Tese 2009 - Washington Luis Lima Drummond

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO WASHINGTON LUIS LIMA DRUMMOND Pierre Verger: Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952) – uma cidade surrealista nos trópicos. Salvador 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

WASHINGTON LUIS LIMA DRUMMOND

Pierre Verger: Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952)

– uma cidade surrealista nos trópicos.

Salvador

2009

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WASHINGTON LUIS LIMA DRUMMOND

PIERRE VERGER: RETRATOS DA BAHIA E CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR

(1946-1952) – UMA CIDADE SURREALISTA NOS TRÓPICOS.

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Urbanismo Orientadora: Profª. Drª. Paola Berenstein Jacques.

Salvador

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Non, non je ne suis pas là où vous me guettez, mais ici d’où je vous regarde en riant [...]. Plus d’un, comme moi sans doute, écrivent pour n’avoir plus de visage. Ne me demandez pas qui je suis et ne me dites pas de rester le même: c’est une morale d’état civil; elle régit nos papiers. Qu’elle nous laisse libres quand il s’agit d’écrire. Michel Foucault, L’archéologie du savoir.

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SUMÁRIO

Apresentação ..............................................................................................................................7 Introdução: literatura, fotografia, rua .......................................................................................12 1. A cidade surrealista e a crítica situacionista.........................................................................42 2. Pierre Verger: deambulação, fotografia, surrealismo...........................................................65 3. Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952): análise do dispositivo

cenográfico.........................................................................................................................111 Conclusão: urbanismo espetacular e o dispositivo cenográfico. ............................................143 Bibliografia.............................................................................................................................154 Anexo: caderno de fotografia.

 

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Um homem se desloca até os confins da América Latina no final dos anos 70 – não

sabemos bem qual a época – com o intuito de registrar sua viagem, fotografando produções

pictóricas de artistas naïf. Esse mundo colorido, impúbere, domesticado, onde paisagem,

homem, animais reconciliados no traço infantil expulsa a visão judicativa para instaurar entre

desenhos, traços, cores, a redenção edêmica. O homem que a tudo percorre é insaciável, se

afunda em clics. Subsumindo o olhar livre ao da objetiva, acalenta a certeza de rememorar a

sua própria viagem na felicidade vívida, representada naquelas imagens de imagens. Ali, no

seu acervo fotográfico, suas férias estariam protegidas na plasmação paradisíaca das

pinturas. Saídas de mãos nativas se reconciliavam com as mais íntimas representações do

mundo natural e feliz que alimentava o dia-a-dia de sua labuta estressante como executivo de

uma mega-empresa americana.

De volta ao solo pátrio, imediatamente enviou os negativos para serem revelados,

solicitando a feitura de alguns slides para mostrá-los suntuosamente à familia e amigos. Ao

fim da tarde do dia seguinte, ansioso, montou os aparelhos e ao projetar os slides estupefato,

não acreditou no que via: imagens sangrentas de torturas e morticínios, degolas, estupros,

devastação, guerra, morte. Assustado e enojado, correu até o banheiro contíguo sem saber o

que acontecera com suas belas e singelas imagens, reproduções dos ingênuos quadros.

Aturdido, as hipóteses de seu drama lhe visitavam: o laboratório provavelmente trocara os

negativos, ou mesmo a bela moça que o atendera talvez tenha embaralhado os envelopes e

colocado seu nome num deles ao invés do de algum sádico que tirara aquelas fotos.

Retornando à sala de projeção, percebeu que seus filhos e esposa já estavam lá,

desesperado, corre tentando impedir que vejam as cenas terríveis que acabara de presenciar.

Ao atravessar a porta da salinha, já tentando se explicar, esbarra na esposa, o alarido dos

filhos ao fundo. Esta o abraça e, para sua surpresa, exclama sorrindo: “Que belas fotos que

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você tirou, como são belos e singelos esses quadros, uma sensação imensa de paz e felicidade

nos toma ao contemplá-las!!!”.

O movimento maléfico da teoria é esse: lançar na platitude do mundo a dissonância

arrogante, e às vezes violenta, de sua interpretação.1

* * *

1 Recriação livre do conto “Apocalipse de Solentiname” do escritor argentino Júlio Cortázar, apud SCARPETTA,

Guy. Cortazar, o mágico. Lemonde Diplomatique, São Paulo: agosto 2008, p. 36.

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Apresentação

A elaboração dessa pesquisa foi pautada na importância da produção imagética para a

vida urbana. A fotografia de rua, em particular, fomentou a mitificação de algumas conhecidas

cidades, contribuiu no seu pathos e apreensão de uma experiência central da vida moderna.

Impuseram uma paisagem artificial às ruas, praças, aos visitantes que chegam com olhos

maculados por elas. Algumas cidades, como Salvador, parece que assumiram as imagens

fotográficas e as narrações literárias como seu próprio corpo, espécie de imaginário objetual,

posto que sonho e mercadoria. Ainda não sabemos quase nada das outras imagens, sejam

cinematográficas ou televisivas, e o impacto no nosso cotidiano urbano. Nem sempre são belas

como as que desfrutamos na obra de Pierre Verger. Observá-las agora, na imposição da beleza

que nos ameaça e no destino que lhe foi reservado, orbitar indefinidamente por um universo de

imagens sem referência, nos coloca alerta quanto ao sentido que damos à nossa apreensão das

cidades, e sobretudo de nossa vida em comum no meio urbano. Precisar esta perspectiva nos

obrigou a fraturar a historicidade das fotografias de Verger em Salvador, criando duas cenas

(produção/espetacularização) na angústia de compreendermos, não as fotos (elas não precisam

de nós!), mas nossa trajetória nessa cidade sem controle. Ao fundo, o que nos inquieta é a

hagiografia laica do personagem urbano, espalhado em imagens ao redor do mundo, iniciado

no século XIX e que tem em Pierre Verger uma de suas inflexões. O artifício da teoria teatral

como condutora da análise, quanto ao âmbito cenográfico, foi a maneira adequada para

expurgarmos imagens que nos pensavam. Nunca do exterior, elas nos inquietam dos mais

íntimos recônditos da memória, confundindo-se com ela, na potência da gestualidade do

próprio corpo. Escaparmos através da idéia de cenografia, ou simularmos uma fuga para

reagruparmos forças e decifrarmos essas esfinges que nos assediam, gesto teatral, foi a

condição de nos desimplicarmos dessas imagens.

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O encontro com o surrealismo deu-se através dos textos benjaminianos. A passagem de

Benjamin pela Paris dos romances de Breton e Aragon foi irreversível no seu trajeto intelectual.

Ele colocou as obsessões dos anos vinte em formulações conceituais, complexas e de uma

inteligência refinada. Esforçamo-nos por realçar essas relações, como se ele já estivesse

presente, nos anos vinte, percorrendo ruas e parques abandonados entre dadaístas e surrealistas.

Seu coração débil batia mais forte quando imaginava uma aventura como essa, ou a realizava

anos depois, percorrendo os mesmos lugares descritos nos romances. Sensação que repetimos

ao visitar as Passages des Panorama e Jouffroy. Todos os nossos heróis lá estavam,

sobrevivendo, como as galerias, obstáculos para as mercadorias do hodierno Les Halles; ainda

passé frente ao turismo feérico do Beaubourg e das pirâmides do Louvre. As vitrines em

liquidação de roupas e bengalas, os sebos com livros, cartões, cartazes cinematográficos,

fotografias que ninguém mais quer, falências de lojas e restaurantes. As galerias perduram nas

formas do antiquado, sem ostentar qualquer tipo de aura revolucionária.

Ao depararmos com as ruínas arquitetônicas e culturais da cidade do Salvador, tínhamos

presente a mesma impressão, tornando o projeto de Verger (Caymmi, Amado e Carybé), visível

em nova configuração. Esses artistas concebiam, como os surrealistas e Benjamin, a trágica

aparição da beleza como epifania. Viram, antes da derrocada final, a mais bela invenção urbana

de convivência que experimentaram. Aí fizeram suas vidas, recriaram a política e a arte de

compor canções, romances, desenhos e fotografias.

Do mundo teórico que rodeava o surrealismo destacamos dois expoentes de suma

importância para a pesquisa, Artaud e Bataille. Restabelecemos um diálogo, nem sempre

amigável, entre a figura luminosa de Breton e os outros dois extremos do lado sombrio da

escrita surrealista. Esse ambiente intelectual, para nós, fundamenta não apenas Verger e o

grupo baiano, incide sobre nossa apreensão da metrópole moderna, ainda imponente, após a

subtração de toda a arenga freudiana. Surrealistas, sem inconsciente!

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Se na primeira cena o surrealismo nos ambienta as imagens de Verger, agora na

reprodutibilidade técnica, que investe contra nosso próprio meio urbano espetacularizando-o, a

teoria torna-se agressiva e desafiadora, nos obrigando a acompanhar seus contornos em textos

fundamentais sobre a questão. Pervagamos por sítios demasiadamente conhecidos, habitados

por fantasmagorias que lhe dão contornos surrealizantes. Verger está lá na entrada do portal

como o personagem kafkiano. São ruas que percorremos durante toda a vida. E sonhamos

percorrê-las ainda por um bom tempo. Antes, menos assombradas, seguíamos pelas mãos

paternas. Hoje, entre fantasmagorias, o demônio alucinante da teoria nos conduz.

* * *

Na “Introdução: literatura, fotografia, rua”, apresentamos as implicações entre relatos e

fotografias, elaborados no século XIX, enquanto semelhanças, diferenças e modulações quanto

a descrição e visibilidade do espaço urbano. Romances, contos, ensaios, poemas de De

Quincey, Engels, Poe, Baudelaire, Rimbaud, Benjamin; imagens fotográficas de Thomson,

Riis, Nègre, Marville e Atget, pioneiros da “photographie de rues”. Destacamos o fotógrafo

Atget, que, sem o espalhafato das vanguardas, constrói no anonimato as diretrizes da fotografia

moderna, antecipando ou provocando as idéias surrealistas. Ao tematizar o trauma das

transformações urbanas novecentistas até a impactante intervenção haussmanniana, escritores e

fotógrafos criam fragmentos dispersos que serão reinterpretados pela aventura surrealista.

No capítulo “A cidade surrealista e a crítica situacionista”, analisamos a aventura

surrealista, síntese e desvio das descrições urbanas do século XIX, somada às obsessões

próprias, que definirão nosso olhar sobre as metrópoles contemporâneas. As obras Le paysan

de Paris de Aragon, e Nadja de Breton fazem de Paris o tema de seus relatos, através das

deambulações por lugares banais, sensibilidade às ruínas urbanas e parques abandonados,

objetos cotidianos em desuso, vitrines de bric-à-bracs, espaços arquiteturais ameaçados de

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desaparecerem e um encantamento que emana desses lugares. Atget e os surrealistas, ao

recusarem o mapa oficial da cidade, ostentam uma crítica fulminante ao triunfalismo moderno.

A rua surrealista, seja literária, cinematográfica ou nas exposições, é locus dos acontecimentos

citadinos, espetáculo diário que não cessa de nos surpreender pelos acasos e sua eletriciade

erótica.

No capítulo “Pierre Verger: deambulação, fotografia, surrealismo”, acompanhamos a

vida de Pierre Verger, sua trajetória, os contatos com a vanguarda surrealista e as diversas

correntes estéticas fotográficas do período (documentarista/humanista/surrealista). Ao chegar

em Salvador, nos anos 40, o fotógrafo Pierre Verger encontra um grupo de artistas, ao qual se

incorpora imediatamente, iniciando a prática da photographie de rues. Carybé, Amado e

Caymmi, como os surrealistas, colocam a cidade no centro de suas obras, explorando as ruas, a

arquitetura colonial e a cultura negra da cidade na contramão do gosto oficial. Desdenham do

processo incipiente, mas contínuo, de modernização. Embora a forma estética não se assemelhe

ao surrealismo clássico, identificamos idéias centrais comuns aos dois grupos de artistas: o

deambular pelas ruas, o fascínio pela vida urbana prestes a desaparecer, as ruínas arquitetônicas

do centro histórico e a iluminação antropológica.

Em “Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952): análise do

dispositivo cenográfico”, os dois livros dedicados à vida soteropolitana, Centro Histórico de

Salvador (1989) e Retratos da Bahia (1990), são estudados sob a luz da teoria teatral e do

conceito de dispositivo cenográfico, dividido em três procedimentos e dois estágios de

emergência. O primeiro estágio, quando da produção e recepção das fotografias de Verger, e o

segundo, quando da apropriação pelo processo de espetacularização urbana. Ancorado na teoria

da história benjaminiana/foucaultiana, nos conceitos de encenação teatral de Artaud e nos de

informe e soberania, elaborados por Bataille, movemos nossa interpretação crítica.

Na “Conclusão: urbanismo espetacular e o dispositivo cenográfico”, utilizando a

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teorização de Benjamin e Debord, sobre a reprodutibilidade técnica e a sociedade do

espetáculo, respectivamente, analisamos o segundo estágio do dispositivo cenográfico.

No final do século XX, o destino da obra de Verger e de seus amigos, está entrelaçada

às transformações urbanas enquanto reprodutibilidade técnica e estetização generalizada

(espetacularização) da paisagem urbana, conduzida para a intensificação da circulação e

consumo de mercadorias. A consumação do turismo como política administrativa de socorro às

condições anêmicas da produtividade das cidades incorre na apropriação do legado modernista

dos artistas estudados. Momento em que o mesmo assume proposição inversa daquela a qual se

destinava. Finalizamos com as considerações provisórias sobre a emergência dessa nova cena e

dos jogos que aí se iniciam.

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Introdução: literatura, fotografia, rua

Os relatos e imagens de caminhadas pelas cidades modernas, que nos foram legados por

escritores e fotógrafos, colaboraram para o aparecimento de uma tradição moderna da

experiência urbana a partir do andar (deambulações, flanerie, errância ou deriva). Às

descrições das caminhadas de Engels, De Quincey, Poe, as quais se seguiram as de Baudelaire

e Rimbaud e as andanças dadaístas e surrealistas por Paris e Berlim, devem-se somar as

produções imagéticas das deambulações de fotógrafos como Eugène Atget e Brassai (Paris),

William Klein (Nova York) e Pierre Verger (Salvador). Obras de textos ou imagens como A

situação da classe trabalhadora na Inglaterra (F. Engels), Confissões de um comedor de ópio

(Thomas De Quincey), O homem da multidão (Edgar Allan Poe), as Flores do mal e o Spleen

de Paris (Baudelaire), as Iluminuras (Rimbaud), O camponês de Paris (Louis Aragon), Nadja

(André Breton), Rua de mão única (Walter Benjamin) e alguns dos textos letristas e

situacionistas, ou Street life in London (John Thomson), How the other half lives (Jacob Riis),

compilações das imagens de Charles Marville e Eugène Atget, Paris de Nuit (Brassai), México

(Manuel Alvarez Bravo), Centro Histórico de Salvador e Retratos da Bahia (Pierre Verger).

Francesco Careri apresentou em seu livro Walkscapes2 uma extensa pesquisa sobre o

andar, inclusive no capítulo intitulado Anti-Walk quando analisa alguns dos textos citados.

Para ele, o que se buscava era uma caminhada estética que não prescindisse de uma produção

artística subseqüente, pois a obra seria o próprio caminhar. A estetização do andar assim

defendida apaga o principal objetivo das caminhadas sem rumo, a saber, o fruir a cidade. Ao

contrário, analisamos os diversos autores e seus deslocamentos pelo espaço urbano como

prática que permite uma posterior produção textual ou imagética, sob o longo reinado estético

do romantismo, durante o qual foram gestados vários sub-estilos. Em particular, as correntes 2 CARERI, Francesco. Walkscapes: el andar como práctica estética. Walking as an aesthetic practice. Trad.

Maurici Pla, Steve Piccolo e Paul Hammond. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

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decadentistas e simbolistas, estruturadas enquanto movimento na segunda metade do século

dezenove.

Segundo Michel Gibson3, o simbolismo seria um estado mental, estando muito além de

um mero movimento artístico, surgido numa Europa industrializada e católica em meados do

século XIX. Ao apelar para o conceito de mentalidades (estado mental), oriundo da

historiografia contemporânea francesa, o autor cita a definição que Georges Duby dá para o

termo: “sistema de imagens” e “juízos informulados, ordenados variamente nas diferentes

classes sociais”. Este é um conceito complexo e problemático no seio da própria discussão

historiográfica, algo metafísico, que requer uma temporalidade histórica lenta que se arrastaria

por enormes períodos. A sua utilização para a compreensão do simbolismo artístico dilui seu

conteúdo estético num sentido, enquanto em outro o lança numa dimensão interclassista e

inautoral. É dessa manifestação “mental” (enquanto ambiência de conceitos e imagens) que

surgiria uma gama de obras estéticas no âmbito da literatura e da pintura posteriormente

nomeados como simbolistas. Para Gibson, esses trabalhos estariam ligados a uma rejeição ao

mundo capitalista, à crescente inclinação ao materialismo que essa sociedade desenvolve, ao

seu industrialismo acelerado e, o que é mais interessante, a uma crescente urbanização e

cosmopolitização dos costumes, em detrimento de uma cultura e vida mais ruralizada,

entendida como próxima da natureza.

No romantismo clássico, a natureza é tematizada de forma complexificada e paradoxal,

as convulsões físicas confundindo-se com as de origem psicológica. O eu entendido como

fragmento único, singular, mas da mesma substância que o exterior físico, natural, tocado pelo

divino, na qual uma substância última os irmanaria. Se a natureza neoclássica fundamenta-se

enquanto cenário bucólico; no romantismo, ela se espraia, extensiva à alma humana. A sua

incontrolável força, o seu poder de destruição e incomensurabilidade não está tão distante do

3 GIBSON, Michael. Simbolismo. Trad: Paula Reis. Colónia: Taschen, 1999.

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homem romântico que se reconhece interiormente também nestes termos. Na contemplação da

Natureza dá-se um espelhamento da conturbada e abissal vida interior romântica, tão bem

expressa nos maravilhosos quadros de Friedrich ou no Wherter de Goethe: “acolhia todas essas

coisas no meu coração extasiado, [...] e as formas admiráveis do universo infinito giravam na

minha alma”. A relação sacra entre a centralidade do eu romântico e a realidade natural exterior

enquanto extensão dele definiria a lírica romântica e configurando-se, enquanto simbolismo, na

descrição de um mundo moderno, capitalista e urbano, instância denotadora da imediaticidade

das novas modelações estético-existenciais. Ruas, parques e praças externalizariam aquilo que

está no interior do indivíduo, possibilitando uma integração entre interior e exterior. O

simbolismo, espécie de romantismo tardio, expressa a nascente cultura cosmopolita modulando

o eu lírico romântico não mais pautado na complexa dualidade divinizada (eu/natureza) e

unificada pelo fazer poético, agora deslocada para uma, segundo termos lukasianos, natureza

segunda, humanizada e industrial, configurada pelo espaço urbano.

* * *

O simbolismo tem no poema Correspondências, de Charles Baudelaire, na versão

canônica, o ponto fundador do movimento. A matriz para as principais idéias do poema de

Baudelaire é também um texto clássico fundamental do romantismo, o Arcana Coelestia, de

autoria de Swendenborg, escritor e místico sueco, publicado em 1752. Reagirão a ele, de

maneira diversa, várias gerações de românticos e simbolistas finisseculares, formando uma

verdadeira legião de admiradores e discípulos.

O swendenborgismo pode ser definido resumidamente enquanto uma dualidade

correspondente entre as coisas abstratas, que habitariam o mundo interior individual, e objetos

concretos, explícitos que circundam o mesmo indivíduo, preconizando uma interação entre

exterior/interior numa projeção do mundo subjetivo no objetivo. A maestria do escritor

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americano Edgar Allan Poe, e depois, inspirado claramente por este, Baudelaire, seria a

transposição, ainda sob o romantismo, dessa concepção para o espaço urbano. Às

correspondências swendenborguianas ainda marcadas pela idéia de natureza como estância

divina, os simbolistas proporiam uma natureza urbana, fazendo com que essa teofania se

antropologizasse, apreendendo o cotidiano das cidades modernas como que sintonizada com o

mundo interior convulso dos novos cidadãos.

A lírica baudelairiana estaria fundando, além do simbolismo, as estéticas vanguardistas

do final e início dos séculos XIX/XX, sideradas pelas novas experiências proporcionadas aos

habitantes das cidades modernas. É esse cosmopolitismo poético que talvez o faça tão popular,

colocando a poesia e prosa contemporâneas abertas para o tema urbano.

Em Correspondances (Correspondências), o poeta imagina o homem caminhando

“através de florestas de símbolos” que o espreitam “com olhares familiares”, “numa tenebrosa e

profunda unidade” que promove a correspondência entre os sentidos, na qual “perfumes, cores

e sons se correspondem”. Esse embaralhamento dos sentidos que em De Quincey é provocado

pelo ópio, e em Poe, pela convalescência em confronto com o turbilhão urbano, aqui é fruto da

ordenação (ou seria de desordenação?) sinestésica dos sentidos, isto é a correspondência e

inversão perceptiva, expresso nos versos seguintes pelos “perfumes frescos como carnes de

crianças” ou “doces como oboés, verdes como prados” que “cantam os êxtases do espírito e

dos sentidos”4. Tema tipicamente simbolista, a sinestesia baudelairiana não poderia ser

estendida, numa analogia, ao caminhar nas “forêts de symboles” das vias da “tenebreuse”

cidade moderna?

A avalanche de solicitações urbanas, sensações desparatadas e intermitentes, provocam

o desfalecimento dos sentidos, seu transporte com sinais trocados. O transeunte, paciente da

experiência sinestésica, sabe as vias da cidade enquanto instante de corrosão da individualidade 4 BAUDELAIRE, Charles. Correspondances. In : _____. Oeuvres complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p. 8-9.

Nesta passagem, como em outras, a tradução é de responsabilidade do autor.

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no embotamento dos sentidos que lhe constitui. As ruas são o teatro de operações do acaso, do

inesperado, de tudo que surpreender possa o passante, abrigando uma experiência intensa e

capital em sua sensibilidade. O choque, liturgia do pedestre tornado flâneur, conduz o

embaralhamento sensorial como uma nova e prazerosa religião.

O poema simbolista condensa uma expectativa literária que de certa maneira já se

encontrava presente no romantismo. Entranhado no espectro romântico, paradoxalmente é

continuidade e superação deste. De maneira sintética e reiterativa: o simbolismo é a

sobrevivência do romantismo sob outros meios. A crítica especializada vem desgastando

completamente o conceito de romantismo, estendendo o seu campo de aplicação geográfica e

temporalmente a ponto de esgarçá-lo de tal maneira que finda roubar-lhe completamente o

sentido. É o caso de situar o simbolismo dentro de parâmetros mais definidos e circunscrevê-lo

a práticas literárias e objetos singulares: aproximar as noções de simbolismo e urbanismo,

proporcionando uma visão diferenciada das descrições do espaço público, considerando

determinados procedimentos reincidentes nas narrações e imagens que formaram a nossa

apreensão da cidade moderna.

Distante da conceituação como estado mental ou representação estética, o simbolismo

seria então um conjunto de artifícios (simulacros) literários e imagéticos utilizados e

reutilizados por vários escritores e fotógrafos (marxistas, surrealistas, situacionistas até os

diversos fotógrafos de rua dos séculos XIX e XX) no intento de descrever ou tornar visível a

experiência urbana moderna. A fotografia, em particular, parodiando os eventos, dará uma

aparência cenográfica às situações urbanas, impelindo ao máximo a sua força ilusória, acionada

pelas “potências do falso”5. As mesmas que impelem o fazer literário e que se entrelaçam num

quiasma de imagens, textos e corpos.

5 A distinção entre cidade real e irreal se dissolve ao rompermos com a idéia de representação que recupere a

“coisa em si”. Divisamos dois caminhos de fuga dessa aporia. Habermas, ao comentar a obra de Cassirer em seu esforço de livrar-se da “irritante” coisa em si, afirma que “la impression sensible que provoca el acto de la

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* * *

Friedrich Engels6, em seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra,

publicado em 1845, no famoso capítulo As grandes cidades, denuncia o modo de estruturação

da cidade de Londres, Manchester e Liverpool, derivando-o das contradições inerentes ao modo

de produção capitalista. Assim a miséria e a deterioração dos bairros operários deixam de ser

acidentais, mas “um dos inúmeros males de importância menor” que resultam indiretamente do

embate entre capital e trabalho. A segregação econômica se reproduz espacialmente: excluídos

da distribuição das riquezas que ajudam a produzir, os operários também o são dos centros

urbanos. Triste permanência da ignomínia que se estende até os nossos dias, Engels chega a

afirmar que “toda grande cidade tem um ou vários ‘bairros ruins’, onde se concentra a classe

operária”. As descrições da vida dos trabalhadores, nos bairros miseráveis das cidades inglesas

citadas, assumem contornos literários, conjugando-se com autores que prenunciavam o

simbolismo e decadentismo estético. A repetitiva e infinda cidade, escura e encortiçada, com

suas ruas sujas, fétidas, miseráveis, de esgotos a céu aberto e ventilação difícil. Ao adentrar as

simbolizacion no es algo dado onticamente [...]. Unicamente en el interior del horizonte inaugurado por la capacidad originariamente figurativa de la representacion simbólica podemos atribuir existência a los objetos representados” (HABERMAS, Jürgen. Fragmentos filosófico-teológicos: de la impresión sensible a la expresión simbólica. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo. Madrid: Editorial Trotta, 1999). Enunciando a objetivação presente na representação, o que nos livra em parte de uma existência real exterior, Habermas preserva uma visão linguageira como instância última do sentido da experiência sensível. Perde-se aí a dimensão simulatória. Encontramo-nos mais abrigados nas formulações de Klossowski, que seguindo o pensamento nietzscheano, diz que o ato de abolir o mundo verdadeiro é simultâneo ao de suprimir o mundo aparente, pois o primeiro servia de referente ao último. O mundo torna-se fábula, “algo que se conta e só existe na narrativa [...] um evento contado, portanto interpretação: a religião, a arte, a ciência, a história, são interpretações diversas do mundo, ou antes variações da fábula” (KLOSSOWSKI, Pierre. Nietszche, o politeísmo e a paródia. Trad. Eloisa de Araújo Ribeiro. 34 Letras Fraude, Rio de Janeiro n°5/6, p. 146-163, set 1989, p. 151-154). À primeira vista as afirmações de Habermas e Klossowski pareceriam similares se não persistíssemos na leitura klossowskiana de Nietzsche. O ensaista, escritor e desenhista francês sabe que precisa avançar no conceito de fabulação do que “acontece ou deve ter acontecido” sem evitarmos de “seguir, tentando retomar para discernir se atrás da narrativa não haveria um ou outro momento que difere do que ouvimos contar” sob o risco de retorno da distinção entre mundo verdadeiro e aparente. O instante que difere da narração é o mundo resultante de “um certo comportamento dos impulsos entre si”, simulando a unicidade do que é nos termos nietszcheano “fragmento, enigma e horrível acaso”. A “semiologia pulsional” de Klossowski opera por intensidades, as formas interpretativas dão a ver o combate de impulsos “diferentes e contrários entre si” (“Semiologia pulsional”, termo utilizado por Carlos Eduardo E. Lins na apresentação do texto de Klossowski in: KLOSSOWSKI, Pierre. Ibidem. p. 145).

6 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad: Rosa Camargo Artigas e Reginaldo Forti. São Paulo: Global, 1985, p. 35-88.

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ruas de Londres “onde podemos andar horas sem sequer chegar ao princípio do fim”, Engels

denúncia, além da pobreza extrema, o espetáculo monstruoso das suas ruas, expresso pelo

aparecimento das multidões que “têm, por si só, qualquer coisa de repugnante, que revolta a

natureza humana”, pois só depois de “pisarmos, durante alguns dias, as pedras das ruas

principais”, abrindo “passagem através da multidão”, notamos “que estes londrinos tiveram de

sacrificar a melhor parte da sua condição de homens”.

Em outro texto famoso, Contribuição ao problema da habitação, Engels7 assinala a

visibilidade, nas ruas, das contradições econômicas do capitalismo, melhor as vias urbanas são

frutos dessas contradições, assumindo, portanto essa face monstruosa. Apesar da arenga

humanitária burguesa acerca do problema habitacional dos trabalhadores urbanos, entendendo-

o casuisticamente, Engels assinala a sua ossatura estrutural imbricada na exploração capitalista,

a mesma que ancorada na propriedade privada e na divisão social do trabalho impõe a

separação entre cidade e campo. As forças materiais, impulsionadas como nunca antes pela

burguesia, não proporcionaram ao proletariado nascente e organizado o desenvolvimento social

esperado e preconizado pelos socialistas utópicos, antes impediram a realização de uma

sociedade mais justa, soterrando inclusive as propostas desses primeiros socialistas. A

resolução do problema urbano, a superação da dicotomia campo/cidade e da questão do

alojamento operário, segundo esse raciocínio, estariam atrelados “à solução da questão social,

quer dizer, à abolição do modo de produção capitalista”.

Nesse mesmo período, entretanto, Thomas De Quincey8, citado pelos situacionistas

como precursor da deriva, que escreveu Confissões de um comedor de ópio, relata sua

experiência londrina, sob o efeito do ópio, durante os primeiros anos do século dezenove, sob

uma perspectiva contrária à de Engels. O autor percorria as ruas de Londres, sempre durante a 7 ENGELS, F. Contribuição ao problema da habitação. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas

1. Trad: Almir Matos. São Paulo: Alfa-Omega, [s/d], p. 107-117. 8 DE QUINCEY, Thomas. Confissões de um comedor de ópio. Trad. Ibañez Filho. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.

35-61.

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noite, acompanhado de sua pequena amiga Ann, uma prostituta de quinze anos. Deslocavam-se

pelas “ruas que cortam Oxford-street”, sentando-se em suas calçadas, caminhando como num

labirinto, evitando a angústia da fome, as dores de estômago ou a “agitação do Picadilly”. De

Quincey se define, assim como a sua companheira, por causa da profissão, de peripatéticos e é

sob o efeito do ópio que sua errância se torna mais profunda, aliada ao desaparecimento de

Ann. Aos sábados, procura os mercados ou outros lugares em que “os pobres costumam gastar

seus salários, nessas noites”, deslocando-se sem se preocupar com a distância ou o sentido da

caminhada, findando por se achar totalmente perdido “perplexo diante de alamedas, avenidas

sem fim, entradas enigmáticas e ruas sem saída”.

De Quincey em um dos belos trechos do livro narra seu encontro com os pobres que se

dirigem ao mercado, aproximando-se “sem parecer intruso” e proseando delicadamente sobre a

vida dura desses trabalhadores, acercando-se sobre seus salários, se estavam mais altos ou

ansiavam por algum aumento: “se diziam que o preço das cebolas e da manteiga iria baixar, eu

ficava contente; mas, se fosse o contrário, procurava no ópio uma maneira de me consolar”.

Nas Confissões de um comedor de ópio, a cidade é labiríntica e a angústia da procura

expressa o próprio meio urbano. As sensações se imiscuem nas lembranças oníricas que, por

sua vez, fundem-se ao sonho induzido do ópio. O labirinto que é Londres incita, atemoriza pela

imensidão e pobreza extrema que não passa despercebida pelos olhos visionários de De

Quincey. Um erotismo velado conduz a perambulação pelas ruas em que a busca do corpo

desejado como que eletriza o cenário urbano, tema posteriormente retomado pela literatura

surrealista. Essa errância coincide com o advento de uma etnografia urbana, o caminhante

deparando-se com as mazelas da modernização, as desigualdades que produzem não só a

miséria, mas as espacialidades que se excluem. A Londres, metrópole moderna, cidade também

dos miseráveis, pode servir de campo aberto para as descobertas do escritor De Quincey,

propiciando, além de um deslocamento espacial, sobretudo novas ambiências, reinventando os

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relatos de aventuras em sua forma urbana. Cruzar a cidade, a pé, em busca de sensações,

recriando, através da escrita, uma cidade dentro de outra. Poe irá levar essa prática às últimas

consequências.

Também Edgar Allan Poe9, no início do século dezenove, escreve sob inspiração do

cotidiano londrino. O advento da multidão nas ruas de Londres, novidade assustadora para os

novecentistas, surge sem as características “repugnantes” engelianas, obrigando uma

modulação do olhar, necessária para ajustar a visão à paisagem das novas metrópoles. Mais

encantado que aterrorizado, o personagem poeano, um fisionomista, delicia-se com as imagens

urbanas, fazendo da visão seu sentido absoluto através da observação dos tipos citadinos.

Embora em alguns pontos os dois escritores de língua inglesa, De Quincey e Poe, se

aproximem da perspectiva do ensaísta marxista, na descrição do ambiente degradado com cores

fortes, de impacto modernista e decadente, a avaliação dos espaços públicos e da multidão

londrina os distancia. A questão de fundo talvez seja a avaliação da própria cidade moderna,

condenada irremediavelmente pelo marxismo de Engels, à espera de uma redenção, e fruída

como um espetáculo, apesar dos seus horrores, por Poe e De Quincey.

Edgar Allan Poe, entre as décadas de 30 e 40 do século dezenove, escreveu o conto O

homem da multidão inspirado em Londres. A diversidade da vida urbana é retratada de maneira

apurada, detalhista, criando um mapa visual dos seus habitantes. O olhar se desloca de uma

ótica ainda classista em direção a uma espécie de etnografia urbana, pautada na figura do

fisionomista. As clivagens se multiplicam e as multiplicidades ocupam o lugar de uma

esquemática divisão da cidade. Desfalecimento da lógica classista de Engels, pois se ainda

bipartida em áreas de riqueza e de miséria, se diversifica na visibilidade de estâncias

intersticiais. O andarilho depara-se com uma fantasmagoria da paisagem urbana em que os

esforços do fisionomista são exigidos como arte da sobrevivência nas ruas. O olho instado a 9 POE, Edgar Allan. O Homem das multidões. In: ____. Ficção completa, poesia & ensaios. Trad: Oscar Mendes.

Rio de Janeiro: Aguilar, 1965, p. 392-400.

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elaborar um inventário dos personagens e ambientes percorridos. A visão como guia e

sobrevivência.

O personagem do conto está, ao entardecer, sentado no Café D..., e espreita “a rua

através das vidraças esfumaçadas” a qual é “uma das artérias principais da cidade e regurgitara

de gente o dia todo”. O clima do conto já se delineia, algo misterioso e sonambúlico, desde o

anoitecimento das ruas, com as lâmpadas bruxuleantes recém-acesas e o recrudescimento da

multidão com as “densas e contínuas ondas de passantes” que desfilam. O próprio personagem

se diz convalescendo num estado de espírito “no qual os olhos da mente se desanuviam e o

intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária”. Para Poe, o bulício citadino é como o

ópio de De Quincey, um “mar tumultuoso de cabeças humanas” que lhe proporciona “uma

emoção deliciosamente inédita”. A convalescença substituiria o narcótico na procura de um

estado alterado coincidente com as paisagens visuais. Menos do que a cidade como um todo, é

a rua, como espetáculo urbano, teatro de sensações, experiências visuais, corporais, que se

apresenta como o grande tema do conto poeano.

É essa intuição, de que algo de muito importante se passa nas ruas, que guiara não

apenas os escritores aqui analisados, mas os primeiros fotógrafos de rua. O teatro de operações

que é a rua instiga-os a buscar novas experiências que o próprio desenvolvimento urbano

propicia. Para isso é preciso rasgar os limites espaciais impostos. Deambular a pé, solitário,

pelas ruas da cidade, potencializando o envolvimento corporal com a forma urbana,

dramatizando o olhar. O livro de fotografias Street life in London de John Thomson, publicado

em Londres (1877-1878), pode ser o primeiro exemplar dedicado à vida das ruas de uma cidade

européia, embora o francês Charles Nègre tenha tirado alguns clichés como “photographie de

rues”. Sabe-se que as fotos de Thomson são encenadas, entretanto, pela beleza estética e pelo

apelo “documental”, nos lembram de esforços posteriores, sobretudo o de Atget nas ruas de

Paris. Mais celebre foi o How the other half lives de Jacob Riis, produzido na cidade de New

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York, em 1890, com o intuito de dar a ver a outra metade, pobre, da cidade. E essa ignorância

de uma parte secreta da cidade que se quer tornar visível está presente tanto na literatura quanto

na fotografia do século XIX, estendendo-se de alguma maneira até o século XX, quando atinge

a bohemia intelectual ou especificamente os exotismos dos estilos de vida urbanos. O destaque

é a vida nas ruas, das ruas, entendidas como a parte vital da experiência urbana. Uma recente

publicação, de 2007, intitulada Street world urban culture from five continents10, confirma a

idéia de tomarmos as ruas como exemplo da pujança, diversidade dos estilos de vida e de uma

espécie de voyeurismo urbanos. O livro traz fotos coloridas surpreendentes de cidades dos

cinco continentes advogando uma interconexão da “global street culture”, embora centrada

numa cultura jovem. Corpos tatuados, em êxtase musical, seja rock ou tecno, vestidos de

marcas internacionais, esportes radicais de rua (skate, ciclismo, motociclismo etc.), grafites e

pichações em carros, metrôs, paredes e um último capítulo (Coming together) cobrindo

atividades múltiplas desde shows, manifestações de protesto ou de “art opening” acontecidas

nas ruas. O exemplo fílmico é Eu sou Juani do diretor Bigas Luna que transita pelo mesmo

universo, dessa vez centrado na cidade de Madri.

