dinheiro para investir

neste sonho, os idealizadores da Rádice contaram, nesse começo, com a ajuda de familiares

que compraram “ações” da Revista ou “cotas imaginárias para a implantação da Revista”32

.

Para cada número publicado, um grande esforço se fazia: o dinheiro arrecadado na venda dos

exemplares servia para pagar os empréstimos tomados e novos empréstimos eram feitos;

também eram organizadas festas a fim de arrecadar mais um pouco de dinheiro. Como boa

parte da imprensa alternativa, não podiam contar com anúncios publicitários33

, pois os

anunciantes privilegiavam os veículos da grande imprensa. A partir do terceiro número, foi

lançada uma campanha de assinaturas intitulada “mamão sem caroço”,

Compre prá trás, assine prá frente. Faz bem prá saúde. Os nº 1, 2, 3,

e 4 você recebe imediatamente e os cinco próximos – 6, 7, 8, 9 e 10 –

bem rápido, assim que forem saindo da gráfica. Preço? 150 mangos,

perdão, mamões, perdão, cruzeiros. (Rádice, nº5, janeiro de 1978).

Esta campanha foi aperfeiçoada e ampliada, transformando-se na “Aníbal tinha razão”.

O que considero interessante é que mesmo sem saber se poderiam cumprir com as promessas

dos planos, eles prometiam...

Assine prá frente. É o plano racional. Retire uma nota de 100 do seu

orçamento e passe para o nosso. Em troca mandaremos os próximos 5

números – 6, 7, 8, 9 e 10 e como brinde um número atrasado que você

escolher. É a compensação. Assim falou Aníbal...

31 As capas da Rádice estão reproduzidas no Anexo I. 32 VIANA, Carlos Ralph Lemos (depoimento). Rio de Janeiro, 2008. 33 A não ser a divulgação da Drogaria do Povo, farmácia do tio do Ralph que assim colaborava financeiramente

em troca da divulgação.

Page 56: Tese de doutorado sobre a Rádice

56

Nos anos 70, a impressão desse tipo de material ocorria de maneira que hoje poderíamos

denominar artesanal, cada página era montada cuidadosamente letra por letra, imagem por

imagem, sua diagramação levava até uma semana para ser concluída. Desde o primeiro

editorial, havia a promessa de ser uma revista bimestral com o sonho de tornar-se mensal, mas

essa proposta nunca se concretizou. Devido às dificuldades financeiras e de produção, a

Rádice saía “quando dava em quando dava”34

.

As primeiras reuniões sobre a revista aconteceram nos gramados da UFRJ, no campus da

Praia Vermelha. Era ali, debaixo das árvores, que Ralph fazia o convite-sedução aos

estudantes de psicologia para participarem na elaboração da Revista. Essas reuniões também

aconteciam em outros endereços como a residência de Wit-Olaf Prochnick, cunhado de Carlos

Ralph e grande incentivador da Revista, e de Vera Bernardes, responsável, junto com

Washington Lessa, pela arte gráfica. O bar 007 na Rua Farani, no bairro de Botafogo,

também serviu de sede e, para fazer contatos com outros colaboradores e possíveis

distribuidores, utilizava-se um telefone público situado em frente ao bar. Outro lugar de

referência da revista foi a casa da Rua Alice, no bairro das Laranjeiras, que foi moradia –

Ralph e outros colaboradores da Revista dividiram o mesmo espaço, constituindo uma

comunidade, falaremos mais dessa experiência nos próximos capítulos – e lugar de reuniões,

debates e festas animadíssimas que ficaram na memória de todos.

Já no segundo número35

, Ralph e o grupo de colaboradores conseguiram uma sala na

Casa do Estudante Universitário (CEU), que na época era um centro de efervescência cultural

e política, de movimentação.

A CEU tinha grandes salões... era autônomo. Isso incomodava muita

gente, a UFRJ era a dona do prédio, mas não conseguia interferir em

nada (...). Lá tinha uma lavanderia coletiva, uma cantina coletiva, um

cineclube, um teatro e uma biblioteca – tudo funcionava por

comissões. Tinha três andares. No andar de baixo ficavam algumas

residências e essa parte de serviços. O segundo andar era moradia dos

estudantes e o terceiro era um albergue que albergava, principalmente,

estudantes do mundo todo. Era fantástico o número de pessoas que

passava pela CEU por ano. Então, a CEU foi um espaço incrível, teve

uma fase áurea, depois uma fase de decadência. A CEU, eu acho que

foi, no Rio, um acontecimento, na minha formação foi fantástico (...).

34 VIANA, Carlos Ralph Lemos (depoimento). Rio de Janeiro, 2005. 35

Colaboradores: Joel Bueno, Jussara Lins, Antonio Luiz Brandão, David Bocai, Wanderley Pinto, Eduardo

Tornaghi, Maria Buschinelli, Ângela Bernardes, Jean dos Santos, Solange Perdigão, Milton Athayde, Darcy Cléa, Maria da Glória, Tânia Christini, Vera Bernardes, Ruben Fernandes, Washington Lessa, Beto Felício,

Sérgio Falcão, Roberto Dalmaso, Leila Castilho, Roberto Tavares, Regina Gaio, Lucinda Freire, Salomão Luna,

Maria Eugênia, Carlos Bezerra, Maria Terezinha. Agradecimentos: Helio de Almeida Lemos, Clytia Lemos

Viana, Tereza Walcacer, Décio Pessanha Viana, Ezir Nogueira de Miranda Lins.

Page 57: Tese de doutorado sobre a Rádice

57

Até que veio a fase negra do tráfico, a gente não conseguia saber

quem era estudante (...), aí, depois acabou. (RESENDE, João,

(depoimento). Niterói, 2007)

A CEU tinha por função acolher os estudantes que vinham de outras cidades do estado,

ou mesmo de outras partes do país. Em 1973, passou a funcionar na antiga Escola de

Enfermagem Ana Néri. Os estudantes organizavam-se em comissões, sendo eleita uma

diretoria responsável pela administração do lugar. Era o único lugar no Rio de Janeiro que

abrigava encontros de grupos que não tinham onde se reunir, como o grupo Corpo, os grupos

de teatro “Tá na Rua”, de Amir Haddad, e o “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, que ensaiava

sua peça “Trate-me Leão” em uma das salas alugadas pela direção da CEU. Também se

reuniam ali o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) formado pelos familiares dos presos

políticos e o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) que era composta, em

grande parte, por editores do jornal alternativo O Bagaço. A CEU também acolheu outros

jornais alternativos como Nós Mulheres e Brasil Mulher. Um terceiro grupo feminino teve

ainda seu espaço garantido na CEU, o grupo dissidente do Nós Mulheres, ligado ao grupo

político Liberdade e Luta (Libelu).

A redação da Rádice passou a ocupar uma das salas da CEU, resolvendo com isso, além

do problema da falta da sede, a falta de uma editora para fazer seu lançamento. Um dos

diretores da CEU, Roberto Lapa, enfrentava a mesma dificuldade com seu jornal O Bagaço e

decidiu criar uma editora, como mesmo nome do jornal, que editou a Rádice até o número

cinco.

No começo, a distribuição era bastante restrita, os primeiros “pontos-de-venda” eram os

diretórios acadêmicos das universidades. Era trabalho de bater de porta em porta oferecendo-

a, tarefa do estudante de psicologia e morador da CEU João Resende. A partir do segundo

número, a distribuição foi ampliada, chegando a outros diretórios de escolas que ofereciam

cursos de psicologia em outros estados do país. A ampliação da distribuição fez com que

fosse instaurado um sistema chamado “grupos sucursais”, compostos por psicólogos e

estudantes de psicologia que enviavam notícias das movimentações em seus estados e

também matérias e entrevistas. A revista chegou a ter cinqüenta sucursais, num sistema de

micro-revolução, de micro-administração e num modo quase artesanal.

Mesmo afirmando-se a partir do quarto número como “revista de psicologia”, o conteúdo

da Rádice sempre foi bastante diversificado, ultrapassando as fronteiras do “universo psi”.

Desde o primeiro número, os leitores são convocados a participar da Revista enviando textos,

Page 58: Tese de doutorado sobre a Rádice

58

artigos, notas, denúncias e mesmo vendendo-a. A partir do segundo número, há uma seção de

cartas, “Opinião”, em que são reproduzidas críticas, elogios e comentários diversos sobre a

Revista. A única seção que foi mantida do início ao fim da revista foi a “Geralmente”, com

dicas culturais e notícias rápidas sobre o cotidiano (política; saúde; psis; alerta sobre remédios

proibidos nos países de “primeiro mundo”, mas vendidos no Brasil; divulgação de

publicações da imprensa alternativa; críticas; erratas; denúncias; alertas ecológicos etc.)36

.

A Revista não era corporativista, direcionando críticas ácidas aos processos de

psicologização das questões político-sociais e ao conseqüente esvaziamento de lutas políticas.

Não estava ligada a nenhuma instituição, mantendo sua posição independente em relação às

instituições oficiais da profissão, de formação, etc. até seu último número. No editorial do

número 1, o grupo da Rádice apresentava a família da qual fazia parte: “uma linha alternativa

de imprensa”, junto com outras publicações como o “Bondinho, Ex, Pasquim, Movimento,

Opinião, Scaps, Versus, Ordem, Abertura” (Rádice, editorial, nº 1, 1976).

Para seus inúmeros colaboradores em todo o país, participar da revista, viver a Rádice,

era uma forma de militar politicamente, vendendo-a, indicando, falando com amigos, levando

as discussões em sala de aula das universidades – muitos eram estudantes, indo aos encontros

de psicologia. A Revista era vista como um espaço por onde ecoava a voz dos que queriam

falar e pensar novos problemas para a psicologia.

Esse foi o momento que a psicologia se estabeleceu no plano do cotidiano, ou seja, a

figura do psicólogo tornou-se presente, constante, participando de debates na televisão,

ditando regras de comportamento, escrevendo ou sendo entrevistado em matérias de revistas

de grande circulação, abordando temas como drogas, maternidade, educação infantil, como

ser isso ou aquilo, o que fazer em determinados momentos da vida, como criar os filhos, como

lidar com os jovens etc., sempre de maneira prescritiva.

O psicólogo passa a ser visto como aquele que tudo sabe, e que pode predizer

comportamentos e mesmo prescrever modos de ser. Os discursos “psi” entram pelos poros,

são absorvidos pelas almas. Em movimentos paradoxais, a legitimidade científica da

psicologia é problematizada, enquanto são organizadas lutas em defesa da categoria

profissional, como a reivindicação das associações de psicólogos pela instauração do

36 Outras seções que apareceram, ao longo de seu percurso, não tão constantes como a “Geralmente”: “Estágios”

(aparece nos números 1, 2, 3, 4, e 5), “Mestrados” (nos números 2 e 10), “Teses” (números 3, 4 e 5), “Livros”

(números 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8), “Opinião” (número 2 , 10 e edição de quatro anos), “Psicologia nos estados”

(números 8, 10, 11), “Toques” (números 13, 14 e 15).

Page 59: Tese de doutorado sobre a Rádice

59

sindicato e pela afirmação da institucionalização da profissão, pois mesmo já tendo ocorrido a

regulamentação em 196237

, ela ainda parece frágil.

Ao trabalhar com a revista foi necessário, através de malabarismos38

, presumir algumas

datas, pois em muitos números não há registro temporal. Para futuras pesquisas, apresento

aqui a relação das datas de publicação, lembrando que algumas foram presumidas39

: número

1, setembro de 1976. Número 2, janeiro ou fevereiro de 1977. Número 3, junho de 1977.

Número 4, ano 1, setembro de 1977. Número 5, ano 2, janeiro de 1978. Número 6, ano 2,

junho/julho de 1978. Número 7, ano 2, setembro/outubro de 1978. Número 8, ano 2,

dezembro de 1978. Número 9, ano 2, abril/maio de 1979. Número 10, ano 2, julho/agosto de

1979. Número 11, ano 3, novembro/dezembro de 1979. Número 12, ano 3, março de 1980.

Número 13, ano 3, junho de 1980. Número 14, ano 4, outubro de 1980. Número 15, ano 4,

abril de 1981. Rádice Teoria/Crítica número 1, ano 1, 1979. Rádice edição de quatro anos

(compilação das melhores matérias dos três primeiros números), setembro de 1980.

A expressão “revista de psicologia” vinculada ao nome Rádice apareceu pela primeira

vez no segundo número, desapareceu no terceiro e reapareceu no quarto, tornando-se

constante. De acordo com o editorial do número dois, foram realizadas discussões e debates

37 Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a

profissão de psicólogo. A lei 4.119 foi regulamentada pelo Decreto nº 53.464 de 21 de janeiro de 1964, que dispõe sobre a profissão de psicólogo. Os Conselhos Federal e Regionais foram criados através da Lei nº 5.766

de 20 de dezembro de 1971, porém somente em 20 de dezembro de 1973 foram escolhidos os componentes do

Conselho Federal de Psicologia (CFP), indicados por associações de psicologia convocadas pelo Ministério do

Trabalho. O I Plenário do CFP (20/12/1973 a 10/12/1976) foi composto pelos seguintes conselheiros efetivos:

Arrigo Leonardo Angelini (presidente), Arthur de Mattos Saldanha, Clovis Stenzel (secretário no período de 17

/08/1975 a 20/12/1976), Geraldo Magnani, Geraldo Servo (secretário no período de 20/12/1973 a 17/08/1975),

Halley Alves Bessa (tesoureiro), Oswaldo de Barros Santos, Tânia Maria Guimarães e Sousa Monteiro, Virgínia

Leone Bicudo, e os conselheiros suplentes Antonio Rodrigues Soares, Caio Flaminio Silva de Carvalho,

Francisco Pedro Pereira de Souza, Márcia Lucy Mello e Silva, Mathilde Neder, Myrian Waltrude Patitucci Neto,

Odette Lourenção Van Kolck, Reinier Antonius Rozestraten e Rosaura Moreira Xavier. Os Regionais foram

constituídos por designação do CFP e instalados em 27 de agosto de 1974 (à época havia somente sete regionais: CRP01 – Acre, Amazonas, Goiás, Pará e Territórios Federais do Amapá, Roraima, Rondônia e Distrito Federal.

CRP02- Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Território de Fernando

de Noronha. CRP03 – Bahia e Sergipe. CRP04 – Espírito Santo e Minas Gerais. CRP05 – Rio de Janeiro.

CRP06 – Mato Grosso e São Paulo. CRP 07: Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina). 38 Dois exemplos desses malabarismos: primeiro, para presumir a data do número dois, relacionamos as

informações do editorial em que Ralph menciona que foi escrito em novembro, com algumas matérias (uma

sobre a primeira assembléia orçamentária ocorrida no Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, que

utiliza dados retirados do boletim informativo da entidade datado de dezembro de 1976; outra, a publicação de

uma carta enviada por Arani Borges Santos, que a Rádice transcreveu do jornal Opinião, nº 214 de 10 de

dezembro de 1976). Presumimos que o segundo número saiu em 1977, provavelmente em janeiro ou fevereiro,

observando que a elaboração do número seguinte já se iniciava. O segundo exemplo, foi a data do número três.

De acordo com o editorial, a edição do terceiro número foi fechada em fins de abril e o editorial foi escrito no início de maio “um mês antes da entrada em circulação” (Rádice, editorial, número três). De acordo com nosso

exercício de detetive, o número três saiu em junho de 1977. 39 As datas presumidas são as dos números 1, 2, 3, 4, 5, 8, 11, mais a edição de quatro anos e a Rádice

Teoria/Crítica.

Page 60: Tese de doutorado sobre a Rádice

60

no Rio de Janeiro sobre a revista, apontando seus acertos e, também, seus aspectos

contraditórios. O lançamento do número dois ocorreu na Casa do Estudante Universitário,

com um debate sobre os problemas da formação do psicólogo no Brasil, que teve como

convidada a professora da UERJ, Darcy Cléa. As críticas da professora tiveram como alvo,

além da formação, a condição “alienada” dos psicólogos brasileiros e a importação de teorias,

principalmente os modelos norte-americanos. Outro ponto destacado foi o apoio dado à

Revista por jornalistas, mais que por psicólogos.

Esses debates confirmaram-na como uma “revista aberta”40

, na qual todos podiam

colaborar, e propiciaram algumas modificações estruturais, como a organização do grupo em

editoriais. A proposta de reportar os fatos mais recentes da psicologia tornou-se quase

inviável diante das dificuldades e do tempo que levavam para fechar cada número. Algumas

críticas e elogios ao número 1 foram enviados através de cartas que a revista conseguiu

resgatar, mesmo tendo publicado o endereço errado; tais cartas foram publicadas na seção

“Opinião”, espaço para a expressão dos leitores.

Os temas relacionados à saúde mental ganharam destaque desde os primeiros números,

como, por exemplo, a entrevista feita por Joel Bueno com a escritora Helena Jobim que

relatava suas experiências de internação e a relação com a família e a filha; a entrevista com a

Drª Nise da Silveira (1906-1995), contando alguns fatos de sua vida e de seu trabalho

inovador, como a Criação da Casa das Palmeiras, fundada em dezembro de 1956; a

publicação da “Carta aos diretores dos asilos de loucos” de Antonin Artaud (1896-1948); uma

conferência de Ronald Laing ocorrida em Londres, em fevereiro de 1977. Este será um dos

temas mais discutidos pela Rádice, ganhando maior destaque com a publicação de um número

exclusivo sobre os hospitais psiquiátricos brasileiros, o número 7 e matérias internacionais

sobre as transformações produzidas por Franco Basaglia na psiquiatria italiana, publicadas

nos números 9 e 10. Não há uma edição da revista que não tenha um informe, um dado, uma

matéria, uma referência sobre as transformações no campo da saúde mental no Brasil e em

outros países.

No primeiro ano da revista, foram produzidos quatro números, em cada um é possível

perceber mudanças: na linha editorial, na arte gráfica, nas seções, na lista de colaboradores –

alguns nomes desaparecem outros tantos surgem. Aliás, nenhum número da Rádice é igual ao

outro na apresentação ou na forma: mudam as chamadas de capa, muda o tipo de papel,

40 Editorial, Rádice, nº 2, janeiro ou fevereiro de 1977.

Page 61: Tese de doutorado sobre a Rádice

61

entram as cores, o expediente circula por várias partes da revista, etc. O mais importante,

talvez, é notar o que foi mantido,

Seguimos dentro de um espírito “nanico”; atentos à crítica ao trabalho

da psicologia e psiquiatria nacionais; ainda com dificuldades em

vencer preconceitos com relação à imprensa alternativa; mantendo a

todo custo o preço de Cr$ 15,00, apesar da inflação avassaladora e do

aumento do número de páginas; sempre sem dinheiro. (Rádice, seção

“Geralmente”, número 4, ano 1, setembro de 1977, p. 5)

1.4. “Jornalismo da psicologia” – loucura, loucura...

Esta expressão “jornalismo da psicologia” apareceu logo no primeiro editorial da Rádice,

mesmo que seus editores não soubessem muito bem o que isso significava. No segundo

número, aparece algum indício do que seria esse “jornalismo”: reportar fatos da atualidade.

Mas, entre a reunião de pauta e a distribuição dos exemplares da revista para venda,

transcorria um longo tempo. Esse fato promoveu uma mudança em sua linha editorial,

coincidindo com a necessidade de aprofundar-se nos debates sobre os temas que emergiam

naquele momento.

Como dito, um dos temas mais recorrentes, presentes em todos os números publicados,

inclusive com uma edição especial, foi a questão da loucura, ou as várias experiências de

contestação do modelo psiquiátrico tradicional que se espalhavam por alguns países da

Europa e também no Brasil. Outras experiências como as que ocorreram nos E.U.A. e a de

Cuba não são consideradas como contestadoras do modelo psiquiátrico, sendo mencionadas

pelos autores que tratam desse assunto como experiências reformistas.

Tais experiências foram marcadas pelo fim da II Guerra Mundial e pela necessidade de

reconstrução, principalmente, dos países europeus. Segundo Barros (1994), durante a guerra,

o psiquiatra espanhol François Tosquelles41

desenvolveu no Hospital de Saint-Alban, na

França, uma experiência que problematizava as relações entre psiquiatras, enfermeiros e

pacientes. Quando chegou ao hospital, encontrou algumas iniciativas cooperativistas que

serviram como disparadoras para a criação de outros instrumentos de intervenção, como o

41 Durante a Guerra Civil espanhola (1936-1939), Tosquelles desenvolveu ações terapêuticas com pessoas leigas.

Com o advento da II Guerra Mundial, refugiou-se na França, trabalhando no campo de concentração Sept Fonds

e, em seguida, em Saint Alban, onde desenvolveu os primeiros passos do que ficou conhecido mais tarde como

Psicoterapia Institucional (BARROS, 1994).

Page 62: Tese de doutorado sobre a Rádice

62

jornal e o grupo em que pacientes e técnicos discutiam as regras e as atividades desenvolvidas

na instituição.

O hospital tornou-se foco da resistência francesa durante a guerra, ali se refugiavam

camponeses, intelectuais e artistas. Barros (1994) afirma que Saint Alban foi um deflagrador

de críticas à psiquiatria asilar e medicamentosa, e é apontado pela autora como o embrião da

Psiquiatria de Setor, que propunha a implantação de serviços psiquiátricos espalhados pelas

várias regiões das cidades, contando cada um deles com uma equipe composta por psiquiatras,

psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, além de haver um arsenal de outras instituições

que tinham a função de assegurar o tratamento e a prevenção das doenças mentais. De acordo

com a autora, esse programa foi duramente criticado, pois promovia um esquadrinhamento da

cidade e de sua população. Segundo Amarante (1995), outra crítica vinha dos setores mais

conservadores da sociedade francesa, preocupados com a possibilidade de uma invasão das

ruas da cidade pelos loucos.

Outra experiência francesa, porém muito mais radical, foi a desenvolvida na Clínica de

Cour-Cheverny, ou La Borde, como ficou conhecida. Em 1955, seu diretor Jean Oury, que

havia trabalhado em Saint Alban com Tosquelles, convidou Félix Guattari a participar da

equipe para desenvolver o Comitê Intra-Hospitalar da clínica. A orientação era instalar um

incessante questionamento com relação a todas as rotinas burocráticas, à passividade e à

hierarquia institucionalizadas dentro do hospital.

Um dos principais marcos norteadores (ou desnorteadores) para aqueles que buscavam a

transformação do modelo assistencial psiquiátrico foi a Psiquiatria Democrática italiana que

teve no trabalho de Franco Basaglia sua maior expressão. Como diretor do Hospital

Psiquiátrico Provincial de Gorizia, Basaglia iniciou seu movimento de denúncia das práticas

de violência institucional, incluindo a psiquiatria como instrumento dessa violência. O

período de 1968-70 foi o auge da revolução pela qual passou a psiquiatria italiana. O trabalho

saiu dos muros do manicômio e expandiu-se, com a criação de centros de higiene mental em

várias cidades, com administrações comunistas e socialistas. Uma das grandes vitórias desse

movimento foi a aprovação da Lei 180, em 1978, conhecida como Lei Basaglia, que

preconizava a eliminação dos manicômios e a mudança de lógica na assistência, questionando

a noção de “doença mental” e o poder dos especialistas sobre os sujeitos.

Outro importante movimento de crítica à psiquiatria foi a antipsiquiatria. Segundo

Amarante (1996), surgiu na década de 60, na Inglaterra, com um grupo de psiquiatras, entre

eles, Ronald Laing, David Cooper e Aaron Esterson. É considerada a primeira crítica radical

Page 63: Tese de doutorado sobre a Rádice

63

ao saber médico-psiquiátrico, rompendo com o modelo assistencial vigente e propondo um

novo projeto de comunidade terapêutica42

.

Laing e Cooper tornaram-se nomes de destaque, o primeiro direcionando suas críticas

contra a psiquiatria, a ordem social e familiar, afirmando posturas consideradas “marginais”,

livres ou “anti”. Segundo Laing, a loucura é um fato social, político, e, até mesmo, uma

experiência positiva de libertação. O louco é visto como uma vítima da alienação geral, é

segregado por contestar a ordem pública e colocar em evidência a repressão psiquiátrica43

.

Cooper propunha como projeto uma transformação radical da sociedade, através da

eliminação da “estrutura familiar” (AMARANTE, 1996). No cerne do problema levantado

pelos psiquiatras ingleses, estava a violência psiquiátrica, ou, como diz Cooper “a violência

perpetrada pelos (...) „sadios‟, contra os rotulados de loucos” (COOPER, 1989, p. 15). Um

dos seus trabalhos mais famosos foi a experiência conhecida como “Vila 21”. Em 1962,

Cooper encarregou-se de pôr em funcionamento suas idéias “antipsiquiátricas” em uma

enfermaria convencional dentro de um hospital psiquiátrico nas imediações de Londres. O

projeto identificou problemas relacionados com a organização e distribuição dos pacientes

pelas enfermarias; faltava um trabalho de pesquisa e análise das relações grupais e familiares,

“havia a necessidade de dados comparativos sobre a interação nas famílias e nos grupos

terapêuticos especializados” (COOPER, 1989, p. 111); por último, era necessário criar um

protótipo de uma pequena unidade autônoma, fora do contexto institucional, oferecendo aos

pacientes um grau maior de liberdade de movimentos fora dos papéis institucionais

estabelecidos. O trabalho direcionava-se também para a compreensão e discussão dos

preconceitos e juízos de valor sobre a loucura produzidos/reproduzidos pelos funcionários.

Como resultado dessa experiência, Cooper apontava a percepção de que as transformações no

campo da psiquiatria deveriam atingir toda a sociedade. Outra conclusão importante é a

libertação dos funcionários do sistema de hierarquização institucional. Segundo Cooper, essa

42 O termo “comunidade terapêutica” foi criado por T.H. Main, em 1946, mas somente em 1959, com o trabalho

de Maxwell Jones, foi consagrado. A idéia de comunidade terapêutica sustentou-se a partir da concepção que o

hospital é constituído de pessoas (pacientes e funcionários) que, de modo igualitário, devem executar as tarefas

referentes ao funcionamento da instituição. Dessa forma, uma comunidade é vista como terapêutica porque

possui princípios que levam a uma atitude comum, não se limitando somente ao poder hierárquico da instituição.

A comunicação e a troca de experiências entre o hospital e a comunidade extramuros também se fazem necessárias. Nessas comunidades, a discussão sobre os papéis dos funcionários e dos pacientes tornaram-se

instrumentos importantes de análise da instituição psiquiátrica. (AMARANTE, 1996). 43 Gilberto Lourenço Gomes enviou para a Rádice a gravação de uma conferência de R. D. Laing, realizada em

20 de fevereiro de 1977, promovida pela Philadelphia Association, em Londres, sobre o tema “O que é a

psicoterapia?”. Na conferência, Laing falava de seu começo como psiquiatra e as experiências que teve com a

técnica da hipnose. Publicada na Rádice nº 3, junho de 1977.

Page 64: Tese de doutorado sobre a Rádice

64

experiência provou ser possível dar um passo fora do hospital psiquiátrico em direção à

comunidade extramuros.

Essa experiência da antipsiquiatria, assim como outras já citadas, foram estratégias que

colocaram em análise tanto o hospital psiquiátrico quanto as “tecnologias psi”, produtoras de

verdades sobre os sujeitos e o mundo.

Em sua análise da intervenção médica sobre a loucura, Foucault (1977) assinala que a

medicina, a psiquiatria, a criminologia estiveram articuladas produzindo verdades sobre os

sujeitos através de provas (médicas e psicológicas). Segundo ele, os questionamentos dessas

disciplinas que surgiram a partir da segunda metade do século XX, se direcionavam à forma

de produção do conhecimento e à norma sujeito-objeto, interrogando-os em suas funções de

poder-saber.

de Bernheim à Laing ou à Basaglia, o que foi questionado é a maneira

pela qual o poder do médico estava implicado na verdade daquilo que

dizia, e, inversamente, a maneira pela qual a verdade podia ser

fabricada e comprometida pelo seu poder. (FOUCAULT, 1977, p. 21)

Segundo Foucault, os movimentos psiquiátricos dos anos 60 do século XX, recolocaram

em questão o poder do psiquiatra. Antes desses movimentos, o que estava implicado nas

relações de poder era o direito da não-loucura sobre a loucura, a competência exercendo-se

sobre a ignorância, a normalidade se impondo à desordem e ao desvio, o bom senso

corrigindo erros. Esses movimentos de contestação da ordem psiquiátrica provocaram uma

inversão que consistiu em colocar a intervenção médica no centro do campo problemático e

questioná-la de forma radical.

No Brasil, essas experiências contestadoras mobilizaram parte importante dos

profissionais de saúde mental na segunda metade da década de 1970, somando-se às

experiências singulares que já se desenvolviam, como, por exemplo, o trabalho realizado por

Nise da Silveira. Joel Bueno, David Bocai, José Paulo e Jussara Lins realizaram uma grande

entrevista com a psiquiatra brasileira, publicada nos números três44

e quatro da Rádice. A

44 Colaboraram no número 3: Joel Bueno, Jussara Lins, Ângela Bernardes, Antonio Peixoto, Luiz Brandão, Paula Borsoi, Elaine Tavares, Maria Sonia Destri, Denise Louro, David Bocai, Eduardo Tornaghi, Maria Buschinelli,

Tereza Walcacer, Vera Bernardes, Ruben Fernandes, Sergio Falcão, Ormino, Roberto Dalmaso, Carlos Pastana,

Lucinda Freire, Carlos Bezerra, Salomão Luna, Maria Eugênia, Tetê Catalão, Leila Castilho, Roberto Tavares,

Maria Terezinha, Regina Gaio, Carlos Oliveira, José Nóbrega.

Page 65: Tese de doutorado sobre a Rádice

65

capa do terceiro número apresentou o negativo da foto de um gato, uma homenagem à Drª.

Nise, conhecida fã dos bichanos45

Nise da Silveira iniciou sua carreira médica em 1926, ano de sua formatura, vindo em

seguida para o Rio de Janeiro para freqüentar um curso de neurologia. Nesse período, prestou

concurso para a vaga de médico psiquiatra e, aprovada, iniciou sua trajetória no campo da

saúde mental. Dez anos mais tarde, durante o Estado Novo, suas atividades profissionais

foram interrompidas pela denúncia feita por uma enfermeira que viu os livros sobre marxismo

que costumava ler. Ficou presa por um ano e meio, como conseqüência perdeu seu emprego e

foi afastada do serviço público por oito anos.

Em 1944, retomou seu trabalho no Hospital Pedro II, onde iniciou atividades laborais

com os pacientes em uma pequena sala cedida pelo então diretor da instituição, Dr. Fábio

Sodré. Na entrevista, Nise da Silveira relaciona essas atividades com sua experiência na

prisão,

porque todo preso procura uma atividade, senão sucumbe

mentalmente. Você passar mais de um ano parado... Muito perigoso

[...] todo mundo procura organizar atividades. Nesse período lá [na

prisão] estudávamos muito, eu estudei muito quando o tempo ficava

imenso. (SILVEIRA, Nise. Entrevista/ Rádice, 1977: 10)

O trabalho foi ampliado, transformando-se em outras oficinas, como de jardinagem, de

encadernação, de música e de pintura. Ao mesmo tempo, Dra. Nise estudava a dinâmica

dessas atividades e como poderiam funcionar terapeuticamente. Ao procurar referências

teóricas, encontrou na obra de Carl Gustav Jung idéias que a auxiliaram na compreensão dos

desenhos e garatujas dos pacientes. Guardava todas as imagens produzidas e, em 1952,

inaugurou dentro do hospital o Museu de Imagens do Inconsciente. As pinturas produzidas

pelos pacientes tiveram ainda outro destino, foram fotografadas pela Dra. Nise e enviadas ao

psiquiatra suíço. Então, começou uma correspondência que durou cerca de dois anos,

culminando em uma exposição dessas pinturas no II Congresso de Psiquiatria, realizado em

1957, na cidade de Zurique.

No período 1944-46, percebendo o número expressivo de pacientes que retornavam ao

hospital mesmo após a alta médica, a psiquiatra propôs a organização de um setor de egressos

para acompanhar a saída desses pacientes. Essa idéia, bastante extravagante para a época,

contou com o apoio de outra médica, Dra. Maria Estela Braga, que também trabalhava no

45 Ver Anexo I.

Page 66: Tese de doutorado sobre a Rádice

66

hospital. Esse grupo, apoiado pela diretora de uma escola situada no bairro da Tijuca, que

cedeu uma das salas da instituição para as médicas, e contando com a colaboração da

assistente social Ligia Lourenço e da artista plástica Bela Pasleine, foi inaugurada em 23 de

dezembro de 1956, a Casa das Palmeiras. No período da realização da entrevista com a Dra.

Nise, a Casa das Palmeiras comemorava 20 anos de trabalho, e foi assim descrita pelos

entrevistadores:

A entrada é quase encoberta por trepadeiras. Dentro, um pandemônio

total, gente subindo e descendo escadas, máquinas fotográficas,

filmadoras. É a festa de aniversário da Casa: 20 anos de terapia em

liberdade. No segundo andar é improvisado um pequeno show, que

vai da recitação a uma experiência em música aleatória. Todas as

salas repletas de pinturas, desenhos, trabalhos de tapeçaria e cerâmica.

Estamos em fins de novembro; no pátio vai ser montado um Auto de

Natal. Uma chuva sem cerimônia, no entanto, vem interromper a

anunciação do arcanjo Gabriel à Virgem. Às pressas, a peça é

transportada para dentro da casa. Enquanto se arruma tudo de novo,

Dra. Nise passa por nós, fala: “Estão conseguindo rotular as pessoas?”

Difícil, às vezes impossível mesmo. As velhas categorias têm enorme

dificuldade de se implantarem fora do ambiente hospitalar. (Rádice,

nº 3, junho 1977, p. 12)

O trabalho da Casa das Palmeiras é um dos marcos das transformações no campo da

saúde mental no Brasil. Com a ditadura militar, houve uma reformulação na assistência

médica no Brasil como a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em

1966. O INPS seguia as políticas centralizadoras instauradas após o golpe e fundamentou-se,

principalmente, na compra de serviços privados de saúde, já que o instituto não concentrou

esforços em ampliar a capacidade da rede com novos serviços. Esse tipo de estratégia gerou

um aumento nos custos dos serviços de saúde e inúmeras distorções em sua prática, como, por

exemplo, o aumento das internações psiquiátricas.

Dono de seis dos dezessete hospitais psiquiátricos de Pernambuco, o

médico Luiz Inácio de Andrade Lima Neto foi acusado em janeiro de

1977 de caçar bêbados nas ruas do Recife, interná-los como loucos e

beneficiar-se dos convênios com o INPS. (Rádice, ano 2, nº 6,

junho/julho de 1978)

Com o aumento do número das internações, a rede privada de saúde crescia a passos

largos, enquanto os serviços públicos sofriam com o descaso e a falta de investimentos. A

organização dos serviços de assistência psiquiátrica seguia essa mesma lógica privatizante da

saúde. A década de 1970 iniciou-se com a constituição de um grupo de trabalho designado

Page 67: Tese de doutorado sobre a Rádice

67

pela Secretaria de Assistência Médica do INPS, com o objetivo de levantar os principais

problemas da assistência. Os resultados dos estudos mostraram um aumento exorbitante das

internações e reinternações, servindo como fonte para a confecção da primeira versão do

Manual de Serviço para Assistência Psiquiátrica, no qual se destacavam programas de

psiquiatria comunitária, estimulando a criação de serviços extra-hospitalares e a formação de

equipes multiprofissionais.

Esse documento é visto como um ponto historicamente importante para o início de uma

transformação da assistência psiquiátrica no país, mas as recomendações nele contidas não

foram minimamente implantadas. Sua aplicação nunca aconteceu, na medida em que os

recursos da Previdência eram todos destinados à compra de serviços privados, e os donos

destes utilizavam sua força política, impedindo a realização de mudanças no modelo

assistencial. Esses donos dos serviços privados, organizados na Federação Brasileira de

Hospitais (FBH), criticavam os ideais da psiquiatria comunitária, os ambulatórios, os regimes

de semi-internação, as emergências psiquiátricas e defendiam ardorosamente o “verdadeiro

hospital psiquiátrico”, afirmando um modelo assistencial voltado para o confinamento e a

segregação.

As primeiras propostas de mudanças defendiam exatamente o que a FBH criticava. Tais

propostas foram preconizadas pelos profissionais de saúde inconformados com o

hospitalocentrismo que caracterizava a assistência no Brasil, com a manipulação das verbas

públicas e com os maus tratos e violências aos que se encontravam internados. Mas as coisas

eram difíceis, qualquer movimento em direção à ruptura era combatido pelos denominados

“barões da saúde”.

No ano de 1978, a saúde enfrentou uma de suas maiores crises. Os médicos residentes da

Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro iniciaram um movimento de greve que ganhou

âmbito nacional. Suas principais reivindicações eram: aumento dos salários e a garantia dos

seus direitos trabalhistas. Os programas de residência médica integravam o sistema de

formação em nível de pós-graduação, sendo os residentes bolsistas, portanto, sem vínculo

empregatício, o que fazia com que seu movimento de greve não recebesse a atenção merecida

por parte dos órgãos do governo, que os ameaçava com o simples cancelamento de suas

bolsas46

.

