Tese - Cap1 - Fragmento

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33 1.3. Em busca de definições A concepção da arte como linguagem tem uma presença significativa na historiografia durante o século XX, em diversas correntes de interpretação. Em seu Philosophie der Kunstgeschichte, Arnold Hauser afirma que todo artista fala a linguagem de seus predecessores, e de fato, passa longo tempo até que começa a falar com sua própria voz; não obstante, é uma simplificação excessiva, afirmar que todo artista começa com a imitação de outro artista, e que toda obra de um primeiro período é cópia de uma obra mais antiga (1961, p.479). A critica à simplificação excessiva se dirige a Malraux, que em seu Voix du Silence declarara que “todo artista começa pelo pastiche. (...) A imitação apaixonada é uma operação banalmente mágica, e basta a um pintor lembrar-se de seus primeiros quadros, a um poeta seus primeiros poemas, para saber que ele encontra lá uma participação, não no mundo, mas no mundo da arte” (Malraux, 1951, p. 310). Coloca que o primeiro Rembrandt não se dedica a representar a vida, mas a falar a língua de seu mestre Lastmann; “amar a pintura, para ele, é possuir ao pintá-lo o mundo pictural que o fascina” (idem). “É sobre esse pastiche que todo artista se conquista; o pintor passa de um mundo de formas a um outro mundo de formas, o escritor de um mundo de palavras a um outro mundo de palavras, da mesma forma que o músico passa da música à música”, diz Malraux, apontando com clareza o caráter “não- imitativo” da música em relação à natureza ou à realidade sensível, em comparação com as outras artes. Não obstante, a distância dessa realidade na formação do artista é a mesma, independente do caráter mais ou menos marcadamente imitativo da arte em questão: “o mundo da arte não é um mundo idealizado, é um outro mundo; todo artista, para si mesmo, é similar ao músico” (idem). Expandindo a rede de relações para além do aprendizado direto (como no exemplo de Rembrandt), Malraux afirma que esse pastiche não é necessariamente aquele de um só mestre; ele une às vezes um professor a um ou mais mestres (...); ora entre eles mestres bastante diferentes, ora mestres similares (…). Ocorre que um estilo é pastichado em seu conjunto; e mesmo menos que um estilo: um gosto de época, a ourivesaria do estilo florentino, a tapeçaria do veneziano, o expressionismo do último gótico alemão, a cor clara dos impressionistas, a geometria do cubismo 10 (idem, p.312-313). A idéia-chave de Malraux nessas páginas é a de que se abordamos as artes em analogia com a linguagem – não importando a que elementos lingüísticos, se comuns ou não a outras 10 “Ce pastiche n'est pas nécessairement celui d'un seul maître; il unit parfois un professeur à un ou à des maîtres (…); parfois entre eux des maîtres assez différents, parfois des maîtres apparentés (…). Il advient qu'un style soit pastiché dans son ensemble; et même moins qu'un style: un goût d'époque, l'orfèvrerie du style florentin, la tapisserie du vénitien, l'expressionisme du gothique allemand finissant, la couleur claire des impressionnistes, la géométrie du cubisme”.

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Tese - Cap1 - Fragmento - Livro - Willy

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33 1.3. Em busca de definies Aconcepodaartecomolinguagemtemumapresenasignificativanahistoriografia duranteosculoXX,emdiversascorrentesdeinterpretao.EmseuPhilosophieder Kunstgeschichte, Arnold Hauser afirma quetodo artista fala a linguagem de seus predecessores, e de fato, passa longo tempo at que comea afalarcomsuaprpriavoz;noobstante,umasimplificaoexcessiva,afirmarquetodo artista comea com a imitao de outro artista, e que toda obra de um primeiro perodo cpia de uma obra mais antiga (1961, p.479). A critica simplificao excessiva se dirige a Malraux, que em seu Voix du Silence declarara quetodoartistacomeapelopastiche.(...)Aimitaoapaixonadaumaoperao banalmentemgica,ebastaaumpintorlembrar-sedeseusprimeirosquadros,aumpoeta seus primeiros poemas, para saber que ele encontra l uma participao, no no mundo, mas no mundo da arte (Malraux, 1951, p. 310). Coloca que o primeiro Rembrandt no se dedica a representar a vida, mas a falar a lngua de seu mestre Lastmann; amar a pintura, para ele, possuiraopint-loomundopicturalqueofascina(idem).sobreessepastichequetodo artistaseconquista;opintorpassadeummundodeformasaumoutromundodeformas,o escritordeummundodepalavrasaumoutromundodepalavras,damesmaformaqueo msicopassadamsicamsica,dizMalraux,apontandocomclarezaocarterno-imitativodamsicaemrelaonaturezaourealidadesensvel,emcomparaocomas outrasartes.Noobstante,adistnciadessarealidadenaformaodoartistaamesma, independentedocartermaisoumenosmarcadamenteimitativodaarteemquesto:o mundo da arte no um mundo idealizado, um outro mundo; todo artista, para si mesmo, similaraomsico(idem).Expandindoaredederelaesparaalmdoaprendizadodireto (como no exemplo de Rembrandt), Malraux afirma queessepastichenonecessariamenteaqueledeumsmestre;eleunesvezesumprofessora umoumaismestres(...);oraentreelesmestresbastantediferentes,oramestressimilares(). Ocorre que um estilo pastichado em seu conjunto; e mesmo menos que um estilo: um gosto de poca, a ourivesaria do estilo florentino, a tapearia do veneziano, o expressionismo do ltimo gtico alemo, a cor clara dos impressionistas, a geometria do cubismo10 (idem, p.312-313).

A idia-chave de Malraux nessas pginas a de que se abordamos as artes em analogia com a linguagemnoimportandoaqueelementoslingsticos,secomunsounoaoutras 10 Ce pastiche n'est pas ncessairement celui d'un seul matre; il unit parfois un professeur un ou des matres (); parfois entre eux des matres assez diffrents, parfois des matres apparents (). Il advientqu'unstylesoitpastichdanssonensemble;etmmemoinsqu'unstyle:ungotd'poque, l'orfvreriedustyleflorentin,latapisserieduvnitien,l'expressionismedugothiqueallemand finissant, la couleur claire des impressionnistes, la gomtrie du cubisme. 34 linguagens no-artsticas, elas recorrem devemos abord-las como linguagens autnomas, cadaumacomsuaprpriahistriaeseumododejogoparticular;maisainda,quea compreensodessaslinguagensedasintenesdoartistapassapelarelaodiretacoma histriadasobras(eprincipalmentecomocontatocomasobrasimediatamenteanteriores), mais do que pela natureza intrnseca dos objetos isolados que ele opera.HauseracrescentaaoqueeleconsideraumasimplificaoporpartedeMalrauxque indiferente a relao entre Rembrandt e Lastmann ou entre El Greco e os venezianos: para ele o essencial seria observar que independentemente da relao especfica estabelecida por cada artistacomseuspredecessores,todosseexpressamprimeiramentenalinguagemformalda velha gerao; no h propriamente uma independncia do passado, mas uma relao concreta comosmeiosdeexpressoexistentes,aindaqueparacombat-los(Hauser,op.cit.).Hauser relacionaasidiasdeMalrauxcomasdeWlfflinantesdele,doquantoumapinturadeve antes a outras pinturas do que observao da natureza. Lembremos de uma formulao mais completa de Wlfflin: leviandade imaginar que um artista tenha, alguma vez, podido colocar-se diante da natureza, sem qualquer idia preconcebida. Aquilo que ele adotou como conceito para a representao e o modo como esse conceito se desenvolveu, em seu ntimo, so fatores muito mais importantes do quetudoaquiloqueeleextraidacontemplaodireta(...).Aobservaodanaturezaum conceitovazio,enquantonosoubermossobquaisformaselaobservada(Wlfflin,2001, p.319-320). HausercolocaqueMalrauxlevaaumnovosentidoanoodeWlfflin,entendendoquea artenosimplesmenterivaldanatureza,masafonteemsentidoprpriodainspirao artstica e do contedo da obra a realizar. A operao do artista, seja qual for sua relao com a natureza, reside no trabalho com a linguagem, materializada na histria das obras a nfase do pensamento de Malraux estaria sempre na autonomia da arte, na endogamia e autognese dasconvenesartsticas.HauseracrescentaaindaqueantesdeMalrauxeWlfflin,o estudioso Konrad Fiedler j afirmava em 1914 que quando o artista tenta balbuciar, encontra de pronto um idioma em que pode expressar-se (Hauser, op.cit., p.479-481). ParaHauserafunodaartecomolinguagemencerraasoluoparaoproblemadese chegaraformulaescomunicveisdeumavisointerior,mascontmumperigo(parao artista) na tenso dialtica entre conveno e inveno, nos limites entre o questionamento das conformaeslingsticaspr-existentes(eportantopadronizadas)eamanutenodocanal decomunicao,apreservaodalinguagemdepartidapuraesimplesmente(idem,p.481-482). 35 RenHuyghecontribuimesmaordemdepensamentoquandocolocaqueohomemno vislumbra mais do que aquilo que j conhece, o que aprendeu a ver. (...) Da mesma maneira, o artista, por grande que seja, parte daquilo que j foi inventado antes dele, acrescentando que sempre fcil encontrar as fontes, isto , as obras anteriores em que aprendeu o repertrio deformasdequeseservir(Huyghe,1986a,p.27).Masainda,paraalmdo compartilhamentodessavisocomosautoresquecomentamosHuyghechegaauma distinodasrelaesentrearteelinguagememtemposesociedadesdistintas.Seopintor, comooescultor,precisadeumalinguagem,noobstantenosepodedeixardeladoa oposio dialtica entre o dado individual e o dado social em cada artista; o artista de outrora eramaisaexpressodogrupohumanoemqueseintegravadoquedasuapersonalidade, tornadaoprincipalprotagonistanostemposmodernos(idem,p.26).Paraele,umadas marcas da arte em tempos de tal exacerbao do individualismo o da negao do passado, na reao contra a conveno lingstica anterior.Opontozeroestatingido,daquipordiante;opassadolentamenteconquistadoeadquirido encontra-seeliminadoatnosseusmenorestraos.(...)Aquiestoesteshomens,uma, voluntariamentereduzidosaoseupontodepartida.Reconstituemartificialmenteumasituao quaseanloga,nojdohomemprimitivo(passamosmuitoalemdisso)masdaPr-Histria, em que colocado perante as foras ameaadoras que ainda no sabia dominar, nem em sinemsuavolta,onossoprimeiroantepassadocontactavacomooenigma,entototal,do mundo.Equeencontrava?Aangstia,aangstiadeestardesarmado,superado,entregueao incontrolvel (Huyghe, 1986b, p.274). Sehmaisdecemanosaartemodernaselevantacontraasconvenesestabelecidaspelo quanto elas no correspondem mais a uma nova viso de mundo e a uma nova ordem social, por outro lado a reao individualista a essas convenes traz o risco da reduo da linguagem aobalbuciopr-lingusticoprimitivo,aumatabularasaqueelimineaprpriadefiniodo campo de ao do artista, a uma anomia completa. Hauser ressalta o fenmeno dadasta como um marco do incio da luta sistemtica contra o uso dos meios convencionais de expresso e aconseqentedesintegraodatradioclssicaoitocentista.Abandonava-searenovao da prpria linguagem, o equilbrio entre o velho e o novo, entre as formas tradicionais e a espontaneidadedoindivduo,substituindo-osporumacontradio:comopoderalgum fazer-se entender e isso, em todo caso, o que o surrealismo pretende e, ao mesmo tempo, negaredestruirtodososmeiosdecomunicao?.ParaHausernoumapropostacomo essaemsiquecaracterizariaaimportnciahistricadodadasmoedosurrealismo,por exemplo, mas o fato de que esses movimentos chamam a ateno para (...) a esterilidade de uma conveno (...) que j no tinha qualquer conexo com a vida real (1998, p.962-964). 36 Essa breve colagem de referncias no deixa de apontar a influncia da filosofia materialista (e mesmo de seu combate contra as tendncias idealistas) no pensamento sobre a arte desde a segunda metade do sculo XIX. Ser necessria uma inteligncia profunda para compreender queaomudaremasrelaesdevidadoshomens,assuasrelaessociais,asuaexistncia social,mudamtambmsuasrepresentaes,assuasconcepeseosseusconceitos,numa palavra,asuaconscincia?,perguntaMarx,emlinguagemsimplesedireta,noManifesto comunista.Queprovaahistriadasidiassenoqueaproduoespiritualsetransforma comatransformaodaproduomaterial?