Literatura ou fotografia, representação escrita ou visual, funcionam como uma devassa,

algo prazerosa, e indicam além do interesse da produção dessas obras, o surgimento

concomitante de um interesse na fruição delas. No século XIX, uma parcela da população

urbana queria deleitar-se esteticamente da chance de saber como vive a outra metade da cidade,

celebrando um olhar curioso associado ao humanismo caridoso das classes burguesas ou ao

discurso inflamado das letras marxistas11. Lembramos a sobrevivência desse olhar, deslocado

10 GASTMAN, Roger; NEELON, Calem; SMYRSKI, Anthony. Street world urban culture from five continents.

London: Thames & Hudson, 2007. 11 PARR, Martin; BADGER, Gerry. Le livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-

Gettle; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005 p. 49-53; SONTAG, Susan. On photography. Londres: Penguin Books, 2002, p. 56.

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para regiões recônditas, no sucesso contemporâneo das imagens mundialmente famosas de

Sebastião Salgado.

* * *

O personagem de Poe é um fisionomista, mais encantado do que aterrorizado, fruindo

imagens e sensações urbanas, fazendo da visão seu sentido absoluto através da observação dos

tipos citadinos. No início sob um “aspecto abstrato e generalizante” e posteriormente “com

minucioso interesse” vai salientando as variedades de “figura, traje, ar, porte, semblante e

expressão fisionômica”. Identifica-os, classifica-os individualmente para segundos depois

devolvê-los à urbe apressada.

Essa folie du voir do fisionomista esconde outra intenção, a de que é possível através do

olhar etnografar o asfalto. Enquanto em De Quincey as descrições urbanas derivadas das

caminhadas se realizam enquanto grandes planos descritivos, aproximando-o das descrições de

Engels, em Poe é o detalhe, o close nas roupas ou rostos que lhe caracterizaria. No texto, pela

aparência, o enigmático personagem encontra nobres, comerciantes, procuradores,

funcionários, jovens, mas também batedores de carteiras, jogadores, almofadinhas, militares, e

“descendo na escala que se chama distinção”, mascates, mendigos profissionais, cadavéricos

inválidos, mocinhas modestas e seus rufiões, mundanas de todas as idades. Por fim, o rosário

repugnante dos personagens urbanos: a leprosa em trapos, a velhota em rugas, bêbados,

esfarrapados, e toda uma miríade de personagens decifrados pelo fisionomista, concentrado na

aparência desses tipos urbanos: os que carregam anúncios, os que varrem, os que tocam

realejos ou cantam nas ruas, “moços de frete”, “domadores de macacos”, “ambulantes”,

artesãos maltrapilhos e trabalhadores exauridos que se arrastam até os bairros distantes e

pútridos que habitam.

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Esteticamente estamos no âmbito das questões que possibilitarão o surgimento do

simbolismo que defenderá uma sinestesia dos sentidos. No conto, Poe descreve os efeitos

atordoantes das ruas, nas quais há uma “desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente

os ouvidos e provocando-nos uma sensação dorida nos olhos”. O corpo convalescente nos liga

menos à doença e mais ao estado alterado da percepção coadunado ao espectro também

fantasmagórico da experiência do andarilho. Estratagema utilizado por Poe em outros contos12.

Nas derradeiras páginas surge outro personagem, não menos enigmático, um “velho

decrépito”, sexagenário, fazendo nosso fisionomista sentir-se “exaltado, surpreso, fascinado” a

ponto de sair para a rua e imergir na turba seguindo-lhe os passos. O “velho”, como a prostituta

Ann de De Quincey, é o pretexto para que Poe conduza seus leitores e personagens a

experimentarem a cidade como labirinto, babel de intricados percursos, vias, vielas, praças,

paisagens: pujança econômica e arquitetônica, diversidade de tipos urbanos, bairros pobres,

ruínas. Seguiremos sem direção definida aquele personagem bizarro e misterioso. Depois de

caminharem muito, o fisionomista e o velho, este último aparentemente sem perceber que foi

seguido, chegam aos limites da cidade, adentrando num bairro proletário.

Ao final d’O homem na multidão, Poe, assemelhando-se a De Quincey, não nos poupa,

depois de nos levar a percorrer a cidade, da barbárie capitalista também descrita por Engels: os

bairros operários. Descreve-nos o “mais esquálido bairro de Londres”, sem nenhuma novidade,

pois um entre tantos bairros das camadas “desprezadas da população londrina”. Antro da

pobreza deplorável e dos crimes propiciados pelo desespero da luta pela sobrevivência, o lugar

descrito se apresenta com outra figura/descrição cara aos textos e imagens urbanos do século

XIX, a ruína. Os prédios já foram construídos de “madeiras já roídas de vermes”, cuja

aparição, “cambaleantes e arruinados” reforçavam a atmosfera decadente, fantasmagórica,

12 POE, Edgar Allan. O retrato oval. In: ____. Ficção completa, poesia & ensaios. Trad. Oscar Mendes Rio de

Janeiro: Aguilar, 1965, p. 278. Neste sentido poderia se ler algumas passagens do, WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. In. ____. Obra Completa. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995, p.51-228.

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desolada. Mesmo pavimento era formado por pedras que “jaziam espalhadas” arrancadas que

foram do seu “leito” de origem enquanto “um odor horrível” emanava por todo ambiente

proveniente dos esgotos a céu aberto e “arruinados”.

Os três autores da primeira metade do século XIX marcaram profundamente a literatura

moderna sobre a cidade, criando descrições impactantes e condicionando os relatos às

deambulações urbanas que por sua vez incitaram outras criações nas grandes metrópoles

européias. Nos seus textos as ruas possibilitam experiências diversas, conflitantes, fortes,

marcadas por uma visão apologética (Poe) ou repugnante (Engels), mas sempre denunciadora e

politizada quanto à situação das cidades modernas. Eles souberam sinalizar as potencialidades

inerentes às ruas expressas dramaticamente pelo aparecimento das multidões, a multiplicidade

de seus personagens e o impacto do operariado urbano. A tragicidade das ruas não os impediu

de divisar o teatro de operações visuais, as mutações das aparências, o deslumbrar de

personagens e cenas tão impressionantes quanto as descritas pelos relatos de viagem a terras

distantes. Em seu próprio tecido urbano, as cidades do século XIX se abriam às investigações

de seus habitantes, daí o surgimento de livros de ensaios ou literários e álbuns fotográficos que

se multiplicaram nesse período.

Edgar Allan Poe e Thomas De Quincey, particularmente, travaram no campo estético

uma batalha com a imaginação romântica, aliando poesia e criticidade ao expor as belezas

convulsivas da incipiente e desumana sociedade capitalista ante a sua assustadora produção de

riquezas e pobrezas.

Literatura (De Quincey, Poe, Engels) e fotografia (Thomson, Riis) tematizam as ruínas

urbanas, espetáculo de pobreza e abandono, drama humano e arquitetural, como estranhamento

e denúncia. O brilho decadente das ruínas em Poe não esconde o descompasso com a grande

cidade moderna e o reformismo social, que Riis desenvolve em suas imagens e textos sobre

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Nova York, e se aproxima do discurso dos primeiros urbanistas sob o impacto do

desenvolvimento industrial.

O signo sagitário da melancolia se imporia em outras apresentações da cidade, próximas

dos surrealistas, de Benjamin e das fotografias de Atget, na virada do século XX. Antes deles,

Baudelaire e Marville contribuirão para a sua ressignificação no campo da literatura e

fotografia no período das transformações haussmannianas.

Charles Baudelaire13 publicou em 1857 o livro Les fleurs du mal. A cidade de Paris não

surge diretamente, o poeta sugere uma experiência dos espaços públicos, imaginada a partir de

descrições fortemente decadentistas e inspiradas no universo poeano. Baudelaire, que foi o

tradutor para o francês da obra de Edgar Allan Poe, inclusive do conto O homem na multidão,

apropria-se dos seus protagonistas decrépitos e os multiplica em sua poetização da ambiência

arruinada das ruas parisienses. Para Walter Benjamin, aí está a chave da lírica baudelairiana

que pela primeira vez toma Paris com objeto da poesia lírica: a alegoria. Esse olhar denuncia o

sentimento de desconforto decorrente da atual situação dos habitantes das cidades modernas

frente às intervenções urbanas, seu estranhamento, quando experiências, textos e imagens

formam um novo quiasma e podem ser constantemente resignificados.

Em À une passante14, a aparição dramática de uma bela e majestosa mulher embriaga o

poeta, “beleza fugidia”, antes de ser tragada velozmente pela multidão, na “rua ensurdecedora”.

A fugacidade dos encontros (ou desencontros) na circulação urbana, antes de cerrar o amor

num tempo agora impossível, lança-o na imediaticidade do olhar ligeiro dos transeuntes,

sintonizando a paixão romântica ao mundo moderno. Baudelaire finaliza o poema constatando

que aquela que se esfuma desconhece o destino do poeta, tanto quanto ele ao dela, “No qual o

olhar me fez renascer repentinamente/ Não te verei mais a não ser na eternidade?”. A

instantaneidade não é o algoz da paixão moderna, mas seu campo de possibilidades. O olhar 13 BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal. In : ____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p.8. 14 BAUDELAIRE, Charles. À une passante. In: ____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p.68-69.

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sendo o enlace dramatizado do encontro fortuito que só existirá, desde então, na memória. Será

nestes termos que, posteriormente, Baudelaire encontrará utilidade para a fotografia, a despeito

de estar associada ao “gosto do verdadeiro”, deplorável aos olhos do poeta. Pensando com ele,

a imagem fotográfica das ruas, apoiada na sucessão de instantes, torna-se verdade testemunhal

do acontecido, este não mais relegado ao caráter construtivo e estético da memória. O

aparecimento decisivo da obra de Marville não se daria sobre essa mesma perspectiva, partindo

de instâncias anti-líricas e ligadas ao aparato burocrático-administrativo das cidades?

À une passante faz parte do famoso Tableaux parisiens, uma das seções do Les fleurs

du mal. Conjunto de dezesseis poemas que abordam o lado obscuro das ruas da capital

francesa, desfilando, numa etnografia perversa. Aí estão seus mais desgraçados habitantes (a

mendiga ruiva, o cisne, os setes velhos, as velhinhas, os cegos, a passante, o esqueleto lavrador,

além de meretrizes, rufiões moribundos, jogadores, escroques, etc.) numa devastadora

descrição da paisagem urbana parisiense em fantasmagorias e ruínas. Em Le soleil, Baudelaire

assume o papel de um solitário andarilho que exercita uma fantástica esgrima: “Me exercitarei

só para minha fantástica esgrima/ Farejando em todos os cantos o acaso da rima/ Tropeçando

nas palavras como no asfalto”. A estética do choque se desenvolve na banalidade do cotidiano

como nos versos iniciais do poema Les sept vieillards em que a cidade fervilha plena de

sonhos, invadida por espectros assolando os passantes: “Cidade fervilhante, cidade cheia de

sonhos/ na qual o espectro em pleno dia agarra o passante!”. Ou no poema Les petites vieilles,

onde o enrugado perfil das velhas capitais como Paris, acolhe o horror que se adorna de

encantamentos “Nas sinuosas dobras das velhas capitais,/ Onde tudo, até mesmo o horror, se

transforma em encantamentos”15. Esse famoso conjunto de poemas, uma pequena suíte de uma

Paris decadente/simbolista, é uma resposta literária às obras dos pioneiros fotógrafos do espaço

15 BAUDELAIRE, Charles. Tableaux Parsiens. In : ____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p.60-

66.

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urbano, esbanjando ironia e crueza, peculiar ao poeta francês, inexistente no humanitarismo

imagético.

Na prosa poética baudelairiana do livro Le spleen de Paris16 (também conhecido como

Petit poème en prose) iniciado em 1855, Les yeux des pauvres, coloca o olhar sobre a cidade de

Paris como principal personagem, voltado especificamente para suas avenidas, os

“boulevards”, oriundos das transformações urbanas. Como na análise foucaultiana do quadro

de Velásquez, uma miríade de olhares se cruzam, se cortam, dramatizados na cena. A eles

contraponho o olhar de Marville e o olhar maquinal de sua câmera que também percorriam

Paris no encalço das intervenções haussmannianas.

Baudelaire descreve o anoitecer, quando dois enamorados se dirigem a um café “na

esquina de um novo bulevar que, ainda cheio de entulho, já ostentava glorioso os seus

esplendores inacabados”, onde podem mirar tanto o interior resplandecente do estabelecimento,

quanto o seu exterior abominável. Subitamente, imagem terrível da pobreza se instala na

felicidade pequeno-burguesa do casal: “Em pé diante de nós, víamos plantado um pobre

homem [...] aspecto fatigado [...] que segurava por uma das mãos um menino e trazia no outro

braço um pequenino ser ainda muito frágil”. Espantosa família de olhos que perplexa pelo

brilho do café e dos convivas empaca frente ao casal sabendo que “é uma casa onde só podem

entrar pessoas que não são como nós”. Os olhos do menor dos meninos cintilam fascinados.

Enternecido, o namorado procura refúgio nos olhos da amada que peremptória exclama: “Essa

gente é insuportável com seus olhos abertos como portas-cocheiras! Você não poderia pedir ao

dono do café para os afastar daqui?”17.

A dura observação que afasta os amantes desvela parte do processo de intervenção

urbana empreendida, do final dos anos de 1850 em diante, pelo Barão Georges Haussmann,

16 BAUDELAIRE, Charles. Le spleen de Paris: petits poèmes en prose. Géneve: Editions de la Cité, 1948, p 86-

88. 17 Idem.

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prefeito de Paris, que a pedido do Imperador Napoleão III, remodela de forma sistemática seu

traçado urbano, transformando suas ruas em canteiros de obras. As grandes avenidas abertas

com calçadas largas, arborizadas para o deleite burguês, estão manchadas pelas classes

humildes e miseráveis que circulam no coração da cidade. Aceleram também o movimento das

tropas de artilharia prevendo o aparecimento de barricadas, marca das insurreições populares

parisienses. Baudelaire, que teria participado de barricadas na revolução de 1848, denuncia essa

nova astúcia de constituição do espaço urbano, tomando partido daqueles miseráveis

desalojados, segregados, aprofundando os laços entre estética e crítica urbana.

A troca de olhares, pequena batalha tácita que marca o poema, denuncia o espetáculo

das ruas confrontado em versões antagônicas. A suntuosidade expressa pelo desenvolvimento

do capitalismo da segunda metade do século XIX interfere na produção do espaço, incidindo

nas ruas: o aparecimento dos olhos mecânicos, as objetivas dos aparelhos fotográficos que se

somam às famílias de olhos. Através das imagens de pioneiros da fotografia urbana como

Bruno-Auguste Braquehais que os communards ainda nos encaram em plena rua parisiense,

minutos após derrubarem a coluna Vendôme em 1871, enfrentando, como as tropas, as

objetivas e o olhar do fotógrafo. Antes, em 1848, a visão embaçada da rua Saint-Maur esconde

os olhares dos revolucionários atrás das barricadas, logo após um ataque. Distantes, parecem

posar para o registro de Thibault legando suas sombras à história como o fizeram os transeuntes

da Place Saint-Pierre-de-Montmartre, em 1870, dessa vez para o famoso Nadar. Tornava-se

cada vez mais difícil evitar os olhos dos pobres ou a visão das ruas. As descrições passam a

competir com as apresentações fotográficas.

Ao tempo que Baudelaire escrevia suas obras, outro francês se imortalizava na história

da fotografia, Charles Marville (1816-1879), contratado pelo próprio prefeito de Paris, o barão

Haussmann, com o intuito de registrar as intervenções que capitaneava na cidade de Paris. Esse

privilégio fez com que Marville fotografasse sistematicamente toda a cidade ainda medieval,

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sendo lentamente destruída pelo famoso prefeito, que com mãos de ferros conduziu o

urbanismo modernista. Suas fotos, que se tornaram as primeiras que integraram um arquivo

governamental, são de uma intensa dramaticidade, pois registraram ruas e casas em pleno

desaparecimento, vítimas do ímpeto modernista. A tragicidade dessas fotos, agônicas,

reverberam em toda a estética surrealista, literária ou visual. A eminência do desaparecimento

ou mesmo a interrogação das formas paradoxais da modernidade estabelecem um fio comum

condutor entre Baudelaire, Marville, Atget e os surrealistas, ao abordarem as ruínas como signo

de urbanidade. Aliás, já presentes, segundo Baudelaire, nas gravuras de Charles Meryon.

O impacto das imagens de Marville nos invoca uma cidade em pleno movimento, em

metabolização, desde o trabalho dos homens demolindo velhos prédios, passando pelos vãos

que se abrem através do traçado urbano parisiense, até as ruas paradas e indefesas, talvez dias

antes de desaparecerem. As cenas públicas sem transeuntes lembram uma cidade abandonada,

por vezes arruinada. Seus habitantes quando aparecem são trabalhadores, desconcertados frente

à objetiva, por terem que posar, testemunhas mudas do poder transformador do capital. Num

contexto não menos dramático se inscreveria a obra de Atget.

Em 1858, Marville já havia sido encarregado pela administração municipal parisiense

de “importantes trabalhos no bois de Boulogne”18, onde lhe foi construído um atelier. As

seiscentas fotos tiradas teriam como destino a Exposição Universal de Londres em 1862.

Todavia, foi a chance de ocupar um posto estratégico, no meio de uma transformação radical na

história da cidade de Paris, que o tornou célebre. O Barão Haussmann, então prefeito, criou em

1865, uma Comissão de trabalhos históricos que teria a missão de elaborar uma história geral

de Paris. Em seguida, a comissão nomeia Marville para o trabalho de sua vida:

“Antes de começar os grandes trabalhos que renovaram o aspecto e a topografia

da Velha Paris, a administração acreditara que seria interessante conservar

souvenirs do passado, e com este pensamento, solicitaram ao M. Marville, 18 MARVILLE, Charles. Charles Marville. Paris: Photo Poche, 1996.

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fotográfo, uma série de 425 vistas das antigas vias destruídas ou em vias de

destruição”. 19

Como registrou Baudelaire, em sua crítica ao Salão de 185920, a fotografia, ao menos,

poderia salvar do esquecimento aquilo que o tempo devora. O poeta acertara em cheio o

espírito que caracterizava o interesse da burocracia administrativa parisiense na arte de

Marville. Na Exposição Universal de 1878, o município parisiense apresenta lado a lado “as

vistas das ruas desaparecidas e daquelas que lhe substituíram”. O trabalho com Haussmann

tem o mesmo sentido histórico ao evitar um registro poético das ruas condenadas ao

desaparecimento, antes indicando seu caráter nocivo, obstruído, miserável. É a comparação

entre a velha e a nova paisagem urbana que valorizaria a intervenção urbana de Haussmann e

do Imperador Napoleão III.

As ruínas, agora entendidas como parâmetro de avaliação para as novas configurações

das ruas, se afastam da imagem da “cidade tenebrosa”, corroborando uma apologia do

urbanismo demolidor. No início dos anos 20, do século XX, ainda sob o impacto das

modificações haussmannianas, os surrealistas e Atget deslocariam ainda uma vez o significado

das ruínas, explorando suas potencialidades políticas e tentando expurgá-las, ainda que sem

sucesso da melancolia. Os primeiros aliariam a política ao advento do maravilhoso pela via da

iluminação na trilha dos ensinamentos poéticos de Rimbaud.

O poeta andante Arthur Rimbaud, no livro Illuminations21 (1873), escrito

provavelmente em suas pervaganças em Londres e outras cidades européias, descreve em sua

prosa poética visionária cidades de ruas e jardins habitados pelo incomum e maravilhoso. Os

espaços públicos surgem imantados de sonho e delírio a um passo de uma experiência

iluminadora. O que nos surpreende são os 42 escritos pensados como várias iluminuras, 19 Idem. 20 BAUDELAIRE, Charles. Le public moderne et la photographie. In _____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert

Laffont, 1980, p 746-750. 21 RIMBAUD, Arthur. Illuminations. In: _____. Oeuvres. Paris: Classique Garnier, 2000.

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destacando o caráter visual e epifânico. Na segunda metade do século XIX, intensificam-se os

encontros fortuitos entre fotógrafos e pintores, sobretudo, impressionistas que abandonam os

estúdios, para se arriscarem nas ruas com seus cavaletes, aparelhos fotográficos, tintas e

pincéis. Entre tantas obras produzidas ao ar livre, Claude Monet em 1872 pinta Le Pont-Neuf,

Manet, que em 1862 já havia pintado Música em Tuileries, e entre 1878-1879, Thomas Annan

publicando seu The old classes and Street of Glasgow conjunto de imagens tiradas da cidade de

Glasgow nos moldes da obra de Marville22. As iluminuras devem ser lidas levando-se em conta

essas manifestações de produção ao ar livre, fruto de caminhadas por metrópoles e sob o efeito

da força criativa da luz. A elas, acrescenta Rimbaud a interpretação epifânica da luz sobre os

acontecimentos. Sobrevivência de uma espécie de romantismo tardio em que a deambulação

pelas ruas das metrópoles eleva essas sensações às imagens epifânicas tão caras ao surrealismo

que soube ver, ou deveria ver, segundo Benjamin, sob a iluminação os rastros de uma política.

No poema intitulado Ouvriers (Operários), Rimbaud descreve uma misteriosa Henrika

(irmã anônima de Ann?) quando do seu encontro com o poeta para “uma volta pelo banlieue”.

O tempo “estava nublado e o vento Suão libertava todos os maus cheiros dos jardins dizimados

e dos arredores secos”, o casal observa “numa poça de água cavada pelas inundações [...]

minúsculos peixes”, antes de partirem acompanhados pela cidade que os seguia de longe “com

o seu fumo e o ruído das suas oficinas”. Nas Iluminações, imagens alucinadas de abandono e

decadência, de pedestres perdidos, “indigentes absurdos” que a cidade não acolhe nem permite

escapar estão à vista de todos. Confirmando esse diagnóstico terrível, em Ville, do mesmo

livro, depois de se definir como “um efêmero e não excessivamente descontente cidadão duma

metrópole”, a qual “não ficou nenhum monumento de superstição”, Rimbaud, ou sua persona

literária, diz ver da janela “novos fantasmas deslizando pelo espesso e contínuo fumo de

22 COURTHON, Pierre. Paris des temps nouveaux. Genève, Skira, 1957, p.15; PARR Martin; BADGER Gerry. Le

livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-Gettle; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005, p. 49

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33

carvão”. Um desfile grotesco se estende no campo aberto da cidade, desde “a Morte sem

lágrimas, nossa activa filha e criada, um Amor desesperado” a um “lindo Crime ganindo na

lama da rua”. Outros dois poemas de mesmo título permitem a prosa poética rimbaudiana dar

forma a uma urbanidade maravilhosa em que detalhes banais assumem formas epifânicas. No

primeiro deles, alucinação e realidade fundidos, o suprarealismo, habitam as ruas: “São

cidades! É um povo para o qual se elevaram estes Alleghays e estes Líbanos de sonho!” “Dos

castelos construídos com ossos sai a música desconhecida. As lendas evoluem et os impulsos se

precipitam nos burgos”, enquanto “selvagens dançam sem fim a festa da noite”. O poeta em

êxtase vai até o “movimento de uma rua de Bagdad, onde turmas de operários cantaram a

alegria do trabalho novo”, aturdidos “circulando sem poder evitar os fabulosos fantasmas dos

montes onde devemos ter nos encontrado”. No segundo poema, perdura a embriaguez das

imagens, a acrópole da cidade excedendo “impossível exprimir a claridade fosca destilada por

este céu imutavelmente cinzento”.

O poema Metropolitain fecha nossa análise das Illuminations de Rimbaud trazendo os

pobres expulsos pela amante de Baudelaire a uma cidade fantasiosa de “areia rosa e laranja”,

onde “acabam de montar bulevares de cristal logo ocupados por famílias de pobres que comem

do que compram nas lojas de hortaliças”23.

Esses textos, ao ultrapassarem o romantismo, impregnados da virada simbolista

baudelairiana, fluem para o movimento que define a mais pertinente apreensão da cidade

moderna, o surrealismo, cujos criadores, sobretudo Breton, souberam ver em Rimbaud um

igual. Na virada do século, em completo ostracismo, o mais importante fotógrafo da

modernidade, com anos de antecedência, forjava visualmentente essa investida literária dos

jovens agitadores parisienses.

23 RIMBAUD, Arthur. Illuminations. In: Oeuvres. Paris: Classique Garnier, 2000, p. 267, 269, 271-272, 274-275,

285-286.

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34

No âmbito fotográfico, as imagens e a postura que mais podemos aproximar da obra de

Verger foram aquelas produzidas pelo célebre fotógrafo, também francês, Eugène Atget

(1857/1927). Para o crítico de fotografia Ben Lifson24 “no plano documental, a obra de Atget é

a mais completa de todas as tentativas empreendidas na Europa até ali ; de fato, Atget foi o

primeiro fotógrafo a fazer uma descrição tão detalhada e exaustiva de uma cidade”. Órfão ainda

na infância, ingressou na Marinha, vivendo profissionalmente como marinheiro até completar

22 anos. Iniciou a partir daí outra profissão, tornando-se ator e se inscrevendo no Conservatoire

National des Arts Dramatiques. Durante longo período, atuou em Paris e nas províncias do

interior da França. Finalmente, fotógrafo aos quarenta e dois anos, Père Atget, como era

carinhosamente chamado pelos conhecidos, dedicou-se incansavelmente a fotografar a cidade

de Paris. Diariamente percorria suas ruas desde cedo, quando das primeiras luzes matinais, até

ao entardecer, hora em que retornava para sua casa e estúdio, cobrindo de velhas ruas até

margens abandonadas da cidade. Atget produziu em torno de dez mil negativos melancólicos e

poéticos “únicas por seu realismo lúcido e sua visão lírica que ritmam uma cidade”.

Em depoimento, Atget declara que “recolhi, durante mais de vinte anos, por meu

próprio engajamento, em toda Velha Paris, provas fotográficas, formato (18/24), documetos

artísticos da bela arquitetura civil do XVI ao XIX” Suas fotos ambicionavam retratar e

postergar o “vieux Paris”: suas ruas, le petits métiers, as velhas prostitutas, as velhas lojas,

bric-à-bracs, velhas casas com seus mobiliários, as vitrines tornadas mágicas ou deslocadas

pelo tempo e pela repetição, as ruelas e prédios arruinados, seus bosques e ermos, “este

fantástico amontoado de objetos e estilos que nomeamos Paris”.

O próprio Atget era uma figura pitoresca e algo deslocada, se alimentando apenas de

pão, leite e açúcar por causa de uma úlcera estomacal, a perambular metodicamente por ruas

desertas, esquecidas, bairros distantes, antigos prédios, adentrando-os para devassar sua

24 LIFSON, Ben; ATGET, Eugène. Eugène Atget. New York: Könemann, 1997, p 5-14, 93-94.

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35

intimidade e fotografar mobiliários mais antigos ainda. Também não lhe escaparam ambulantes

de todos os tipos que como ele perambulavam durante todo o dia pelas ruas. A distância que os

separava era aquela mesma que diferenciava o flâneur do badaud.

Distante da figura do flâneur dandy que percorreria as ruas em elegância e leveza,

apesar de toda sua fortuna crítica que o liga a esses personagens urbanos do século XIX, a

prática de Atget era completamente outra. Quem imaginaria um flâneur “munido com uma

câmara de fole, pé em madeira, sacola com objetivas e negativos de placas de vidro – cerca de

vinte quilos”? Exilado dentro de sua própria cidade, dentro de sua arte, vendia suas fotos como

pequenos souvenirs para “pintores com quem ele estudara e que se inspiraram em suas fotos

para seus quadros”, além de curiosos pelas lembranças de uma cidade que desaparecia

rapidamente. Na entrada de seu apartamento-ateliê, escreve o que naquele momento entendia

como sua profissão, um criador de “Documents pour Artistes”. Em 1899, Atget descobriu outro

destino para seus clichés “um mercado de fotografia documental da velha Paris e vendeu 100

provas para a Biblioteca Histórica da Capital”, decorrência do interesse crescente pela história

urbana e da arquitetura e pelo museificação da fotografia enquanto documento. Em 1920,

alguns poucos anos antes de sua morte, ele vende por 10.000 francos, 2600 negativos ao

Ministère de Beaux-Arts, o que lhe traz, e a sua mulher, um alento financeiro.

As fotos do velho fotógrafo “estabelecendo, rua após rua, loja após loja, decoração,

teve, simultaneamente, valor de episódio no conjunto da composição”. Erigem uma

fantasmática e melancólica cidade, tão poderosa imageticamente quanto a dos escritos

surrealistas propriamente ditos, apesar da inexistência da hipóstase do inconsciente e do

automatismo político. A força compositiva de Atget, a capacidade de comover não nos esconde

a sua atração pela imagem, pelo poder demiúrgico de transformar o que via em imagem,

colocando-se além do registro humanitário e naif dos pioneiros e marcando indelevelmente seu

modernismo. A estetização precisa das imagens surpreende os incautos denuncistas definindo

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os contornos duradouros da fotografia contemporânea. Seus clichés associam tanto a

arquitetura depauperada da velha Paris quanto os corpos de seus habitantes: velhas prostitutas

que insinuam uma beleza e desejo que só permanecem num tempo superposto, paradoxal, como

a própria cidade moderna, os “petits métiers” destinados ao desaparecimento; objetos de moda

condenados a sobreviverem como antiguidades. Um silencioso mundo em ruínas “índices que

são suficientes para nos lembrar que esta ficção é apenas devaneios sobre um mundo em

desaparição”.

Por vezes, é o inusitado, as repetições que conduzem o pensamento ao ritmo produtivo

das mercadorias ou ao alegorismo do duplo abrindo espaço para o sonho e o consumo nas

artérias da cidade e do tempo controlado, sejam transeuntes que se enfileiram para observar o

não-sei-o-que, sejam objetos, como sapatos ou antiguidades. Uma das suas fotos mais

intrigantes é o seu espectro, levemente refletido numa vitrine, que também esboça a cidade

esfumada, como se a permanência dos dois ali inquirisse a duração das coisas, ao tempo

moderno no urbano, a possibilidade mesma das coisas durarem, numa relação de proximidade e

distância, de esgotamento e resgate da aura, do que se instaura e do que se esvai. Talvez por

esse motivo, suas fotos só foram valorizadas na emergência de uma apresentação moderna

comum aos fotógrafos documentaristas e ao grupo surrealista (escritores e fotógrafos).

Algumas imagens de Atget seriam reinterpretadas pelos surrealistas e consideradas

como imagens do movimento, entretanto, Eugène Atget recusou-se a aceitar o epíteto de

fotógrafo surrealista. Publicado em La revolution surréaliste, em 1926, solicitou aos editores

que não lhe creditassem as fotos, o que não impediu da crítica aproximá-lo de uma postura

surrealista. Podemos dizer que o encontro entre os jovens vanguardistas e o velho fotógrafo foi

marcado por equívocos. O crítico de fotografia Julian Stallabrass observa que, ignorando seu

aspecto modernista, apesar dos instrumentos fotográficos antigos que usava, os surrealistas

admiravam as fotos de Atget por sua banalidade, assim como certos críticos, sob a ótica dessa

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corrente vanguardista, destacavam a “naïveté” das imagens “o mesmo realismo de detalhes e o

humor um tanto quanto sinistro que admiravam nos filmes de enigmas populares” 25.

De qualquer maneira, ele recortava em preto-e-branco, desentranhava no início do

século vinte uma Paris que para ele não deveria morrer ou pelo menos deveria ter seu êxtase

respeitosamente registrado num rito fúnebre. Em Atget, a fotografia é a expiação da morte, o

que de alguma maneira estará presente nas críticas surrealistas à modernidade, principalmente

no O camponês de Paris de Aragon. Será que Benjamin, através do seu estudo do drama

barroco alemão, circunstancializará a adoção moderna da alegoria justamente pelo seu poder de

significar a morte como elaboração crítica da modernidade? A lírica baudelairiana foi o

instrumento desse transporte retórico da alegoria para o coração da metrópole. Críticos da

fotografia do porte de Benjamin, como Barthes e Sontag, evocarão também a morte como

parâmetro de análise.

Walter Benjamin26 associa as fotos de Atget, na época, recém-descobertas pela crítica,

ao aparecimento do surrealismo, entendendo que os novos temas buscados pelo velho fotógrafo

eram “as coisas perdidas e transviadas” que transformariam suas imagens parisienses em

“precursoras da fotografia surrealista”. O genial ensaista alemão destaca que o fotógrafo evita

os pontos turísticos da cidade de Paris, embora não negligencie “uma grande fila de fôrmas de

sapateiro, nem os pátios de Paris” onde aparecem carrinhos enfileirados, ou mesmo “mesas

com os pratos sujos ainda não retirados” nem “o bordel da rua... n 5”. Sua obra imagética

investiria contra a fotografia convencional, retratista, regiamente remunerada e que

impossibilitava o olhar surreal, politicamente engajado em libertar na intimidade do lugar as

forças do estranho. Todos esses lugares estão como que abandonados, a cidade está

abandonada, pois as imagens das escadas, dos pátios, dos terraços do café, das praças e pontes,

25 STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002. 26 BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia. In: ____. Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e

Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 101-107.

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estão magnificamente vazias, pois “nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que

ainda não encontrou moradores”. Esse estranhamento no que é banal, cotidiano, daria o tom da

estética revolucionária dos anos vinte em relação à cidade moderna, visto que são nessas fotos

de Atget que “a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a

seu mundo ambiente”. O tema do desconforto, mesmo estranhamento do homem moderno em

relação ao seu ambiente urbano, presente na lírica de Baudelaire e na figura do flâneur encontra

seu acabamento visual nas fotografias de Atget. Benjamin não esquece que esse mal-estar,

sintomatizado por Poe nas estórias de detetive, apreende o urbano através da aura criminal.

Ao terminar seu texto, Benjamin nos lega um curioso comentário ainda sobre Atget:

“Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em

nossas cidades um só recanto que não seja o local de um crime? Não é cada passante um

criminoso?” Estando certo o ensaísta alemão caberia aos fotógrafos ligados a essa tradição

inventariar essa modalidade criminosa e aos ensaístas arriscarem a sua taxionomia.

No texto intitulado Melancholy objects, Susan Sontag27, na trilha das idéias

bejaminianas sobre a fotografia, mas ultrapassando-as, redefine o surrealismo longe de todas as

tentativas de atingir o inconsciente através do exercício do automatismo literário, do excesso de

maneirismos estéticos que estereotipou o movimento (superposições, solarizações, colagem

etc.) ou mesmo a dimensão dos escândalos sucessivos provocados por um marcado apelo

romântico para épater le bourgeois. Denunciando o grande equívoco de seus fundadores e

teóricos, por acreditarem na universalidade do surreal, ou pior, num inconsciente também

universal, o surrealismo se revelaria “naquilo que é mais característico de determinado lugar,

etnia, classe ou época”, sendo as primeiras fotos surreais originarias dos fotógrafos que

perambularam pelas ruas de Paris, Londres e Nova York, na década de 1850, caçando

“fragmentos espontâneos” da vida urbana:

27 SONTAG, Susan. On photography. London: Penguin Books, 2002, p51-82.

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Estas fotografias, concreta, particular, anedótica [...] – momentos de tempo perdido,

desapareceu –, parecem muito mais surreal para nós agora do que qualquer

fotografia tornada abstrata e poética por sobreposição, underprinting,

solarização, e assim por diante. [...], Os surrealistas incompreendido que foi o

movimento mais brutal, irracional, inassimilável, misteriosa – o próprio tempo. (grifo

nosso)

Para Sontag, uma foto se surrealiza pelo seu “pathos irrefutável como mensagem do

passado e a concretude de suas sugestões a respeito da classe social”. Desde que os primeiros

fotógrafos passaram a circular pelas ruas das metrópoles, tiveram olhos para as decrepitudes

dos costumes e as variações físicas do meio urbano. Atentos também às variações sociais e

classistas que acompanham a modernização das cidades européias, empreendem uma política

pautada na visibilidade do que permanecia invisível aos estratos da classe média e alta,

decorrentes da segregação espacial. Sontag nos chama a atenção para o caráter surrealista

dessas primeiras imagens possibilitadas tanto pelo deslocamento espacial quanto temporal,

agudizada pela reinterpretação contemporânea marcada pelas intuições surrealistas. Esse jogo

entre a convivência e desaparecimento de sítios urbanos e de suas respectivas culturas foi caro

aos textos surrealistas e, segundo a autora, colocado com precisão pela fotografia de rua dos

pioneiros. Em Paris, exemplificaríamos com as obras de Charles Nègre, Charles Marville e

Eugène Atget, em New York, Jacob Riis, e John Thomson em Londres, entre outros28. O

surrealismo seria uma espécie de “descontentamento burguês”, uma estética ansiando tornar-se

uma política, que “opta pelos oprimidos, pelos direitos de uma realidade marginal, não oficial”,

ocasionando todos os contratempos e acertos de contas entre seus fervorosos adeptos quanto a

adesão ou o tipo de adesão que se deveria firmar com os marxistas e o Partido Comunista

Francês. Os surrealistas marcam a época também com uma atitude militante mais geral de

crítica das instituições e o abandono da famigerada “vida burguesa”, posicionando-se como

28 WESTERBECK Colin; MEYEROWITZ Joel. Bystander: a history of street photography with a new afterword

on SP since the 1970s. Boston: Bulfinch Press Book, 2001.