46 Jornal do Brasil, 06/07/78.

Page 68: Tese de doutorado sobre a Rádice

68

Nesse mesmo período, ocorreu uma grande crise dentro dos hospitais da Divisão

Nacional de Saúde Mental (DINSAM), que teve efeitos importantes como a organização do

Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). A gota d‟água foi a demissão de

três bolsistas do Hospital Gustavo Riedel por denunciarem, no livro de ocorrências do

plantão, as péssimas condições de trabalho e atendimento à população. O Sindicato dos

Médicos, em nome dos colegas, procurou o diretor da DINSAM, Alberto Magalhães,

exigindo a recontratação dos bolsistas. O diretor não aceitou diálogo com o sindicato, muito

menos atendeu aos apelos dos outros bolsistas, e mais, considerou extintas as bolsas de 84

médicos, psicólogos e assistentes sociais que se solidarizaram com os colegas. No final das

contas, o diretor Alberto Magalhães desligou de suas funções 230 profissionais. Na Rádice,

n.º 7 (1978), foi publicada nota sobre essa crise e o depoimento do Ministro da Saúde,

justificando as ações do diretor da DINSAM:

O Ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, falando sobre a

demissão, declarou que os bolsistas não foram desligados, “pois o

prazo de suas bolsas, que é de 11 meses, já havia vencido e, portanto,

está sendo criado na DINSAM um problema baseado no nada”. A

resposta dos grevistas: “nossos colegas antigos foram demitidos

quando já estavam trabalhando há um mês com suas bolsas

prorrogadas, e de repente foram desligados. Encaramos isto como uma

punição pela sua participação no movimento reivindicatório da

classe”. Até hoje a confusão continua. A readmissão não pintou e os

bolsistas substitutos convocados se recusaram a tomar posse. (Rádice,

1978, 2 (7), p. 4)

No dia 30 de junho, foi deflagrada a greve dos profissionais que continuaram nos

hospitais na tentativa de pressionar o governo e, principalmente, conseguir a readmissão dos

companheiros. Várias associações de classe47

formaram uma comissão para tentar o diálogo

com o Ministro da Saúde e apontar as péssimas condições que os hospitais apresentavam. Foi

escrita uma carta e marcado um encontro, mas o ministro Almeida Machado não recebeu os

profissionais48

que foram até Brasília tentar discutir as políticas de saúde no país. No

47 A carta foi assinada por 18 entidades: Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Sociedade de Medicina e

Cirurgia, Associação Brasileira de Psiquiatria, Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Conselho

Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, Associação dos Médicos Residentes do Estado do Rio de

Janeiro, Associação Profissional dos Psicólogos do Rio de Janeiro, Associação de Psiquiatria e Psicologia da

Infância e da Adolescência, Associação Fluminense de Psiquiatria, Associação Brasileira de Medicina

Psicossomática, Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo, Instituto de Medicina Psicológica, Sociedade de

Psicoterapia de Grupo do Rio de Janeiro, Sociedade de Psicologia Clínica, Associação Brasileira de Psicologia

Aplicada, Centro de Estudos do Sanatório Botafogo, Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Sindicato das Assistentes Sociais. (Carta das associações e entidades profissionais ao Ministro da Saúde. Rio de Janeiro, 24 de

agosto de 1978.) 48 Júlio de Melo Filho (presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática); Miguel Melzak

(diretor do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro); Vera Lúcia Canabrava (presidente da Associação

Page 69: Tese de doutorado sobre a Rádice

69

documento que seria entregue ao ministro, os profissionais reivindicavam a readmissão dos

profissionais afastados, a ampliação de quadro de contratados, a abertura para discussão dos

planos nacionais de saúde mental e a substituição da direção da DINSAM pela

responsabilidade no desencadeamento da crise e pela falta de flexibilidade no diálogo com as

entidades das categorias de trabalhadores, além de uma reformulação radical do modelo de

assistência psiquiátrica no país.

Todos esses acontecimentos promoveram a aglutinação dos profissionais de saúde no

Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que passou a organizar encontros com o

objetivo de aprofundar e ampliar a discussão sobre a política de saúde mental. Em 1980,

conseguiram organizar o I Encontro Regional dos Trabalhadores em Saúde Mental, que

reuniu no Rio de Janeiro 200 pessoas, entre psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais

representantes de diversas associações e estudantes para debateram os problemas ligados à

área. Discutiram a política nacional de saúde mental, as alternativas de atuação que surgiam,

as condições de trabalho, a privatização da medicina, a realidade político-social da população

brasileira. Também foram feitas várias denúncias contra as barbaridades que ocorriam nos

hospitais psiquiátricos.

As transformações no campo da assistência psiquiátrica no Brasil foram acompanhadas

de perto pela Rádice, até as reuniões e assembléias organizadas no começo da década de

1980. Desde então, mudanças importantes ocorreram na organização da assistência em saúde

e também na saúde mental. Dos debates dos anos 1980, surgiram novas diretrizes políticas,

como a Reforma Sanitária que, segundo Bertone (2000), marcou os novos rumos da

assistência, como a implantação das experiências municipais, a formulação do papel dos

estados na área da saúde e a implantação de novas leis. Em 1981, foi criado o Conselho

Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária – CONASP – sugerindo um plano com

quatro linhas básicas de ação: racionalização dos gastos com serviços contratados na área

hospitalar privada, através de um novo modelo de controle de pagamento; regionalização e

hierarquização dos serviços ambulatoriais próprios; maior e melhor utilização da rede pública

de serviços básicos de saúde; e valorização do quadro de profissionais.

Essas e outras modificações permitiram um novo modo de gerenciamento nos hospitais

públicos, dinamizando seu funcionamento e incorporando as propostas defendidas pelos

profissionais engajados na luta do Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM),

Profissional dos Psicólogos do Rio de Janeiro) e Pedro Gabriel Delgado (representante dos médicos da

DINSAM).

Page 70: Tese de doutorado sobre a Rádice

70

que começaram, nessa época, a ocupar estrategicamente posições de coordenação e chefias

nos órgãos do governo. Nesse período ocorreram encontros entre gestores, coordenadores e

profissionais de saúde implicados com o aprimoramento das discussões das novas tendências

políticas no setor saúde e em criar novos caminhos para a assistência.

Ainda falando em saúde mental, a Rádice acompanhou o caso de Aparecido Galdino

Jacintho, líder religioso do interior de São Paulo que foi preso e enquadrado na Lei de

Segurança Nacional. A história de Aparecido, publicada na Rádice, nº 449

, começou nos anos

60, quando exercia a profissão de boiadeiro e ouviu uma voz lhe falar para cuspir em um dos

seus bois que estava doente. Assim o fez e o boi sarou. Aparecido não parou mais de ouvir a

voz que lhe falava sobre uma missão de fazer o povo voltar à religião. Iniciou suas curas

milagrosas que ganharam fama por partes do estado e do país.

Em 1970, foi noticiada pelo governo a construção da Barragem de Ilha Solteira, parte do

projeto desenvolvimentista da ditadura militar. A grande represa alagaria, e foi o que

aconteceu, a cidade de Rubinéia, onde Aparecido tinha seu sítio e havia construído uma

pequena igreja para seus seguidores.

A desapropriação dos residentes da pequena cidade e o aumento de impostos cobrados

dos cidadãos que habitariam a Nova Rubinéia foram as conseqüências da obra faraônica.

Aparecido falava para seu povo que a terra não poderia ser tributada, pois fora dada por Deus

aos homens e, segundo a lei Divina, não era permitido alterar o curso dos rios que pertenciam

aos peixes. A maior parte dos moradores da região, sem ter como reagir, concordou com as

desapropriações e foi removida do local, restando apenas Aparecido e seus seguidores. Para

enfrentar tal situação, ele organizou um exército, chamado Força Divina, e seus soldados

foram armados de rebenque – no caso de terem de se defender.

Em primeiro de outubro de 1970, quando a velha Rubinéia já estava praticamente

esvaziada, a casa de Aparecido era o único obstáculo ao projeto, ou o único lugar de

resistência. Na manhã desse dia, enquanto os religiosos rezavam, a casa foi invadida pela

polícia e todos foram presos.

Aparecido foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, criada em março de 1967 e

reafirmada com o AI-5. Efeito da Guerra Fria, a Doutrina de Segurança Nacional surgiu no

49 Colaboraram na Revista número 4: Joel Bueno, David Bocai, Antonio Peixoto, Paula Borsoi, Marcus Benedictus, Elaine Tavares, Maria Sonia Destri, Denise Louro, Maria Buschinelli, Jussara Lins, Ângela

Bernardes, Tereza Walcacer, Vera Bernardes, Ruben Fernandes, Leonid Streliaev, Roberto Dalmaso, Carlos

Pastana, Lucinda Freire, Maria Eugênia, Tetê Catalão, Leila Castilho, Ítalo Campos, Eduardo Ramalho, Regina

Gaio, Marcus Vinícius Cunha, Maria Clotilde Magaldi, Carlos de Oliveira, José Nóbrega.

Page 71: Tese de doutorado sobre a Rádice

71

Brasil inspirada no modelo norte-americano de combate ao comunismo, representado pela

antiga U.R.S.S. A divisão do mundo em dois blocos, ao final da Segunda Guerra, fez com

que a América Latina se aliasse ao Ocidente quase como fato “natural”. A ideologia da

segurança nacional tinha como finalidade afirmar o estado de guerra permanente. O combate

ao comunismo visava a eliminação total de uma doutrina considerada perigosa para a vida no

Ocidente e de todas as nações aliadas aos E.U.A.

O comunismo era igualado ao nazismo, identificando-o a uma política de guerra que

objetivava a conquista do mundo. Assim, a guerra fria era uma guerra política, econômica e

psicológica com o objetivo de impedir o avanço do comunismo sobre as novas democracias.

A guerra do Vietnã, o embargo político e econômico a Cuba, as várias intervenções nos países

da América Latina, como a Nicarágua, a Argentina, o Chile, o Peru, a Bolívia, o Uruguai, o

Brasil, etc., são exemplos dessa estratégia norte-americana de garantir a “democracia” contra

os comunistas.

Várias foram as estratégias para combater este inimigo. A elite das Forças Armadas

dedicava-se ao trabalho de informação. Identificar os “perigosos” que poderiam ameaçar a

paz no continente americano era tarefa precípua dos governos do Ocidente, através da

presença permanente em toda parte da vida social, nos locais de trabalho, nos transportes, nas

escolas, universidades, etc. A informação passou a ser a arma primordial, que contava com

uma estratégia: prisões rápidas com a aplicação de técnicas de tortura ou ameaças aos

familiares e amigos daqueles que estivessem sob a tutela dos militares.

Da formação dos militares, fazia parte o ensino da psicologia da guerra, os conteúdos

necessários para a identificação dos “suspeitos” e técnicas de convencimento, empregadas

para persuadir a população dos perigos dos “subversivos” ao desenvolvimento do país e à

vida cotidiana. Entraram em cena estratégias de organização da população, como migrações

forçadas (exemplo: a expulsão dos trabalhadores rurais de suas terras), inserção de disciplinas

obrigatórias em todos os níveis escolares como as de Moral e Cívica, censura aos órgãos de

imprensa e controle das opiniões emitidas sobre o modelo político e econômico imposto pelos

militares. Contavam também com a conquista da simpatia da população através da

propaganda do desenvolvimento e do progresso do país, utilizando chavões ufanistas que

preconizavam o Brasil como o país do futuro. Além disto, o sucesso inicial do “milagre

econômico”, elevando o nível de consumo da classe média, solidificou o apoio desta à

ditadura militar.

Page 72: Tese de doutorado sobre a Rádice

72

Os serviços de inteligência controlavam as informações sobre as prisões de pessoas

consideradas suspeitas e a divulgação de matérias com conteúdos distorcidos que cobriam os

fatos ocorridos no momento das prisões. Qualquer um, membro de organização de esquerda

ou não, de partido ou não, poderia ser considerado “perigoso”, qualquer escrito, qualquer

pessoa vista como opositora à ditadura era enquadrada como inimigo e deveria ser silenciada,

eliminada.

Segundo Comblin (1980), a Doutrina de Segurança Nacional girava em torno de quatro

preceitos: objetivos, segurança, poder e estratégias. Os objetivos nacionais eram garantir a

integridade territorial e nacional (afirmação da identidade do brasileiro como cordial e

pacífico, com grande capacidade de adaptação e improvisação, reforçando a moral religiosa

cristã); garantir a “democracia” (surpreendentemente palavra largamente utilizada pelos

militares) e a paz social e, ainda, garantir a soberania da nação. Para garantir tais objetivos,

era necessário utilizar a força do Estado contra todos que oferecessem perigo à segurança

nacional. Segundo tal lógica, à onipresença do inimigo, respondia-se com a onipresença das

estratégias de segurança nacional.

O que caracterizava a idéia de segurança nacional era a não-distinção entre ações

violentas e não-violentas. Em nome da segurança, as garantias constitucionais dos cidadãos

foram suspensas, sendo todos passíveis de suspeição e de sofrer as conseqüências. A

segurança nacional agia preventivamente, a fim de afastar possíveis ameaças. Toda a vida da

sociedade era alvo da segurança, que deveria controlar e vigiar todos os setores, culturais,

econômicos, ideológicos.

Os ideólogos militares afirmavam que o Estado tinha o poder de organizar a vida social

utilizando-se de ações para impor o que acreditavam ser o “bem-comum”. Para os militares, o

poder significava a capacidade de manipulação dos recursos naturais, da técnica, do trabalho e

a capacidade de impor a todos a vontade do Estado, seja através de quais instrumentos

fossem: leis, prestígio, pressão social, costumes ou sujeição (prisões, torturas, assassinatos).

Os autores militares distinguiam entre quatro poderes: o militar, o político, o econômico e o

psicológico, este último tendo como alvo a população e as instituições, e como componentes a

moral, a comunicação, a opinião pública e a religião. Convencidos de que esses elementos

eram determinantes na guerra contra o comunismo, os militares enfatizavam a necessidade e a

importância do controle sobre a educação, a demografia, a saúde, o trabalho, a ética, a

religião, a ideologia, a comunicação, o caráter nacional, a (des) politização da população, a

Page 73: Tese de doutorado sobre a Rádice

73

eficácia das estruturas sociais, os problemas urbanos etc., questões consideradas

“psicossociais”.

Por fim, toda ação deveria pressupor uma estratégia que envolvesse atividades civis e

militares num só corpo na defesa da nação. A idéia de guerra permanente ou absoluta contra

um inimigo interno e externo – que era o comunismo – fazia com que tudo se tornasse uma

questão militar. A divisão entre vida civil e vida militar foi suprimida. Todo cidadão era um

soldado que deveria zelar pela segurança da nação. Para implementar o projeto de

desenvolvimento nacional, os quatro preceitos da Doutrina de Segurança Nacional deveriam

ser guardados e defendidos por todos; sem segurança, ordem e estabilidade, não haveria

desenvolvimento.

De acordo com Comblin (1980), nas ditaduras impostas por grupos militares, como

aconteceu na América Latina nos anos 60 e 70, os generais afirmavam o caráter transitório

daqueles regimes, buscando justificar com isso a necessidade das ações truculentas que

garantiriam, segundo seus argumentos, a implementação de um projeto democrático

definitivo. Mas, como sabemos, não há democracia que seja imposta e garantida através de

violência do Estado e repressão.

A “democracia” virou a marca propagandeada pelos militares em oposição ao

comunismo. A democracia alardeada pelos militares não era neutra, tinha apoiadores,

inimigos e possuía uma doutrina rígida. A democracia dos militares incentivava a

participação do povo, desde que esta se limitasse a integrar e apoiar as tarefas definidas pelo

Estado – participar significava obedecer. E quem participava? Na verdade, a expressão

“povo” é mais uma figura de linguagem, pois esta participação restringia-se à camada da

sociedade considerada apta ou com mais capacidade de alavancar o progresso e o

desenvolvimento do país – a elite.

Outra característica dos regimes de segurança nacional era o controle das instituições,

implementando mudanças radicais como, por exemplo, o fechamento do Congresso Nacional

ou limitando, seu escopo, bem como criando novas instituições para legitimar e sustentar as

ações autoritárias. Em um Estado com tais características, a figura do presidente tem todo o

poder em suas mãos, exercendo-o a partir do controle da administração pública e dos serviços

(secretos) de informação.

Na “versão oficial” dada pelos policiais dos fatos ocorridos em Rubinéia, consta que o

grupo de Aparecido, armado de rebenque, resistiu à prisão com violência e, em um dos

Page 74: Tese de doutorado sobre a Rádice

74

cômodos, havia um estoque de bombas capaz de destruir a barragem em construção. Apenas

o líder missionário permaneceu preso. Submetido a inúmeros interrogatórios, foi

encaminhado ao Manicômio Judiciário de Franco da Rocha para a realização de exame

psiquiátrico que apresentou o diagnóstico de “esquizofrenia paranóide”.

Aparecido permaneceu no manicômio por oito anos. No número 4, lançado em 1977,

Rádice publicou uma longa entrevista com ele, realizada ainda na instituição, depois de um

mês de negociação com o diretor que só a autorizou se um psiquiatra e uma psicóloga da

“casa” acompanhassem o trabalho de Joel Bueno e Jussara Lins. Em 1979, o caso Aparecido

voltou às páginas da revista, através da pena de Marcos Veras que registrou o momento em

que era libertado.

Sua libertação decorreu de alguns procedimentos encadeados: ao final do ano de 1978,

devido à manifestação do Prof. José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo (USP),

a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo instruiu o advogado Mario Simas a

acompanhar o caso e, ainda, indicou dois psiquiatras, José Roberto Paiva e Richard Van

Curtis, peritos oficiais da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de São

Paulo, para realizar novo exame em Aparecido. No trabalho realizado por Simas, foi apurado

que Aparecido respondeu a dois processos criminais:

Na Justiça Comum, a Acusação atribuiu-lhe a autoria dos crimes de

“curandeirismo”, praticado por gestos e palavras, mediante

remuneração; de “resistência”, por haver se oposto à execução de ato

legal e, finalmente, de “lesões corporais leves” nas pessoas dos

policiais que o prenderam. Na Justiça Militar Federal, o procurador

imputou-lhe os delitos de haver incitado a desobediência coletiva às

leis e de haver constituído organização de tipo militar combativa.

(SIMAS, 1986, p. 300).

A Primeira Auditoria da Aeronáutica, baseada no primeiro parecer psiquiátrico, absolveu-

o dos possíveis crimes contra a nação, considerando-o inimputável. Mas, houve apelação à

Justiça Militar de São Paulo, argumentando que a criação de um exército demonstrava as

intenções “subversivas” do líder religioso, considerado um perigo para a segurança nacional.

O juiz militar determinou, então, seu recolhimento ao manicômio para cumprir medida de

segurança de dois anos, renovável segundo critérios médicos.

De 1973 a 1978, a conclusão apresentada no primeiro laudo psiquiátrico foi reproduzida

pelos médicos responsáveis pela avaliação de Aparecido, o que o manteve tanto tempo

Page 75: Tese de doutorado sobre a Rádice

75

internado. De acordo com depoimento de Joel Bueno, publicado no número 9 da Rádice,

Aparecido foi duplamente estigmatizado como subversivo e louco.

Finalmente, em junho de 1979, Aparecido foi libertado, mediante o novo laudo elaborado

pelos médicos Paiva e Van Curtis,

Erro médico? Erro judiciário? Mais importante que descrever a

odisséia de Galdino é pensar o que levou a Justiça Militar a encarcerar

este humilde benzedor tanto tempo. Salta aos olhos a conivência da

psiquiatria do Estado, aquela que cria seus loucos para justificar a

repressão. E os “doentes” são os rebeldes, aqueles que insistem em

manter uma identidade cultural em meio a transformações radicais em

suas vidas. [Aparecido] (...) talvez nem saiba que seus crimes, na

verdade, foram desafiar a propriedade privada enfrentando as

desapropriações causadas pela construção da represa e dar o „péssimo‟

exemplo às populações mais pobres da possibilidade de se organizar.

(VERAS, Marcus. Rádice, 2 (10) 1979, p. 17).

Em 2006, o cineasta Leopoldo Nunes reconstitui a história de Aparecido no filme “O

profeta das Águas”. Nunes nasceu em Santa Fé do Sul, cidade próxima à velha Rubinéia e

cresceu ouvindo essa história e outras que a população conta, ainda hoje, sobre Aparecido.

Até esse ano, Aparecido estava vivo, com oitenta anos, casado pela segunda vez e com nove

filhos.

Os acontecimentos apresentados acima foram os que, de alguma maneira, estavam na

ordem do dia no momento da emergência da Rádice, que nasceu no período da abertura

política e em meio aos debates sobre saúde mental. Esses acontecimentos marcaram os

sonhos e as ações de todos que inauguraram uma nova forma de contestação do instituído, da

repressão, da violência, das hierarquias, das cristalizações, dos modelos hegemônicos que

tentam colocar tudo no mesmo lugar, na mesma forma. Lutas que ocorreram nas

universidades, nas prisões, nos hospitais e nas ruas.

Page 76: Tese de doutorado sobre a Rádice

76

CAPÍTULO 2

ALTERNATIVO

Estava bastante perdida, tateando sentidos para

compreender isso que percebia na Rádice e

chamava de “alternativo”. Um dia, entre um

cafezinho e outro nas dependências do Conselho

Regional de Psicologia, conversando com uma

querida amiga sobre como andava a tese, ela me

disse, com toda sua doçura: “por que você não

pensa a revista como algo singular?” Ficam aqui

registrados meu agradecimento pela contribuição

valiosa e o grande carinho que tenho por ela, Maria

Beatriz Sá Leitão.

Ao longo da elaboração desta tese, tive a oportunidade de entrevistar diferentes

profissionais ligados direta ou indiretamente à Rádice. Havia uma necessidade de determinar

um lugar para a Revista, não só no campo da psicologia, mas em relação aos outros espaços

que ocupou. Como definir em que tipo de publicação alternativa ela estava inserida?

Cultural? Político? Percebi que não seria possível classificá-la através da memória daqueles

com os quais conversei, devido às múltiplas referências e idéias que cada um guarda em

relação à Rádice. Também as classificações fornecidas pela historiografia sobre as

publicações alternativas não me serviam, porque Rádice caberia em todas.

Decidi, então, permanecer com a classificação que a própria Revista se atribuiu: “revista

de psicologia”. A partir do seu segundo ano de vida, marcado pela publicação do número 5,

Rádice assume essa especificidade. E o fato de se atribuir tal definição, em nada reduz sua

Page 77: Tese de doutorado sobre a Rádice

77

dimensão política, mas apenas explicita outra forma de se pensar a psicologia. Como já

apontado anteriormente, a Revista não foi uma publicação de divulgação dos conhecimentos

científicos da psicologia, ou um órgão informativo das instituições de pesquisa, nem

tampouco propunha a simplificação ou redução da psicologia através de um linguajar “mais

acessível” à população.

O que Rádice realizou, de fato, foi se entregar à tarefa de coletivizar novos olhares e

reflexões sobre o pensamento, a psicologia, a formação universitária “psi”, a política, a ética,

etc. Nela não é possível demarcar os limites dos saberes através de seus objetos bem

definidos. Os saberes estão inevitavelmente implicados, misturados, na própria escolha dos

conteúdos que apresenta. Ao invés de privilegiar o campo das ciências ou de falar da

psicologia a partir do alto do Panteão, ela tanto questiona as práticas consolidadas quanto

incorpora questões aparentemente distantes dos psicólogos, instaurando a dúvida e

promovendo o desamparo. Retira tais saberes dos lugares inalcançáveis e os insere no

cotidiano dos hospitais psiquiátricos, dos centros de macumba, dos porões das prisões, dos

debates sobre sexo, enfim, no mundo comum, aquilo que é dividido, coletivizado, como

define Negri (2003).

Não há como identificar Rádice a não ser com ela mesma, sua expressão singular no

mundo, sua potência ao provocar o estranhamento das formas de se pensar a psicologia e tudo

que acontecia no universo do qual a revista fazia parte. Quando passa a se intitular “revista de

psicologia” não é, necessariamente, para se inserir em um campo delimitado, mas para

provocar o questionamento: como uma publicação de psicologia trata de loucura,

manicômios, militância, sexo, práticas religiosas, costumes e o que a Psicologia, com “P”

maiúsculo, tem a ver com tudo isso? Esta é a pergunta com que a Revista provoca o leitor no

momento em que ele abre suas páginas e se depara com um universo “radicecalmente”

distinto daquele das instituições e publicações oficiais.

Os autores que tratam desse período da história da psicologia no Brasil localizam-na em

um campo chamado “alternativo”. Este campo é compreendido como aquele que se

contrapõe ao que era tido como oficial, reconhecido como prática institucionalizada e

legitimada pelas instâncias de regulação, como, por exemplo, a formação universitária ou o

Conselho Federal de Psicologia, criado em 1971.

Neste capítulo, apresento movimentos chamados, assim como Rádice, de alternativos.

Mas, alternativos a quê? Geralmente, “alternativo” refere-se àquilo que não faz parte do que é

tido como oficial, ou é relacionado com algo excêntrico. Esses sentidos carregam inúmeros

Page 78: Tese de doutorado sobre a Rádice

78

problemas, dentre eles, a pressuposição de uma vida comum ordenada e que todos a

experimentam da mesma maneira, sem diferenças. Quando a diferença emerge, é considerada

como um desvio – de comportamento, por exemplo – e torna-se alvo das ações de

especialistas como psicólogos, psicanalistas, médicos ou da polícia. O desvio e a diferença

tornam-se objeto das ações preventivas e de controle.

Pretendo assinalar a singularidade desses movimentos, desviantes, impuros,

contaminados pelo mundo, que afirmaram outras maneiras de ser, outra percepção das coisas.

Guattari (1996) utiliza o termo “singularização” para designar esses “movimentos de protesto

do inconsciente contra a subjetividade capitalística” (p.45), afirmando que o protesto contra o

que foi institucionalizado é o traço comum deles.

Isso se sente por um calor nas relações, por determinada maneira de

desejar, por uma afirmação positiva da criatividade, por uma vontade

de amar, por uma vontade de simplesmente viver, ou sobreviver, pela

multiplicidade dessas vontades. É preciso abrir espaço para que isso

aconteça. O desejo só pode ser vivido em vetores de singularidade. (p.

47)

Seguindo as idéias do autor citado acima, a singularização implica processos de

diferenciação e de produção de novas subjetividades, processos autônomos, automodeladores,

que constroem suas próprias referências práticas e teóricas. Essa experiência libertária faz

com que tenham a capacidade de analisar sua situação no mundo e o que se passa em torno

deles. Tal capacidade lhes dá a possibilidade de criação (ou de autoinvenção).

Mas esses processos também têm seus pontos de captura: ou são absorvidos pelo

capitalismo, ou são implodidos por ele. De acordo com Guattari (1996), um processo de

singularização afirma sua posição ao se agenciar com outros tão singulares quanto, não para

criar uma identidade entre eles, mas para afirmar suas precarização e multiplicidade. O autor

também chamou tais processos de “revoluções”, que correspondem à produção de algo que

não existe, algo novo e inusitado. E é isso que pretendo afirmar.

São fontes essenciais deste capítulo os números 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da Revista, publicados

entre 1977 e 1979. Esse critério baseia-se em dois aspectos, sendo o primeiro a afirmação da

Rádice no universo “psi”, a partir do fato de assumir-se “de psicologia”. O segundo é a

criação de novas estratégias editoriais, como a exploração de um tema exclusivo em cada

edição: no número 5, macumba; no número 6, tortura; no número 7, os hospitais psiquiátricos

brasileiros; no número 8, sexo; no número 9, a primeira matéria internacional, reportando as

transformações no campo da psiquiatria italiana implementadas por Franco Basaglia; e, por

Page 79: Tese de doutorado sobre a Rádice

79

fim, no número 10, a continuação da reportagem internacional e uma matéria sobre os

problemas políticos e sociais que a Nicarágua enfrentava naquele momento.

2.1. Rádice – Revista de psicologia

No primeiro ano da Revista, o trabalho foi intenso e bastante instável. Houve um

momento no qual Carlos Ralph e seus colaboradores pensaram em abandonar a proposta

devido à sobrecarga de trabalho e ao baixo retorno obtido, não apenas financeiro, mas

também com relação a pouca receptividade nos meios “psis” e entre os jornalistas. No

entanto, o prazer que encontravam naquilo que faziam e algumas demonstrações de carinho e

críticas enviadas pelos leitores contribuíram para a manutenção da Revista.

Ao lançar o número 4, Rádice completava um ano de vida contabilizando a chegada de

novos colaboradores, a ampliação da distribuição com a venda em bancas de jornais, a

desconfiança de alguns setores da imprensa alternativa, que olhavam de través para

psicólogos que faziam “jornalismo da psicologia”, a falta de anunciantes e, sobretudo, uma

receptividade crescente entre os leitores expressa através de cartas, artigos e matérias, além do

aumento do número de assinantes, que proporcionou dobrar a tiragem inicial.

Em síntese, esse novo quadro proporcionou uma organização muito mais sólida da

Revista. A seção “Geralmente” tornou-se um espaço importantíssimo de divulgação e

denúncias; houve a criação de novas seções como a de cartas, intitulada “Opinião” e a

“Psicologia nos estados” – destinada à publicação das informações enviadas por

colaboradores de outros estados brasileiros. Deve-se destacar ainda a seção “Teoria/debate”,

inaugurada com o famoso texto de Luiz Alfredo Garcia-Roza: “A psicologia como espaço de

dispersão do saber”, publicado no número 4. Esta seção tinha como objetivo promover um

grande debate sobre a cientificidade da psicologia, e apareceu em mais três edições. No

número 5, para dar continuidade a seu propósito inicial, foi publicado um texto de Gregório

Baremblitt: “As psicologias, a ciência e a travessa da resignação”; no número seguinte, José

Nóbrega publicou “Ciência, critérios e obstáculos”; e, no número 7, Alex Polari de Alverga

assinou o último artigo da série, intitulado “Tortura”. A relevância das questões abordadas

em “Teoria/debate” motivou a criação da revista Rádice Teoria/Crítica, lançada em 1979, e

que contou apenas com uma única edição.

Page 80: Tese de doutorado sobre a Rádice

80

Rádice chegou à maturidade, afirmando-se nacionalmente ao assumir um perfil editorial

mais definido e consistente. Ao impacto das denúncias do primeiro momento, somava-se,

então, o aprofundamento das questões levantadas e a proposição de alternativas.

Por razões comerciais, a Revista se despediu da Editora Ground Informações em 1977 e

passou a ser editada pela Bagaço, editora do jornal alternativo editado pelo jornalista Ronaldo

Lapa. Já no editorial do número 5, lançado em 1978, Carlos Ralph anunciava a Rádice

Editora, promessa para a próxima edição. Mas por questões burocráticas os números 6 e 7

continuaram sendo editados pela Bagaço. O número 8 foi co-editado pela Bagaço e pela

Editora Raízes Psicologia e Informação Ltda. que, finalmente, assumiu a edição da Rádice do

número 9 em diante.

Ainda no editorial do número 5, Ralph lança críticas à apatia reinante no meio “psi” em

1977. Os poucos congressos realizados naquele ano não trouxeram novos debates,

restringindo-se ao laureamento dos “velhos medalhões” da psicologia. As discussões

importantes permaneciam restritas a pequenos grupos, com destaque para o movimento pela

formação do Sindicato dos Psicólogos do Rio de Janeiro, que mobilizou um expressivo

número de profissionais em torno do projeto, concretizado em 1980, como abordarei em

detalhes mais adiante.

A partir do número 6, iniciou-se uma campanha pela organização de grupos sucursais da

Rádice, cuja função era a remessa de informações sobre a psicologia em diferentes estados

brasileiros, inserindo novos temas e ampliando o debate. O primeiro desses grupos foi

organizado na cidade de Pelotas (RS), seguido pelo grupo do estado da Paraíba. E já se

noticiava movimentos pela criação de outras sucursais em Fortaleza, Belo Horizonte, Juiz de

Fora, Uberaba, Salvador e no estado de São Paulo, na capital, em Santo Amaro, Piracicaba e

Dois Córregos50

.

Nesse momento, 1978, a grande imprensa começava a tratar de um assunto silenciado até

então no Brasil: a tortura. Embora não chegasse ainda à TV e ao rádio, o tema da violência

institucional ganhava as páginas dos “jornalões”, seguindo os passos de veículos alternativos

como a Rádice. 50 Os primeiros correspondentes de Pelotas eram Cláudio Luiz Gastal, Álvaro Luiz Moreira Hypólito, Jorge Luiz

Ferraz e Fernando Pereira Lima. Os colaboradores da Paraíba pertenciam à UFPB e o grupo era formado por

Romero Antônio, Salomé Andrade, Ana Guedes, Virgínia, Elida, Joselí, Maúde, Ana e Cybele. Fortaleza: Maria

Lílian Coelho de Oliveira. Belo Horizonte: Marcos Vieira Silva, Eduardo Martins de Lima, Humberto Verona, Diretório Acadêmico FUMEC. Juiz de Fora: Eneida de Souza Lopes. Uberaba: Eliane Greice. Salvador: Lígia

Maria Portela da Silva. São Paulo: Tâmara Vivian Katzenstein. Santo Amaro: Adelina Okiyama. Piracicaba:

Ernesto J. G. Trondle. Dois Córregos: José Luiz Penha Carballeda. (“Grupos sucursais a todo vapor”, Rádice, nº

8, dezembro de 1978: 6).

Page 81: Tese de doutorado sobre a Rádice

81

A revista publicou um exemplar – nº 6 – exclusivo sobre o tema da tortura no Brasil,

explorando e analisando historicamente as diversas formas de violência institucional contra os

índios no período do descobrimento e contra os negros tornados escravos no processo de

colonização51

. A revista também tratou das denúncias de prática de tortura contra opositores

políticos dos regimes autoritários e das histórias de ex-presos políticos que se desestruturaram

psiquicamente devido à violência sofrida, inclusive os que chegaram ao suicídio, como foi o

caso de Frei Tito de Alencar.

Rádice chama a atenção para a naturalização e banalização da tortura e violência nas

delegacias, nas ruas, nas relações familiares, nos hospitais, etc. No número 7, a matéria

principal “abria os portões” dos hospitais psiquiátricos brasileiros, relatando as condições de

vida das pessoas neles reclusas e denunciando a violência justificada como forma de

tratamento, tema já explorado no primeiro capítulo deste trabalho.

A publicação do número 7 marcou os dois anos de vida da Revista. No editorial, Ralph

relembra o início da publicação e define o que sempre foi o objetivo da Rádice como veículo

de jornalismo da psicologia: “reportar e discutir os principais fatos e acontecimentos de sua

área”52

. Agora, dois anos depois, uma nova questão se colocava para todos: “de que

psicologia devemos tratar?”53

.

Um grande desafio se impunha: ao problematizar os “manuais psis”, tornava-se

necessário inventar novas práticas, e Rádice participou intensamente desse processo ao

afirmar que a psicologia tinha a ver com a violência e com a tortura institucionalizadas, que

tinha a ver com macumba e as diversas expressões religiosas, com sexo, com a mobilização

pela abertura política e o fim da Ditadura, não só no Brasil como em todos os países nos quais

a população era submetida a regimes autoritários.

Destaca-se o número 8, todo dedicado ao tema “Sexo”, abrindo o debate sobre políticas

do corpo no cotidiano e as diversas formas de experimentar a sexualidade, a partir das

contribuições de Wilhelm Reich. No 9, a Revista publicava sua primeira matéria

internacional, “Telhados vermelhos”, reportagem de Valquíria Coelho da Paz sobre as

transformações radicais pelas quais passava a assistência psiquiátrica na Itália54

, a partir das

idéias de Franco Basaglia. Valquíria passou 15 dias do mês de setembro de 1978 no antigo

51 Matéria “Os efeitos da tortura”, por Carlos Raph L. Viana e Elias Fajardo da Fonseca, Rádice nº 6, junho/julho de 1978 , pp. 12-20. 52 Editorial Radice nº 7, stembro/outubro de 1978. 53 Editorial Radice nº 7, stembro/outubro de 1978. 54 Tema já apresentado no primeiro capítulo.

Page 82: Tese de doutorado sobre a Rádice

82

hospital psiquiátrico de Arezzo para conhecer o cotidiano e as novas experiências que ali

aconteciam. Por ser bastante extensa, a matéria foi subdividida, só sendo concluída no

número seguinte (10) da Revista. Neste foram incluídas matérias como “Relatos de guerra”,

escrita por Lúcia Murat e Paulo Adário, sobre as questões políticas na Nicarágua55

, e uma

nota publicada na seção “Geralmente”, assinada pelo jornalista Marcus Veras, sobre o

desparecimento da psicóloga argentina Beatriz Perosio, à época, presidente da Associação de

Psicólogos de Buenos Aires (APBA) e da Federação de Psicólogos da República Argentina56

.

2.2. Reich e Sexo na Rádice

Acontece que um militante político e um psicanalista

se encontrem na mesma pessoa e que, ao invés de

ficar separados, não parem de se misturar, de

interferir, de comunicar, de se tomar um pelo outro.

É um acontecimento raro desde Reich.

(Deleuze, 1974)

O pensamento de Wilhelm Reich57

ganhou destaque na Rádice a partir, especialmente, do

número 8, cuja capa mostrava um casal azul fazendo sexo58

e esta palavra logo abaixo em

letras amarelas. Segundo Carlos Ralph, seu contato com as idéias de Reich ocorreu na década

de 1960, no caldeirão das transformações pós-68. “Psicólogo, comunista e que pregava a

55 A matéria sobre a Nicarágua foi feita meses antes de julho de 1979, data da vitória da revolução Sandinista

que depôs o ditador Anastásio Somoza Debayle, que governou a Nicarágua com mão-de-ferro durante 45 anos.

Lúcia Murat e Paulo Adário colheram depoimento de um antigo militante expulso da Frente Sandinista de

Libertação Nacional (FSLN), acusado de traição, porém, de acordo com a matéria, esse militante foi preso e sob

tortura foi obrigado a assinar um termo de confissão. Este documento foi divulgado em toda a imprensa.

(Rádice, nº 10, julho/agosto de 1979). 56 Esta matéria foi publicada no nº 11, novembro/dezembro de 1979, que será discutido no capítulo 3. 57Nascido em 1897, na região que na época era posse do Império Austro-Húngaro, em uma família abastada de

proprietários judeus, Reich concluiu seus estudos de medicina na Universidade de Viena, em 1922. Interessado

pelas questões relacionadas com a sexualidade, começou a freqüentar o Seminário de Sexologia da Faculdade de

Medicina de Viena, e no fim do ano de 1919, foi eleito diretor desse seminário. Através de sua função de diretor,

teve o primeiro contato com Freud e ficou impactado com as idéias do médico austríaco sobre sexualidade e o conceito de pulsão (WAINEMANN, 2002). 58 O original dessa imagem é uma foto de uma cena do filme “W.R. Mistérios do Organismo”, do cineasta sérvio

Dusan Makavejev, lançado em 1971. O filme redescobriu a obra de Wilhelm Reich para as novas gerações e

encampou suas teorias sobre sexualidade. Devido ao escândalo provocado, o filme foi banido da Iugoslávia (a

Sérvia fazia parte deste país à época), bem como seu diretor que viveu no exílio até 1988. Em 1971, “W.R.

Mistérios do Orgasmo” participou da seleção de filmes do Festival de Cannes. .

Page 83: Tese de doutorado sobre a Rádice

83

revolução sexual era tudo que um jovem revolucionário estudante de psicologia precisava

para incendiar o mundo e acessar as moças...”59

.

Carlos Ralph transformou-se em terapeuta e importante divulgador do pensamento de

Reich no Brasil. Esse envolvimento com a obra reichiana foi expresso na Rádice, que, ainda

hoje, é reconhecida como importante instrumento de divulgação do pensamento de Reich e

também das terapias corporais no Brasil.

A trajetória de Reich foi turbulenta e polêmica. De acordo com Mezan (1995), ao buscar

soluções próprias para resolver dificuldades da prática terapêutica, Reich, mesmo não sendo

reconhecido pela maioria dos psicanalistas ligados à teoria freudiana, trouxe significativas

contribuições à psicanálise, entre elas, a análise das resistências, da transferência e

contratransferência. Wagner (1995) aponta outras contribuições, citando como exemplo os

estudos psicanalíticos de determinados fenômenos sociais e políticos, como o fascismo.

Em 1924, Reich ingressou na Sociedade Psicanalítica de Viena60

e tornou-se o primeiro

assistente de Freud na Policlínica Psicanalítica, ocupando o cargo de diretor desta instituição

entre 1928 e 1930. Em 1927, tornou-se membro do Partido Comunista Austríaco e fundou em

Viena a Sociedade Socialista de Informação e Investigação Sexuais, que tinha como objetivo

levar informações sobre sexo aos jovens do partido. Este serviço foi estendido aos cidadãos

de Viena, através da criação de centros de higiene sexual.