(1987[1848],p.52).AtRenHuyghe,ao definir o postulado de seu Sentido e destino da arte, coloca com clareza essa herana (ainda que o prprio autor a negue):Todoestelivroestbaseadonumpostulado,cujodesenvolvimentoeverificaoeleperseguiu ao longo dos sculos, a saber, que o homem de um dado tempo e lugar projecta no seu sistema de idias ou de imagens por meio das quais julga exprimir-se, na sua filosofia, literatura ou arte, o reflexo das mesmas preocupaes: so, em linguagens diversas, as da sua poca, tal como est modelada pelas circunstncias materiais e morais, econmicas, sociais e espirituais. O gnio dos indivduos no faz mais do que dar-lhes um significado mais universal e eterno pela amplido e qualidade que chega a conferir-lhes (Huyghe, 1986b, p.253). Se a msica em suas especificidades talvez um terreno ainda mais movedio para se assentar umaanalogiacomanoodelinguagem,nessemesmocombateaumavisoidealista (aindaemestreitarelaocomaesterilidadedasconvenessobreviventesdequefala Hauser) que se assenta essa bibliografia. Em seu Le langage musical, Boucourechliev comea a definir o alcance dessa analogia colocando quecomoalinguagemfalada,amsicaumsistemadediferenas(...),equecomoalinguagem falada,amsicapossuiumasintaxe,qualquerquesejaamultiplicidadedassintaxesmusicais daspocassucessivas.Noentantocontrariamentelinguagemfalada,amsicano firmemente presa a significados, nem diretos nem simblicos11 (Boucourechliev, 1993, p.9). Paraeleanfasesobreasintaxenaabordagemlingsticadamsicaencerraum enfrentamentodapermannciadeumavisoromnticaquesetornouanacrnica:somos doentes de dois sculos de v busca de um significado, de um sentido racional da msica do qual a linguagem seria o portador... Ora, em msica, nada portador de outra coisa (idem, p.12). Como na historiografia da arte que comentamos anteriormente, busca-se uma definio mais precisa e menos idealizada da relao entre conveno e inveno, entre o indivduo e a sociedade, entre o papel do compositor e o do ouvinte nas operaes lingsticas em msica. Terminada a obra, portanto a estrutura a nica realidade que se ergue diante de ns, com a 11 comme le langage parl, la musique est un systme de diffrences () et que comme la langage parl,lamusiquepossdeunesyntaxe,quellequesoit,lamultiplicitdessyntaxesmusicalesdes poquessuccessives.Cependant,contrairementaulangageparl,lamusiquen'estpasrivedes significations, ni directes ni symboliques. 37 qualnspodemosdialogar,quenspodemosinterrogaresobreaqualnspodemosdizer qualquercoisa.Eassociar,livremente(idem,p.14).Nesseespaodeassociaosubjetiva, porpartedoouvinteeportantojalheiooperaodocompositorresidiriaalgo semelhanteproduodesentido,naanalogiapropostaporBoucourechliev:osentido gravitaria em torno da estrutura, como uma emanao dela. (...) um modelo em todo caso mais aberto: ele deixa um espao ao destinatrio, sua imaginao pessoal (e ao seu apetite): o sentido, voc. (idem, p.11) Um aspecto sintomaticamente ausente do livro de Boucourechliev a relevncia das relaes sociais na formao da linguagem musical no decorrer do livro as transformaes histricas da linguagem parecem obras de indivduos isolados. parte uma breve referncia fora da msica como sistema de ligao entre os homens, todo seu trabalho se caracteriza por uma visodamsicacomolinguagemapenascomoestratgiamaterialparaotrabalhosobrea estrutura do discurso. Praticamente no h rastro da ligao inseparvel entre a linguagem e a vida social (para alm da interveno individual do compositor), como aquela que se observa nos historiadores da arte comentados acima.NocomentriodeBoucourechlievsobreaprimaziadasintaxenotrabalhodocompositor (sobrepondo-seoperaosemntica),eleretomaumamximaatribudaaJakobson,e retomada tambm por Nattiez, a de que a msica uma linguagem que significa a si mesma afirmao que tem sua origem no trabalho de um colega de Pousseur na Blgica (como ele, aluno de Andr Souris e Pierre Froidebise), o lingista e musiclogo Nicolas Ruwet, em seu textoContradictionsdulangagesriel12(1959).EssaprimeirareflexodeRuwetsobrea linguagem tem um ponto de partida problemtico, questionando a coerncia do serialismo do pontodevistadaabordagemlingsticadamsica,enamesmapublicao(umnmero extensodaRevueBelgedeMusicologiecomotemamsicaexperimental)ele acompanhadodarespostadePousseur,noartigoFormeetpratiquemusicales(republicado em Pousseur, 2004, p.261-278). Ruwet comea acusando a msica serial de uma contradio entre sua pretensa complexidade de concepo e sua simplicidade para o ouvinte, que recebe uma informao esttica com uma completa ausncia de eventos, a no ser eventos muito elementares, primitivos. Como se se tratassedeumamsicaquerenunciasseacriarumalinguagem.Apontaqueosserialistas notmumaconscinciasuficientementeclaradoquesignificaofatodequeamsica linguagem, acusando-os de reduzir a linguagem apenas ao termo da parole em detrimento da 12 Posteriormente includo na sua coletnea Langage, musique, posie (1972). 38 langue(utilizandoadivisodeSaussure),dedicando-seoperaosobreomaterialem detrimento da construo de um discurso do qual se percebessem e desenrolassem claramente suasrelaesnotempo.Aaboliodaoperaoconcretasobreamemrialevaraabolio do prprio movimento, e portanto a uma msica montona, simplista (1959, p.83-88). Seacrticaaoslimitesdoserialismotalcomopraticadonadcadade1950foilogo empreendidacompropriedadepeloprprioscompositoresqueoempregaram,omtodode Ruwetquesemostrainicialmentedeumasimplicidadebastanteinsuficientepara fundamentarsuacrtica.Suaargumentaobaseadanaineficinciadasdiferenciaes extremamenteprecisasintentadaspeloscompositoresparaoouvinte,noquedizrespeito variao das duraes e das intensidades, e em sua variao independente, um aspecto deveras localizado e elementar para ser significativo na compreenso do discurso ou da proposta serial comoumtodo.OprprioNattiezapontaemRuwetafalhadeobservaremsuasanliseso textocomoobjetoisoladodosproblemaslingsticosmaisgerais,dosistemadereferncia histrico,dascaractersticasdaobradocompositorestudado,dogneronoqualaobrase insere (Nattiez, 1973, p.187). A resposta de Pousseur extrapola os pontos levantados por Ruwet para se desenhar como uma visoampladosproblemasenfrentadospelamsicanapocaporumcompositorcomuma agudaconscinciahistricadalinguagem.Nopossvelexplicitarosentido,aorigem,a vida de uma forma (...) sem se referir s relaes sociais a que essa forma remete, sem evocar as relaes que ela estabelece com os indivduos participantes da prtica musical onde ela se realiza(Pousseur,2004,p.261).OpontodepartidadePousseurjnaquelapoca(ainda muitoprximodaexperinciaserial)clarssimonaconscinciahistricadalinguagem musical tal como ela se articulava em tempos de prtica comum: trata-se de estudar o que comum s obras de uma poca, o reservatrio das frmulas correntes. Com isso, tendemos a definiraidiacentral,otimocoletivoquepolarizouaeconomiaideolgicaelingstica desta poca, sem talvez se realizar de uma maneira absoluta em nenhuma obra em particular (idem, p.262). Exemplificando suas premissas a partir do sistema tonal, Pousseur insiste que asrelaesharmnicasexistemapenasemumcontextosocialbemdefinido;pelaaodo homem,emsuarelaodialticacomocontextosocial,queseproduzemasbasesda transformaodapercepoauditiva.ParaPousseur,assimcomoparaWillyCorrade Oliveira,cujostextoscomentaremosemseguida,umaconstanteadefiniodaaodo compositornoapenaspelasuaforadeinveno,masvendo-ocomoumsersocial.Os homensfazemsuaprpriahistria,masnoafazemcomoquerem;noafazemsob 39 circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado (Marx, 1978 [1852], p.329). Rastrosdopensamentomarxistapairam,emvagasanalogias,nostextosdevrios compositorescontemporneoscomonarefernciadeBoulezrevoluopermanente,que comentamosacima.Masseparaalgunsarefernciapoucomaisquesuperficial;sealguns encerrariam a referncia na frase seguinte a essa citao dO 18 Brumrio de Lus Bonaparte (atradiodetodasasgeraesmortasoprimecomoumpesadeloocrebrodosvivos), outros se baseiam de maneira mais slida sobre esse pensamento, em que se vislumbra que a opressodatradioprecisasersuperadaidiaexpressaporMarx,inclusive,emuma analogia com a linguagem: oprincipiantequeaprendeumnovoidiomatraduzsempreaspalavrasdesteidiomaparasua lngua natal; mas, s quando puder manej-lo sem apelar para o passado e esquecer sua prpria lngua no emprego da nova, ter assimilado o esprito desta ltima e poder produzir livremente nela (idem). Tratava-se,nocontextodasdiscussessobrealinguagemmusicalnasegundametadedo sculoXX,daformaodeumnovoidioma;agrandeiluso,daqualmuitosnose afastaram, a da possibilidade da criao artificiosa de uma lngua (que se pretenda coletiva, universalizante)peloengenhoindividual,comoapontaWillyCorradeOliveiranostextos que comentamos mais adiante. Nesse aspecto, Pousseur se mostra um utpico incorrigvel; para ele, se a linguagem musical chegaaumasituaocrticanosculoXXporsuarelaoinseparvelcomavidasocial,a ao do homem no sentido inverso poderia engendrar uma reao a essa situao. Essa ao, ainda que operada apenas no mbito da estrutura musical, carregaria uma mensagem de uma outravisodemundopossveleportantoconfirmariaapertinnciadeumprojetode linguagemquesepretendessecoletivo,ouatuniversal,mesmoquenascidodaimaginao individual. Retornaremos a esse tema ao tratar dos textos de Willy Corra de Oliveira, de suas aproximaes e afastamentos do pensamento de Pousseur. De qualquer forma, para esses dois pensadores a obra de Marx permanece um dos fundamentos para a reflexo sobre a linguagem musical.RetornandoaoensaiodePousseur,seucomentriosobreamsicatonalregistraa presena da idia de Marx sobre a passagem histrica da burguesia do papel de revolucionria para o de reacionria com a conquista do domnio poltico (cf. Marx, 1987 [1848], p.36-40). Emlinhasgerais,pode-sedizerqueaformaodalinguagemtonalfoiumdosramosda elaboraodoindividualismoburgus.Revolucionriaaprincpio,poroposioestrutura hiertica e teocrtica da sociedade feudal (que possua, ela tambm, suas formas de expresso e deprticamusicalprprias),divididapelaReformaedomesticadapelaContra-Reforma,ela findaporsetornar(corrodaentoaquelabuscadaliberdadepessoalporumasedede 40 autoridadeindividual)umsistemapetrificado,geradordealienao,equeosespritosmais lcidos desejam ultrapassar13 (Pousseur, 2004, p.263). Pousseurnotaquenocampomusical,essareaoordemanteriorquefazcorpocoma reao a uma ordem social estabelecida s poderia se articular, naquele momento, sob a forma doindividualismo;opassardotemporevelaria,comoinciodosculoXX,oquantoo individualismoexacerbadotornariaaoperaocomalinguagemnecessariamentehermtica, culminandonaausnciadeumalinguagemcomum.Webernseriaumsmboloextremoda consumaodesseindividualismo,datorredemarfim,doisolamentocompletomaspara PousseuraresistnciadeWebernemseusolipsismoaparentecontmemsiogermeda esperanafutura,oembriodeumanovaperspectivafrtilparaamsicanova,comoser detalhado no captulo 2. NaseqnciadeseuensaioPousseurrespondemaisdiretamenteaRuwet,reconhecendoa princpioqueoprimeiroperododoserialismointegral,associadoaopensamento pontilhstico (ponctuelle), sofria realmente de uma certa indiferenciao e ressaltando que os prprios compositores seriais foram os primeiros a afirm-lo. A reao terica e emprica a essalimitaolevouaoquePousseurentendecomoumsegundoperododamsicaserial, comasubstituiodanoocentralpontualporaqueladegrupo,querecuperariaa possibilidadeclaradediferenciaoedeconstruodeestruturasmaisvastas.Demonstra que os exemplos musicais especficos citados na crtica de Ruwet j continham exemplos de composio com grupos e com fortes diferenciaes, incompreendidas pelo lingista.Pousseur segue ainda questionando com propriedade a argumentao lingstica de Ruwet, no que seu ensaio extrapola a relao com este trabalho. Pousseur relembra esse ensaio mais de dez anos depois, acrescentando o quanto essas questes foram pouco desenvolvidas (por ainda nolheseremtoclarasem1959),edesenvolvendoadiantesuaconcepodalinguagem musical(edosentidodaabordagemlingsticadamsica)noprefcio(contendouma respostaaLvi-Strauss)dolivroFrangmentsthoriquesIsurlamusiqueexprimentale (1970).A resposta a Lvi-Strauss consiste no significativo posicionamento de Pousseur contra a tese do antroplogo na introduo de Le cru et le cuit, em particular ao ataque ao serialismo como 13 En gros, l'on peut dire que la formation du langage tonal fut l'une des branches de l'laboration de l'individualismebourgeois.Rvolutionnaired'abord,paroppositionlastructurehiratiqueet thocratiquedelasocitfodale(quipossdait,elleaussi,sesformesd'expressionetdepratique musicale propres), divis par la Rforme et domestiqu par la Contre-Rforme, il finit par devenir lui-mme (ronge qu'est alors cette qute de la libert personnelle par une soif de l'autorit individuelle) un systme fig, gnrateur d'alination, et que les esprits les plus lucides souhaitent dpasser. 