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uma corrente de crítica radical da sociedade. Entre a memória, melancolia e negação enquanto

classe giraria a obra de diversos escritores e fotógrafos do período, como o francês Pierre

Verger. Privando do ambiente intelectual parisiense, não tendo aderido a nenhuma vanguarda,

não passa incólume às questões centrais colocadas à época:

Eu era o terceiro filho de uma família muito convencional, meu pai tentara me

inculcar desde muito cedo o gosto pelos negócios e pela relação do capital. por

exemplo: quando eu ainda estava no colegial e queria convidar os colegas domigo,

estava autorizado a receber os filhos de famílias opulentas e não aqueles das mais

modestas o que me desagradava pois, eu, muitas vezes, achava os primeiros

pretenciosos e os outros mais simples e simpáticos. Eu era contra as familiares e

procurava afirmar meu desacordo e acreditava que tomando uma posição contária ao

que esperavam de mim, eu seria mais feliz. [...] depois. compreendi que mesmo

fazendo o contário do que desejava a minha família, ela continuava a me influenciar...

negativamente.29

No princípio está a melancolia, aliada a uma idealização urbana, possibilitada por esse

estado idílico das relações sociais, que se desprende do esforço memorialista expresso em

textos e entrevistas. Fantasmagórica, ela já está presente no momento mesmo de sua chegada.

Ao tentar definir a importância da fotografia em sua vida, numa entrevista de 1992, Verger alia

às qualidades fotográficas a possibilidade de reter a memória daquilo que invariavelmente

desaparecerá:

Ela me seduz por sua faculdade de fixar o que é fugidio, de tornar perceptível e

permanente o que, de outra maneira, teria desaparecido para sempre. Certas fotos

são capazes de apreender o breve instante em que o mais belo gesto é

surpreendido em pleno movimento e que o olho é incapaz de distinguir porque a

continuidade da sucessão das imagens não permite isolá-lo. Minhas fotos são para

mim o melhor suporte e ponto de partida para evocação de minhas lembraças.30

29 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Interview par Véronique Montaigne – 15/09/1992. Disponível em:

<http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=164&Itemid=550>. Acesso em: 12 set. 2008.

30 Idem.

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A “melancolia do olhar”, para Sontag, caracterizaria a vanguarda surrealista, contaminando

parte dos artistas do entre guerras, principalmente aqueles que se refugiaram em Paris. Entre

estes, os fotógrafos se agrupavam quanto ao uso e procedimentos estéticos da fotografia, sendo

posteriormente classificados por tendências, como se percebe através da cena parisiense

descrita por Stallabrass, quando “a fotografia de rua desta época pode ser dividida em três

tendências distintas: a tendência surrealista, a tendência moderna e, em algum lugar entre as

duas, um espécie de lugar humanista de tendência universalista” 31. Entretanto, desde 1926, a

crítica cinematográfica se utilizava do termo documentário para a análise de certos filmes,

sendo expandida sua aplicação à fotografia nos anos que se seguiram, cujos expoentes famosos

seriam August Sander, Berenice Abbott e Walker Evans32. Inspirados por Eugène Atget – cuja

obra fora redescoberta pelos americanos Man Ray e Berenice Abbott – documentaristas e

surrealistas o reinterpretariam, expressando em comum um desconforto espaço-temporal

ambientado na grande cidade moderna.

31 STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002. 32 LUGON, Olivier. Le Style documentaire: d'August Sander à Walker Evans. 1920-1945. Paris: Macula, 2001,

p.5.

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1. A cidade surrealista e a crítica situacionista.

Esse campo de ruínas e catástrofes, cujo fim não consigo avistar. (Walter Benjamin)

Inspirado pelo marxismo e surrealismo, Walter Benjamin produziu grande parte de sua

obra sob o impacto da ascensão do fascismo alemão, numa análise inusitada do

desenvolvimento urbano das cidades modernas. São muitos os textos dedicados à vida urbana

na forma de diários, memórias, ensaios sobre Berlim, Moscou e Paris. O marxismo e o

surrealismo, duas vertentes do pensamento moderno, estão presentes de maneira singular, o

marxismo, entendido como uma interpretação materialista da cultura, técnica e sociedade, sob

um ponto de vista político, e o surrealismo, como liberação do inconsciente, do sonho, da

utopia frente ao estranhamento da moderna vida da metrópole. É bom frisar que a junção entre

marxismo e surrealismo iniciou-se no seio do próprio movimento surrealista, liderada por

André Breton, ocasionando um enorme racha no movimento33. Breton escreveria em 1938, com

o líder de esquerda Leon Trotsky, um manifesto pela liberdade da criação artística, quando

fundariam a Federação Internacional da Arte Revolucionária.

Numa carta de 1935, escrita para Scholem, Benjamin registra o quão próximo estava do

surrealismo e que para o bom prosseguimento do seu trabalho deveria afastar-se dessa

influência. Segundo suas próprias palavras representaria “tanto uma aplicação filosófica do

33 Sobre as relações entre o surrealismo e o marxismo ver LOWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e

marxismo. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; NADEAU, Maurice. História do Surrealismo. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985; LOTTAMAN, Herbert R. A rive gauche: escritores, artistas e políticos em Paris 1930-1950. Trad. Isaac Piltcher. Rio de Janeiro: Guanabara,1987. Sobre o surrealismo e psicanálise: CHENIEUX-GENDRON, Jaqueline. Le Surréalisme. Paris: PUF, 1984; Sobre Benjamin e o surealismo: FER, BRIONY; WOOD, Paul; BATCHELOR, David. Realismo, racionalismo, surrealismo: A arte no entre–guerras. Trad. Cristina Fino. São Paulo: Cosac & Naify, 1998; BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: UFMG; Chapecó: Argos, 2002; PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. São Paulo: Senac, 1996; e os fundamentais ensaios de SONTAG, Susan. Melancholy objets. In: ____.On photography. Londres: Penguin Books, 2002, p51-82; SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. In: ____. Sob o signo de saturno. Trad. Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 1986

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surrealismo – inclusive sua superação – bem como a tentativa de fincar a imagem da história

nos aspectos mais insignificantes da existência, isto é, nos seus dejetos”34. Benjamin se

encontrava a essa época profundamente tocado pelas questões levantadas pelas obras literárias

surrealistas, como Nadja, de Breton e O camponês de Paris, de Aragon. Este último, de vital

importância para o projeto benjaminiano, tanto da análise da modernidade urbana quanto da

teoria da história que lhe era pertinente. Aragon destaca a importância da perecividade do

moderno, nos novos envelhecimentos centrados na expressão arquitetural das passagens

parisienses e no aparecimento de uma nova mitologia. Em outra carta datada de 1935, dessa

vez para Adorno, ele relata a emocionante leitura que empreendeu na obra capital do

movimento surrealista: “No começo há Aragon, O camponês de Paris, livro do qual eu não

podia ler mais do que duas ou três páginas à noite, na cama, meu coração batendo tão forte que

me fazia deixá-lo de lado”35.

Gershom Scholem, ao descrever seu encontro com o autor alemão na capital francesa,

em 1927, geralmente nos cafés Le Dôme ou La coupole, nota que o amigo lia os textos de

Aragon e Breton publicados nos jornais, os quais “coincidiam de alguma forma com suas mais

profundas experiências”, semelhante ao que já havia ocorrido “com aquilo que denominou de

comunismo extremo”. Ainda segundo Scholem, se o livro de Aragon, O camponês de Paris, de

1926, tinha impulsionado decisivamente o amigo de longas datas a escrever seu “projeto de

estudo sobre as Passagens de Paris, cujos primeiros rascunhos ele leu para mim nestas

semanas”, era porque “os êxtases das utopias revolucionárias e da imersão surrealista” agiam

34 BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Trad. Neusa Soliz. São Paulo: Perspectiva,

1993. 35 Apud ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Tradução, apresentação e notas Flávia Nascimento. Rio de

Janeiro: Imago, 1996, p. 25.

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nele como se fossem “chaves para a abertura de seu próprio mundo”, pois ansiava por “formas

de expressão totalmente diferentes, severas e disciplinadoras”36.

Bastante íntimo da literatura francesa, que acompanhava com apuro, sendo inclusive

tradutor para língua alemã do Tableaux Parisiens, de Baudelaire, Walter Benjamin escreveu

dois pequenos e importantes ensaios, Surrealismo: O último instantâneo da inteligência

européia (1929), e Pequena história da fotografia (1931), nos quais expõe a estética surrealista

em sua relação com a cidade. Anteriormente havia publicado, em 1928, o livro Rua de mão

única, obra visivelmente influenciada pelo surrealismo.

* * *

Cada época não apenas sonha a seguinte, mas sonhando, se encaminha para o seu despertar. (Walter Benjamin)

Caminhar pelas ruas da escrita benjaminiana é deparar-se com uma tensão premente

entre a crítica radical da cidade moderna e o seu desfrute cotidiano. A modernização cultural e

urbanística das cidades passa a ser compreendida e analisada por sua ambivalência, a mesma

que caracterizaria os escritos de Benjamin. Em seus textos, fruir a cidade enquanto urbanismo,

arquitetura e cultura modernas (mesmo aquela proveniente da mercantilização cultural),

possibilita tanto acercar-se da imensa mobilização criativa empreendida pelo e no capitalismo,

quanto aperceber-se das estratégias de ocultamento da miséria social e do sufocamento das

potencialidades transformadoras, revolucionárias. Mas o jogo ainda não foi todo jogado, a

estabilidade urbana burguesa sempre estará por um fio. Em Rua de mão única37, livro escrito

sob o impacto das obras surrealistas, a linguagem literária arrisca caminhos que mimetizam a

telegráfica, e o impacto de cartazes e luminosos na via publica. A própria capa da edição

36 SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. Trad. Geraldo Gerson de Souza; Natan

Norbert e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1989. 37 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; Infância em

Berlim; Imagens do pensamento. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1997.

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original reproduz uma rua em que tabuletas viárias indicam diversos caminhos, enchem os

olhos do possível leitor-transeunte, obnubilam sua visão e raciocínio. Como num texto marcado

pela visão urbana simbolista (mesma inspiração dos surrealistas), o ambiente urbano-literário

confunde-se com o ambiente psíquico-literário do autor. Isomorfia entre persona literária e

urbis literária: a cidade vivida e a cidade descrita. No primeiro texto desse livro, intitulado

Posto de gasolina38, encontra-se uma advertência ao fazer literário de que “a verdadeira

atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias”, o

novo cotidiano urbano e suas formas comunicativas desencadeará mudanças drásticas,

obrigando a atuação literária a abandonar o “pretensioso gesto universal do livro” em favor do

cultivo das formas modestas, e recém utilizadas, de “folhas volantes, brochuras, artigos de

jornal e cartazes”. Próximas da estética cinematográfica do choque, misturam-se às fotografias,

técnica seminal no arcabouço teórico do pensador alemão, que correspondente às

transformações perceptivas “que experimenta o passante, numa escala individual, quando

enfrenta o tráfico e das que experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a

ordem social vigente”39. A estética do choque que estrutura a escrita de Rua de mão única,

onde desfilam panoramas, canteiros de obras, cartazes, reminiscências, bandeiras, edifícios,

livros e putas, mapas, guichês, metrôs, outras ruas e diversas cidades. Riga, Marselha, Weimar,

Paris somam-se, formam uma única cidade, uma única rua. No texto Canteiro de obras40, ao

criticar a idéia iluminista de fabricação de brinquedos, Benjamin define, de forma semelhante

ao bricoleur lévis-straussiano ou o trapeiro baudelaireano, as atividades criativas infantis como

“atraídas pelo resíduo que surge na construção”, pois nesses produtos residuais “reconhecem o

rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas” estabelecendo entre materiais 38 Idem, p. 12. 39 BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ____. Magia e técnica, arte e

política: obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Ruanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 192.

40 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. Trad. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; Infância em Berlim; Imagens do pensamento. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1997, p. 18.

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diversos “uma nova, brusca relação entre si”. Uma bela metáfora para sua própria atuação

enquanto flâneur que recompõe construtivamente a cidade partindo dos seus estilhaços

(resíduos/ruínas), pondo-os numa outra e brusca relação, como no sonho. Em outro texto,

Trabalhos de subsolo41, o sonho o arremessa “em uma região erma. Era a praça do mercado de

Weimar”, nas escavações que se seguiram o autor raspou “um pouquinnho de areia. Então

apareceu a ponta de uma igreja. [...] Acordei rindo”.

Cidade da arcana melancolia, ao mesmo tempo espaço do sonho acordado e do perder-

se, espaço da ignomínia e revolta desesperançada que desponta no longo texto intitulado

Panorama imperial42, dividido em XIV parágrafos. No primeiro deles, as imagens são

devastadoras: “As comunidades da Europa central vivem como habitantes de uma cidade

cercada, cujos víveres e pólvora estão acabando e para qual, [...] quase não é de se esperar

salvação”. Frente a uma “potência muda, invisível” que as enfrenta e não negocia “nada resta,

senão, na permanente expectativa do último assalto, não dirigir o olhar para nada a não ser o

extraordinário”. Não é quase o programa estético baudelariano/surrealista? No parágrafo IV,

nos primórdios da moderna estética da fome, o tema é a miséria urbana “em sua exibição, que

começou a tornar-se costume sob a lei da calamidade e, no entanto, torna visível um milésimo

apenas do escondido”, tornando impossível a vida numa metrópole alemã “na qual a fome força

os mais miseráveis a viver das notas com as quais os passantes procuram cobrir uma nudez que

os fere”43. Anos após ter escrito o Rua de mão única seu autor retorna ao tema do surealismo,

sob a forma ensaística, imbuído de novas e instigantes concepções.

Apesar de toda a excessiva exegese da arte surrealista, alguns textos, como o curto, mas

seminal ensaio de Benjamin, O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia, nos

legou uma compreensão diferenciada do movimento de vanguarda francesa surgido em 1919, 41 Idem, p. 26. 42 Idem, p. 20-22. 43 Idem.

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47

tendo uma tríade de artistas em seu núcleo, os escritores André Breton, Philippe Soupault e

Luis Aragon. Segundo o autor alemão eles criaram uma tradição própria, selecionando autores

que consideravam afins e percursores de suas idéias estéticas. Como o poeta Arthur Rimbaud,

que tem seu livro Uma estação no inferno transformado em texto “original do movimento” ou

Charles Baudelaire, Lautréamont, Apolinaire, citados em miligramas luminosas espalhadas por

toda a produção de seus textos, explicitando neles convergência dos movimentos românticos de

feição decadentista ou/e simbolista. A análise de Benjamin coloca o tema da cidade no centro

da estética surrealista, Paris seria “o mais onírico dos seus objetos”44. Estudioso das

fantasmagorias da modernidade parisiense, Benjamin, arremata que “nenhum rosto é tão

surrealista quanto ao rosto verdadeiro de uma cidade”45. A Paris surreal torna-se um “pequeno

mundo”46 percorrida até a exaustão pelos integrantes do movimento, desde suas “excursões”

acompanhando o grupo Dadá, como a de Saint-Julien le Pauvre, de 1921, até as derivas

relatadas nos romances. As incursões dadaístas aconteceriam nos mesmos lugares banais

escolhidos posteriormente pelos surrealistas, embora tenham caráter provocativo e gratuito.

André Breton é bastante severo nas suas críticas às deambulações dadaístas, classificadas como

uma “série de visitas-excursões, de escolha gratuita, estão previstas em Paris, em Saint-Julien le

Pauvre, no Buttes-Chaumont, na Gare Saint-Lazare, no canal de l’Ourcq”. E prossegue,

concentrando-se no que para ele foi um verdadeiro fracasso do ímpeto dadaísta “a reunião no

jardim Saint-Julien le Pauvre aconteceu, mas tem contra ela a chuva forte, e mais ainda, o

laborioso nada dos dicursos que aí se proferem”47.

Em contrapartida, as deambulações surrealistas, ao acentuar o rompimento com o

dadaísmo, criam um repertório próprio de concepções e gestos amparados numa “mitologia

44 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ____. Magia e técnica,

arte e política: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 26. 45 Idem. 46 Idem, p. 27. 47 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p. 73.

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moderna” que estariam fragmentados no seio da cidade contemporânea. No surrealismo, como

antes no simbolismo, o meio urbano moderno com suas idiossincrasias seria a extensão da

própria subjetividade. Interpretando livremente conceitos freudianos, eles acreditavam que o

inconsciente do homem moderno se confundiria com ruas, parques, arquiteturas e objetos. O

roteiro era improvável e misterioso quanto aos lugares e objetos, ainda que imersos na

cotidianidade: primeiras fábricas e construções de ferro, fotografias e roupas antigas, locais

públicos, que começam a “extinguir-se” ou “quando a moda começa a abandoná-los”48.

Seguiam à risca um trecho da quarta sessão do Manifestes du surréalisme de 1924, escrito por

Breton:

O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas, ele participa obscuramente de uma

forma de revelação geral, na qual só o detalhe chega à nós: são as ruínas românticas, o

manequim moderno, ou qualquer outro símbolo próprio a mudar a sensibilidade

humaine durante um tempo.49

Criaram poderosas imagens e descrições que nos confrontaram com um passado naturalizado e

que, às custas de suas obras, passamos a duvidar. Se abandonam os lugares comuns defendidos

pelo discurso oficial e ostentoso da economia, não se deixam exilar numa cidade imaginária.

Adotam, entre brigas e expurgos, princípios marxistas, sem abrir mão dessa perspectiva

contrária à doutrina de esquerda. Sabemos que marxismo clássico sempre associou a crítica ao

urbanismo com a recusa da cidade ou pelo menos da experiência urbana, postergando-a para

uma vivência pós-revolução. Nem a genial crítica debordiana, fílmica ou escrita, de

fundamentação marxista, esquiva-se de cair nesses termos após o idílio inicial com a cidade ao

tempo do letrismo.

Atget e os surrealistas, sob o espectro do simbolismo, evitaram esse caminho

amaldiçoado.

* * *

48 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ____. Magia e técnica,

arte e política: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27. 49 BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1979, p. 26.

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49

Aragon, no Le paysan de Paris50, de 1926, percorre a Passagem da Ópera parisiense,

reduzindo a cidade inteira ao seu interior, dando visibilidade às contradições modernas, ao

deslumbramento fetichizado da mercadoria, ao poder capitalista de distribuí-la para consumo

global e suas emanações fantasmagóricas. As lojas da galeria acumulam objetos de todas as

partes do mundo, mercadorias assombradas pelo seu desraizamento espaço-temporal, montando

um mosaico surreal do mundo. Aragon se surpreende ao deparar com uma das duas vitrines de

bengalas, em toda a riqueza sugestiva de sua “floraison de pommaux”, provocando visões

oníricas e iluminadoras. Com a galeria completamente apagada, a vitrine assume uma claridade

esverdeada e ruídos que se faziam ouvir como vozes de concha. Era o cenário para a aparição

de uma “forme nageuse” que deslizava atrás do vidro. Para total pertubação do narrador uma

“sereia se voltou para mim com um face assustada e estendeu seus braços em minha direção.

Então, a exposição foi tomada por uma convulsão geral”51. Próximos estão os jogadores, os

rufiões as prostitutas e a boemia intelectual entre dadás e surrealistas. A deriva do camponês

busca o rastreamento das sensações que esses lugares proporcionam e a identificação de seus

novos símbolos. Surrealista, e como antes havia feito Atget, dilui a utopia de uma mudança

radical da situação urbana em favor da ambigüidade de desfrute da cidade e sua crítica. Lança-

se à Paris, que sobrevive em temporalidades conflitantes evidenciadas em parques

abandonados, ruas desertas, terrenos baldios, arquiteturas em via de desaparecimento. Ao décor

memorialista do espaço urbano contrapõem o décor duma mitologia moderna que souberam

pressentir e tornar visível em imagens e textos, que percorreram incansáveis. São admiráveis

jardins de crenças absurdas, pressentimentos, obssessões e delírios”. Lugares incomuns em que

os “novos mitos nascem sob cada um de nossos passos”52. As caminhadas a esmo formam a

liturgia desses novos deuses conduzindo às descobertas no emaranhado da paisagem urbana. O

50 ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926. 51 Idem, p. 27-30. 52 Idem;

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abandono do dadaísmo à sua própria sorte, pelos surrealistas, preconiza uma nova abordagem

da cidade, diferindo-se destes e da crítica habitual concentrada numa interpretação sígnica. O

andar, experiência corporal, torna-se instrumento indispensável para a eficácia da crítica.

Avenidas e ruas se imantam aos olhos do passante com “embriaguez em meio a mil

concretudes divinas. Eu me ponho a conceber uma mitologia em marcha que merecia,

propriamente, o nome de mitologia moderna”53. Temporalidades distintas superpostas numa rua

deserta ou na leitura de um cartaz de cinema, no esbarrar com uma bela mulher ou num jardim

crepuscular abandonado. O epifânico resultante do estado de tensão entre contradições

temporais no espaço urbano, como a descoberta espantada da novidade do velho, imposto pelo

estupefaciamento das imagens54. Por outro lado, no desbravamento noturno das paisagens

banais do Parque de Buttes-Chaumont, frisson e embriaguez. O camponês se pergunta : “Teria

eu durante muito tempo o sentimento do cotidiano maravilhoso?”

Benjamin adverte que a proposta surrealista de subverter o racionalismo ocidental

através do inconsciente, experimentado nas vias urbanas, deveria abandonar um certo

misticismo e incorporar categorias materialistas. O cotidiano urbano, abraçado em sua

imediatez, propicia aos surrealistas iluminações profanas através do estranhamento do que

lhes está próximo, em que objetos, espaços, se reorganizam em combinações inesperadas. A

iluminação deveria ser então, não mística, transcendente, mas profana e antropológica: a

militância política deveria centrar-se no despertar revolucionário das energias aprisionadas

naquilo que é antiquado, que se apresenta para nós, no meio urbano, em ruínas. Aragon escreve

que “certos lugares, vários espetáculos, eu experimentava sua enorme força contra mim, sem

descobrir o príncipio deste encantamento”55. Personagens, hábitos culturais, arquiteturas. Como

53 Idem, 1926, p. 141. 54 Idem, p. 80. “O vício chamado Surrealismo é o emprego desregrado e passional da imagem surpeendente, ou

antes, da provocação descontrolada da imagem por ela mesmo e pelo que ela produz no domínio da representação de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses”.

55 Idem, p. 138

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se nossa experiência urbana só pudesse ser compreendida a partir da incorporação do que é

efêmero, ou mesmo de adotarmos a efemeridade como bússola urbana, na medida em que tudo

o que nos cerca nas grandes cidades se destina à morte, entendida como possibilidade de

desaparecimento.

A dubiedade da crítica do espaço urbano moderno presente nos livros surrealistas

consiste na convivência com uma aprovação desse espaço enquanto campo de experiências que

desafiem os usos estabelecidos da cidade e seu confinamento pelo urbanismo haussmanniano.

Mais do que isso, encantamento e iluminação emanam do insólito, reeducando o flâneur para o

que só ele poderá ver e sentir, do “gosto e da percepção do insólito”, pois, a “ luz moderna do

insólito é o que vai retê-lo de agora em diante” 56. As cidades tornam-se estranhas e desafiam,

ainda mais uma vez, os seus habitantes a decifrar seus signos, “forêt de symboles”. Os

surrealistas entenderam, de forma abrupta que “a claridade me veio, finalmente, eu tinha a

vertigem moderna” e nos legaram em suas obras, que esse processo não mais se reteria. Para

eles e o paysan, “nossas cidades são tão povoadas de esfingem ignoradas que não param o

passante sonhador”. Mas é o próprio espaço urbano modernizado que lhe impõe a forma de

perceber e decifrar seus enigmas “se ele não traz para eles sua distração meditativa”57. O

choque das imagens e sensações imporia uma meditação que se afasta daquela filosófica, agora

é sob o signo da apreciação cinematográfica, meio distraída, (Benjamin soube reler essa

passagem no texto sobre a obra de arte) que nos tornamos capazes de sobreviver e desfrutar a

nova mitologia urbana. Como se fosse necessário uma recolonização do andar e olhar na cidade

sob as intempéries do moderno. Geografia sensível, os topônimos assumem vida própria e

confundem-se com clusters de sensações: rue de Seine, place Maubert, parc Buttes-Chaumont,

Passage de l’Opera, rue des Usines, place Villiers. Os passantes, sofrem aí uma “metafísica dos

lugares” que “povoam seus sonhos. Estas praias do desconhecido e do frisson [...] este 56 Idem, p.13-14, p. 18. 57 Idem, p. 18.

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sentimento do estranho, que me tomava, quando eu ainda estava maravilhado dentro de um

cenário”58.

A ameaça que paira sobre a arquitetura das passagens, extensível a todas as coisas, o

momento de perigo que coloca em risco sua sobrevivência, atua resignificando sua importância

dentro da cultura e se revela precária, acelerada em sua desconstituição, instaurando novas

apreensões do urbano:

O grande instinto americano, importado para a capital por um prefeito do segundo

Império, que tenta recorta perfeitamente o mapa de Paris, vai logo tornar

impossível a manutenção desses aquários humanos já mortos em suas vidas

primitivas e que mercem, no entanto, ser olhados como guardiães de muitos mitos

modernos, pois é somente hoje que a picareta os ameaça, que eles se tornaram

efetivamente os santuários do culto do efêmero, que eles se tornaram a paisagem

fantasmática dos prazeres e das profissões mauditas, incompreensíveis ontem e

que o amanhã jamais conhecerá.59

Qual o poder oculto das passagens e dos parques abandonados? Por que eles provocam

experiências iluminadoras? Qual o mistério que os coloca no centro das atenções surrealistas?

Para Benjamin, a escolha dos surrealistas não é aleatória, eles foram os primeiros a pressentir

“as energias revolucionárias que transparecem no antiquado”60. O ritmo incessante do

urbanismo moderno tanto produtivo quanto destrutivo, ameaça constante da paisagem urbana,

aproxima instantaneamente o novo e o antigo, transformando-a num cenário de ruínas. A

provisoriedade do moderno só vem à luz no instante de fragilidade do que até então lhe

simbolizava. Mais que isso assumem novas significações e usos. Sua condenação sem sursis

será seu último depoimento mudo.

Essa perspectiva será retomada no tomo V das teses benjaminianas da história

espantosamente nos mesmo termos: 58 Idem, p. 17-18. 59 Idem, p. 19. 60 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ____. Magia e técnica,

arte e política: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 25.

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A imagem autêntica do passado aparece apenas num clarão. Imagem que surge

apenas para desaparecer para sempre no instante seguinte. A verdade imóvel que

faz apenas esperar alguém que a procura, não corresponde de maneira alguma a

este conceito de verdade tratado pela história [...] É uma imagem única

insubstituível do passado que se esvaiu com cada presente que não soube se

reconhecer mirado por ela. 61

Completada pela seguinte frase do tomo VI: “O conhecimento do passado assemelharia-

se, antes, ao ato pelo qual o homem, no momento de um perigo repentino, apresentará uma

lembraça que lhe salva ”62.

Comparando as duas citações, vemos que Aragon fornece a Benjamin o cerne de sua

teoria da história. O desvencilhamento administrado das paisagens velhas e ultrapassadas das

cidades, colocam arquiteturas, bairros, objetos em perigo, momento em que os reconhecemos

como fantasmagoria, possibilitando uma apreensão diferente das que tínhamos e que se

extinguirá, perdida para o futuro. A teoria da história benjaminiana retoma a idéia de que o

passado para ser reconhecido como tal deve ter a aprovação dos contemporâneos. A

reminiscência, entretanto, será visada sob um momento de perigo. Na forma arquitetônica das

passagens, os surrealistas encontram abrigo para montar suas estratégias de contra-memória e

reafirmação da cidade, como havia feito Atget na Paris esquecida. Os livros surrealistas de sua

época heróica se distinguem das concepções comumente associadas ao movimento, marcadas

pela tentativa de representá-lo apenas como uma transposição literária do inconsciente

freudiano. Ele é mais que isso. Para nós é a questão temporal, como já assinalamos ao citar

Sontag e Benjamin, que redefiniria o movimento. Ao instar as forças do desaparecimento, da

transitoriedade do moderno, aponta sua fragilidade e reinterpreta as ruínas românticas. É a

61 BENJAMIN, Walter. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991, p. 435. 62 Idem, p. 436.

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duração das coisas que está em jogo, “por exemplo, a apologia do gosto do efêmero. O efêmero

é uma divindade polimorfa assim como seu nome”63.

Assim, os estilhaços de outras épocas que perduram enquanto ruínas no meio urbano

assumem o caráter fantasmagórico e explosivo: acenam para a instabilidade vivida e sua re-

interpretação no centro da cultura. Desnaturalizam a história. Ao explorar as passagens,

arquitetura depassé, a elegia às ruínas empreende uma crítica ácida, mesmo irônica, ao

triunfalismo modernizante. Símbolo do apogeu capitalista que expunha pela primeira vez as

mercadorias como forma de culto, as vitrines das galerias com seus objetos fora de tempo,

tornam-se atraentes aos surrealistas só no momento da decadência apoteótica e irreversível.

Para Aragon, “um gosto de desastre estava no ar. impregnava, tingia a vida: todo o moderno

deste tempo, essa função da duração tinha um ar que parecerá logo singular”64.

A acelerada decrepitude da cena urbana educa os cidadãos no refinado “goût du

desastre”, fazendo com que desdenhemos, como fez os surrealistas, das novas configurações

arquiteturais ou promessas modernizantes. Eles intuíam o fracasso eminente de tudo o que se

prometia moderno: “Assim, estes nascerão das ruínas dos mistérios de hoje”65. Expurgando

parte da nostalgia das ruínas românticas, reivindicavam o trabalho de luto, pois é sob o signo da

morte que as compreendiam, mesmo sem deixar de reverenciá-las. Ainda Aragon :

Procuro ler nesta rápida escritura e a única palavra que eu creio discernir dentre

estes caracteres cuneiformes, transformados sem cessar, não é Justiça, é Morte. Ó

Morte, criança charmosa um pouco empoeirada, tens aqui, um pequeno palácio

para tuas vaidades. Aproxime-se docemente sobre teus calcanhares virados,

desamasse o teu vestido seda e dance. 66

63 ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926, p.109. 64 Idem, p. 161. 65 Idem, p. 20. 66 Idem, p. 41-42.

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No Manifesto, Breton já convidava o leitor a ser introduzido, pelo surrealismo, “na

morte que é uma sociedade secreta. ele eluvará tua mão, enterrando aí o M profundo pelo qual

começa a palavra Memória”67.

* * *

Embora não tenha o mesmo peso dos livros de Breton, em Le paysan de Paris, a figura

feminina também simboliza errância e iluminação. Assumindo variadas máscaras de

feminilidade que insta o citadino à deriva, por vezes sob o risco da noite ou pelos recônditos da

cidade, prepara-o para a experiência epifânica e laica do encontro imprevisto que sempre

“explicitamente ou não, seguir os traços de uma mulher” 68. Seja a fada: “Uma fada meio louca,

e é você, que pega pela mão a criança que sai da floresta encantada na qual finalmente

adormeceram, lado a lado, o pequeno Polegar, o Passáro Azul, a Chapeuzinho Vermelho e o

Lobo”. A passante: “Na passagem da Ópera tantas transeuntes diversas [...], de idade e beleza

variáveis, muitas vezes vulgares, e de alguma forma já depreciadas, mas mulher, mulher

verdadeiramente, e sensivelmente mulheres”. A prostituta, o manequim ou a mãe de família:

“Putas velhas, peças montadas, múmias mecânicas, gosto que vocês figurem no cenário

habitual, pois vocês são ainda os brilhos animados ao preço destas mães de família que

encontramos nos passeios públicos”69. O encontro fortuito com uma das facetas do feminino,

sua perseguição pelas ruas, é uma característica da invenção da cidade surrealista: “para bem se

fazer ver uma mulher que passa na rua” 70. As apaixonantes personagens femininas (loucas,

prostitutas) definem a ambiência sensual que eletriza ruas e praças. Esse é o tema por

excelência dos escritos de André Breton enredado no amour fou.

67 BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1979, p. 44. 68 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p. 139. 69 ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926, p. 88 ; p. 43-44. 70 BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1979, p. 44.

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A personagem Nadja do romance71 homônimo de Breton se confunde com a cidade de

Paris, emanando um erotismo próximo do mistério e da loucura. O autor, personagem da

própria narrativa, desloca-se obsessivo por avenidas e parques, excitado pelo clima desvairado

de sedução, cada vez mais prisioneiro da figura feminina ao enveredar pela alucinação e busca

desesperada. A sua aparição era mais que esperada por Breton: “Eu sempre desejei,

inacreditavelmente, encontrar, em um bosque, uma mulher bela e nua”. Mas a incerteza do

quando o arrasta para “dentro de um mundo como que proibido que é aquele das aproximações

repentinas, das coincidências petrificantes”72. O erotismo surrealista entregue ao acaso,

transfigura a topografia de Paris, seu “pequeno mundo”: o boulevard Bonne-Nouvelle, o Jardin

des Tuileries, a place Dauphine, etc. Como Nantes, talvez Paris seja “a única cidade da França

na qual tenho a impressão que qualquer coisa, que valha a pena, pode me acontecer”73.

Se em Aragon, são as galerias e os bosques que se sobressaem como topografias

próprias para a errância, em Breton, são as ruas. E com que desenvoltura ele as percorre:

“podem, ter certeza, de me encontrar em Paris, de não passar mais de três dias sem me ver ir e

vir, ao final da tarde, no bulevard Bonne-Nouvelle”74. Ao procurar compreender Nadja,

descrevendo-a, Breton, ainda no romance citado, define-a como “a criatura sempre inspirada e

inspiradora que gostava apenas de estar na rua, para ela o único campo de experiência

válida”75. Essa frase pode ser aplicada aos surrealistas heróicos que viam nas ruas a parte mais

importante das cidades. O mesmo Breton, não escrevera anos antes, nas Confessions

dédaigneuse, contida no livro Les pas perdus, que “a rua com suas inquietudes e seus olhares

era meu elemento verdadeiro: aí, eu encontrava, como em nenhum outro lugar, o vento do

71 BRETON, André. Nadja. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro. Guanabara, 1987. 72 BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1998, p. 19. 73 Idem, p. 32. 74 Idem, p. 36. 75 Idem, p. 113.

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eventual”76. Foi durante uma dessas incansáveis caminhadas, exercendo a flânerie, que

encontra a sua amada. A descrição dos lugares, o olhar sem atenção, “distraído”, capta a

aparência das ruas:

Eu seguia meu caminho na direção da Ópera. Os escritórios e ateliês começavam

a se esvaziar, de alto à baixo as casas, as portas se fechavam, as pessoas sobre as

calçadas apertavam as mãos [...]. Observava sem querer as faces, o vestuário

ridículo, os comportamentos. [...] De repente, quando ela está, talvez, ainda a dez

passos de mim, vindo em sentido contrário, vejo uma jovem mulher [...]. Ela vai,

cabeça erguida, ao contrário de todos os outros transeuntes. 77

Em seu famoso livro de entrevistas, Breton esclarece que o gosto de aventura

alimentava o grupo de jovens ao seu redor, que a procuravam na linguagem, sonho, ou na rua.

As obras Le paysan de Paris e Nadja seriam o clímax desse estado mental que incita ao

extremo o “gosto de errar”78. Após o encontro, Breton e Nadja, irmanam-se nas saídas

noturnas por locais ermos. O narrador confessa que “nós deambulamos pelas ruas, uma após

outra” ou endereços que lhes tragam relatos de acontecimentos imprevistos como o “boulevard

Magenta diante Sphinx-Hôtel”79 descrevendo uma topografia do insólito. Dois desses lugares,

freqüentados por Breton, lhe trazem sensações diversas. No primeiro deles, a Place Dauphine,

descrita como “um dos lugares, mais profundamente, menos visitados que conheço”, provoca

no poeta a vontade de “me abandonar, pouco a pouco, ao desejo de ir para outro lugar”80. O

outro, o mercado das pulgas de Saint-Ouen, que Breton percorre “à procura desses objetos que

não encontramos em nenhum outro lugar, fora de moda, fragmentados, inútil, quase

incompreensíveis, perversos [...]”81. O que nos reenvia aos insights de Benjamin quanto ao

76 Apud BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1998, p. 170. 77 Idem, p. 63-64. 78 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p. 139. 79 BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1998, p. 105. 80 Idem, p. 79. 81 Idem, p. 55.