Segundo Weinmann (2002), nesses centros era oferecido tratamento psicanalítico para

aqueles que não tinham condições de pagar, e isso significava para os jovens analistas

discípulos de Reich, um trabalho inovador. Reich instaurou a prática da apresentação de

seminários sistemáticos, a fim de promover o debate sobre os casos mal sucedidos,

procurando desvendar as razões do insucesso terapêutico. Foi nesses seminários que

desenvolveu sua técnica de “análise de caráter”, afirmando o caráter como o principal enfoque

de análise pelo psicanalista, contrariando os pressupostos freudianos. Reich acompanhava

Freud em suas idéias sobre as pulsões, mas perguntava-se sobre a fonte de energia das

neuroses e qual seria o destino das quantidades de excitação na produção das neuroses.

59 VIANA, Carlos Ralph Lemos (Depoimento). Rio de Janeiro, 2007. 60

Em 1902, Freud e seus alunos criaram a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras – uma referência ao dia no

qual se encontravam para desenvolver seus estudos sobre a psicanálise. Foi a primeira sociedade de psicanálise criada no mundo e, em 1908, transformou-se na Sociedade Psicanalítica de Viena. A Associação Psicanalítica

Internacional (International Psychoanalitical Association – IPA) surgiu em 1910, a partir do segundo Congresso

Internacional de Psicanálise, realizado em Nuremberg. Carl Gustav Jung foi o primeiro presidente da IPA.

(ROUDINESCO, 1995; GAY, 1989)

Page 84: Tese de doutorado sobre a Rádice

84

Em 1930, Reich mudou-se para Berlim e lá criou o Movimento para Economia e Política

Sexual, atuando no interior do movimento operário, com um grande número de jovens,

médicos e professores61

. Organizavam festas e sessões informativas sobre educação sexual

cujos principais tópicos eram a habitação, a higiene sexual, a contracepção e o aborto,

questões com conotações políticas radicais para a época. Esse movimento transformou-se na

Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária – SEXPOL.

Esse trabalho havia sido desenvolvido dentro do Partido Comunista austríaco, como já

referido, e mostrou-se eficaz em seus propósitos tanto dentro quanto fora do partido. Porém,

pressões políticas fizeram com que Reich deixasse a Áustria e recriasse seu projeto em

Berlim.

Um fato que marcou a trajetória de Reich foi a ascensão do partido nazista. Wagner

(1995) argumenta que a perseguição nazista à psicanálise começou antes mesmo da ascensão

de Hitler ao poder em 1933. Já era ponto de discussão do movimento psicanalítico as

conseqüências de tais perseguições e o envolvimento político de seus pares. O Instituto de

Psicanálise de Berlim, fundado em 1920, congregava analistas considerados “rebeldes”, entre

eles Eric Fromm, Melaine Klein, Otto Fenichel e o próprio Reich. O grupo de Berlim,

distante da batuta de Freud, teve a oportunidade de se desviar da sua rigorosa disciplina.

Wagner (1995) afirma que tanto em Viena quanto em Berlim a luta era pela

sobrevivência da psicanálise, mas no primeiro grupo optou-se pelo isolamento político e

defesa da “neutralidade da ciência” conforme idealizada pelo próprio Freud; no segundo

grupo, diante da ameaça clara e evidente, a discussão era como enfrentar a repressão nazista.

Nesse embate, de acordo com o autor, o grupo de Berlim dividiu-se: uma parte reagrupando-

se sob a liderança de Fenichel, que propunha uma oposição velada ao grupo de Viena, para

não romper com a instituição; enquanto a outra parte, fiel a Reich, sustentava a dissolução do

Instituto de Berlim e a oposição declarada a Viena. A estratégia de Fenichel prevaleceu,

sendo a de Reich considerada demasiadamente ingênua. Em documento de maio de 1937,

Fenichel reconheceu que havia se enganado e que teria sido melhor seguir as sugestões de

Reich.

Judeu, comunista e psicanalista – Reich representava um grande perigo naquele

momento. Russo (1993) destaca a importância dessas características para os seus seguidores,

indicando o caráter “marginal” e “subversivo” da teoria e da prática reichianas. Em 1933,

61 Em 1929, Reich aderiu ao Partido Comunista Alemão.

Page 85: Tese de doutorado sobre a Rádice

85

Reich foi expulso do Partido Comunista e, em 1934, da IPA – talvez por falar sobre sexo com

os comunistas e sobre política com os psicanalistas:62

tenho a desgraça de ser um analista extremamente ortodoxo, e, ao

mesmo tempo marxista – tudo numa só peça – o que, no nosso mundo

de hoje, colocou algumas desagradáveis verdades. (trecho de carta

escrita por Reich, datada de 1 de maio de 1933, apud ESCOBAR,

1974).

Fugindo da perseguição nazista, Reich passa pela Dinamarca, Suécia e Noruega –

momento no qual se afasta definitivamente da ortodoxia psicanalítica, postulando a noção de

“energia vital” (orgônio), responsável pelo bem-estar e também pelo adoecimento dos

organismos. Para Wagner (1995), pode-se pensar em dois momentos do pensamento

reichiano: o primeiro, quando intitulava sua teoria de economia sexual, e o segundo, quando

passou a designá-la de orgonomia.

Até a descoberta da energia orgônio, Reich intitulava sua teoria

científica de economia sexual. Seu método de investigação era o

pensamento funcional e sua prática era designada vegetoterapia

carátero-analítica. Posteriormente, com a descoberta do orgônio,

Reich adotou o termo orgonomia para designar a nova ciência da qual

a economia sexual tornou-se um dos campos de estudos. O método

permaneceu o mesmo, na forma e no conteúdo. A prática

vegetoterapêutica recebeu incrementos de tratamentos orgonoterápicos

e passou a ser designada orgonoterapia. (p. 21)

Reich percebia na economia sexual o elo entre a psicanálise e a orgonomia. Colocando

em evidência o corpo, identificou nele uma energia denominada de bioenergia ou orgone, que

circularia no meio ambiente e dentro de nós. Ele é considerado o autor que estabeleceu as

bases das terapias corporais, mas, como advertem os estudiosos desse campo, nem todas as

terapias corporais podem ser relacionadas como reichianas.

Ao analisar as continuidades e descontinuidades entre Freud e Reich, Wagner (1995)

afirma que o segundo parte de duas condições precípuas estabelecidas por Freud para

implementar seus estudos: a hipótese do inconsciente como uma estrutura dinâmica e a

necessidade de legitimação da psicanálise como ciência natural. Reich buscou na Física os

62 Hipóteses à parte, esses dois processos de expulsão são ainda bastante obscuros. Existe uma documentação –

cartas trocadas entre Reich e Freud – guardada sob sigilo absoluto pela IPA, e a ela nem mesmo os institutos

relacionados a Reich têm acesso. Alguns autores que estudam esses acontecimentos acreditam que as cartas podem conter material importante para o esclarecimento dos fatos relacionados à expulsão de Reich da

instituição psicanalítica. De acordo com informações colhidas através dos depoimentos feitos para esta tese, os

“arquivos de Reich” foram abertos em 2007 e estão disponíveis para pesquisadores que se interessarem pelo

assunto. Como este trabalho não tem por finalidade explorar tal temática, não busquei essas informações.

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86

parâmetros que necessitava para comprovar cientificamente suas descobertas. Preocupava-se

em demonstrar a existência física da energia das pulsões. Isso se tornou fundamental, porque

“para Reich, a função sexual não é apenas uma função importante, mas, antes disso, é a

função principal em torno da qual gravita toda a vida do sujeito, e a partir da qual resulta a

saúde ou a patologia” (p. 94).

Em 1933, na Dinamarca, Reich publica o livro A psicologia de massa do fascismo, com

sua análise sobre o nazismo e o que considerou a grande derrota dos operários alemães e de

todas as forças que lutavam pela liberdade. Define o que denominou de “psicologia de

massa”, diferenciando-a da “psicologia burguesa”.

Para Reich (1974), a psicologia burguesa respondia às questões relacionadas ao

indivíduo, particularizando-o, resumindo os problemas de um coletivo a um distúrbio no

comportamento de um indivíduo. Um dos interesses da psicologia burguesa era estudar o que

motivava o indivíduo em suas ações. Já a psicologia de massas debruçava-se sobre a vida

cotidiana dos trabalhadores, a ideologia das massas e o fator subjetivo na história. A questão

que se colocava era: por que as massas atendem ao chamado dos líderes autoritários?

O que Reich chamou de psicologia das massas fundamentava-se na economia sexual,

construída sobre os alicerces sociológicos de Marx e os psicológicos de Freud. A economia

sexual teria por função se perguntar o motivo da sexualidade ser reprimida pela sociedade e

recalcada pelo indivíduo. Na perspectiva reichiana, a sexualidade deveria ser tratada como

uma política pública, politizando a vida íntima e privada. Isso ocorreria a partir do momento

em que se pudesse falar livremente sobre sexo com todos os cidadãos, especialmente com os

jovens, ouvindo seus conflitos e dificuldades em suas relações e não impedindo tal expressão.

“A juventude tem mais que um simples direito à „informação‟, ela tem plenamente direito à

sua sexualidade” (REICH, 1975, p. 21).

As dramáticas rupturas com a IPA e o Partido Comunista, a exaustiva perambulação pela

Europa, os ataques a sua obra e seu isolamento político levaram Reich a desembarcar nos

E.U.A. Logo foi convidado por um dos membros da Sociedade Americana de Medicina

Psicanalítica, Theodore P. Wolfe, para lecionar na New School for Social Research, em Nova

Iorque. Em 1942, criou o Instituto Orgônio e um meio para divulgar suas pesquisas: o

International Journal of Sex-Economy and Orgnone Research. Seus propósitos políticos

foram aos poucos deixados de lado, não sem uma crítica feroz aos comunistas.

Progressivamente, abandonou as idéias marxistas, dedicando-se inteiramente às pesquisas

biofísicas. Suas descobertas e estudos, especialmente sobre o orgônio, são tomadas pelos

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87

agentes do F.B.I. como atividade de espionagem; seu trabalho é colocado sob investigação; e

ele acaba sendo acusado de subversão.

Durante toda a década de 1940 até sua prisão em 1957, Reich dedicou-se às pesquisas e

tentativas de aplicar suas descobertas, lançando instrumentos como os “acumuladores de

orgones”, que acreditava realizarem o diagnóstico e a terapêutica das biopatias, como, por

exemplo, o câncer e o que chamou de cloudbuster, através do qual pretendia provocar chuva

ou impedir sua continuidade (RUSSO, 1993). Por atribuir ao “acumulador de orgônio” a cura

do câncer, foi processado pela Food and Drug Administration (FDA), em 1954, sendo

condenado e preso três anos mais tarde. Após cumprir oito meses de prisão, faleceu vítima de

ataque cardíaco, em novembro de 1957.

Essa exaustiva cronologia serve para compreender um pouco a vida conturbada de Reich

e para situar sua importância na vida cultural de boa parte do século XX e no

desenvolvimento das terapias corporais, ainda mais porque não é autor comum nos curso de

psicologia. São muitos os elementos que fizeram com que se tornasse um dos mais influentes

autores nas transformações de 1968. Por exemplo, em um documento produzido pela

Internacional Situacionista63

durante a gestação do maio francês, intitulado “A miséria do

meio estudantil – considerada em seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e,

mais particularmente, intelectual, e sobre alguns meios para remediá-la”, escrito por

Mustapha Khayati e revisado por Guy Debord, referenciando-se em Reich, os militantes desse

movimento faziam críticas ao comportamento dos estudantes que reproduziam as mesmas

expressões de sexualidade da sociedade conservadora e tradicional que contestavam.

A IPA considerava inaceitável a ênfase de Reich nas bases sociais e econômicas para a

prática psicanalítica. Para os seguidores de Freud, Reich cometeu a heresia de afirmar que a

psicanálise só seria possível se apoiada em um forte movimento político, elaborando uma

crítica à família nuclear burguesa – segundo ele (1976), “fábrica de ideologias autoritárias e

63 A Internacional Situacionista (IS) foi criada em 1957, a partir da fusão de três grupos – Internacional Letrista,

Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista e Associação Psicogeográfica de Londres. Seus

fundadores foram Giuseppe Pinot Gallizio, Piero Simondo, Elena Verrone, Michele Bernstein, Guy Debord,

Asger Jon e Walter Olmo. Entendiam-se como uma “frente revolucionária na cultura”, debatendo sobre temas

como arte e cultura, tendo nos surrealistas o alvo de suas críticas mais ácidas. Em uma segunda fase da IS,

ocorre uma transformação, endereçando suas críticas aos intelectuais de esquerda chamados de “acadêmicos” e

contemplativos, afirmando a urgência de agir para transformar a realidade. A IS teve participação ativa nos

conselhos de ocupação organizados na Sorbonne, em maio de 1968. Um dos seus principais líderes, Debord,

participou do grupo Socialismo ou Barbárie, liderado por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. Durante o maio francês, vários textos foram pichados nos muros de Paris, sendo alguns atribuídos à IS, tais como: “sejam

realistas, exijam o impossível”; “não trabalhe jamais”; “viva sem tempo morto”; “goze sem entraves”. A IS se

autodissolveu em 1972. (Situacionista: teoria e prática da revolução – Internacional Situacionista. São Paulo:

Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna.)

Page 88: Tese de doutorado sobre a Rádice

88

estruturas conservadoras” (p. 111) – e seu principal efeito: a repressão sexual, que tinha como

conseqüência a integração passiva do indivíduo na massa apolítica apoiando a ordem

autoritária.

O comitê executivo do Partido Comunista alemão via a influência do pensamento de

Reich na organização juvenil comunista – a noção de liberdade sexual e o encorajamento de

maior autonomia – como uma ameaça. Reich (1976) lançava críticas à constituição de grupos

sectários criados no movimento revolucionário que reivindicavam, todos, o privilégio de

serem os “únicos” e “verdadeiros” herdeiros do “autêntico marxismo-leninismo” (p. 65). De

acordo com sua análise, essa fragmentação e a burocratização que se instalou dentro do

Partido Comunista enfraqueceram o movimento operário, impedindo a realização dos

objetivos revolucionários que levariam à expropriação do capital e à socialização dos meios

de produção, instituindo a democracia do trabalhador. Afirma que seria preciso criar novas

formas de dar conta dos problemas que aconteciam naquele momento e, ainda, novas formas

de influenciar as massas, que considerava apolíticas.

Um dos fatores do fracasso do socialismo, segundo Reich, foi a ausência de uma

psicologia política marxista. Essa lacuna foi a arma do fascismo. Reich perguntava “por que

as organizações se esclerosaram, (...), e por que as massas agiram contra o seu propósito

apoiando Hitler?” (1976, p. 10). Enquanto no movimento operário eram realizadas vastas

análises históricas e exposições econômicas sobre os conflitos imperialistas, as massas

entusiasmavam-se pelo nacionalismo fascista, que promovia motivações afetivas. “Não

estaremos a ver coisas através das lentes do „especialista‟?”, perguntava Reich (1976, p. 12).

Para ele, era importante associar “o que se passava nas „cabeças‟, ou na estrutura mental dos

homens (condições subjetivas)” às análises objetivas do desenvolvimento das forças

produtivas sobre a sociedade (1976, p. 12)

Em sua análise, francamente mecanicista, Reich afirmava que o desenvolvimento das

máquinas teria um funcionamento idêntico à estrutura psíquica dos homens, que o fruto do

trabalho representaria o funcionamento humano. Seria inconcebível a economia sem a

estrutura emocional humana. Não há como analisar as relações humanas unilateralmente, o

que levaria ao psicologismo (somente as forças psíquicas fazem a história) ou ao

economicismo (somente o desenvolvimento técnico é que faz história). Buscava compreender

melhor as inter-relações entre grupos de pessoas, natureza e máquina, pois elas funcionariam

como unidades, por estarem condicionadas umas às outras. Não há como dominar o processo

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89

cultural se não se compreender que no âmago dele está a estrutura sexual. Esse processo,

segundo ele, decorre da necessidade sexual, e está voltado para a preservação da vida.

Só por intermédio da cabeça do homem, da sua vontade de trabalho,

da sua procura de alegria de viver, em resumo, da sua existência

psíquica, que nós criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi

tudo isto que esqueceram há muito os “marxistas” que degeneraram

em economistas. (REICH, 1976, p. 19)

Reich (1976) defendia que a noção de consciência de classe desempenhava um papel

fundamental no movimento socialista, sendo importante para que os movimentos se

organizassem com um fim comum – que seria a revolução. Criticava a idéia de que a direção

do partido constituía a vanguarda que levaria a consciência às massas e daria a direção do

caminho revolucionário. Tal crítica baseava-se em uma distinção, elaborada por ele, entre a

consciência de classe dos dirigentes e a das massas. A dos dirigentes não seria de conteúdo

pessoal e incluiria o conhecimento das contradições da economia capitalista, da necessidade

da revolução; apreenderia o processo histórico, as condições econômicas e sociais às quais os

homens estão submetidos, e seria preciso compreender tal processo para dominá-lo e ser

senhor dele, não escravo. Já a consciência de classe das massas seria de conteúdo pessoal, na

medida em que as massas pensam na satisfação de necessidades da vida cotidiana, como a

alimentação, o vestuário, as relações com os outros, o cinema, o teatro, as tarefas, a

dificuldade da educação das crianças, etc.

O autor afirmava que, se houvesse chance de uma nova revolução (cultural, sexual,

política), que se contasse com os conhecimentos dos trabalhadores e não com o daqueles

abotoados em suas togas que geralmente exercem uma ação de cima para baixo, baseada nas

hierarquias sociais, econômicas, culturais, e que tratam a população como o grupo que precisa

ser disciplinado e adaptado à nova situação “revolucionária”.

Para Reich, o único meio para consolidação do socialismo internacional, era “ir ao

encontro da vida cotidiana, humilde, banal, primitiva e simples das mais vastas massas em

toda a sua diversidade geográfica e social” (1976, p. 20). Esse seria o único caminho possível

para resolver a contradição que separaria o ponto de vista objetivo (a consciência de classe

dos dirigentes) do ponto de vista subjetivo (a consciência de classe das massas). Mas, um

“resquício vanguardista” podia ser identificado quando afirmava que os debates filosóficos

sobre “vanguarda” e “tática” que se davam dentro do grupo de dirigentes deveriam ser

deixados de lado, pois o que deveria ser levado para as massas seria a consciência dos seus

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90

direitos, a fim de permitir que os trabalhadores se conscientizassem do seu próprio modo de

viver.

Reich questionava também o princípio de renúncia, sacrifício e obediência à causa

revolucionária, por correlacioná-lo com o fascismo e a Igreja, que pregavam aos trabalhadores

as mesmas condições, apoiadas no sentimento de culpa e na aceitação de enfrentar os desafios

com docilidade, silenciamento e até mesmo alegria. Aponta que a juventude não se

identificava mais com os dirigentes do movimento juvenil que reproduziam aquele princípio.

“Se se quer mobilizar a massa popular na batalha contra o capital, desenvolver a sua

consciência de classe e levá-la à revolta, é forçoso admitir que o princípio de renúncia é

nocivo, pesado, estúpido e reacionário” (REICH, 1976, p. 21).

Para Reich, a desigualdade estaria no antagonismo entre o capital e o trabalho. O lucro

extraído pelo burguês da exploração do trabalho alheio, ou seja, a mais-valia, seria a fonte de

produção da desigualdade social e da exploração do trabalho, temas clássicos da obra de

Marx. Quando o trabalhador percebe sua condição social somente por comparar sua vida com

a vida dos ricos, Reich (1976) assinala que a moral burguesa estaria contida nesta percepção.

Reich intensificou suas análises em torno da sexualidade infantil e da juventude,

defendendo o onanismo e a relação sexual dos jovens de 15 e 16 anos. Em relação à mulher,

questionava a virgindade (compulsória) antes do casamento, afirmando que seria desastroso

para um casal que pretendia ligar-se de forma duradoura que não se conhecesse sexualmente.

Defendia o direito da mulher não casada possuir um amante, bem como desconsiderava a

idéia de dever conjugal – nenhuma mulher deveria ter relações sexuais quando não o

desejasse, afirmando que com tal atitude se liquidaria “a ideologia de violentação e a posição

de que a mulher deva ser conquistada, ou pelo menos suavemente violentada” (REICH, s/d, p.

61).

As idéias revolucionárias do Reich da economia sexual seduziram a juventude de 1968,

tornando-se uma das bandeiras das novas formas de se relacionar e experimentar o corpo e a

sexualidade. Por ouro lado, é interessante notar que, no desenvolvimento da prática clínica

reichina, são os conceitos do “segundo” Reich, ou seja, a orgonoterapia, que se difundiram.

No Brasil, as idéias de Reich foram difundidas principalmente por Ângelo Gaiarsa e

Roberto Freire64

, nas décadas de 1960 e 1970. Ambos são considerados os primeiros

64 De acordo com Coimbra (1995), José Ângelo Gaiarsa teve contato com a obra de Reich em 1955 e foi o

primeiro a iniciar uma prática psicoterápica com fundamentação reichiana. Com influências também de Jung,

Gaiarsa desenvolveu uma abordagem corporal própria, formando a primeira geração dos chamados

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psicoterapeutas corporais no país, responsáveis pela formação de várias gerações de

terapeutas corporais. Em São Paulo, surgiram os primeiros trabalhos e institutos preocupados

com a difusão das terapias corporais; já no Rio de Janeiro, essas práticas foram difundidas um

pouco mais tarde, no começo da década de 1980, através de grupos de estudos organizados

por Romel Alves Costa65

, Nicolau Maluf66

, Geni Cobra67

.

De acordo com Pedro Castel (2000), o movimento reichiano tem uma organização

complexa e seus membros fazem uma distinção entre duas correntes: uma chamada pós-

reichiana, que congrega profissionais que trabalham a partir da leitura atenta dos pressupostos

teóricos produzidos por Reich, uma espécie de “retorno” a Reich. Esta corrente preocupa-se,

inclusive, com a organização do movimento e institucionalização de cursos de formação,

normatizando a prática clínica fundamentada no pensamento de Wilhelm Reich. A segunda

corrente, chamada neo-reichianos, é constituída por terapeutas que estudaram a obra de Reich

e a partir dela propuseram outras práticas. Nesse grupo situam-se Alexander Lowen, Gerda

Boyesen, David Boadella, compondo o que é conhecido como bioenergética.

Carlos Ralph e Rádice têm um merecido lugar de destaque dentro do universo reichiano,

mas na memória de algumas pessoas são mais associados à bioenergética. Acredito que a

revista, por sua característica independente, também circulou dessa mesma maneira nesse

universo. São explícitas as críticas em Rádice a qualquer movimento normatizador, seja no

campo psi, seja no campo político ou em qualquer outro com o qual se deparou. A Revista

existiu em momento anterior ao da institucionalização das práticas reichanas no Rio de

Janeiro, mas, devido à estreita ligação entre Rádice e Carlos Ralph com este movimento,

“corporalistas” paulistas. O trabalho de Roberto Freire difundiu-se nos anos 1960 e 1970 influenciando muitos

“corporalistas” em todo o país. Freire viveu intensamente o período anterior ao golpe de 1964, vinculado ao

Teatro de Arena e participando do Programa Nacional de Alfabetização, coordenado por Paulo Freire. Escreveu

peças de teatro e foi presidente da União Paulista da Classe Teatral. Em 1963, dirigiu o Serviço Nacional do

Teatro e, com o golpe no ano seguinte, foi demitido e preso por duas vezes. Com o AI-5, Freire viajou para a Europa e conheceu o grupo Living Theatre e os laboratórios de teatro de Grotowski. Nesse momento teve início

sua aproximação com a obra de Reich, também teve influências da antipsiquiatria de David Cooper e Ronald

Laing e da gestalt-terapia de Perls. Em 1976, vem a público seu método terapêutico – a somaterapia – resultado

de suas experiências nos diversos campos (cultura, arte, ciência) pelos quais passou. (pp. 279-288) 65 Considerado por Coimbra (1995) o primeiro profissional carioca que desenvolveu um trabalho “corporal” no

Rio de Janeiro, em 1975. Romel tornou-se um autodidata na obra de Reich, trabalhando seu próprio corpo. A

base do seu trabalho foi a orgonoterapia. (p. 189) 66 Nicolau Maluf Júnior iniciou seus trabalhos em 1975, em São Paulo. Migrou para o Rio de Janeiro em 1980,

coordenando grupos de estudos e foi membro-fundador da Escola da Clínica Somato-Psicanalítica e também da

Associação de Psicoterapia Corporal do Rio de Janeiro (APCRJ). Em: OLIVEIRA, José Guilherme e

RODRIGUES, Henrique. O saber em movimento – tecendo a rede das psicoterapias corporais. CDROOM, Rio

de Janeiro, 2000. 67 Geni Cobra fez formação com Gerda Boysen e com David Boadella. Sua atuação baseia-se na ênfase aos

princípios da Psicologia Biodinâmica e na prevenção de neuroses. Geni Cobra não se dedicou à formação, como

Romel e Nicolau, embora tenha participado na década de 1980 de inúmeros workshops e vivências. (COIMBRA,

1995, p. 289)

Page 92: Tese de doutorado sobre a Rádice

92

penso ser de extrema importância fazer algumas considerações sobre o movimento reichiano

no Rio de Janeiro, vendo-o como um grande universo no qual estão incluídas todas as

tendências terapêuticas reichinas. Rádice divulgou e dialogou com todas elas, mas, para

efeito desta tese, centrar-me-ei na história do CIO – Centro de Investigação Orgonômica

Wilhelm Reich, instituição com a qual Carlos Ralph dialogou, e foi bastante ligado.

O CIO – Centro de Investigação Orgonômica Wilhelm Reich foi a primeira instituição

voltada para a formação, transmissão e divulgação do pensamento reichiano no Rio. Sua

fundação nasceu do encontro entre Denise Dessaune, José Felipe Fernandes68

e Carlos

Eugênio Marer69

, nos Ciclos Reich70

, Empenhados em organizar um grupo voltado para a

formação de terapeutas, levaram quase um ano, do final de 1982 a meados de 1983,

conversando e debatendo sobre suas diferenças e semelhanças em relação ao pensamento e à

prática terapêutica de Reich. Nessa mesma época, já havia grupos de estudos sobre a obra de

Reich, mas o CIO teve a preocupação de sistematizar e institucionalizar a formação reichiana.

O processo de formação veio com a proposta, que é ponto fundamental no pensamento

reichiano, de ir além da perspectiva clínica individual e trabalhar com uma visão social de

transformação do ambiente onde se vive. No início, contava com projetos voltados para a

informação sexual através de palestras abertas ao público em geral, a fim de difundir a

existência do pensamento de Reich. Em um segundo momento, abriu-se para a formação de

psicoterapeutas e economistas sexuais.

À medida que o trabalho foi adquirindo visibilidade, as tarefas avolumaram-se, pois os

três coordenadores dividiam-se entre ministrar aulas, exercer a função de terapeutas e dar

supervisão, sem contar as atividades ligadas à administração da instituição. Foi preciso contar

com um reforço, que veio através da colaboração do médico Ivan Campos71

.

O curso era composto pela supervisão de casos clínicos e pelo estudo da psicanálise –

base do pensamento reichiano –, das técnicas de análise de caráter e da repressão da couraça,

além dos trabalhos posteriores de Reich (orgonomia). A formação, que durava em média três

anos, enfatizava o desenvolvimento do próprio terapeuta, seguindo um dos preceitos mais

importantes de Reich, que considerava que a transformação social só ocorreria a partir da 68 José Felipe Fernandes era orgonoterapeuta argentino, radicou-se no Brasil em 1983 e foi figura de grande

destaque no movimento reichiano carioca. 69

Carlos Eugenio Marer foi colaborador da Rádice e também do jornal Luta & Prazer. Participou intensamente

da organização dos Simpósios Alternativas no Espaço Psi e outras atividades desenvolvidas pela Revista. Sobre esses temas falarei no próximo capítulo. 70 Sobre os Ciclos Reich, ver capítulo 3. 71 Ivan Gonçalves Campos vinha de formação psicodramática e em 1986 associou-se ao CIO. (COMIBRA,

1995, p. 297)

Page 93: Tese de doutorado sobre a Rádice

93

transformação individual e que os grandes problemas sociais seriam decorrentes dos

problemas individuais não resolvidos e que se estabelecem como situação problema nas

relações interindividuais e interinstitucionais. Somente assim, segundo Reich, os indivíduos

poderiam assumir “atitudes co-responsáveis” consigo e com o mundo que os cerca.

O CIO contava com diversos parceiros individuais e institucionais, como psicanalistas,

que eram convidados para ministrar cursos, e instituições como a Associação Wilhelm Reich,

em São Paulo. Em 1987, organizou a II Semana de Orgonomia, convidando duas figuras

iminentes para palestrar: o Dr. Frederico Navarro, presidente da Escola Européia de

Vegetoterapia, e a Drª. Barbara Koopman, do Colégio Americano. A vinda de Navarro

culminou com o surgimento do Instituto de Orgonomia Ola Raknes72

(IOOR), fundado por ele

em 1989. Russo (1993) afirma que esse fato provocou uma disputa entre as duas instituições

pelo monopólio do controle e regulação da formação. No mesmo momento da criação do

IOOR, outras quatro instituições surgiram: o Centro Brasileiro de Biossíntese, o Instituto de

Biossíntese (ligado a David Boadella), a Sociedade de Análise Bioenergética do Rio de

Janeiro e a Clínica Social de Terapia Reichiana, fundada por Pedro Castel73

, em 1986.

O CIO funcionou de 1984 a 1997, e, mesmo antes do seu fim oficial, vinha dando sinais

de desgaste tanto institucionalmente quanto nas relações entre seus coordenadores. Estes,

então, decidiram convidar a analista institucional Regina Benevides, hoje, professora do

Departamento de Psicologia da UFF, para desenvolver um trabalho de intervenção no grupo.

O fechamento da instituição não foi uma decisão impulsiva, nem de cima para baixo, e, sim,

discutida entres seus fundadores e, também com os alunos, que contribuíram, através de

cartas, com depoimentos sobre o período de formação. Outro acontecimento, bastante

dramático, colaborou com a decisão de fechar a instituição: o assassinato de Felipe Fernandes,

em um sinal de trânsito do Rio de Janeiro em 1997.

Coimbra (1995) assinala que essas instituições voltadas para a formação de terapeutas

reichianos reproduzem as mesmas preocupações das instituições psicanalíticas, ou seja, o

controle sobre a formação, o aval sobre quem é terapeuta ou não, a regulamentação. Parece

que as práticas ditas alternativas, em um dado momento, institucionalizaram-se, como uma

forma de buscar reconhecimento e legitimidade. Assim procuraram deixar o espaço

72

Ola Raknes (1887-1975), orgonoterapeuta norueguês. Foi aluno e colaborador de Reich e exerceu forte

influência na orgonoterapia européia. Seu pensamento clínico foi disseminado no Brasil por Frederico Navarro. Em: OLIVEIRA, José Guilherme e RODRIGUES, Henrique. O saber em movimento – tecendo a rede das

psicoterapias corporais. CDROOM, Rio de Janeiro, 2000. 73 Pedro Castel foi colaborador da Rádice e do jornal Luta & Prazer, e participou ativamente do Simpósios

Alternativos no Espaço Psi e dos Ciclos Reich. Ver capítulo 3.

Page 94: Tese de doutorado sobre a Rádice

94

“desqualificado” no qual se transformou o que era “alternativo”, com o objetivo de proteger

um determinado conhecimento e também consolidar-se no mercado “psi”.

Robert Castel (1987), ao analisar as condições das transformações das práticas médico-

psicológicas nos anos 70 do século XX, destaca o surgimento do que chamou de “nova

cultura psicológica”. O autor classifica esta como a era da pós-psicanálise. O que não

significa o fim da psicanálise, “mas o fim do controle pela psicanálise do processo de difusão

da cultura psicológica” (p.133), devido, em grande parte, à banalização do discurso

psicanalítico. Essa nova cultura vai além dos aspectos patológicos e dos dispositivos de

controle médico-jurídico espalhados pela sociedade, tomando como objeto privilegiado o

“homem normal”.

Para ocorrer esse processo de difusão e integração da psicanálise à cultura geral, foi

fundamental sua inserção nos cursos de formação de psicólogos. No Rio de Janeiro, soma-se

a esse fator a abertura das sociedades de psicanálise ligadas à IPA, possibilitando, com isso,

que outros profissionais, como os psicólogos, pudessem realizar sua formação.

Segundo Oliveira (2002), nas décadas de 1940 e 1950, houve um acirramento do debate

em torno dos limites da prática psicanalítica e sobre quem seria autorizado a praticá-la (e em

que condições). No Rio de Janeiro, as principais sociedades de psicanálise – Sociedade

Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ, fundada em 1955) e a Sociedade Brasileira de

Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ, fundada em 1957) – permaneceram por longo tempo

responsáveis pela formação de novos psicanalistas, aceitando apenas candidatos médicos.

Em 1953, contrariando tal procedimento e inaugurando um novo espaço de formação,

Iracy Doyle74

fundou o Instituto de Medicina Psicológica (IMP), no Rio de Janeiro. Outros

institutos também foram criados com essa mesma característica, como o Instituto Brasileiro

de Psicanálise (atual Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro). Essas instituições que

74 Iracy Doyle Ferreira (1911–1956) formou-se em medicina em 1935, na Faculdade Nacional de Medicina da

Universidade do Brasil (atual UFRJ), especializando-se em psiquiatria. Fez formação psicanalítica na William

Alonson White Psychoanalitic Society, nos Estados Unidos, no final da década de 1940, e era crítica da

ortodoxia e inflexibilidade dos grupos que ofereciam formação analítica, no Rio de Janeiro. O Instituto de

Medicina Psicológica (IMP) não era vinculado à IPA e oferecia formação psicanalítica a todos que se

interessassem pela psicanálise – estudantes, médicos, assistentes sociais, professores e psicólogos, que só depois

da regulamentação da profissão em 1962 interessaram-se pelos cursos oferecidos. Aos 45 anos, quando se

preparava para concorrer à cátedra de psiquiatria da Faculdade Nacional de Medicina, Iracy Doyle morreu vítima

de uma encefalite virótica. As atividades do IMP foram paralisadas e só retomadas em 1960, quando um dos ex-

alunos dela, Hórus Vital Brasil, retornou de sua formação nos Estados Unidos. Com a revitalização da

instituição, suas diferenças com a IPA foram reforçadas, através da fliliação à International Federation of Psychoanalitic Societies (IFPS), instituição fundada em 1966 pelas sociedades de psicanálise críticas à IPA. O

IMP passou a se chamar Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), em homenagem à sua fundadora.

(www.spid.com.br/a_spid.htm , acesso em 17/01/2008 às 16:45, e COIMBRA, 1995, p. 107).

Page 95: Tese de doutorado sobre a Rádice

95

ofereciam cursos de formação em psicanálise a profissionais com outras formações, em sua

maioria, não eram filiadas à IPA.

Russo (1993) argumenta que a cultura psicológica que se formou nos anos 70 fez com

que a psicanálise ultrapassasse a simples prática terapêutica, tornando-se uma referência

social, dividindo aqueles que faziam análise e os “demais”, e um modo de vida, fazendo com

as pessoas passassem a valorizar a individualidade, o autoconhecimento, a mudança pessoal,

“interna”.

Retomando as análises de Castel (1987), é possível observar outros elementos que

contribuíram com a expansão da cultura psicológica. Como, por exemplo, os

questionamentos de Jacques Lacan à ortodoxia da IPA e às sociedades relacionadas a esta

instituição, comprometidas com a observância fiel e rigorosa do corpo teórico desenvolvido

por Freud na formação dos futuros analistas. São apontados também pelo autor os debates

calorosos nos meios universitários do pós-68 sobre a psicanálise, a partir de autores como

Lévi-Strauss, Michel Foucault, George Canguilhem e Louis Althusser, além, é claro, do

próprio Lacan. Castel (1987) não vê uma crise propriamente dita da psicanálise, e sim a

multiplicação de práticas que tiveram como efeito uma rica produção teórica. E salienta que,

diante dessa multiplicidade, os dispositivos de legitimação da prática psicanalítica perderam o

controle da formação e da difusão da cultura “psi”. Com isso, iniciou-se o embate entre os

defensores da ortodoxia freudiana e aqueles que a ela se opunham.

Dois processos de difusão da cultura psicológica ocorreram então: um ligado aos meios

freudianos e à “cultura do divã”, e outro, derivado das novas práticas da psicanálise. É o que

Castel (1987) chama exatamente de pós-psicanálise, ou seja, novas propostas de terapias que

se distanciam tanto da ortodoxia quanto dos seus críticos – como Lacan, por exemplo. Essas

novas terapias foram desenvolvidas, em sua maioria, nos Estados Unidos, agrupadas em torno

do Movimento do Potencial Humano, compreendendo a Bioenergética, a Gestalt-terapia, a

Análise Transacional, o Grito Primal, os trabalhos de Carl Rogers, entre outras. De acordo

com o autor, tais métodos seriam “herdeiros” do pensamento de Wilhelm Reich, a partir de

sua mudança para os Estados Unidos, e são caracterizados como “terapias para os normais”,

encarregando-se da problemática da “felicidade” e do “bem-viver”.

As novas terapias (...) promovem uma visão do homem pela qual se

concebe ele mesmo como um possuidor de uma espécie de capital

(seu “potencial”), que gere para dele extrair uma mais-valia de gozo e

de capacidade relacionais. Há em suma indivíduos subdesenvolvidos

e em via de desenvolvimento como os tecnocratas dizem dos países do

Page 96: Tese de doutorado sobre a Rádice

96

terceiro mundo. E, para se desenvolver, é preciso, literalmente,

investir e trabalhar, fazer frutificar seu potencial humano. (CASTEL,

1987, p. 146)

A partir das análises de Castel, é possível afirmar que esse campo considerado

“alternativo” se organizou fora dos limites da psicanálise (a ortodoxa e a dos críticos da

ortodoxia freudiana) e fora, também, do espaço acadêmico de formação em psicologia. Os

cursos de formação em psicologia no Brasil da década de 1970 privilegiavam a escola

behaviorista, a teoria do desenvolvimento infantil de Jean Piaget, os gestaltistas – Koller,

Kofka e Wertheimer, os clássicos associacionistas e funcionalistas, além da obra de Freud.

Não eram tema dos estudos formais de então, como ainda hoje, praticamente, não são – Reich,

Jung e outros “alternativos”.

Para Coimbra (1995), a expansão das práticas alternativas no Brasil dos anos 70 deveu-

se, primeiramente, às críticas lançadas à hegemonia da psicanálise e, também, em certa

medida, à oposição à ditadura militar. A autora considera que os movimentos revolucionários

da década de 1960 pretendiam transformar toda a sociedade, principalmente, aqueles

integrados por jovens latino-americanos que se organizavam na luta contra as ditaduras

militares. O sonho revolucionário que caracterizou esse período perdeu sua intensidade na

década seguinte, devido às ações de repressão que, em países como o Brasil, acabaram por

solapar toda expressão contestatória. O novo momento caracterizava-se não mais por atitudes

ativas, mas de abandono, apatia e desencanto.