41 sistemaarbitrrio,semrelaoorgnicacomomaterialqueeleutiliza.Pousseuratribui parcialmenteaumaimprudnciaexcessivanasafirmaesdeBoulezopontodepartidado ataquedeLvi-Straussarbitrariedadeserial.OprprioPousseurjhaviademonstradoem diversostextos(aosquaiselesereferenesseprefcio)quelongedenegaraspropriedades naturaisdamatriasonoraemusical,Webernaplicava-seaocontrrioaoper-lasdeuma maneira nova (1970, p.16). Sua argumentao segue apontando uma fraca compreenso por partedeLvi-Straussdaorigemnaturaldosintervalosedesuasfunesnahistriada linguagem musical, e ainda acusando o embasamento do autor dO cru e o cozido sobre uma separaodemasiadamentemecnicaentreasnoesdenaturezaecultura.Essasmesmas contestaesdacrticadeLvi-StraussestopresentesemumtextodeWillyCorrade Oliveira publicado originalmente em 1977 e includo em seu livro Beethoven, proprietrio de umcrebro(1979,p.139-145),emqueeleempreendeaindaumaanliselingsticado sistematonal(executadaaquatromoscomoprof.JosMiguelWisnik).Essa argumentao seria posteriormente expandida incluindo uma comparao com uma anlise lingstica da msica serial em seus cursos ministrados na Universidade de So Paulo14.A densidade e a extenso desses embates entre a viso da msica serial pelos estruturalistas (comoPousseurosagrupa)ecompositorescomoWillyePousseur,dedicados simultaneamente soluo emprica dos problemas da msica de seu tempo e especulao e argumentaoterica(emesmofilosfica)quefazcorpocomela,ultrapassamemmuitoa possibilidade do seu tratamento adequado dentro das dimenses desse trabalho seu alcance podesermelhorvislumbradoremetendo-sesfontesqueosregistram.Noqueessabreve introduo ao pensamento de Pousseur e Willy no contexto dos debates sobre a msica de seutemposeprestamaisdiretamenteaessetrabalho,Pousseurenunciacomclareza algumas noes basilares nesse mesmo prefcio a seus Fragments thoriques I sur la musique exprimentale, em busca de uma definio de msica experimental. Em primeiro lugar, para Pousseur,entretradiovivaeexperimentaorealistanohrupturade continuidade.Emsegundolugar,dofatoprecisamentedagrandeausnciadeumsistema coletivo ao qual os compositores modernos pudessem se referir (...), bem evidente que esses compositores tm de experimentar de uma maneira muito mais geral e mais permanente que seus antecessores (Pousseur, 1970, p.14-15). Essasduasnoesbasilares(deumlado,aabordagemdamsicacomolinguagemfazendo corpo com a defesa da permanncia de uma relao radical da msica contempornea com o 14 Cf. Ulbanere (2005, Anexos, p.116-120). 42 repertrio histrico e a tradio, e de outro, a situao crtica da msica desde o sculo XX na ausnciadeumalinguagemcomum),quepermanecemcomorefernciaconceituale contextual no decorrer deste trabalho, foram desenvolvidas de maneira sistemtica nos textos deWillyCorradeOliveira,demodoquesetornanecessria(porrazesdeclareza)uma descrio mais detalhada de suas idias. 1.4. O crebro de Beethoven O ensaio de anlise lingstica do sistema tonal a que nos referimos se insere como uma coda aolivroBeethoven,proprietriodeumcrebro15(1979)deWillyCorradeOliveirauma transcrioparalivrodeumaconfernciaapresentadadoisanosantes,parao sesquicentenrio de nascimento de Beethoven. Como um reflexo das 33 Variaes sobre uma valsadeDiabelliedaestratgiadeBeethovenemconstru-lassobreanegaodo repertrio de banalidades da valsa de Diabelli (idem, p.5) o livro estruturado em forma detrintaetrsvariaessobreanegaodeumavisosuperficialdaobradeBeethoven, comofrutoacrticodeexploraomercadolgica:Lutemos(sim!)pelaabolioda propriedadeprivadadoobjetoBeethoven!(idem,p.30).Entreasvariaes,cinco comentriosparaumaescutadoprimeiromovimentodaSonataop.57(Appassionata), intituladosoprincpiounificador/organizaodasalturas,aintensidade,duraes, silncios,densidades,otimbre,eamontagem.Entreasdemaisvariaes, fotomontagens,comentriosanalticosemformadeaforismos,citaesdeautoresque ressaltaramopensamentoestruturalnaobradeBeethoven,cartaserelatosdepocasobreo compositor,brevestrechosdefico,umantdoto(paracomemoraescentenrias),um projeto para radiodifuso. E ainda, fragmentado em trs partes (como o havia sido a anlise da Appassionata,emcincopartes)parafazercorpocomaformaemfichasdaconferncia original,umensaiosobresemiticamusical,apartirdaaplicaodasferramentasdePeirce na msica erudita16. 15Ottulodolivro,partesuapertinnciaproposta(comocomentamosemseguida),remeteao relato do envio de um carto do irmo de Beethoven, Johann, com a inscrio proprietrio de terras, ao qual Beethoven responde com um carto onde se lia sob o seu nome proprietrio de um crebro (Hirnbesitzer). 16 Segundo o levantamento de Jose Luiz Martinez, o ensaio de Willy uma das aplicaes pioneiras dosconceitosdePeircemsica,apsolivrodeWilsonCoker(1972).Acorrespondnciamais extensiva das categorias de Peirce linguagem musical empreendida por Martinez mostra que no h discrepncia de fato entre o ensaio de Willy e a teoria de Peirce, como poderia fazer supor a ausncia de um real embasamento no texto de Willy pelo prprio Martinez. H mais propriamente a utilizao das ferramentas de Peirce para a definio conceitual de uma viso particular da msica erudita como 43 As 33 fichas que guiavam a conferncia original17 so estritamente mantidas, em sua ordem e contedo, na sua transcrio em livro: a diferena principal consiste em que justamente as trs partesdoensaiosobresemitica(quenosocupamaqui)eascincopartesdaanliseda Appassionataconstavamcomobrevssimosapontamentosaseremdesenvolvidosoralmente, oqueapontaparaofatodeelesteremsidoredigidosatasuaformafinalapsas conferncias, quando da organizao do livro (ainda que elas possam ter mantido estritamente oseuteororiginal).Asoutrasdiferenassignificativasresidememalgumasintervenes teatrais, lado a lado com a execuo ao vivo de todos os exemplos musicais contidos no livro, inclusiveoantdoto(paracomemoraescentenrias),comaaudiosimultneadetodas as sinfonias de Beethoven, que no consta do disco compacto que acompanha o livro (em que seencontramregistradososdemaisexemplosmusicais).Aconferncia(queconsistiana realidadeemumgrandeespetculodeteatromusicalsobreaavaliaodolegadode Beethoven)continhaaindaaexecuodealgumaspassagensdemsicaligeira,comona execuo de Minueto (de Benedito Lacerda e Herivelto Martins), na ficha n 12, e da rumba queacompanhaSaraghina,personagemdo8!deFellini,nafichan7(sobrearumbade Saraghina, veja-se ainda o anexo B).

linguagem,amadurecidaempiricamentenotrabalhodeWillycomocompositor.Jnotrabalhode Martinez, trata-se de retomar da maneira mais abrangente possvel as categorias semiticas concebidas por Peirce e aplic-las a manifestaes musicais de maneira genrica, sem uma tomada de partido ou mesmo a definio prvia de um campo de estudo determinado: o conceito de msica , certamente, cultural.Paraumamaiorriquezanasanlises,tomar-se-seusentidomaisamplo,ondetodae qualquermanifestaoacstica,ouqualqueratividaderelacionadacomofazermusical,podeser msica (Martinez, 1992). 17 Que foram gentilmente cedidas pelo compositor para essa pesquisa. 44 Fig.2. Fotografia da conferncia, com Willy frente, e Hans-Joachim Koelrreuter sentado mesa. (acervo pessoal de Willy Corra de Oliveira). Foto de Joel La Laina Sene. Fig.3. Outro momento da conferncia, com Caio Pagano ao piano (acervo pessoal de Willy Corra de Oliveira). Foto de Joel La Laina Sene. CadaumadastrspartesnasquaisWillyconcebeseuensaioPorumasemiticamusical desenha uma distino de conceitos em trs categorias sugere-se um jogo numrico entre as trs trades conceituais e as trinta e trs variaes que formam o livro. A primeira parte trata 45 dostrsnveissimultneosparatodosignomusical:sinttico(dizdaestrutura,da organizao interna do signo, de como se concatenam os signos), semntico (o significante substituindoosignificado)epragmtico(aalteraodosignificadooriginal.Umnovo significadoadotadoporumacomunidade(estatisticamenterepresentativa)).Departida Willyjenunciacategoricamentequenamsicaasintaxeserevelacomoomaisrelevante nveldalinguagem,aquelequesesituaemprimeiroplanonaorganizaodouniverso sonoro, predominante sobre os outros dois nveis que lhe so simultneos. A estrutura musical corresponde a uma relao direta e inequvoca dos elementos componentes de um todo, um intercmbiodeinformaes,sublinhando-sequeaorganizaosedcabalmente,em simultaneidadeasmaisdiversasinformaessonoras,relacionando-secomoseventos imediatamente anteriores e posteriores e sobretudo parte funcional de um todo orgnico. Tudo se relacionando num campo sinttico; dialtico (1979, p.10). A definio de Willy do campo de ao do compositor define os limites seguros para a percepo do discurso em sua relao comalinguagememquesto,evitandooriscodaapreciao(quenodeixadeocorrerem boapartedacrticamusical)queinformeapenassobreasidiossincrasiasdoouvinte,do momentoedocontextodaescuta,impondoobradadosquesonarealidadeexternos linguagem(pornosesituaremnoplanosinttico,predominanteparaacomunicao musical). Tratandodaatrofiadonvelsemnticoemmsica:emquemedidaumeventomusical substituialgoquelheexterior?apontadoparaforacomoseforaumsignoverbal?.E respondendo ainda associao comum da msica comunicao sentimental, coloca que as sensaessododomniodalinguagemprivada,nicaparacadaindivduo:variandoem decorrncia do humor, do instante, da cultura (idem). A funo que se pode vislumbrar para o significado na linguagem musical reside na substituio de informaes no seio do prprio camposinttico,ouseja,naconscinciadafundamentaohistricadetodaoperao sintticaeportantonoconhecimentoprviodeumrepertriodeprocedimentose combinaes possveis. ()oconhecimentodocdigomusical,emrevoluopermanente,histrico,propiciauma constelaoconcretadesignificaes(emumagamaquevaidosistemadereferncia diferenteparacadaperododahistriaatasessnciasdalinguagemanlisecombinatria dos parmetros do som). O significado funo decodificvel univocamente. Uma semntica que se equivale sintaxe (1979, p.11). Essacolocaodeumanooconcretapossveldesemnticamusicalemmeiodefinio mesmadaprimaziadoplanosintticoumaconstantedasmaisvaliosasnopensamentode Willy.Noseexcluiaoperaosemnticaemnomedasintaxe,massereconhecesua 46 equivalncia, uma vez que diferentemente da linguagem verbal, na msica o campo semntico emsinooperacomsignificadosconcretosemumnvelpr-sinttico.Seaoperaodo compositorsedsobreonvelsinttico,essaoperaoquegeradoradesignificado,de uma semntica que se lhe equivalha18.Porltimo,comentandoonvelpragmtico,Willyapontaqueaalteraodosignificado original de um signo no decorrer da histria de sua utilizao em uma dada cultura, alterao quepossuigrandeforanalinguagemverbal(sujeitadefatoevoluosemnticadas palavras),noocorrenarelaolingsticacomosignomusical.Musicalmente,osigno nosofrealteraesdesignificadoemsuasemnticaoriginal,justamenteporquenoem sua constituio original, e sim em equivalncia com uma ao sobre o plano sinttico, que se operariasemanticamentecomosignomusical.Osignomusicalproduzquandoreouvido por uma conscincia musical criativa a urdidura de signos novos. Insistir, portanto sobre a comunicaomusicalnoplanopragmtico,serianomaistratardodiscursomusicalemsi, masdesuaapropriaomercadolgicapelosproprietriosdosmeiosdeproduo,no rentvel negcio dos jubileus centenrios (idem, p.11-12).AsegundatradepropostaporWillydizrespeitoatrsnveisdedecodificaodosigno, dependentesdanaturezadaleitura:onveldenotativo(segundoadefinioprimeira, dicionarizada), o nvel conotativo-individual (relao estabelecida entre o decodificador e o signo,apartirdeumcontextoemocional,avaliativamenteindividualizado),eonvel conotativo-coletivo (a interpretao de um signo sem que se considere o que aparentemente indicaesimumestadolatente,lexicalizadoporumacomunidade).Willyressaltaquea propostadeumasemnticaqueseassentesobreasintaxe,definidanotrechoanterior,faz corpo com a decodificao a nvel denotativo, em que um significado objetivo apreendido 18nessesentidoque,porexemplo,Willyconsideraaprimeiraarticulaoemmsica,naanlise lingsticadosistematonalqueencerraseulivro(1979,p.139-140).Elascorrespondemsfunes (semnticas)assumidaspelosmateriaismusicaisemcadasistemaderefernciaespecfico,ouseja, dentrodaspossibilidadesdecombinaessintticasabarcveispelosistemadereferncia.tambm nesse sentido, o da variedade significativa decorrente das combinaes possveis de materiais os mais diferenciadosmasinseridosnummesmosistemadebaseque,emlinhasgerais,anoode semnticamusicalutilizadaporHenriPousseur,comosevnocaptulo2.OprprioPousseur escreveriaumensaioalgunsanosdepois,Troisexemplesdesmantiquemusicale(1997,p.51-78), enfatizando que at certo ponto a msica capaz de falar, de maneira precisa, e de alguma forma de mos dadas com o texto, sendo que essa elocuo musical no se efetuava somente no nvel dos signossuperficiais,diretamenteapreensveis,masqueasintaxemusical,emseusmistriosmais secretos,era(comoagramticadaslnguasfaladas)portadoradesignificadosprofundamente essenciais, que informam a percepo de forma considervel. Nesse ensaio ele comenta uma monodia medieval,umariadeGluckeumacomposiosuaparaproporumatriplademonstraodos poderessemnticosdalinhacantada,originriosemsuaspropriedadessintticasasmais aparentemente autnomas (1997, p.51-52). 