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gosto surrealista pelo antiquado e da descoberta de seu caráter explosivo, aliando sonho e

revolta.

Como observa o escritor Claudio Willer, ao comentar outro livro de Breton, L’amour

fou, é a “revelação da cidade de signos”82. Nele encontra-se o relato de um dos mais belos

encontros amorosos da cidade sonhada pelos surrealistas. As idas e vindas os obrigam a andar

inicialmente por Monmartre, depois Les Halles, observando o fim de noite, até passar pelo

Hotel de Ville, assombrarem-se com a Torre Sain-Jaques e atravessar o Sena. Diversos

percursos poderiam ser evocados acerca desse livro que reitera a combinação surrealista de

devaneio e deriva, a mesma dos dois mais famosos filmes ligados ao movimento. Os filmes e

as exposições expandiram o campo de atuação da ambiência urbana surreal enquanto

cenografia e produção objetual.

* * *

Un chien andalou, de 1928, e L’âge d’or, de 1930, realizados por Luis Buñuel e

Salvador Dalí, foram tomados como expressão da imagem surrealista. O primeiro deles,

famoso pelas cenas absurdas e fortes, apresenta poucas imagens urbanas, até o aparecimento de

uma rua deserta com um homem andando de bicicleta. Após alguns segundos, ele tomba e cai,

batendo a cabeça no meio fio. Leva uma caixa e parece ser esperado e observado por uma

mulher. Alguns segundos depois, o homem que parece ser o mesmo que caíra na rua, caminha

num quarto ao lado da mulher que o observava. Em atitude suspeita, aproxima-se, com cautela

da janela, e passa a olhar a rua. Uma mulher andrógina e apática, mexe em algo com uma vara,

no meio da avenida. Transeuntes param e se aglutinam em torno dela, o tráfego está parado.

Percebemos, assustados que se trata de um punho amputado. Um guarda se aproxima

dispersando a pequena multidão. Após colocar a mão decepada numa caixa e entregá-la para a

82 WILLER, Claudio. Volta. São Paulo: Iluminuras, 1996. p, 67

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mulher, essa se deixa atropelar. A produção de imagens bizarras para apresentar a cidade e

sobretudo suas ruas, assumem um caráter mais violento que as descrições literárias. Dali e

Buñuel, trazem vigor à visão urbana dos surrealistas sem esquecerem dos pontos centrais que

marcaram suas obras nos anos 20. A colagem, o arbitrário, o surpreendente são pautados como

expressão da vida nas ruas entre sonho e realidade.

No segundo dos filmes, em que as cenas em lugares públicos são mais freqüentes, uma

cidade antiga se adequa ao ritmo moderno. Desesperado, um homem percorre ruas em busca da

mulher amada, enquanto chuta um violino, que ao final esmaga com os pés. Ao seu redor

avenidas inteiras explodem como que bombardeadas. Rapidamente, um homem carregando um

pão na cabeça cruza seu caminho. Cartazes de publicidade (talvez de alguma diva

cinematográfica e meias femininas), vitrines, são os “aspectos diversos e pitorescos da cidade

grande”. As obsessões surreais se repetem. Uma fotografia observada por transeuntes torna-se

viva por trás da vitrine e após um cego ser chutado, uma criança é brutalmente assassinada num

jardim. Todos os que percebem o ato criminoso o aprovam como banal. O clima, além de

erótico, é onírico é violento. Melhor seria a imagem de um pesadelo que se arrasta interminável

por uma topografia desconhecida. Os caminhos escondem acasos e podem nos surpreender com

imagens repugnantes e escandalosas. Ruas abrem-se ao “acaso objetivo” emolduradas pela

atração amorosa de um homem indo em direção da mulher que o anima. Ao encontrá-la, depois

de outros imprevistos, seu olho inexplicavelmente começa a sangrar.

Exibido no Studio 28, em Montmartre, acompanhado de uma exposição de pintores

simpatizantes do movimento, L’âge d’or, foi alvo da ação política do grupo de direita

conhecido como “Os camelos do rei”, que invadiram a sala, rasgaram quadros, jogaram pedras

etc. O filme, inexplicavelmente, ficou proibido na França até 1980.

* * *

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60

Nas exposições internacionais do surrealismo em Paris, de 1947, 1958, 1959 e 1965,

reiterando as descrições do erotismo dos livros de Breton e Aragon, artistas do movimento ou

agregados, provocariam fortes reações do público pela encenação erótica de uma avenida

imaginária de Paris. Quadro, manequins, objetos concorrem para o clima paródico, provocador

do erotismo surreal83. Essa teatralização que se utiliza da linguagem cênica é mais uma

alternativa, além da literatura e do cinema, de analisarmos a cidade surrealista e suas obsessões.

Em 1938, os surrealistas tiveram a oportunidade de demonstrar, além do discursivo, as

suas idiossincráticas visões do urbano, preparando neste ano, a Exposition Internationale du

Surréalisme na Galerie Beaux-Arts, 140, Rue du Faubourg Saint-Honoré, Paris. Experiência

única, quando um conjunto de artistas, sob a batuta autoritária de Breton, cenografaram uma

cidade imaginária e erotizada, com nomes de ruas espalhados por um dos vãos da galeria,

apregoadas como “as mais belas ruas de Paris”. As imagens ainda são impactantes.

Marcel Duchamp, chamado para cenografar a galeria como ambiente surrealista, teve a

idéia de atapetá-la, segundo Salvador Dalí84, com 1.200 “sacos de carvão usados, para que a

exposição se desenrolasse no escuro” que vemos nas fotos pendendo inexplicavelmente do teto.

Isso explica a foto hilária, anônima, de Paul Eluard e René Magritte, entre outros, empunhando

o que parecem ser lanternas de bolso que todos os visitantes tiveram que empunhar para

conseguirem ver alguma coisa. O ambiente reforça a erotização do espaço já presente nos

romances surrealistas da cidade enquanto grande útero. A grande rua mal iluminada, assaltada

por manequins encenados como desejos proibidos e alucinações abrem-se para propiciar uma

iluminação profana ao público estupefato85.

83 MAHON, Alyce. Surrealism and the politics of Eros 1938-1968. London: Thames & Hudson, 2005, p. 23-63. 84 DALÍ, Salvador. As confissões inconfessáveis. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José

Olympio, 1976. 85 MAHON, Alice. Surrealism and the Politics of Eros. 1938-1968. London: Thames & Hudson, 2005, p.23-44.

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No pátio de entrada da galeria, Dalí propôs o Taxi pluvieux “um táxi cuja capota cheia

de buracos deixaria filtrar uma chuva contínua sobre uma Vênus deitada em meio a líquens e

conduzido por um monstro”, na verdade um chofer com ‘‘um capacete feito de um maxilar de

tubarão. A dama deveria estar vestida de preferência com um cretone sórdido”. No interior

“dezesseis manequins fantasiados”. Ainda segundo Dalí “cada manequim tinha um nome de

rua: Rua Fraca, Rua Viviane, Rua dos Lábios, Rua de Uma Pérola, Rua da Transfusão de

Sangue, Rua Cereja – compuseram assim uma espécie de Paris ideal [...].” Identificamos nas

fotografias do evento86, além das já citadas por Dali, a Passage des Panoramas, Rue de tous les

Diables, Rue Glacière, Rue aux Lèvres.

As descrições dos manequins feitas por Aragon enquanto vagava na Passagem sempre

incitaram ao sonho. Os surrealistas sempre se impressionaram com autômatos e manequins. O

simbolismo da perfeição feminina, a disponibilidade ao desejo masculino nos lembra as

personagens dos romances, sempre de vida incerta, algumas ligadas à prostituição. Por outro

lado, o manequim com sua forma rígida tem algo de cadavérico e monstruoso. Nas vitrines

entronizam a imagem feminina no seio do capitalismo mercantil: apoteose das mercadorias. O

meio termo entre o autômato e a idealização do corpo feminino, a superposição de sexy appeal

e morte, a forma-mercadoria. E não são sempre as mulheres que erotizam as ruas, se

confundem com elas como em Nadja ou L’amour fou de Breton? O insólito dos encontros, a

excitação de percorrer ao lado ou no encalço da mulher misteriosa, sonhada impulsionando o

deslocamento. Na rue surréaliste da Exposição Internacional de 1938, manequins-travestis com

roupas masculinas (Rue aux Lèvres), com gaiolas na cabeça e faixa sadomasoquista na boca

(Rue Vivienne), santificadas com véus e ramos secos numa alusão à Virgem (Rue de tous les

Diables), nua com uma rede sobre o corpo como se estivesse sido pescada (Rue Glacière) etc.

Assombrosa transposição para o espaço cenográfico das ruas de Paris após vinte anos de tê-las

86 SCHNEEDE, Uwe M. Begierde im blick: surrealistische photographie. Ostfildern: Hatje Cantze, 2005.

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descrito nos livros e experienciado nas caminhadas que se iniciaram com os dadaístas. Vemos

não só a continuidade da idéia de iluminação, como a inserção da fantasmagoria da morte

assolando espaços e corpos. Pressentiriam o tom de réquiem assumido alguns anos depois, após

o fracasso da aventura situacionista, pelo mais importante agitador do movimento? (fig. 2)87.

* * *

Em 1952, os integrantes da internacional letrista fazem um zoneamento psicogeográfico

das cidades, praticando andanças sistemáticas e produzindo relatórios e mapas inusitados, que

se superpõem ao traçado abstrato, racionalizado das cidades. Debord e os letristas se dispersam

na cidade, unindo crítica ao urbanismo de Le Corbusier às derivas, definidas como “técnica da

passagem rápida através de ambiências variadas”. Críticos dos dadaístas e surrealistas,

demonstram afinidades com os últimos ao percorrem as ruas com prazer, afirmando “um

comportamento lúdico-construtivo, o que, em todos os aspectos, se opõe às noções clássicas de

viagem e de passeio”88. Imaginam uma revolução poética do espaço urbano a serviço do

urbanismo unitário, criador de ambiências urbanas, que possibilitem a reinvenção de um

cotidiano ambiguamente militante e maravilhoso.

A cidade enquanto vida cotidiana é o campo de intervenção por excelência dos

letristas/situacionistas, na vertente da tradição estética moderna, conciliando repulsa e utopia,

na sua singular apresentação da metrópole contemporânea, como se Engels e Rimbaud

pudessem tranqüilamente trilhar as mesmas ruas, descobrirem-se como companheiros atrás de

uma mesma barricada. Para Paola Berenstein Jacques89, a militância situacionista se desvia do

programa proposto inicialmente de “ir além dos padrões vigentes da arte moderna”, defendendo 87 Foto de Raoul Ubac em SCHNEEDE, Uwe M. Begierde im blick: surrealistische photographie. Ostfildern: Hatje

Cantze, 2005. 88 DEBORD, Guy-Ernest. Teoria da Deriva. In: JACQUES, Paola Berenstein (org). Apologia da Deriva. Trad.

Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p 87-91. 89 JACQUES, Paola Berenstein. Breve histórico da Internacional Situacionista – IS (1). In: Arquitextos –

Periódico mensal de textos de arquitetura. Disponível em: < http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp176.asp > . Acesso em: 20 mai. 2008.

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“uma arte diretamente ligada à vida, uma arte integral”, para em seguida “perceberem que esta

arte total seria basicamente urbana e estaria em relação direta com a cidade e com a vida urbana

em geral”. Ao combater o urbanismo moderno e sua racionalização capitalista que “dissolve a

autonomia e a qualidade dos lugares”, expressa pelo seu projetismo e zoneamento espacial,

reivindicando ao mesmo tempo um urbanismo unitário e a criação de situações, os

situacionistas denunciam a rarefação espacial empreendida pelo urbanismo e a arquitetura

moderna, numa cambialidade e aplicabilidade total do espaço. Os situacionistas queriam o bom

uso do espaço além de sua reprodutibilidade técnica, revertendo o processo de

espetacularização do tempo/espaço e da cultura, negando-o enquanto mercadoria. As duras

críticas que fizeram ao lazer e ao turismo estão apoiadas no exercício da deriva, prática ainda

possível de fruição da cidade. O turismo usufrui da reprodução espetacular do espaço,

“subproduto da circulação de mercadorias”, quando o próprio deslocamento passa a ser

“considerado como um consumo”. Contrapostos ao andar lúdico e criativo da deriva, prática e

expressão criativa, turismo e lazer atuam na gestão do tempo livre, revés do tempo trabalhado,

“pseudocíclico” e “consumível”, restaurador das energias gastas na exploração da força de

trabalho. Ao fazer literário fica contraposto a produção, com uma certa ironia, de relatórios

críticos sobre as derivas, por vezes seguindo indicações tiradas nas reuniões do grupo.

Com La société du spectacle, Guy Debord90 rompe com a visão estética que sonha

instaurar uma guerrilha situacionista no cerne do cotidiano das cidades, preconizando o total

controle da sociedade pelo estágio do capital feito espetáculo. É visível o recrudescimento de

suas ideias marxistas em detrimento dos ideais das vanguardas estéticas. Não cabe mais

nenhuma forma de gozo nas cidades espetacularizadas, nenhuma deriva possível, só o exílio. A

superação da perspectiva estetizante aflui para a solução clássica marxista do embate de classes

como única alternativa de superação da condição urbana. O urbanismo cumpre tarefas

90 DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.

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policialescas, desertificando as cidades, tornando seu cotidiano tecnicamente produzido,

racionalizado, mercantilizado, sem possibilidades de interação humana, sob o impactante

afloramento midiático. No filme A sociedade do espetáculo, Debord, conjuga imagens de

conjuntos residenciais inóspitos, desérticos, sem vida cotidiana, aparentando abandonos, com a

leitura de um trecho do seu livro homônimo que caracteriza o estado terminal e irreconciliável

da cidade moderna: “O urbanismo é este apropriamento do ambiente natural e humano pelo

capitalismo que, se desenvolvendo logicamente e em dominação absoluta, pode e deve agora

refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário” 91. A voz grave, pausada parece

entoar um réquiem para vida urbana.

91 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Disponível em:

< http://www.youtube.com/watch?v=Earbc7fuFjA>. Acesso em: 12 jul. 2008.

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2. Pierre Verger: deambulação, fotografia, surrealismo

Nascido em Paris, no ano de 1902, num ambiente burguês o qual dramaticamente

rejeita, o fotógrafo Pierre Verger compra sua primeira máquina fotográfica em 1929, mesmo

ano que inicia suas viagens. Aprende a utilizá-la com o fotógrafo Pierre Boucher, que o ensina

ao tempo que os dois percorrem a pé a Ilha de Córsega. Com a morte da mãe em 1932, último

membro próximo de sua família, Verger, aos 30 anos, abre mão de suas ações da empresa

paterna, transferindo-as para os operários, reservando pouco para si do espólio paterno, apenas

aquilo que considerava suficiente para uma sobrevivência modesta. Ao voltar de sua primeira

viagem, descobre que está completamente sem dinheiro em Paris. Nessa época, tem um rápido

contato com o grupo surrealista, aproximando-se do poeta, escritor e roteirista de cinema,

Jacques Prévert92, que havia fundado um grupo de teatro esquerdista chamado Groupe Octobre.

Voltando da Rússia, viagem que fez influenciado por seus amigos de esquerda, Verger percebe

que suas ligações com a Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, ligada aos

surrealistas, dividida entre Aragon, Malraux, Prévert e Breton, não correspondia a suas

expectativas estéticas e existenciais. Sua postura é sempre dura, embora ambígua, em relação

aos movimentos de vanguardas, aí incluso o surrealismo, dominante em Paris nos anos 20 e 30.

Suas críticas são marcadas por forte aversão ao mundo intelectual, posição defendida por toda a

vida: “Para dizer a verdade, na época, eu pouco me preocupava com o Surrealismo, apesar de

92 Sobre um contato direto entre Verger e os surrealistas, segundo pesquisadores e biógrafos, eles se deram pelo

menos por duas vezes, com a famosa Bande à Prévert e com a não menos famosa Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários – AEAR, ambos ligados aos surrealistas, entretanto a abordagem adotada nesse trabalho prescinde desses contatos diretos concentrando-se nas questões intelectuais/estéticas e sua circulação e debate no início do seculo XX. Para mais informações sobre o tema: NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p.43-49; LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002, p. 51-53; POSSA, Cláudia Maria de Moura. O toque Verger: estudo da obra fotográfica de Pierre Verger. Disponível em: http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=164&Itemid=550.

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conhecer Michel Leiris e alguns outros envolvidos neste movimento. Estas preocupações

intelectuais quase não me tocavam”93.

O estudo da arte e fotografia do período mostra-nos que embora muitos escritores ou

fotógrafos não tenham, como Verger, aderido explicitamente ao surrealismo, foram

simpatizantes às questões centrais do movimento. Com a derrocada do dadaísmo em Paris, para

onde seus principais líderes se dirigiram justamente tentando evitar a perda de vigor do

movimento, os surrealistas, que de início a eles se associaram, assenhoraram-se do trono vago.

Foi o período heróico do surrealismo. Na roda incessante das vanguardas, nos anos 20 e 30, os

surrealistas difundiram seus livros, imagens, e sobretudo suas idéias acerca da estética e do

novo modo de vida, no século que começava. Como ignorar nas próprias formulações estéticas

em torno da fotografia ou mesmo do intinerário biográfico de Verger, como de todos que se

descobriram artistas sob a ascensão da vanguarda surrealista, as concepções centrais do

movimento?

Verger, ele mesmo sinaliza, é bom lembrarmos, que o surrealismo levantava questões

intelectuais que “quase não me tocavam”. Em vista disso, compreende-se quando, Jean-Pierre

Le Bouler, seu mais apaixonado biógrafo, inicia o capítulo “Partida – 1932”, citando o

expoente máximo do movimento, André Breton, num texto intitulado Larguem tudo, publicado

em 1922: “Deixem ao léu uma vida cômoda, o que lhes é dado como uma situação para o

futuro. Partam pelas estradas”94. Só depois de dez anos de publicado o texto é que Verger irá se

“adequar a tais preceitos”.

Depois de abandonar o grupo de Prévert, ele resolve seguir os passos de Gauguin, e

entre o amor e a aventura, deslocar-se até a exótica e fascinante Polinésia Francesa,

desembarcando, ainda em 1932, no Taiti.

93 LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002. 94 Idem, p. 55.

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* * *

É sintomático ser o Taiti a sua primeira escolha. Essa espécie de etnografia selvagem

tem sua linhagem formada por conhecidos artistas modernos que antecederam os surrealistas,

embora esses fossem avessos a grandes viagens. Os pais dessa “poética postsimbolista del

desplazamiento”, definição dada pelo antropólogo James Cliford95, investindo em encontros

pertubadores e não estáveis, “dramatizada pela fuga” francesa, podem ser Paul Gauguin e sua

fuga para o Taiti, Victor Segalen e o Oriente ou o desesperado deslocamento sucessivo de

Rimbaud desde sua ida à Abissínia. Próximos aos surrealistas teríamos Michel Leiris e sua

África fantasmal e o México delirante de Antonin Artaud. Reterritorialização, etnografia livre,

desraigamento existencial e, sobretudo, deslocamento. Diferenciando o termo “etnografia” da

“ciência humana que na França foi chamada de etnologia”, Clifford afirma que o “rótulo

etnográfico sugere [...] uma observação participante entre os artefatos de uma realidade cultural

desfamiliarizada” 96, esforço de tornar estranho o que é familiar.

O caso Gauguin é exemplar, lança luz na experiência vergeana de déplacement

(deslocamento) e détachement (desapego). Depois de uma vida burguesa de relativo sucesso

como empregado em uma casa de câmbio, quando conseguiu amealhar uma pequena fortuna,

Gauguin97 viu-se enredado pelo desejo de pintar, a ponto de em 1883 abandonar o trabalho. A

este se seguiu o abandono da vida familiar e a dedicação à vida boêmia, criativa e miserável. O

processo de desterritorialização aí iniciado só seria completado ao perceber que sua ruptura era

mais profunda, não apenas estética, resolvendo abandonar também o Ocidente, deslocando-se

inicialmente para as Antilhas, onde passa todo o ano de 1887. Ao retornar, encontra-se na

95 CLIFORD, James. Uma poética del desplazamiento: Victor Segalen. In: ____. Dilemas de la cultura.

Antropología, Literatura y Arte en la perspectiva posmoderna. Trad. Carlos Reynoso. Barcelona: Gedisá, 1995, p 189.

96 CLIFORD, James. Sobre el surrealismo etnográfico. In: ____. Dilemas de la cultura. Antropología, Literatura y Arte en la perspectiva posmoderna. Trad. Carlos Reynoso. Barcelona: Gedisá, 1995, p.179.

97 GAUGUIN, Paul. Noa Noa. Paris: Jean-Jacques Pauvert et compagnie, 1988.

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França, em 1888, com outro exilado, embora de maneira radicalmente diferente, o pintor

Vincent Van Gogh. Após freqüentar os meios literários simbolistas parisienses, aos quarenta e

três anos, “volta-se para a mais afastada terra de todos os continentes sólidos”, embarcando

para a Polinésia em 1891. A descoberta do Taiti representa sua reterritorialização estética e

existencial, estabelecendo um contato íntimo com os maoris, seus costumes e seu habitat.

Produz uma série de quadros de um colorido violento, uma paisagem paradisíaca e muitas

mulheres nativas. A busca do paraíso e do exótico expresso na frase que Gauguin repetia de

maneira obstinada “Quero ir ter com os selvagens” se concretizava ao tempo que se distanciava

do modo de vida ocidental, numa tentativa de cortar o cordão umbilical com a cultura que o

gerara. Auto-exilado, refugia-se numa cultura que passa a respeitar e a defender contra os

colonos que a exploravam, tornando-se para esses persona non grata.

Apaixona-se pelas vahinés, jovens nativas que imortalizou em cores escuras, corpos

roliços e fortes, as quais desposou algumas vezes, ninfetas de 13 e 14 anos. Nessa rota de

colisão com o Ocidente e de desterritorialização/reterritorialização radical, reconstruiu-se a si

mesmo numa espécie de etnografia leiga e selvagem, retratando em seu quadros e esculturas

um mundo novo e surpreendente, utópico e cheio de deuses pagãos.

Depois de conflitos incontornáveis com a administração local, devido às duras críticas

que fazia ao comportamento das autoridades na sua nova morada nas ilhas Marquesas, Gauguin

morre em 8 de abril de 1903.

* * *

O escritor Victor Segalen98, que escreveu Essai sur l’Exotisme, esteve durante um curto

período na Polinésia na mesma época que o pintor francês. Ao sair da França, ouviu a seguinte

frase de Rémy de Gourmont, a qual reverberou em sua cabeça durante toda a demorada viagem

98 SEGALEN, Victor. Gauguin dans son dernier décor; Hommage à Gauguin. In: _____. Oeuvres Complètes.Vol I.

Paris: Robert Laffont, 1995, p. 287-291; p.349-375.

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ao Taiti: “Veja-me lá se encontra o Gauguin”. Na Polinésia, ouvira falar do pintor e de seu

exílio. Era o ano de 1903 e entre os meses de junho ou julho, Segalen recebeu a triste notícia da

morte de Gauguin, o que o impeliu a visitar-lhe a última morada, as ilhas Marquesas. O relato

dessa empreitada, nomeado de “Gauguin no seu último cenário”, descreve minuciosamente o

mundo desse exilado voluntário do Ocidente, “último e longínquo ato de uma vida vagabunda”.

Para adentrar nesse mundo rude forjado de argila, folhagens entrelaçadas, madeiras retorcidas,

recriações esculpidas em madeira dos mitos polinésicos, telas penduradas cruamente nas

paredes, Segalen recomenda a Prece do Estrangeiro:

Chego nesse lugar onde a terra, sob meus pés, é desconhecida.

Chego nesse lugar onde o céu, sobre minha cabeça, é novo.

Chego nessa terra que será meu lar...

Ó Espírito da terra, o Estrangeiro te oferece seu coração, em oferenda a ti.99

* * *

A biografia de Verger corrobora para incluí-lo na poética do deslocamento, inclusive

sua repetição da aventura gauguiniana, nos acertos e erros. A prece do estrangeiro pode ter sido

rezada por ele todos os dias até sua chegada à cidade do Salvador e ser esquecida com o passar

dos anos, em virtude de sua aceitação como um igual entre os negros-mestiços pobres e os

intelectuais nativos, ou estrangeiros como ele, que privavam o mesmo sentimento de

pertencimento. Acompanhado de seus novos amigos ou solitário, portando sua Rolleiflex,

transferiria o desregramento geográfico/existencial para o meio urbano, assumido enquanto

prática cotidiana.

Como vimos dadaístas e, posteriormente com maior ênfase, surrealistas (que apesar dos

apelos, nunca se deslocaram muito além de Paris, fora alguns poucos exemplos)100 foram os 99 J’arrive en ce lieu où la terre est inconnue sous mes pieds./ J’arrive en ce lieu où le ciel est nouveau par-dessus ma tête./ J’arrive en cette terre qui será ma demeure.../ Ô Esprit de la terre, l’Étranger t’offre son coeur, en aliment pour toi.

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primeiros a se manifestarem aquém da viagem etnográfica, desviando essas aventuras em terras

exóticas para deambulações no interior do tecido urbano. Dobravam a etnografia sobre si: no

seio moderno e familiar das cidades encontravam o estranho. Migravam da relação

subjetividade-natureza para a subjetividade-meio urbano, conservando o olhar do etnógrafo. O

que levaria o antropólogo James Cliford a imaginar um “etnografia surrealista” e escrever que

para eles a cidade moderna era “uma fonte do inesperado e do significativo” que provocariam

a irrupção de outro mundo mais milagroso baseado em princípios de classificação e ordem

radicalmente diferentes”101.

* * *

No Taiti, o fracasso da experiência gauguiniana parece se repetir com Verger. Através

de seus biógrafos sabemos do malogro dessa primeira investida da negação por completo do

mundo burguês em que fora criado e do qual fugira com o seu amigo Eugène Huni. Sonho

idílico taitiano de uma vida entregue aos prazeres simples, ao corpo livre das amarras

burguesas, entregue ao sol, inspirado nos chamados surrealistas da “vida livre” e “liberdade”

que tanto moveram os homens europeus na primeira metade do século XX e que estavam

presentes na filmografia da época. Segundo Verger “foi para levar essa vida ao ar livre, fazendo

esporte com mais intensidade, é que nos decidimos, um amigo pintor, Eugène Huni, e eu

mesmo, viver na ilhas cujo charme nos tinha sido revelado pelos filmes que assisti”102.

100 André Breton e Antonin Artaud, no México; Michel Leirris, na África; Benjamin Péret, no Brasil e México.

Para maiores detalhes desse deslocamento na América Latina ver o texto de Robert Ponge “Surrealismo e viagens” em PONGE, Robert (Org.). Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: Editora da Universidade – UFRGS, 1999, p. 55-75.

101 CLIFORD, James. “Sobre el surrealismo etnográfico”. In: ____. Dilemas de la cultura. Antropología, Literatura y Arte en la perspectiva posmoderna. Trad. Carlos Reynoso. Barcelona: Gedisá, 1995, p 179.

102 VERGER, P. Souvenirs de reportage: Pais-Soir (1934-1935) apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p. 54.

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Três fotos, de 1933, quando de seu séjour taitiano nos mostra a disposição com que

enfrentava a empreitada. A Polinésia Francesa103 datada de 1933, em que Verger traz uma

grande flor sobre a orelha iluminando o rosto, e se encontra entre duas moças com longas

tranças, as quais abraça com um olhar misterioso. Mulher, Papete, Taiti104 (fig. 3), do mesmo

ano, uma imagem rara em sua obra, talvez só permitida nesse idílio gauguiniano. Essa foto

mostra uma jovem nua que cita as meninas que se tornaram célebres pelos quadros e escritos de

Gauguin. Teria sido uma das meninas que se deixaram fotografar junto a Verger? Deitada sobre

um grande lençol jogado sobre a cama, deixa ver o corpo roliço desnudo, desejável. Pernas,

seios, o rosto redondo e meio desconcertado, a cama improvisada. As luzes invadem aquele

paraíso erotizado sob o abrigo de longas esteiras no lugar de paredes, explorando curvas

corporais, entranhas entretecidas na palha. Uma alcova improvisada que recebe sua Olympia

noire. Não conseguimos nos desvencilhar do fantasma de Gauguin pelo erotismo aberto da

cena que dramatiza a sensualidade anti-européia tão explorada pelo pintor, considerada quase

ofensiva à beleza feminina da arte pictórica ocidental. A devassa empreendida pelo insaciável

olho ocidental alimenta o sonho francês de um paraíso além-mar, estranho ao mundo europeu,

denunciando sua própria fragilidade. A tentativa de desenraizar o olhar da estética ocidental é

acompanhada da exploração das sensibilidades eróticas do exótico, sendo mesmo o sentido do

deslocamento, se pensarmos a estética sob um ponto de vista mais amplo. Gauguin se

aventurando numa estética agressiva e escavando um lugar no mundo que acreditava não

europeu e insólito, preconiza os surrealistas que alimentam o mesmo projeto na cidade,

defensores de um erotismo difuso e inebriante.

103 NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002,

p. 57. 104 VERGER, P. Saída de Iaô: cinco ensaios sobre a religião dos orixás. Axis Mundi Editora/Fundação Pierre

Verger: São Paulo, 2002, p.69. Existe uma outra variação sobre esse tema, a foto com a mesma jovem e no mesmo lugar, embora não conserve o mesmo clima, Papeete, Thaiti, Polynésie, 1933 em SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 2007, p. 111.

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A última foto analisada dessa série, Eugène Huni em Mooréa, Tahiti105 (fig. 4), que ele

tirou do seu amigo e companheiro Eugène Huni, cristaliza de maneira surpreendente o ideal de

vida que os dois perseguiam. Ao ar livre, sob um céu imenso, o corpo jovem, forte e belo de

Huni é quase um totem erigido para a celebração de um mundo novo de dimensões insuspeitas,

tanto espaciais quanto existenciais. Esta foto prenuncia a estética escultórica das imagens de

Verger posteriormente desenvolvida.

Após um ano de convivência com o companheiro Eugène Huni nesse “paraíso

terrestre”, Verger, talvez desiludido amorosamente, parte para suas viagens cada vez mais

distantes, sempre tendo à mão a sua inseparável máquina fotográfica. São muitos lugares: Itália,

Espanha, Norte da África, Argélia, Mali, Togo, Benin, Londres, Cuba, México, Estados

Unidos, China, Japão, Filipinas, Indochina, Camboja, Laos, Vietnã... Antes de partir, estabelece

relação com o Museu de Etnografia do Trocadéro (atual Museu do Homem), sendo admitido

como colaborador, o que indica uma postura etnográfica, de registro, que paulatinamente

imprimiria ao seu trabalho fotográfico.

Após um deslocamento incessante e a procura de uma vida mais livre, sem as amarras

sociais burguesas, no pleno exercício da liberdade que marcaria a sua biografia, Pierre Verger

desembarca em Salvador. Inicia-se uma experiência única em sua obra, seus olhos e máquina a

serviço de uma etnografia urbana, pautada na deambulação sistemática de uma única e querida

cidade. Sobrepondo esteticamente as vertentes de Gauguin e dos surrealistas, transfere o olhar

exótico para os corpos negros, imersos num élan sensualista, no ambiente urbano. Será uma de

suas diferenças.

* * *

105 NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio,

2002, p. 58.

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Era o ano de 1946, retornando ao Brasil, depois de um encontro com o amigo

antropólogo Roger Bastide, Verger resolve conhecer a cidade da Bahia, estudada pelo

pesquisador francês. Nas mãos, carrega um exemplar do livro Jubiabá de Jorge Amado, que o

encantara pelas descrições da vida cotidiana de seus habitantes, marcada pela presença negra.

No dia 5 de agosto, desembarca em Salvador e imediatamente percorre a cidade guiado por um

amigo de viagem. Na rua Chile, encontra o “quarto dos seus sonhos” com uma bela vista para a

baía. Inicia-se uma relação de amor com a cidade, seus habitantes, sua cultura, que duraria toda

a sua vida. Sempre “armado” com sua Rolleiflex, deambula pelas ruas soteropolitanas,

embrenhando-se em bairros distantes, pendurando-se nos bondes, falando com um e com outro,

assíduo das festividades profano-religiosas. Gosta de brincar com os amigos, desafiando-os a

mostrarem uma viela, um caminho que não conhecesse. Depois de morar por um tempo na Rua

Chile, muda-se para mais perto do coração da cidade, alugando um sótão na ladeira do Taboão,

local estratégico entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa, que serviu de cenário para um dos

primeiros livros de Jorge Amado, Suor. Entre os anos de 1946 e 1952 produzirá as fotos que

comporão os livros Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989)106.

Na introdução de CHS, Verger arrisca uma descrição da cidade quatro décadas depois

de seu registro fotográfico:

Este álbum de fotografias mostra certos aspectos da cidade do Salvador da Bahia

de Todos os Santos tais como existiam há pouco mais de 40 anos, na época do fim

da Segunda Guerra Mundial. Toda a cidade da Bahia, nome pela qual ela era

conhecida, não contava mais que 300 mil habitantes.107

Assim como ele, um grupo de artistas já vinha redescobrindo a cidade cultural e

geograficamente, referenciada nos descendentes africanos e na sua religiosidade, da maneira

como reinventavam a vida cotidiana, no fascínio do mundo mestiço soteropolitano. Dentre eles, 106 Daqui em diante os livros Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989), ambos de autoria de

Verger, serão representados pelas siglas RB e CHS respectivamente. 107 VERGER, Pierre. Centro Histórico de Salvador. Salvador: Corrupio, 1989.

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Verger criou laços fraternos com o argentino Carybé e os baianos Dorival Caymmi e Jorge

Amado.

Artistas modernos, desenvolvem pesquisas em suas respectivas áreas. Carybé108, que

“desembarca finalmente na Bahia nos idos de 1938” e que, além dos numerosos quadros e

esculturas, produzira uma primorosa coleção de livros de gravuras que abarca todo o cotidiano

da cidade, desenha as cenas que, de outro lado, Verger fotografa. Dorival Caymmi, autor,

dentre outras de rara beleza, de um conjunto de canções praieiras, que segundo Antonio

Risério109, “recriam esteticamente a cidade da Bahia tal como a conheceu entre as décadas de

20 e 40”, cidade bucólica, além do Rio Vermelho, na então distante praia de Itapoã, onde

pescadores tem suas sagas recontadas ao som másculo da voz e violão do autor, reproduzidas

em discos que se tornaram obras primas da música popular brasileira, principalmente Caymmi e

seu violão de 1959. Em Caymmi, a vida paradisíaca só será interrompida pelas vicissitudes do

ofício de pescador, o mar doce pra morrer, a tempestade arrastando os homens para longe das

suas mulheres. Cabe observar que a obra de criação da cidade do Salvador em Caymmi

obedece a intuições diversas, que se afastam dos outros três. No seu retrato mais famoso da

cidade, a Suíte dos pescadores, apresenta um mundo apartado do urbano, uma outra

possibilidade além do rural, do sertão, para invocar a comunidade e um interior. Seus

personagens, envoltos num mundo mágico de deuses negros e dependentes de manifestações da

natureza, são esquecidos e esquecem o país que se moderniza. Assim como a bossa-nova,

detalhe jamais mencionado na sua bibliografia crítica, seus personagens estão de costas para o

continente e consequentemente para o Brasil, prostrados de frente para o oceano Atlântico, na

fina malha do litoral, o que os imputa uma atemporalidade tão mágica quanto angustiante. Em

entrevista a um documentário da TV Globo, o próprio Caymmi acentua essa diferença entre ele

e Amado, apesar de algumas parcerias esporádicas. Ele afirma que a diferença entre os dois, e 108 CARYBÉ. As sete portas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1976. 109 RISÉRIO, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva, 1993.

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que por isso a cidade dele não seria a mesma de Amado, é que enquanto este se concentra no

mar do cais, do mercado, ele, Caymmi, descrevia a saga dos homens em mar aberto110.

Finalmente, Jorge Amado e seus romances111, que, se inicialmente carregam no tom realista-

socialista, como no romance Suor, tematizando a vida dura de desempregados, pequenos

trabalhadores e prostitutas alojados nos cortiços que infestam o centro da cidade,

posteriormente, quando do seu sucesso nacional e internacional, assumem uma explícita

apologia do viver “mestiço” baiano (o que se acentua depois do livro Gabriela Cravo e Canela

e seu rompimento com o Partido Comunista Brasileiro). É a mesma gente miúda, e o autor,

solidarizando-se com as suas lutas cotidianas, a descreve envolta em histórias permeadas de

erotismo, misticismo e violência. Das cenas desprende-se um imenso prazer de viver, de

aprovação da existência, ancorada na cultura e nos cultos religiosos.