A partir dessa conjunção – as idéias de Reich, movimentos críticos em relação à

psicanálise, críticas endereçadas ao conservadorismo de toda ordem – o sexo tornou-se

explícito na Rádice através de uma grande matéria que abria a discussão sobre o tema a partir

de diferentes depoimentos: de uma empregada doméstica,

Maria tem seis filhos, mora em Morro Agudo, trabalha no Rio como

domestica e está grávida de quatro meses. Seu segundo marido, seu

João, trabalha numa obra em Botafogo e, por economia de tempo e

dinheiro, dorme em dias alternados no próprio local de trabalho.

Maria é descontraída e alegre, apesar do sufoco geral de viver de

salário, andar de trem da Central (“com os homens ainda por cima

querendo se encostar de qualquer maneira”) e ter que enfrentar as filas

do INPS, para si e para seus seis filhos. Tem dias que endoidece. Não

tem saída. (Jean dos Santos, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978,

p. 10).

Pra falar a verdade eu casei duas vezes (...), mas dizer que eu gosto

mesmo de homem, não gosto não, de jeito nenhum. (...). Que jeito,

Page 97: Tese de doutorado sobre a Rádice

97

né... Tem que ir, mas dizer que gosta... Olha, vou te falar, eu não sei

o que é carinho de homem (...). É só vamos lá, vamos cá e pronto. Eu

vou porque é minha obrigação (...). (Depoimento de Maria, Rádice,

ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 10).

De uma prostituta da Central do Brasil,

Oito horas da noite na Central do Brasil, Rio. Num bar abafado, com

algumas mesas e um balcão estreito, um grupo de pessoas fala em voz

alta. À nossa frente, uma mulher alta, magra com o rosto marcado por

uma profunda cicatriz na altura da testa. Sempre que fala, seu sorriso

parece querer explodir, mas não explode. Nem mesmo quando ela diz

que é muito fogosa e não sabe distinguir quando está fantasiando ou

dizendo a verdade. Maria Lúcia tem 40 anos, mora no subúrbio e

todas as noites faz ponto na Central. (Elias Fajardo e Francisco Viana,

Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 12).

Se sou boa de cama? Quem sabe dizer é quem vai comigo. Meu

amor é muito forte, tão forte que tenho de me controlar pra não fazer

uma besteira. A mulher tem de ter pudor, amor próprio. Respeito os

outros para ser respeitada, não abuso dos fracos nem dos valentes.

(depoimento de Maria Lúcia, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978,

p. 13).

De um homem casado que reproduzia o estereótipo do “machão”,

O homem brasileiro recebe suas primeiras noções sobre sexo na rua,

onde se inicia com prostitutas e aprende a ser “macho” acima de

qualquer outra coisa. Jorge, 30 anos, profissional liberal, salário de

Cr$ 30 mil mensais, fez questão de se dizer um homem sem

preconceitos, afirmou que as parceiras nunca reclamaram e que sua

mulher estava satisfeita com sua performance. No espaço decorrido

entre esta entrevista e sua publicação, a mulher separou-se dele. (Luiz

Horta, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 13).

Quando você sai com outra mulher, tem sempre a excitação de se estar

fazendo algo proibido, você conhece uma nova parceira. Tem mais

mistério. Não que minha mulher não seja uma boa parceira: eu não

trocaria ela por ninguém. O relacionamento entre nós é perfeito. (...)

Eu não acredito que ela [a mulher dele] transe com outro. Não vou

ficar teorizando: se soubesse realmente de alguma coisa, eu ficaria

grilado. Não por mim, mas pelos padrões de comportamento da

sociedade que já vem com suposição feminina mais passiva. Vivemos

num patriarcado e qualquer mudança sempre choca. Eu admito que

nesse ponto eu sou machista: ia ficar muito puto. Minha reação eu

não poderia dizer. (depoimento de Jorge, Rádice, ano 2, nº 8,

dezembro de 1978, p. 13).

Page 98: Tese de doutorado sobre a Rádice

98

De um casal homossexual masculino que havia adotado uma menina,

Pedro e Mário se conhecem há aproximadamente 10 anos e vivem

juntos há seis. No começo mantinham relações heterossexuais com

outras pessoas para “manter a imagem”, mas depois conseguiram,

através de muita luta, a tranqüilidade necessária para dar a volta por

cima e viver como escolheram. (Jean dos Santos e Vera Vitis, Rádice,

ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 14).

Nossa relação é boa, geradora de prazeres, intimidades, confiança e

muita amizade. Não precisa nem falar que pinta posse, ciúme e essas

coisas, mas a gente tá sempre questionando. (depoimento de Mário,

Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 14).

Com relação à Marina (...), ela vive bem, vai ser uma pessoa legal e o

que eu espero é que ela escolha sozinha o que vai ser, em todos os

sentidos. (depoimento de Pedro, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de

1978, p. 14).

De uma mulher casada que abandonou tudo para viver com outra mulher,

No Brasil atual, gatas e gatinhas, mulheres mais maduras, mães de

família estão começando a assumir (...), para terror da tradicional

família e do chamado status quo. (...) Iracema M., 34 anos, mineira de

algum ponto qualquer das tradicionalíssimas Minas Gerais, 4 filhos,

“senhora e esposa” de um importantíssimo advogado (...), um belo dia

viu-se apaixonada por uma médica, desfez seu bem formado

casamento e, segundo ela, “picou a mula”, escandalizando para

sempre a cidadezinha (...). (Márcia Almeida, Rádice, ano 2, nº 8,

dezembro de 1978, p. 15).

Pra mim, o fundamental foi ter deixado sair a minha mulher e a minha

criança. Pra isso enfrentei tudo e todos (...). E conhecendo minha

mulher, tendo e sendo essa minha mulher e, mais do que isso, sendo

amiga dessa mulher que só pôde sair da prisão na hora que foi buscada

e despertada, inesperadamente, por uma outra pessoa do meu mesmo

sexo. Tive barras nesse relacionamento como qualquer outro

relacionamento, mas tive muito amor e amei muito e, o mais

importante de tudo, fui feliz. (depoimento Iracema, Rádice, ano 2, nº

8, dezembro de 1978, p. 15).

De um escritor de contos eróticos publicados em livros de bolso que percebeu que

contava em seus textos suas próprias fantasias,

Protegido pelo pseudônimo, deixei escapar primeiro todos os frutos

proibidos que existiam (e existem) na minha cabeça. Crueldade

sexual, dominação das fêmeas pelos machos, sadismo, dor e prazer

intimamente ligados. Depois deste primeiro impulso veio uma fase de

Page 99: Tese de doutorado sobre a Rádice

99

gratificação onde os personagens tinham uma vida amorosa intensa e

até saudável, justo o meu oposto, encaixotado em 15 anos e formação

presbiteriana. (...) Parei de escrever quando senti meu “passado”

reescrito (...) tinha chegado a um ponto onde continuar a escrever

industrialmente significava mexer no meu “presente” (...) (Bruno

Almada – pseudônimo –, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p.

16)

Além dos depoimentos, foram publicados artigos, entre estes um escrito por Elias

Fajardo, intitulado “Educação sexual. Qual?”, outro de Carlos Ralph, “O sonho acabou”, um

terceiro sobre a trajetória de Reich, sem assinatura e, um último do preso político Alex Polari

de Alverga sobre o sexo nas prisões.

A sexualidade nas prisões, (...) é uma das formas de aprisionar o corpo

nas teias da violência institucionalizada do cárcere, na rotina dos

deferimentos e interdições, nas tramas da normalidade e da

anormalidade, nos temas da saúde e da patologia indispensáveis ao

“sadio” discurso ideológico ao mesmo tempo obtido e exercido contra

milhares de seres confinados. (Alex Polari de Alverga, Rádice, ano 2,

nº 8, dezembro de 1978, p. 23).

Também foram publicadas duas entrevistas, uma com Romel Alves falando sobre

Orgonoterapia e outra com o psiquiatra Isaac Charam, à época, presidente da Sociedade

Brasileira de Sexologia, dando o tom “institucionalizado” ao debate.

O que se destaca é a forma encontrada para debater o tema sexo, primeiro porque

relataram as experiências daqueles considerados “marginais”, ou “desviantes” da norma social

geral, expondo pontos de vista diversos, as dificuldades de cada um, os preconceitos, a

relação com o corpo.

Estamos falando de sexo porque falar de sexo nunca é supérfluo, e

quase sempre é importante. Falar e deixar fala. Ecoar vozes pouco

ouvidas nas edulcoradas páginas das revistas coloridas pode não saciar

apetites acostumados sempre ao mesmo paladar, mas trazem

importantes dados do que possa estar significando sexo para outras

pessoas (...). Sexo é um assunto importante – ninguém nega –, e

bastante tratado – idem, idem –, mas poucas vezes desnudado

publicamente enquanto experiência pessoal e discussão livre de

vivências oficialmente consideradas “fora dos padrões de

normalidade”. (...) Nossa preocupação em não trazer respostas

(também não as temos) pode não ter sido cumprida à risca, pois todas

as colocações que fizemos trazem o perigo de estarem “contaminadas”

por uma visão facciosa que não é possível ser consertada pelo simples

discurso. Mas tentamos. (Carlos Ralph, Rádice, ano 2, nº 8,

dezembro de 1978).

Page 100: Tese de doutorado sobre a Rádice

100

Ou seja, retirando o sexo dos espaços privados da vida e inserindo-o como tema de

debate público, coletivo. Inclusive entre os próprios colaboradores da revista, que passaram a

se dedicar ao estudo da obra de Reich e a publicarem na Rádice traduções de parte de obras

que não existiam por aqui e, também, algumas resenhas.

Não foi à toa o encontro entre Reich e Rádice. Segundo Escobar (1974), Reich foi um

desbravador, um começo dos grandes debates contemporâneos sobre a psicanálise que

inaugurou um período de críticas neste campo. Apesar do biologismo característico da

segunda fase do pensamento de Reich, que acabou por levá-lo à um impasse, cristalizando-o

em uma biofísica dogmática, ao aproximar a psicanálise da política, Reich passou a refletir

também sobre a prática analítica, reflexão da qual Rádice comungou.

2.3. O novo sindicalismo e as articulações políticas no campo da

psicologia

Como já apontado no Capítulo 1, na segunda metade dos anos de 1970, houve uma

grande mobilização social pela abertura política e o fim do Regime Militar promovida,

principalmente, pelos movimentos sociais (associações de bairro, organização das lutas dos

grupos ditos minoritários, os Centros Eclesiais de Base (CEB), etc.) que emergiram como

força política. Essa mobilização era, também, pela reorganização dos movimentos que foram

desarticulados pela repressão, como os sindicatos.

Com o acirramento do autoritarismo, a partir de 1968, a resistência política e a

organização dos trabalhadores se tornaram mais difíceis devido às perseguições dos órgãos de

repressão. De acordo com Abramo e Silva (1988), os sindicatos tornaram-se espaços de

propaganda do “milagre”, vendendo o sonho de ascensão através de políticas assistenciais que

priorizavam ações voltadas como a compra de prédios para suas sedes, e a construção de

colônias de férias, seguindo o lema do “desenvolvimento” e “segurança”. Às greves e

manifestações da década de 1960, seguiram-se a apatia e desmobilização da de 1970.

Portanto, o golpe de 1964 e o acirramento da repressão em 1968 desarticularam os

sindicatos e modificaram as relações de trabalho no Brasil. Os militares promoveram

intervenções nas confederações, federações e sindicatos, cassaram os direitos políticos de

inúmeros dirigentes sindicais, deixando acéfalo o movimento operário. Outras medidas foram

Page 101: Tese de doutorado sobre a Rádice

101

tomadas para enfraquecer os sindicatos e impor as novas políticas para os trabalhadores. A

primeira foi a transferência para o governo do poder de fixar o índice do reajuste anual dos

salários, dificultando com isso as negociações entre patrões e empregados. A segunda medida

foi a proibição das greves, através da Lei 4.330/65 e a inclusão desse tipo de mobilização na

lista dos crimes contra a Segurança Nacional. A terceira medida foi a implantação do Fundo

de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, suspendendo com isso a garantia de estabilidade

no emprego e promovendo uma alta rotatividade dos trabalhadores nas empresas, visando

dificultar a organização destes.

Entre 1966 e 1967, motivado pelas passeatas e mobilizações promovidas pelo movimento

estudantil, o movimento operário esboçou uma reação através de protestos contra as novas

leis trabalhistas, contra o arrocho, o FGTS e o aumento do custo de vida.

Por trás dessa agitação, estavam os grupos de esquerda que atuavam dentro do

movimento operário. Frederico (1987) divide esses grupos em duas posições: uma,

representada pelo PCB, que até o golpe detinha a hegemonia no movimento operário e

propunha uma política de alianças que levaria a uma luta parlamentar, fortalecendo o MDB. A

outra posição reunia os diversos grupos de esquerda que lançavam críticas ao reformismo do

PCB e propunham ações radicais como a luta armada.

A estratégia conciliadora do PCB resultou na organização, dentro do Congresso Nacional,

de uma frente de oposição, contando com a participação de setores marginalizados e com

líderes políticos que se opunham à Ditadura, como João Goulart, Juscelino Kubitscheck e

Carlos Lacerda. Em 1967, parecia haver uma esperança de enfrentamento à Ditadura e

reorganização do movimento. Com as eleições em diversos sindicatos que estavam sob

intervenção, havia a expectativa de renovação das lideranças, e o PCB, com o objetivo de

reanimar as entidades de classe, propôs a tese da Unidade Sindical, reunindo em um programa

mínimo as lutas que deveriam unificar os trabalhadores, independentemente de sua posição

ideológica.

Foi organizada uma Campanha Nacional de Proteção Contra a Política de Arrocho

Salarial e em torno desta realizaram-se diversos encontros regionais que resultaram na

formação de órgãos centralizadores da luta sindical, como a Frente Intersindical Antiarrocho,

no Rio de Janeiro, e o Movimento Intersindical Antiarrocho (MIA), em São Paulo75

.

75 Segundo Frederico (1987), este último, com uma história bastante conturbada, foi acusado de subversivo pelas

confederações e federações ligadas ao Regime Militar, devido a sua organização horizontal que reunia os

dirigentes sindicais, contrariando a legislação brasileira que imprimia um caráter vertical à organização sindical

Page 102: Tese de doutorado sobre a Rádice

102

Frederico (1987) observa que mesmo proibido por lei, o movimento operário criou, em

diferentes momentos de sua história, organizações com tal característica. Importante destacar

que durante a Ditadura Militar, esse tipo de organização figurava entre os crimes contra a

Segurança Nacional.

O segundo grupo político citado por Frederico (1987) reunia diversas tendências que

compartilhavam da crítica ao PCB e suas estratégias, consideradas “pacifistas” e

“reformistas”. De acordo com o autor, esses grupos heterogêneos politicamente tinham dois

pontos em comum: um, a crença de que a Ditadura somente poderia ser derrubada pela luta

armada; outro, a desconfiança com relação à participação nos organismos legais que existiam

à época. Criticavam o que chamavam de “sindicalismo de Estado”, ou seja, a manipulação

política dos sindicatos pelos grupos que se revezavam no poder. Esse tipo de sindicalismo era

chamado de “cupulista” e tinha sua sobrevivência garantida pelo imposto sindical

compulsório e não através da participação dos trabalhadores. Um dos efeitos do

“sindicalismo de Estado” observado pelos grupos de esquerda era a política populista

conseqüente da dependência ao Ministério do Trabalho. Esta política reforçou uma

consciência nacionalista mitificada que manteve os trabalhadores desarmados e incapazes de

resistir ao golpe militar.

Carone (1984) especificou melhor esse grande grupo de esquerda, dividindo-o da

seguinte forma: grupos dissidentes do PCB – Ação de Libertação Nacional (ALN), Partido

Comunista do Brasil (PC do B), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e Partido

Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Grupos de origens diversas – Vanguarda

Popular Revolucionária (VPR), Política Operária (POLOP) e Ação Popular (AP); e grupos de

origem trotskista – o Posadismo, Convergência Socialista, Liberdade e Luta (Libelu)76

.

O ano de 1968 foi marcado por diversas manifestações contrárias à ditadura e, também,

por grandes greves operárias. Frederico (1987) cita as greves ocorridas em abril e outubro em

Contagem (MG), as paralisações em São Bernardo do Campo ocorridas em maio e a grande

greve de Osasco, em julho, sublinhando que, mais do que movimentos de reivindicação

(sindicatos na base e federações e confederações na cúpula). Por sua vez, as oposições sindicais acusavam o MIA de burocratismo e não o reconheciam como representante dos trabalhadores. As atividades do MIA

aconteceram no período de 1967 a 1968 e levaram a encontros nada tranqüilos: de um lado a intimidação

policial, de outro as divergências dentro do movimento, acusando a organização de não ser representativa dos

trabalhadores e sem força para preparar a classe para a luta contra a Ditadura. A repressão apertou o cerco em

torno do MIA, que acabou sendo desarticulado em 1968. Na década de 1980, surgiram a Unidade Sindical, a

Anampos, a Central Única dos Trabalhadores e a CONCLAT.

76 Não é o objetivo deste trabalho descrever cada grupo e suas diferenças e estratégias de luta e enfrentamento da

ditadura. Existe vasto material bibliográfico disponível sobre estes grupos de esquerda.

Page 103: Tese de doutorado sobre a Rádice

103

econômico-corporativa, foram ações coletivas de contestação e resistência à ditadura militar.

Apesar da repressão e do acirramento da violência de Estado com o AI-5, o autor afirma que o

movimento operário não foi completamente desarticulado nesse período, pois durante 1969 e

1970 ocorreram pequenas greves e paralisações. Segundo Frederico (1987), os militares

alcançaram êxito em desmantelar o movimento operário em 1971, quando as lutas operárias

foram confinadas ao interior das fábricas, sem repercussão na sociedade.

A partir de 1972, outro cenário se impôs. A repressão conseguiu minar o trabalho dos

comunistas entre os operários, provocando o fim da hegemonia do PCB no ABC paulista. Os

grupos de esquerda que não se aliavam às propostas dos comunistas, tentavam formas de ação

mais radicais a partir de duas estratégias: a primeira consistia na mobilização dos militantes

de origem burguesa (médicos, professores, advogados, etc.) para colocar suas práticas

profissionais a serviço do movimento operário; a segunda estratégia era fazer com que

militantes se empregassem nas fábricas e no campo. Frederico (1987) aponta que várias

organizações lançaram mão dessas estratégias, mas a que as levou mais adiante foi a AP, pois

havia a preocupação entre seus militantes em suprimir a divisão entre trabalho manual e

intelectual – era, pois, a chance de incorporarem a “ideologia operária”.

Outra estratégia era a “propaganda armada”, que consistia na invasão de fábricas por

militantes armados com metralhadoras, para intimidar os chefes e gerentes e panfletar entre os

operários, com a finalidade de incentivar o engajamento na luta contra a ditadura. Frederico

(1987) chama a atenção para a dificuldade desses grupos proporem um programa político

dirigido à classe operária e seu distanciamento em relação a esta.

Para Abramo e Silva (1988), a luta sindical no Brasil só ressurgiu no final da década de

1970, motivada pelo movimento sindical metalúrgico de São Paulo que se organizava de

forma independente dos sindicatos oficiais, por isso sua importância e destaque na história do

movimento operário brasileiro. Os metalúrgicos paulistas foram os grandes protagonistas das

greves realizadas no período 1978-1984 e, em função disso, se destacaram como referência

para outros movimentos de organização dos trabalhadores. Os autores observam que isso não

significa que o movimento tenha tido características homogêneas, diferenciando-se na forma

de organização e nas orientações políticas.

A emergência das lutas sindicais no final da década de 1970 foi uma resposta ao longo

período de silenciamento desde o AI-5. O “milagre” promoveu um esmagamento da classe

trabalhadora com a extensão da jornada de trabalho, baixos salários, alta rotatividade de

trabalhadores nos postos de trabalho. As altas taxas de crescimento econômico tiveram como

Page 104: Tese de doutorado sobre a Rádice

104

efeito o processo de precarização das relações de trabalho e, conseqüentemente, a

deteriorização das condições de vida dos trabalhadores.

A partir da segunda metade da década de 1970, um novo modo de organização sindical

surgiu, combatendo o imobilismo e o peleguismo. Outros elementos disparadores dos

movimentos de greve apontados por Abramo e Silva (1988) foram a oposição generalizada ao

“Pacote de Abril” e a saída às ruas dos estudantes, fortalecendo o clima geral de insatisfação.

Somente em 1979 ocorreram 430 greves em todo o país, mobilizando trabalhadores das mais

diversas categorias, tais como metalúrgicos, professores universitários e do Ensino Médio,

bancários, motoristas e cobradores de ônibus, canavieiros, funcionários públicos, etc.

Em pequenas ações nas fábricas e nos bairros, os operários organizaram o movimento

Oposição Sindical que com as greves de 1977 e 1978 saiu fortalecido politicamente. Essa

organização criticava os sindicatos vigentes e enfrentou diretamente o Estado autoritário,

levando diferentes categorias de trabalhadores a utilizarem o instrumento da greve.

Devido ao processo recessivo em que entrou a economia pós-milagre, as lutas visavam a

defesa da estabilidade no emprego e também a reposição salarial. Eram os anos do arrocho

salarial, que trouxeram efeitos devastadores para os trabalhadores e para a classe média

brasileira. Os movimentos grevistas sofreram, mais uma vez, ações repressivas do governo,

que ampliou os setores de Segurança Nacional nos quais as greves eram proibidas. Mas o

momento político era outro, a sociedade se organizava e tomava as ruas exigindo o fim da

ditadura militar. O resultado das eleições de 1975 e as denúncias de tortura e violência que

ocorriam nas prisões brasileiras feitas aos organismos internacionais de defesa dos direitos

humanos produziam uma tensão política importante, fazendo com que o general Geisel, ao

assumir o poder, engendrasse o discurso da distensão política. Diante dessas novas

condições, os sindicatos se fortaleceram e transformaram-se em um canal de expressão da luta

dos trabalhadores, modificando sua estrutura. Essa nova forma de organização política

independente também ocorreu entre outro “tipo” de trabalhador, os “profissionais liberais”

como, por exemplo, os psicólogos. Naquele momento tornou-se fundamental participar do

movimento social de resistência à ditadura e também reivindicar transformações no campo do

trabalho.

Desde a década de 1960, começaram a surgir associações de psicólogos em vários

estados brasileiros. Para fundar uma associação era necessária a participação de 1/3 dos

profissionais da região, elaborar um estatuto em conformidade com a legislação sindical, fixar

o preço das mensalidades, obter aprovação da proposta dos associados através da convocação

Page 105: Tese de doutorado sobre a Rádice

105

de uma assembléia geral e registrá-la no Ministério do Trabalho. A lei exigia, ainda, atestado

ideológico e provas de boa conduta dos diretores das associações. O Ministério do Trabalho

autorizava a transformação da associação em sindicato pela Carta Sindical, levando em conta

o cumprimento rigoroso de todas as exigências descritas acima (LEITE, 1984). O primeiro

sindicato dos psicólogos surgiu em São Paulo, antes mesmo da criação do Conselho Federal e

regionais de psicologia, que, como vimos, só ocorreu em 1971.

No Rio de Janeiro, as iniciativas para constituir o sindicato são do final da década 1970,

com a retomada das atividades da antiga Associação Profissional dos Psicólogos do Estado da

Guanabara (APPEG), criada em 1962. A APPEG, fundada por Yone Caldas, Terezinha Lins

e Hans Lippman, não tinha entre seus propósitos constituir, no futuro, um sindicato. Esses

psicólogos e professores estavam comprometidos com a criação de uma entidade nos moldes

das associações científicas, voltada para estudos e difusão do conhecimento psicológico. Em

1968, esse grupo fundador deixa a associação para criar a Sociedade de Psicologia Clínica do

Rio de Janeiro. A associação ficou inativa até 1977, quando um grupo de psicólogos,

mobilizados pelas eleições para o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro,

interessou-se em revitalizá-la, mas com outro objetivo, o de transformá-la em sindicato para a

consolidação da profissão de psicólogo.

Em outubro de 1977, foi convocada uma assembléia geral, presidida por um

remanescente da antiga APPEG, o psicólogo Marcos Vinícius, para eleger uma diretoria que

assumisse o trabalho de reorganização da associação e encaminhasse a solicitação da Carta

Sindical ao Ministério do Trabalho. Com a temática “A situação evolutiva da profissão de

psicólogo no Brasil”, a assembléia mobilizou cerca de 250 psicólogos reunidos na Fundação

Getúlio Vargas (FGV-RJ), que aprovaram o novo estatuto da associação e a eleição para

compor uma nova diretoria. A eleição ocorreu em 25 de novembro, e no dia 1º de dezembro

era empossada a nova diretoria da agora Associação Profissional dos Psicólogos do Rio de

Janeiro (APP/RJ), que contava com os seguintes nomes: Vera Lúcia Canabrava (presidente);

Helena Lins (vice-presidente); Mara Regina (secretária geral) e Lúcia Estrela (tesoureira).

Estávamos no governo do general Geisel (...). O fato mesmo de ainda

estar em vigor um regime político duro, trazia-nos muitas angústias

quanto aos modos de inserção de um sindicato: que lutas abraçar?

Haveríamos de nos envolver, apenas, com as questões da própria

categoria ou juntar nossos esforços para a transformação da cena

nacional? Mas, (...) nossa opção foi (...) lutar pelas nossas questões

específicas e lutar pela democratização da nação. (CANABRAVA,

s/d, p. 3)

Page 106: Tese de doutorado sobre a Rádice

106

Os anos de 1978 e 1979 foram dedicados à organização da entidade e a atender as

exigências do Ministério do Trabalho para a obtenção da Carta Sindical. Os membros da

associação trabalharam intensamente para associar 850 psicólogos, 1/3 do número de

profissionais de cada região, de acordo com as regras do MT. Com as contribuições

financeiras dos associados, foi possível alugar um andar de sobrado na Rua do Catete. Ali,

foram criadas comissões de trabalho para ampliar a campanha de filiação ao sindicato, para

lutar pela criação do cargo de psicólogo nas secretarias de Estado e, ainda, uma comissão de

imprensa responsável pela publicação do jornal PSIndicato. Além dessas tarefas mais

administrativas, iniciou-se a integração da APP/RJ com as lutas sindicais do período, através

da participação no primeiro encontro de lideranças sindicais nacionais em Gragoatá, no ano

de 1977 (CANABRAVA, s/d, p. 6).

O reaquecimento do movimento sindical a partir de 1977, o engajamento nos debates

nacionais, como a luta pela anistia e o fim da ditadura, as mudanças que aconteciam nas

condições do exercício dos profissionais de psicologia, a necessidade de reconhecimento do

trabalho do psicólogo são elementos que explicam o surgimento das associações e sindicatos.

Segundo Leite (1984), em 1984 havia quatro sindicatos de psicólogos funcionando (São

Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná) e onze associações profissionais (Piauí,

Mato Grosso do Sul, Ceará, Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Bahia, Pernambuco, Rio Grande

do Norte, Distrito Federal e Minas Gerais).

Um dos primeiros desafios da associação em relação às lutas pela consolidação da

profissão foi abrir caminho para os psicólogos no serviço público e participar da construção

de um plano de carreira – incluído neste o debate sobre carga horária e salário. A APP/RJ e,

posteriormente, o Sindicato dos Psicólogos participaram de algumas batalhas importantes, as

mais significativas sendo as questões relativas à criação do cargo de psicólogo nos órgãos

estaduais e municipais de educação e, em seguida, de saúde e de administração, bem como o

enfrentamento do projeto Julianelli77

e outros projetos de currículo para os cursos de

psicologia. Também se posicionou, frente ao caso Amílcar Lobo, repudiando suas atividades,

77 Hoje enfrentamos um novo “Julianelli”, o Projeto de Lei (025/2002) do senador Geraldo Althoff (PFL/SC),

conhecido como Ato Médico. O projeto define como ato médico todos os procedimentos diagnósticos ou

terapêuticos que envolvam a prevenção e os cuidados da atenção de saúde primária, secundária e terciária, ferindo a atuação e o livre exercício de várias categorias profissionais e atingindo diretamente a população que,

em última instância, terá que, em primeiro lugar, procurar um médico caso queira iniciar um tratamento com

outros profissionais da saúde como nutricionistas, psicólogos, fonoaudiólogo, etc. Este projeto rompe com as

noções de interdisciplinaridade e integralidade, princípios que regem o Sistema Único de Saúde.

Page 107: Tese de doutorado sobre a Rádice

107

e no apoio aos psicanalistas Hélio Pelegrino e Eduardo Mascarenhas no momento em que

foram expulsos da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro (SPRJ)78

.

Outra discussão inflamava as assembléias e reuniões da psicologia: o projeto de Lei nº

248, de 1977, que dispunha sobre a regulamentação do exercício da profissão de psicanalista

clínico, propondo que o exercício da nova profissão fosse privativo aos diplomados em

medicina e psicologia, com curso específico de psicanálise em nível de pós-graduação

reconhecido pelo Ministério da Educação e Cultura. O projeto de lei dispunha que a

fiscalização do exercício da profissão de psicanalista clínico competiria ao Conselho Federal e

aos Conselhos Regionais de Medicina. Esse projeto, de autoria do senador Nelson Carneiro,

deu o que falar no meio “psi”, isso porque já era o terceiro que se propunha a regulamentar a

profissão de psicanalista, sendo o primeiro a admitir psicólogos na nova categoria; além disso,

tinha boa chance de ser aprovado. Todos tinham críticas ao projeto e negavam a necessidade

de tal regulamentação. O projeto foi arquivado devido às pressões dos profissionais “psis”.

Quanto aos esforços pela criação do cargo de psicólogo no funcionalismo público, em

1978 a Associação encaminhou ao então governador do estado do Rio de Janeiro, Faria Lima,

e ao prefeito, Marcos Tamoyo, um documento solicitando a criação do cargo de psicólogo nos

órgãos estaduais e municipais de educação. Tal reivindicação deveu-se ao fato de que havia

um expressivo número de profissionais que atuavam como psicólogos dentro dos órgãos de

educação – alguns desde 1959 –, mas em desvio de função, pois haviam iniciado suas

atividades como professores.

O cargo de psicólogo foi, então, oficializado na rede municipal de ensino em 14 de março

de 1979, através da Lei 95, que dispunha sobre o Plano de Classificação de Cargos e

Vencimentos do Município do Rio de Janeiro e de dois decretos: o 3.410 de 11 de novembro

de 1982, que regulamentava o cargo e definia as atribuições do profissional, prevendo sua

lotação em três secretarias municipais: saúde, educação e administração; e o decreto 3.422 de

9 de março de 1982, que fixava o número de vagas relativas ao quadro funcional, no total de

quatrocentas. A contratação dos psicólogos deveria ocorrer através de concurso público, mas

este mecanismo acabou gerando um problema para 380 profissionais contratados que corriam

o risco de perderem alguns direitos, como o tempo de trabalho e a diminuição de seus

vencimentos79

.

78 Este tema será tratado mais adiante, no capítulo três. 79 Fontes: Diário da Câmara Municipal, ano VI, nº 893, de 03/12/82, e as matérias: “Prefeito não houve queixa

de psicólogo”, Jornal Última Hora, 03/08/1982; “Psicólogos do Município querem ser enquadrados sem fazer

Page 108: Tese de doutorado sobre a Rádice

108

A Lei 95 determinava que os funcionários em desvio de função não seriam beneficiados

com a transposição automática para o cargo criado, como era proposto na esferas estadual e

federal. A lei determinou um mecanismo para a mudança de cargo, a transferência, que

desconsiderava o tempo de serviço, ou seja, ao assumir o cargo, o funcionário iniciaria pela

faixa salarial mais baixa. Outro problema desse mecanismo era que o número de vagas

destinadas aos funcionários em desvio de função era insuficiente para acolher todos os que

estavam naquela situação.

Com a criação do cargo, uma nova luta se iniciou, agora para modificar a lei e pleitear a

transposição, que consistia no enquadramento do funcionário no nível adequado ao seu tempo

de serviço, sem perda de seus direitos e garantias trabalhistas. Em 1982, o Sindicato dos

Psicólogos promoveu uma intensa mobilização que ganhou destaque nos principais jornais do

Rio, exigindo o enquadramento através da transposição. A situação pareceu ter sido resolvida

quando a Câmara Municipal promulgou a Lei 389 de 20 de dezembro de 1982, que

assegurava aos ocupantes de qualquer cargo de professor, portadores de habilitação

específica, caso se encontrassem na função de psicólogos, o direito de serem enquadrados

naquele cargo. Essa lei só beneficiou os psicólogos que ocupavam cargo de professor, sendo

iniciada uma nova batalha para que o benefício se estendesse aos demais colegas que

ocupavam outros cargos.

A luta pela aprovação do Sindicato dos Psicólogos do Rio foi intensa, e somente em 3 de

dezembro de 1980 foi autorizada a transformação da associação em sindicato. O não

cumprimento de todas as exigência burocráticas fez com que fosse impugnada a primeira

eleição da primeira diretoria. Era proibida a participação de funcionários públicos nas

direções de entidades como os sindicatos, e a psicóloga Lúcia Estrela, integrante da diretoria

eleita, era funcionária da Secretaria Estadual de Educação. Esse fato rachou o grupo, tendo

como conseqüência a formação de duas chapas.

Sindicato, enfim

Saiu, saiu, o sindicato saiu. Depois de anos de briga contra a

burocracia, contra os interesses, contra o comodismo, saiu o Sindicato

dos Psicólogos do Município do Rio de Janeiro. E está se

organizando para suas tarefas de defesa da categoria. Neste momento,

as duas principais tendências que dividiam o poder na antiga

Associação dos Psicólogos negociam um acordo político para o

prova”, O Globo, 07/08/1982; “Psicólogos frustrados com reivindicação não atendida”, O Globo, 03/08/1982;

“Psicólogo protesta para conseguir enquadramento”, Jornal dos Sports, 07/08/1982; “Massacre do plano atinge

psicólogos”, Jornal Última Hora, 07/08/1982; Sindicato dos Psicólogos do Município do Rio de Janeiro, Ofício

nº 49 de 4 de agosto de 1982, a Júlio Coutinho, Prefeito do Rio de Janeiro.

Page 109: Tese de doutorado sobre a Rádice

109

lançamento de uma chapa única para as primeiras eleições do

sindicato. Se não conseguirem, irão para a luta na base do voto. Acho

ótimo qualquer dessas opções; numa ficará demonstrada a capacidade

de negociação e acordo numa questão difícil; na outra a eleição da via

democrática, do voto livre e secreto, para dirimir questões que

interessam à categoria. Estamos todos de parabéns por termos

conseguido o Sindicato. Estamos todos esperando uma atuação firme

e segura da defesa de nossos interesses. Vamos colaborar, participar.

Empolgação, minha gente!! (Carlos Ralph, seção “Geralmente”,

Rádice nº 15, de 1981).

Novas eleições foram organizadas e, em setembro de 1981, foi eleita a chapa composta

dos seguintes nomes: Cláudio Smith da Silva (presidente), Vera Lúcia G. Canabrava (vice-

presidente), Leda Maria (secretário-geral), Ângela Tunnine (primeiro secretário), Helena

Martins (tesoureiro geral) e Maria Cristina Nazareth (primeiro tesoureiro). Era fundamental

naquele momento participar do movimento sindical, e o sindicato dos psicólogos, filiado à

CUT, engajava-se nas lutas pela democratização, pela anistia e pela criação das centrais de

trabalhadores no Rio de Janeiro.

Mudanças aconteciam dentro da psicologia. O estereótipo de “profissional liberal”, auto-

suficiente e isolado em seu consultório, estava se transformando a partir de sua nova inserção

no mercado de trabalho. A condição de assalariado tornava-se realidade não só na categoria

dos psicólogos, mas também na médica, seu modelo de profissão liberal. Outro aspecto

importante da transição da associação para o sindicato foram as mudanças na prática

profissional do psicólogo – especialmente, a afirmação da psicologia como uma profissão do

campo da saúde, devido, especialmente, às transformações que ocorriam no campo da saúde

mental e o engajamento de alguns psicólogos nessa luta política.

Nessa época surgiram duras críticas aos vários pacotes que preconizavam modelos para a

psicologia, tais como: a reformulação do currículo mínimo, o projeto de especialização

sugerido pelo CFP80

e um projeto de lei que propunha que o psicólogo e outras onze

categorias profissionais só poderiam praticar determinadas atividades com

autorização/supervisão de um médico. Era o famoso projeto 2.726, de autoria do deputado

Salvador Julianelli (PDS-SP). Seu caráter discriminatório e antidemocrático foi objeto de

denúncias e manifestações de repúdio por parte de estudantes e profissionais ligados à saúde.

O modelo para a psicologia estava pautado nos moldes médicos do Instituto Nacional de

Previdência Social (INPS): os profissionais de saúde considerados “não-médicos” ficariam

80 Sobre esses dois projetos, ver próximo item deste capítulo.

Page 110: Tese de doutorado sobre a Rádice

110

sob supervisão médica que, por sua vez, teria plenos poderes para receitar/indicar tal ou qual

técnica para o paciente. Aqueles que idealizaram o projeto advinham do setor público, mas o

Julianelli assegurava à rede privada conveniada com o INPS a manutenção da assistência

tradicional. Vale lembrar que, nesse momento, a saúde pública, especialmente a saúde

mental, atravessava um período de críticas ao modelo hospitalocêntrico através das denúncias

e críticas que partiam, sobretudo, do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental

(MTSM) – que se fortalecia. Quando essas ações contestatórias começavam a atingir a forma

como eram realizados os convênios entre o INPS e a rede privada, surgia o Julianelli.

Profissionais e entidades de várias categorias ligadas à saúde se mobilizaram contra o projeto,

incluindo o Sindicato dos Médicos.

O projeto acabou sendo retirado da pauta pelo próprio deputado, em função dessa intensa

mobilização, que reunia diferentes profissões da área de saúde, ampliando o campo de luta e

articulando diferentes categorias.

A defesa dos direitos da população contra o corporativismo tornava-se uma bandeira cada

vez mais forte. Os profissionais que naquele momento atuavam no campo da saúde/saúde

mental assumiam nova consciência quanto à organização de classe e a defesa dos direitos dos

cidadãos. Os psicólogos passaram a discutir os efeitos da prática “psi” na sociedade e a

questionar a falta de organização e comprometimento político da maior parte da categoria.

No campo da saúde, o próprio “poder médico” tornava-se cada vez mais questionado, em

função da inadequação dos tratamentos em serviços públicos e privados de saúde, sendo

banais as denúncias de maus tratos em vários hospitais psiquiátricos, como os de Barbacena

(MG), Juqueri (SP) e Colônia Juliano Moreira (RJ). Grupos antes silenciados dentro das

conservadoras associações de classe médicas passaram a se organizar e pleitear direitos e

deveres, trazendo opções de tratamento e novas idéias ao sistema de atendimento então falido

e ineficiente.