47 apartirdasfunesfixadaspelasinter-relaesdoselementoscomponentes.oseupapel na operao sinttica, a sua funo na construo do discurso, que d a definio primeira do signo musical. Willy traz aqui companhia de Peirce uma distino da lingstica, afirmando quenonveldenotativodedecodificaotantoaleituradoeixoparadigmticocomoo entendimentodasituaodossignosnosintagmaexibemumcontedoeminentemente estrutural,ouseja,mesmoantesdeumaaocombinatria,orepertriodosmateriais disponveis se define apenas por seu potencial combinatrio especfico, pelas funes que eles podem vir a exercer, e no por um significado intrnseco pr-existente que o signo carregaria, fosse a msica mais semelhante linguagem verbal, por exemplo (idem, p.33). Osdoisoutrosnveisdedecodificaodizemrespeitoatribuiodesignificado convencionado, ou seja, sem levar em conta a operao sinttica particular de cada discurso. Onvelconotativo-individualseriafrutodaexperincianica,pessoal,dodecodificador, emumaescutademasiadamentesubjetivaparainformarsobreodadolingsticodosigno musical.Jonvelconotativo-coletivocolocaoproblemadadecodificaosemnticade significadoscoletivamenteaceitos,queWillyassociaanlisedeWilburSchramm, acrescentandoquetaisdecodificaesnadarevelamdofenmenomusicalenquanto linguagem,porignoraremofatohistricoeaessencialinvenopertinenteauma linguagempotica.Oqueseinferedetaisleiturassoastentativasdereduese nivelamentos de uma linguagem potica linguagem verbal (idem, p.34-35). AterceiratradepropostaporWillydizrespeitoclassificao(oriundadasemiticade Peirce)dosignoemtrscategorias,levandoemcontaoreferente(objetoaqueosignose refere).Recupera-seaquiaindamaisumadistinodalingstica,entresignificantee significado,comoduasfacesinseparveisdosigno,espelhando(respectivamente)arelao entre forma e contedo, entre imagem acstica e conceito (Saussure, 2007, p.80-81). So essas categorias: o smbolo (em que a relao entre o significante e o significado operada pelainstituiodeumacontigidade,umaconvenoaceita);ocone(emqueo significante se relaciona com o significado pela semelhana que se mostra entre ambos. Desta categoria tambm fazem parte as imagens diagramticas); e o ndice (em que a contigidade existenteentreosignificanteeosignificadodireta.Umacontigidadedefato)(Oliveira, op.cit., p.45).Willycomeaporassociaraconvenosimblicalinguagemverbal(quetambm apresentaria como exceo alguns elementos icnicos, como aponta tambm Dcio Pignatari), considerandoabsurdaapossibilidadedeconceberumalinguagemmusicalassentadasobre essa categoria de convenes estabelecidas, uma vez que os significados em msica estariam 48 nas malhas de relaes entre figuras que se plasmam nas possibilidades combinatrias de vibraes sonoras e silncios, ou seja em uma semntica assentada sobre a sintaxe, como se argumentou antes. Willy apenas reconhece, assim, a existncia de alguns smbolos musicais, queocorremnatangenteaolimiteda linguagem; no so avaliados porcritrios estticos, taiscomohinosnacionais,toquesmilitares,marchasnupciais,Ainternacional,entreoutros casosmuitobemdefinidosdeconvenesdesignificadoinstitudaseaceitasdeforma generalizada (idem, p.46). Ele se dedica um pouco mais ao cone musical, em duas vertentes: de um lado, seu enunciar desimilaridade,naproposiodeimitaesdesonsoriundosdefenmenosnomusicais com instrumentos musicais, uma mimese que negue a essencialidade potica da linguagem: a msicacomoefeitoenocomofeitosignificativodaaptidohumanadeengendrar composies.Deoutro,seupostuladodiagramtico,emqueafiguraonooperada porumasemelhanacabal;antes,temsuasimilaridadeexpressaporintermdiodesinais pictricos convencionais o que denunciaria um disparate, como proposta de um diagrama musical,masquenasuaestratgiapodeserassociadoaoaspectofigurativodopoema sinfnico. Aponta a pretenso de figurar (seja uma idia, ou uma sensao, ou uma estria) quepertinentecomposiodeumpoemasinfnico,baseando-osobresinais convencionadosquesignificariamalgoqueocorreforadocontextosintticomasque fique claro que, para alm da decodificao do cdigo icnico estabelecido, a valia de um poemasinfnico,enquantodiscursomusical,noseassentasobreaverossimilhanade suasorigenseaparnciaicnicas;oseuvalorhdeestarvinculadoorganizaointestina dasfigurasmusicais,doentretecerdessasfiguras.Dopontodevistadalinguagemmusical portanto,apercepodeumpoemasinfnico,aindaquesereconheaaconstruodessa correspondnciaicnica,terminariaporpreteri-laemproldaestimativadasintaxe,essa sim,paraalinguagemmusical,significativamentesemntica.Aargumentao exemplificadacomentandoospoemassinfnicosdeLiszt,deumainvenodetalforaque prenunciaoprocedimentosintagmticodoscriadoresdosculoXX,almdeobrasde Mahler, e Debussy, cuja percepo seria descaracterizada na busca de uma pretenso icnica, de uma correspondncia com um dado extra-musical, o que ocorreria de fato em pura perda, no que diz respeito a uma semntica (essencialmente) musical (idem, p.46-49). NapropostasemiticadeWilly,portanto,acomplexidadedosignomusicalmelhor representada pelo ndice proposta que havia sido brevemente abordada, ainda que de forma 49 bastante distinta, em um texto anterior de Wilson Coker (1972)19. Para Willy o ndice encarna a essncia temporal do processo de significao na linguagem musical. Por mais inconcebvel que possa parecer, estamos nos referindo ao acontecimento musical como significante! Mesmo conscientes de que a msica no seno um projeto que s se realiza em decorrncia da execuo. Se no se relaciona o fluxo das figuras sonoras com o significado das estruturasqueastornaminteligveis,queasmovimentam,oeventomusicalnoultrapassao nveldeumsignificantesemsignificado.Seofenmenomusicalcompreendidocomointer-relaesdoscomponentesdeumaestruturaorgnica,osignificanteseauto-revelacomo significado (Oliveira, op.cit., p.50). Anfasesobreasintaxedasinformaesmusicaisnotempoesclareceaconstituiodo ndicemusicalcomoabertoscombinaesqueodefinirocomosignoWillycomeaa aprofundaraquioatodapercepo,asujeiodoouvintedimensotemporalna compreenso de umdiscurso musical. A funo estrutural de um signo em particular s pode serapreendidaemtodoseualcancenovislumbredasrelaesentreaspartesdodiscurso como um todo, ou seja, na ao de decodificao sobre a memria do discurso imediatamente encerrado. Durante o ato da escuta, portanto, o ndice est constantemente sujeito atribuio imprevisveldesignificadoemfunodasrelaessintticas,emseucontnuodevir.Um proto-ndice, Willy o define, e ainda, em dupla referncia a Mallarm: um ndice virgem, um dado lanado na rea de uma linguagem potica. Ele estende e esclarece a referncia ao Lance de dados de Mallarm citando trs fragmentos da traduo de Haroldo de Campos, em analogia s trs categorias da percepo de Peirce: -primeiridade: o fluxo do acontecimento musical (antes de se deter em algum ponto ltimo que o sagre); -segundidade:ochoquenaconscinciadequeexisteumaestrutura(...lheembalanao indcio virgem). -terceiridade:asignificaodofluirdoacontecimentomusicalenquantoestrutura(onico nmero que no pode ser outro) (idem). Completa o ensaio com uma ltima trade, uma vez que, em contraste com o proto-indce, caracteristicamente virgem sob o ponto de vista da semntica musical, alguns signos musicais, mesmoexercendoomesmopapelindicialesinttico,carregamconsigoumacarga intertextual, em um caso (inter-ndice), ou extra-textual, extra-musical (o extra-ndice). 19 Coker (cujo trabalho no especialmente centrado sobre Peirce) reconhece o papel fundamental do ndice musical na articulao da sintaxe e na compreenso da articulao do tempo musical, da relao entreomomentodapercepoeafunodessainformaonaestruturadodiscursocomoumtodo. Os ndices musicais sublinham os limites do espao-tempo musical em que o ocorre o movimento. Masnaseqnciadesuaargumentao(talvezprejudicadaporumarelaoinsuficienteoumuito tradicional com a linguagem musical, a julgar pelas anlises do repertrio), ele no parece vislumbrar oalcancedaimportnciadarelaoentreessarelaoindicialeasintaxenaestruturaodotempo musical. Ao tratar da sintaxe, ele prefere utilizar a categoria de Charles Morris do signo lgico (logical sign),associandoaconstruomusicaldiretamente(ealgoinadequadamente)linguagemverbal (Coker, 1972, p.89-141). 50 Essacargaintertextualfazcomquesejamsignosmusicaisemquehsignificantee significado distintos, em lugar da equivalncia entre significante e significado que ocorre no signomusicalporexcelncia(oproto-ndice,emqueosignificanteseauto-revelacomo significado). Como exemplos de inter-ndices, arrola citaes, parfrases, pardias; entre os extra-ndices,manifestaesetnomusicais(ouseja,emcamposlingsticosclaramente distintos da msica erudita), marchas militares, danas. A maior extenso com que Willy trata do ndice encerra o seu ensaio na pormenorizao do funcionamento da linguagem musical no nvel do referente (das trs categorias de signos de Peirce) em que se opera concretamente o nvelsinttico(cujadefinioabriraoensaio).Altimatradeconceitualdetalhatrstipos possveis de ndices pelo grau de sua operao com elementos exteriores (a priori) ao discurso em que se encontram: O proto-ndice se totaliza em sua imediatidade; o inter-ndice abarca elementos exteriores, mas demesmanaturezalingstica;oextra-ndicetambmultrapassasuaimediatidade diferenciando-sedointer-ndiceporqueoelementoexterioraquesereportanopertenceao cdigomusical.Maisprecisamente:enquantoacontigidadedointer-ndiceestabeleceliames comoidioleto(sortedesinestesia),oextra-ndiceapontaparaoelementoexteriorquecausou suacontigidade.Oqueseverificaque,adespeitodaproto-indicialidadeserimanentea qualquer ndice musical, uma gradativa polarizao vai se efetuando de dentro para fora (proto-ndice ! inter-ndice ! extra-ndice). (idem, p.50-51) Willy encerra ainda a reflexo sobre o ndice com uma citao de Peirce20 que mostra como ummesmosignopodeapontarparaumarededeinformaesdistendidasnotempo:Um arco-risescrevePeircesimultaneamenteumamanifestaotantodachuvaquantodo sol. Ointer-ndicedefinidoporeledeparticularinteresseparaessetrabalho.Normalmenteo ndice desta classe no expressa apenas sua estrutura particular: como uma sindoque, evoca o conjuntodequalidadesquedefinemamarcadesuaorigem.Aamplitudedeseusignificado h de ser buscada na intencionalidade circunscrita pelo contexto (idem, p.51). Vislumbra-se assim,porviasdeumarelaointer-sinttica,umamaioramplitudedesignificado,que extrapolaasintaxeprimeiradodiscurso.Aconscinciahistricadalinguagemabreo horizonteparaumarededeoperaessintticaseinter-sintticas.Atinge-seassim,talvez,o vislumbre de um novo significado para a operao semntica no seio da composio musical: seotrabalhocomasintaxeocampoemqueseassentamasresultantessemnticas,um processo de criao em msica que leve em conta uma proposta de operao semntica teria deseengendrarapartirdeumametalinguagem,pelaincorporaodemateriais eminentemente sintticos em uma nova construo sinttica. 20 De seu ensaio Some consequences of four incapacities, de 1868. 51 Essa noo geral de metalinguagem, de uma composio musical como um ato consciente de linguagemqueserefereaumalinguagem-objeto,aoladodapropostamaisespecficade inter-ndice,soumtraofundamentalcomumnaobradePousseuredeWilly.Um procedimentoqueultrapassaaaparnciainicialdeumamarcadalinguagempessoalnesses compositores,oudeumrecursorecorrentecomoumaidiossincrasiaemseuprocessode composio,paraseestabelecerdefatocomoumaprofissodef,umreflexoprofundode uma convico tica (ainda que no campo restrito da msica erudita, com a preciso limtrofe queelapossuinaexpressoderesultantesideolgicasprecisasparacadadiscursoem particular, como uma linguagem cuja semntica se assenta sobre a sintaxe). A partir de sua viso sobre a linguagem musical, em relao dialtica estreita entre a estrutura internadalinguagemeoseudadosocial(materializadonahistriadassistematizaes engendradaspelaprticacomum),ametalinguagemsemostraparaWillyePousseurno apenas como uma sada frtil, mas como o registro de uma reao crtica que eles consideram imprescindvel,dadaasituaodecrisedelinguagemnamsicaatual.Superadauma dicotomiaexcessivamentemecnicaentretradioeinovao,entreaposturaconservadora, tradicional,eaposturadevanguarda,tpicadatabularasaqueorientavaasexperincias dos compositores seriais na dcada de 1950, retorna-se questo de princpio, como mostra o flashbackqueabriuessecaptulo.Urgedefinirqualarelaoaserestabelecidacoma histria, com o passado, com as referncias para a produo artstica essa questo demanda suarecolocaomesmoquandohumarefernciaunnime,comoocasodeWebernpara BoulezePousseur,porexemplo.Oentusiasmoinicialcomoserialismointegralfoilogo questionadopelosseusprpriosagenciadoresPousseurempreendeasdiscussesmais ferrenhasdentrodoseucrculodeconfiana;tentaevitarquequelepassofrentese seguissem dois passos atrs. O ponto de partida, a definio do inimigo comum, parece claro paraessegrupodecompositores;respondidaaprimeirapergunta(porondecomear?),era imperativo que os participantes daquele movimento definissem com mais clareza: que fazer?