Verger soma-se ao grupo nessa investigação/criação, incorporando suas fotos em preto e

branco a essa produção artística modernista que mitifica a cidade da Bahia. Nada que seja

relativo ao modo de viver dos negros da cidade lhe escapa, na verdade só tem olhos para eles,

vendedores ambulantes, carregadores, prostitutas, pequenos artesãos e comerciantes,

lavadeiras, músicos das religiões afros, capoeiristas etc. Incansável, desloca-se até os bairros

distantes para presenciar os cultos do candomblé e fotografá-los.

Salvador torna-se objeto de um dos mais poderosos mitos urbanos no entrelaçamento,

na primeira metade do século XX, das obras desses quatro artistas responsáveis pela recriação

estética modernista à revelia da modernização da cidade – arrastando-se em intervenções

desiguais e sucessivas desde meados do século XIX – que se intensifica a partir da primeira

metade do século vinte com a gestão seabrista, de 1912 a 1916. Advogam um modernismo

filiado a sua vertente crítica, denunciatória, pois defendem a cultura negra soteropolitana das

110 Entrevista de Dorival Caymmi. Documentário que acompanha o DVD Pastores da Noite. São Paulo: Globo

Vídeo, 2003. 111 AMADO, Jorge. Suor. São Paulo: Martins, 1968; _____. Jubiabá. São Paulo: Martins, 1965.

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perseguições e constrangimentos por parte da elite baiana, numa aprovação irrestrita dessa

tradição. Esteticamente modernistas, recusam todo processo de modernização urbana,

conciliando-se com uma cidade arcaica, provinciana, centrada na reelaboração das ruínas da

cultura negra em solo americano. A visada etnográfica faz com que optem por uma cidade em

pleno desaparecimento, num gesto afirmativo deslocando a perspectiva de classe pela étnica.

Paradigma etnográfico, fundante das obras dos quatro amigos, transformado em política, nova

militância distante dos discursos intelectualizados e ideológicos submetidos à lógica

marcadamente classista.

Às intervenções sucessivas que mexem na configuração urbana no sentido de

modernizá-la, eles contrapõem a estetização das persistências de práticas e culturas adversas ao

surto renovador, urdindo “acúmulo e interações de tempos sociais e espaciais”, pois “a cidade

oferece configurações particularmente densas de interpenetrações espaço-temporais”

assumindo uma figuração específica na expressão fotográfica pois nesta, “diferentes espaços-

tempos são congelados colocados em um mundo espacial” 112.

Algumas fotos de Verger tratam dessa tessitura temporal justaposta quando práticas e

objetos de temporalidades diferentes habitam um mesmo presente condensado. Nelas, um

comentário por vezes irônico, por vezes nostálgico, confere uma tragicidade nas relações

espaço-temporais urbanas que não estão presentes nas obras dos outros integrantes do grupo,

salvo raríssimas exceções que porventura escaparam da apologia amadiana, da elegia doce e

esquecida das canções de Caymmi e das gravuras de Carybé. Em Verger, pesam o meio técnico

expressivo que se alimenta do próprio real para se expressar, e a singular perspectiva do autor,

a qual se funda para elaborar obra etnográfica, histórica e fotográfica. Uma perspectiva

112 Para o trecho em português: FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A. de Figueiras. Idealizações

urbanas e a construção da Salvador moderna: 1850-1920. In: _____. Cidade & história: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Ana Fernandes e Marco Aurélio A. de Figueiras Gomes (Org.). UFBA, Salvador,1992. Em francês: STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002.

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temporal característica do meio literário francês, desde o simbolismo, cristalizado na figura

baudelairiana, que atinge os surrealistas, os quais, tocados ao máximo por essa “percepção”

temporal, desenvolvem discursos e práticas sobre a experiência urbana parisiense. Os

fotógrafos exilados, procurando abrigo político e intelectual na Paris dos anos vinte, somam-se

aos já existentes na cidade, e de uma maneira ou outra, dos mais próximos ou distantes, não

passam incólume ao conjunto destas questões surrealistas113. O sociólogo francês, Henri

Lefebvre114, que academicamente analisa e produz conceitos próximos aos debates

desenvolvidos pela esquerda do movimento (revolução, renovação do marxismo, reavaliação da

vida cotidiana, caracterização do mundo urbano etc.), desenvolve a idéia de tensões entre

isotopias, “lugares do mesmo, mesmos lugares”, e heterotopias, “o outro lugar e o lugar do

outro” ao mesmo tempo excluídos/imbricados, sempre concebidos dinamicamente. Questões

essas presentes no trabalho, já analisado, de Eugène Atget, o mais importante fotógrafo para

essa geração, que está no cerne das interpretações hegemônicas relacionadas ao tempo e espaço

urbanos. Nesse período são publicados diversos álbuns que tomam a cidade de Paris como tema

em livros ilustrados como 100 x Paris (1929) de Germaine Krull, Atget, fotógrafo de Paris

(1930), seleção de fotos após a morte do autor, Paris (1931) de Moi-Ver, Paris de nuit (1933)

de Brassai, Paris vu par André Kerész (1934) de André Kerész, Paris de jour (1934) de

Raymond Schall e Volupté de Paris (1935) de Brassai, entre outros115.

Pierre Verger, que está presente no seio desse grupo de escritores, pintores e fotógrafos

da cena parisiense, participando inclusive da Alliance Photo de Maria Eisner, em 1934,

acompanha, mesmo com indiferença, os debates que ali estão sendo pautados, criando uma

maneira própria de abordá-los em suas fotografias, sobretudo naquelas dedicadas à cidade do

113 Uma breve lista: Man Ray chega em 1921, Berenice Abbott, 1923, Brassai e Germaine Krull, 1924, André

Kertész, 1925, Robert Capa e Gisele Found, 1933. Para a extensa lista de escritores e fotógrafos GAUTRAND, Jean-Claude. Paris mon amour. Cologne: Taschen, 2004, p 55-22.

114 LEFEVBRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p 119-120. 115 GAUTRAND, Jean Claude. Paris mon amour. Cologne: Taschen, 2004, p 13.

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Salvador, no seio da nova rede de criadores, agora nos trópicos, cuja principal obra, será, sem

sombra de dúvida, a estetização da cidade do Salvador. Como fizera com a cidade de Paris, o

grupo surrealista nos anos vinte.

Além de desenvolver sua obra fotográfica sintonizado com as obras dos artistas

locais116, Pierre Verger, mesmo com as precauções com que procurara se proteger117,

aproxima-se do exercício profissional dos vários fotógrafos que estavam naquele momento em

diferentes partes do mundo produzindo imagens de rua, impulsionados pela mobilidade

proporcionada por máquinas menores e de registro mais rápido surgidas no início do século.

Londres, Paris, Praga, Nova York, México. Smith, Brassai, Cartier-Breson, Saudek,

Walk Evans, Manuel Alvarez Bravo. Os fotógrafos, com suas respectivas cidades, se

multiplicam desde o final do século XIX, ao mergulharmos numa ainda incipiente

historiografia da “fotografia de rua”. Inspirados por um certo heroísmo explorador e

documental, aventuram-se em espaços urbanos marginais, revelando-os enquanto imagens,

sejam nicho de pobreza ou de boêmia; flagrando novas figurações na aparência das cidades ou

registrando flagrantes do que se acreditava condenado pelo ritmo modernizante. Paris, por

exemplo, será insistentemente fotografada por artistas, oriundos de todas as partes do mundo,

que publicarão famosos álbuns da cidade, extremamente acolhedora àquela época. Mais que

isso, ela é o local do surgimento desse estilo fotográfico, “photographie de rues”, o qual

contribuiu sobremaneira para o seu mito global118.

116 “Existiam já na época os romances de Jorge Amado, os desenhos, as pinturas e esculturas de Carybé. Foram

eles, tanto um como outro, que mais contribuiram para que a Bahia e a vida de seu povo fossem conhecidas. e que souberam ressaltar dentro de suas obras os felizes resultados da mestiçagem e da harmoniosa mistura de raças que fazem da Bahia um lugar excepcional e privilegiado.” Pierre Verger. Texto introdutório do livro Retratos da Bahia.

117 “Eu não gosto de olhar as fotos dos outros porque isso me incomoda logo depois. Se eu vejo a mesma coisa depois, não vejo a foto pois, tenho a impressão de tê-la visto e tenho a impressão de copiar a foto de um outro” SOUTY, Jérôme. Piere Fatumbi Verger. Du Regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 2007.

118 “Paris, esta cidade cosmopolita e majestosa, grande e compacta, se prevalece de ser considerada como o berço da fotografia de rua. Ela contribuiu com a invenção desse genêro de fotografia, assim com a fotografia participou da sua percepção mostrando aos parisienses, a princípio, seus prédios, em seguida seu próprio

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Pierre Verger, ao se decidir fotografar, utilizando sua Rolleiflex119, e publicar os

volumes centrados na ambiência soteropolitana, se coloca na trilha desses pioneiros.

* * *

A essa época, nos anos 30 e 40, a abordagem fotográfica vergeana postulava as noções

correntes acerca do poder documental das imagens mecânicas e de não intervenção alçadas a

uma postura também moralizante. O dever de transparência se imporia ao próprio ofício

etnográfico oriundo da prática fotográfica, sendo mesmo o seu moralismo o diferencial frente

às outras iniciativas:

Minha abordagem nas pesquisas executadas se fez com o estado de espírito do

fotógrafo que eu era, quer dizer, um puro observador que registrava o que se passava

diante de seus olhos, em simples testemunho e sem intervir ou perturbar o desenrolar

dos acontecimentos. Essa descrição me era fácil pois eu não tinha nenhuma teoria à

verificar. Eu fotografava e tomava notas sem questionar. 120

Ao buscar um certo automatismo fotográfico, Verger se insere ainda mais uma vez no

universo teórico do movimento surrealista, oriundo dos anos heróicos de sua gestação, na

reflexo nos inúmeros retratos fotográfico reproduzidos nas revistas e livros da época”. STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Edition française. Hazan, 2002, [s/n].

119 No Brasil, a máquina Rolleiflex foi imortalizada pela bossa nova na voz de João Gilberto: “fotografei você na minha Rolleiflex” sinônimo de leveza, modernidade, mobilidade. Das diversas máquinas que surgiram com essas características, as mais famosas foram a Leica de 1925 e a Rolleiflex de 1928. “Uma objetiva de grande abertura e um dispositivo de armamento rápido fizeram da Leica a máquina mais prática de sua época. Tais aperfeiçoamentos permitiram, enfim, aos fotógrafos confiar, antes, em sua intuição, que nos sábios cálculos, e trabalhar no centésimo de segundo para produzir verdadeiros retratos do cotidiano. Os muitos outros aparelhos que utilizavam o filme de 35 mm que então apreceram e a invenção da Rolleiflex à boîtier maior em 1930 (ainda bastante pesada) determinaram o nascimento de um estilo de fotoreportagem mais realista. A facilidade com aqual se podia daí em diante tirar fotos, o formato reduzido dos negativos e a pressão dos prazos editoriais incitaram o fotógrafo a mandar revelar o filme 35mm por profissionais no laboratório. O fotógrafo ou iconógrafo, depois, se contentavam em escolher e reenquadrar as fotos que deviam ser publicadas. Esta nova liberdade de ação, assim com a possibilidade de representar o movimento ou de reter expressões fugazes e de operar num mesmo quandro as aproximações mais singular, logo, apaixonaram todos os fotógrafos”. “Inúmeros modelos diferentes foram apresentados entre 1889 e 1928, mas esse tipo de máquina foi aceito pelo grande público apenas após a aparição da Rolleiflex em 1928”. ROSENBLUM, Naomi. Une histoire mondiale de la photographie. Trad. Paul Alexandre; Dominique Férault; Jean Pêcheux; Sabine Porte e Julie David. Paris: éditions Abbeville, 2000, p. 465, p. 624.

120 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Interview par Véronique Montaigne – 15/09/1992. Disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=164&Itemid=550>. Acesso em: 12 set. 2008.

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década de vinte. André Breton, nesse período, define a escrita automática como “uma

verdadeira fotografia do pensamento”, demonstrando sua superioridade “na imitação da

aparência”121. Breton acredita que os rasgos de genialidade creditados aos escritores seriam

fruto apenas de nossa visão elitista do ato criativo, quando não passavam de uma experiência

próxima à fotografia, isto é, automática. No “Le message automatique”, ele escreve que “tudo

está escrito sobre a página em branco” em que os escritores buscam “algo como uma revelação

ou uma ampliação fotográfica” (grifo do autor)122. O automatismo literário, assim como a

fotografia, nos traria sem mediações a imitação da aparência, seja dos pensamentos, no

primeiro caso, ou do real, no segundo. O importante seria abandonar as intervenções apoiadas

numa estética que pudessem ferir a transparência das imagens verbais ou fotográficas, findando

por escamotear as complicadas relações entre representação e realidade quanto ao seu aspecto

constitutivo. Em 1952, ao recordar a gênese do movimento que conduziu com punhos fortes,

Breton declara a André Parinaud que:

para que esta escrita seja verdadeiramente automática, é necessário, de fato, que o

espírito tenha conseguido se colocar em condições desapego em relação as

preocupações individuais de ordem utilitária, sentimental etc., qeu passam por ser

muito mais do pensamento oriental que do ocidental e supõem da parte desse

último uma tensão, um esforço dos mais elevados.123

A tentativa de apagamento do indivíduo lembra o zen-budismo suscitado por um

importante fotógrafo moderno e inicialmente próximo ao movimento surrealista. Henri Cartier-

Bresson refere-se, nos idos dos anos 50, ao misticismo zen como inspiração de sua estética

121 Apud SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981, p. 105. 122 CHENIEUX-GENDRON, Jaqueline. Le surréalisme. Paris: PUF, 1984, p. 74. 123 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p.87.

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fotográfica, pregando um “esquecimento de si, espontaneidade do ‘não-querer’” na sua

formulação do “instante decisivo” 124.

Embora apresente diferenças quanto à concepção de “momento decisivo” desenvolvida

por Cartier-Bresson, após a leitura do depoimento abaixo, vemos como Verger se encontra

enredado nas discussões estéticas do período:

“Quando eu tiro as fotos, não sou eu que fotografo, é alguma coisa em mim que

aperta o disparador sem que eu verdadeiramente decida. Eu não procuro fazer um

belo enquadramento; o lugar das pessoas e das coisas aparece evidente no visor.

Após, o clique deixa a foto em suspenso, ela existirá apenas muito tempo após, no

laboratório: o momento do seu verdadeiro nascimento”125.

Entretanto, a contrapelo tanto do autor quanto de seu melhor crítico, o francês Jérôme

Souty, não podemos ignorar a estetização do mundo operada pelos olhos e máquina fotográfica

de Verger. Qualquer amador de fotografia se queda abismado pelo poder formal das imagens

vergeanas, de uma composição rígida, aguda quanto às proporções e tons, ao centramento do

corpo humano e de sua musculatura no enquadramento dos temas.

Várias dessas declarações esparsas de Verger incidem sobre essa definição do ato de

fotografar em consonância com outros fotógrafos praticantes do estilo documentário ou

humanista, no período do entre guerras126. Em entrevista ao Estado de São Paulo, declara que:

A fotografia é simplesmente um documento. O fotografar não se apreende. É um

ato intuitivo, não cerebral. Sem saber o porque, capto um gesto, um movimento,

uma luz. É preciso ficar atento ao que acontece em volta, sem se deixar tolher por

uma idéia fixa de imagem preconcebida intelectualmente. Às vezes, só depois da

imagem feita você mergulha nela e a entende.

124 SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve

& Larose, 2007, p. 27. 125 Idem, p. 26. Mesma indicação para uma comparação crítica entre as concepções dos dois fotógrafos, p. 26-27 126 Nesse sentido, estamos pesquisando, selecionando, organizando e em alguns casos traduzindo as entrevistas e

textos em que Verger se dedica a explicitar as suas idéias sobre a fotografia e o ato de fotografar para propormos uma publicação, com o intuito de preenchermos essa lacuna sobre a sua obra.

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Ou ainda em entrevista a Photo Spécial Brésil, quando revela que não procura por “um

belo enquadramento. O lugar das pessoas e das coisas aparece evidente no visor. Depois, o

disparador da máquina deixa a foto em suspense, ela existirá, tempos depois, no laboratório: o

momento do seu verdadeiro nascimento”127.

Os defensores do style documentaire, nos anos 30 e 40, em fotografia, apresentam sua

perspectiva através de concepções similares às de Verger. Em alguns casos, comungam uma

indefensável “gramática e uma sintaxe visual” expressa nas próprias coisas, com declarações

quanto ao sentido de transparência da fotografia, criando uma crítica, algo naïf, do problema

representacional, e uma recusa do caráter estético, pelo menos enquanto criação esteticista

imposta por uma sensibilidade artística que eles queriam evitar.

O pesquisador Olivier Lugon, que se dedicou a investigar o “style documentaire” entre

os anos 20 e 45, do século passado, abarcando figuras preeminentes dessa prática fotográfica

como August Sander, Walker Evans e Berenice Abbott, ao compará-los aos expoentes da

Nouvelle Objetivité, outro importante estilo fotográfico do período, escreve:

A priori, as duas correntes dividem a mesma preocupação de objetividade

perfeita, uma mesma busca de transparência absoluta, de não alterar a coisa como

ela é. O duplo credo de Sander - “ver as coisas como elas são” – e de Evans – “a

beleza profunda das coisas tais como elas são” – encontra varaintes inumeráveis

na literatura acompanhando a Neue Sachlichkeit.128

A Nova Objetividade, movimento iniciado nos anos 20 na Alemanha, busca uma

apreensão clara e direta dos objetos, pois são eles que conformam a imagem, pois “é a

qualidade do objeto que faz a da imagem”, ou ainda:

127 BRIL, Stefania. Os deuses africanos e seu espectador: Pierre Verger. O Estado de São Paulo. São Paulo, 14 abr.

1981. Entrevista concedida por Verger; Verger, Pierre. Entrevista a Photo Spécial Brésil, n. 329, abril 1996, p.32-37. Apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002.

128 LUGON, Olivier. Le style documentaire. D’August Sander à Walker Evans 1920-1945. Paris: Macula, 2001.

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Desembaraçava nossa percepção do véu cultural que normalmente nos separa do

objeto. A mediação mecânica suplementar teria a capacidade paradoxal de diluir

todas aquelas que a precedem, todos os filtros humanos, as deformações

perceptíveis, o peso do conhecimento e das tradições visuais.129

Os objetos fotografados assumem uma visibilidade inatingível aos olhos não

mediatizados pelo aparelho fotográfico no sentido de uma maior transparência só aqui

conquistada, “eles aparecem na medida em que revelam o aspecto, desconhecido até aí, de sua

presença em si, uma presença pura, preexistente a todo olhar humano”. No início do seu livro,

Lugon, ao tentar definir a noção de “documentaire” esboçara que “a idéia de uma ‘arte

documental’ se encarrega, a partir de agora, de uma conotação eminentemente positiva,

fidelidade às especificidades do médium e por consequência, pureza, honestidade moral”.

Fidelidade e pureza são os termos pelos quais procuramos definir alguns procedimentos

do dispositivo cenográfico posto em movimento para reinvenção imagética da cidade da Bahia

operada por Verger, e não é surpresa o surgimento dessas noções próximas de uma forte

postura moral. A condenação do mundo moderno, que podemos verificar nas imagens, tanto

pelo que mostram como pelos índices de modernização que são relegados às bordas ou

simplesmente ignorados, dá-se também nos prefácios dos álbuns RB e CHS:

Os habitantes do Pelourinho levavam entre vizinhos uma vida de bairro, fazendo

suas compras nas modestas lojas locais. Chegada a noite, eles permaneciam

sentados nas soleiras das portas batendo papo com seus vizinhos, sentindo-se em

completa segurança. Eles não eram como hoje atraídos por programas de diversos

canais de televisão, de valor duvidoso, que mantêm as pessoas lacradas dentro de

casa olhando novelas. [...] Seria desejável que o contato deles com o mundo

exterior não estivesse restrito à presença provocadora dos turistas que passeiam

pelo bairro, devassando a intimidade dos moradores e ostentando toda uma

parafernália de objetos valiosos e fantasiosos.130 (CHS)

129 Idem. 130 VERGER, Pierre. Centro Histórico de Salvador. Salvador: Corrupio, 1989.

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Ao lado encontrava-se o antigo Mercado Modelo e o pequeno Porto dos Saveiros,

nesta época lugares privilegiados da Bahia que, lamentavelmente, foram vítimas

da onda invasora dos carros e da necessidade de lhes criar grandes avenidas e

espaçosos estacionamentos. Um incêndio “oportuno” fez desaparecer o mercado e

em consequência os saveiros foram descarregar em outra parte os produtos

trazidos dos diversos pontos do Recôncavo. Esses veleiros foram duramente

atingidos pela concorrência dos caminhões, cuja utilização cresceu com a

construção de novas estradas.131 (RB)

* * *

As imagens que o fotógrafo Pierre Verger nos legou em dois livros sobre a cidade do

Salvador, Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989) nos permitem

teorizar sobre as relações entre fotografia e espaço urbano. Os clichés tirados de 1946 a 1952,

selecionados e organizados pelo autor, apresentam uma cidade bucólica, através da arquitetura

colonial, do porto e das praias distantes, com mulheres e homens negros que se deslocam com

desenvoltura pelas ruas, ladeiras e praças. O mar da Baía de Todos os Santos se deixa entrever

sobre os telhados, nesgas entre paredes ou limitando as fotos em que surge plácido e soberano

sem esconder a sua continuidade infinda. Nuvens embaçam o céu deixando escapar a luz na

maioria das vezes visíveis num chiarescuro que o urbanismo colonial impõe por suas ruelas

sinuosas, roubando sombras ao sol. Algo de um ar pausado que dormita pairando sobre todos,

transforma as situações da vida urbana em cenas que o autor flagra durante suas caminhadas

que exploram a cidade ainda desconhecida. Os habitantes tornam-se expressivos personagens

de um espetáculo que se dá nas ruas e a herança arquitetural uma intensa cenografia a céu

aberto. As cenas dramatizam o dia-a-dia do homem comum em sua labuta permanente, nos seus

momentos de folga, nas crenças religiosas e festividades. Cercam a banalidade dos dias nos

interstícios da cotidianidade, marcam a reinvenção desta nas festas e ritos religiosos. O impacto

dessas imagens desperta para a vida das ruas e praças ocupadas por negros em seus gestos,

131 VERGER, Pierre. Retratos da Bahia 1946 a 1952. Salvador: Corrupio, 1990.

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corpos e faces examinadas pela objetiva da Rolleiflex. São paisagens nunca vistas da/pela

cidade, campos desertos inexplorados, como, por exemplo, o rosto negro de um estivador

iluminado por um riso. Máscara eternizada que nos olha e interroga em plenitude de vida,

sensualidade, potência. RB Rampa do Mercado – gente da estiva, (fig. 5). Os corpos dos

habitantes e da cidade se deixam ver de novo, duplicando na fixidez fotográfica o que foi

movimento e devir. Ressurgem cenografados pelo olhar meio humano, meio maquinal do

confronto entre fotógrafo e máquina, pelo ofício da revelação e das composições químicas.

Teatralização das situações urbanas, a fotografia recria, duplicando-as em cenas, momentos que

se perderiam do ir-e-vir das ruas. Pedestres, animais, carroças, autos.

O fluxo da vida é retido em favor da composição, do perspectivismo que reordena e

resignifica as situações vividas, congelando-as. As fatias impressas de aventura em preto-e-

branco, fruto da luz tropical que devassa o escuro da máquina e impressiona o filme são

coleções de coleções. Do evento à fotografia, o fotógrafo é esse traficante de instantes

entregues ao consumo crescente de imagens na sociedade contemporânea.

Os momentos, milésimos de segundo, plasmados durante a revelação, e agrupados

numa coleção (objeto-livro) não são janelas abertas para o real. Visão sobremaneira simplória

do complexo fenômeno da representação e figuração no suporte fotográfico, a relação de

objetividade maquinal e transparência conceitual ou ideológica vem sendo admoestada por

diversos analistas da fotografia, cada um à sua maneira132.

132 FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Tradução do

autor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 82; ROSSET, Clèment. Fantasmagories. suivi de le réel, l’imaginaire et l’illusoire. Paris: Les Editions de Minuit, 2006, p. 108; BAUDRILLARD, Jean. Car l’illusion ne s’oppose pas à la realité... Paris: Descartes & Cia, 1998.

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À idéia de imagens como “janelas para o real” contrapomos a de encenação do real,

presentes como insights nas obras de Walter Benjamin (décor, théatre) e Roland Barthes

(théatre)133.

As situações e transeuntes que as fotografias de rua figuram sem espelharem ou

imitarem um real que sempre lhes escapa, sobretudo simulando-o, encenando sua

visibilidade134.

A palavra “theatron”135, nos seus primórdios gregos, pode ser definida também como o

lugar de onde se vê o espetáculo: em analogia, de um lado o ponto perspectivo de onde parte o

olhar do fotógrafo, enquadrando a cena; do outro, a imagem revelada, fotografia de onde agora

olhamos a cidade. As janelas se apagam onde surgem as cenas; a transparência vacila onde a

cenografia do real se insinua.

O termo theatron é palavra irmã do termo theoria, indo da organização e

“caracterização de um ambiente” à “organização de um ponto de vista”136. Sob o suporte da

teoria da encenação teatral apoiada nos termos do que lhes são peculiares (cena, cenografia,

personagem, ator, máscara, performance) evitaríamos o processo, sempre presente na história

da fotografia, de naturalização da sua imagem e efeitos.

* * *

A musa única da fotografia é a luz, nunca avaliada na proporção de sua importância ou

sempre analisada de forma equívoca. Por longo tempo atribui-se-lhe a função de escrever a

133 BENJAMIM, Walter. Ecrits français. Paris: Gallimard. 1991; BENJAMIM, Walter. Oeuvres II. Paris:

Gallimard, 2000; BARTHES, Roland. La chambre claire. In: Oeuvres complètes. Tome V. 1977-1980. Paris: Seuil, 2002.

134 ROUBINE, J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.86.

135 DEL NERO, Cyro. Cenografia: uma breve vista. São Paulo: Claridade, 2008, p. 14; PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2007.

136 DEL NERO, Cyro. Cenografia: uma breve vista. São Paulo: Claridade, 2008, p. 29-30.

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imagem, sabe-se o sucesso da infeliz expressão definidora da fotografia como “escrita de luz” a

despeito do autor, László Moholy-Nagy, elaborar uma teoria da imagem fotográfica

considerada como “arte da representação” e perceber a importância da luz na pintura, cinema,

“cenografia e no design”137. Em 1924, Moholy-Nagy publica “Nouvelle méthodes en

photographie”, quando escreve que “fotografar significa escrever, desenhar com a luz”138.

Desenhar com a luz se afirmou menos que a idéia de escrita. Talvez, daí, advenha outra

expressão que grassou nos estudos fotográficos, a não menos desastrosa “leitura de imagens”.

As analogias são claras: percepção e interpretação de imagens submetidas ao modelo da

linguagem escrita e sua leitura. Entretanto, a imagem esteve sempre ao lado do teatro no

sentido artaudiano. Em Le Théatre et son double, do ensaista e dramaturgo francês Antonin

Artaud, o teatro é uma instância autônoma e não deve ser submetido à ditadura das palavras,

desviantes da encenação que solicita os sentidos: cor, gesto, imagem. A despeito das

concepções críticas artaudianas específicas para o teatro e seus traços ocidentalizantes,

podemos resgatar algumas idéias forjadas no capítulo La mise en scène et la métaphysique e

aplicá-las ao nosso objeto. As fotografias, com na fábula inicial inspirada em Cortázar, estão,

da mesma maneira que o teatro na análise artaudiana, à mercê da interferência das palavras. As

legendas, comentários, textos, as interpretam e lhes dão sentido. Das imagens pode ser dito

quase tudo. Infeliz destino comum do teatro e da fotografia, reféns da importância desmesurada

da palavra. Para Artaud, “no Ocidente, tudo que é especificamente teatral, quer dizer, tudo que

não obedece a expressão pela fala, pelas palavras [...], é deixado em último plano”, Sem

utopias, recusamos o extremado visionarismo de Artaud e a existência autônoma do teatro ou

das imagens. Para sermos criteriosos, nem mesmo ele parecia acreditar nessa autonomia

impossível, advogava com veemência a linguagem física e concreta que escapa à linguagem 137 BAQUÉ, Dominique. Ecriture de la lumiére (Préface). In: MOHOLY-NAGY, László. Peinture, photographie,

film: et autres écrits sur la photographie. Traduzido do alemão por Catherine Wermester e do inglês por Jean Kempf e Gérard Dallez. Paris: Gallimard, 1993, p. 16.

138 Idem, p. 189.

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88

articulada, “tudo que ocupa a cena, em tudo que pode se manifestar e se exprimir

materialmente na cena”. Artaud nomeara essa linguagem de “uma poesia do espaço” que não se

reduz estritamente às palavras e que são “utlizáveis em uma cena, como música, dança,

plástica, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e cenário”139.

Quanto à imagem fotográfica, cena fixa na qual destacaríamos da listagem artaudiana a

plasticidade, gesto, arquitetura, iluminação e cenografia, a teoria da encenação teatral poderia

lhe ser menos agressiva prospectando o campo analítico em busca de caminhos inusitados.

Deixar a descoberto o caráter sempre violento do gesto interpretativo e desnaturalizar a relação

entre a aparição da imagem e sua redução aos modelos linguísticos. Estamos nos antípodas do

distanciamento brechiano, apesar da aparente contiguidade. O dramaturgo alemão cria

procedimentos para tornar visíveis “os modos de produção do espetáculo”, investindo contra o

processo de naturalização da cena com o intuito de “munir-se de todos os meios de evitar o

ilusionismo inerente à tradição aristotélica”140. Ao dissecarmos, como Brecht fez ao teatro, “os

modos de produção da fotografia” objetivamos, ao contrário, potencializar seu poder

ilusionista. Na crítica que Roubine faz ao ilusionismo teatral naturalista do século XIX,

entendido como correspondente da “utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos

o mundo, reproduzindo-o”, vemos a situação da fotografia do período, no bojo dos mesmos

processos mecânicos, concretizados no “sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo

real”141, os quais ambicionamos desmontar.

* * *

139 ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 524-525. 140 ROUBINE, J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.

91-93. É possível uma outra interpretação do distanciamento brechtiano num sentido contrário de que ele reforça a teatralidade da cena.

141 Idem, p. 25.

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A luz da fotografia, afastada da comédia linguageira inspirada pela escrita e estudada no

espaço renovado da cenografia contemporânea, se adequa melhor às nossas análises. Assim,

adaptamos para a análise fotográfica o conceito de dispositivo cenográfico definido como o

conjunto de procedimentos técnicos, estéticos e intelectuais que incidem sobre a imagem

fotográfica. O fotógrafo, apesar de não atuar como criador da cena que irá fotografar, como o

cenógrafo, “dispõe as áreas de atuação, os objetos, os planos de evolução de acordo com a ação

a ser representada”. Ao determinar a perspectiva do olhar através da objetiva, enquadra a cena

urbana permitindo que ela visualize “as relações entre as personagens” facilitando a sua

gestualidade e a expressividade do entorno. Ressaltam-se espaços e corpos como cenários e

personagens ambos imprimindo a virtuosidade de suas formas142.

Na imagem fotográfica a luz, como na cenografia de Appia, “não é apenas aquele

instrumento funcional que se limita a assegurar a visibilidade do espaço cênico, ou no melhor

dos casos criar um ‘clima’. Ela permite esculpir e modelar as formas e os volumes. Evitando a

reprodução atmosférica, a luz no espaço cênico pode “modelar, modular, esculpir [...], dar-lhe

vida, fazer dele aquele espaço de sonho e da poesia aspirado pelos simbolistas”143. Três fotos

de Verger são especialmente dramáticas pelo jogo de sombras, impondo um simbolismo

latente: CHS Procissão do Encontro na Praça (fig. 6), RB Rua dos droguistas Cidade-Baixa

(fig. 7). Aí a luz escapa das laterais da foto buscando espaços e como um deus demiúrgico

produz formas, corpos, cria espaços, zonas de mistério e silêncio. Clareiras simbolistas onde,

desviando levemente as palavras de Del Nero144 “o cenário empresta o seu corpo à liquidez da

luz”, corpo este que foi recomposto por ela, “como um instrumento” refletivo/reflexivo.

* * *

142 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e

Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.105. 143 Idem, p.137; p. 21. 144 DEL NERO, Cyro. Cenografia: uma breve vista. São Paulo: Claridade, 2008, p. 19.

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No texto introdutório ao livro RB, escrito pelo próprio Verger, encontramos a seguinte

afirmação: “o espetáculo da Bahia está nas ruas”. Sabemos da gênese do livro, assim como de

sua elaboração, através dos relatos de Cida Nobrega e Regina Echeverria145. Um grupo

formado por Arlete Soares, Cida Nobrega, Analdo Grebler e Eneas Guerra resolveu divulgar a

obra do francês num álbum que reunisse “as fotos que Verger havia feito da Bahia, tal como a

conheceu, ao desembarcar ali pela primeira vez, em 1946, e que tinham sido mostradas na

exposição organizada pelo grupo ZAZ”. Surpreendentemente, se levarmos em conta a aceitação

da obra vergeana segundo os padrões estéticos e etnográficos atuais, Arlete Soares não

conseguia, na época, convencer as editoras a publicarem o livro, pois segundo ela “percebemos,

então, como somos racistas − a dificuldade é que eram fotos de negros e ninguém queria

publicar, porque o assunto não vendia”.

Resolveu-se a celeuma com a criação de uma pequena editora em 1979, a Editora

Corrupio, iniciando-se os encontros para a feitura do livro. Será interessante acompanharmos,

ainda segundo o depoimento de Arlete Soares, o empenho de Verger em seu intuito de reviver

em livro as experiências das ruas soteropolitanas:

Ele espalhava aquelas fotos todas sobre a mesa e ficávamos fascinados cada vez que

ele puxava um pacote de fotos, a gente vibrava e ele ficava super contente com o

nosso interesse [...] Começamos com cerca de 800 delas e tínhamos que fazer uma

seleção dolorosa para subtrair muitas até chegar a umas 200. Não conseguimos ir além

de 250, o número final, que ainda era demais.

Arnaldo Grebler descreve com minúcias o processo de elaboração da “boneca” do livro

e a participação de Verger tornando temerosa qualquer iniciativa de modificação das obras em

reedições posteriores:

Ele sabia muito bem o que queria. Nosso papel era o de ficar acompanhando e

dando alguns palpites. Às vezes, aceitava uma idéia ou outra, mas acho que ele

145 NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002,

p. 295-298.

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sabia muito bem o que queria. Apesar de ter milhares de negativos, sabia

especificamente os que queria, em qual sequência, com qual casamento de página.

Parece que a coisa estava pronta na cabeça dele, e dificilmente ele acatava alguma

outra solução. Às vezes a gente dizia: “Verger, vamos botar esse daqui?” Ele

respondia: “É, pode ser”. Mas dali a pouco ele encostava a mão sorrateiramente e

tirava a foto fora.

O que buscava Verger? O que quer um fotógrafo ao compor um livro? E

especificamente um livro destinado a reproduzir “o espetáculo das ruas”?

* * *

Nos últimos anos, surgiram diversos livros, em língua inglesa e francesa, que tratam de

uma nova caracterização das fotografias que antes estavam relegadas à indiferenciação do

conjunto de imagens produzidas desde meados do século XIX146. A “street photography” ou

“photographie de rue” são problematizadas nesses livros enquanto um gênero fotográfico, com

personagens próprios e muitas vezes em diálogo com pintores e escritores que se debruçaram

sobre o mesmo objeto, o espetáculo diário das ruas, sobretudo nas metrópoles. O debate se

concentra na definição dessa prática fotográfica, marcando um terreno diverso do documental

ou da foto-reportagem ao tempo que se insere na discussão mais geral da própria estética

fotográfica147.

146 Bibliografia mínima para a fotografia de rua: STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad.

Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002; SCOTT, Clive. Street Photography. From Atget to Cartier-Bresson. London: I.B. Tauris, 2007; BROUGHER, Kerry; FERGUSON, Russel. Open city. Street photographs since 1950. Moma Oxford/hatje Cantz. Ostfildern, 2001. WESTERBECK Colin; MEYEROWITZ Joel. Bystander: a history of street photography with a new afterword on SP since the 1970s. Boston: Bulfinch Press Book, 2001; para o estilo documentário: LUGON, Olivier. Le Style documentaire: d'August Sander à Walker Evans. 1920-1945. Paris: Macula, 2001; MUSEUM OF CONTEMPORARY ART (LOS ANGELES). RALPH M. PARSONS FOUNDATION PHOTOGRAPHY COLLECTION. The social scene. Ostfildern: Hatje Cantz, 2000. BRAVO, Manuel Alvarez; CARTIER-BRESSON, Henri; EVANS, Walker. Documentary and anti-graphic photographs. Germany: Steidl, 2004. entre outros.