As lutas pela organização política da profissão e seu reconhecimento como um campo

distinto da medicina – abandonando-se, assim, a idéia de uma classe “auxiliar” no campo da

saúde – promoviam a conquista de novos espaços de atuação. A partir da segunda metade da

década de 1980, surgiram os primeiros concursos públicos para cargos de psicólogo, sendo o

primeiro, realizado em 1986, um marco importante para a inserção dos psicólogos na saúde

mental. Muitos já atuavam em diversos hospitais como bolsistas, com baixa remuneração ou,

às vezes, até mesmo sem remuneração. Esse também é um período de muitas transformações

na saúde pública brasileira, momento de questionamento da lógica medicalizante e da

Page 111: Tese de doutorado sobre a Rádice

111

participação dos profissionais de saúde nas conferências de saúde, como ocorreu na VIII

Conferência Nacional de Saúde.

Toda essa mobilização em torno do Projeto Julianelli e também da implantação do

currículo mínimo para os cursos de psicologia possibilitaram o trabalho de articulação

nacional das entidades “psis”, no início da década de 1980.

De acordo com Leite (1984), o I Encontro Nacional das Entidades Sindicais de Psicologia

aconteceu em 1981 e foi realizado em São Paulo, com a presença do sindicato paulista,

carioca e gaúcho, além das associações do Espírito Santo e Distrito Federal. Os temas

discutidos nesse encontro foram a questão do imposto de renda e o mercado de trabalho. O II

Encontro, realizado em 1982, teve como tema principal a articulação dos psicólogos com o

movimento sindical nacional. Além das entidades do primeiro encontro – exceto a do Espírito

Santo – participaram as de Minas Gerais, Ceará e Pernambuco. No mesmo ano, no Rio de

Janeiro, foi realizado o III Encontro, com a participação de duas novas associações – Rio

Grande do Norte e Alagoas –, e os temas discutidos foram as questões salariais e o

desemprego generalizado no país. Em maio de 1983, realizou-se o IV Encontro, em Recife, e

o V ocorreu em 1984, em Brasília. O principal problema enfrentado por todas as entidades

(associações e sindicatos) era a pouca participação da categoria. Na maioria das entidades,

apenas uma pequena porcentagem de profissionais era associada e, desses, poucos

participavam ativamente das atividades desenvolvidas.

A atuação da APP/RJ e, posteriormente, do Sindicato dos Psicólogos, da década de 1970

até o início dos anos 90, foram singulares, garantindo conquistas importantes para o

reconhecimento da profissão. O momento histórico das lutas gerais dos trabalhadores e de

toda a sociedade brasileira pela democratização do país inspirava também o Sindicato, que em

certo momento iniciou um processo de autocrítica, problematizando sua natureza e função,

que culminou na dissolução da entidade, deliberada em assembléia realizada em 18 de março

de 1992, com a renúncia coletiva da diretoria.

O Sindicato dos Psicólogos do Rio de Janeiro permaneceu fechado até meados da década

de 1990. Em 24 de junho de 1993 foi realizada uma assembléia para discutir a reativação da

entidade, da qual participou, além dos psicólogos presentes, um dos representantes da

Executiva Nacional dos Estudantes de Psicologia, Hildeberto Martins. Foi designada uma

comissão de reativação que, em seguida, deu posse à uma junta governativa com a tarefa de

promover as ações necessárias para viabilizar a reabertura da entidade, como mudanças no

estatuto; empreender campanha de sindicalização e organizar eleição. O tempo de mandato

Page 112: Tese de doutorado sobre a Rádice

112

da junta governativa foi de um ano, de 26 de abril de 1995 a 25 de abril de 1996. Realizadas

as eleições, a nova diretoria do sindicato tomou posse em 26 de abril de 1996. Mas, esta é

outra história, que foge aos objetivos desta tese.

2.4. A mobilização contra o “Pacote de Abril da Psicologia”

Bem embrulhado – hermeticamente fechado –,

baixou o pacote de abril da psicologia propondo

novas formas de atuação para os psicólogos...

(Rádice, nº 9, abril/maio de 1979).

Em 1979, na Rádice nº 9 uma grande matéria sobre a proposta de um novo currículo para

os cursos de psicologia no Brasil contava a história dessa proposta, seu início em 1976,

quando o Conselho Federal de Educação (CFE) abriu um processo de reformulação do

currículo mínimo da psicologia e a constituição em 1977, de uma comissão do Departamento

de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura (DAU/MEC), com o mesmo

propósito. A denúncia desses acontecimentos, visto como ato autoritário, pois não houve uma

convocação ampla de todos os interessados, gerou intensas mobilizações, reunindo estudantes,

professores e profissionais de psicologia. Essas mobilizações, que se estenderam por todo o

país, além de terem tido um caráter singular, tiveram como efeito o arquivamento da proposta.

A partir da vigência da Lei 4.119 de 27 de agosto de 1962, que regulamentou a profissão

de psicólogo e os cursos de formação em psicologia, foi fixado, o currículo de psicologia,

através do Parecer nº 403 do Conselho Federal de Educação (CFE). O objetivo explícito do

parecer era acentuar o caráter científico da psicologia, garantindo uma “posição de relevo (...)

no concerto das chamadas profissões liberais e, (...), evitar as improvisações que (...) a

levariam fatalmente ao descrédito.” (Psicologia – Legislação, 1976, p: 31).

O primeiro currículo foi elaborado a partir da experiência dos centros de formação já

existentes no país e das discussões provocadas pela proposta de currículo publicada em 1954

na revista Arquivos Brasileiros de Psicologia (ABP)81

, com a colaboração de professores

81 Em setembro de 1949, dois anos depois de ter criado o ISOP (Instituto de Seleção e Orientação Profissional)

na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, Emílio Mira Y López criou a revista Arquivos Brasileiros de

Psicotécnica para divulgar a produção científica da psicologia da época. Com as alterações do papel do ISOP,

seu nome foi alterado em 1969 para Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada.

Page 113: Tese de doutorado sobre a Rádice

113

renomados nacionalmente82

. A proposta apresentava matérias comuns (exigência mínima

para o bacharelado e a licenciatura), que envolviam conhecimentos instrumentais como

fisiologia e estatística, e os conhecimentos de psicologia – psicologia geral e experimental,

psicologia da personalidade, psicologia social e psicopatologia geral. Definia, ainda, para a

formação do psicólogo, duas matérias chamadas “fixas” (Técnicas de Exame e

Aconselhamento Psicológico e a Ética Profissional) e três “variáveis”, definidas pelos

estabelecimentos de ensino de acordo com suas necessidades e possibilidades, mas que

deviam observar e atender às características da atividade do psicólogo nas áreas tradicionais,

como a escola, a empresa, a clínica. A lista apresentada para tal escolha incluía psicologia do

excepcional, dinâmica de grupo e relações humanas, pedagogia e terapêutica, psicologia

escolar e problemas de aprendizagem, teorias e técnicas psicoterápicas, seleção e orientação

profissional e psicologia da indústria. Para a obtenção do diploma de psicólogo, passou-se a

exigir também a chamada “formação teórico experimental”, através do cumprimento do

estágio supervisionado ao longo de, pelo menos, 500 horas de atividades.

O documento enfatizava a importância dada ao reconhecimento da psicologia como

profissão de “qualificação intelectual”, de “prestígio social” e da definição da tarefa do

psicólogo como de “educação” e “reeducação”. No artigo nº 4 do Decreto nº 53.464 de 21 de

janeiro de 1964, em que são definidas as funções do psicólogo, destaco a primeira, por seu

caráter extremamente normatizador: “utilizar métodos e técnicas psicológicas com o objetivo

de: (...) solucionar problemas de ajustamento” (Psicologia – Legislação, 1976, p. 13). Quanto

aos cursos de formação, sua duração foi definida como sendo de quatro anos letivos para o

bacharelado e a licenciatura, seguidos de mais um ano para a formação de psicólogo,

perfazendo o total de cinco anos.

No ano de 1976, o Conselho Federal de Educação (CFE) encarregou a conselheira Nair

Fortes Abu-Mehry de apresentar um anteprojeto para a reformulação do currículo mínimo da

psicologia, que, como dito anteriormente, havia sido estabelecido pelo Parecer nº 403 de

1962. Em 1977, foi constituída pelo Departamento de Assuntos Universitários do Ministério

da Educação e Cultura (DAU/MEC) uma comissão, presidida por Samuel Pfromm Netto, com

o mesmo objetivo – reformulação do currículo. Essa comissão apresentou em novembro de

1978 seus estudos ao MEC que, por sua vez, enviou tal proposta às instituições de ensino

solicitando análise e sugestões no sentido de adequar o currículo às novas necessidades do

82 M.B. Lourenço Filho, Nilton Campos (Universidade do Brasil, hoje, UFRJ), Carolina Martuscelli Bori

(Universidade de São Paulo), Padre Antonius Benko (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e

Pedro Parafita (Universidade de Minas Gerais, hoje, UFMG). (Psicologia – Legislação, 1976, p: 31).

Page 114: Tese de doutorado sobre a Rádice

114

“mercado de trabalho” e exigências profissionais83

. O prazo dado para o retorno das análises

foi julgado insuficiente pelas universidades, gerando reação dos professores. Aconteceu o

que, talvez, não fosse esperado pelos idealizadores da proposta de currículo: uma ampla

mobilização contra a proposta por parte de estudantes, professores e profissionais, mesmo em

pleno período de férias.

Nas sugestões enviadas por grupos de profissionais que se aliavam aos propósitos do

MEC revelavam-se duas preocupações: uma, com uma unificação dos currículos de

psicologia; outra, com a definição do que seria o objetivo da formação, que deveria ser como

a dos médicos, engenheiros, arquitetos e outros, ou seja, visando formar profissionais liberais.

A diversificação dos currículos, a proliferação dos cursos de psicologia nas faculdades de

filosofia, o fato de os cursos de psicologia terem sido fundados, em sua maioria, por não-

psicólogos, eram os principais argumentos para justificar a reestruturação dos currículos que

deveriam buscar uma homogeneidade para a formação “o importante é que se chegue a uma

imagem concreta do psicólogo que é o produto destes cursos” (ROZESTRATEN, 1976, p.

81).

Outro argumento a favor da mudança curricular nos moldes propostos pelos pareceristas

do MEC apoiava-se numa definição de psicologia, presente na Classificação Internacional

Uniforme de Ocupações, editada pela Secretaria Internacional de Trabalho, em Genebra

(1966), com as seguintes atribuições listadas:

Medição de características físicas e mentais; planejamento e

realização de experimentos em seres humanos; prognóstico e controle

do comportamento; tratamento e prevenção de doenças mentais;

colaboração com psiquiatras e assistentes sociais para ajudar

desajustados; determinar as causas da inadaptação e prescrever

programas corretivos; elaborar e aplicar testes psicológicos, escalas

qualitativas e outros meios para medir traços psicológicos (aptidões,

habilidades, atitudes etc.); às vezes se especializa em um ramo da

psicologia: clínica, pedagógica, experimental, industrial ou social.

(Classificação Internacional Uniforme de Ocupações, apud

ROZESTRATEN, 1976, p. 84)

As críticas ao processo de reformulação do currículo de psicologia e aos argumentos

expostos acima foram intensas, gerando a mobilização de professores universitários,

estudantes, profissionais psicólogos e diversas entidades representativas, como os sindicatos,

em todo o país.

83 Seção Geralmente “Mudanças?” – Rádice, nº 1, setembro, 1976, p. 28.

Page 115: Tese de doutorado sobre a Rádice

115

Os primeiros debates aconteceram em 1978, na Unesp, em Assis (SP) e na XXX Reunião

da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de São Paulo, e aprofundaram-se

no II Encontro Nacional de Estudantes de Psicologia (ENEP)84

, que ocorreu em Ribeirão

Preto (SP). Os temas de destaque do encontro foram a questão da formação e a função do

psicólogo na sociedade brasileira e os efeitos da proposta de currículo DAU/MEC,

culminando com a idéia de constituição de uma Comissão Paritária Nacional para o estudo do

currículo85

.

Pela primeira vez uma unanimidade na psicologia brasileira: todos contra o “pacote

pfrometa”, que propunha a psicologia como uma entidade repressiva, psicologizando os

problema sociais. Rádice (1979) aponta uma série de enganos, na proposta, que vão desde a

formulação do documento, passando pela definição de psicologia, estabelecimento de uma

psicologia tecnocrática ligada à produção, incremento do consumo e repressão, e, ainda, o

desconhecimento das diferenças regionais e da autonomia universitária, além de deixar de

mencionar a prática da pesquisa. A revista contrapôs um trecho do documento a um dos

artigos do Código de Ética do Psicólogo, não sem lançar críticas à atuação do conselho

profissional no debate:

de más intenções o currículo está cheio, a começar por imprimir um

rumo planificador e corretivo à sociedade através do psicólogo.

Leiam com atenção o trecho retirado das páginas 3/4: “Reconhece-se,

nos dias que correm, que a ação preventiva, de orientação psicológica,

diagnóstico precoce, aconselhamento e terapia psicológica, exercida

em larga escala é um dos poucos recursos realmente efetivos que as

comunidades podem lançar mão, a fim de evitar que se agrave ainda

mais um estado de coisas realmente inquietante, notadamente em

domínios como crime e delinqüência, tóxicos, deteriorização de

relações familiares, abuso de crianças, alcoolismo, desvios sexuais, 84 O I Encontro Nacional de Psicologia (ENEP) aconteceu em novembro de 1976, em Ribeirão Preto (SP).

Delegações de quase todo o país estiveram presentes nesse primeiro esforço de organização dos estudantes de psicologia. Rádice cobriu o evento e apontou críticas em relação aos “chavões” e disputas políticas que

deixaram em segundo plano o debate dos problemas dos estudantes de psicologia. (Seção “Geralmente” –

Rádice, nº 2, janeiro de 1977, p. 7). 85 Surgiram núcleos regionais da Comissão Paritária no Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e no

Paraná. Mas a mobilização foi feita também através de outras ações: na Paraíba, houve paralisação das aulas e

discussão sobre o currículo; professores e estudantes formaram uma comissão para elaborar um documento sobre

a discussão. Em Pernambuco, foram realizadas reuniões gerais e os chefes de departamento dos cursos de

psicologia enviaram um documento ao MEC, solicitando o adiamento do prazo para envio das sugestões;

também foi realizado o Encontro de Estudantes, Profissionais e Professores de Psicologia no qual foi elaborado

um boletim com os debates que ocorreram no II ENEP. Na Bahia, foi elaborado um questionário sobre o

currículo respondido por estudantes e professores; houve paralisação das aulas para discussão com a participação

da Associação Bahiana de Psicólogos. Em São Paulo, a Comissão Paritária da USP encaminhou uma proposta de currículo com uma visão mais crítica da realidade social. No Rio de Janeiro, houve grande mobilização com

assembléias da Associação Profissional de Psicólogos, que elaborou uma carta e um abaixo-assinado

encaminhados à imprensa, além de uma paralisação total das atividades acadêmicas para debater as formas de

luta contra o “currículo pfrometa”. (Rádice, ano 2, nº 9, abril/maio de 1979).

Page 116: Tese de doutorado sobre a Rádice

116

desvios ideológicos e terrorismo etc.”. E agora, o artigo 5, item C, do

Código de Ética dos Psicólogos: “É vedado ao psicólogo influenciar

as convicções políticas, filosóficas ou religiosas de seus clientes”.

Com base neste dado foi levantada a questão que o pfrometa seria

antiético, devendo seu texto ser encaminhado com urgência às

sonolentas comissões de ética dos Conselhos Regionais. (Rádice, nº 9,

abril/maio de 1979, p. 18)

As comissões paritárias não pretendiam propor um currículo alternativo e sim,

estabelecer um amplo debate sobre as normas e a filosofia que deveriam norteá-lo. Essas

comissões tornaram-se representantes legítimas da psicologia nacional. O principal efeito de

toda a mobilização foi o comprometimento da implementação da proposta de currículo do

DAU/MEC.

As mobilizações não pararam e na seção “Psicologia nos Estados”86

, são relatadas as

reuniões, debates, assembléias e organizações de novas comissões paritárias em diferentes

regiões do país. O tema da reforma curricular e suas implicações surgiram na VI Semana de

Estudos Sobre Saúde Comunitária (VI SESAC) ocorrida em Florianópolis (SC). Nela foram

aprovadas propostas como a de uma formação coerente com a realidade brasileira “através de

ensino que vise, além da cultura técnica, o conhecimento dos problemas sociais, econômicos e

políticos da população” (Rádice, nº 10, 1979, p. 39). Em Pelotas (RS), foi realizada uma

assembléia em apoio ao Movimento de Sustação do Currículo DAU/MEC, e, também, à

reorganização das entidades estudantis. Em Fortaleza, CE, aconteceu o Encontro de

Estudantes e Professores de Psicologia do Ceará, com ampla participação, dele resultando a

formação de um grupo para analisar o projeto de reconhecimento oficial do curso de

psicologia.

O currículo DAU/MEC foi, então, arquivado. No III ENEP87

, que aconteceu de 30 de

outubro a 1º de novembro de 1979, em Belo Horizonte (MG), reunindo 700 estudantes que

representavam 37 escolas de psicologia, foram formados 12 grupos para discussão de temas,

dentre os quais um relacionado às políticas educacionais, com destaque para os problemas do

currículo. Como resultado dos trabalhos dos grupos, concluiu-se que o projeto pfrometa

estava definitivamente suspenso, mas percebeu-se também que era importante o

fortalecimento da Comissão Paritária Nacional para o enfrentamento de novos desafios, como

as demissões políticas de professores componentes da Comissão que trabalhavam na

Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, e na FUMEC, em Minas Gerais. 86 Rádice, nº 10, 1979, p. 39.

87 Matéria “O (des) encontro nacional de estudantes de psicologia)”. Rádice, nº 11, nov/dez, 1979, p. 10-12.

Page 117: Tese de doutorado sobre a Rádice

117

As resoluções votadas no III ENEP foram: a manutenção da luta contra o currículo

DAU/MEC e a divulgação dessa luta para toda a sociedade; sistematização da discussão sobre

a função social da psicologia, as políticas educacionais, história da psicologia no Brasil, com

encaminhamento de relatórios sobre esses temas à Comissão Paritária Nacional e às escolas

de psicologia.

A preocupação com o caráter científico da formação do “novo profissional” surgiu em

períodos anteriores ao de 1970. Esch e Jacó-Vilela (2001) ressaltam as propostas do

psicólogo polonês radicado no Brasil, Waclaw Radecki, o projeto apresentado pelo psiquiatra

espanhol Mira y López e, ainda, o projeto substitutivo a esse apresentado pelo Conselho

Nacional de Educação (CNE), em 1957.

No tocante à normatização da categoria, seus defensores afirmavam

que definir parâmetros para a profissionalização e controle do

exercício psicológico permitiria reverter o quadro de descrédito que a

prática exercida sem quaisquer normas ou fiscalização promoveria

quanto à desejada imagem do “novo profissional”. As opiniões

divergiam apenas quanto à especificidade curricular do novo

profissional. Tentando conciliar medicina e psicologia, a nova

proposta substitui o exercício da prática psicoterápica pela solução de

problemas de ajustamento, esta última assumindo a feição de função

privativa do psicólogo. (...) Pela preocupação em promover uma

formação científica a partir do modelo positivista de ciência, as

propostas de currículo (...) apresentadas têm mais convergências do

que divergências (...): todos parecem conter a idéia de que a

Psicologia se embasa e/ou se espelha em vários outros conhecimentos,

oriundos tanto das Ciências Humanas e Sociais, quanto das Biológicas

e, mesmo, da Matemática; o entendimento do ser humano se apresenta

atomizado, fragmentado em diferentes “processos” – que,

aparentemente, se associam e formam o conjunto denominado

“personalidade”; a prática se insinua como mera aplicação técnica da

teoria. (ESCH e JACÓ-VILELA, 2001, pp. 19-21).

As autoras observam, ainda, que no modelo de currículo proposto por Radecki, nos idos

de 1930, havia uma preocupação com a valorização da filosofia, campo excluído nos outros

modelos que se seguiram, o que indicaria uma afirmação da psicologia no campo da técnica,

ligada a uma racionalidade científica fundada no modelo positivista. Esse foi o modelo

implementado no Parecer 403/62.

Bernardes (2004) sintetiza os diversos movimentos de institucionalização da psicologia,

afirmando que no período de 1930 até 1950 a busca no campo da psicologia visava o

reconhecimento e regulamentação da profissão, expressão do desejo daqueles profissionais

Page 118: Tese de doutorado sobre a Rádice

118

que já trabalhavam com o conhecimento “psi”; já no período de 1960 a 1979, identifica forte

postura técnico-cientificista influenciada pelos ideais positivistas, além das lutas corporativas

com outras categorias profissionais e pela abertura de postos de trabalho no mercado.

O autor observa que desde os anos 60 vinha sendo produzida uma “cultura psi”

caracterizada pela disseminação de uma lógica individualista e intimista, cúmplice de estados

autoritários, tanto no campo político como no da educação. Esse estado de coisas contribuiu

para a transformação das demandas sociais e políticas em demandas psicológicas. Nos anos

70, é clara a aliança de certas práticas “psi” com a lógica liberal centrada no indivíduo e na

idéia de mercado.

Outro ponto de grande polêmica foi a proposta de implantação de um nível de

especialização da profissão de psicólogo pelo CFP. Os motivos alegados pela autarquia eram

a constatação de que o objeto da psicologia seria extremamente diversificado e complexo. Os

psicólogos deveriam comprovar a conclusão de curso de especialização ou comprovar cinco

anos de experiência, de prática e somente poderiam requerer uma única especialização.

Rádice88

apontou algumas conseqüências dessa proposta: elitização do saber, já que os cursos

de especialização, em princípio seriam oferecidos pelas universidades particulares, porque as

públicas não disporiam de recursos; possíveis restrições para o psicólogo não-especializado,

pois o “mercado” tenderia a privilegiar os psicólogos especializados. Mais uma mobilização:

foi deflagrado um dia nacional de protesto contra a especialização, algumas faculdades

entraram em greve, marcando o posicionamento quase unânime da categoria como contrária

ao projeto do CFP89

.

2.5. Rádice e sua família: a Imprensa Alternativa

Como observa Araújo (2000), na década de 1970 houve uma proliferação de um tipo de

imprensa que ficou conhecida como Imprensa Alternativa ou “nanica”. Dela faziam parte

diversos jornais geralmente em formato tablóide ou minitablóide, de tiragem e periodicidade

88

Rádice, nº 11, nov/dez, 1979. 89 Em 2000, o Conselho Federal de Psicologia emitiu uma resolução que regulamentou o título de especialista. Os argumentos apresentados pela entidade para justificar tal retrocesso se sustentam na Lei 5.755 de 1971 e no

Decreto nº 79.822 de 1971 que prevêem a inscrição de psicólogo e psicólogo especialista. Tal medida tem

promovido uma corrida dos profissionais pela titulação sem a problematização necessária sobre a naturalização

dos especialismos na atualidade.

Page 119: Tese de doutorado sobre a Rádice

119

irregulares, vendidos em bancas e, importante, sempre de oposição ao regime militar. Em

suas páginas, combatiam a ditadura, denunciando os atos de violência e arbitrariedades

cometidos pela repressão. Traziam notícias sobre o Brasil e o mundo que não interessavam à

grande imprensa, que apoiava quase incondicionalmente as determinações do poder militar.

Rádice fez parte desse grande e diversificado grupo dos “nanicos”, até por suas

características: era independente, não estava ligada a nenhum partido, grupo ou instituição;

vivia principalmente da venda em bancas de jornais e de uma carteira de assinantes, já que era

difícil convencer os anunciantes a utilizarem o espaço da imprensa alternativa90

, e,

fundamentalmente, por sua função interrogativa – não só da psicologia, como do próprio

regime militar – participando intensamente dos debates sobre a abertura política, o fim da

ditadura, a luta pela anistia aos presos e exilados políticos, a denúncia de tortura nos porões

das prisões. Às ações da repressão – censura, invasões às redações, prisão de jornalistas – os

“alternativos” respondiam organizando-se em um comitê, como Rádice divulga:

As investidas da repressão, em abril passado, pressionando o Bagaço e

Mutirão, prendendo jornaleiros que vendiam Em Tempo e invadindo a

sede do Movimento, no Rio, reativaram de vez o Comitê de Imprensa

Independente. O debate público pela Liberdade de Expressão

realizado na ABI em 14 de abril, junto com a mostra de capas, marcou

a solidariedade interna e dos leitores com os órgãos atingidos. A

unidade se fez necessária e presente. As reuniões do Comitê estão

sendo realizadas todas às quartas, à noite e algumas resoluções

práticas imediatas já foram referendadas: tarja em todo os órgãos

denunciando a censura nos jornais O São Paulo, Movimento e Tribuna

da Imprensa; concurso para selo do Comitê, um prêmio de uma

assinatura anual de todos os órgãos componentes para o vencedor. As

discussões podem ser enviadas para o endereço provisório do Comitê

(...) em nome da Rádice. (Rádice nº 6, junho/julho de 1978, seção

Geralmente, p. 6).

Outra característica da revista, comum a todos os alternativos, se relacionava com as

dificuldades econômicas, que comprometiam não só a periodicidade, mas também o tempo de

vida das publicações – poucas conseguiram sobreviver por mais de um ano. No caso da

Rádice, houve uma grande vitória, pois a Revista circulou nacionalmente por quatro anos e

sete meses!91

É importante olharmos para esse momento não por sua relativa unidade de ações, mas por

suas variadas expressões, contradições e objetivos. As publicações alternativas, em sua

90 Na Rádice, os anúncios que apareceram foram de livrarias – principalmente da Livraria Muro, de algumas

editoras consideradas de “esquerda” e da drogaria do tio do Ralph, um dos “acionistas” da revista. 91 De setembro de 1976 a abril de 1981.

Page 120: Tese de doutorado sobre a Rádice

120

grande maioria, eram produzidas por jornalistas e intelectuais de esquerda, todos de classe

média. A imprensa “nanica” era vista como um instrumento de resistência à ditadura.

O golpe de 64 significou a tomada do poder político pelo que havia de mais reacionário e

conservador e, na sociedade brasileira, não foi somente através da violência de Estado que os

militares construíram e implementaram suas estratégias políticas. Souberam se utilizar de uma

arma fundamental do nosso tempo – a comunicação: a imprensa escrita, o rádio e a televisão.

Guattari (1996), ressalta que a produção de subjetividade seria muito mais poderosa e

importante que a do petróleo; os militares sabiam disso. Sua legitimação e manutenção no

poder decorreu da massificação de informações impregnadas dos seus valores e intenções. A

ditadura tinha ao seu dispor todas as ferramentas de divulgação e de controle das informações

que circulavam no país.

Sodré (1966) lança a hipótese de que a história da imprensa é a história do

desenvolvimento da sociedade capitalista, que pode ser empreendida pela análise do controle

dos meios de difusão das idéias. Alguns traços que para o autor comprovam sua hipótese são

a conformidade de valores éticos e culturais e a tendência à uniformização de tais valores e a

liberdade (ou não) de opinar e informar. Ele destaca que a busca de um padrão é

acompanhada pelas inovações técnicas que ampliam a possibilidade das informações

alcançarem os sujeitos. Para o autor, as transformações pelas quais o mundo tem passado

desde o século XVIII modificaram também as formas de controle sobre as informações. Em

relação à liberdade de opinião, são apresentados dois aspectos: a orientação da opinião

pública através de um fluxo de informação, controlado pelas agências de notícias, que

surgiram no século XIX, e uma postura resistente que, recusando esta distribuição de notícias

padronizadas, optou por uma linha editorial que privilegiava a opinião à informação.

De certa maneira, podemos localizar as publicações da imprensa alternativa integradas ao

segundo aspecto indicado por Sodré (1966). É importante ressaltar que esta imprensa

resistente não foi, no Brasil, um fenômeno exclusivo do período da ditadura militar. Sodré

(1966) relaciona diversas publicações com tais características ao longo de nossa história,

desde os tempos coloniais.

Na década de 1970, havia uma imprensa relacionada com a resistência, não só às políticas

autoritárias e antidemocráticas, mas, também, aos dispositivos que controlavam as

informações que circulavam pelo país. Fico (1997) realizou um estudo sobre a utilização dos

meios de comunicação pelos militares para propagandear os valores da ditadura. O momento

no qual os meios de comunicação foram mais utilizados para tal fim foi o ano de 1975, que

Page 121: Tese de doutorado sobre a Rádice

121

marcou a passagem de uma fase de intenso crescimento para uma de recessão, já que as

condições para a expansão da economia deixaram de existir. O país precisava adotar

rapidamente políticas para conter os efeitos negativos do fim do “milagre econômico

brasileiro”. De acordo com o autor, o fim do “milagre” provocou um aumento no delírio de

construção do país como grande potência até o ano 2000. As expressões de confiança e

otimismo nos planos de desenvolvimento do governo eram veiculadas através dos grandes

meios de comunicação e dos filmes de propaganda oficial. Foi nesse período do governo

Geisel que mais se reiterou o pedido – ou a imposição – de sacrifícios à população mais

pobre, visando o combate à inflação e a criação de um clima de ordem, dedicação ao trabalho

e “confiança no futuro”.

Mas, também, como já vimos, é um momento marcado por novas idéias e ações

militantes e resistentes, que passam a ser significadas pela noção de dissidência, de

heterodoxia e pelo signo do alternativo. Seguindo as idéias de Araújo (2000), o mais

importante, nesse momento, foram as novas questões que surgiam no campo de lutas: a

diferença, a alteridade, a valorização da subjetividade e do cotidiano. A riqueza da imprensa

alternativa vinculava-se à própria multiplicidade de movimentos, grupos, organizações e lutas

políticas da época que se expressavam através de diversas publicações. A autora distingue

três tipos destes: jornais de esquerda; revistas de contracultura e as publicações dos

movimentos sociais.

Os jornais de esquerda eram publicações influenciadas direta ou indiretamente pelos

partidos e organizações de esquerda que estavam na clandestinidade. Muitos desses grupos,

impedidos de divulgarem seus pensamentos e opiniões, utilizavam-se das publicações para tal.

Nem todos os que trabalhavam nos jornais eram militantes políticos, mas a orientação política

fundamental era dada pela organização que sustentava ideologicamente essas publicações. A

maior parte dos jornais de esquerda sucumbiu aos impasses políticos das organizações que os

respaldavam. Entre os principais, estavam o Pasquim, Opinião, Movimento, Versus e Em

Tempo.

As revistas de contracultura também marcaram época, consagrando no Rio de Janeiro um

grupo de poetas e literatos malditos, como Chacal, Jorge Salomão, Waily Sailormoon,

Torquato Neto e Jorge Mautner, entre outros. As principais publicações foram Biscoitos

Finos e Almanaque Biotônico Vitalidade.

Do terceiro grupo, formado por publicações ligadas aos movimentos sociais, em geral

não participavam jornalistas, nem militantes organizados, mas pessoas diretamente vinculadas

Page 122: Tese de doutorado sobre a Rádice

122

aos movimentos. Eram desse tipo a imprensa feminina (Brasil-Mulher, Nós Mulheres e

Mulherio); a chamada imprensa negra (Tição, Sinba, Koisa de Crioulo); os jornais do

movimento estudantil, as publicações voltadas para a defesa das causas indígenas, os jornais

de grupos homossexuais (Gente Gay, Jornal da Aliança de Ativistas Homossexuais, Boca da

Noite, Lampião da Esquina, Jornal Corpo do Grupo Somos), os jornais de bairro, etc.

Segundo Araújo (2000), a imprensa alternativa constituía não apenas um fenômeno

jornalístico, mas também um fenômeno político. Representava a difícil convivência entre o

legal e o ilegal, o público e o clandestino.

Esse fenômeno durou até o começo da década de 1980. Por volta de 1980-81, quase

todos os jornais e revistas alternativas haviam deixado de circular. São vários os motivos para

isso. De acordo com Kucinski (2003), havia uma grande precariedade econômica, pois os

alternativos não conseguiam implementar uma distribuição que os libertasse das comissões

dos grandes distribuidores. Os jornais alternativos que tinham projetos nacionais insistiam em

uma circulação a mais ampla possível, como parte de sua proposta de visibilidade, e o preço a

pagar era alto: viviam no vermelho. Além disso, havia uma repressão de fato; como os

atentados a bomba contra jornais e bancas de jornais, fazendo com que os jornaleiros

recusassem receber para vender as publicações alternativas. Outros mecanismos também

eram utilizados, como devassas contábeis, cobrança de débitos previdenciários, prisões,

invasões de redações. O autor aponta ainda que parte da atividade alternativa passou por um

processo de institucionalização, com o fortalecimento dos sindicatos e movimentos sociais e a

criação dos seus órgãos de divulgação.

2.6. Anistia e Tortura: o que a Rádice tem a ver com isso?

Os debates populares, exigindo o fim da ditadura militar, e a perda de prestígio político

do partido governista nas eleições são dois fatores que devem ser destacados ao se discutir o

processo de abertura política que ocorreu a partir da segunda metade da década de 1970. Ao

assumir a presidência do país em 1974, o general Geisel tinha como principais tarefas atenuar

os ânimos dos militares ligados à “linha dura”, que controlavam o aparato de repressão, e

manter as taxas de crescimento do país, atingidas no período anterior. Esse momento foi

marcado por atitudes ora liberalizantes, quando o general-presidente acenou com o projeto de

Page 123: Tese de doutorado sobre a Rádice

123

distensão, estabelecida nos termos “lenta”, “gradual” e “segura”; ora repressivas, pois

continuavam as prisões e torturas aos militantes de esquerda, ou aos assim considerados.

Existia na sociedade, de uma maneira geral, uma crescente expectativa de abertura

política, demonstrada nas mobilizações a favor da volta dos brasileiros exilados, nas

denúncias dos assassinatos que ocorriam nos porões da ditadura e nas pressões dos

movimentos sociais e sindicais que se reorganizavam e se fortaleciam. Segundo Coimbra

(1995), a partir de 1975, começava a ganhar corpo a luta pela anistia – ampla, geral e irrestrita

–, principalmente nos setores ligados à classe média urbana.

Diniz (1985) afirma que essa mobilização contribuiu com o alargamento do processo de

abertura política, e apresenta uma distinção entre projeto de abertura e processo de abertura.

O primeiro seria a proposta elaborada pelo alto, mas que acabou por se transformar no

segundo, pois seu rumo foi determinado não exclusivamente pelos militares, mas pelas

diversas forças sociais. Segundo o autor, a abertura ocorreu a partir da interação de duas

dinâmicas: uma de negociação e pacto, conduzida pelas elites, e outra de pressões e demandas

vindas da sociedade, observadas através da organização política dos movimentos sociais. O

objetivo do general Geisel ao acenar com a distensão era de recompor suas bases de apoio,

propondo uma liberalização lenta, gradual e segura, sem abrir mão do controle, das regras e

limites desse processo.

Nessa conjuntura, surgiram movimentos populares que exigiam a democratização do país

e que são considerados os pioneiros na luta pela anistia: o Movimento Feminino Pela Anistia

(MFPA), organizado pela advogada Therezinha Zerbine, em 1974, e, em 1978, o Comitê

Brasileiro pela Anistia (CBA), organizado por advogados, amigos e familiares de presos e

exilados políticos. Os principais objetivos do CBA eram: levantamento do número de presos,

banidos, exilados, desaparecidos, cassados e aposentados por motivos políticos; levantamento

do número de estudantes punidos pelo Decreto 477; promoção de um trabalho de assistência

aos presos políticos e exilados, criando um sistema de apoio jurídico e publicação do boletim

informativo Anistia.

Ao analisar os múltiplos aspectos políticos do processo de abertura que levaram à

promulgação da Lei de Anistia, em 1979, logo depois que o general João Batista Figueiredo

substituíu Geisel, Lemos (2002) destaca que tal lei serviu como estratégia conciliatória a fim

de preservar os interesses daqueles que ocupavam o poder e, também, como instrumento para

controlar a crise institucional que dominou o período Geisel. O autor observa que se esperava

promover o enfraquecimento da oposição, reunida institucionalmente em torno do MDB,

Page 124: Tese de doutorado sobre a Rádice

124

abafando suas reivindicações e garantindo a “ordem” necessária para a transição. A Lei de

Anistia contribuiu para que fossem anistiados não só os que sofreram a violência de Estado,

mas, também, àqueles que foram os autores dessas violências.

O vocabulário anistia tem sentidos comuns, tanto no vocabulário

jurídico especializado quanto no linguajar leigo: um ato de perdão que

torna inexistente uma atitude anteriormente considerada negativa.

Etimologicamente, anistia significa esquecimento. (LEMOS, 2002, p.

301)

Tal interpretação de Lemos (2002) está presente também em Mourão e colaboradores

(2002), que afirmam ter a Lei de Anistia funcionado como mais um instrumento de

silenciamento ao estender seus benefícios aos que torturaram e assassinaram, ou seja,

cometeram crimes hediondos durante o regime militar. A anistia serviu, até hoje, como

argumento para não se apurar as responsabilidades do Estado brasileiro na tortura, no

assassinato e desaparecimento de centenas de cidadãos.

Retomarei as análises de Lemos (2002) a fim de salientar outro aspecto importante

destacado pelo autor, que é o caráter heterogêneo da anistia, que dividida opiniões dentro das

Forças Armadas (pois havia os que se opunham às investigações e apurações das

responsabilidades dos militares) e, também, entre os grupos da oposição. O historiador

apresenta dois exemplos: a posição do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e os diversos

entendimentos no Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). O PCB via na anistia um meio de

luta contra a ditadura e a condição para o fim do bipartidarismo – o surgimento de novos

partidos e a legalização do PCB –, bem como a instauração de uma nova Assembléia

Constituinte que definiria o regime político que substituiria a ditadura. Já as posições dentro

do CBA não eram homogêneas: general Peri Beviláquia defendia a concessão da anistia em

prol de toda a sociedade; enquanto núcleos do Comitê, dentro e fora do país, apontavam

problemas na anistia recíproca.

Encampando os anseios populares pela anistia, Rádice lançou o seu sexto número,

dedicado a esse debate e à denúncia e reflexão sobre a prática da tortura nas prisões

brasileiras.

Por que tortura?

(...)

Uma revista de psicologia tem muito a ver com isso quando se propõe

a refletir (...) as condições de vida – e portanto de saúde mental – de

uma comunidade e suas implicações tanto a nível individual quanto

coletivo. Esta é nossa proposta e com esta matéria acreditamos estar

Page 125: Tese de doutorado sobre a Rádice

125

somando nossos esforços aos de todos aqueles que lutam pela

erradicação da prática da tortura. (Editorial da Rádice nº 6,

junho/julho de 1978).

Em seu editorial, Ralph aponta a “naturalização da prática da tortura” não só nas prisões,

mas nos hospitais, nas escolas e nas famílias. Em matéria intitulada “Os efeitos da tortura”,

Carlos Ralph e o jornalista Elias Farjado da Fonseca exploram as inúmeras situações de

violência: as internações involuntárias (ver Capítulo1 – Caso Aparecido) nos hospitais

psiquiátricos, a tortura a presos políticos e também à população considerada “marginalizada”:

negros e pobres.