52 um movi mento compondo alm da nuvem um campo de combate mira gem ira de um horizonte puro num mo mento vivo (Dcio Pignatari, 1956) NosprimeirostextosdeBoulezjseformaumdiagnsticosimilaraodePousseurquanto abordagemdamsicadopassado,enaavaliaosobreamsicadopresente,sugerindoum aprofundamento(eumatomadadepartido)emrelaoaumaconscinciahistricado momentoparaalinguagemmusical.AtosculoXIX,emlinhasgerais,predominaraa universalidade,alinguagemcoletiva(Boulez,1966,p.11),enquantonomomentoqueele discute (o da escrita do texto, 1951) impossvel reintegrar o domnio coletivo (...), seria no mnimoilgiconolevaremcontaoindividualismoviolentoquedespontouhmaisdeum sculo (idem, p.24).Adiferenadediagnsticoparaasituaodamsicaatualentreessaposioeade Pousseur a avaliao de que essa situao configura uma crise inevitvel para a linguagem musical, uma vez que sua abordagem da msica como linguagem est calcada sobre a funo socialqueessaarteexerceunahistria(funoquesemprederaosentidoprimeiroparaa prticamusicalnasociedade,antesdaaodocompositor).Talvezaaberturadotexto ventuellement,escritoporBoulezem1952,aindanosedirigisseasuasdiferenascom Pousseur,quandoeledizquenocompartilhamos,entretanto,dopontodevistapessimista desolitriosdeprimidosqueconsisteessencialmenteemafirmar(...)queestamosvivendo umaassustadoradecadncia.Dequalquerforma,lendo-oretrospectivamente,adiferena entreseuposicionamentoeodePousseurflagrante.Desferiramoscomoumainefvel 53 brincadeira a afirmativa de que raramente um perodo da vida musical foi to exaltante para se viver? (idem, p.147).Um estgio mais agudo das diferenas entre Boulez e Pousseur pode ser observado no nmero 4darevistaMusiqueenjeu(1971),emquePousseurpublicaaprimeirapartedeseuensaio StravinskyselonWebernselonStravinsky,ondeeleempreendeaanlisedoballetAgonde Stravinskyobraqueeleapontaranamesa-redondade18dejulhode1963comouma propostametalingsticaquepoderiaservirdemodelo,peloquantoelechegaquasea comporserialmentecommomentosdahistria(PousseurapudNattiez,2005,p.39).Nesse mesmo ensaio ele critica violentamente a abordagem de Boulez sobre Stravinsky21 como uma visoinsuficientesobreasimplicaesdaorganizaodasalturas(edanoodeharmonia) na Sagrao da primavera. Pousseur questiona ainda a profundidade mesma das ferramentas utilizadas por Boulez, que comentaria a permanncia do tonalismo em Stravinsky em termos escolares (sem levar em conta seu sentido potico e psico-socio-cultural), e por ltimo, o autoritarismodealgumascolocaesdeBoulez,quepartiriadeumarecusairracionalde considerar vlido aquilo que no est conforme os critrios de validade que se admite para si mesmocomoindiscutveis(Pousseur,2009b,p.89-91).Trata-sedoregistroapenasdo estgiolimitedeumasriedeprovocaes(PousseurapontanessesentidoqueBoulez classificarasuapesquisatericasobreametalinguagemcomofrutodeumamentalidadede antiqurio)provenientesdevisesirreconciliveissobrealinguagemmusicalvivae apaixonadamentecontrapostasemembatesconstantesporpelomenosdezanos,naquele momento.O texto de Boulez publicado na mesma revista, Style ou ide, acaba com uma mxima tpica do estilo incisivo de Boulez, a mais oposta possvel ao pensamento de Pousseur: eu louvarei a amnsia. No se pode escapar ao conhecimento de sua prpria cultura, e hoje, ao encontro com a cultura das outras civilizaes mas como se torna imperativo, o dever de volatiliz-las!(Boulez,1971,p.14).OataqueaStravinskyclaramentedirigidoigualmentea Pousseur:aheterogeneidaderesultantedainserodecitaeserefernciasaopassadono conduziria, nesses compositores, a unificar os disparates por uma sntese gramatical, como fizeraBerg,porexemplo(idem,p.7).ArefernciaaBergcomoexemplonadireooposta no deixa de ser curiosa, j que em um texto de 1958 Boulez afirmara que em sua obsesso pela citao Berg no conseguia nos emocionar a ponto de justificar, em matria de estilo, 21EmespecialemtextoscomoStravinskydmeure,Trajctoires:Ravel,Stravinsky,Schoenberg,e MomentdeJohannSebastianBach,reunidosemRelevsdapprenti(Boulez,1966)emtraduo brasileira, Apontamentos de aprendiz (Boulez, 1995). 54 essatentativadesntese22(Boulez,1966,p.324).ParaBoulezametalinguagemfalhaem depender de uma noo estilstica adotada, artificialmente extrada de um contexto histrico, eaplicada,comoesquemapr-existente,inveno.Eledefendeaabordagemdoestilo como conseqncia da ao sobre a linguagem, da operao com a idia ao invs do mero jogo com a citao ao qual Stravinsky teria se reduzido (Boulez, 1971, p.10-12). Ou seja, se oatodacriao,paraBoulez,devepartirdovazio,dadestruiodopassado,comoele afirmavanamesa-redondade1963emDarmstadt,nohlugarparaumarelaoorgnica com a histria, e qualquer dilogo com o repertrio s pode ser uma apropriao artificial do estilodeoutrem.Essavisoficabemcaracterizadacomareduodetodaaobrade Stravinsky (obra de uma tal variedade que um comentrio detalhado escapa dimenso desse trabalho)aomesmoproblemadebase,semquesevislumbreapossibilidadedaefetividade especfica de solues particulares. Stravinsky e Pousseur romperam com um princpio moral, nocitars...(aconclusodeBoulezsobreanecessidadedavolatilizaodacultura colocadacomoumaliomoral).Defato,malhlugarnessaconcepoparaumaviso abrangente da msica como linguagem.A defesa violenta do ato isolado do compositor sobre aidia,apsadestruiodosrastrosdopassadoeavolatilizaodeseuconhecimento cultural,resultanummerojogocomumcdigoauto-referente,bastantesimilarquele jogoqueeleacusaemStravinsky,dadaareduodaspotencialidadessignificativasda linguagem.AmarcaconstantedavisodamsicacomolinguagemnopensamentodePousseur(e posteriormentedopensamentodeWilly,emidentidadecomele)olevaaumaconcepo muitomaisabrangenteeelaboradadametalinguagemdoquevislumbra(ouaquereduz) Boulez,aprofundandoopontodepartidadeStravinskyeoperandodeformamuitomais variada e significativa, com implicaes estruturais muito mais independentes da linguagem-objetodoquenasobrasdeStravinsky.Essanoodemetalinguagempermeiaaobrade Pousseur,comomostraamesa-redondanoinciodessecaptulo,almdeseuensaio Composeravec(des)identitsculturelles(de1986,republicadoemPousseur,2009b,p.295-345), em que ele atenta para o grau de transformao do material de que se apropria (para que sejareconhecvelcomosignopr-existente,comointer-ndice),esedetmlongamente sobre a sintaxe entre os materiais, das costuras texturais aos choques mais ou menos diretos entre objetos heterogneos, o evidenciar dos pontos comuns entre esses materiais. Aponta que comessapropostametalingstica,possveltrabalharmusicalmentecomumaoperao 22 Boulez comentava nesse ponto a conciliao entre o coral de Bach e o serialismo que Berg prope em seu Concerto para violino. 55 discursiva,nosentidomaiscompletodapalavra,desdequedetectadososcontedos semnticos dos objetos incorporados na composio. A reflexo de Pousseur sobre a metalinguagem sempre faz corpo com a necessidade de uma novaeabrangenteoperaolingstica,naconscinciadequeoestadocrticodalinguagem musical,emlargaescala,refleteumacrisesocial,umreflexodadominaototalda economiacapitalista,umcncerdoplaneta,inteiramentegovernadoporumaeconomia enlouquecidaemquetodososaspectosdavidasomaisoumenosapodrecidosporela ([s.a.],2001,p.36-37)23.Adefiniomaisprecisadessanooparticulardemetalinguagem, comumaPousseureWilly(eque,maisumavez,foiempreendidademaneirasistemticae abrangenteporWilly,destavezemseusCadernos),sefaznecessriacomoumareferncia conceitual comum que servir de base ao comentrio sobre suas obras nos captulos seguintes. Entre as produes tericas de Pousseur e Willy v-se uma diferena marcante de geraes. A reflexo de Pousseur marcada pela defesa de uma expanso do pensamento serial e por uma reavaliao do legado de Webern; ele vislumbra a ressignificao de ambos pela retomada de uma relao orgnica com o passado, com a raiz histrica da linguagem, o que caracterizaria a possibilidadedeumcaminhocomumparaacriao,deumanovacomunicabilidade. Aproximadamentedezanosmaisnovo(edistantedaorigemculturaldePousseur)Willy mostradesdeoincioumaposturacrticamaisdistanciada,semamesmafemuma convergnciadamsicadeseutempoparaumcaminhocomum.Pelocontrrio,na constataoemergencialdesuaheterogeneidadeemultiplicidadeerrantesqueeleinvestena reflexosobreasdimensesbasilaresdalinguagem.Pousseuroperacomoprojeto composicionalumaesperanalingsticacomumapartirdaspremissasseriaiseps-webernianas,noquesuamsicaacompanhadadepertoporseustextos,adesnudaro processo de criao de peas que poderiam servir de modelo para esse projeto. Willy, por sua vez,refleteemgeraldemaneiramaisdistanciadadesuasprpriaspeas,comoseessas fossem experincias particulares, circunstanciais, de um estado crtico de coisas que precisaria ser questionado em suas bases, de modo que o foco principal de seus ensaios est na reflexo sobre a linguagem musical e sua problematizao histrica. So duas produes tericas que se estendem por toda a trajetria desses compositores, mas se renem e divulgam mais significativamente em dois volumes distanciados no tempo, nos dois casos:PousseurcomseusFragmentsthoriquesIsurlamusiqueexperimentale(1970) 23[s.a.].TablerondeautourdePousseur.TablerondeanimeparMichelGonneville,le23janvier 2001, sur loeuvre dHenri Pousseur, autour de quatre de ses textes: Mort de Dieu et crise de lart, La musique ici aujourdhui, Le sacr et la musique aujourdhui? et Petit bilan dune recherche aussi ttue que sinueuse. Circuit: musiques contemporaines, v.12, n.1, 2001, p.29-42. 56 complementadoaindaporcritsthoriques1954-1967(2004)eposteriormentecomSrie etharmoniegnralises:unethoriedelacompositionmusicale(2009);Willycomseu Beethoven, proprietrio de um crebro (1979) e posteriormente seus Cadernos (1998).SeaessnciautpicaperseverantenopensamentodePousseurcaracterizaaresistnciaea unidadedesuaproduotericaemumadireorelativamenteconstanteporumespaode quatro dcadas, a acidez e a contundncia do esprito crtico de Willy fazem corpo com uma trajetriadefortestransformaeseredirecionamentos,comoserobservadomaisdeperto nocaptulo3.OsvinteanosqueseparamBeethoven,proprietriodeumcrebrodos Cadernostornam-nosregistrosdessatransformao;nosecontradizememseus fundamentos conceituais, mas se complementam como registros de uma reflexo dedicada, no primeirocaso,estruturainternadalinguagem(emummomentoderelaoestreitacoma msicadevanguardasobainflunciadouniversodeDarmstadt),enosegundocaso,sua relaocrticacomumaordemeconmicaqueimplodeasbasesdaprticasocialquefaz corpo com essa linguagem. 1.5. Cadernos da msica no capitalismo Willyapresentaem1998,comotesededoutoramentoUniversidadedeSoPaulo,seus Cadernos. Os quatro cadernos, em volumes separados, no tm uma ordem pr-definida para a leitura, excluindo-se o Caderno do Princpio e do Fim (que se inicia com a marca Incio da IntroduoeconcluicomFimdaConcluso),quedeveriaserlidoapsosoutros,ou ainda, antes dos outros e novamente depois da leitura dos outros trs cadernos. Nesse caderno a argumentao apresentada e desenvolvida de forma um pouco mais alongada e linear, de forma complementar aparente fragmentao dos outros cadernos.OCadernodeBiografiasedivideemtrsbiografiasconjecturais,trsvariaes biogrficas que tipificassem o alcance da noo mesma da profisso de compositor de msica eruditanasociedadecapitalistamodernamaneiraindireta(emuitasvezesirnica)de abordar a autobiografia sem que ela entrasse em conflito com a proposta dos Cadernos como umtodo.