147 Um pequeno resumo do debate pode ser encontrado na introdução do livro Street photography. From Atget to Cartier-Bresson. London: I.B. Tauris, 2007, p. 5-6, do pesquisador Clive Scott. Para este último, uma definição desejável de ser adotada seria a dos autores Joel Meyerowitz e Colin Westerbeck como “imagens cândidas da vida cotidiana nas ruas”, ao tempo que enuncia a definicão de Giles Mora, outro pesquisador, que pocura aproximar os dois gêneros (documentário/de rua) em termos ambíguos, “Os fotógrafos de rua perseguem o instante fugaz, fotografando seus modelos abertamente ou sub-repticiamente, como transeunte casual ou como observadores sistemáticos”.

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O que parece estar em jogo é o critério que o fotógrafo utiliza para ir às ruas ou mesmo

a sua intenção, seja como observador sistemático ou passante distraído, e a finalidade de

produzir simplesmente instantâneos urbanos ou uma imagética memorialista. Daí, a retomada

dos dois personagens urbanos conflitantes quanto ao propósito de fruição das ruas a esmo ou

exercitar um voyeurismo urbano sistemático, respectivamente o badaud e o flâneur. Evitando a

inutilidade desse debate, optamos por uma abordagem mais pragmática, no sentido de que, em

primeiro lugar, está o interesse desses fotógrafos pela vida urbana (um conjunto de imagens

que centradas nos indivíduos reverberam para o cenário urbano, imagens de vias, arquiteturas,

privilegiando o fora, a rua) e em segundo, a produção dessas imagens. Na introdução, vimos

como a literatura e a fotografia desenvolveram, em todo o século XIX, esse gênero estético.

Inclusive o estudo da história da fotografia nos revela que a prática de fotografar as ruas não

está necessariamente ligada ao deslocamento dos fotógrafos pelas mesmas. Lembremos do

famoso fotógrafo da cidade de Praga, Joseph Saudek, que, escondido em seu quarto,

imobilizado, fotografava a cidade da janela de sua casa.

O fotógrafo de rua que mais nos seduz, entretanto, é aquele que, apaixonado pelas

aparências urbanas, as celebra através de suas imagens num contínuo deambular pela cidade,

quando o ato de fotografar se alia a uma performance de deslocamento e deriva. A exigência

dessa relação corporal com a cidade, um dos pólos de definição da “fotografia de rua”,

enquanto um estilo específico, problematiza a figura do fotógrafo, ele mesmo habitante urbano,

como sujeito e objeto de sua ação.

O caráter de aprovação do real, das paisagens urbanas, se consagra mesmo nas obras

que assumem o espectro denunciador dos espaços degradados, de grupos étnicos minoritários,

das classes sociais desfavorecidas e em situação de risco, ou de indivíduos marginalizados

(prostitutas, homossexuais, delinquentes etc). Obsedado pelo aspecto visual, instigante das

ruas, da excitação diária sob o signo da luz que delineia corpos, arquiteturas, objetos, esse

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andarilho urbano, armado com a sua máquina, quase um cyborg, olhando as ruas pela objetiva,

faz dessa uma prótese, coletando fragmentos, colecionando-os, compondo um mosaico

empírico das aparências urbanas. Olhar astuto, percorre a cidade, atenção distraída, para num

gesto flagrar o instante em que o drama urbano do cidadão moderno se configura. Pois não

seria essa a sua arte? Na aparência das cidades implicar seus transeuntes na dramática cena de

seu aparecimento e desaparecimento instantâneo junto com as situações em que atua148. Algo

como (num détournement do que escreveu André Breton no Second manifeste du surréalisme)

o mais simples ato surrealista: sair de máquina fotográfica em punho, descendo a rua e

fotografando ao acaso, tanto quanto possível, a multidão149.

O apego ao ir-e-vir diário citadino e o gosto pelo andar sem rumo talvez sejam os

grandes culpados das análises que se limitam a traçar semelhanças entre os fotógrafos de rua e

a figura do flâneur. Entretanto, os primeiros se distanciam do flâneur, pois acreditamos que

mais do que perambular pela cidade, o fotógrafo é o transeunte que para, que se aquieta para

num momento preciso emboscar sua presa e capturá-la. E todo o perder-se da caminhada é

apenas uma preparação para o momento de estancar, substituir o olhar livre pelo das lentes,

fundir o olhar maquinal ao seu e congelar um centésimo de segundo do mundo urbano. Se nós

quase nada sabemos do olhar do fotógrafo, em contrapartida temos acesso ao que ele produziu

e como ele as produziu.

Dentre a enorme tradição artística da fotografia de rua procuramos uma linha que nos

possibilite analisá-la, tanto na aprovação da paisagem urbana, quanto na sua crítica, elaborando

uma espécie de hagiografia laica do homem e ambiente moderno. 148 Como escreve Jean-Pierre Bucciol Sutto: “A fotografia de rua me interessa, aquela que considero aqui, e aquela

que creio ter dado letras de nobreza ao genêro e a fotografia em geral, é a fotografia de pessoas, homens, mulheres, crianças, na rua ou em locais públicos das cidades”. SUTTO, Jean-Pierre Bucciol. Petit précis de street photography, ou le révélateur psychologique du photographe. Disponível em: <http://www.vide.memoire.free.fr/photo/street2/street.php>. Acesso em: 03 mar. 2008.

149 A frase orignal é: “L’acte surréaliste le plus simples consiste, revolvers aux poings, à descendre dans la rue et à tirer au hasard, tant qu’on peut, dans la foule”. (“O ato surrealista mais simple consiste em descer a rua de revólveres nas mãos e atirar ao acaso, tanto quanto se possa, em meio a multidão”). BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 2001, p. 74.

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O processo construtivo do fotógrafo de rua, em sua maioria, divide-se em duas etapas.

Primeiro a “escolha” do lugar e do instante de clicar o evento, depois a seleção do que publicar,

entre todo o acervo produzido, e sua ordenação no corpo do livro. O dispositivo cenográfico

seria acionado nos dois momentos: o primeiro, quando oportunamente cenografa o evento

escolhido através da objetiva, e posteriormente, quando da elaboração do livro, recria a cidade,

compondo cenograficamente os diversos eventos registradas. Serão sobre esses dois momentos

(produção das fotos/ produção dos livros) que o álbum fotográfico de cidades se erigirá

enquanto obra de arte e mesmo como uma mídia específica dentre o conjunto dos livros de

fotografia. O estudo dos diversos álbuns fotográficos nos leva a ponderar sobre o conceito de

fluidez cenográfica aplicada aos nossos objetos, pois revela que as opções tomadas pelos

autores oscilam entre manter a leveza das mudanças de cenários ou precipitá-las buscando

rupturas abruptas, deslocamentos imprevistos, contrastes. Elaborado por Appia preconiza que a

“fluidez representa, no caso, o grau ideal de mobilidade que permite evitar as quebras de ritmo

e as quedas de tensão habitualmente introduzidas pelas diversas modalidades da mudança de

cenários” (grifo do autor)150.

Poderíamos, utilizando o conceito de Appia, exemplificar os dois casos teorizados

(mudança abrupta ou suave das cenas) com os livros, Atget, photographe de Paris, organizado

por Berenice Abbott em 1930, que explora a passagem não traumática das cenas urbanas

fotografadas por Atget, e as obras de Lorinczy Gyorgy, New York, New York, e de Dado

Moriyama, Sashin yo Sayonara (Bye Bye Photography), ambas de 1972. Experimentando o

fluxo imagético no sentido de romperem com a fluidez cenográfica, o álbum de Gyorgy pode

ser classificado como exploratório do “stream of consciousness”, enquanto o de Moriyama

caracteriza-se por sua vontade “de ir até o fim da coerência fotográfica [...] um equivalente da

escrita automática dos surrealistas” onde “a cadência é frenética, bombardeio incessante de 150 ROUBINE, J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.

136-137.

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imagens” 151. Se no primeiro exemplo, Atget-Abott compreende a existência de uma “linha de

ação contínua”, conceito definido por C. Stanislavski152, como “linha de ação básica que

atravessa todos os episódios”, os dois últimos, Gyorgy/ Moriyama desenvolveriam uma linha

de ação descontínua objetivando uma cenografia do choque e das disjunções das metrópoles

americanas e japonesas.

Caçado por colecionadores, os álbuns de fotografias tiveram um recente boom na

Europa e Estados Unidos, elevando o preço das publicações originais. Objeto de culto, alguns

de rara beleza encantam inclusive amadores a se arriscarem na tentativa de um bom negócio ou

simplesmente de se iniciarem no afã do colecionador. As reedições críticas luxuosas enchem os

olhos dos amantes de livros e de fotografias seguem a tendência editorial de reproduzirem as

edições originais, publicação de fac similes, edições de aniversário das publicações etc. Surge

uma crítica especializada tateando uma análise específica da mídia que alguns consideram a

ideal como suporte para a fotografia. Pode ser que para o imenso público contemporâneo de

arte, as fotos de Atget na Bibliotèque Nacionale ou as de Brassai na exaustiva exposição de arte

contemporânea do Georges Pompidou impressionem pela volta da autenticidade aurática do

cliché revelado em papel específico, moldurado e pendurado na parede. Para o estudante,

pesquisador e colecionador, o formato álbum torna-se insuperável pela praticidade e

manualidade. Perto das mãos e olhos, de fácil manuseio, desde o final do século XIX, o álbum

de fotografias vem se impondo no desejo e biblioteca de muitos.

* * *

151 PARR Martin; BADGER Gerry. Le livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-

Gettle; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005, p. 127, 263, 298. 152 STANISLAVSKI, C. Manual do ator. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 15-

16.

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Martin Parr153, no prefácio de seu belo Le livre de photogaphies: une histoire. Volume

1, no qual teoriza e historiografa, entre outros, os “álbuns de fotografia” de rua, comenta que ao

comprar a segunda edição do famoso The americans (1959) de Robert Frank sentiu-se

estimulado, com a potencialização da fotografia não mais isolada, mas vista em um conjunto

definido, pois:

revelou-me o verdadeiro potencial da fotografia [...]. Também me sensibilizou a

idéia de que um livro bem pensado pode valorizar um conjunto de fotografias. A

associação de imagens e a composição cuidadosa da página de um belo livro,

agradável de abrir e folhear, é ideal para traduzir as idéias e as opiniões estéticas

preconcebidas de um fotográfo.

Os livros de fotografias passam a ocupar um local determinado na cultura

contemporânea, abertos à investigação, interpretação e historiografia. Não são mais um simples

veículo de imagens acumuladas à esmo, trazem em seu corpo uma forma apoiada na escolha

das imagens e na relação que estas estabelecem entre si. Um domínio próprio que nos incita a

uma experiência estética além das fotos, incorporando a escolha do papel, da sequência, dos

textos e títulos que incidem sobre o formato geral da apresentação. O problema da distinção

antagônica entre intentio auctoris e intention lectoris se apaga, nesse trabalho, considerando

que, para o primeiro, ainda existe algo que resiste, o corpo-livro, independente do autor, mas

submetido ao seu tempo criativo; quanto ao segundo, explicita enquanto interpretação datada,

as práticas herdadas e as que lhe são correntes como invenções de seu próprio tempo.

Perspectiva que possibilita inclusive a divisão analítica da obra vergeana em dois momentos,

subtendendo-se duas interpretações e usos (práticas) diferenciados.

Para Parr, o álbum fotográfico cria gemealidade com o romance, o filme e o teatro de

imagens:

153 PARR Martin; BADGER Gerry. Le livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-

Gettle ; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005, p. 4, 5

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Trata-se de uma obra, com ou sem texto, na qual a primeira mensagem é

transmitida pela fotografia. Seu autor é um fotógrafo ou uma pessoa que edita e

agencia a obra de um ou de vários fotógrafos. Possui um caráter próprio, distinto

da prova fotográfica, quer seja a simples prova funcional “de trabalho” ou a prova

artística “de exposição”.154

Em consequência surge a figura do fotógrafo-autor, que centraliza as decisões em torno

do livro, objetivando-o enquanto estética, conceito e meio expressivo, pois “o fotógrafo-autor,

aqui, é considerado como um autor no sentido cinematográfico do termo, a saber, o diretor

autônomo que cria o filme em função sua própria visão artística”. Embora recusemos a

conceituação de que o livro de fotografias tenha “a constituição de uma longa narração em

fotografia” ou que “aparenta-se a um ‘romance em imagens’”, por nos parecer redutor ao efeito

linguagem, similar ao que se tentou fazer com o cinema, introduzindo-o a uma análise pautada

em operadores herdados da crítica literária, entendemos o caráter intermediário do nosso

objeto, prostrado numa encruzilhada entre romance, cinema e efeito cenográfico. Surgido em

várias partes do mundo, acompanhado do desenvolvimento das técnicas fotográficas, químicas

e tipográficas, os álbuns se particularizam fazendo aparecer uma cidade-imagem. Manuseá-lo,

nos acessa não apenas à obra, mas faz com que possuamos a cidade em seu duplo objetificado,

tornando-a não menos fascinante e disponível, além de colecionável. Quer dizer, reter instantes

vividos, guardá-los, ordená-los, que possam ser deslocados, revisitados, no espaço privado da

intimidade. O colecionador, arquétipo benjaminiano da modernidade, amontoa imagens e

livros, fragmentos de cidades e os armazena na eminência da desapropriação dos lugares

fotografados pelas intervenções urbanas incessantes ou pela concretude dessa experiência

mesma. Imagens que comungam com a sensação de perda da experiência suscitada pela

memória, a qual o colecionador pode estar querendo redimir.

154 Idem.

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Do período em que Verger se inicia no métier até o término de sua produção das

fotografias soteropolitanas, os mais célebres álbuns de fotografia de cidade foram: New York de

Alvin Langdon Coburn (1910), Metal de Germaine Krull (Paris-1928), Atget, photographe de

Paris de Berenice Abbott (1930), Paris de Moi Ver (1931), Moi Parij (Mon Paris) de Ilia

Ehrenbourg (1933), Paris de nuit de Brassai (1933), A Night in London de Bill Brandt (1938),

Changing New York de Berenice Abbott (1939), Naked City de Weegee (New York-1945), Day

of Paris de André Kertész (1945 ), The Decisive Moment (Images à la sauvette) de Henri-

Cartier Bresson (1952). Por diversas maneiras, esses livros definiram e ampliaram

sucessivamente os limites expressivos do meio, afirmando-o como objeto de culto e arte, ao

tempo que substituíam a pintura nesse processo de reflexividade imagética da vida urbana.

Atualmente o livro de fotografias, embora de circulação menor, estabelece vantagens

sensíveis, quanto a reflexividade urbana, frente ao romance e ao vídeo, por sua manipulação

imediata e fácil, sobretudo pela particularidade do seu processo de representação. O filósofo

Vilém Flusser155 reporta-se ao confronto entre linhas (escrita) e superfícies (imagens) para

analisar a representação e o design contemporâneos. Enquanto a narração escrita pode reduzir a

cidade a uma linearidade verbal, apesar de seu enorme poder evocativo, e o cinema, através do

movimento, conduzir a fruição da obra, impondo sua interpretação e ordenação imagética

coletivamente, em lugar específico, nas salas escuras, o livro de imagens urbanas se deixa

percorrer de diversas maneiras, pois embora tenha uma organização que obedece

frequentemente aos desejos de seu autor, em nossas mãos percorremos mais livrementes as

imagens, nos detendo em algumas, pulando outras, pousando o olhar sobre uma ou mais

imagens por um tempo que determinamos.

Mesmo com o advento do DVD, e as possibilidades de o reproduzirmos de maneira

livre, a forma cinematográfica se impõe muito fortemente com trilha sonora, encadeamento de 155 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. Trad. Raquel Abi-

Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.102-125.

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99

personagens e cenas que se interpenetram nos cortes e montagens. Essas cenas urbanas

transformadas em imagens-movimento nos escapam, antes de arrastar-nos ao seu ritmo intenso

e peculiar. Com o livro de fotografias ainda resiste o tempo individual que, talvez a contragosto

de seu autor, se lhe impõe. Retomando as distinções frente à escrita que narra a cidade, essa

última se emparelha quanto ao seu valor de manipulação pelo caráter intrínseco da mídia livro,

contudo queda frente ao maior poder de exponibilidade interpretativa das imagens. Segundo

Flusser156, a escrita deve submeter a experiência urbana aos seus limites discursivos, à

linearidade da representação verbal, da gramática. Seu código fechado em torno de uma língua

reduz enormemente sua capacidade de acesso, pois se destina unicamente aos falantes de uma

mesma língua, nativos ou aqueles que a aprenderam. As imagens fotográficas, por suas

características representativas, ainda que não sejam como comumente se pensa, de

interpretação universal, obedecem a processos interpretativos menos restritivos, e cada vez

mais amplos por sua proliferação metastática em nossa sociedade contemporânea, adestrando

aos vivente globalizado às regras do seu código ou “gramática visual”.

As formas de interpretação da fotografia estão cada vez mais expandidas e obedecem a

uma colonização, junto com o cinema, das formas de interpretação visual. Por outro lado, o

livro escrito, ao representar uma cidade acarreta problemas semelhantes, descritos

anteriormente em relação ao cinema (narração e ritmo conduzidos), no que contrasta com o

caráter cenográfico mais aberto quanto à interpretação do livro de fotografias. Questões que nos

remetem ao problema da recepção, isto é, o modo pela qual esses livros, que nos trazem

representações de cidades diversas, são hoje interpretados, manipulados, e publicizados, no

momento mesmo de sua suplantação, seja pela reapropriação e modificação de sua estrutura

primeira no sentido de sua modernização e comercialização, seja pela desmaterialização do

livro empreendida pela digitalização e circulação global via Web. Note-se que a obra de Pierre

156 Idem, p.102-125.

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100

Verger está sendo paulatinamente digitalizada e disponibilizada no site da fundação que leva o

seu nome, ao tempo em que os seus livros passam por um processo de renovação com a

inclusão de novas fotos e modificações gráficas.

* * *

Quais as relações que um álbum de fotografia de cidade pode estabelecer com a

disciplina urbanística? O que pode mesmo um livro de imagens de rua no universo estabelecido

do urbanismo e dos urbanistas? As cidades-imagéticas nesses livros seriam propostas urbanas

sugeridas num ponto de outridade em relação ao exercício do urbanista, uma projeção selvagem

ao ato instaurador e disciplinar do urbanista (tanto como campo teórico quanto como campo de

relações de poder). Desde já, defendemos a disparidade dos objetivos, pois entendemos que um

artista nunca é um urbanista, na medida em que o seu projeto não se insere numa malha de

poderes que realizariam o seu projeto na cidade. Podemos admitir que por vezes essa

apresentação, através de suas ruas, esteja próxima de uma verdadeira crítica aos destinos da

cidade, e ainda uma visão utópica ao destacar fragmentos, perspectivas não hegemônicas,

desprezadas por poderes públicos, em uma articulação com instâncias culturais e

mercadológicas. Em alguns casos, vê-se um certo desprezo pela cidade moderna, como

demonstram os trabalhos de Atget e de Verger, acompanhados de muito perto pela escrita

surrealista, na procura do inusual, das ruínas temporais físicas ou culturais, da epifania e

sensualidade das ruas, da historicidade complexa.

Sem o suporte institucional, inclusive em linha de fuga das malhas institucionais, a

projeção visual desse gênero se insinua nos interstícios, cuja visão é fadada ao fracasso e é bom

que assim seja, o que não quer dizer que ela não possa estar a serviço ou ser apropriada por

essas instâncias de realização/concretizações urbanas instituídas.

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As imagens que nos trazem da cidade que um dia eles viram, respondemos

colecionando-as, comercializando-as, consumindo-as. A produção incessante dessas imagens-

objetos pode tanto suscitar suas estranhezas, quanto concorrer para uma estetização e

“espetacularização das cidades” cujo processo é indissociável das novas estratégias de

marketing mundial157. A obra de Pierre Verger não se encontraria hoje nesse impasse,

instrumentalizada para a propaganda preservacionista, numa visão positivista tanto da

etnografia quanto da fotografia?

Historicamente temos dado ênfase ao caráter de espelhamento e semelhança das

imagens fotográficas em relação àquilo que representam158. Nossa análise intenta diminuir o

valor de autenticidade e reprodução acurada do real para externar os procedimentos

compositivos que estruturam a síntese mágica do dispositivo cenográfico. O propagado “efeito

de real” da imagem tecnicamente reprodutível faz-se acompanhar de um efeito de

desrealização, que nos impele a perguntar, constrangidos, mais uma vez, sobre o que fez, ou

faz, olharmos e sermos surpreendidos mais pelo efeito de realidade do que pela

desusbstancialização da mesma através da cenografia fotográfica. Esse processo de furto, de

elisão de características que “constituem” a realidade poderia ser resumida como a supressão de

algumas das suas dimensões, a paralisia, a perda do odor e de sua temperatura. A constatação

das bases técnicas também nos trairia a presença humana sempre entendida como subsumida na

aparência mecânica e objetiva. E até o seu contrário, isto é, um desnudamento do aparelho

157 JACQUES, Paola Berenstein. Prefácio. In: JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das cidades. Trad. Rejane

Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005, p.47. 158 O artigo do prof. Renato da Silveira traz uma aboradagem crítica dos conceitos mais importantes do historiador

da arte Pierre Francastel. Embora, tenha chegado tardiamente em nossas mãos, foi de fundamental importância, pois indicava a proximidade de algumas de nossas análises com a crítica da pintura do ensaísta francês, principalmente no que se refere à autonomia da imagem, pois “o signo plástico é diferente do signo verbal e exige apreciação específica”; a relação com a técnica, já que “a arte nunca está em contradição com a técnica, uma não é capaz de criar sem a outra”; e finalmente por recusar a idéia de representação como espelhamento e entendê-la como um processo entre “o mundo real, o percebido e o imaginário”. SILVEIRA, Renato da. A ordem visual: uma introdução à teoria da imagem de Pierre Francastel. In: VALVERDE, Monclar (org). As formas do sentido: estudos em Estética da Comunicação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 123-147.

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fotográfico quanto ao seu modo de “produção do real” imagético. No primeiro caso, a escolha

do local, a tomada de perspectiva frente ao objeto (uma rua, uma fachada, transeuntes), a

relação primeiro plano e fundo etc. Quanto à máquina fotográfica, Flusser159 alude à

compreensão de que ela de início já contém uma programação específica que determinaria seu

funcionamento quanto à captação do “evento” (conjunto de lentes, absorção de luz, velocidade)

que deverá ser admitida, cabendo ao usuário simplesmente manipulá-la. Dependendo de sua

habilidade técnica, o operador da máquina se limitaria a explorar os determinantes funcionais

do aparelho. Ao nos depararmos com uma bela foto de rua, um cruzamento movimentado de

uma grande cidade, não devemos esquecer que o que vemos não se reduz ao que o fotógrafo

viu, mas o que ele pode ver através de uma máquina que por sua vez já contém em si um

processo óptico pré-programado. Por fim, o renquadramento e escolha de tons que

caracterizaria a revelação e a escolha da prova final, sem esquecermos os sofisticados, mas

banalizados, atuais programas de pós-produção digital. O desafio será, mantermos a crítica à

fotografia, denunciando seu caráter construtivo, conservando sua corrosividade teórica de tentar

duplicar aquilo que por definição é irreprodutível num jogo de perdas e ganhos. A

sobrevivência mesma da fotografia como documento de vital importância para a história do

urbanismo dependeria dessa redefinição do seu caráter documental. E é essa visada teórica,

mais que sua historiografia ou estética, que insta o pensamento contemporâneo. Conduzirmos

essa potencialidade para o campo do urbanismo nos abriria insuspeitas vias disciplinares ainda

não percorridas.

Se nossas considerações sobre o álbum-fotográfico e seu autor foram pertinentes para o

que chamamos de primeira cena vergeana, analisada enquanto bom uso dos conceitos de sujeito

e obra, cidade e imagem, essas distinções parecem ceder frente aos múltiplos aspectos

observados pelas redefinições deleuzeanas sobre o livro que corresponderiam ao que 159 FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Tradução do autor.

Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 21, 28.

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chamamos de segunda cena vergeana. Em “Introdução: Rizoma”160, Deleuze e Guattari alertam

que, ao atribuirmos objeto e sujeito ao livro, perderíamos as possibilidades conectivas desse

meio, ignorando as “linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades ” assim

como “linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação”. Insistir na figura

do sujeito-autor e de sua presença transcendente e obsessiva sobre a obra, poderia negligenciar

sobretudo a “exterioridade das correlações”, pois um livro antes de ser um dentro, é um corpo

exposto, antes de deter um sentido escondido sobre as entranhas, é um campo de atuação de

forças que produzem cartografias, “ regiões ainda por vir ” no lugar de sentidos. Compreende-

se, portanto, que um livro não pode ter uma identidade que se repetiria no continuum histórico,

da mesma maneira que uma interpretação que a revelasse. Os seus limites deixam de ser

tomados como fechamentos, possibilitam reconexões e aberturas de configurações,

superposições, segmentaridades ou zonas de indiscernibilidade. Aquilo que o territorializa

(território-identidade) é mesmo o que possibilita sua desterritorialização (todas as

interpretações, sem se perguntarem se estão fugindo ou não de uma identidade perdida). A sua

apresentação, seu acabamento já é seu início, potência perpassada por forças quando da sua

feitura. Indistinção absoluta entre o que “um livro fala e a maneira de que é feito”, pura

exterioridade. Como nos lembra Deleuze e Guatarri, um livro é “uma pequena máquina”

implicando numa relação com o fora, “existe apenas pelo fora e no fora”. A metáfora da

máquina utilizada, que a princípio pode soar estranha, justifica-se, pois os autores querem

imaginar acontecimentos sem sujeitos ou essências, e mais o caráter produtivo do que

representativo. Menos significado, mais espaços de ação, pois “quando se escreve, é saber com

que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar”.

Logo, é nessa exterioridade, nas conexões que se formatam os significados e as novas zonas de

atuação medidas quanto à qualidade dessas conexões pelas forças que aí operam. 160 DELEUZE, Gilles, FÉLIX, Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra e

Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.11-13.

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Em nossos termos, as imagens do livro de fotografias se confundiriam com a

cenografia, que por sua vez é a cidade entregue ao devir de sua interpretação, enquanto

historicidade efetivada, não tanto pela intensidade das forças que a reconstituirão, mas pelo seu

impacto aos que lhe são coetâneos. O contrário, abandoná-la (a cenografia visual) ao canto

mavioso da sereia-memória, é perpetuar o mesmo em sua repetição infernal. (Essa é a estratégia

do espetáculo e sua reprodução técnica denunciada por Debord e Benjamin).

A teoria da história benjaminiana, de inspiração nietzschiana e surrealista, aponta que é

ao presente que reivindicamos as imagens do passado. No presente reelaboramos o passado

reincidentemente, ele nos pertence enquanto imagem para o futuro com a qual exorcisamos a

tirania doce da nostalgia. Assim, um livro nunca seria um ensimesmamento, o erro de

afirmarmos a cidade que ele contém e nos debruçarmos nos arroubos interpretativos, mas, a sua

exterioridade, compreendida pela sua historicidade: quais os perigos que ameaçam o ou os

eventos que possibilitaram as cenas? Qual a força de sedução dessa situação de perigo para os

que a vivem?

Se em Benjamin161, a imagem que podemos ter do passado surgirá apenas como um

clarão para no instante seguinte desaparecer, é na instantaneidade do presente que o jogo se

fará. O continuum histórico trocado pela fulguração instantânea que nega uma verdade imóvel à

espera do historiador que a recolha. O passado não está em nenhum lugar além, nem habita

paragens temporalmente distantes, ele se presentifica. É no presente que se deve reconhecê-lo

como tal, na medida em que se descobre visado por ele. Em sua imediaticidade, o clarão que o

anuncia nos lembra um flash fotográfico que preconiza a impressão de uma imagem no filme

virgem.

A teoria da história benjaminiana suspeita radical das continuidades, atribui ao presente

a tarefa de travar uma luta com o passado que não cessa. A cronologia explodida pelo

161 BENJAMIM, Walter. Sur le concept d'histoire. In: _____. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991, p. 432-443.

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acontecimento − instante de reconhecimento pela imagem do passado – só admite a

continuidade das perdas sucessivas daqueles que agora exigem a redenção. Esse engajamento e

crítica nem sempre estão presentes quando pensamos o urbanismo e a cidade historicamente.

Nelas as imagens que herdamos têm um solo comum a todos e ininterruptamente se estende em

cronologias e continuidades.

Benjamin, talvez, não estivesse imbuído apenas da intuição histórica surrealista, quando

cunhou o enigmático tomo V, de seu Sur le concept d’histoire. Convertido ao marxismo, devia

ter em mãos o famoso texto de Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Citando Hegel, Marx,

lança mão de uma metáfora teatral para definir a história: “Hegel observa em uma de suas obras

que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por

assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda

como farsa”. Para Marx, os homens são oprimidos pela tradição das “gerações mortas” e ao

tentarem criar algo novo, sucumbem aos “espíritos do passado”, dando-lhe “os nomes, os gritos

de guerra e as roupagens” de outrora162.

No exposé de 1939, Paris, capitale Du XIX° siècle163, redigido em francês, Benjamin

alerta, reiterando o raciocínio marxiano, que “As novas formas de vida e as novas criações,

com base econômica e técnica que nós devemos ao último século, entram no universo de uma

fantasmagoria”. Assim como Napoleão, não entendeu a natureza funcional do novo estado

burguês, os arquitetos também não compreenderam a natureza funcional do ferro, senão

retomando velhos usos e significações, em ambos os casos criando fantasmagorias164.

Daí as duas cenas vergeanas indicando dois estágios de seu dispositivo cenográfico. O

primeiro, sob o signo da tragédia, Verger, junto ao grupo baiano, elabora sua obra dedicada ao

162 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos

escolhidos. José Arthur Giannotti (org.). Trad: José Carlos Bruni... [et al.]. São Paulo: Nova Cultural, 1987-1988, p. 7.

163 BENJAMIM, Walter. Paris, capitale Du XIX° siècle. In: _____. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991, p. 375. 164 Idem, p. 377.

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estilo de vida soteropolitano. Sobre eles pairavam o desaparecimento da vida urbana e da

arquitetura que tanto amavam. O segundo, a sobrevida de sua obra, ainda ligada aos amigos,

sobretudo Amado, sob o signo da farsa, aos auspícios do espetáculo e seu tempo morto. À

revelia, a maior parte da recepção e crítica contemporâneas do seu trabalho o tomam como

fantasmagorias, isto é, recusam a emergência do novo, e interpretam o segundo estágio aos

moldes do primeiro.

No Nietzsche, la généalogie, l’histoire, texto elucidativo de sua compreensão da

história, Foucault165 defende que a genealogia não se opõe ao que é histórico mas ao

metahistórico e às teleologias. Nem permanências, nem linearidades. Ponto de fuga das

finalidades em busca das singularidades, evitando o traço que se arrasta de uma evolução,

propondo em seu lugar “Diferentes cenas na qual encenaram papéis diferentes” ou mesmo as

lacunas, o momento que não teve lugar. Nunca a origem. Se entendemos o presente como fim,

que já estava na origem, é porque esquecemos a história como devir e adotamos o destino em

seu lugar. Foucault detecta uma recusa nietzschiana, que também acalenta, em relação ao

desejo de pesquisar a origem das coisas. Pesquisa empenhada em procurar “a essência exata

das coisas, [...] anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo”. Acredita que a

genealogia trabalharia em sentido inverso do “tirar todas as máscaras” para desvelar a

identidade primeira, “essência exata da coisa”. Contrário ao efeito metafísico, a genealogia

apreende que por trás das coisas tudo é diferente do “segredo essencial e sem data, mas o

segredo que elas estão sem essência”. O que nomeamos de essência foi constituído,

acidentalmente, ao acaso, “a apartir de figuras lhe eram estranhas”.

O genealogista historiador sabe que no começo, longe de encontrarmos a pureza

essencial das coisas, ainda preservada da sua origem, encontraremos discórdia e surpresa.

Vemos, com ele, que nosso presente é a emergência de práticas e significados novos, não a sua 165 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: _____. Dits et Ecrits I, 1954-1975. Paris:

Gallimard, 2001, p. 1004-1024.

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repetição modorrenta. Como não possuem “em si significação essencial”, serão recolocadas

sempre “num outro jogo”, submetidos a um outro movimento e a outras regras, tornando-as

visíveis “como acontecimentos no teatro de proceduras”

Ao aplicarmos as metáforas teatrais marxistas aos fragmentos nietzschianos do texto de

Foucault, que se alimenta de uma linguagem do campo teatral (inopinado encontro entre Marx

e Nietzsche), diríamos que a tragicomédia da origem, com a perfeição que antecede a queda

(verdade originária, erro que não se altera) seria seguida pela emergência da farsa: a máscara

que nenhum rosto encobre.

A história foucaultiana é pensada como narração daquilo que não persevera no mesmo,

lugar movente do dessemelhante num teatro de superfícies. Onde o passado quer mostrar seu

rosto resultante do desenho perfeito de sua evolução, continuidade e cronologia, desafia com a

proliferação dos erros e desvios, inversões, que gargalham sob a máscara.

Mais uma vez, abordando a dupla divisão que nos propusemos fazer em torno da obra

de Verger, não poderíamos analisá-la sem os pressupostos de origem ou a essencialização tão

em voga da cidade provinciana? Não seria mais interessante acompanhá-la nos seus desvios e

acidentes? Denunciar as fantasmagorias e sugerir a emergência de outras? Das vicissitudes da

chegada do fotógrafo e sua aventura inicial, com suas continuidades, sobretudo os cortes

históricos formadores de sua obra, às novas dramaturgias a que tem se submetido.

Tomar cidade e obra fotográfica de Verger como um corpo, que na definição

foucaultiana é “superfície de inscrição dos acontecimentos”, cabendo ao trabalho analítico

“mostrar o corpo todo marcado de história e a história arruinando o corpo” faz-se

imprescindível.

* * *

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Em 1976, organizou-se no “Cemitério Sucupira”, sub-solo da Praça Tomé de Souza,

uma exposição das imagens soteropolitanas de Verger, e observou-se que “todas as fotos

estavam marcadas pelas digitais dos visitantes”166. A fisicalidade do toque, ou mesmo a dança

dos corpos ante ou entre as imagens de uma exposição, se completava nessa geografia urbana

mediatizada pela técnica em que os dedos querem furar a superfície da imagem. Essa

espectativa frustrada pela consistência do corpo-corpo e do corpo-imagem indicam uma

cartografia desconhecida. O urbano torna-se informe, escapa das conceitualizações que o

definiam, rompe formas provocando “o dilaceramento de um tecido”. A forma monstruosa,

reconhecida como “possibilidade de metamorfose”, forma aberta, “ambiguidade terrível”167.

Urbano-informe, urbano-monstro. Rito de passagem, a exposição é um dos vasos comunicantes

entre os dois momentos dos trabalhos de Verger, nos conduzindo para o momento espetacular.

Não teríamos como ainda manter a separação entre a cidade vivenciada e a dos livros (cidade

real/cidade representada) amalgamados por um único e mesmo espaço. Da visão direta das

situações, ilhadas num tempo de baixa reprodutibilidade técnica, emergiríamos numa geografia

imagética indiscernível entre o que os olhos vêem sem ou com mediações técnicas. As imagens

reprodutíveis modificam a nossa percepção do espaço, visto agora de outra maneira, sem

estarmos nele imersos, pelo menos como antes.

Uma imagem reprodutível (cinema/fotografia) apesar da sua iconicidade, deveria ser

tomada por ela mesma, sem a romântica nostalgia do mundo real perdido no espaço

cenográfico da representação. O que se quer é a reconstituição do mundo ou mesmo uma re-

(a)presentação de forma acurada ou verdadeira, recusando-se às imagens reprodutíveis suas

características (o que já é muito) verossimilhantes em relação ao que chamamos real. Roland

Barthes (“efeito de real”), Michel Foucault (“similitude”/“semelhança”) e antes deles Pierre 166 NOBREGA Cida; ECHEVERRIA Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p.

261. 167 NEGRI, Antonio. De volta: abecedário biopolítico. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 71,

133.