Também constam no número 6 o depoimento do preso político Alex Polari e a publicação

de duas cartas escritas por Jessie Jane Vieira de Souza, durante sua prisão, por motivos

políticos, no Presídio Ari Franco, em Água Santa, no Rio de Janeiro. Na primeira dessas

cartas, endereçada a João Henrique Bortoluzzi, então presidente da Ordem dos Advogados do

Brasil (OAB), Jessie Jane denunciava as violências cometidas contra presos comuns dentro do

presídio; na segunda, endereçada à sua família, na qual relata o assassinato, durante o

carnaval, de um preso (“aquele rapaz de 24 anos”) que teve o corpo exposto no corredor da

enfermaria do hospital do presídio, como “lição” para os demais.

Mais um morto. Provavelmente ninguém reclamou sua presença.

Terá família? Um amor?

Desde domingo estou engasgada, observando os presos; pra eles,

morte-assassinato é rotina. Não podem fazer nem falar nada (...).

Mas eu me sinto ligada àquele rapaz de 24 anos.

Amanhã será outro. E mais outro. Me sinto impotente. Esta é a vida

numa prisão brasileira. Morte.

To angustiada. Com ódio.

Beijos

Jane.

(Carta de Jessie Jane Vieira de Souza. Rádice nº 6, junho/julho de

1978: 18).

A história de Frei Tito de Alencar ganhou destaque na revista. Preso em 1969,

juntamente com vários outros frades dominicanos, em São Paulo, Frei Tito foi vítima de

longas sessões de tortura, pelas mãos do comissário Sergio Fleury, responsável pelo DOPS e

um dos membros do Esquadrão da Morte. Em 1971, depois de longo tempo na prisão, Frei

Tito foi exilado para o Chile. A proximidade com o Brasil permitia que notícias chegassem

com freqüência, o que em nada o ajudava em seu precário estado de saúde.

Page 126: Tese de doutorado sobre a Rádice

126

A queda de Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, segundo Frei Betto (1982),

abalou os sentimentos de esperança de Frei Tito, fazendo com que mergulhasse em profundo

silêncio. Em junho de 1973, foi para Lyon, na França, em busca de um ambiente mais

tranqüilo, passando então a viver no convento de Eveux. Lá, passou a sofrer terríveis

alucinações, durante as quais ouvia a voz do delegado Fleury o interrogando e via seu rosto

ameaçador por todos os lados. Frei Tito ainda passou por um período de internação no

Hospital Edourad Herriot, mas acabou enforcando-se num galho de álamo, em 10 de agosto

de 1974. Na cruz que os dominicanos erigiram para ele, lá mesmo em Eveux, há a inscrição:

Frei da Província do Brasil. Encarcerado, torturado, banido,

atormentado... até a morte, por ter proclamado o Evangelho lutando

pela libertação de seus irmãos. Tito descansa nesta terra estrangeira.

“Digo-vos que, se os discípulos se calarem, as próprias pedras se

calarão” - Lucas, 19,40 (citado por Frei Betto, 1982, p. 253)

Rádice também publica os depoimentos de Dom Adriano Hipólito, na época bispo de

Nova Iguaçu (RJ); de dois operários presos e torturados pelos agentes do DOPS/SP; de Ana

Maria Moreira, paciente psiquiátrica denunciando os “tratamentos” praticados dentro da

instituição onde estivera internada; dos familiares de uma militante política desaparecida, Ísis

Dias de Oliveira.

Kolker (2002) observa que a tortura, antes utilizada apenas contra os setores mais pobres

da sociedade, passou a ser instrumento usado pelo Estado para calar as vozes opositoras ao

regime, que adaptou a legislação brasileira à Doutrina de Segurança Nacional e legitimou o

terror como forma de controle político-social. Todo o aparato de repressão visava não apenas

à eliminação física dos opositores políticos, mas também à disseminação do “estado de medo”

e da imobilização de toda a sociedade. “Demonizar os inimigos do regime e convertê-los em

inimigos da pátria, da família e da propriedade servia portanto a dois objetivos: isolá-los e

justificar o rigor da repressão” (Kolker, 2002, p. 39).

De acordo com Coimbra (2002), a noção de “periculosidade” e a de “prevenção” são os

argumentos do Estado para justificar a violência institucionalizada. A primeira pressupondo

algo que se “transmite” hereditariamente – os “perigosos” são os indivíduos descendentes dos

escravos, dos índios e filhos da população mais pobre, que carregam um “gene” relacionado à

“periculosidade”. Essa é uma forma de interpretação relacionada com as idéias eugênicas e

racistas muito difundidas no Brasil dos anos 20, que, ainda hoje, prevalece na sociedade de

maneira geral. Na segunda noção, o “perigoso” deve ser separado da vida coletiva, seja

Page 127: Tese de doutorado sobre a Rádice

127

encarcerando-o nas prisões superlotadas e violentas ou “tratando-o” através das técnicas

psiquiátricas e psicoterápicas. Tais técnicas, ainda, guardam o poder de prever essa condição

de “periculosidade”, antecipando a segregação. Para a autora, ao longo do século XX,

especialmente no período do regime militar que se instaurou no Brasil, e com o acirramento

das ações repressivas a partir do AI-5, a tortura era justificada pelos generais como

“necessária em certos casos”, para “evitar um mal maior”, como expressava o general Geisel.

A autora denuncia que durante a ditadura militar foram produzidos pelo Ministério do

Exército manuais que orientavam como proceder durante os interrogatórios, vistos pelos

militares como uma “arte” – a de extrair o máximo de informações dos considerados

“subversivos”. Para atingir seu objetivo, os interrogadores não estavam obrigados a observar

as regras do Direito e seus conhecimentos técnicos eram respaldados por profissionais como

médicos-legistas, psiquiatras, psicólogos, advogados. Coimbra (1995) denunciou também a

prática de psicólogos que contribuíram com seus conhecimentos a fim de traçar o “perfil do

terrorista brasileiro”. A citação que se segue foi retirada da cópia de um documento do I

Exército datado de 5 de agosto de 1971, que foi fornecido por Cecília Coimbra :

Esta Agência remete em anexo, cópia de um Relatório Confidencial,

(inelegível) conclusivos sobre o estudo e interpretação do teste de

RORSCHACH, (inelegível) a um grupo de terroristas, solicitado pelo

I Exército.

O assunto será tratado oportunamente na imprensa, de maneira

adequada.

RELATÓRIO CONFIDENCIAL

Resultados conclusivos sobre o estudo e interpretação do teste de

Rorschach, aplicado a um grupo de terroristas solicitado pelo I

Exército. O grupo examinado era constituído de elementos de ambos

os sexos, com nível de escolaridade de grau médio e superior.

(...)

TRAÇOS DOMINANTES DO GRUPO:

Os terroristas, em sua maioria, revelaram como traços dominantes:

a. estabilidade emocional e afetiva, precária;

b. dificuldades de adaptação e ajustamento;

c. atitude opisicionista, voltando sua agressividade

(inelegível), ora contra o próprio ego;

d. escasso interesse humano e social (atitude anti-social);

e. pensamento rígido e índice de estereotipia elevado;

No romance de Arthur Poerner, Nas profundas do inferno, de 1979, reeditado em 2007,

há um depoimento sobre técnicas de inquérito e investigação às quais o autor foi submetido e

que podem ser relacionadas aos discursos e práticas “psis”:

Page 128: Tese de doutorado sobre a Rádice

128

Apareceram dois guardas, o do chaveiro e o da metralhadora todo o

tempo apontada para mim, enquanto um oficial me entregava bloco,

um questionário impresso e um lápis-tinta bem apontado. Devo

fornecer o máximo de detalhes sobre a minha vida, (...), tais como “A

sua infância pode ser considerada normal?”, “Você recebeu suficiente

formação religiosa?”, (...) “Quando e em que condições manteve sua

primeira relação sexual?” No fundo, eles estão querendo entender

como alguém pode se opor a um regime tão bom. E buscam (...), em

possíveis traumas infantis, desvios religiosos ou complexos de ordem

sexual, as causas da doença oposicionista de que fui acometido.

(POERNER, 1979, p. 41)

A Rádice nº 6, divulga que a Anistia Internacional denunciava o aumento do número de

pessoas presas no mundo em razão de suas condições políticas, religiosas ou de raça, e a

participação de médicos nas atividades de tortura: ou realizaram exame antes dos

interrogatórios que, sabidamente comportaria torturas; ou assistindo às próprias sessões, a fim

de dar alarme caso ocorresse algum risco vital; ou, ainda, com a tarefa de reanimar as vítimas

para que se pudesse dar continuidade às torturas. Além disso, muitos desses profissionais

contribuíram no desenvolvimento de novas formas de tortura a partir de técnicas médicas. No

Brasil, um caso emblemático dessa prática, descrito por Coimbra (1995), foi o do ex-médico

Amílcar Lobo ou Dr. Carneiro, codinome que utilizava ao acompanhar as sessões de tortura,

nas dependências do DOI-CODI do Rio de Janeiro.

A sociedade civil passa a se organizar para denunciar os crimes cometidos pelo Estado

brasileiro contra cidadãos durante o período da ditadura e a exigir esclarecimentos sobre tais

crimes, bem como recuperar a historia daqueles que foram assassinados e desaparecidos. Em

26 de setembro de 1985, foi criado o Grupo Tortura Nunca Mais, entidade civil cujas

finalidades são a denúncia e o esclarecimento de todo e qualquer crime e a postura contra a

impunidade. Em 1987, esse grupo realizou o I Seminário Tortura Nunca Mais e as

conferências proferidas foram reunidas e publicadas em livro. Neste seminário, o psicanalista

Hélio Pellegrino explica o que é tortura, o que nos mostra a sua atualidade:

A tortura no Brasil foi, e é, – plenamente – , um fato político e, como

tal, deve ser analisada. A tortura política é um sintoma terrível e

eloqüente da crueldade da luta de classes em nosso país. (...) Fome é

tortura, doença é tortura, ignorância é tortura, relento é tortura, criança

abandonada é tortura. (PELLEGRINO, 1987, pp. 95-96).

Em outros países da América-Latina as transições políticas seguiram outros rumos, em

relação à responsabilização daqueles que em nome do Estado, torturaram e assassinaram,

Page 129: Tese de doutorado sobre a Rádice

129

como na Argentina, por exemplo, que tem condenado alguns militares envolvidos nos crimes

no período ditatorial. Para Lemos (2002), “(...) a simples formalização da denúncia e a

subseqüente decretação de penas já indicam uma maneira menos conciliatória de lidar com a

questão dos crimes cometidos por agentes do Estado durante os períodos ditatoriais” (p. 299).

Ao que parece, temos um longo caminho a ser percorrido no Brasil no que se trata da

violência de Estado, no período da ditadura e na atualidade.

Page 130: Tese de doutorado sobre a Rádice

130

CAPÍTULO 3

DOS ENCONTROS

Eu já estou com o pé nessa estrada

Qualquer dia a gente se vê

Sei que nada será como antes,

Amanhã...

(“Nada será como antes”, Milton Nascimento e

Ronaldo Bastos)

Uma vez assistia a uma mesa redonda em homenagem ao professor Cláudio Ulpiano,

quando um dos palestrantes, citando o filósofo Baruch de Espinosa, disse que o bom encontro

é aquele que possibilita a vida. Essa frase grudou em mim e é ela que norteia este capítulo. A

Rádice foi efeito de muitos bons encontros, bem como promoveu muitos deles. O “bom” não

é moral, é potência porque cria e positiva a vida, como afirma Deleuze:

Encontram-se pessoas (e por vezes sem as conhecer sem as ter jamais

visto), mas também movimentos, idéias, acontecimentos, entidades

(...). Encontrar é descobrir, capturar, roubar. Mas não há um método

para descobrir, apenas uma longa preparação. Roubar é o contrário de

plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre

uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo. É assim que se cria,

não algo mútuo, mas um bloco assimétrico, (...) sempre “fora” e

“entre”. (DELEUZE e PARNET, 1996, p. 17)

Dos “bons encontros”, novos campos de batalha se constituem, novos enfrentamentos. A

vida sempre tensa e multifacetada – um emaranhado caótico, nada linear ou harmônico –

debate também sua finitude. A vontade se direciona para outro lugar, novos mares... é um

Page 131: Tese de doutorado sobre a Rádice

131

momento de transformação. A menina Rádice se metamorfoseia no moleque Luta & Prazer.

É o fim da nossa história.

3.1. Transformações no universo “Psi”

Os primeiros acontecimentos da década de 1980 trouxeram a vontade de conquista da

democracia, mas também a inflação, e todos os efeitos do fim do “milagre”, fazendo com que

novas formas de luta e de resistência política surgissem: os movimentos sociais que se

fortaleciam, o fim do bipartidarismo e o surgimento de novos partidos políticos, as questões

sobre sexualidade, drogas, o movimento ecológico, o surgimento do Movimento dos Sem

Terra (MST), entre outros.

Como vimos, a partir da década de 1970, são lançadas críticas à psicologia em várias

direções, questionando os efeitos das práticas “psis”. Para os psicólogos, as coisas também

mudaram nos anos 80, com a constituição de novos campos de atuação. As críticas à

psicologia apontavam que, por ter uma eficácia no mundo, os discursos “psis” produziam

(produzem) padrões de normalidade, excluindo aqueles sujeitos que não reproduziam tais

padrões e inventando técnicas de ajustamento e adequação. Esses padrões não estão

relacionados somente aos aspectos psicológicos, mas também se aplicam como

condicionantes social, cultural e político – se aplicam sobre toda a vida.

É por analisar as práticas e sua eficácia que Baptista (2000) coloca em questão a

formação psi, entendendo-a como uma fábrica que produzirá indivíduos montados peça por

peça para ocuparem seus consultórios e salas de postos de saúde, promovendo o

desaparecimento dos que pela porta entrarem. A fala do especialista faz desaparecer os

corpos e suas marcas históricas. A escuta é surda, o olhar descreve e a memória é um feixe de

neurônios.

Ao interrogar a psicologia e apontar os efeitos de tal prática, abre-se um campo de

possibilidades. Torna-se necessário inventar novas formas de atuação, implicando a

psicologia com o campo social e político.

Segundo Pessotti (1988), houve, na década de 1980, uma cisão entre a universidade e o

campo da prática. Na universidade, as mudanças aconteciam lentamente, preservando o

modelo clássico de formação ligado à psicologia experimental e ao behaviorismo. Ao mesmo

Page 132: Tese de doutorado sobre a Rádice

132

tempo, a formação em psicologia passa a ser bastante procurada; esse fenômeno, percebido

como um investimento comercial lucrativo, promoveu a abertura de cursos em instituições

mais comprometidas com os dividendos da educação.

As exigências curriculares de 1962 favoreceram cada vez mais a crescente tecnificação

da formação, aspecto exacerbado pela Reforma Universitária, como já apresentado no

primeiro capítulo, reforçando práticas da psicologia comprometidas com as medidas

individuais, a classificação e ajustamento dos “desvios” de comportamento, rotulando e

excluindo os sujeitos.

Fora dos muros da universidade, a interrogação das práticas possibilita o surgimento de

novas experiências como, por exemplo, o que ficou conhecido como psicologia comunitária.

As “comunidades”, especialmente as mais desprivilegiadas e abandonadas pelos governos,

tornam-se uma preocupação dos profissionais “psi”, que passam a subir as favelas. Com o

apoio das associações de moradores, da Pastoral de Favelas, das escolas e dos profissionais de

saúde que já atuavam nesses espaços, foram estreitando relações com a população,

desenvolvendo trabalhos, orientando professores para a pré-escola, participando de mutirões

para a construção de casas, debatendo as necessidades básicas com a população, como o

acesso à saúde.

No campo da saúde, começam a aparecer os primeiros concursos públicos oferecendo

vagas para o cargo de psicólogos. Os profissionais de saúde implicados com as mudanças no

campo da saúde mental, assumiram seus postos de trabalho – não mais de forma precária, mas

garantidos como funcionários púbicos – e implementaram os novos preceitos,

descentralizando a assistência e criando alternativas à hospitalização.

O ano de 1987 foi um marco na reorganização do movimento dos trabalhadores em saúde

mental no Rio de Janeiro. Os profissionais de saúde reuniam-se semanalmente para discutir

as questões políticas do setor, as questões da promoção e defesa dos direitos dos cidadãos

internados nos hospitais psiquiátricos. Essas reuniões, antes realizadas dentro dos hospitais,

tomam outros espaços da cidade, sendo o Sindicato dos Psicólogos um desses espaços.

Em 1989, o sindicato abriu uma discussão com a Secretaria Estadual de Saúde a respeito

da ampliação do número de vagas para os psicólogos tanto na saúde mental quanto nos

hospitais gerais. As propostas de inserção dos psicólogos nesses espaços decorreriam de sua

compreensão como um profissional de saúde e que deveria estar integrado à equipe de saúde

dos hospitais. Pretendia-se também discutir a rotina dos hospitais, a qualidade do

Page 133: Tese de doutorado sobre a Rádice

133

atendimento que era oferecido à população, a vida nas enfermarias. Naquele momento, o

sindicato foi fundamental na organização da classe, nas discussões e também na abertura de

novos campos de atuação.

Outro ponto de destaque desse momento – anos 80 – eram as críticas endereçadas às

sociedades de psicanálise ditas “oficiais”, ou seja, ligadas à IPA, que apareceram também no

número 15 da Rádice. A psicanálise chega ao Brasil em momento de grandes transformações

políticas, culturais e sociais do começo do século XX, como a Revolução de 30; a

reorganização no papel social da mulher com o direito ao voto; a Semana de Arte Moderna e a

fundação do Partido Comunista, em 1922. Tornou-se referência de “modernidade” por um

lado, mas por outro, se agenciou aos mecanismos de controle e disciplina social impregnando

com suas idéias outras instituições além do hospital como, por exemplo, a escola, que nesse

momento de mudanças buscava um saber voltado para a orientação, seleção e assistência

psíquica aos alunos que se afastavam das normas de sociabilidade e aprendizagem.

Rocha (1989) indica dois fatos que marcaram o nascimento da psicanálise no Brasil: a

criação da primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise em 192792

, em São Paulo,

preocupada, principalmente, com a formação do analista, que até então eram os psiquiatras

que se interessavam por esse novo saber, não existindo escola que oferecesse formação

específica; e a publicação da primeira revista especializada em Psicanálise, em 1928, a

Revista Brasileira de Psychanalyse.

A existência de uma formação específica em psicanálise representou um distanciamento

entre a psiquiatria e a psicanálise, que deixava de ser apenas uma técnica do aparato

psiquiátrico para se constituir num novo tipo de abordagem com características próprias. De

qualquer forma, manteve-se monopolizada o tempo todo pelos médicos: “a psiquiatria assiste

a psicanálise se desenvolver em seu interior como uma especialidade de segundo grau. Essa

relação de englobamento, entretanto, foi sendo paulatinamente invertida” (RUSSO, 1993, p.

75). Nas décadas de 40 e 50, ocorreu a institucionalização da psicanálise com a criação da

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da Sociedade Psicanalítica do Rio

de Janeiro (SPRJ) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) 93

.

92 Esta sociedade contava com Franco da Rocha como presidente e Durval Marcondes como secretário. No ano

seguinte, foi criada a Seção Rio de Janeiro com Juliano Moreira como presidente e Júlio Porto-Carrero como

secretário-geral. Em 1929, a Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida pela International Psychoanalitical Association (IPA). É importante ressaltar que esta sociedade não permaneceu por muito tempo,

outras surgiram a partir de 1940, com outro enfoque. Sobre o assunto ver: RUSSO, 1993. 93 A SBPSP foi reconhecida pela IPA, em 1951, no XVII Congresso Psicanalítico Internacional, em Amsterdã.

A SPRJ, em 1955, no XIX Congresso Psicanalítico Internacional, em Genebra. Por último, a SBPRJ que

Page 134: Tese de doutorado sobre a Rádice

134

Segundo Russo (1993), nos anos 60 do século passado, os psiquiatras-psicanalistas

disputavam com seus colegas “organicistas” o poder e o prestígio dentro dos hospitais

psiquiátricos. Se num primeiro momento, os psiquiatras que se interessavam pela psicanálise

ocupavam posição privilegiada dentro dos hospitais, no segundo momento este lugar tornou-

se dos psicanalistas que preconizavam reformas nessas instituições, afastando os leigos em

psicanálise e buscando novos aliados fora da medicina (psicólogos, assistentes sociais), sem,

contudo, abrir mão do prestígio da psiquiatria.

A procura pelas sociedades “oficiais” de formação psicanalítica multiplicou-se,

principalmente no eixo Rio-São Paulo. Nos anos 70 do século XX, ocorreu o boom referente

à psicanálise no Brasil. Para Russo (1993), esse fato deveu-se à combinação de uma intensa

divulgação da psicanálise nos meios leigos e a um aumento da demanda de terapia em alguns

segmentos da classe média. Foi nessa época, segundo a autora, que os psiquiatras-

psicanalistas conseguiram a hegemonia nas instituições psiquiátricas. Isso se explicou pela

difusão desse saber entre os profissionais não-médicos, especialmente os psicólogos. A

psicanálise teve forte influência nos cursos de Psicologia e ampliou, assim, seu próprio

mercado e demanda por seus serviços.

Entretanto, as sociedades oficiais reservavam suas vagas somente àqueles que possuíam

diploma de médico, o que levou os psicólogos a constituírem suas próprias sociedades.

Assim, verificou-se uma disputa pela “verdadeira psicanálise”: de um lado as sociedades

ligadas à IPA; de outro as que não se enquadravam e tentavam acabar com o monopólio das

primeiras. Os rachas, as cisões aconteceram por vários motivos. Primeiro, em relação à

questão: “quem pode ser psicanalista”; depois, em relação à difusão da psicanálise, e, assim, a

cada novo impasse, uma nova sociedade, ou escola, ou instituição psicanalítica surgia no

cenário psicanalítico brasileiro.

Porém, havia uma questão: os psicólogos formados pelas sociedades de psicanálise não-

“oficiais” não tinham o mesmo prestígio que os analistas-médicos formados pelas associadas

à IPA. De acordo com Coimbra (1995), três fatores contestaram o monopólio dos médicos:

primeiro, ocorre a criação de duas instituições que passaram a oferecer cursos e que

congregavam um grande número de psicólogos: o Centro de Estudos de Antropologia Clínica

(CESAC) e a Associação de Psicologia e Psiquiatria da Infância e da Adolescência (APPIA);

segundo, a imigração de psicólogos e psicanalistas argentinos afugentados pela repressão

somente em 1959 teve seu reconhecimento pela IPA, no XXI Congresso Psicanalítico Internacional, em

Copenhague. Ver: COIMBRA, 1995.

Page 135: Tese de doutorado sobre a Rádice

135

política em seu país, e que desafiam a hegemonia das sociedades “oficiais”, criticando a

psicanálise “ortodoxa” praticada nas clínicas privadas, propondo formas de intervenção – com

famílias, comunidades, instituições etc.– que fogem à tradição; e terceiro e último fator, que

também vem colaborar com a ruptura do monopólio médico, foi a invasão da teoria lacaniana,

de maneira especial no Rio de Janeiro. A partir desses acontecimentos, as sociedades

“oficiais” se viram obrigadas a admitirem candidatos psicólogos em seu quadro de alunos,

isso em 1980.

Com o boom dos discursos “psis”, emergiu um fenômeno chamado “psicologização”, ou

seja, a redução dos problemas sociais e políticos a explicações psicológicas e

individualizantes. O discurso psicologizante tomava conta das famílias, particularmente as de

classe média. A família era percebida como o suporte e a mantenedora de uma sociedade

saudável; caso algo desse “errado”, só ela seria a responsável pelos filhos “desviantes” ou

“diferentes”. Tudo foi reduzido ao psiquismo e o “eu” predominou, as pessoas passavam a se

preocupar com seu mundo “interior”, com suas emoções.

Segundo Coimbra (1995), a repressão política vivida nos “anos de chumbo” e os

movimentos que contestavam as ações do regime da ditadura militar eram ignorados e

desqualificados pelos “psi”, preocupados com sua “clínica”. As sociedades “oficiais”

reproduziam as mesmas práticas autoritárias que marcaram todo o período da ditadura militar

no Brasil. A psicanálise deveria ser preservada para se manter “pura”. Os que pretendiam se

tornar analistas deveriam se submeter ao saber e ao poder do analista-didata, encarado como o

Grande Mestre. Para se tornar analista, havia uma série de etapas as quais os candidatos

deveriam se submeter, sendo a primeira a escolha de um analista didata. A formação é um

investimento, o candidato deve pagar por ela. As sociedades controlavam quem poderia ser

candidato a analista e quem se tornaria analista. A oferta de vagas era sempre abaixo da

procura, promovendo a elevação dos preços do investimento. As sociedades eram vistas

como instituições altamente hierarquizadas, burocráticas e hermeticamente fechadas.

As sociedades mais tradicionais e conservadoras tornaram-se alvo de uma série de

críticas, inclusive de seus associados, muitos implicados com o momento político do país de

abertura política. Se toda e qualquer forma de autoritarismo era questionada, interrogada

naquele momento, as sociedades de psicanálise mais conservadoras, ligadas à IPA, não

podiam deixar de ser alvo dessas críticas.

Um fato analisador desse momento foi a expulsão de dois psicanalistas da SPRJ, Hélio

Pelegrino e Eduardo Mascarenhas. As críticas e denúncias sobre a expulsão foram

Page 136: Tese de doutorado sobre a Rádice

136

publicizadas, permitindo um debate amplo a partir da repercussão da expulsão e da

constituição, dentro da SPRJ, do Fórum de Debates. Esses fatos trouxeram à tona também as

denúncias contra o ex-médico Amílcar Lobo, promovendo uma grave crise institucional.

A história da expulsão dos dois psicanalistas começou com a publicação de uma matéria

do jornalista Roberto Mello, no Caderno B do Jornal do Brasil de 23 de setembro de 1980, na

qual apresentava as críticas feitas por três psicanalistas ao “baronato” dos membros diretores

das sociedades “oficiais” de psicanálise

Três psicanalistas – Eduardo Mascarenhas, Wilson Chebabi e Hélio

Pellegrino – acabam de denunciar o „baronato‟ da psicanálise: os altos

custos do tratamento, a gerontocracia nas instituições psicanalíticas, as

discriminações ideológicas contra candidatos à formação, o falso

„apoliticismo‟, e até mesmo a ignorância das obras de Freud.

(MELLO, R. Os barões da psicanálise. Jornal do Brasil, 1980)

A denúncia havia sido feita durante o Simpósio Psicanálise e Política que acontecia

sempre às quartas-feiras no auditório da PUC-Rio. O simpósio era organizado pela Clínica

Social de Psicanálise, criada por Helio Pellegrino e Katrin Kemper. Nesse mesmo simpósio,

um ex-preso político denunciou Amílcar Lobo como o médico que o acompanhara nas seções

de tortura às quais fora submetido durante sua prisão.

Durante o I Simpósio Alternativas no Espaço Psi realizado em 1981 em Porto Alegre,

Hélio Pellegrino relembrou outros elementos que compuseram essa história:

Em 1968, participei das grandes passeatas de então, (...). Quando veio

o AI-5, em dezembro de 68, tive que me esconder, pois era bastante

visado. Depois de algum tempo, apresentei-me, porque não havia

nenhum motivo para eu me tornar clandestino. Depois de um mês e

meio, dirigi-me ao Ministério do Exército, (...). fui preso e processado

pela Lei de Segurança Nacional. Eu poderia ficar mais ou menos

tempo preso, na medida que o processo ficasse pronto com maior ou

menor rapidez. Solicitei, então da S.P.R.J., uma carta dizendo apenas

o seguinte: “Declaramos que a prisão do Dr. Hélio Pellegrino pode

eventualmente provocar ansiedade nos seus pacientes”. (...).

Entretanto, a Sociedade se negou a dá-la, em nome do apoliticismo.

Nesse mesmo ano, 1969, foi aceito como candidato da S.P.R.J. um

médico chamado Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva. Esse médico,

nos anos de 1970 a 1973, fez parte, inequivocamente (...) do DOI-

CODI da Polícia do Exercito da Rua Barão de Mesquita do Rio de

Janeiro. Ele fez parte de uma equipe de torturadores políticos.

(PELLEGRINO, 1982, p. 35)

Page 137: Tese de doutorado sobre a Rádice

137

Esses fatos tornaram visíveis o corporativismo e o autoritarismo característicos das

instituições psicanalíticas. A SP/RJ foi alvo de críticas vindas do lado de fora dos seus muros

e também do lado de dentro. Na mesma época do episódio da expulsão de Hélio Pellegrino e

Eduardo Mascarenhas94

, constituiu-se dentro da SPRJ o Fórum de Debates, movimento

organizado por Carlos Alberto Barreto, Fábio Lacombe, Heládio Miziara, Nilo R. de Assis e

Wilson Chebabi.

Além da defesa dos psicanalistas expulsos e dos outros 13 punidos por prestarem

solidariedade a Pellegrino e Mascarenhas, o Fórum tinha como plataforma a reforma do

estatuto da instituição, inserindo o direito ao voto do membro associado. O “baronato” ao

qual o jornalista havia se referido e que fazia parte das denúncias era uma metáfora do modo

como a instituição se organizava.

De todos os membros – efetivos e associados – somente os primeiros tinham poder de

decisão, ditando os rumos da instituição, além de exercerem o papel de didata, aquele que

orientava os Seminários e analisava os candidatos a psicanalista que se matriculavam no

Instituto de Ensino mantido pela sociedade. A escolha dos didatas era feita pela IPA, a partir

de uma lista de nomes pré-selecionados enviada pela instituição. Como analisavam os

candidatos, os didatas eram chamados de barões, pois tinham o poder sobre o feudo. Na

SPRJ, por exemplo, a análise pessoal do candidato era quatro vezes por semana, sendo

custeada pelo próprio, cada didata possuía um número específico de candidatos,

caracterizando, assim, um baronato.

Depois de cinco anos de análise pessoal e de formação no curso teórico, os candidatos

apresentavam um trabalho teórico, cabendo aos membros da direção da instituição aprová-los

ou não. Só então, os candidatos passavam a ser membros associados. Mas, na hierarquia da

sociedade, só os membros efetivos tinham direito ao voto. Os associados ficavam sob a tutela

dos efetivos.

O Fórum não foi um movimento psicanalítico, ou seja, não estava em questão a teoria da

psicanálise, mas foi a maneira encontrada pelos seus fundadores para dizer que a teoria

psicanalítica não poderia ser amordaçada pela ditadura da instituição. Organizaram um

movimento porque pretendiam mudar a sociedade de dentro para fora. Houve um cisma na

94 De acordo com Barreto (1982), as Assembléias Gerais que determinaram a expulsão dos dois psicanalistas ocorreram entre os dias 14 de abril e 05 de maio de 1981. Em 14 de abril, foi lido um documento assinado por

trinta membros associados que exigiam a suspensão de qualquer punição aos colegas e o início de um processo

de auto-análise institucional, considerando que todos eram responsáveis pela crise que atravessavam. Em 27 de

maio de 1981, foi constituído o Fórum de Debates.

Page 138: Tese de doutorado sobre a Rádice

138

SPRJ: havia a sociedade e o grupo do Fórum, que também foram expulsos por um longo

tempo da sociedade, passando a se reunir no Sindicato dos Médicos. Mesmo assim,

intitulavam-se Fórum de Debates da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro,

evidenciando seu laço com a instituição.

No final da década de 1980, houve o que consideraram uma abertura da SPRJ. O Fórum

voltou a ocupar seu espaço dentro da sociedade e era tido como “opositor” e “crítico” aos que

ocupavam os cargos de direção, considerados reacionários e de direita. Em 1990, os membros

do Fórum concorreram às eleições para os cargos de direção da SPRJ e depois de uma

fragorosa derrota dissolveram o movimento. Outro fator determinante na dissolução do

Fórum foi a saída da sociedade de seus líderes, como, por exemplo, Carlos Alberto Barreto.

Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas haviam sido readmitidos na sociedade depois de um

processo judicial. “A sociedade mudou, abriu as portas para outros profissionais. Houve uma

reforma estatutária. E entram as mulheres nos cargos de direção. Deixaram o ambiente mais

claro” (BARRETO, Carlos Alberto, (depoimento). Rio de Janeiro, 2008).

Outra instituição que entrou no debate sobre a crise da psicanálise foi o IBRAPSI, que

surgiu em 1978 com o I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições que

aconteceu entre os dias 20 e 22 de outubro no Copacabana Palace, com a chamada “O maior

acontecimento psicanalítico da América Latina”. O simpósio reuniu nomes da psicologia, da

psicanálise e da psiquiatria, tendo a presença de Felix Guattari, Franco Basaglia, Robert

Castel, Thomas Szasz, Irvin Goffman e, inexplicavelmente, Shere Hite. Contou ainda com os

brasileiros Sergio Arouca, Roberto Machado, Gilberto Velho, Jurandir Freire Costa, Peter Fry

e Armando Bauleo, entre outros.

O objetivo era fazer do simpósio um ato inicial de um movimento de reformulação crítica

da psicanálise, psicologia e psiquiatria. Os organizadores foram Samuel Chaim Katz, Luiz

Fernando de Melo Campos e o argentino Gregório Baremblitt e tinham como proposta reunir

psicólogos, psiquiatras, antropólogos, sociólogos e outros profissionais das ciências humanas

na formação de uma instituição singular que servisse como contraponto às instituições

“oficiais” de psicanálise.

A proposta era inovadora, o que provocou uma forte resistência contra a instituição. Ao

contrário do que acontecia nas outras sociedades de psicanálise, o IBRAPSI oferecia acesso a

todos em seus cursos de formação e por isso foi acusado de assistencialista. Outros

criticavam ainda o fato de ser uma instituição privada, de funcionar como uma empresa. Foi

Page 139: Tese de doutorado sobre a Rádice

139

um ponto importante na promoção da reflexão política da prática “psi” no Brasil, propondo

outra maneira de pensar a formação e a prática profissional que implicava,

(...) formar um trabalhador de saúde mental capaz de atuar de forma

transdisciplinar e capaz de fazer uma leitura complexa, política, social,

histórica e psíquica de sua prática. Isso significa uma mudança radical

do sistema de formação. (Gregório Baremblitt, em entrevista ao

Jornal do CRP06 de maio/junho de 1993).

O IBRAPSI durou seis anos e marcou a formação de muitos “psis” que viram na

instituição uma saída para a formação acadêmica, que pouco mudara, e para as sociedades de

psicanálise. Era um lugar de debates e intensas discussões, de paixões e encontros, associado

a uma nova aposta de que a prática clínica poderia ser entendida como prática política.

3.2. Os últimos números da Rádice

Das denúncias do primeiro momento, passando pela afirmação de alternativas, a revista

Rádice entra em sua terceira fase: com uma linha editorial mais opinativa, afirma seu lugar no

mundo. Os números que serão fonte deste capítulo são 11, 12, 13, 14 e 15, publicados entre

1979 e 1981.

A Rádice se multiplicou. Em 9 de outubro de 1979, Carlos Ralph lançou a revista Teoria

Crítica, motivado pelos artigos publicados na seção “Teoria/debate” nos números 4, 5, 6 e 7.

O objetivo dessa nova publicação era debater temas considerados mais “acadêmicos”. O

lançamento, em uma festa na Livraria Muro “foi um tremendo barato. Rolando o maior baile,

abrilhantado pelo conjunto Forrobodó, o que aconteceu não sai em gibi. Alegria, alegria, 70

litros de batida e a revista circulando entre os sorrisos e pares do salão” (Rádice, seção

“Geralmente”, nº 11, novembro/dezembro de 1979, p. 5).

“Uma nova Rádice, um novo espaço para o debate”, assim Carlos Ralph definia a Teoria

Crítica, no editorial do primeiro e único número. Os textos publicados foram “Catarse da

Agressão – ainda resta uma esperança. Aliás duas. Talvez até três...” de Bernardo Jablonski,

“O excepcional e a norma” de Lilia Ferreira Lobo, “Capitalismo e doença mental” de Rinaldo

Barros, “As lutas do desejo e a psicanálise” de Félix Guattari, “O complexo de Édipo e contos

de Fadas” escrito por Ana Maria Horta Thomé, Rosane Chonchol Dowek e Sandra Mara

Lopes, “Sobre a violência” de Gisálio Cerqueira Filho.

Page 140: Tese de doutorado sobre a Rádice

140

Entre um artigo e outro, seções como “Posições”, “Citações”, “Cata Curtas”, “Livros

Indispensáveis em Psicologia” e “Ressonância”. Ficaram de fora desse primeiro número os

artigos “O que não fazer num trabalho de psicologia comunitária”, de Roosevelt M. S.

Cassorla e “Sobre Wilhelm Reich”, de Romel A. Costa. De acordo com Carlos Ralph, as

dificuldades econômicas impediram a ampliação do espaço da Revista, prometendo a

publicação dos dois artigos no número seguinte, o que não ocorreu, pois, a Teoria Crítica teve

somente esse primeiro número.

Na seção “Geralmente” do nº 1195

, foi publicada uma carta endereçada ao “Editor Geral

da Rádice”, enviada pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, respondendo às

acusações feitas em números anteriores por Carlos Ralph. Uma das primeiras “brigas” da

Rádice, ou melhor, de Carlos Ralph, foi com o Conselho profissional. A autarquia não

mantinha uma relação estreita com os psicólogos, sendo vista como uma instituição

burocrática e que não representava a categoria. Outra questão apontada inúmeras vezes na

Rádice era a realização de assembléias orçamentárias pouco divulgadas e esvaziadas e os

sucessivos aumentos no preço das anuidades, considerados extorsivos. Na carta enviada à

instituição, Carlos Ralph defendia-se das acusações apontadas na representação ética aberta

pelo Conselho contra ele. O CRP afirmava que houve divulgação da assembléia orçamentária

do ano de 1978 no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, como estabelecido pela lei que

rege as autarquias. Ralph, na “Tréplica”, argumenta que o veículo utilizado para divulgação

não era lido pelos psicólogos e que cabia ao conselho a responsabilidade por uma divulgação

mais ampla, e denunciava:

(...) recebo informação que o mesmo expediente de Assembléias

fantasmas está sendo posto em prática por outros CRPs. (...) A

categoria gostaria de saber quantos estiveram presentes à Assembléia

do Rio; quantos votaram a favor do aumento e quantos são os

associados do CRP. Questão de representatividade, compreendem? A

notícia da Rádice de que a Assembléia não foi devidamente divulgada

está certa. O CRP errou, como vem ocorrendo freqüentemente

(Carlos Ralph Lemos Viana, Editor Geral da Rádice. Em Rádice,

seção “Geralmente”, nº 11, 1979, p. 5)

95 Colaboraram no nº 11: Jean dos Santos, Carlos Eugênio Marer, Cora Sauerbronn Villela, Mayta de castro de

Oliveira, Luiz Fernando Sarmento, Vera Vitis, Fernando Goldgaber, Denise Cunha, José Jackson Coelho

Sampaio, Valéria Pereira de Souza, Oswaldo da Silva, José Luiz Thadeu, David Bocai, Vera Ferraz, Ruben Fernandes, Marco Aurélio Pereira de Lacerda, Antonio Di Sordi, Marcelo Lartigue, Conchita Batalha, Nicolau

Bina Machado. Sucursais: Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Belo Horizonte,

Uberaba, Viçosa, Brasília, São Paulo, Dois Córregos, São Caetano do Sul, São José dos Campos, Lorena, Baurú,

Alto dos Pinheiros, São Vicente, Florianópolis, Pelotas.