(Defato,diversosdeseusdadosbiogrficosconstamdasbiografiasconjecturais especialmentedaprimeira,aoladodepuraficooqueexigeocuidadonasuautilizao indiscriminada,napresunodaconjecturacomofato,comojfoifeitoemtrabalhos acadmicos). Na reflexo crtica sobre a msica erudita no capitalismo, esse caderno tipifica trscasosdetrajetriaspossveis.Noprimeirofaladeumcompositorquesefazalgum renome(1998c,p.6),contendorelatosdascrisesetransformaesquefazemcorpocoma 57 buscadeumtrabalhocrtico,consciente.Nosegundo,tratadeumcompositordenome conhecidomundialmente(maiscomopersonalidadedoqueporsuascriaes)(idem, p.7).Pardiaemqueonomecolocadoantesdacriaooumelhor,emqueorelatoda produodocompositor,noqueelacontiverdemaisestapafrdioepatant,melhorserve glorificao da personalidade. No ltimo relato, fala-se de um compositor de quem nunca se soubeonome(idem),quetemseuspapisdescobertosapsasuamorte,ecujabiografia resultadeespeculaesmusicolgicas.Trsestudosdecasosmodelaresnossobreo plutarquizar,massobreasituaoatualdocompositor.Nodeseestranharoquantoa conjectura faz corpo com esses casos, especialmente com os dois ltimos, como no deixa de ocorrer em tantas biografias de compositores publicadas. OCadernodeRecortesumacolagemdemateriaisrecortadosdaimprensa:fotografias, manchetesenotciasdejornalnoespaodeumms(setembrode1996),comosinaisda realidade,sintomasdoestadodecoisas.Brotadodalembranadodiriodetrabalho (Arbeitsjournal)deBertoltBrecht,aqueleque,forosoquesegravenocorpodeste escrito, foi a mais fundamental influncia (ao lado de seu amigoirmo Hanns Eisler) sobre o presente trabalho (1998c, p.16-18). A disposio em cadernos de trabalho, em lugar do dirio de trabalho, separa as colagens jornalsticas em caderno prprio, separado do corpo do texto, de forma distinta daquela que ocorre no Arbeitsjournal. Inevitvel pensar em quantos recortes dejornal,sintomticos,estranhssimos(apontodenodevermosestranh-los,diriaBrecht), no se somariam a esse caderno em pouco mais de dez anos. O Caderno de Pnico consiste de sete ensaios contundentes e provocativos, com forte dose de fico ou de opo por uma argumentao construda dentro de uma forma literria livre. O universo mais recorrente na referncia ficcional e literria a atividade acadmica, os textos apresentados em congressos e conferncias, as pesquisas epistologrficas, as anlises musicais apresentadasemaulasoupalestras24.Oprimeirotexto,DiscursodoMtodo25(1988b,p.1-13),escritoparodicamentecomumempolamentoacadmicodelirante;apontasobreo papelodaeducaomusicalnocapitalismo,opapeldoeducador,(...)osinevitveis confrontos com o papel-moeda (1998c, p.9). Escrito como roteiro para uma cena, como texto dramatrgicoparaumaencenaoqueocorreriaemlugardaesperadaconferncia;ocorre 24 J se nota nessa breve descrio o distanciamento crtico, metalingstico, dos Cadernos como tese dedoutoramento,refletindosobreofazerumatese,ummemorial,ensaio,artigo,anlise,eseus significados e implicaes.25PublicadoinicialmentecomoMsicaesociedade(Oliveira,1991),escritoparaapresentaonoI Congresso sobre o ensino das artes nas universidades (na USP, em 1992), e republicado no livro Cinco advertncias sobre a voragem (Oliveira, 2010, p.191-214), como registro de uma das leituras do texto, no departamento de Histria da USP, em 4 de setembro de 2009. 58 inicialmentereveliadapercepodeseucarterficcional,pardicoeirnico,cuja profundidadessereveladurantealeitura,noquestionamentodoabsurdoadvogadopelo palestrante.FusodaheranadeBrechtcomasidiasdeGiulioGirardi26.Nomesmo caderno, o texto Anlise Composicional27 (1998b, p.29-34) dialoga com o anterior, colocando emquestoavignciadomaterialdidtico(1998c,p.9).Alertaparaatendncia historiogrficadesetratardorepertriodeformaindependentedaprticasocial(em constante renovao) que faz corpo com ele, at que se chegue ao ponto crtico de, na atrofia daprticasocialquecaracterizaaincomunicabilidademusicalatual,aanliseseinstituir como um fim em si.Prosaaoanverso(quadrvio)(1998b,p.14-28)ocorrecomooregistrodeumaconferncia imaginria por um de seus espectadores. O palestrante adota inicialmente a mesma postura do conferencistadotextoanterior(marcaconstante,alis,naatividadedepalestrantedeWilly portodasuavida),iniciandoporfazerumcomentriosubjetivodoPreldion4deChopin napeledeumconvidadoestrangeiro,eemseguidadesmontandoaficoerealizandouma anlise crtica da pea, que conduz por fim a uma crtica de uma anlise que no levasse em conta suas prprias implicaes ideolgicas.Retratodoartistaquandos28(idem,p.35-41)ocorrenaformadeumartigoacadmico (ficcional)sobreacorrespondnciaentreumcompositoreumcrtico,contrapondodois pontos de vista opostos sobre a solido do artista contemporneo de um lado, a louvao liberdade permitida pelo isolamento do artista, de outro, a denncia de uma falta de funo socialparaamsicaeruditanocapitalismo,oqueocondenaaoseuisolamentoe incomunicabilidade.O texto Epgrafe e alguns apontamentos sobre a linguagem comea com a citao de Jacques Bouveresse:aquelequecrquepossvelinventarpuraesimplesmenteumaoutra linguagemesquecequeimaginarumalinguagemquerdizerimaginarumaformadevida (Investigaesfilosficas19)equeumaformadevida,rigorosamente,noseinventa29 (idem, p.42). epgrafe segue a abertura do ensaio de Willy: 26Veja-seoseuEducare,perqualesociet?(Girardi,1975),paracujatraduocolaborouWilly (Girardi,2011).Veja-seainda,deWilly,asCincoadvertnciassobreavoragem(Oliveira,2010, p.125-131). 27ApresentadonoPrimeiroSimpsioBrasileirodeMsica,naUFBA,1991,epublicadonoano seguinte (Oliveira, 1992). 28 Artigo publicado em Cultura Vozes (Oliveira, 1992). 29AcitaoserefereaoensaioLanimalcrmoniel:Wittgensteinetlanthropologie,deJacques Bouveresse,publicadonomesmovolumecomRemarquessurleRameaudordeFrazer,de Wittgenstein (1982, p.115). 59 O mundo capitalista contemporneo do ponto de vista da msica erudita no possui lngua falada. Issodeveriaserumabsurdopostoqueequivaleadizerquedeterminadacomunidadenotem lnguacomum:emresumo,nosecomunica.Oumesmoaventurar-seacrerquecerta comunidadenotendolnguafaladaseexpressasseatravsdelnguamorta.(...)Aquiloque afetaserafaladeumalnguamortanopassadaimitaodessalngua,(...)adefunta linguagemdamsicaerudita,nomundocapitalista,noserveparaacomunicao.Ostenta-se, em casos escassos, como objeto vagamente identificvel (idem). Essa linha de pensamento no se d no abandono da atividade criativa, como poderia se supor primeiraleituramuitopelocontrrio,ocatlogodeWillymostraumaproduomuito mais intensa nos ltimos vinte anos do que na dcada de 1970. Ela caracteriza uma produo intensaemdireodistintadaquelaqueonortearadcadasantes,comumafastamento marcantedaesperanalingsticaconstrutivaquePousseurmostraemseustextos,por exemplo (ainda que a insistncia de Pousseur nesse projeto utpico o tenha levado amargura de seus ltimos depoimentos e entrevistas).A viso materialista sobre a linguagem musical que havia caracterizado a produo terica de Willy e Pousseur nas dcadas de 1960 e 1970, num embate por um caminho construtivo, por umasoluomaisorgnicaparaacomposiodamsicadeseutempo,complementada nessareavaliao(trintaanosdepois)pelodesvelamentodeumaincompatibilidadedebase, deumterrenosocial,econmicoeculturalverdadeiramenteinfrtilparaainseroda produoqueelesintentavam.Daoperaocomosrastrosdelinguagem(oucomnovos arremedosdelinguagem,individualmenteengendrados)restamexpressesindividuaisque noalcanamapossibilidadedeumcompartilhamentoverdadeiro,deumvislumbredas inteneseimplicaesnarelaoentreaconstruoeapercepododiscurso,quero compositor busque essa comunicao ou no. Em uma das cartas ficcionais do ensaio Retrato do artista quando s, um dos personagens o crtico escreve queoscompositorescontemporneosnovivemdosproventosdesuascomposies contemporneas.Geralmente,comooutroselementosdaclassemdia,elessoexecutivos, professores,engenheiros,mdicos...quecompem.Cadaumpodeinventarsuaprprialngua, lngua desconhecida, porque no fundo ele no fala com ningum (idem, p.39). exatamentecontraessaordemdeatuao,adaaceitaopuraesimplesdeumasoluo individualparaumaexpressoindividual,quesesituavamascrticasdePousseurnamesa-redondade1963queevocamosnoinciodessecaptulo;emsintoniacomanecessidadeda recuperaodeumarelaoorgnicacomahistriaquedessemsicaeruditaatuala possibilidadedealmejarfunosocialedimensocomunicativa(emtodasua especificidade, bem entendido) que ela chegou a possuir em sua histria. Pousseur dizia que nopossvelfalarsemsereferirtotalidadedaculturaqueocarregaouqueoprecede 60 (Pousseur apud Nattiez, 2005, p.39). Em Epgrafe e alguns apontamentos sobre a linguagem, Willy desenvolve: A primeira lngua de um homem no se exaure no aprendizado de um vocabulrio: uma forma deconhecimento,decatecismosocial;noseaprendesosnomesdascoisas,masaunidade das coisas e seus nomes, mais ainda as origens de quem diz e aponta para as coisas. Aprender a falar a primeira lngua principiar a entrar no mundo, a comungar com o princpio do mundo, a descobri-lo,enoumadecoraodeumlxicoparaascoisasdomundo,eparatudooque ocorre.