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Klossowski (“paródia, simulacro, fábula”), ressaltando as particularidades, transitam ao redor

dessa idéia em seus respectivas trabalhos168. Evitando os excessos pós-estruturalistas que

preconizavam uma “textologia”, ou mesmo, uma “imagetologia” derivada de um apagamento

do mundo (“tudo é texto!”/ “tudo é imagem!”), como se além de textos e imagens não houvesse

absolutamente nada, acreditamos que “texto é texto, imagem é imagem” e estes não podem ser

compreendidos sem o conjunto das práticas a que estão submetidos. Assim uma imagem não

deverá ter um lugar de “secundidade” frente a um real “verdadeiro”, mas tomada em sua

instância primeira de aparecimento, quase como se nos fosse possível esquecer que há algo por

trás dela, ou, ao menos, que o que havia estaria perdido para sempre. Isso quer dizer que as

cidades-imagéticas cenografadas pelos procedimentos técnicos devem ser fruídas enquanto

aparições visuais plenas, o que nos remeteria à própria “concretude” dessas imagens: cores,

formas, cenas, luz etc; o discurso teórico (inclusive este) não deverá dizer a última palavra

sobre essas imagens. Uma teoria das imagens reprodutíveis deve assumir seu caráter de

provisoriedade e arbitrariedade e um jogo de sedução mútuo entre palavra e imagem, evitando

criar taxionomias, glossários técnicos, gramáticas visuais urbanas, dissecações etc. A adoção do

dispositivo cenográfico para analisar as imagens fotográficas, nesse sentido, é um investimento

de caráter teórico que, visando criticar e ampliar as análises atuais, evita assumir-se como

discurso ou método verdadeiro e único; as imagens não deverão ser decifradas. Percebemos

que há um jogo trágico entre as aparências (superfícies), seja entre o real e as imagens-

reprodutíveis, ou destas entre si, como uma astúcia tácita em que só podemos responder à

última jogada que nos remeterá ao próximo lance. Longe de estabelecer as dualidades cidade-

real versus cidade-imagética, pousar no jogo das aparências e, talvez, desviarmo-nos para o

jogo entre as próprias imagens-reprodutíveis de cidade (de uma mesma época, de épocas

168 BARTHES, Roland. L'effet de réel. In: ___. Oeuvres Complètes. Tome III. 19768-1971. Paris: Seuil, 2002, p.

25-32; FOUCAULT, Michel. Ceci n’est pas une pipe. In: ____. Dits et Ecrits I, 1954-1975. Paris: Galimard, 2001, p. 663-678; KLOSSOWSKI, Pierre. Nietszche, o politeísmo e a paródia. Trad. Eloisa de Araújo Ribeiro. 34 Letras Fraude, Rio de Janeiro n°5/6, p. 146-163, set 1989.

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diferentes, de cidades diversas, de constituições técnicas diferentes etc.). São dois momentos

diferentes que instam abordagens teóricas diferentes, por isso a ruptura entre as duas cenas

vergeanas; a proliferação das imagens contemporâneas não poderá continuar sob as

intempéries das análises iconoclastas de fundamentação platônica e puritana. A condenação

das imagens contemporâneas em seu processo de metástase já foi realizada num processo que

se assemelha a uma inquisição teórica (adorniana/debordiana/baudrillardiana). Buscam-se

outras análises que retomem o gosto barroco pela proliferação das imagens (horror vacui) e

sem receio do caráter vertiginoso dos seus efeitos, compreendendo que as inúmeras formas de

produção e manipulação das imagens-urbanas, inclusive em seus formatos numéricos, sejam

holliwoodianos, publicitários, políticos, banais, devam escapar do mito da sociedade totalitária

(espetacular/simulacro) derivada do puritanismo imagético que prega a satanização do aparente

(superfícies imagéticas). As formas da aparência urbana reprodutível (agora sob o impacto do

digital) se transformaram também em nossa própria paisagem urbana (num quiasma), na

medida em que esta se torna também reprodutível, confundindo-nos, e anunciando o que nos

poderá advir, quem sabe a total indistinção entre elas169. Parodiando o estadista francês

Clemenceau, diríamos que as imagens são importantes demais para serem deixadas nas mãos

dos cineastas, fotógrafos e produtores de imagens digitais.

169 DRUMMOND, Washington. Narrativas Urbanas I: a dramaticidade da luz. In: SAMPAIO, Alan; OLIVEIRA,

Valter. Arte e Cidade. Salvador: Eduneb, 2006, p. 21-33.

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3. Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952):

análise do dispositivo cenográfico

Utilizando a teoria teatral da cenografia procuraremos analisar o dispositivo

cenográfico nos três procedimentos que estruturam visualmente a cidade de Salvador nos livros

Centro Histórico de Salvador e Retratos da Bahia, quando Verger elabora uma sofisticada

apresentação da cidade, inspirada no surrealismo. Ao lado de Carybé, Amado e Caymmi e ao

avesso do gosto oficial, critica o incipiente processo de modernização.

O surrealismo visual afirmou-se com formas rebuscadas, uma espécie de maneirismo

sob os cuidados do inconsciente, cujo representante mais famoso é o espanhol Salvador Dalí.

Na literatura, imagens fortes e desconexas aludem ao onírico e maravilhoso. Congelou-se essa

interpretação, apelando ao óbvio, classificando o movimento entre o didatismo e a repetição.

Ensaístas como Clifford, Sontag e sobretudo Benjamin, souberam nos mostrar, através de

conexões ainda não exploradas, uma face mais elaborada do movimento apoiada na deriva, na

imagem fotográfica, na iluminação profana, respectivamente. Para os dois últimos os

surrealistas definem a maneira de descrevermos as metrópoles contemporâneas. Particularmente, é o

trabalho de Benjamin, ao estudar a literatura surrealista dos anos 20, que indica as principais

características da constituição da nossa principal ferramenta de análise, o dispositivo

cenográfico. Se nele, em relação à obra de Verger, a forma estética não se assemelha ao

surrealismo clássico, antes próxima do neo-realismo italiano170, as idéias centrais que

determinam a apreensão da cidade são comuns aos dois momentos em que são analisados: o

deambular pela cidade, o fascínio pela vida urbana que se extingue, sensibilidade às ruínas

urbanas, a iluminação antropológica, objetos cotidianos em desuso, prostitutas, espaços

170 Observação feita pelo professor Pasqualino Romano Magnavita durante a qualificação da tese. Ao qual

agradeço o comentário.

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112

arquiteturais ameaçados de desaparição e um encantamento que emana desses lugares. Como

moldura as ruas, que os surrealistas idolatram como teatro de encontros e acontecimentos

imprevistos (hasard objetif) e pelo erotismo que por elas circulam.

* * *

No conjunto, os dois álbuns (RB/CHS) nos revelam o primeiro procedimento acionado

por Verger: o conluio visual entre a herança colonial e os primeiros arroubos modernos,

insinuando, sem nunca corromper, transformações na configuração colonial ainda existente, ou,

pelo menos, aquela que se apresenta organicamente colada a uma representação canônica do

passado soteropolitano. Passado que será reinterpretado visualmente por Verger ao introduzir

como vetor de sua constituição a experiência dos negros na cidade.

Nos capítulos anteriores afirmamos que passado sempre está em perigo para um

historiador benjaminiano171. As linhas de combate, os arranjos, as fugas, perdas e vitórias que

garantem no presente um passado, o estigmatizam como verdade, turvando as águas que ainda

guardam as lembranças da luta e da rapina. Deveríamos desconfiar do que tomamos como

passado, repetido nos monumentos, nos livros, na memória. Benjamin nos aponta o caráter

construtivo da memória, mais que isso, o combate sem fim que aí se dá. Tudo é movediço, e o

que tomamos como rosto pode ressurgir como máscara mortuária.

Por que a memória como verdade do já acontecido e não como butim dos vencedores?

Memória e fotografia nascem de jogos de morte. A primeira, triunfante, se espoja sobre os

despojos dos vencidos, os que morreram e não podem legar seu passado aos vivos; a segunda,

eterniza uma cena do real, que é sua lembrança, ao tempo de seu rito fúnebre. Persevera sendo

o que foi, sem nunca assim ter sido. A rigidez cadavérica das imagens fotográficas é

assustadora. O que foi rosto, o que é máscara mortuária?

171 BENJAMIN, Walter. Sur le concept d’histoire. In: ____. Ecrits français. Paris: Gallimard. 1991, p. 432-455.

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No segundo procedimento, Verger fotografa a natureza ainda exuberante na Salvador

dos anos 40. A arborização, a geografia acidentada e a Baía de Todos os Santos são espaços

cênicos da performance corporal da cidade e dos seus personagens. Vemos um só corpo

orgânico em que a idéia de moldura desaparece para dar lugar a uma concepção moderna de

cenografia.

A história da encenação teatral relata as importantes configurações pela quais

passou a elaboração do espaço cênico de mero décor às funções de expressividade, da

acomodação textual ao caráter intervencionista. Ao avaliar as inovações cenográficas de Craig,

Roubine assinala as complexas “possibilidades expressivas do espaço cênico” desenvolvidas

pelo encenador ao “ampliar a profundidade cênica, de conferir ao espaço cênico um poder de

sugestão que ele nunca havia conhecido”172. Cada vez mais “em oposição ao cenário

tradicional, uma segunda direção, aquele do ‘cenário’ construído, vai ocupar um lugar [...]. Um

cenário que joga com o autor tende a substituir um cenário-quadro”173.

De onde vemos, daquilo que o olho de Verger viu pela objetiva e o aparelho fotográfico

registrou, o meio natural não é só paisagem, assume seu lugar expressivo nas cenas fixadas.

Árvores abrigam transeuntes e embelezam vias urbanas, circundam praças como um grande

útero enfolhado de onde se arriscam transeuntes displicentes, suaves sobre a sombra-proteção

na RB Praça Cairu (fig. 08). As exposições surrealistas cenografaram as ruas também como

ambientes uterinos e disformes, habitados por manequins femininos. A um só tempo

acolhimento e estranheza. A Salvador de Verger é o útero materno de águas, vegetações e

casarios por onde se desloca o corpo negro erotizado, desnudo, esculpido em músculos

precisos, contornos arredondados. Bocas, peitoril, coxas, nádegas. No trabalho, alongado,

descansando nas ruas, na festa e no transe. A Nadja que conduz as deambulações pela cidade 172 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1998. p. 89 173 VEINSTEIN, André et COUCOSH Victor. Le lieu théâtral. In: COUTY, Daniel; REY, Alain (direction). Le

théâtre. Larousse, 2003, p. 208.

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tropical tem a tez negra e algumas vezes incorpora num corpo masculino. Clima sensualizado

muito recentemente explorado pela crítica. Amado, que conviveu com os surrealistas em Paris,

durante o exílio, utiliza do mesmo artifício para conhecer a cidade. Na abertura do livro Bahia

de todos os santos174, convida a sua amada, uma Nadja imaginária, (sua esposa Zélia Guattai

que era paulista?), a se perder pelos mistérios e misérias soteropolitanos acuados pela feiúra

moderna:

E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais

agitada, não tenhas, môça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A

Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco,

mas se entristecerão também ante a miséria que sobra nestas ruas coloniais onde

começam a subir, magros e feios, os arranha-céus modernos.

Os manequins não passaram despercebidos às objetivas e foram incorporados às

fotografias. Como Atget (Magasin de vêtements pour hommes) e os surrealistas, Verger sente-

se atraído pela fantasmagoria da forma humana congelada que nos desafia. Espalhados pelas

cidades, ostentam um mundo entre o onirismo e as mercadorias que agenciam. Em RB 241 (fig.

1) (sem nome) três manequins parecem trocar intimidades num clima de mistério, expostos

junto ao parapeito de uma janela. São senhores brancos, de certa elegância sóbria, mas a camisa

incompleta de um deles (rota?) frente ao péssimo estado do prédio onde se encontram, denota

uma crítica à decadência da vida das elites soteropolitanas.

Em RB Terreiro de Jesus (fig. 9), mãos no bolso, transeuntes levam chapéus de vários

tipos, ou mesmo malas sobre as cabeças. Vão preenchendo o lado sombreado e deixando a

descoberto a inclemência do sol sobre a praça em reformas. Nos dois casos, as linhas retas e as

superfícies lisas dos casarões da arquitetura colonial são tocadas, maculadas pela não

uniformidade da vegetação eriçada. Hirsuta, encravada no vazio urbano da praça, a vegetação é

áspera aos olhos como o é o Objet: déjeuner en fourrure de Meret Oppenheim, exposto na

174 AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos. São Paulo: Martins, 1967, p. 17.

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exibição de objetos surrealistas de 1936 em Paris. A fotografia dessa obra, tirada por Dora

Maar no mesmo ano, coloca o objeto sobre um guardanapo propondo uma disjunção entre os

pelos e as formas quadradas, retilíneas175. Processa-se uma desfamiliarização do objeto-xícara

pelo informe. Em RB Cidade Baixa e Cidade Alta (fig. 10) afirma-se o mesmo processo de

estranhamento, em que os casarios são invadidos pela vegetação, que brota sem controle,

compondo um informe urbano, que rompe a visão ordenada e funcional da natureza na cidade.

Distante dos cartesianos jardins franceses geometrizados, a irrupção do informe não repete as

metáforas do organismo que marcam o urbanismo. Georges Bataille176, participante ativo da

empreitada surrealista, em seu dicionário crítico, escreve que “informe não é somente um

adjetivo, tendo tal sentido, mas um termo servindo para desclassificar, exigindo geralmente que

cada coisa tenha sua forma. O que ele designa não tem seus direitos em nenhum sentido e se

faz esmagar em todos os lugares como uma aranha ou uma minhoca”177. Verger antevia essa

última vitalidade verde no espaço da cidade, em que sua pujança preconiza o lento extermínio

finalizado nas praças lisas e inóspitas da Salvador contemporânea. O informe procurará outras

vias para nos surpreender.

As imagens aquáticas, marítimas ou fluviais do RB podem ser divididas em cenas de cultos

religiosos, afros e católicos, cenas de trabalho, cenas de festa. Águas que alimentam a cidade

muito além das idas e vindas dos saveiros com os produtos do Recôncavo, como na série RB

Porto dos Saveiros (fig. 11), mas também com as graças dos santos católicos, a felicidade dos

orixás, ou os peixes em cuja labuta se misturam ao suor dos corpos. É uma extensão da cidade,

povoada por homens e deuses, zona informe que estende o conceito de cidade e realidade. Seja

no mar da RB Galeota de Nosso Senhor dos Navegantes (fig. 12) em que sombras amalgamam 175 FER, Brion. Surrealismo, mito e psicanálise. In: FER, Brion; BATCHELOR, David; WOOD, Paul. Realismo,

racionalismo, surrealismo. Trad. Cristina Fino. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 175-176. 176 Georges Bataille, representa o lado obscuro do surrealismo. Sempre rejeitado com veemência por Breton que

advogava um surrealismo solar. Entre livros de ensaios e romances publicou Histoire de l’oeil e La part maudit.

177 BATAILLE, Georges. Le dictionnaire critique. L’Ecarlate, 1993, p. 33

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os marinheiros negros com a imagem barroca no comando da embarcação em direção à areia

tomada pelos fiéis que desaparece deixando um contínuo onde todos parecem estar

mergulhados nas águas; ou fotos como RB Presente nas águas da Lagoa do Abaeté (fig. 13)

em que águas turvas da lagoa recebem presentes e reverberam, meios naturais de transmissão, a

fé do povo do candomblé; na RB Pesca do Xaréu (fig. 14) vemos os pescadores, a medida

humana na desmedida do oceano ou do firmamento, nuvens e ondas alvas lambem seus corpos

suados. Por último, a série RB Dique de Tororó (fig. 15) evocando a convivência das práticas

de limpeza, transporte, subsistência dispostos na cotidianidade banal.

A zona informe entre terra e água, homens e deuses, propicia as ações, sendo a fusão

dos ambientes que interagem. Replicam-se, tornando-se indistintas as linhas divisórias entre as

expressividades paisagísticas e de seus atores. O informe, onde o sincrético se anula para lhe

dar lugar, resulta como aquilo que não tem terreno ou conceito definido, o inclassificável que

assusta as disciplinas e que não estabelece híbridos ou misturas. Movente território: zonas de

indiscernibilidade nunca tratam de combinação de formas, mas de produzirem “um fato

comum”178.

O terceiro procedimento, é a invenção do petit monde. Encravado como um cristal no

centro da cidade, é abrigo e expressão que se coaduna às ações exploradoras dos personagens

neste cenário, constituindo-se como um campo de atuações ao largo das grandes linhas de

modificações gerais e globalizadas. As deambulações por esse sítio, por parte de Verger e seus

personagens, é a prática de exploração e adensamento da experiência das ruas. Alimenta-a a

expectativa que o surrealismo nos legou de deslocarmos-nos pela cidade em busca de encontros

fortuitos, enlaces amorosos, epifanias. O pequeno mundo, topografia que se confunde com o

Centro Histórico, propicia a iluminação profana, centrada na visada antropológica dos

acontecimentos urbanos, inclusive aqueles do universo religioso. Único encantamento possível 178 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica da sensação. Trad. Roberto Machado (coordenador). Rio de Janeiro:

Zahar, 2007, p. 29.

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para quem, como Verger, se dizia cético, incapaz para o transe, porque francês. O que não o

impossibilitou à iniciação nos cultos afros nem à dedicação e entrega aos preceitos exigidos.

As imagens do pequeno mundo impõem o olhar que recompõe harmonias em

dissonâncias. Ou tenta, ao menos. Tudo o que poderia representar o moderno não se afirma

como signo norteador do caráter urbano. Salvador nas obras vergeanas é um conjunto

imagético de experiências urbanas que reforçam formas e práticas culturais enraizadas,

indiferentes aos fluxos modernos associados às elites brancas. As tensões que delineiam a nova

configuração modernizante são amenizadas no sentido de, se não desaparecerem das

fotografias, ao menos serem citadas pelas bordas, em aparições controladas, sem centralidade,

pois o foco da objetiva sempre recorta, enquadra, a cidade provinciana, enquanto arquitetura

colonial apropriada pelo transe da tradição cultural e religiosa de origem negra.

Uma boutade vergeana confirma nossa perspectiva. Segundo Cida Nobrega e Regina

Echeverria, biógrafas do francês, este só se apercebera da presença de brancos na cidade em

1951, quando da sua colaboração, via UNESCO, com o antropólogo Thales de Azevedo, de

uma pesquisa sobre as elites brancas soteropolitanas. Foi nessa ocasião “que ele passou a

frequentar os bairros da elite de Salvador e se deu conta de que a cidade abrigava também uma

população de brancos”179. Apenas cinco anos após a chegada do fotógrafo, ele percebera que

além da cidade negra (ou negro-mestiça) havia uma outra cidade, formada por habitantes

brancos e, tratando-se dos bairros elitizados, com uma proeminente modernização urbana. Em

entrevista a Maria José Quadros, Verger declarou: “Quando cheguei à Bahia, em 1946, nem

notei que aqui vivia também gente branca. Só descobri que tinha branco tempos depois, quando

tive de ilustrar um livro de um professor da Universidade Federal da Bahia, sobre elites de cor

179 A boutade vergeana apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto.

Salvador: Currupio, 2002, p. 188.

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da cidade, publicada pela Unesco”180. Esse olhar seletivo vai fatiar a cidade, oriunda de suas

peregrinações aos sítios que mais lhe agradavam e das situações do espaço público tornadas

imagens fotográficas. Os cenários de sua predileção serão os bairros humildes, as extremidades

da cidade, as vilas de pescadores, ou o antigo centro, antes habitado pelas elites, e hoje

relegados aos pobres, os quais viam vantagem em morar próximos ao vigor do comércio e das

docas. Particularmente, o livro Centro Histórico de Salvador será a organização e apresentação

do “petit monde”, com seus ambientes e personagens formando um território livre, núcleo de

uma utopia urbana fechada sobre si, que desdenha jubilosamente do seu destino. Em texto

introdutório, escreve Verger:

A área denominada Centro Histórico de Salvador compreende a região da cidade

situada ao norte da praça Municipal e que se estende até a Igreja de Santo Antônio

além das Portas do Carmo. A parte mas falada desta área é o Pelourinho [...].

Tudo passa pelo Pelourinho. As festas cívicas e religiosas, patrióticas como a do 2

de julho onde desfilam o caboclo e a cabocla, símbolos do Brasil livre [...]. O

carnaval- os principais blocos, batucadas e afoxés.181

A. Métraux, antropólogo francês, amigo de Verger, relatou, sobre seu último passeio

com o amigo pela cidade, cruzando o Pelourinho em direção à Cidade Baixa:

Verger e eu vagabundamos pela Cidade Baixa. Saudações e beija-mãos das

vendedoras de acarajé. Ele conhece um número inacreditável de pobres diabos

que moram no porto: estivadores, engraxates, marinheiros e outros sem ocupação

bem definida. Ele lhes dá dinheiro, diz-lhes brincadeiras, se informa o porque

deles não estarem na cadeia. Muitos destes miseráveis de calças rasgadas

frequentam candomblés e tem mesmo cargos.182

180 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Entrevista de Pierre Verger por Maria José Quadros publicada no jornal O

Globo 16/08/1992 disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=163&Itemid=549>. Acesso em: 12 set. 2008.

181 VERGER, Pierre. Centro Histórico de Salvador. Salvador: Corrupio, 1989. 182 Citação de Metraux: METRAUX, Alfred. Intinéraires I (1935-1953). Paris: Payot, 1978, p.319-320. Apud

NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p. 194.

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O livro CHS é dedicado ao povo pobre que circula pelo Pelourinho e, segundo Verger, a

preservação do centro histórico deve ser creditada a uma parcela ainda mais marginalizada,

pois “o que provavelmente preservou o Pelourinho de ser desfigurado pela invasão dos

edifícios modernos foi o fato dele estar cercado de um lado a outro pelos quarteirões onde

instalaram seu domicílio e o lugar de suas atividades as ‘damas de poucas virtudes’”.

Verger, em CHS ou RB, dedica-se a colecionar cenas do cotidiano soteropolitano

acossado pelas transformações do capital no âmbito do espaço, da cultura e do trabalho. Para o

fotógrafo, “o Pelourinho resiste vitoriosamente à vaga de modernização dos prédios da cidade e

à proliferação dos ‘espigões’ promovida por empresários ávidos de grandes lucros financeiros

construindo edifícios de 10 a 20 andares que caracterizam, infelizmente, a Bahia de hoje”183. A

precária modernização da cidade estará sempre nas extremidades das imagens, é o que sobra, o

que resta, nunca numa posição central que pudesse ameaçar a soberania do cotidiano negro e da

cidade velha e “barroca” retratada.

A peculiaridade da inserção da obra de Pierre Verger, nesse sentido, se alimenta de uma

idéia de fidelidade, por vezes ambígua, mas que margeia sua etnografia e o próprio trabalho

fotográfico, seja em relação às imagens obtidas ou às concepções que alimenta quanto ao modo

de fotografar. Ao quantum de pureza cultural devemos responder a um quantum de fidelidade,

assim o relato etnográfico ou o registro fotográfico devem estar o mais colado possível ao

fenômeno observado. A transposição criativa da cultura iorubá africana, idealização que

esconde/abriga diversos grupos étnicos africanos, para a sua sobrevivência diaspórica no

continente americano, conforma o viver cotidiano baiano e lhe concede o status de vida

original, contraposta aos influxos modernizantes, dos quais o autor francês já fora vítima,

quando resolveu abandonar a cidade de Paris, arriscando-se na fracassada empreitada das

colônias francesas. Ao contrário, a sua experiência anterior na África o leva a admitir Salvador

183 Idem.

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como sua morada definitiva, marcada pela adesão e celebração da cultura iorubá. Como

corresponder etnologicamente à pureza constitutiva dessas práticas humanas que da África aqui

desembocaram?

Num livro de caráter excepcional sobre as relações que Pierre Verger estabelece entre

fotografia e etnografia, Jérôme Souty assinala que, a partir dos anos 40, a obra do francês se

concentra na “problemática da fidelidade à ‘tradição africana’, da resistência e da sobrevivência

cultural dos cultos afro-américanos”. Ora, não é nesse mesmo período que Verger fotografa a

cidade de Salvador, entre 1946 e 1952? Souty ainda nos adverte sobre o fato de que a obra de

Verger pode ser apreendida “como uma arquelogia da memória e da identidade coletiva

iorubá”, nos advertindo que “do destaque da fidelidade ao ‘fidelismo’ para a defesa da pureza é

apenas um passo”184. Nesse mesmo sentido, Leny Silverstein, em crítica ao livro Fluxos e

Refluxos de Verger, publicada no Jornal do Brasil, argumenta que o modelo proposto pelo autor

“parece desligado do tempo e da história”, pois é “muito difícil hoje para um antropólogo

reconhecer que exista uma cultura nagô pura e tradicional, que ela não sofreu influências com o

tempo, que teve uma vitalidade e dinamismo que impedem essa ideologia da pureza”185. A

resposta, em suspenso, se fecha com a tentativa vergeana de elaborar uma etnologia que não se

quer interpretativa, que não se deixa sobrepor por uma teoria. É ainda Souty que nos socorre,

por perceber que o fotógrafo Verger vai progressivamente se aproximando do etnógrafo,

interessado sobremaneira no material empírico, pois “trata-se, para ele, de mostrar pela

imagem, de recolher material bruto”. Ele aproxima duas surpreendentes declarações de Verger,

onde o fazer fotográfico aproxima-se do fazer etnográfico. “Eu não procurei nada de fato, olhei

sem realmente entender; me é muito díficil de definir uma coisa à qual, no fundo, eu jamais

184 SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché a la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve

& Larose, 2007, p. 209. 185SILVERSTEIN, Leny. Os porões da escravidão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 ago. 1987.

Idéias/Documento, p.6-7. Apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002.

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pensei, pois minhas fotos são feitas, sobretudo, sem intenção”. A segunda declaração define a

concepção etnográfica vergeana que se confunde com a sua prática fotográfica:

Eu não tinha caderneta, eu deixava a pessoas me mostrarem o que eles queriam

me mostrar, sem lhes fazer perguntas sobre as quais eles jamais pensaram,

evitando a situação desconfortável que consiste em responder qualquer coisa para

agradar. Minha abordagem se fez com com o estado de espírito do fotográfo que

era, quer dizer, um puro observador que registrava o que se passava diante de seus

olhos. 186

O historiador João Reis, ao comentar o livro Fluxo e Refluxo de Verger, também faz

uma comparação percuciente entre o modus operandi do historiador e do fotógrafo francês,

apontando para as aproximações acima referidas:

Há muito de positivista neste método, mas pensando bem se tratava talvez do

fotografismo do autor. É como se ele entendesse a construção de sua narrativa

como uma colagem de “retratos” documentais que assegurariam a fidelidade e a

isenção do historiador aos fatos. O Verger fotógrafo se incorporou ao Verger

historiador.187

Recusar estrategicamente os traços canônicos de uma cidade é investir contra o passado

reificado em cartões-postais, cartazes, souvenirs, fotografias que assumem o papel de memória

visual, conformação de uma cenografia instituída e perpetrada pelas elites dominantes que se

locupletam no poder. Qual estratégia surda estrutura os ataques e contra-ataques, nessa

guerrilha de um homem só sem nenhuma certeza de sucesso? Alijado dos círculos do poder,

das poderosas redes que se imiscuem por toda sociedade e acumulam vitórias que se

perpetuam, o fotógrafo, munido de sua máquina de olhar e simular/cenografar realidades, se

aventura em propor um cenário particular, que por vezes só ele o vê. Do clic da máquina ao

186 Para a primeira citação “Pierre Verger, etnologue”, Mémoires du siècle, France Culture (8 oct. 1980); para a

segunda Propos de recueillis par M. Anthony. Des plantes et des dieux dans les cultes afro-brésiliens (2001). Apud SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché a la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 2007, p. 25.

187Apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p. 321.

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espanto do aparecimento da imagem na revelação, o fotógrafo acumula pequenas vitórias.

Quem saberá se não espera que um dia elas possam ser repotencializadas em outro combate, em

condições menos adversas? Ocupar o teatro de operações dos embates tácitos e dispersos

substituindo o modelo da guerra pelo da guerrilha.

* * *

Em RB e CHS, Verger nos legou imagens plácidas de Salvador. As diversas camadas

de passado arquitetural se sobrepõem docemente. Igrejas seiscentistas, fortalezas, casarões

reformados, alguns prédios modernos. Grandes planos dos telhados que se somam desde a

Igreja da Conceição até os prédios ainda modernamente imponentes do Comércio, não sem

sobrevoarem o Mercado Modelo, desembocando nos galpões rasos do cais, como na RB Vista

da Cidade-Baixa com o Mercado Modelo e Porto dos Saveiros (fig. 16). Ao desviar levemente

a objetiva, Verger mostra em RB Vista da Cidade-Baixa com o telhado da Igreja da Conceição

da Praia (fig. 17) uma das torres da Igreja da Conceição, em primeiro plano, roçar a murada

que se estende até as proximidades do Forte São Marcelo. Na RB Praça Castro Alves (fig. 18),

meios de transportes, sobrepondo temporalidades, são dispostos lado a lado. Bondes, carros e

carroças em praças modernizadas, abertas, que findam em ruas apertadas e antigas. Como se a

geografia urbana palimpsesta, que guarda temporalidades arquiteturais diversas, fosse propícia

para fazer o mesmo com costumes e meios de transportes. Nela, expostas em CHS Ladeira do

Pelourinho (fig. 19), CHS Ladeira do Pelourinho e Ladeira do Carmo, homens conduzem

animais, arrastam-se por ladeiras ansiando sombras, na persistência de um tempo que se recusa

a evanescer.

Observemos em relação aos apelos publicitários, essa recomposição da paisagem visual

urbana mundial, impelida pela internacionalização das mercadorias e afirmações das grandes

marcas mundiais. Entretanto, se para Julian Stallabrass “durante as décadas que antecederam a

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Segunda Guerra mundial, constata-se que a fotografia focaliza frequentemente o contraste entre

os habitantes, o espaço físico da cidade e o dispositivo comercial invadindo, aos poucos, quem

os transforma”188, a Salvador das cenas vergeanas segue na contramão, como num estado de

suspensão da investida publicitária, predominando mais uma vez uma composição que favoreça

o conjunto arquitetônico colonial e o ambiente cultural da tradição negro-mestiça. Evita-se

enquadrar perspectivas que incidam no dilaceramento visual caótico, de fortes contrastes

provocados pela publicidade urbana, impedindo uma visualidade mais convencional,

circunscrita à leitura dos nomes de rua e reclames do pequeno comércio local. Verger parece

concordar com Stallabrass, acreditando que “passeando, as pessoas lêem a rua, mas o cartaz

publicitário ou os anúncios podem ser sentidos como uma interrupção no fluxo da estruturação

visual e auditiva de suas pecepções, exigindo deles uma trasferência repentina e muitas vezes

involuntária de atenção”189. Surgem, então, em demasia, os reclames populares, seja de

pequenos estabelecimentos comerciais ou mesmo de barracas de feira, em detrimento das

publicidades que correspondam às grandes empresas pertencentes ao capitalismo que se

moderniza, espargindo-se pelos continentes na forma de outdoors e luminosos visualmente

agressivos. Duas fotos RB Fachada de Casa Comercial (fig. 20), da Casa Fortaleza e Casa

Machado, comportam um humor raro nas imagens do fotógrafo expresso pela literalidade do

jogo entre palavra e imagem.

Em Verger nem mesmo um cartão-postal da cidade, como o Elevador Lacerda, tem

lugar garantido nos seus álbuns. Dos dois analisados, RB e CHS, ele só aparece no primeiro,

em duas fotos. Na primeira, no canto direito, na iminência de saltar para fora do

enquadramento, como numa gravura japonesa; na outra, se sobrepõe à cruz que o próprio Cristo

carrega em procissão, reduzido ao tamanho da penitência sagrada, e cedendo a atenção do

188 STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002 189 Idem.

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olhar, à imagem religiosa como em RB Cidade Baixa e Cidade Alta (fig. 17); RB Procissão do

Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção (fig. 21).

As formas do trabalho impostas pela racionalização crescente das formas produtivas

desaparecem em favor de um desdém generalizado. A força de trabalho tematizada nas imagens

de Verger são trabalhadores que cochilam nos bancos, ou carregam coisas, transportando e

apregoando mercadorias em ladeiras, ruas estreitas, praças. Animais e seus condutores também

passeiam entre a insolência e a ignorância frente aos modernos meios de transportes, carros ou

bondes, impondo um ritmo lento ao fluxo citadino. Indicam uma recusa ao trabalho de lógica

fordista, na figura do trabalhador fatigado que dorme em bancos, ou ao reordenamento

funcionalista do espaço e ritmos urbanos. De um lado, apologia de uma contra-ordem/contra-

poder do uso do tempo e da energia, do outro, o total descaso pelas formas aflitivas do trabalho

mesmo que submetidos às redes produtivas. A série de homens cochilando, RB Dorminhocos

(fig. 22), um conjunto de pequenas fotografias de trabalhadores dormindo em pleno trabalho,

na maioria vendedores de frutas e bugigangas, homens e crianças sempre à luz do dia, é

exemplar dessa ironia corporal dos soteropolitanos. Diferem sobremaneira dos adormecidos de

Brassai, vagabundos da Place Denfert-Rochereau ou Boulevard Rochechouard em Paris

(Homem a dormir num banco, Sem-abrigo), nos idos da primeira metade dos anos 30, que

estavam à margem da ordem do trabalho, perdendo a crítica ácida das fotos de Verger.

Hoje, que as questões da biopolítica se arrastam sobre os vestígios conceituais

foucaultianos, seria bom inscrevermos as fotos de Verger numa reflexão avant la lettre. O

corpo negro no dispositivo cenográfico é sempre soberano. Ao contrário de uma biopolítica

que age no esmagamento das energias em favor do funcionamento da máquina estatal ou da

máquina capitalista, as aparições corporais dos seus personagens urbanos estão eletricamente

sensualizados, aproximando bíos e eros. Se formos criteriosos, o dispositivo não postula uma

biopolítica, mas um biopoder. Reconhece que os investimentos de potência sobre o corpo não

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se limitam às redes institucionais de controle, ou mesmo apenas mediada por redes

micropolíticas de assujeitamento ou disciplinarização corporal. Ao mesmo tempo não se

investiria como contra-poder o que lhe determinaria ao campo reativo. É que, partindo de

Verger, entendemos biopoder como constituição positiva do corpo em potência criativa. Antes,

são as redes de poder que reagem ao corpo belo, gozoso e em transe. A vida nunca é reativa,

mas potência que agencia intensidades. As redes de poder são segundas e reagem a esses

agenciamentos que procuram desinvestir. A disposição cenográfica dos corpos em Verger

favorece a tradição como potência criadora de onde emergem as intensidades que se

conformam segundo as festas, as escapadas ao trabalho disciplinado, os ritos religiosos.

Podemos ir mais longe e afirmar que no dispositivo cenográfico a experiência religiosa,

manifesta no transe, é o território comum que alimenta as outras atividades. Mas é possível

pensar essa experiência fora dos quadros da antropologia religiosa. Ao conceitualizar a

expérience intérieure contraposta à experiência mística, Bataille190 nos fornece uma idéia

aproximada ao que denominamos biopoder expresso nos corpos:

Entendo por experiência interior o que habitualmente nomeia-se experiência

mística: os estados de êxtase, alegria, de emoção meditada. Mas, sonho menos

com a experiência confessional [...] que com uma experiência nua, livre de

amarras, mesmo de origem, a qualquer confissão que seja. Por isso, não gosto da

palavra mística.

Gostaríamos de indentificar essa experiência interior como um “ultrapassamento de

todo discurso, de todo sentido, de toda presença”191 recusando uma avaliação conceitual.

Mesmo possibilitada pela cultura, rompe com ela no momento de sua realização, explodindo

em mil intensidades que se reagrupam além do imaginário ou discursivo e só reconhece na sua

própria força e expansão. É a soberania (souveraineté) preconizada por Bataille.

190 BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Paris: Gallimard, 2006, p 15. 191 ARNAUD, Alain; EXCOFFON-LAFARGE, Giséle. Bataille. Paris: Seuil, 1976, p. 28.

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A linha de ação contínua do dispositivo em relação aos corpos mantém-se interligando

as cenas como um fio elétrico imaginário, oriunda dessa experiência interior que lhe refaz os

gestos e alimenta a plasticidade dos movimentos. São visualizações dramatizadas das

intensidades dispersas do biopoder que lhes constituem. A série RB Capoeira (fig. 23) é uma

sequência impressionante de gestos ligados a essa luta em que “na base da plasticidade dos

movimentos” se estabelece “um fluxo interior de energia”, para Stanislavski “a plasticidade

exterior baseia-se em nosso senso interior do movimento da energia”192.