Page 141: Tese de doutorado sobre a Rádice

141

Na matéria “Temporada de caça”, publicada no último número da revista, em 1981,

Carlos Ralph denunciava o processo ético movido contra ele pelo Conselho regional. De

acordo com a matéria, a Comissão de Ética do Conselho acusava-o de infração a quatro

artigos do Código de Ética Profissional dos psicólogos, e que tal representação fora motivada

pelas críticas ao modo como o CRP conduzira o processo eleitoral, publicadas no número 13

da Rádice. Ralph obteve apoio de psicólogos que haviam recusado a indicação feita pelo

Conselho para serem seus defensores dativos, e também do Sindicato dos Psicólogos, que

fixou a carta aberta do editor da Rádice em suas paredes.

O clima de contestação não se restringia às brigas com o conselho. Na capa do nº 11,

desenhada por Jaime Leão, há uma caricatura de Freud sentado em seu divã tendo, ao fundo,

uma parede com pichações “direito de greve”, “pela humanização dos hospitais

psiquiátricos”, “anistia”. A matéria principal, intitulada “A psicologia de oposição”, relatava

e discutia o surgimento de diversos movimentos políticos dentro do universo “psi”, motivados

pela necessidade de união para discutir a profissão e a organização política dos psicólogos.

Os profissionais “psis” saíram de seus consultórios e enfrentaram a realidade dos hospitais e

das políticas privatizantes de saúde, e as dificuldades nos demais campos de atuação,

principalmente, na educação. Do sonho de profissional liberal, despertaram para a dura

condição de assalariado. Há que se chamar atenção para um duplo movimento dentro do

universo “psi”: ao mesmo tempo que popularizou-se a figura do psicólogo e do trabalho

clínico realizado nos consultórios privados, houve a inserção destes profissionais nos setores

públicos – saúde e educação. Entendo esse segundo movimento como importante na

constituição de novas práticas no campo da psicologia, contribuindo com as mudanças na

relação desse profissional com o trabalho.

Grupos, antes estigmatizados e reduzidos ao silêncio nas

conservadoras associações de classe, passaram a ser ouvidos, a se

organizarem, a pleitearem direitos e deveres, a trazerem opções para

este sistema falido de atendimento e poder. O posicionamento firme

em defesa dos direitos da população, ao invés da defesa cega a uma

falsa lealdade de classe, é uma bandeira cada vez mais forte. (Rádice,

nº 11, dezembro de 1979, p. 14)

Rádice reuniu em uma extensa matéria depoimentos de pessoas ligadas a diferentes

movimentos políticos no campo da psicologia e da psiquiatria, como a Oposição Sindical de

São Paulo, o Movimento Es-Passo/Renovação (M.R.E.), em Recife e, no Rio de Janeiro, o

Page 142: Tese de doutorado sobre a Rádice

142

Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e o Núcleo de Psiquiatria Alternativa,

afirmando seu papel de mobilizadora e divulgadora dessas novas expressões.

Como destaque no número 11, a história de Beatriz Perosio, psicóloga argentina, vítima

do regime de terror que havia se instalado naquele país desde 1976. Carlos Ralph recebeu via

Correios um envelope lacrado, sem remetente, com o material que foi publicado na Rádice.

Estela,

Veio aqui Juan Manuel Sanches da Polícia Federal. Me disse que devo

acompanhá-lo ao Departamento de Polícia Central da Polícia Federal,

para averiguação de antecedentes. Disse que não nos demoraremos

muito. Segundo andar. Disse que podes me buscar agora mesmo, é na

Av. Belgrano a 4 quadras da 9 de julho. Venha buscar-me agora, pois

se me demorar terei que faltar ao trabalho. Não se assuste. Chau.

Bea.

(Rádice nº 11, 1979, bilhete escrito por Beatriz Leonor Perosio, antes

de desaparecer em 8 de agosto de 1978 – tradução livre/Rádice).

De acordo com a matéria da revista, Beatriz Perosio era presidente da Associação de

Psicólogos de Buenos Aires (APBA) e da Federação de Psicólogos da República Argentina.

Seu seqüestro abalou os psicólogos argentinos e foi o primeiro de uma série de outros

seqüestros cometidos contra psicólogos. No dia seguinte ao seqüestro de Beatriz, Alfredo

Smith, Secretário de Assuntos Profissionais da APBA, e sua esposa, Celia Kriado, educadora,

também foram seqüestrados e levados para lugar ignorado. Os familiares e amigos de todos

os três mobilizaram-se para tornar os desaparecimentos de conhecimento público, com o

intuito de forçar a localização deles. O pai de Beatriz, Mario Perosio, impetrou habeas

corpus em 12 de agosto, mesmo dia em que a APBA realizou uma assembléia geral para dar

ciência à categoria e dar início às ações pela liberdade dos psicólogos. Cartas foram enviadas

a ministros e ao ditador Jorge Rafael Videla, bem como às associações de psicologia em todo

o mundo, denunciando o desaparecimento.

A primeira pressão internacional veio da American Psychological Association (APA),

que através de seu presidente à época, Charles A. Kiesler, solicitou ao ditador argentino

informações sobre os psicólogos desaparecidos. No dia 17 de novembro, Alfredo Smith e

Celia Kriado foram localizados, no presídio de Villa Devoto em regime de

incomunicabilidade. Em 22 de maio de 1970, Smith, sua esposa e o filho que nascera na

prisão (Celia estava grávida no momento do seqüestro) foram libertados.

Beatriz foi vista pela última vez no centro clandestino de detenção conhecido como “El

Vesubio” – um dos centros de tortura de maior atividade no período da ditadura argentina –

Page 143: Tese de doutorado sobre a Rádice

143

de acordo com o relato de uma ex-presa política que esteve presa ali. Beatriz figura na lista

dos desaparecidos políticos da Argentina. O dia do seu desaparecimento, 8 de agosto, é

lembrado pelos psicólogos argentinos de hoje como “Día Nacional del Psicólogo Victima del

Terrorismo de Estado”.

Matérias como essa, presentes também no número seis, além do artigo sobre a Nicarágua,

evidenciam a posição assumida pela Rádice em toda sua trajetória: forçar a instituição a falar.

Posicionar-se contra a ditadura militar e em defesa das coisas coletivas significava interrogar

a psicologia, forçando a reflexão sobre seus efeitos no mundo. A pergunta-provocação “o que

a psicologia tem a ver com isso?”, lançada no editorial do número seis, cujo tema foi a tortura,

obrigava à reflexão sobre as práticas “psis”.

Provocadora, Rádice afirmava “nadamos contra a corrente por puro prazer (...)”96

, esta

frase expressa bem esse novo momento da Revista, que lança em 1980 um dos seus números

mais polêmicos: o nº 1297

, especial sobre comportamento. A capa apresentava uma foto em

preto e branco de recém-casados rasgada ao meio, separando o casal, tendo a chamada “Tá

todo mundo separando” logo abaixo. A Revista pergunta como vai o casamento, conversa

com o recém-chegado Fernando Gabeira, Edílson Martins e com José Carlos Gondim,

“solteirão”; divulga o trabalho de grupos que ofereciam terapia de casal, como o Centro de

Atendimento à Mulher e à Infância (CEAMI); fala sobre uma relação entre duas mulheres e

de casais que escolhem uma “relação aberta”; critica as agências de casamento que surgiam e

colhe depoimentos de “personalidades” como Agnaldo Silva (jornalista, editor do Jornal

Lampião)98

, Eugenio Marer (psicólogo, 2 casamentos), Antonio Oliveira (despachante, 34

anos de casado), Dona Joana (72 anos, 48 de casada), Jorge Saldanha (técnico de som, 5 anos

de casado), Jerusalém (músico, solteiro), Marlene (prostituta, casada), Ciro (psiquiatra,

solteiro), Celso (marceneiro, estudante), Heloísa Vila-Real (psicóloga, casada), Hugo Carvana

(ator, casado). Ainda publica o texto “Casamento indissolúvel?” de Wilhelm Reich, traduzido

e condensado por Luiz Sarmento. Fala dos clichês do casamento, da submissão feminina, do

machismo, das relações hetero e homossexuais, da “amizade colorida”.

96 Rádice, editorial, nº 12, março de 1980. 97 Colaboraram no nº 12: Jean dos Santos, Adauri Bastos, Carlos Eugênio Marer, Cora Sauerbronn Villela,

Mayta de Castro de Oliveira, Luiz Fernando Sarmento, Vera Vitis, Fernando Goldgaber, Glória Sueli Victor

Gomes, Luiz Nunes Rodrigues, Teresa Cristina Stavele, Marcus Veras, José Jackson Coelho Sampaio, Valéria Pereira de Souza, Oswaldo da Silva, José Luiz Thadeu, David Bocai, Vera Ferraz, Joana de Bom Parto Coelho,

José Nóbrega, Carol Pires. Sucursais: Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife, Maceió,

Salvador, Vitória, Belo Horizonte, Uberaba, Viçosa, Petrópolis, Brasília, São Paulo, Dois Córregos, São Caetano

do Sul, São José dos Campos, Lorena, Bauru, Alto dos Pinheiros, Londrina, São Vicente, Florianópolis, Pelotas,

Porto Alegre. 98 As observações entre parênteses são citações da Rádice.

Page 144: Tese de doutorado sobre a Rádice

144

Rádice número 12 dividiu opiniões. Foi feita a partir das expressões de vida de cada

colaborador da Revista que discutiam naquele momento seus próprios relacionamentos, mas a

revista não agradou a todos, como revelado nas correspondências de José Jackson Sampaio e

Caesar Sobreira enviadas a Carlos Ralph.

2ª coisa: a Rádice nº 12 tá sendo muito mal recebida nestas bandas, as

críticas estão sendo muito fortes. Numa carta anterior. (...) estamos

preparando um documento sobre a nº 12. O pessoal psi daqui falou

que como que se faz uma nº 11 tão boa e a seguinte consegue baixar

tanto de nível. (Carta enviada pelo colaborador Caesar Sobreira a

Carlos Ralph. Recife, 07 de maio de 1980).

Rádice 12 teve repercussão negativa em grandes áreas daqui. Pessoas

ameaçaram suspender assinaturas. Outras deixaram para fazer

assinatura depois de ver o nº 13. (Carta enviada pelo colaborador José

Jackson Coelho Sampaio a Carlos Ralph. Fortaleza, 1980).

Ali começava outra história que foi evidenciada no jornal Rádice Luta & Prazer. As

críticas em relação ao número 12 estavam baseadas em um argumento: que a revista havia se

afastado do universo com o qual as pessoas a identificavam – ou seja, a discussão política dos

temas relacionados à psicologia. O tema do comportamento ou a maneira como foi

apresentado não foi percebido pelos leitores como um tema da Rádice. Na crítica apresentada

por José Jackson Coelho Sampaio no artigo “Casamento de Rádice”, publicado no nº 13

(junho de 1980), o autor argumenta que o debate proposto por Rádice “ficou nas discussões

formais, no estereótipo da desrepressão. (...) Precisamos ir muito mais adiante”. Para

Sampaio, não bastava pregar o fim da instituição-casamento e afirmar o “amor livre”,

destacando que “o acasalamento sem diploma legal pode ser tão conservador quanto o

diplomado” (José Jackson Coelho Sampaio, “Casamento de Rádice”. Em Rádice, nº 13, junho

de 1980, p. 42).

Outra crítica foi feita à revista, não exatamente em relação à questão do casamento, mas,

de uma forma mais geral. Na edição comemorativa de quatro anos, lançada em 1980, com os

melhores momentos dos três primeiros números99

foi publicada uma carta crítica de um dos

antigos colaboradores da Revista, Joel Bueno.

99

As matérias escolhidas para integrarem este número comemorativo foram: a entrevista com Nise da Silveira

(publicada no número 3 com continuação no número 4); a transcrição da palestra de Ronald Laing realizada em Londres em 1977, enviada por Gilberto Lourenço Gomes (publicada no número 3); entrevista de Joel Bueno com

a escritora Helena Jobim (publicada no número 2); a reprodução do Jornal Comunidade, órgão informativo dos

pacientes do Hospital Portugal Ramalho, em Maceió, no estado de Alagoas (publicado no número 2); Diálogo

psicanalítico, reprodução da gravação feita por um paciente de uma sessão de análise, seguida do comentário de

Page 145: Tese de doutorado sobre a Rádice

145

Toda vez que sai uma Radie nova é uma emoção estranha, meio

alegre, meio melancólica. (...) dá vontade de escrever procês, distribuir

beijos e porradas. (...) não sou romântico, sei que não dava para

sobreviver naquele esquema, quando artigos sumiam em bancos de

ônibus e entrevistas eram engolidas por fitas defeituosas (a que eu

mais gostei de fazer, com o Guattari, nunca deu pra publicar, né?).(...)

Mas dá saudade, e sempre que sai uma Rádice as aranhas mordem por

dentro, vontade de voltar. Mas voltar pra onde (...), Rádice tá colorida

e brilhante na capa, talvez muito melhor do que jamais foi, mas é

diferente, é outra coisa, vê o mundo por outro ângulo. (Carta de Joel

Bueno, seção Cartas, Rádice edição de 4 anos, 1980, sem número de

página).

Joel Bueno continua suas análises problematizando o apoio da Revista aos grupos de

“oposição”. Em sua carta não deixa claro o que seriam tais grupos, suponho que sejam

aqueles que entravam na disputa pela direção das entidades representativas e os que se

articulavam no campo da saúde mental, conforme referido por Carlos Ralph em sua resposta.

Joel Bueno critica também o que chamou de “moralismos de Reich” “pedir o testemunho do

velho Marcuse que tá tão fora de moda, brincar de „transa do corpo‟ é pretexto pra surubada”

(Carta de Joel Bueno, seção Cartas, Rádice edição de 4 anos, 1980, sem número de página).

Carlos Ralph responde

quanto às alianças (...) são realmente necessárias, e o que temos que

fazer é dar força pro pessoal que, por outros caminhos, busca

alternativas concretas para essa realidade difícil da saúde mental.

Quanto à linha “reichiana”, te respondo que na época da entrevista da

Nise, também fomos chamados de “junguianos”, na entrevista com

Laing, de “antipsiquiátricos”, e várias outras classificações. (...) Mas

isto faz parte desta marca maior, que você ajudou tanto a imprimir, de

“irreverência”. (Carta de Carlos Ralph, seção Cartas, Rádice edição de

4 anos, 1980, sem número de página).

Voltando à descrição do número 12, na seção “Geralmente”, há a divulgação do

lançamento do filme “Em nome da razão”. Dirigido por Helvécio Ratton, produzido em

parceria pelo Grupo Novo de Cinema e a Associação Mineira de Saúde Mental, o filme

denunciava as condições desumanas do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como

depósito humano, à época.

a função da instituição psiquiátrica é ser fechada; quando a gente fez o

filme quebramos este princípio, entramos lá dentro e tiramos coisas

para mostrar cá fora. Na verdade aquilo foi feito para ficar escondido.

Jean Paul Sartre, publicadas na revista Temps Moderns e, no Brasil, no jornal alternativo Bondinho (número 1).

Na última página, a carta enviada por Joel Bueno “Carta aberta ao editor da Rádice ou „amores do passado no

presente repetem velhos temas banais‟” e a resposta de Carlos Ralph “Chuvas de verão”.

Page 146: Tese de doutorado sobre a Rádice

146

Isto bate nos pacientes; todos eles queriam falar, queriam aparecer, e

todos tinham muitas coisas a dizer, muitas mesmo... (Helvécio Ratton,

em Rádice nº 12, 1980, seção “Geralmente”, p. 4).

Outra nota chama a atenção sobre a concessão do título de membro honorário oferecido

pelo Conselho Federal de Psicologia ao ditador Emílio Garrastazu Médici. O motivo, Rádice

explica:

foi “ato de gratidão por ter assinado a lei que criou os Conselhos de

Psicologia” (Ralph citando Boletim do Conselho Federal de

Psicologia, sem data). Ora, não devemos nada a ele; lutamos anos

para conseguir o que era nosso direito, que é o reconhecimento da

nossa profissão, que ele só fez assinar, provavelmente sem nem ligar

ao texto, e vem esse bando de puxa saco com atos de gratidão.

Enquanto a Ordem dos Advogados, a Associação dos Jornalistas

pelejam e pelejaram durante anos pela implantação do estado de

direito, pelo fim das torturas, pelo respeito aos direitos humanos, o

Conselho dos Psicólogos vem lamber a bota, com bastante atraso, do

responsável pelo período de maior terror de nossa historia. (...) O

melhor é colocar eleições diretas para o CFP, em cima de programas e

proposições concretas, ao invés de ficar delegando a direção da

psicologia a essa meia dúzia de sacripantas em busca de prestígio e

mordomia. Profundamente indignado, C. Ralph. (Rádice, nº 12, 1980,

seção “Geralmente”, p. 5).

Mudanças na forma da Revista: além da aproximação de pequenos anunciantes,

inaugurou-se a venda de espaço para o anúncio de aluguel de horários em consultórios. O que

antes era editorial, sempre escrito por Carlos Ralph (sua fala se confundia com a da revista),

agora passa a ser uma coluna assinada. Ralph passa a falar por si só, publicando textos sobre

sua trajetória e alguns contos e “causos”.

Com a cobertura do 3º Congresso Mineiro de Psiquiatria, “Um congresso maneiro”,

matéria assinada por Luíza Cristina V. Cotta, Marcos Vieira da Silva e Francisco José

Machado, Rádice ganha mais um colaborador – Kurt Bacamarte, que “através das Fotos e

Fofocas e do Phyllum Psychiatrica disse o que todo mundo pensa, mas não diz” (Rádice, nº

12, 1980, p. 38). Kurt Bacamarte colaborou até o último número com as crônicas “O fato e a

análise do fato” (nº 12), “A verdade sobre a psicologia” (nº 13) e “A ideologia e o problema

da cura” (nº 15).

Kurt Bacamarte publica contos até hoje, é um personagem criado pelo psiquiatra e

psicanalista mineiro Francisco Paes Barreto, que participava dos debates sobre a psiquiatria

em Minas Gerais. O nome do personagem foi forjado a partir da união de alguns elementos

Page 147: Tese de doutorado sobre a Rádice

147

da história – e do folclore – da psiquiatria: “Kurt” era para homenagear alguns psiquiatras da

história e também derivava de “curtição/curtir”; “Bacamarte” era homenagem a Simão

Bacamarte, personagem de Machado de Assis no conto O alienista.

Che Guevara na capa, e o número 13 pergunta: “Cuba – uma revolução na revolução?”.

Matéria principal, que contou com a colaboração de Luigi Moscatelli, sobre as transformações

na assistência em saúde mental no país-sonho dos revolucionários de toda a América Latina

naquele momento. A conclusão é triste: apesar das mudanças promovidas na estrutura dos

hospitais, a psiquiatria cubana não transformou a lógica da assistência, as mudanças foram

administrativas e não na maneira de se pensar a psiquiatria e a “doença mental”.

Na seção “Geralmente”, denúncia sobre a proibição da venda da revista em algumas

instituições de ensino. A censura abateu-se, especialmente, sobre o número 8 e também o nº

12, considerados pelo diretor da Faculdade de Educação da Universidade Católica de

Petrópolis (UCP), Hanns Lippmann, como “pornográficos” e “obscenos”. Os alunos reagiram

a tal proibição; através de suas entidades representativas lançaram nota de protesto,

defendendo a circulação da Rádice na UCP, a livre manisfestação e expressão e acesso à

informação. Censura de um lado, homenagem de outro. Rádice foi escolhida Patrona de

Formatura da turma de Psicologia da UFF do primeiro semestre de 1980,

À rapaziada da UFF, profunda emoção pela enorme força que vocês

estão nos dando. Nossa singela retribuição é o nosso trabalho nesta

edição, dedicado a vocês. É a certeza que na vida profissional que

vocês entrarão agora, muitas intempéries também vão pintar, mas que

a energia de dentro, transformadora e ousada, renascerá a cada

tempestade, cada vez mais forte e criadora, para os dias de sol.

(Rádice, nº 12, 1980, p. 6)

No número 13100

foi publicada também a cobertura do Simpósio “Alternativas no Espaço

Psi”, primeiro encontro promovido pela Rádice em parceria com a Livraria Muro. No número

anterior, uma tímida notinha na primeira página da seção “Geralmente” divulgava o encontro

– que será apresentado mais adiante. Os temas sobre casamento, sexo, a vida em

comunidades são explorados no número treze e no seguinte, que ainda publica matéria sobre a

retumbante vitória no caso do projeto Julianelli.

100

Colaboraram na nº 13: Adauri Bastos, Jean dos Santos, Valéria Pereira, Luiz Fernando Sarmento, Fernando

Goldgaber, José Luiz Thadeu, Ipojucan Ludwig, Marcus Veras, Joana Coelho, Oswaldo da Silva, Teresa Cristina Stavele, Vera Vitis, Sergio Falcão, José Carlos Gondim, Carmem Saporetti. Sucursais: Manaus, Belém, Teresina,

Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Brasília, Belo Horizonte,

Uberaba, Viçosa, Barbacena, Juiz de Fora, Petrópolis, São Paulo, Dois Córregos, São Caetano do Sul, São José

dos Campos, Lorena, Bauru, São Vicente, Londrina, Porto Alegre, Pelotas.

Page 148: Tese de doutorado sobre a Rádice

148

A morte de Franco Basaglia foi anunciada na Rádice número 14101

, em uma nota escrita

por Carlos Ralph sobre os encontros que teve com o psiquiatra italiano durante sua passagem

pelo Brasil e outra de Chaim Samuel Katz em que afirmava que “os psiquiatras

contemporâneos nunca se deram conta que veio dele [Basaglia] a melhor contribuição para

uma Psiquiatria realmente alternativa” (na seção “Geralmente”, Rádice número 14, ano 4,

outubro de 1980, p. 3).

As demais páginas do número 14 foram dedicadas ao debate sobre sexualidade, prazer,

libido e a publicação de uma versão condensada do livro O combate sexual da juventude de

Reich, resumo produzido por Luiz Sarmento, Valéria Pereira de Sousa, Caesar Sobreira, Cê

Raph e Adauri Bastos (ou Dau Bastos). Também foram publicados artigos de Alex Polari de

Alverga, “Aquele verão de 68...”, de Edílson Martins, “Porque os homens têm rancuãi entre

as pernas”, de Narciso Teixeira “A raiz fascista” – texto de repúdio ao Projeto Julianelli – e o

de José Jackson Coelho Sampaio “sangue.fogo.fome”. Também há que se relacionar a

entrevista com os representantes do grupo SOMOS do Rio de Janeiro, um expoente dos novos

movimentos sociais que, junto com o jornal Lampião, lutavam pela causa gay.

No final de 1980, Ralph e seus colaboradores repensavam o projeto da Rádice,

considerando vários fatores relacionados à sua produção, tais como: as dificuldades

econômicas e a quantidade de matérias e informação que crescia a cada número e superava a

possibilidade física do formato. A Revista tinha uma produção cara e a saída vislumbrada foi

a mudança do formato, passando a ser em formato tablóide, com capa e papel off-set, a cores,

o que baratearia a produção e possibilitaria a ampliação do número de páginas. A Revista só

foi possível, até aquele momento, por causa de uma ação conjunta de todos os colaboradores e

leitores que a mantiveram viva e independente.

Um outro fator que contribuiu para o fim da Rádice foi a diversificação das atividades

sob a responsabilidade de Carlos Ralph e de seus principais colaboradores. Nesse momento,

são principalmente Valéria Pereira de Souza, Carlos Eugênio Marer, Dau Bastos e Luiz

Sarmento. Carlos Ralph dividia-se entre a edição da Rádice, a administração, junto com

Valéria Pereira de Souza, do Raízes – Centro de Estudos sobre o Homem, o Jornal Psi que

101 Colaboraram no nº 14: Adauri Bastos, Luiz Fernando Sarmento, Valéria Pereira, Jean dos Santos, Ipojucan

Pontes Ludwig, José Luiz Thadeu, Luciana Bicalho, Fernando Goldgaber, Marcus Veras, Libe Bejgel, Joana

Coelho, José Carlos Gondim, Ivanda Magalhães, Sérgio Murilo, Silvana Lacretta, João Resende, Alonso Cristóvam, José Ricardo Fonseca. Sucursais: Manaus, Belém, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande,

Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Brasília, Belo Horizonte, Uberaba, Viçosa, Barbacena, Lajinha, Juiz de Fora,

Petrópolis, São Paulo, São Caetano do Sul, São José dos Campos, Lorena, Bauru, São Vicente, Londrina,

Florianópolis, Porto Alegre, Pelotas.

Page 149: Tese de doutorado sobre a Rádice

149

começou a ser publicado em dezembro de 1980 e o gerenciamento da editora Espaço Psi. Isso

sem falar da organização dos simpósios e ciclos que eram produzidos anualmente,

demandando um esforço hercúleo de todos. As atividades foram se multiplicando e as

responsabilidades aumentando.

No número 15102

, o fim anunciado, o último fôlego e a despedida: “Adeus, minha querida

amante revista menina Rádice. Eu sempre vou te amar. Transformemo-nos juntos no

moleque jornal Luta & Prazer; a viagem vai continuar”. (Carlos Ralph, editorial da Rádice nº

15, abril de 1981).

No editorial de despedida, Ralph fala do reconhecimento e respeito que a Revista obteve

ao longo de seus quatro anos e meio de vida. Apesar das modificações na linha editorial e no

formato, a Revista não mudou suas principais características: “a postura crítica, a linguagem

aberta, o cuidado gráfico, a ousadia nos temas abordados” (Carlos Ralph, editorial da Rádice

nº 15, abril de 1981), destacando como método o trabalho sempre coletivo. A proposta era

transformar-se em um jornal para debater temas como comportamento, cultura e psicologia.

Por ser uma publicação mais dinâmica, o velho sonho de “sair mensalmente” – que nunca

conseguiram com a Revista – reacende e ainda é citada a chegada de novos colaboradores,

jornalistas, artistas e diagramadores.

Senhoras e senhores, amigos, caras, carinhas, amizades, todo mundo,

queiram embarcar em nossa nave; novos ares, terras, mares nos

aguardam; vamos viajar em mais uma ousadia. Continuaremos juntos

na luta e no prazer. (Carlos Ralph, editorial da Rádice nº 15, abril de

1981)

3.3. Rádice-movimento: promovendo encontros

Imagine um encontro de muitas pessoas de cabeças

abertas, numa linda casa antiga cercada de bosques

por todos os lados. Imagine uma programação de

108 eventos em quatro dais de sol. Imagine que

nesse espaço, nesses dias, discutiram-se inúmeras

102

Colaboraram no nº 15: Adauri Bastos, João Carneiro, Valéria Pereria, Luiz Fernando Sarmento, Jean dos

Santos, Eugênio Viola, Luciana Bicalho, José Luiz Thadeu, Ipojucan Pedroso, Fernando Goldgaber, Libe Bejgel, José Carlos Godim, João Resende, Camilo E. Santo, Ricardo Fragoso, Mariza Gomes de Almeida, Jorge A.

Velloso. Sucursais: Manaus, Belém, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife, Maceió, Salvador,

Brasília, Belo Horizonte, Uberaba, Lajinha, Viçosa, Barbacena, Juiz de Fora, Petrópolis, São Paulo, São Caetano

do Sul, São José dos Campos, Lorena, Bauru, São Vicente, Londrina, Florianópolis, Porto Alegre, Pelotas.

Page 150: Tese de doutorado sobre a Rádice

150

alternativas para a prática psi no Brasil e fique de

água na boca. (Rádice, ano 3, nº 13, 1980, p. 20).

Rádice saiu de seu formato em papel e se transformou em uma revista-viva, Rádice-

movimento. A proposta inicial dos simpósios era promover um grande encontro entre as

pessoas que, junto com a revista, participavam das transformações no universo “psi” e,

também uma estratégia para solucionar as dificuldades econômicas que se agravaram. Os

temas dos encontros eram extratos dos que havia sido apresentado pela Rádice, passando pela

macumba até a antipisiquiatria, transpondo as idéias reichianas, psicanálise, filosofia, política

e uma pitada de astrologia. O objetivo era reunir todos os “não-oficiais” do universo “psi”.

Foram inventados dois tipos de eventos: os simpósios e os ciclos, este com o objetivo de

debater e divulgar exclusivamente o pensamento de Reich. Ao todo foram realizados oito

simpósios (quatro na cidade do Rio de Janeiro e os demais em outras cidades, organizados

pelos colaboradores das sucursais) e mais de uma dezena de ciclos Reich, que também se

espalharam pelo país. Somente os dois primeiros simpósios, realizados em 1980 e 1981,

guardavam relação com a Rádice, já que se transformou no jornal Luta & Prazer.

O nome do primeiro simpósio, “Alternativas no Espaço Psi”, tornou-se a de todos os

demais, sendo que a cada edição se acrescentava um subtítulo. Dos que se tem notícia, o

segundo Simpósio Alternativas no Espaço Psi teve como tema a “Política do corpo”; o

terceiro, “Expressões de vida – corpo e mente em transformação”, o quarto, “Prevenção,

Psicologia e Política”.

Não consegui informações sobre todos os eventos, devido ao fato de não haver registro

dos últimos simpósios e ciclos. Utilizei como fonte o depoimento de Valéria Pereira de

Souza, uma das pessoas que organizou os primeiros simpósios e arquivista desse período – foi

quem guardou folders, cartazes e algumas anotações a respeito dos eventos. Além desse

depoimento e do material organizado por Valéria, utilizei também a própria Revista, o jornal

Sigmund, o jornal Psi e o trabalho de Cecília Coimbra, único material mais sistematizado

sobre os quatro primeiros simpósios e os três primeiros ciclos.

Os organizadores do primeiro simpósio foram Carlos Ralph, responsável pela parte de

comunicação; Valéria Pereira de Souza, responsável pela organização e infra-estrutura; Luiz

Sarmento, produção; e Dau Bastos que tinha como tarefa a divulgação do simpósio nas

universidades do Rio de Janeiro.

Page 151: Tese de doutorado sobre a Rádice

151

Com os simpósios, a Rádice ultrapassou os limites do formato de revista. Devido ao

enorme sucesso, a idéia difundiu-se entre os colaboradores das sucursais e outros encontros

foram organizados também no Rio Grande do Sul, Belo Horizonte, Olinda e Brasília.

A intenção do primeiro simpósio era estabelecer mais um espaço para o debate de

questões como: alternativas para o trabalho do psicólogo; novas perspectivas teóricas no

espaço psi; o mercado de trabalho para os psicólogos; trabalhos desenvolvidos nos

consultórios, instituições e comunidades; contradições na formação; o modelo político da

saúde mental e as transformações que ocorriam nesse campo.

O encontro aconteceu entre os dias 18 e 21 de abril de 1980 na Escola de Artes Visuais,

localizada no amplo jardim do Parque Laje, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.

“Sério/Alegre” foi a filosofia do simpósio, como descrito a seguir

Partimos – Rádice e Muro – da convicção de que a transmissão de

informações e vivências (...) podem e devem ser passadas de maneira

livre e informal; que os conteúdos, por mais sisudos que possam

parecer, podem e devem ser transmitidos e discutidos em um clima

que também não exclua a alegria. Afinal, sem ternura, prazer, jamás.

(Rádice, nº 13, 1980, p. 20)

O simpósio, organizado em parceria com a Livraria Muro103

, contava em seu programa

com conferências, mesas redondas, seminários e atividades práticas chamadas vivências. Para

facilitar a comunicação entre todos, instalaram uma rádio com autofalantes espalhados pelos

jardins do Parque Lage e criaram um grande jornal em forma de mural para circulação de

informações e opiniões. O simpósio também contou com exposições, lançamentos de livros e

muitos, muitos namoros.

O Programa foi dividido em três momentos: a) básico ou oficial, b) paralelo e c) surpresa.

A primeira parte do programa, básico ou oficial, contava com mais ou menos 50 atividades

entre conferências, mesas (com exposição de trabalhos considerados alternativos) e vivências

corporais de psicodrama, bioenergética, biodança e outros. Do programa paralelo, constavam

mostra de fotografias, filmes e palestras sobre alimentação natural e respiração, lançamento

de livros, peças teatrais, teatro de bonecos, Do-In. No programa surpresa, baile com

orquestra, show musicais, rádio Sério/Alegre, capoeira, massagens e Madame Zulema “a

cartomante, atraindo filas e curiosidades. As cartas não mentem” (Rádice, nº 13, 1980, p. 20).

103 Uma das sócias da Livraria Muro, Valéria Pereira de Souza, era, também colaboradora da Rádice e, como já

mencionado, participou da organização dos primeiros simpósios.

Page 152: Tese de doutorado sobre a Rádice

152

Esses três programas espalhavam-se ao longo do dia, que começava às 7 horas da manhã

com muito trabalho de corpo, respiração e descontração. O primeiro ciclo de palestras,

debates e conferências começava às 9:30 – todas realizadas simultaneamente. A programação

paralela e surpresa começavam às 11:30 com música e os programas de “utilidade pública e

sentimental” (Rádice, nº 13, 1980, p. 21) da rádio. O almoço era servido na piscina e à tarde

mais dois ciclos de palestras com a programação paralela encerrando o dia.

Todos participando e ajudando na organização. Todos sérios/alegres,

discutindo, debatendo, de rostos pintados, com a roupa do dia. Com

passeios e namoros no bosque, os flertes em todo lugar. Com a

preocupação constante com o que acontecia dentro e fora de si, perto e

longe do mundo. (Rádice, nº 13, 1980, p. 21).

O primeiro simpósio surpreendeu seus organizadores. O número de participantes foi

superior ao esperado. Chegaram comitivas de vários lugares, principalmente do sul e de

Minas Gerais, ônibus lotados de estudantes. À falta de alojamento sobrou solidariedade –

amigos e colaboradores da Revista hospedaram os visitantes em suas casas. O sucesso

também foi financeiro, o saldo do primeiro simpósio foi bastante positivo, contribuindo para

sanar as dívidas da Revista. No período em que ocorreram os simpósios, a Revista conseguiu

sobreviver com folga. O sucesso financeiro e a inesperada participação – mais de 900, entre

cariocas e pessoas vindas de outros estados – foram fatores que determinaram a organização

de outros encontros.

O segundo, também realizado no Parque Lage, aconteceu entre os dias 18 e 21 de abril de

1981. Dessa vez, a realização foi uma parceria entre a Rádice e a Espaço Psi Editora e

Livraria, criada por Carlos Ralph e Valéria Pereira de Souza, que também passam a editar o

Jornal Psi, “o corpo visto como fato social, complexo de símbolos e desejos, formas e

expressões” (Jornal Psi, ano I, nº 2, junho de 1981, p. 20). A divulgação está em outros

espaços, como o jornal do IBRAPSI:

Política do corpo tem simpósio no Parque Lage

Dando prosseguimento ao projeto de “ação integral no espaço

psicológico”, a revista de psicologia Rádice e a Espaço Psi Editora e

Livraria vão promover de 18 a 21 de abril, o Simpósio Alternativas no

Espaço Psi, 81, trazendo como tema central “A Política do Corpo”. O

objetivo da iniciativa é abrir novos espaços teóricos e práticos no

tratamento da questão do Corpo. (Jornal Sigmund, 1981, ano 1, nº 2,

p. 5).

Page 153: Tese de doutorado sobre a Rádice

153

Do programa, constavam 140 eventos entre mesas, conferências e vivências somados às

múltiplas atividades como shows, exposições, teatro, etc., nos padrões do primeiro simpósio.

O público desse simpósio foi de 800 pessoas, acontecendo no momento da transformação da

revista Rádice no jornal Luta & Prazer.

O primeiro dia foi marcado por queixas em relação à falta de organização e de

informações sobre os locais das palestras, bem como o tumulto causado pelas inscrições de

última hora. O Grafitti e o Dazibao, dois enormes murais montados para circulação de

informações, estampavam algumas críticas dos participantes à organização: “liberdade não é

zona”; “ouviram falar de anarquia e pensam que é isso” (Jornal Psi, ano I, nº 2, junho de

1981, p. 20). Os problemas foram se resolvendo até mesmo com a colaboração dos

participantes. A “anarquia” inicial transformou-se em uma anarquia autêntica, uma ação

autogestionária.

As práticas e vivências desenvolvidas nos primeiros dias do evento atraíram a maior parte

dos participantes. As atividades desenvolvidas por Ângelo Gaiarsa, Rolando Toro, Carlos

Eugênio Marer, Eduardo Tornaghi e José Carlos Gondim foram as mais concorridas. A

linguagem corporal expressava-se também nos intervalos das atividades com espetáculos de

dança e mímica,

Quando a imaginária pomba solta por O Lucaro em sua mostra

mímica, voou de mão em mão por quase todos os presentes, numa

cena lindíssima, silenciosa e arrepiante, fez-se o elo quase mágico em

torno desta linguagem quase esquecida. A linguagem do corpo

explodiu ilimitadamente. (Jornal Psi, ano I, nº 2, junho de 1981, p.

21).

O ápice desse encontro foi no último dia com a apresentação do trabalho de dança de

Marco Konká e Ismael Ivo e a apresentação do teatro espontâneo do grupo Tá na Rua, criado

por Amir Haddad, que durou 4 horas devido à intensa participação de todos nos esquetes e

que terminou com um grande carnaval. O encerramento foi com um show comandado pelo

Grupo Maria Déia, Francisco Mário, Mario Negrão, Celso Mendes e outros do núcleo de

artistas independentes.

A idéia de promover encontros para mobilizar estudantes e profissionais para o debate

sobre o universo “psi” contagiou colaboradores da Rádice em outros estados “a coisa cresceu

e os estudantes tomaram a coisa pelas mãos e começaram eles mesmos seus simpósios. Um

exercício de democracia” (Rádice Luta & Prazer, nº 4, dezembro de 1981, p. 25).

Page 154: Tese de doutorado sobre a Rádice

154

Em 1981, a sucursal de Porto Alegre realizou o I Simpósio Alternativas no Espaço Psi

promovido pela Embrião – Núcleo de Estudos e Ação em Psicologia – e realizado entre os

dias 10 e 12 de outubro. O simpósio foi realizado na Faculdade de Ciências de Saúde do

Instituto Porto Alegre, e do grupo que o organizou, participaram: Ademar Becker, Analice

Palombini, Doris Blessnann, Edson Sousa, Kátia Regina Frizzo e Paulo Francisco Slomp.