(...)Oaprendizadodaprimeiralngua,portanto,umaformadeconhecimentoeno umaformadetraduo.Tantoqueopensamentodohomemrecendesualnguame,se ressente de seu sotaque (Oliveira, 1998b, p.45-46). Mais do que nunca, no possvel falar sem se referir totalidade da cultura que o carrega ou que o precede; a enunciao dessa frase em 1963 por Pousseur j mostra a conscincia de uma falcia generalizada no que eles acreditavam que seria uma nova prtica comum a partir do legado de Webern e da experincia serial de modo geral. Se a comunicao na linguagem musicalocorrera,nossistemasderefernciadopassado,comaespecificidadedeuma linguagem em que a semntica se assenta sobre a sintaxe, no no simples engendrar de uma novasintaxeapartirdeexperinciasisoladasqueserecuperaacomunicabilidadeemlarga escala. Essa nova sintaxe se ressente de uma prtica desaparecida para sua efetividade plena. na conscincia desse estado de coisas que Willy e Pousseur vislumbram em seus processos criativos o aprendizado da lngua morta como substituto da comunho em uma lngua-me.PousseureWillyhaviamrespondidocomveemnciaaoataquedeLvi-Straussmsica serial(comojcomentamosacima),ressaltandoentreoutrosargumentosasolidezdeseu embasamentosobredadosmateriais,naturais,dofenmenosonoro.Oaprofundamentoda discussolevaaumquestionamentomaisconcretonodaexperinciaserialemsi,masda situaoemqueacriaomusicalsedebatedesdeadesintegraodaheranatonaleda prticasocialqueaacompanhava:adialticaentrenaturezaecultura,cujanecessidade primordialambosadvogamnaconstituiodeumsistemaderefernciacoerentena linguagemmusical,nopodeserdevidamentearticulada(aomenosnocomomesmofim, com a mesma efetividade) se se entende como dado cultural a ao individual pura e simples. RaymondCourt,outroparticipantedadiscussocomLvi-Straussnapoca,aocomentaro conjuntovastodaspossibilidadesfonticasdalaringehumana,colocaquequandoacriana sai da fase do balbucio opera-se uma reduo da gama de possibilidades fonticas, como a contrapartidaexatadaspossibilidadesinfinitasdeexpressoquepermiteapossedeuma lnguasituadaculturalmenteefundadasobreumsistemaespecficodefonemas(Court, 1971, p.17). A infinita riqueza e variedade do material sonoro na msica contempornea no seguiriaalgicainversa,emanalogiaaobalbucioprimevonaausnciadelnguafalada?A 61 vastariquezamaterialdamsicacontemporneanodeixavadedenunciaraPousseur,ao mesmotempo,suasecuraexpressiva,queolevaraabuscarcomsuamsicaum enriquecimentosemnticoperdido(Pousseur,1970,p.289).Nocampodeaoquelhes resta,WillyePousseurrecusamobalbucioesuariquezasonoradesuperfcie,para recuperar uma comunicabilidade ainda possvel nos rastros remanescentes da linguagem. No pretendemfalaremumalnguamorta,masengendraremsuasexperinciasindividuais discursosquerecuperemopotencialdecomunicaoquealinguagemmusicalpossuiuno passado.Nopararepetiramsicadopassado,masparaquesejapossvelexprimir,ainda, idias musicais no presente. RetornandoaoCadernodePnico(antesdeadentraroCadernodoPrincpioedoFim),o ensaioFolhasdoCadernodeumadesconhecida(1998b,p.51-59)discuteumargumento comumemdefesadoestadoatualdamsicacontempornea,ododesenvolvimento autnomo do material musical, que justificaria por si s as caractersticas do que se escreve, emaisainda,colocariaaresponsabilidadedoisolamentodocompositoreda incomunicabilidade da msica contempornea na incompreenso dessa evoluo em direo complexidade.Asdefiniesquecomentamosdesdeoinciodestetrabalho,porsiss,j mostramaincompatibilidadeentreumdesenvolvimentoautnomodomaterialmusicalea visodamsicacomoumalinguagem(esuastransformaesemrelaoestreitacomas mudanas nas suas funes e na ordem social vigente). Para alm dessa incompatibilidade, o argumentodoprogressodalinguagempareceexigirorequintedaconstruodeuma narrativaparaahistriadamsicaemquenoapenasnoparticipemasoutrasesferasda existnciahumana(apenasotrabalhocriadorindividual,emabstraesparticulares),como ainda uma narrativa em que no participe nem o prprio repertrio; uma seqncia suspeita de poucosgniosepoucasobrasgeniaissustentariamacoernciadaincomunicabilidadeatual. Rastros desse pensamento, em diferentes graus povoam desde A evoluo da msica de Bach a Schoenberg de Leibowitz (1951) at A linguagem musical de Boucourechliev (1993), para citarmos dois exemplos.Oltimotextodocaderno,Comedyoferrors(1998b,p.60-62),criaduascenasdistintas, justapostas,similares;duasprofissesdefsobreoserialismoquelevamagargalhadas incontrolveisapsasuaenunciao;aprimeiraporSchoenberg,asegundaporStravinski. Evocao variada de uma cena similar, ocorrida numa aula ministrada por Willy na USP, em 1980 vejam-se suas Cinco advertncias sobre a voragem (2010, p.101-118). Willy compara asduascenascomarisadaincontrolveldeumamigoemumvelrio;ossemblantes pesarosos em todos os presentes, a impingidela da sobriedade, lado a lado com a convulso do 62 riso. Analogia com o falecimento de um planeado sistema, de uma profisso de f artstica e seuanteparoterico,deumareconstruohistricadorepertriocomvistasjustificao dessa profisso de f. O Caderno do Princpio e do Fim (1998c), que foi publicado em parte como artigo (excluindo o tero inicial, introdutrio)30, dialoga com os apontamentos do Caderno de Pnico em uma seqnciadeargumentaes.Documentaapresenapfiadamsicaeruditanomercado fonogrfico(avaliada,napoca,pelasuapresenaestatsticanaprensagemdeCDs), incluindonessapequenaproduotodoorepertriohistrico,eaindagnerosparalelos includosnamesmaclassificao.Incompatibilidadeentrealinguagemeomodode produo: Opoucodemsicaeruditaquesetransformouemmercadoria,fazexignciasmuitoelevadas. (...)Paraoconsumodemsicadopassado,oouvintecarecedepreparaohistricaetcnica que o habilite a decodificar aquilo que ele escuta. H que situar a obra em seu contexto scio-cultural; compreender o sistema de referncia (de cuja organizao do material musical a obra expresso);asinter-relaesdeordemmorfolgica;teroconhecimentoeafreqentaos obrasquepossibiliteaoouvinteadistinoidioletal;econscincia(noplanomesmoda composio) dos parmetros do som e suas potencialidades lingsticas. De outro modo, aquilo queeleouveapenasumamanifestaoacstica,semmuitomais.Comotrovoou abalroamento de automveis (1998c, p.23). Um outro trabalho de pesquisa seria necessrio para verificar o quanto a educao musical e a formao musical avanada proporciona sequer aos msicos uma tal relao consciente com o repertrio(aindaquenosrestringssemosapenasaorepertriodopassado),paraquesua relaocomseuprpriotrabalhoultrapasseasuaintuio,suasubjetividade(ouaimitao puraesimplesdotrabalhoalheio).Quedizerentodopotencialdecomunicaodamsica erudita(comoexpressoqueseassentasobreaoperaosinttica)nasociedadeatual?A conscinciahistricadeseuestadoatualpassapelaavaliaodeumapocainteira(quej dura mais de sculo) na qual, em contraste com as funes sociais que ela exerceu no passado (cujadinmicacambiantefaziacorpocomastransformaesnaprprialinguagem),acrise na comunicao coloca em xeque sua prpria existncia como linguagem.Seasexignciasmuitoelevadasparaacomunicaoemmsicaeruditadificultamsua veiculaocomomercadoria,oproblemaaindamaisgravequandosediscutenoa qualidade(ouaestratgia)doensinodalinguagem,visandoounoaformaoespecfica, masoacessoaelepuraesimplesmente:opoderaquisitivoecustodemanutenodo educando,adisponibilidadedetempodededicaoaosestudos,possibilidadesde freqentao das obras musicais, abrangncia das relaes inter-disciplinares, exeqibilidade 30 Oliveira (2007). 63 dosmateriaisdidticosnecessrios(idem,p.25).Issoconsiderando-seadedicaosemanal por anos seguidos.Comojcomentamos,oresultadodessadificuldadenoprecisamenteodeumaelitizao daprticamusical,esimdesuadescaracterizaocomolinguagem,desuaincompreenso generalizada,apontodenoseestranharaanomiaaquesepodechegarnoassimchamado mercado da msica hoje, na falta de uma clareza mnima na distino entre os gneros, entre asdiferenteslinguagensmusicais,entreasatividadeselementaresdaprticamusical; absurdos que no so difceis de se observar, mas que (mais uma vez) exigiriam um trabalho especfico para seu desnudamento apropriado. Nessemeiocrticoparaamsicaeruditademaneirageral,aparcelamaisminoritria,mais marginalmenteatendidaadacriao,noquedizrespeitospossibilidadesparaa composioeacirculaodamsicacontemporneaoqueporsisjconsisteemum sintomadosmaisagudosparaacrisedalinguagem,comosituaoopostaquelaque predomina por toda a histria da msica, em que a circulao via de regra da msica recm-criada. As relaes de trabalho no capitalismo tornam predominante a condio surgida ainda nosculoXIX,opr-requisitodotempolivre,docio,paraapossibilidadedacriao. Isolamentoquesobre-problematizaajdifcilcomunicabilidadedamsicaatual,pela profuso das linguagens possveis, como solues individualizadas na ausncia de linguagem comum.Todspares,opostas,vrias,inviveisquantas.Algoprximodaidiadeuma Babel construda no ptio de uma casa de orates (idem, p.27).A heterogeneidade nessa profuso lingstica invade a produo de cada prprio compositor. Que no parea estranho que um mesmo compositor componha obras hbridas como o Agon, ouqueapresentefasesdistintas(emcurtolapsoesempressoexterior)como,por exemplo, o serialismo integral, incurses pelo Teatro Musical, e at excurses interplanetrias aSirius.Semodilogocomoanteparofuncionalexterno,produzdeacordocoma especificidadedecadaimpulso,idia,momento,enoporpassosdecaminhadadeuma histriadamsicavividaemconjunto,porhomensdelnguacomum.Afaltadefuno excluianoodegnero,ltimofatorquepoderiaconferirunidadeaumaproduo, suplantando-apeladepersonalidadeartstica(idem,p.36).Oisolamentodotrabalhodo compositorlevaa uma heterogeneidade de propostasesoluesem suaproduoque,antes desefazerpresentenaproduodeWillyePousseur,jmarcaraprofundamenteaobrade compositorestodistintoscomoSchoenberg,Stravinsky,Ives,Ravel,Skalkottas,Eisler, Krenek, Cowell, Santoro, Lutoslawski, Penderecki, Arvo Prt, Paul Dessau, John Cage, para citaralgunspoucos.Aapreciaodaheterogeneidadenaobradessescompositoresdepende 64 apenasdono-mascaramentodepartedesuaproduopornoseinseriremdeterminada profissodef,aocontrriodoqueocorrianaavaliaoqueosserialistasdemeadosdo sculo XX faziam de Schoenberg, por exemplo. Se vemos uma perspectiva para a reflexo sobre a composio musical erudita hoje no legado de Pousseur e Willy, no pela adoo de suas solues pessoais (que ademais j so bastante distintasentresuasobras),maspelovislumbredeumcampodeaoemseupensamento musical(dentrodoqualsuasobrassoexemplosdesoluesparticulares)querecuperasse algo da fora da msica erudita como linguagem, a partir da crtica multidirecional do estado atualdecapitalismo.Apartirdessefundamentocrtico,ocampodeaodocompositor abordado sob o signo da metalinguagem. 1.6. O elo perdido Adistinoentrelinguagem-objeto,alinguagemsobreaqualsefala,emetalinguagem,a linguagem com a qual se trata de uma linguagem-objeto, parece ter ganhado fora a partir do ensaioTheconceptoftruthinformalizedlanguages,deAlfredTarski(1956[1935]).Sua migrao do campo da lgica formal para o estudo da arte se tornou cada vez mais freqente na segunda metade do sculo XX.Roman Jakobson, em seu ensaio Lingstica e potica, insere a metalinguagem como uma das seisfunesprincipaisdalinguagem,cadaumaligadahierarquiadeumdosaspectos bsicosdoprocessolingsticosobreosoutros.Segundosuaclassificao,amensagem enviadadeumremetenteaumdestinatrioprecisadeumcdigocomumaosdoisparaser decodificada,deumcontexto(oureferente)parasercompreendidaemsuaespecificidade,e de um contato (um canal fsico) para ser transmitida. Na analogia com a linguagem verbal que orientaapropostadeJakobson,acomunicaoartsticaseriacaracterizadapeladominncia dafunopotica(nfasesobreamensagem).Jafunometalingstica(nfasesobreo cdigo)diriarespeitoverificaodocdigoparaoesclarecimentodacomunicao,ouao aprendizadodalinguagem(1970,p.122-128).Mesmonessesentidoestritoasidiasde Jakobson j podem oferecer uma analogia para a msica do sculo XX, quando ele associa o distrbiolingsticodaafasiaaumaperdademetalinguagem.Anegaodarelaocomo passado,comalinguagemmusicalhistricacomolinguagem-objeto,levaocompositor contemporneo a uma espcie de afasia (no sentido discutido em seu ensaio Dois aspectos da linguagemedoistiposdeafasia).Orecursometalinguagemnecessriotantoparaa aquisiodalinguagemcomoparaseufuncionamentonormal.Acarnciaafsicada 65 capacidadededenominarconstituipropriamenteumaperdademetalinguagem(idem, p.47).Aincapacidadedeassociaoesubstituio,deestabelecimentodoslaosde contigidade prprios da linguagem, levaria impossibilidade de se operar propriamente com o signo musical como ndice. Diversosestudosestenderamessasproposieslingsticasemdiversasaplicaesdo