Nos moldes dos simpósios cariocas, mas um pouco mais organizados, os gaúchos

conseguiram publicar os Anais do simpósio. A publicação foi lançada em 1982 com o texto

de algumas palestras proferidas. O encontro foi bem extenso, impossibilitando a publicação

de todos os trabalhos apresentados. Participaram desse simpósio os cariocas Carlos Ralph,

Carlos Eugênio Marer, José Carlos Gondim, Eduardo Tornaghi, Helio Pellegrino e Joel

Birman.

Outro simpósio organizado fora do Rio de que se tem registro foi o “Simpósio

Tendências Psi – o que se diz e o que se faz hoje”. Realizado nos dias 31 de outubro, 1 e 2 de

novembro de 1981 nas Faculdades de Ciências Humanas, em Olinda, Pernambuco, com

organização do Grupo Gesto – Grupo de Estudo e Trabalho. Infelizmente, não encontrei

registro dos encontros em Belo Horizonte e em Brasília.

O III Simpósio Alternativas no Espaço Psi teve como tema a própria vida, sob o título

“Expressões de vida – corpo e mente em transformação”. O encontro aconteceu no Colégio

Benett, no bairro do Flamengo, no Rio, do dia 8 a 11 de abril de 1982. De acordo com

Coimbra (1995), esse simpósio marcou a aproximação entre grupos como os argentinos do

IBRAPSI, os representantes de movimentos sociais e alguns exilados recém-chegados. Como

nas edições anteriores, contou com gente de todo o país e foi dirigido para além dos limites do

universo “psi”, já que era comum encontrar nos debates engenheiros, biólogos, jornalistas e

poetas. Também foram oferecidas vivências e debates “políticos, sociais, psicológicos,

analíticos, urbanos, rurais, comunitários, mundiais” (Luta & Prazer, nº 8, abril/maio de 1982,

p. 7).

Esse encontro contou com a participação de José Carlos Rodrigues, Eduardo

Mascarenhas, Antonio Serra, Paulo Hindemburgo e Esther Frankel, entre outros. Nos

intervalos, filmes de Charles Chaplin, apresentação do grupo Tá na Rua, Manhas e Manias, O

Pior Espetáculo da Terra de Edgard Ribeiro, Matei Minha Mulher (o assassinato de Helena

Althusser) de Carlos Henrique Escobar com Dráusio Gonzaga como leitor do texto. A

organização ficou por conta do Raízes – Centro de Estudo do Homem e de Crescimento de

Page 155: Tese de doutorado sobre a Rádice

155

Vida. O último encontro no Rio, foi o IV Simpósio “Prevenção, Psicologia e Política”

realizado nos dias 2, 3 e 4 de setembro de 1983.

Outros encontros que marcaram época foram os Ciclos Reich, organizados pelo Raízes.

Os ciclos tinham como objetivo ampliar o debate sobre a obra de Wilhelm Reich e divulgar as

práticas que surgiram a partir do pensamento desse autor.

dar uma dimensão pública ao pensamento reichiano, aos

desenvolvimentos e aplicações de suas teorias, aos trabalhos

profissionais que se realizam em consultórios, clínicas, centros.

Ampliar a brecha, a ação, o debate, a cooperação (Carta-proposta do I

Ciclo Reich enviada pelo Raízes aos convidados – sem data).

O I Ciclo Reich foi realizado entre os dias 22 e 24 de outubro de 1982, nas Faculdades

Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, contando com a participação de Caesar Sobreira, José Felipe

Fernandez, Esther Frankel, Nicolau Maluf, Luis Moura, Carlos Eugênio Marer, Luiz

Sarmento, Roberto Freire, Carlos Henrique Escobar, Fábio Landa, Romel Alves Costa,

Antonio Serra, José Ângelo Gaiarsa, Ivan Campos, Rainner Viana, Pedro Castel, Paulo

Hindemburgo, Gregório Baremblitt, Angel Viana, José Carlos Gondim, Maria Rita Kehl.

O II Ciclo, realizado entre os dias 14 e 16 de outubro de 1983, na Universidade Santa

Úrsula, teve como temática “Aplicações práticas da teoria reichiana –

realidades/possibilidades”, afirmando o espaço do ciclo para a troca de informações e

atualização no campo das teorias corporais de origem reichiniana. Esse ciclo contou com a

participação de terapeutas corporais brasileiros e estrangeiros.

O III Ciclo foi realizado entre os dias 16 e 18 de outubro de 1992 no Centro de

Convenções do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, no Rio de Janeiro, junto com o I Simpósio

Brasileiro de Terapias Energéticas. Esse evento não teve o mesmo sucesso dos anteriores,

havia uma outra demanda dos participantes e os temas já não eram tão “alternativos” assim,

eram práticas que já tinham sido institucionalizadas, perdeu-se o entusiasmo. O encerramento

ficou por conta da Domingueira Dançante, no Circo Voador, com a apresentação da Rio Jazz

Orquestra. Esse encontro encerrou a fase de eventos organizados no Rio.

O IV Ciclo Reich foi realizado em Curitiba, nos dias 8 e 10 de outubro de 1993, na

Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), junto com a I Jornada Sul-Brasileira

de Psicoterapias Corporais e o II Simpósio Brasileiro de Terapias Energéticas. O ciclo foi

realizado em parceria com o Departamento de Psicologia do Instituto de Psicologia da PUC-

PR e a Orgone-Psicologia Clínica. Outras edições dos ciclos foram organizadas em 1994, o V

Page 156: Tese de doutorado sobre a Rádice

156

Ciclo Reich foi realizado em Curitiba e há um breve registro de um VI Ciclo Reich realizado

em Recife, no mesmo ano.

3.4. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante...

(...) o prazer como uma política, você viver bem era

como um ato de resistência àquela vida cinza imposta pela ditadura (...). (VIANA, Carlos Ralph, (depoimento).

Rio de Janeiro, 2002).

O jornal Rádice Luta & Prazer ampliou os debates enfatizando os temas culturais e

comportamentais. Como exemplo, as chamadas de alguns números: “Como a esquerda vai

para cama” (ano I, nº 1, 1981); “Tribos urbanas” (ano I, º 2, 1981); “Bissexualismo” (ano I, nº

4, 1981). Durou de 1981 até 1983, com uma periodicidade mensal, bem mais regular que a

Rádice, com 18 edições. Mas continuavam as turbulências, “o jornal falia a cada quatro

edições”104

.

As dificuldades eram maiores que as da Rádice, que manteve uma carteira de assinantes,

tinha a vendagem nas bancas, além dos simpósios que contribuíram financeiramente e os

empréstimos feitos por parentes. A Rádice tinha um quê, que ia além da psicologia, mas se

mantinha vinculada a esse campo. Já o Luta & Prazer tinha como proposta ser um projeto

cultural, desvinculando-se do universo “psi”; quando ampliou o debate, perdeu o público

específico da Rádice. Não conseguiu manter os assinantes da Rádice e as sucursais foram

minguando aos poucos.

Segundo Bastos (2008)105

, o jornal não conseguiu discernir um público alvo e aquele

discurso ampliado não foi bem recebido. As contas viviam em atraso, até que não

conseguiram mais sequer vender o jornal, que passou a ser distribuído gratuitamente. Os

anunciantes olhavam com desconfiança.

A mudança da revista para o jornal pode ser explicada por fatores estruturais e

financeiros. Mas, há também um outro elemento: Rádice e Luta & Prazer – este, pelo menos

até o número 4 – eram centrados na figura de Carlos Ralph, idealizador da Revista e do

Jornal. Esses projetos mudavam de acordo com a vida do Ralph, como também mudavam a

104 BASTOS, Dau. (depoimento). Rio de Janeiro, 2008. 105 BASTOS, Dau. (depoimento). Rio de Janeiro, 2008.

Page 157: Tese de doutorado sobre a Rádice

157

sua vida. Carlos Ralph (2002)106

, ao explicar sua decisão de deixar o Luta & Prazer, afirma

que novos interesses e necessidades surgiram, como o projeto de se recolher para escrever um

livro – nunca publicado.

O lançamento do jornal foi no melhor estilo – alegre e com muito bom humor. O grupo

de colaboradores se fantasiou, cada um pegou uma quantidade de jornais e saiu pelas ruas do

Rio de Janeiro vendendo o Luta & Prazer. Circularam por alguns pontos da cidade como a

Cinelândia, os bares mais badalados da zona sul carioca e pela praia de Ipanema. O

lançamento foi feito em três cidades que possuíam redações remanescentes da Rádice, Rio,

Belo Horizonte e São Paulo. A festa do Rio chamou-se “Toque escarlate”, a de São Paulo

“Espírito do corpo” e em Belo Horizonte, “Amor agarradinho”. O clima da festa de BH

reproduziu o das demais: “a cachaça abundante, a versatilidade do conjunto musical (...), o

clima de intimidade que se instalou fez, desfez e refez namoros e casamentos” (Luta &

Prazer, Espalhafato, nº 3, 1982, p. 25). A cobertura da distribuição do jornal pela cidade foi

feita por um colunista social chamado Charles, personagem inventado por Carlos Ralph,

O Rio, cidade sorriso, foi palco de mais uma iniciativa criativa e bem-

humorada. Realmente o lançamento público do simpático jornal Luta

& Prazer (que nome ousado, gente), feito por integrantes da nossa

jeunesse jornalística, foi um autêntico SU (para os desinformados:

SU...cesso). (Charles, Coluna Social, Rádice Luta & Prazer, nº 2,

1981, p. 27).

O primeiro número107

do jornal saiu com uma tiragem enorme – 35.000 exemplares.

Apesar da boa vendagem, o retorno financeiro não foi suficiente para sustentar o jornal,

faliram já no primeiro número.

nós éramos totalmente presunçosos, achávamos que tudo o que

fizéssemos seria uma maravilha, que todo mundo ia adorar, porque a

gente era muito bom, competente... então, demos todas as cartadas,

nunca fizemos planejamento econômico de nada, e fazíamos assim

“vamos fazer? No segundo número a gente passou a comer só arroz

integral”. (VIANA, Carlos Ralph. (depoimento). Rio de Janeiro,

2002.)

106 VIANA, Carlos Ralph. (depoimento). Rio de Janeiro, 2002. 107

A periodicidade do jornal é mais fácil de ser relatada, pois constam as datas nos exemplares: nº 1, agosto,

1981. nº 2, setembro de 1981. nº 3, novembro de 1981. nº 4, dezembro de 1981. nº 5, janeiro de 1982. nº 6, fevereiro de 1982. nº 7, março de 1982. nº 8, maio de 1982. nº 9, edição especial, não há registro do mês, 1982.

nº 10, não há registro do mês, 1982. nº 11, agosto de 1982. nº 12, setembro de 1982. nº 13, outubro de 1982. nº

14, edição especial, novembro de 1982. nº 15, dezembro de 1982. nº 16, janeiro de 1983. nº 17, abril de 1983. nº

18, maio de 1983.

Page 158: Tese de doutorado sobre a Rádice

158

A gente era de uma megalomania impressionante. Era como se o

Brasil inteiro esperasse pelo nosso discurso. (BASTOS, Dau,

(depoimento). Rio de Janeiro, 2008.)

O grupo do Rádice Luta & Prazer diminuiu bastante, Carlos Ralph continuava como

editor geral, contando com antigos “radicianos” e novos colaboradores. O grupo do primeiro

número era: Dau Bastos, Amanda Strausz, Marcos Moreira, Ana Cristina Andrade, Carlos

Eugênio Marer, Eugênio Viola, Fernando Pessoa, Helder, João Penido, Jorge Barros, Jorge

Luiz Joaquim, Jorge Velloso, José Luiz Thadeu, Leandra Iglesias, Libe Bejgel, Lucionor

Bicalho, Luiz Sarmento, Pedro Castel, Tuika, Valéria Pereira de Souza, Vera Lins. Como na

experiência anterior com a Revista, o grupo de colaboradores era bastante heterogêneo e

flexível.

O jornal nasceu com uma nova proposta, pensando a prática política como intervenções

no cotidiano, na vida, movidos pela necessidade de promover e acompanhar as

transformações sociais que ocorriam naquele momento. A palavra “luta” relacionava-se com

a idéia de libertação “uma luta de vida, que não utilize as mesmas armas que combatemos

(...). pelos direitos à liberdade e autodeterminação. Lutas pelo pleno exercício de nossa

existência.” (Carlos Ralph, editorial, Rádice Luta & Prazer, nº 1, agosto de 1981). A noção

de prazer estava fundamentada no pensamento reichiano, visto como fundamental para que

ocorresse um novo processo

A vivência do gozo, da alegria, propicia o pleno exercício da condição

humana, da consciência social. O prazer maleabiliza o corpo, expande

as capacidades mentais, felicita a vida. A repressão enrijece, acomoda,

fascistiza. Reivindicamos o prazer. (Carlos Ralph, editorial, Rádice

Luta & Prazer, nº 1, agosto de 1981).

Os temas abordados pelo jornal valorizavam as novas opções, reunindo a reportagem com

a reflexão sobre os acontecimentos do dia-a-dia. De acordo com Aguiar (2008), havia uma

linha editorial no jornal, mesmo que esta não estivesse muito clara para aqueles que o

produziam, que se voltava para o cotidiano, discutindo temas como os ideais da contracultura,

as terapias corporais, a medicina alternativa, as práticas orientais e o emergente ativismo

ambientalista.

Essa nova preocupação expressava-se na defesa do Parque Nacional de Sete Quedas, em

Foz do Iguaçu, no Paraná, que desapareceu no final de 1982 para formar a barragem da

hidrelétrica de Itaipu. O Luta & Prazer encampou o Movimento Adeus Sete Quedas, criado

para defender o parque. A construção da hidrelétrica tinha como justificativa sanar o deficit

Page 159: Tese de doutorado sobre a Rádice

159

de energia elétrica e foi um dos projetos faraônicos do regime militar. O lago da barragem

retirou colonos e índios de suas terras, bem como animais que viviam nas matas e ilhas da

região.

O sonho do “profissionalismo” invade o jornal, disposto a se organizar de forma

“empresarial”, afirmando uma lógica econômica diferente daquela preconizada pelo

economista Delfim Neto, “não vamos esperar o bolo crescer para dividi-lo, ou surrupiá-lo,

como fazem por aí. Vamos comendo na medida e possibilidade de nossa fome” (Carlos

Ralph, editorial, Rádice Luta & Prazer, nº 1, agosto de 1981).

A frase estampada na capa do primeiro número, “Como a esquerda vai para cama”, gerou

polêmica, não só por seu conteúdo, mas também pela foto de corpos nus, que teve como

modelos os próprios colaboradores do jornal. O debate se centrou sobre “sexualidade e

militância política”, criticando a sisudez que marcou o comportamento do “militante

conseqüente” (Rádice Luta & Prazer, ano I, nº 1, 1980, p. 3). A sexualidade e o corpo não

eram temas discutidos entre os militantes do PCB, nem mesmo entre os grupos dissidentes.

Havia ainda um controle do comportamento pelos dirigentes do partido e dos grupos

dissidentes, impondo regras rigorosas e mantendo alguns valores morais típicos da classe

média – passar batom podia ser considerado um “desvio pequeno burguês”.

O jornal publicou depoimentos sobre esses temas tabus de pessoas que se projetavam na

época como Heloneida Studart, deputada estadual pelo PMDB, naquele momento, “A

esquerda é tão careta”; Ademar Olímpio da Silva, o Papa-léguas, que havia realizado alguns

trabalhos com o Grupo Oficina de Teatro, “Só transo com quem me deixar molhadinho”;

Amir Haddad, criador do grupo Tá na Rua, “Gozar com o poder é patológico”; Lysaenas

Maciel, naquela época, deputado federal e membro da direção nacional do PDT,

“Sexualidade, uma perversão?”; depoimentos de militantes do movimento estudantil, “Só com

o pessoal do partido”; Roberto Goldcock, ex-militante político em 1968 que, naquele

momento, tornara-se terapeuta sexual, “Não sou promíscuo...”. Há ainda uma entrevista com

algumas mulheres militantes do PT com o título “Mulheres de Atenas?”, em que se falava

abertamente sobre relações sexuais fora e dentro do partido, com pessoas da mesma posição

política e até mesmo com “reformistas”...

Freqüentemente, as pessoas que se transa bem com a cabeça são os

companheiros que estão aí, na luta, no dia a dia, tentando transformar

a estrutura, etc. Mas eles têm uma visão de cama que é uma loucura;

têm um padrão. São caras que vão revolucionar o sistema, mas sexo

não se coloca aí. Eles separam tudo. Eles são homens fiéis, que têm

Page 160: Tese de doutorado sobre a Rádice

160

mulher e filhos e que questionam a relação mas é uma mentira. Se ele

trepar com você, você é uma putinha, ou no máximo uma

companheira que tem alguns “desvios”. (Rádice Luta & Prazer,

depoimento, nº 1, ano I, 1981, p. 7).

Nessa entrevista, as mulheres debateram o machismo, o moralismo, as “relações abertas”,

a masturbação, a violência, a condição social da mulher, “que posição a organização tem

sobre o fato de mulher levar porrada, ser chamada disso ou daquilo, (...), essas questões que

tem que ser discutidas quando se tem uma prática comum.” (Rádice Luta & Prazer,

depoimento, nº 1, ano I, 1980, p. 7). Também se discutiu sobre os temas que, acreditava-se,

deviam ser transformados em projetos e ações de luta do novo partido,

espero que mais cedo ou mais tarde o PT apresente uma lei sobre o

aborto (...). Já existe no PT um ativo de mulheres, que é uma coisa

embrionária ainda; tem um ativo sindical, de favelas; está se abrindo

para a voz do negro, etc. a gente quer é que o lance político que a

gente transe esteja ligado às coisas que a gente está vivendo. E falar

sobre isso. (Rádice Luta & Prazer, depoimento, nº 1, ano I, 1981, p.

7).

O Jornal publicou também depoimento do filósofo Carlos Henrique Escobar, do escritor

Henfil, do cantor Ney Matogrosso, além de dar voz a pessoas “comuns”: um servente, um

travesti, uma prostituta. Essa grande matéria promoveu uma reação nos militantes, homens,

do PT que criticaram por não terem sido ouvidos também. Seus depoimentos foram

publicados na matéria “Comida, liberdade, socialismo... e tesão!”, no terceiro número.

O pessoal do jornal foi processado por alguns entrevistados que não concordaram com o

tratamento dado à matéria. As entrevistas e depoimentos eram publicados na íntegra, isso foi

comum na Revista e no Jornal. Responderam a processos na justiça devido à publicação sem

cortes dos depoimentos colhidos, “devido à mania de escancarar” (BASTOS, Dau.

(depoimento). Rio de Janeiro, 2008).

Um outro exemplo para ilustrar tal despreocupação com a edição dos textos está no

número 3; uma grande entrevista com o cantor Raimundo Fagner, que afirmava “sou o maior

ídolo da juventude atualmente” (Rádice Luta & Prazer, ano I, nº 3, 1981). Essa entrevista foi

realizada por Dau Bastos, Luiz Sarmento, Carlos Ralph, Eugênio Marer, Rosa Amanda,

Eugênio Viola, o fotógrafo Juliano, tendo como convidado Abel Silva. O jornal cultivava

uma irresponsabilidade com a linguagem, a ironia e a gaiatice, aspectos destacados por Bastos

(2008) que caracterizaram o Luta & Prazer.

Page 161: Tese de doutorado sobre a Rádice

161

Abel Silva (meio bêbado) – cadê as câmeras?

Todos – Que câmera?

Abel Silva – De televisão. Porque é um clima visual. Assim vocês vão explodir. Vocês estão conversando sobre trabalho ou é um inquérito policial?

(Confusão geral, gritos, tentativas de retomar a conversa)

Amanda – Péra aí. O Fagner disse que é o Rei da Juventude e estamos

discutindo em cima disso. Abel Silva – Esse papo de ídolo... só se for televisão. Na escrita não existe e

cadê as câmeras?

Ralph – Maninho, não sei porque você não quer que a gente faça a entrevista, ou só vale a entrevista com televisão?

Abel Silva – Não sou seu maninho; não temos os mesmos pais...

Amanda – Vamos lá, vamos lá...

Fagner – Tá ótimo, ta ótimo. Chegou mais um... (Chega o Juliano com a máquina fotográfica)

Amanda – Pronto, pintou a câmera!

Abel Silva – Também tinha que ter mais mulher nesta redação. Pra mim esse jornal é desequilibrado.”

(Rádice Luta & Prazer, nº 3, ano I, 1981, p. 14).

O primeiro número do jornal apresentava três seções: “Toque”, “Cartas” e “Espalhafato”,

esta última bastante parecida em seus propósitos e formato com a “Geralmente” da Rádice. A

partir do segundo número, surge uma nova seção, “Emoções Baratas”, nos moldes de um

correio sentimental nada comportado, com anúncios desde flertes até casais que procuravam

outras pessoas para novas experiências...

Russinha Charmosa

Olga, você era russa mas não era comunista, isto sempre me deu o

maior tesão. Sonhei com você, nós dois trepando na bandeira francesa

– Bleu, blanc, rouge. Ah, sonhos liberais... nunca mais nos vimos,

abandonei o partido, entrei pro ramo comercial, sou o que pode se

chamar de um homem bem sucedido. Posso dar a você o que

desejares, mil viagens, luxo, amor. Falo sério. Minha cicatriz na

sobrancelha é tua recordação. Topas?

Bolchevique Esperançoso.

(Rádice Luta & Prazer, nº 1, p. 23, 1981. seção Emoções Baratas)

Sexo Grupal

Casal ligado nas pessoas, nas artes, na cultura e na vida, desfrutando

bom relacionamento, deseja conhecer gente aberta e sensível,

inteligente e disponível pra abordar com sinceridade a teoria e a

prática do sexo grupal.

Alfa & Ômega.

(Rádice Luta & Prazer, nº 1, p. 23, 1981. seção Emoções Baratas).

No segundo número, a grande matéria “Tribos urbanas” abordava as experiências

comunitárias que aconteciam nas cidades, entrevistando pessoas que viviam coletivamente em

Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. O próprio grupo do jornal vivia em uma

Page 162: Tese de doutorado sobre a Rádice

162

casa em Santa Tereza. Surgiu nesse momento um centauro inventado por Ralph como

logotipo do jornal.

No número 7, foi publicada uma conversa com Fernando Gabeira sobre temas variados

como cultura, críticas à esquerda ortodoxa, os movimentos pacifistas que surgiam no cenário

mundial e também casamento, ciúmes, filhos. Gabeira tornou-se um dos incentivadores do

jornal.

No número seguinte, com a chamada de capa “Os temas malditos nos partidos políticos”,

o jornal debate com representantes dos novos partidos – PT, PDT, PMDB e PDS – temas

como aborto, loucura, drogas e sexualidade.

As dificuldades econômicas se agravam a partir do quarto número e é possível observar

uma diminuição da quantidade de sucursais, que deixaram de colaborar a partir do número 9.

Carlos Ralph não escreveu mais o editorial, no lugar deste surgiu uma seção chamada

“Opinião” que contou com artigos de Carlos Eugênio Marer (nº 4), Edílson Martins (nº 5),

Luiz Carlos Maciel (nº 7) e no número 8, o último artigo publicado na seção, que se

extinguiu, de Herbert Daniel. A apresentação do jornal passou a ser feita e assinada

coletivamente. A partir do número 5, Dau Bastos assumiu a edição geral do jornal junto com

Amanda Strausz e Eugênio Viola. Carlos Ralph ficou como colaborador até o número 9.

Fora o fim do casamento entre Ralph e o Jornal, este sobreviveu até o número 18.

Os recorrentes atentados que aconteciam contra bancas de jornal que comercializavam as

publicações da imprensa alternativa contribuíram para aumentar ainda mais as dificuldades

financeiras do Luta & Prazer, que a partir do sexto número deixou de usar o nome “Rádice”.

Os jornais alternativos sofreram drasticamente com esses atentados, apontados por Kucinski

(2002) como um dos fatores que comprometeram a produção de inúmeras publicações,

contribuindo com o fim dos “alternativos”, como discutido no capítulo anterior.

Como já assinalado, o número 9 marca o momento da derrocada do Jornal. Mesmo

lutando para mantê-lo em circulação, o grupo liderado por Dau Bastos passou a sofrer com as

pressões. Desse ponto em diante, as sucursais foram extintas, a distribuição passou a ser

somente no Rio de Janeiro e gratuita. Os fatores que determinaram essas mudanças foram a

falta de anúncios e o aumento dos custos gráficos.

Com a saída de Carlos Ralph, restou um grupo pequeno – Dau Bastos, Juliano Serra,

Marcello Lipiani e Soraia Jorge – para tocar o jornal e alguns poucos colaboradores de Belo

Horizonte, Recife e São Paulo. Uma nova organização foi apresentada, com a extinção de

Page 163: Tese de doutorado sobre a Rádice

163

algumas seções e o surgimento de outras novas: “Espalhafato” e a “Pararatimbum” acabaram.

“Toques” e “Emoções Baratas” foram mantidas. E as novas, “Corpo & Mente em

Transformação”, “Gente Pequena” e “Política Cotidiana”, começam a ser publicadas no

número 11.

Destas, a última merece destaque, pois, com a proposta de acompanhar o processo

eleitoral de 1982, dava voz para alguns candidatos a cargos políticos que representavam,

naquele momento, uma esperança democrática. O critério estabelecido para divulgação das

plataformas políticas desses candidatos era “o fato deles não fazerem o gênero „político

profissional‟” (Luta & Prazer, nº 11, agosto de 1982, p. 10). Os candidatos divulgados pelo

jornal eram militantes do PT e do PDT, tais como: do PT, Lélia Gonzáles, candidata à vaga de

deputado federal, Lizst Vieira e Lúcia Arruda, candidatos a deputado estadual, Elinor Britto e

Benedita da Silva candidatos à vaga de vereador; do PDT, Sidney de Miguel, Diva de Múcio

Teixeira e Afonso Celso candidatos às vagas de deputado estadual, Carlos Alberto Oliveira, o

Cao, candidato a deputado federal e Silas Ayres candidato a vereador. No número 13, foi

reservado espaço para publicar as propostas políticas dos candidatos do PT – “Terra, trabalho,

liberdade” – ao governo do estado, Lysâneas Maciel, ao senado, Vladimir Palmeira, e, ainda,

o apoio a José Eudes, Eliomar Coelho e Gilson Cardoso.

“Sobre viver” foi a chamada de capa do número comemorativo do aniversário de um ano

do Luta & Prazer. No editorial, assinado pelo pessoal do jornal108

, um sentimento de

desencanto e desgaste:

É verdade. Cansamos de esperar o Grande Dia, aquele momento em

que todas as conjunções planetárias augurassem a completa e

definitiva transformação. Cansaram seus arautos, roucos e afônicos

de tanta anunciação frustrada ou mentirosa. Meio cabisbaixos, muitas

vezes humilhados e ofendidos, tivemos que voltar às poucas certezas

que sobravam desse desencanto: o imediato, o cotidiano, a matéria

bruta dos conflitos, as vontades tímidas e ousadas, as cooperações

frágeis, os projetos rasgados pelo instante, olhares perdidos, pés

tropeçados. (...) não alimentamos a ilusão de que a justeza de nossos

desejos seja a garantia de seu real. Ao contrário, quanto mais arrojado

ou quanto mais óbvio em sua proposta, mais irreal resiste. É a

redução das dezenas de pessoas que curtem a idéia para a meia dúzia

que arregaça as mangas e verte em calor a pulsação do sonho; é a

aparência de gratuidade, exótica numa sociedade de faturas; é o

engodo do embalo fácil, quando o real é pedra e rocha; é ter que

passar do desvario iluminador para o custo mesquinho do papel, das

108 Editores: Dau Bastos, Juliano Serra e Marcello Lipiani. Redação: Adauri Bastos, Soraia Jorge, Clélia Bessa,

Antônio Serra, Herbert Daniel e Rosa Amanda.

Page 164: Tese de doutorado sobre a Rádice

164

passagens, do aluguel ou do rango. (Pessoal do Luta & Prazer,

Editorial, nº 12, 1982).

Para o desencanto desta nota, o aniversário de um ano foi comemorado junto com a

SOCII (Pesquisadores Associados em Ciências Sociais), com a organização de uma semana

de debates, realizada de 04 a 08 de outubro de 1982, intitulada “Papos e Agitos”.

O programa contou com os seguintes temas e participações: no primeiro dia, o tema foi

“Juventude e sociedade”, com a participação de Chico Alencar, Perfeito Fortuna, Walter

Moreira Salles Jr. No segundo dia, a discussão sobre “Guerra e/ou paz” contou com a

participação de José Monserat Filho e Ricardo Aront. “Amor, sexo e sedução” foi o tema do

terceiro dia do evento, com os debatedores Herbert Daniel, Jurandir Freire, Leila Mícolis e

Antônio Serra. Joel Rufino dos Santos e Marcos Vinicius Ribeiro foram convidados para

debater “Brasil: uma outra história”, no dia 07. Encerrando a semana, Jó Rezende, Anabela

Geiger e Luis Antonio Machado debateram o tema “A cidade e seus movimentos”. Para

brindar e comemorar um ano de luta, a Festa Show Surpresa, realizada no Clube Asa, em

Botafogo.

Um outro encontro foi organizado pelo pessoal do Luta & Prazer, o “CON-VIVÊNCIAS

– pensar o corpo e bailar a mente”. A idéia desse evento surgiu a partir da seção “Corpo e

Mente em Transformação” e contou somente com vivências, tais como: Bioenergética, com

Pedro Castel; Grupo de crescimento, com Carlos Eugênio Marer; Dança, com Rainer Vianna;

Terapia do Colonizado, com Paulo Hindemburgo; Ginástica Orgânica , com Carlos Affonso;

Conscientização e jogos corporais, com Angel Vianna; Tai-chi chuan, com Laerte Willmann;

Arte-terapia, com Marly Quintana e Geiuseppa Araújo; Gestalt-terapia, com Francisco Lima;

Psicodrama, com Norma Jatobá; Siddha Yoga & mantras, com Olga Sodré. O encontro

aconteceu entre os dias 03, 04 e 05 de dezembro de 1982 na Escola Senador Correia, na Praça

São Salvador, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro e contou com pouco mais de 100

pessoas.

Outro evento, que ganhou destaque no Jornal, foi o Cio da Terra, organizado pelos

militantes do Movimento Estudantil do Rio Grande do Sul, que aconteceu em um sítio perto

da cidade de Caxias do Sul, em outubro de 1982. Tratava-se de um misto de acampamento/

simpósio/festival que reuniu milhares de pessoas em três dias de shows, peças, filmes, danças,

debates sobre drogas, sexualidade, feminismo, sindicalismo, partidos, etc., num clima meio

Woodstock, como descreveu Dau Bastos

Page 165: Tese de doutorado sobre a Rádice

165

A quantidade de gente bonita dançando despertava as carências e as

fomes de afeto. Enquanto uns se aproximavam dos outros para dar e

receber sinceramente, alguns misturavam deslumbramento com

vontade de rangar todo mundo ao mesmo tempo, caíam na sedução da

borboleta e às vezes desandavam. (Luta & Prazer, ano II, nº 15,

1982).

Bastos (2008)109

destaca três personalidades do cenário cultural carioca como

incentivadoras e colaboradoras do jornal: Luis Carlos Maciel, José Celso Martinez e Jorge

Mautner. Já me referi anteriormente ao primeiro, que teve textos e matérias publicados pelo

Luta & Prazer. Martinez foi responsável por jogar um balde de água fria nos editores do

jornal, ao falar que o projeto era muito interessante, mas que eles não tinham capacidade de

desenvolvê-lo. Jorge Mautner, por sua vez, abriu os olhos da “turma” ao iniciar um processo

de crítica ao que se chamava “alternativo”, como se fossem seres “puros”, que não faziam

parte do que chamavam de “sistema”.

No editorial do nº 17, há um ar de despedida. Acreditavam que passavam por mais uma

fase ruim, como já haviam vivido outras vezes e que ressurgiriam das cinzas para fazer outros

números. Houve somente mais uma edição, o nº 18, que trouxe como matéria principal uma

conversa com integrantes do movimento punk110

carioca. A expectativa do pessoal do jornal

era continuar, não esperavam que esse fosse o último suspiro do Luta & Prazer. A luta

passou a ser outra.

109 BASTOS, Dau. (depoimento). Rio de Janeiro, 2008. 110 O movimento (musical) punk surgiu nos anos 1970 na Inglaterra, tendo como primeiros representantes as

bandas britânicas Sex Pistols e The Clash e a norte-americana Ramones. As letras ousadas, irreverentes,

violentas e de críticas ao que se chamava “sistema” eram levadas através do ritmo agressivo, rápido e que

contava, basicamente, com três acordes. Durante os anos 1980, ouras bandas surgiram, bem como várias

vertentes, como o Hardcore, tendo com representantes as bandas Exploited, Agnostic Front, Dead Kennedys e

G.B.H., entre outras. No Brasil, este movimento chegou tardiamente nos anos 80 e teve maior repercussão em São Paulo e em Brasília, apesar de contar com algumas expressões cariocas. As principais bandas brasileiras

foram Grito Suburbano, Inocentes, Olho Seco, Garotos Podres. Podemos relacionar ainda as bandas do final da

década, como Tubarões Voadores e IML, ambas de São Gonçalo, Rio de Janeiro. A música punk, muito potente,

não garantiu o reconhecimento do movimento, que foi absorvido e banalizado pela indústria cultural.

Page 166: Tese de doutorado sobre a Rádice

166

CONCLUSÃO

Realizar esta tese fez com que me sentisse como um personagem do escritor Mario

Vargas Llosa, do livro “O falador”. Esse personagem fazia parte de uma tribo indígena da

amazônia peruana que tinha por função viajar pela floresta encontrando as famílias que a

constituíam, pois era uma tribo nômade – as famílias que a compunham espalhavam-se pela

floresta. Ao encontrar um grupo indígena daquela tribo, o “falador” contava o que tinha visto

pela floresta, os encontros que teve com as outras famílias daquela tribo e com outras tribos

também, os perigos que enfrentou, as histórias que ouviu... o falador falava misturado com

aquilo tudo.

O principal objetivo desse trabalho foi dizer, para quem não conheceu, que Rádice

existiu. Esta tese pode ser chamada de tese-documento, pois nela encontram-se os registros

que pude fazer sobre Rádice e uma sistematização desses dados. O trabalho serviu para mim

de várias maneiras: para amadurecer idéias sobre a psicologia e a formação no Brasil; para me

encontrar com aqueles que fizeram a revista ou a experimentaram de alguma maneira; para

me tornar militante não de um partido ou grupo ou organização, mas de um outro sentido,

aprendendo a falar, a dizer; para perceber que é possível (e bem-vindo) o desrespeito pelos

manuais e normas, para que outras formas de pensar e fazer as coisas surjam. Também foi

fundamental perceber que a pesquisa não é para estabelecer a verdade sobre as coisas, a

pesquisa é um processo de conhecimento. O cuidado que se deve ter é que o novo não deve

virar manual, as práticas inventadas não devem se tornar modelos, mas devem ser entendidas

como aquilo que foi possível em um determinado momento. O manual não serve, a vida

transborda.

À intensa racionalização e normatização da vida, Rádice respondeu com a construção de

novas possibilidades (de ver, ser, estar no mundo), afirmando que a vida é múltipla. Essa

Page 167: Tese de doutorado sobre a Rádice

167

multiplicidade percebe-se nas narrativas sobre a revista que orientaram a construção deste

trabalho em forma de crônicas: sobre resistência, sobre singularidades, sobre os encontros.

Ao elaborar o trabalho, compreendi que o futuro da psicologia no Brasil estava ali no

momento da emergência da Rádice. O que há de futuro? É a intensidade; um espaço de

possibilidades, aberto ao tempo. Não é à toa que a revista tem potência e mobiliza os que a

conhecem hoje. O enfrentamento do presente provoca desvios e é aí que emergem as coisas

cheias de futuro. Essas percebem seu limite, pois não possuem a vaidade da permanência.

Rádice foi isso: uma grande invenção que se agenciou com o que havia de combativo e

resistente, se conectou com o que tinha força para transformar, desrespeitando o que já havia,

o sério, o “correto”, o desde sempre. Sua existência e trajetória foram singulares, não porque

era “boa” ou a “melhor” ou “alternativa”, mas porque estava mergulhada em tensões e

contradições. Foi intensa, ousou e não pediu licença para existir. É possível apaixonar-se por

ela hoje por causa disso tudo. Não virou passado, não ficou conservada como lembrança.

Para ilustrar e me fazer compreender melhor, cito um conto do argentino Cortázar intitulado

“Conservação das lembranças”:

Os famas para conservar suas lembranças tratam de embalsamá-las da

seguinte forma: após fixada a lembrança com cabelos e sinais,

embrulham-na da cabeça aos pés num lençol preto e a colocam contra

a parede da sala, com um cartãozinho que diz: „Excursão a Quilmes‟,

ou „Frank Sinatra‟. Os cronópios, em compensação, esses seres

desordenados e frouxos, deixam as lembranças soltas pela casa, entre

gritos alegres, e andam no meio delas e quando passa alguma

correndo, acariciam-na com suavidade e lhe dizem: „Não vá se

machucar‟, e também „Cuidado com os degraus‟. É por isso que as

casas dos famas são arrumadas e silenciosas, enquanto nas dos

cronópios há uma grande agitação e portas que batem. Os vizinhos

sempre se queixam dos cronópios, enquanto os famas mexem a cabeça

compreensivamente e vão ver se os cartõezinhos estão todos no lugar.

(CORTÁZAR, 2001, p. 102)

A Rádice-cronópio não virou passado nem mesmo para aqueles que a fizeram. As

pessoas, ao falarem dela e de suas vidas não falavam com nostalgia de algo que passou,

falavam com alegria dos encontros que tiveram e de como se tornaram também cronópios.

Page 168: Tese de doutorado sobre a Rádice

168

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REVISTA DE PSICOLOGIA – REVISTA DOS ALUNOS DO IP/UFRJ, nº 4, outubro de

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REVISTA EGO – GUIA DO COMPORTAMENTO HUMANO, 1975

DEPOIMENTOS

Ângela Bernardes

Antonio Geraldo Peixoto

Carlos Alberto Barreto

Carlos Eugênio Marer

Carlos Ralph Lemos Viana

Célia Lima

Claudia Ozório

Dau Bastos

Denise Dessaune

Diva Lúcia Gautério Conde

Étila E. de Oliveira Ramos

Guiherme de Souza Magalhães

Henrique Rodrigues

Irene Cassiano Marques

Ivan Campus

João Resende

Joel Bueno

Jussara Lins

Leonel Aguiar

Luiz Fernando Sarmento

Marcus Veras

Marcus Vieira da Silva

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Maria Teresa da Costa Barros

Marília Lessa

Nicolau Maluf

Paulo de Castro

Pedro Castel

Roberto Stern

Ronaldo Lapa

Solange Couto

Valéria Pereira de Souza

Vera Lúcia Canabrava

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Anexo 1 – Capas das Rádice

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