conceitodemetalinguagemcriaoartsticanosculoXX31.ParaWillyePousseura metalinguagemofereceumaperspectivaconcretadeao,deumtrabalhoconsistenteno apenasnanfasesobreocdigo(segundoaclassificaodeJakobson),masnaconscincia histrica desse cdigo e de suas razes no passado para um posicionamento frente a uma crise decomunicao.Masindependentementedaefetividadedesuassoluesparticulares(que norteia esse trabalho como um todo), em boa parte dos discursos musicais desde o sculo XX (a invadir o sculo XXI) impera a heterogeneidade dos materiais com a referncia ao passado. Paramnsias,paralelismos,paralogismos,parammias,parafasias.Citaes,memrias, comentrios,pastichos,pardias,parfrases.Modosdevislumbrarrealidademaisoportuna, quesepodeoperardoladodedentrodotexto(Oliveira,1998c,p.32).Willyva metalinguagem como um certo princpio unificador do conjunto das diversidades da msica contempornea em sua heterogeneidade.Emlugardelnguaviva,comumaogrupo,metalinguagens(individualizadas),acomentar,a criticar, a refletir sobre aspecto/s de linguagem-objeto operante na Histria. A msica do sculo XX remete-nos, quase sempre, a falas de tempos de lngua viva. porquenohlnguacomum,eporqueoscompositoresdemsicaerudita,nocapitalismo, nosuportariamacondenaodosilncioimpenitente,quesearrojamsmetalinguagens (1998c, p.31). At nos casos extremos de questionamento dos parmetros organizadores da linguagem, como na obra aberta, nas operaes com o acaso e na improvisao: a linguagem se debrua sobre si mesma e alcana-se at como processo criativo, quando em tais circunstncias, o que est em jogo o prprio modo de jogo (idem). A atitude perante a linguagem na ausncia de sua prticacomumsedinevitavelmenteemacentuadodistanciamento.Mesmootrabalhona perspectivadeumanovalinguagem,comonaexperinciaserial,noescapadosignoda metalinguagem. Se o simulacro de linguagem engendrado por Schoenberg foi muito acusado por sua excessiva dependncia, anacrnica, de modelos do passado, uma das mais profundas reconsideraesdeseulegadoedesuasdistinesdolegadodeWebernjustamenteade Pousseur, que reencontra na obra de ambos a ligao com fundamentos da linguagem, como a direcionalidade, a organicidade na estruturao do discurso, sua percepo no tempo, a clara 31 Como por exemplo Pignatari (1971), Campos (1972, 1992), Chalhub (1986, 1999). 66 diferenciaodosobjetosesuamemorizaoevariaocomoorganizadoresdotempoeda forma musical.A crise de linguagem faz com que a metalinguagem seja a nica ao possvel. A nfase sobre ocdigonovislumbredeumnovosubstratolingsticoporSchoenbergjsedavaempura metalinguagem;domesmomodo,pormaisquestionadasquetenhamsidosuastentativasde conciliao orgnica dos resduos tonais com a proposta serial (conciliao que muitas vezes resultou de extrema efetividade, como na Klavierstuck op.33a), elas foram obra de uma ao consciente na permanncia de fundamentos da linguagem tais como ele os estudara nas obras do passado. Eporquenohlnguaquealinguagem-objetosefazessencial,necessriacomosignodo real,ndiceHistrico,resduosderealidade,palpvel,apalpitaratravsdametalinguagem. Comoanseioderealidade.Comosonhoembuscadeumarealidadequeaprpriarealidade nega, aliena (Oliveira, 1998c, p.31-32). Distinguem-se,assim,duasdimensesdanoodemetalinguagemparaamsica contempornea.Oestadodalinguagemmusicalnacrisedesuaprticasocialinstaurauma situaometalingsticaemsentidoamplo;ummomentohistricomarcadoporumanova relaocomopassadoesuamultiplicidade,comocolocaraPousseur(Nattiez,2005,p.39), como fundamento imprescindvel de um trabalho que se v desprovido de sua funo social. Mais do que nunca, no possvel falar sem se referir totalidade da cultura que o carrega ouqueoprecede(idem),independentedaintenoespecficaoudaconscinciacrticado compositor.Odistanciamentoinstauradoentrefalaindividualefalacoletivaemmsica eruditadescaracterizaaoperaolingsticatalcomoelahaviasidodefinidaemrelao prtica histrica. A permanncia dessa operao, como a reconstruo de um idioma, como o aprendizadoeaaquisiodeflunciaemlnguamorta(analogiaque,ademais,dcontado longoerduoprocessodaformaodocompositorhoje),spodeocorrercomo metalinguagem. Paraalmdessapremnciaemlargaescaladeumasituaometalingstica,inmeros compositores desde o incio do sculo XX acusam uma nfase consciente na metalinguagem noprocessodecriao.Essaconvicometalingsticasematerializanodiscursomusical atravs de referncias diretas a materiais, fragmentos de obras, gestos, estilemas apropriao de signos musicais que passam a exercer a funo de inter-ndices. Nesses casos, uma reao frentecrisedalinguagempareceprovocaromovimentodedentroparaforaqueWilly comenta na distino entre os trs tipos de ndices, em Beethoven, proprietrio de um crebro (veja-seap.50).Aausnciadeumalinguagemcomumpendeacomunicaomusicaldo proto-ndiceparaointer-ndice:paraqueainformaoestruturalrecuperedados 67 coletivamentecompartilhados(eultrapasseojogoestruturalindividual,isolado),busca-seo elementoexterioraqueosignopodesereportarnomesmouniversolingstico(eemsua histria),inserindo-onodiscurso.Aausnciamesmodestareferencialidade,ouseja,a impossibilidadedeassociaonoseiodamesmalinguagemmusical,levariafunodo extra-ndice,refernciaaqualqueroutrosubstratodalinguagemmusical,e(chegandoao ltimolimite)percepodosompuro,extra-musical32.Ametalinguagemparaamsica atualpodesignificararecuperaodaoperaolingsticanamsicaeruditacomanfase sobre o inter-ndice em lugar do proto-ndice. Na mesa-redonda em Darmstadt em 1963, Pousseur vislumbra a utilizao do passado como vocabulriocomoferramentamaisadequada,comosuperaodasdificuldadesencontradas na experincia serial anterior. Para Pousseur, ao refletir sobre sua experincia emprica com a metalinguagememComposer(avec)desidentitsculturelles,atabularasadaqualpartiaa msicadevanguardadadcadade1950sepreocupavaexclusivamentecomproblemas superficiais,materiaiseelementares,edesuaorganizaoemumapoticaquese qualificariatalvezdevirginalou(maispatologicamente?)deamnsica(Pousseur,2009b, p.314). Ele lembra uma conversa desta poca com Stockhausen (que, juntamente com Berio, elevcomoparceirosnessavisosobreacomposionadcadade1960)emqueeles vislumbram que sua msica, ao invs de propor um novo vocabulrio, teria a funo deabrir e articular um espao suficientemente vasto em que todas as msicas presentes no mundo contemporneoenaconscinciacoletivapudessemencontrarumlugar,sereencontrar,se confrontar,dialogar,secasar,secruzareportantoresistindoaumnivelamentogerale preservando ao contrrio suas propriedades distintivas produzir mesmo uma espcie de super oumetalinguagemenglobando-astodas(assimcomoseusmltiploscruzamentos)eondeelas pudessem aparecer como subsistemas comunicantes33 (idem, p.313). Nesse mesmo trabalho ele detalha sua viso sobre a operao com a metalinguagem (a partir de sua experincia pessoal) dentro das preocupaes estruturais de um compositor oriundo da experinciaserial(idem,p.315-319).Consideraemprimeirolugarquearelevnciado trabalhometalingsticosedapartirdoreconhecimentodarefernciaexternaaindaque no ocorra a identificao exata da origem, consideramos (de nossa parte) que ainda assim tal operaopodeserefetiva,peloreconhecimentodocontrastenanaturezadomaterialedo 32Lembramo-nosaquinovamentedaassociaodeJakobsondaafasiacomaperdada metalinguagem, ao lado do balbucio pr-lingstico de que fala Raymond Court (1971). 33 ouvriretarticulerunespacesuffisammentvaste pourquetouteslesmusiquesprsentesdansle mondecontemporainetlaconsciencecollectivepuissentytrouverplace,s'yrencontrer,s'y confronter, y dialoguer, s'y marier, se mtisser et donc tout en rsistant un nivellement gnral et prservantaucontraireleurspropritsdistinctivesproduiretoutdemmeunesortedesuper-ou mtalangagelesenglobanttoutes(ainsiqueleursmultiplescroisements)etdontellespuissent apparatre comme des sous-systmes communicants. 68 reconhecimento de um estilema, de um trao de outro sistema de referncia, ainda que no da obra precisa para a qual se aponta. O que Pousseur enfatiza a riqueza da possibilidade de se operarcomograuderecognoscibilidade(reconaissabilit)dareferncia,variandoa apresentao do material de forma a jogar com a percepo de seu significado.Outro aspecto enfatizado por Pousseur diretamente ligado ao anterior o da relevncia da variaosobreomaterialexternoevocadocomoumaformadeseoperarcomasemntica musical, ao que ele acrescenta como breve exemplo a incorporao da cano Frre Jacques (alteradaparaotommenor)naPrimeiraSinfoniadeMahler.Essanoodeoperao semntica no detalhada por Pousseur, mas exatamente na avaliao da metalinguagem na obradeMahlerqueseusignificadopodesermelhorvislumbrado,comosercomentado adiante. De qualquer forma, a concepo de um processo de criao em que o compositor no operaria apenas sobre a sintaxe, mas teria algum controle adicional sobre as resultantes semnticas, faz comqueelechegueafirmaodequeacomposiometalingsticanosejustificaria plenamente e no adquiriria todo seu sentido se no conduzisse a uma operao discursiva nosentidomaiscompletodapalavra.Nessecontextoeleenfatizaanecessidadeda manutenodaoperaosobreasintaxe,emprimeiroplano,sejanasjunesesuturas entreasdiferentescitaes,sejaemsuacosturacomotecidodaobraqueasincorpora;e ressaltaqueoconjuntododiscursodeveserregidoporumsistemasubjacente suficientementeforte,claroelgico,queunifiquetodososmateriaisapartirdesuas semelhanas estruturais, de seus denominadores comuns. O comentrio de Pousseur contm uma oposio a uma composio metalingstica que no mostrasseamesmapreocupaoestruturalesintticadalinguagemmusicaldopassado(ou mesmodaexperinciacomageneralizaodasrie),confundindo-secomopasticheoua colagempuraesimplesmente.Oassentardosmateriaissobreaconstruodeumeixo sinttico,naabordagemdacomposiocomoumaoperaoestruturalorgnica,contrasta com o peso trazido pelo termo colagem. Em msica ele parece desviar o peso da organizao de um discurso para o choque entre materiais brutos, como um apelo a sua heterogeneidade e noasuaincorporaoorgnicaemumconjunto.Dopontodevistadaestruturaodo discurso,soaquasepejorativamente.Opartidotomadodamemria,dodilogocoma tradio e da recuperao de uma comunicabilidade nos termos da linguagem musical em sua histrianoseconfundem,paraPousseureWilly,comarepetiodopassado,com neoclassicismos desavisados, ou com pastiches ou colagens que no privilegiassem o sentido 69 estrutural com a mesma profundidade que o serialismo buscava o que bastante claro, para alm de seus textos, quando se observam suas realizaes musicais a partir dessas idias.(...)metalinguagemnodeveriaconfundir-secomlinguagem-objeto.Servilismoefaltade imaginao.Distante(...)detrabalhos(preciosos)lamanirede,comqueRavelpor exemploelaboraacuradssimosexerccios;oucomohumor(amelancolia!)comqueSatie satiriza em plena metalinguagem do gosto (Oliveira, 1998c, p.32). No texto evocado acima, alm da referncia a Ravel e Satie, Willy coloca Mahler e Stravinsky comocasosmarcantesnatomadadeconscinciadesseestadodecoisas:DesdeMahler,a metalinguageminstala-seemlugardalngua.Defeioemeneioscopiosamentedec