Carybé, explorara com seu traços rápidos, que nos lembram as gravuras japonesas zen-

budistas, o universo da capoeira. No livro As sete portas da Bahia193, uma antologia dos

desenhos publicados na coleção Recôncavo, os capoeiristas contorcem os corpos em

movimentos flexíveis e impressionantemente rápidos, diluindo a rigidez escultórica das

fotografias. Em Verger essa plasticidade intensiva se desloca por entre as cenas de festas e

transes. Na outra série RB Samba de Roda (fig. 24) ressurge o corpo soberano, glorioso em

seus movimentos erotizados, as mãos nas cadeiras da mulher, as pregas do vestido ao ritmo das

ancas que sambam sob os olhos desejosos dos homens que tocam. Por fim, os corpos nas fotos

RB Xangô, Oxossi (fig. 25), transidos, tomados, que dançam e rodopiam. A gestualidade

obedecendo a uma ordem que os organiza. Se “o gesto pelo gesto, sem significado interior, não

tem nenhuma função cênica”, então “faríamos melhor se adaptássemos estas convenções, poses

e gestos teatrais, à execução de algum objetivo substancial e à expressão de alguma experiência

interior”194. Nesse conjunto de fotos é importante notar a maneira como o fotógrafo francês

posiciona os corpos: riqueza de olhares, movimentos simétricos, entrecruzar de braços e pernas,

acolhimento do personagem central pelos outros corpos-coadjuvantes etc. A cenografia abriga

192 STANISLAVSKI, C. Manual do ator. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 153. 193 CARYBÉ. As sete portas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1976, p. 52, 53. 194 Idem, p. 98.

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os personagens como atores, estabelecendo uma “relação com o espaço circundante,

principalmente com seus parceiros de atuação, com o público e com o espaço”195.

A persistência dessa cidade colonial negromestiça de traços “barrocos” é analisada num

texto pouco conhecido de Verger, que defende uma curiosa teoria da sobrevivência dessas

práticas ditas barrocas. Emanando da arquitetura para o urbanismo e o imaginário, esse barroco

das ruas se irmaniza com as práticas populares religiosas ou festivas, compondo um todo

orgânico.

A cidade é concebida como espetáculo, com seus tipos que se insinuam nas retinas dos

incautos transeuntes, num colorido e bulício de suas ruas, realçados pela claridade intensa dos

seus dias, desvelando uma paisagem urbana de características barrocas, definição mais

antropológica que estética, numa concepção bastante peculiar que a cultura francesa tem

elaborado do estilo seiscentista. Do mesmo modo, uma evocação do conceito de “estilo de

vida” bastante caro aos antropólogos e sociólogos que pesquisam o cotidiano.

Pierre Verger196, citando Roger Bastide, escreve que o estilo barroco no Brasil

ultrapassara o campo artístico, deixando de ser uma mera decoração utilizada nas igrejas, para

se tornar, outrora, um verdadeiro estilo de vida nos trópicos. Na Bahia, sobretudo, o barroco

precipitou-se das igrejas, plasmando comportamentos, expressões, cotidianizando o espírito

seiscentista.

Utilizando textos de viajantes que passaram pela Bahia em 1696, 1786, 1830, 1860 etc,

o ensaísta francês descreve como o estilo de vida barroco se expressava nas procissões com as

fantasias dos fiéis, suas alegorias, os instrumentos musicais e dançarinos que criavam uma

atmosfera fantástica, ilusionista, de forte apelo imagético. Toda essa pompa efêmera que

reuniu, por exemplo, em 1830, na procissão do triunfo da cruz de Cristo Nosso Senhor, um 195 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2007,

p. 76. 196 VERGER, Pierre. Procissões e carnaval no Brasil. In: Cadernos do Centro de Estudos Afro-Orientais.

Salvador, n˚ 5, Out 1990, ensaios/pesquisas.

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viçoso séquito: imagens de Sansão, Judite com o estandarte de Nabucodonosor em uma das

mãos, e na outra a espada que decepou a cabeça de Holofernes; Davi, Moisés com as tábuas da

lei; o Triunfo, vestido de forma trágica, com capa de veludo; São Domingos, São Francisco,

São Gonçalo do Amarante etc.

O mesmo estilo barroco marcava, para Verger, as festividades da devoção popular do

Senhor do Bonfim, descrita por Maximiano da Áustria, que aqui esteve em 1860. Em seu

diário, descreveu as impressões que ficaram dessa famosa festa baiana, como um verdadeiro

tumulto, tanto na praça como na igreja, formado por vendedores de cachaça, devotos negros

vestidos para festas, jovens negras vendendo amuletos, velas e quitutes etc. Não faltava

também o apelo sexual, climatizado pelas vendedoras, negras, bonitas, vestidas com gazes

transparentes que mais encobriam do que ocultavam os seus encantos. O ar festivo invadia até o

adro da igreja, tornando-se impossível ao padre rezar a missa. O que, com o passar do tempo e

o endurecimento da tolerância das elites soteropolitanas, apoiadas numa revisão do

entendimento das festas populares feito pela igreja católica, culminou com a proibição do

acesso a certos locais da Igreja do Bomfim. Sendo ainda hoje vedado ao povo adentrar a igreja.

A quinta-feira do Senhor do Bonfim é, segundo as análises de Verger e Bastide, uma expressão

viva e colorida do estilo barroco, barroco de rua que também está expresso no carnaval. Pierre

Verger finda o texto com a descrição do carnaval baiano com seus mascarados, o jogo de

entrudo, os negros dos cucumbis disfarçados de branco, as batucadas que reuniam chocalhos,

marimbas e zabumbas.

Diversas imagens reproduzidas nos dois livros analisados exemplificam esse barroco

das ruas. A concepção de uma cidade orgânica, aglutinando sociabilidade popular e estética

religiosa barroca, também surgira nas fotografias dos dois álbuns de Verger, aliás seguido de

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perto pelo fotógrafo baiano contemporâneo, Mario Cravo Neto197. Nas fotos iniciais do

Retratos da Bahia, RB Claustro do Convento de São Francisco (fig. 26), RB Detalhe do

púlpito da Igreja de São Francisco, RB Detalhe do interior da Catedral Basílica (fig. 27),

surge o claustro do Convento de São Francisco em duas imagens de sobriedade e constrição

que explode em reentrâncias e volutas nas fotografias de dois detalhes barrocos do pulpito da

Igreja de São Francisco e do interior da Catedral Basílica.

Em CHS, a capa reproduz uma foto das páginas centrais do livro, CHS Interior da

Igreja de São Francisco – Cariátide e escultura em jacarandá (fig. 28), uma cariátide barroca

da Igreja de São Francisco. As duas fotos que a antecedem no interior do livro retratam a

fachada da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, com seu esplendor churrigueresco e o

teto da Igreja de São Francisco. Após a cariátide seguem imagens de seu interior e do claustro

da famosa igreja barroca. Além de outros exemplos espalhados no livro, ao final, a imagem do

Senhor Morto, CHS Imagem do Senhor Morto (fig. 29), talvez seja a alusão mais dramática

dessa organicidade barroca que se completa com o registro da procissão, CHS Procissão do

Senhor Morto (fig. 30), que acontece na Sexta-feira Santa, se deslocando para fora da igreja em

direção ao centro da cidade, o cortejo observado por uma pequena multidão que se acotovela.

O aparecimento abrupto dessas imagens cria uma ambiência onde se fundem interior e

exterior que se mimetizam, uma só cidade em que dobras barrocas se retorcem e replicam nos

telhados do casario, nos frontões das igrejas, nos dobrões dos vestidos e paletós de linho. Não

mais um fora e um dentro, mas instantes congelados como passagens, pequenos portais de

acesso espaço-temporais. Em RB, corpos de negros seminus esculpidos pela luz filtrada de

Verger esculturalizam-se, como na série já comentada dedicada aos pescadores RB Pesca do

197 Pelo menos dois livros do fotógrafo dramatizam as fachadas do barroco colonial baiano, do único exemplo do

barroco espanhol na cidade (Ordem Terceira de São Francisco), e apresentam a arquitetura colonial e a imaginária barroca como personagens entre os habitantes da cidade (da Igreja do São Francisco e do Carmo). CRAVO NETO, Mario. Bahia. São Paulo: Rhodia, 1990, p. 50-51 e CRAVO NETO, Mario. A cidade da Bahia. São Paulo: Aries Editora, 1984, p. 89-91-92-93-94-97 respectivamente.

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Xaréu (fig. 14), e fundem-se às esculturas barrocas, RB Detalhe do pulpito da Igreja de São

Francisco, anjos rechonchudos também desnudos, humanizados pela mesma luz. As volutas

múltiplas do interior da igreja, por sua vez se estendem às dobras das vestes de linho dos

transeuntes da Rua da Misericórdia, em RB Rua e Igreja da Misericórdia (fig. 31).

Nos livros, recriam-se essas passagens silenciosas entre dois instantes culturais,

retirando-as do segredo, expondo-as enquanto visualidades pinçadas do cotidiano vivido

tacitamente, que se funde ao compor uma ambiência urbana perfeita aos olhos do fotógrafo

francês.

Nesse sentido, as cenas da famosa lavagem do Bonfim corroboram nossa hipótese. A

primeira delas mostra uma baiana centralizada na foto tendo um jarro de flores sobre a cabeça,

depois um emaranhado de cotovelos e ramos que se destacam do conjunto de baianas

compenetradas por privarem desse momento sacro. As cenas seguintes se desdobram na

entrada do cortejo de baianas na igreja (o que posteriormente foi proibido e vige até hoje) e na

lavagem do adro. São quatro fotos de intenso movimento, da fricção dos corpos negros das

baianas e fiéis, até o esfregar do piso da igreja, lavado com vigor e alegre determinação

religiosa, vistos no balé das vassouras de RB Lavagem do Bonfim (fig. 32). Conjunção que

tanta animava Verger e inspirava o seu barroco das ruas.

As imagens do carnaval, RB Mercadores de Bagdá, Batucada na Rua Barão do

Desterro (fig. 33), não fogem à regra: mascarados, indianos filhos de Gandhi, filhos de Bagdá,

maracatus, princesas, espalhados em folia pelo Centro Histórico recriam o cotidiano numa

irrealidade urbana. A coroação das cenas é um bando formado por indianos, RB Filhos de

Gandhi (fig. 34), autodenominados filhos de Gandy (sic), que superlotam o bonde 110 em

direção a uma Índia imaginária.

O livro sobre o Centro Histórico reforça nosso argumento com uma Embaixada

Mexicana que desfila guiada por um mestre de cerimônias malabarista, os filhos de Gandhi

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com uma alegoria pintada do líder indiano, os filhos do mar que trazem às mãos pequenas

reproduções de embarcações de várias épocas, os filhos de Obá que portam lanças e coroas, e

uma cena pitoresca do carnaval baiano, o grupo de travestis.

Na foto CHS Filhos de Obá (fig. 35), Verger que não é dado a ironias em suas imagens,

cria um recurso que é comum aos diversos fotógrafos de rua do período. Como a foto Parabole

Optique, 1931 de Manuel Alvarez Bravo que cria uma multiplicidade de olhares fotografando

grandes olhos de uma imagem publicitária, Verger cria um surpreendente encontro entre a

lança empunhada pelo homem negro de coroa com uma flecha publicitária do Café Derby que

está pendurada provavelmente numa marquise, mas que parece flutuar. O que em Manuel

Alvarez Bravo é dissonância, em Verger torna-se consonância. Mas não apenas as festas

carnavalizadas testemunham em favor desse barroco vergeano, ocorrem imagens de procissões

se deslocando pela cidade, seja no centro ou no Rio Vermelho.

Nas imagens de Verger, embora possamos estendê-la para a sua etnografia, a potência

da indiferença frente ao moderno reside na intensidade de sua pureza. Sua força, impactante,

seja nos confins da África, no lusco-fusco dos ambientes sacros do terreiro ou nas ruas semi-

desertas de Salvador, é estar sob o signo da pureza. E nesse sentido, tanto a sua maneira de

fazer etnografia, ou de fotografar, propiciam essa captura do real sob circunstâncias que

viabilizem a transparência quanto ao gesto e ao objetivo, evitando seu caráter intervencionista.

Como se fosse possível apagar, enquanto fotógrafo ou etnógrafo, a própria performance, sob o

risco de modificar a constituição primeira do mundo pré-observação. A fotografia, no início do

século XX, orbita, como vimos, em torno desse tema, sendo surrealista, no apelo ao

inconsciente no ato de fotografar; documentarista, na objetividade maquinal; ou humanista,

enquanto captação de uma imagem que se forma no momento decisivo. Verger transita com

desenvoltura nas três correntes. Surrealista ao incorporar, junto aos documentaristas, o discurso

do automatismo e a apreensão da cidade como temporalidades e espaços sobrepostos e a

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ameaça de destruição pelo moderno. Humanista, por fotografar indivíduos negros como nunca

antes, afastando o mais possível o exótico e retratando-os com dignidade. Na re-invenção

fotográfica da cidade da Bahia, ou no interior dos terreiros, insta-se um duplo corte no

dispositivo cenográfico: um primeiro talho deve seccionar a presença de quem observa

(fotógrafo/etnógrafo) e, posteriormente, outro talho recorta o visto segundo a sua organicidade

interna, medida pela sua rejeição ao que lhe é externo, no caso o moderno, e ameça a tessitura

de sua própria constituição.

Por duas vezes, Amado fez referências à busca da pureza na atividade etnográfica de

Verger, a qual tentamos aproximar do seu trabalho fotográfico dedicado ao cotidiano urbano de

Salvador. Na primeira, ao comentar a tentativa de “fazer o candomblé voltar ao que fora em

suas origens, a fim de restituir-lhe a identidade africana, e principalmente da nação keto –

(nação nagô em ioruba (sic))”, Amado lança críticas àqueles que compreendem a cultura fora

de uma “situação histórica precisa”, esquecendo as negociações tácitas que se estabeleceram

para a continuidade de práticas religiosas negras proibidas. Ele só estava uma vez mais

reiterando o seu ponto de vista sobre a cultura baiana, a qual entendia como sincrética, mestiça,

fruto do trabalho e invenção de camadas populares oriundas de uma pluralidade étnica. Na

mesma entrevista, do livro Conversando com Jorge Amado, ele explicita:

Há alguns anos, Pierre Verger, que é muito versado no candomblé, um grande

etnólogo, um africanista, resolveu, junto com um padre francês, também ligado ao

candomblé, e alguns outros professores, criar uma casa-de-santo, um candomblé

que fosse de uma pureza absoluta, um verdadeiro templo ioruba (sic).198

Anos depois, Amado, ao escrever seu “livro de memórias que jamais escreverei”, num

texto datado de 1980, acompanhado da palavra “purismo”, ele se pronuncia mais

198 Entrevista dada em francês a estudiosa da obra amadiana Alice Raillard, publicada pela Gallimard em 1990.

Edição brasileira RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, p. 89-90.

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enfaticamente, quiçá agressivo, criticando de forma contundente essa pretensa negação do

sincretismo baiano:

Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François e os demais

velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé baiano,

mestres de tudo quanto se refere as seitas afro-brasileras, ao sincretismo religioso

e cultural, estudiosos das relações África x Brasil, conhecedores das similitudes e

das diferenças, sabendo que elas existem e porque existem, de repente, sem prévio

aviso, se fazem puristas africanos, [...] Resolveram os bons velhinhos, os

veneráveis, montar uma casa-de-santo na cidade da Bahia que fosse a

reconstituição exata de candomblé de Lagos ou de Porto Novo, na costa ocidental

da África [...] os velhinhos esfregavam as mãos no regozijo da experiência posta

em prática: o puro, o puríssimo candomblé da África negra por fim estabelecido

na terrra do sincretismo.

O espanto do escritor dá-se na medida em que o reconhece como um dos “mestres” do

“sincretismo religioso e cultural”. Para Amado, “quem mais sabe disso tudo é Pierre Verger,

(que) mais que ninguém nos revelou a face mestiça da verdade”. O famoso escritor baiano

termina o texto se regozijando do fracasso da empreitada “apenas os velhinhos vão às suas

casas repousar, no terreiro troca-se de nação, a festa nagô se dá por terminada [...] o sincretismo

se impõe, não resta fumaça da pureza que os mestres foram buscar na África”199.

Ao comentar esses fragmentos, quando da publicação francesa de Navegação de

cabotagem, Jean-Pierre Le Bouler, biógrafo de Verger, assinala que o fotógrafo francês “se

mostra preocupado com a ‘fidelidade’ – até mesmo no caso com o ‘fidelismo’ – às tradições

religiosas africanas”. Para ilustrar o seu ponto de vista após escrever que “Roger Bastide havia

insistido outrora sobre esta preocupação do autor de Dieux d'Afrique”, reproduz, em nota, este

extrato de Le “Candomble” de Bahia (Rite Nago) do famoso pesquisador francês: “O interesse

199 AMADO. Jorge. Navegação de cabotagem. São Paulo: Círculo do Livro, 1992, p. 404-407.

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de P. Verger reside num outro aspecto que não o estudado nestas páginas; a comparação entre a

África e a Bahia, para ressaltar a fidelidade africana dos negros baianos”200.

Longe de ser uma certeza, essa dubiedade de Verger surge em vários momentos de sua

obra ou nas declarações que fazia acerca do seu extenso trabalho etnográfico, seja escrito ou

visual. Indicado, Mesmo quando o critica veementemente, Amado alerta para o caráter

ambíguo da postura do pesquisador que reaparece no supracitado discurso que fez na Câmara

dos Vereadores. De maneira elogiosa discursa: “o doutor Jorge Amado celebrava,

recentemente, num discurso, “as virtudes do povo da Bahia e da condição mestiça da

civilização, resultante da fusão e do amor entre raças diferentes”. Ambiguidade expressa

também no comentário que Bouler faz ao artigo “Métissage au Brésil” em que Verger, após

louvar, mais uma vez, os textos de Jorge Amado, onde “chama a atenção para o fato de que a

mestiçagem teve como resultado valorizar as qualidades das duas raças”, segundo o biógrafo,

“insiste no tema da ‘fidelidade’ às tradições religiosas africanas dos ancestrais”201. O

“fidelismo” e a “pureza” que aqui nos ajudam a compreender as fotografias da cidade do

Salvador, tiradas por Verger, (sendo imperativo registrar que não obedecem a nenhuma

sobrevida de reminiscências de dircurso racial), devem ser tomadas como noções que, ao

nortearem sua obra, são reelaboradas. Uma forma de “resistência” ao ímpeto modernizante,

como salvaguarda do estágio idílico, e por que não, aos contornos estéticos perfeitos, obtidos

pelo desenvolvimento e conservação da tradição cultural. É a forma cultural, orgânica,

imbricada num décor barroco, concentrado na vida soteropolitana que será fruto de sua elegíaca

obra fotográfica e que deverá ser preservada da destruição. Como nesta entrevista de 1992, que

200 LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger,

2002, p. 611-617, para a citação de R. Bastide, Le “Candomble” de Bahia (Rite Nago), Paris, Haia, Mouton & Co, 1958, p. 9, apud LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002, p.617.

201 VERGER, Pierre. “Mesclagem no Brasil” Etudes litéraires, vol. 25, n 3, inverno de 1992-1993, pp. 121-125. Apud LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002, p. 612.

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surgem os temas da cultura ameaçada frente às inovações técnicas em sua ambiguidade de se

perceber una e fundada sobre matizes diversas:

Não há um Brasil, são muitos brasis. Reconheço que os estados brasileiros, que

culturalmente são diferentes uns dos outros, começam a ficar parecidos,

misturados, talvez por influência da televisão. Mas a Bahia tem um sabor

particular, essa influência muito forte dos descendentes de africanos da costa do

Benin. Essa terra ainda é muito diferente do resto do país. O que me atrai aqui é

justamente essa mistura cultural, que faz com que na Bahia possam conviver

pessoas de origens diferentes, sem problemas. Há problemas começando agora,

mas são coisas que vêm de fora.202 (grifo nosso).

De maneira mais ampla, essa aposta se destina ao próprio tempo, à caducidade das

formas e da sua beleza, como uma refutação desesperada do seu sentido trágico, aqui definido

quanto à possibilidade do seu desaparecimento. A compreensão da fotografia, enquanto

apreensão do que é dado, registrando o real sem modificá-lo, ao tempo que não se reconhece

estetizante, comunga secretamente com essas concepções vergeanas de fidedignidade como se

a transparência do que era visto pudesse ser infectado pela projeção de uma subjetividade

estética ou etnológica. Ele o dirá inúmeras vezes “mes photos sont faites sans intention

surtout”, gesto sem intenção, que não deixaria nódoa ou rastro de sua presença, apagado por um

inconsciente ótico, apoiado no caráter maquinal do ato fotográfico. Por sua vez, a cidade

deveria surgir, então, enquanto aparição única, menos como “resistência” ao que quer que seja

ou representação e mais enquanto sua forma de indiferença soberana, ao processo

modernizante ou à inevitável ação transformadora, e por vezes letal, do tempo. Nas obras de

Verger e Jorge Amado, marcadas pelo surrealismo, a beleza está associada à sua precariedade.

A inevitabilidade do desaparecimento, como o olhar da passante que se esvai no sumidouro da

202 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Entrevista de Pierre Verger por Maria José Quadros publicada no jornal O

Globo 16/08/1992. Disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=163&Itemid=549>. Acesso em: 12 set. 2008

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multidão ou a arquitetura das passagens, é a ocasião de sua aparição mais perfeita e

encantadora.

A cidade do Salvador nas linhas de Jorge Amado torna-se uma cidade misteriosa, de

homens corajosos, humildes e mulheres-damas que preenchem a noite bebendo, dançando e

amando. Amado genialmente reinventa sua escrita pós-Suor, os homens raivosos e as mulheres

esquálidas transformam-se em corpos negros, musculosos ou arredondados, sensuais. Na

denúncia da classe trabalhadora e negra através do seu cotidiano de luta, dos malandros e

capitães de areia relatados em Jubiabá (1935), o livro que, além de Verger, trouxe também

Carybé até Salvador, esconde-se a epopéia da consciência de classe revolucionária do

personagem Balduino, sempre com respeito profundo aos preceitos religiosos da comunidade

negra, identificada no personagem Jubiabá. O romance também se passa nas ruas encantadas da

cidade, afirmando, como as gravuras (Carybé) e canções (Caymmi), e agora fotografias, as

formas de vida urbana marcadas pela etnicidade negra. A trajetória dos personagens

acompanha uma virada de perspectiva política. A luta não mais se configurando sob o ponto de

vista classista, mas afirmando-se enquanto embate étnico-cultural.

Contudo, é em Pastôres da noite203 que Amado mais desenvolve uma descrição

centrada na vida vivida nas ruas da cidade, aproximando-se das literaturas simbolistas e

surrealistas quanto à apreensão do espaço urbano, em que prevalecem as deambulações de um

grupo de amigos, concentrados no Centro Histórico da Cidade, o Pelourinho. Pastôres da noite,

escrito em 1963, relata as estórias de um pequeno grupo de homens e mulheres entre a religião,

a violência e o amor, reincidindo no quadro de exaltação elegíaca ao universo noturno

soteropolitano. Nesse ir-e-vir os dramas se desenrolam e a cidade, ou o trecho central escolhido

para representá-la, assume o papel de principal protagonista. O romance, apesar de

embriagador é de difícil acesso pelos termos e ritos descritos sem notas de rodapé, o que o

203 AMADO, Jorge. Os pastôres da noite. São Paulo: Livraria Martins, 1969. A ortografia original foi mantida.

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torna mais hermético e fascinante para estrangeiros, um texto de iniciação ao universo pagão e

religioso negro. Percorrendo as ruas centrais da cidade, os Pastores da noite são os donos das

ruas. Estancam no Pelourinho, escorregam pelo Taboão e no cais deslizam do mercado para o

mar, por vezes, desembocando no Recôncavo. Nesse mesmo sítio Verger irá situar todo o seu

livro CHS sobre o centro histórico, e uma parte do RB. Podemos ler várias passagens do livro

como descrições das imagens de Verger ou vice-versa. O seguinte trecho, embora centrado no

anoitecer, parece servir de legenda para as fotos RB Rua do Passo, RB Largo do Pelourinho,

RB Ladeira do Pelourinho à luz da manhã e Ladeira do Pelourinho com a Igreja de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos à luz da tarde (fig. 36) respectivamente:

Caía a noite envôlta em brisa, docemente sôbre as ladeiras, as praças e as ruas, o

ar estava môrno, uma dolência estendia-se sôbre o mundo e as criaturas, uma

quase perfeita sensação de paz como se já nenhum perigo ameaçasse a

humanidade, como se o ôlho da maldade houvesse sido fechado para sempre. Era

um momento de pura harmonia quando cada um sentia-se feliz consigo próprio.204

Explorando o claro-escuro, Verger compõe uma pequena suíte de sombras que

invadem o coração do centro histórico, o que surpreende a quem folheia o livro, pois as fotos

que a antecedem e as seguintes são cheias de uma luz intensa. Muda também o plano, abrindo

para o skyline da cidade. Amanhecendo ou anoitecendo são os desenhos escuros, sombreados

que redobram as ruas se projetando sobre as paredes como manchas escuras, criando um

ambiência de aparecimento/desaparecimento, sonho/realidade de tons simbolistas. A

iluminação profana, defendida pelos surrealistas, surpreende o passante, absorto em suas

deambulações. Momento epifânico de uma aparição de inesperada irrupção205.

Na primeira das fotos, um escurecido vendedor com a sua mula estão completamente

metamorfoseados em sombras numa rua deserta. A Igreja do Rosário dos Pretos, a última foto,

204 Idem, p. 5. 205 FRIES, Heinrich (dir). Dicionário de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual Vol. II. Educação/

Imortalidade. São Paulo: Loyola, 1983, p. 33.

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recebe as últimas luzes que se aventuram sobre o casario, do outro lado, a cidade já emergiu em

trevas. Nada aqui, entretanto, evoca o tenebroso, o que definirá essa pequena suíte imagética

encontra-se no cerne das palavras de Amado: a calma que se abate sobre a cidade. As ruas e,

portanto, a cidade, é o abrigo do homem, sua alma feita pedra. Dolente o mundo, dolente o

homem. Encontro cósmico entre a alma humana e espaço construído. O que quer dizer que

desaparecem as considerações dicotômicas de que se alimentam o urbanismo em favor da pura

harmonia entre cidade e homem.

Quando o personagem Martim se dirige até a feira de Água dos Meninos para um

carteado, Amado não apenas a descreve mas avalia sua importância como fomentadora da

cultura na cidade:

Era mais uma demonstração de suas habilidades num ambiente acolhedor e

cordial do que mesmo jôgo a sério. Faziam-se pilhérias, risadas espocavam, tudo

em meio a muita amizade, quase uma família. Do alto de uns caminhões ali

parados, choferes e ajudantes espiavam e alguns molecotes, em tôrno, aprendiam.

[...] Aquela era a Universidade que cursavam, a escola da vida onde não há férias,

e nela o cabo Martim, gratuita e generosamente, transmitia seus conhecimentos,

professor emérito.206

Verger parecia ter a mesma compreensão sobre a feira e o demonstra numa série de

fotografias dedicadas à “universidade popular”. São 17 fotos que repertoriam as atividades da

feira, circunscrevendo vários âmbitos dos fazeres populares. Entre as primeiras, visões amplas

da feira que mostram a Igreja do Colégio dos Órfãos, os saveiros que faziam circular as

mercadorias e um plano geral das barracas enfileiradas na beira da praia ou distribuídas

próximas a uma fileira de árvores em RB Feira de Água de Meninos. O povaréu transita entre

elas, formando uma multidão que lembra uma festa de largo. A complexa imagem RB Filhas

de Santo Obaluaye em Água de Meninos (fig. 37) instaura há um tempo a ligação entre a

religiosidade e a culinária nessa escola a céu aberto. Três baianas parecem conversar 206 Idem, p. 29.

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alegremente. Duas delas trazem as obrigações na cabeça, lindamente vestidas, sorriem para a

terceira baiana que vende quitutes atrás de um tabuleiro. O riso estampado nos belos rostos

indica a satisfação de percorrer o intricado da feira ao tempo em que reconhece as amigas que

sabem do culto. Do lado esquerdo um policial de costas conversa logo atrás das duas baianas.

Como indicando a coexistência pacífica entre as forças repressoras e as práticas religiosas

dispóricas populares. As fotos seguintes, RB Cerâmicas (fig. 38) demonstram a capacidade

inventiva, manual, de criar pratos, potes, panelas de barro, moringas de diversos tamanhos e

formatos. Alguns pratos apresentam um grafismo delicado e repetitivo dos quais Verger

consegue potencializar a beleza, inclusive se deixando trair por uma estilização aos moldes

construtivistas, compondo formas através da repetição dos objetos, arrumados uns sobre os

outros. Imagens como RB Artesanato, arrumadas numa única página, extendem as técnicas do

inventivo fazer popular elencado na feira para abanadores e chapéus de palha trançada,

instrumentos musicais, cabaças. Os cestos de RB Frutas e Legumes remetem a uma das

principais criações populares, a gastronomia. Quiabos, pimentas, maxixes, pimentões e chuchus

dispostos em cestos de palha, o que indica a mobilidade dessas mercadorias por vezes levadas

na cabeça, ou em tabuleiros. Poucas vezes Verger inventaria com tanta minúcia os sítios da

cidade, sendo mais comum poucas imagens representativas. Como fotógrafo não nos lega,

como Atget em Paris, um repertório obsessivo e completo das cenas, nos dois livros ele insinua

situações proporcionando uma visão geral da vida urbana.

O que aproximaria as palavras de Amado às imagens de Verger é a afirmação genial

que as formas de construção de saber e fazer se distanciam, remetendo a práticas diferentes e

históricas. Saber e memória impõem-se enquanto instâncias históricas, construídas na

diversidade de suas práticas. A “universidade popular” não deve ser uma repetição, ou procura

de homologias.

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Já a linha de bonde da Baixa de Sapateiro, que dava acesso ao centro mágico da

literatura amadiana, surge nos Pastôres da noite num momento de encantamento:

Bonde tão colorido e alegre como aquêle vindo dos lados do Cabula, por volta das

seis e pouco da manhã, jamais correra sôbre os trilhos da cidade do Salvador da

Bahia de Todos os Santos. Dirigia-se para a Baixa do Sapateiro, lotado de filhas-

de-santo com suas saias coloridas, suas anáguas engomadas [...]. Ia o bonde ora

numa lentidão de lêsma, com se não existissem horários a obedecer, como se o

tempo lhe pertencesse por inteiro, ora em alta velocidade, comendo os trilhos,

rompendo tôdas as leis do trânsito, na urgência de chegar. [...]Desceram do Bonde

na Baixa do Sapateiro, encaminharam-se para a Ladeira do Pelourinho.207

Verger, por sua vez encantado, escreve na abertura de RB:

O Taboão era na época o único ponto de passagem prático entre os bairros onde

residia a maioria dos trabalhadores [...] e as áreas da Cidade Baixa onde exerciam

suas atividades [...] Eles chegavam pela Baixa dos Sapateiros, amontoados e

pendurados em pencas dos dois lados dos bondes da Circular [...] a Baixa dos

Sapateiros servia de passagem aos bondes que vinham dos bairros mas

“decentes”: Brotas, os dois Matatu, o grande e o pequeno, e Santo Antonio Além

do Carmo.208

Nesse mesmo livro, três fotos dessa linha de bonde oscilam pelos dois textos. RB

Bondes na Baixa dos Sapateiros (fig. 39) revive a experiência dos transportes urbanos marcada

pela linha que levava trabalhadores braçais aos mercados e às docas, onde se acotovelavam

espremidos, arriscando-se “pendurados em pencas” em ambos os lados do bonde; RB Filhos

de Gandhy (fig. 34) condensa surpresa e assombro. A imagem parece evocar o encantamento

sugerido em Amado, quando imprevisíveis “indianos” atravessam a cidade em outra linha de

bonde. São as ruas do Centro Histórico, em todos esses momentos, que possibilitam em Amado

e Verger a experiência do estranho, atestando a sua riqueza enquanto espetáculo, sem

207 AMADO, Jorge. Os pastôres da noite. São Paulo: Livraria Martins, 1969. p. 188. A ortografia original foi

mantida. 208 VERGER, Pierre. Retratos da Bahia 1946 a 1952. Salvador: Corrupio, 1990.

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tergiversarem quanto à denúncia social. O Pelourinho figura como enclave na epiderme da

cidade, escolhido para figurar como topografia simbólica.

Ao comentar os personagens dos Pastôres da noite, no livro de Alice Raillard, Amado

diz que as “putas e os vagabundos [...] são personagens que me apaixonam, trato-os com

cuidado especial no meu trabalho, e realmente estou próximo a eles. É por isso que eu gosto do

livro que intitulei os Pastôres da noite”209.

É esse pequeno mundo de vagabundos e prostitutas que está ameaçado de desaparecer,

junto com a forma e cultura urbana que os acolheu, e que deve ser retratado em sua derradeira e

luminosa aparição. Nas primeiras páginas, uma espécie de introdução escrita em prosa poética

por Amado210 assinala o envolvimento entre os pastores da noite e a cidade: “conduzindo a

noite apenas ela nascia no cais, palpitante pássaro do mêdo, as asas ainda molhadas do mar, tão

ameaçada em seu berço de órfã, lá íamos nós pelas sete portas da cidade, com nossas chaves

pessoais e intransferíveis”. Em seguida, na abertura do romance, logo na primeira página, ele

avisa da impossibilidade de se deter a experiência da vida urbana vivida pelos seus

personagens, pois o tempo é o da memória e da perda:

Foi neste tempo que está se acabando cada vez mais depressa, um fim de tempo,

um fim de mundo. Tão depressa, como guardar memória de acontecimentos e de

pessoas? E ninguém mais – aí, ninguém! – verá sucederem coisas assim nem

saberá de gente como essa. Amanhã é um outro dia, e, no nôvo tempo recém-

desabrochado, na flor da nova madrugada do homem, êsses casos e essas pessoas,

não caberão.211

No seu longo depoimento para Alice Raillard, Amado confirma essa sensação de perda

que o envolve tanto quanto a Verger. Ele próprio, elabora suas obras num indisfarçável esforço

memorialista ou nos últimos resíduos, fragmentos, ruínas de um mundo em desaparecimento.

209 Apud RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, p. 270, 310, 311. 210 AMADO, Jorge. Os pastôres da noite. São Paulo: Livraria Martins, 1969. 211 Idem, p. 3-4.

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Pois, “os Pastores da noite é um romance sobre os vagabundos. A maioria de meus personagens

é de vagabundos. E já disse mais de uma vez, não haverá lugar para eles no mundo de

amanhã”. Indagado sobre a função do romance, responde sem ilusões que “todo o meu esforço

tende a conservar a lembrança de um tempo que está acabando, que em parte já acabou”.

Anteriormente citamos as palavras de Verger sobre a rede de indivíduos, em sua

maioria marginalizados, que, segundo ele, concorreram para a conservação do Pelourinho,

quando do seu abandono pelas famílias abastadas. Em conseqüência, o aspecto do Centro

Histórico evoca um amontoado de ruínas atgetianas. Particularmente em CHS Moradoras do

Maciel (fig. 40), conhecida rua de prostituição que tanto incomodava a cidade naquele período.

Sem glamour, as mulheres são cenografadas numa arquitetura também, como elas, sob o

espectro da ruína. Pedra e corpo arruinados. Roupas rasgadas, pés descalços, cabelos em

desalinho atuam com o entorno de paredes rachadas, carcomidas, calçadas danificadas, paredes

úmidas. Contrastam com as de Atget que ainda guardam uma elegância fora de tempo como na

Fille publique faisant le quart tirada em La Villette, 1921, embora o aspecto arquitetônico

esteja nas mesmas condições precárias. Em CHS Ladeira do Passo (fig. 41), um cavaleiro

conduz garboso o animal pela ladeira ao largo da destruição do tempo. Casas emparedadas,

muros desfeitos, madeiras empilhadas, do outro lado da calçada uma grande sombra recorta a

imagem. São dois regimes de sombra que o fotógrafo faz com que dialoguem silenciosamente.

Mas a beleza que escapa dessas paragens aprendemos a fruí-la com os surrealistas e antes deles

com Atget. Aprendemos a vê-las, transpostas para os trópicos como promessas e retomadas,

desvio e afirmação. Verger escreveu e tornou visível esse lugar de potência. Um prazer algo

perverso de saber que a opulência de ontem recai, no presente, na deterioração. O que nos faz

regozijar com a queda do que hoje nos impõem como modernidade. Sabemos da sua comédia

antecipadamente. Essa é uma lição surrealista.

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Conclusão: urbanismo espetacular e o dispositivo cenográfico.

Pierre Verger se coloca distante de qualquer confronto político clássico aos moldes

marxistas acima descritos. De qualquer maneira, tanto ele quanto Jorge Amado ou Carybé,

artistas que durante longo tempo criaram suas obras ao lado do francês, exercem uma postura

militante, embora Jorge Amado seja o único que militara de maneira sistemática num partido

de esquerda, chegando a ser eleito deputado pelo Partido Comunista Brasileiro. Os três amigos,

na defesa da cultura negra, iniciam uma militância voltada para a etnicidade que marcaria

profundamente a política da cidade, em detrimento da política baseada no confronto entre

classes. A falência e o descrédito das conquistas políticas institucionais da esquerda ou direita,

as denúncias do regime stalinistas que vazaram nessa época aclimataram as militâncias

etnográficas sobretudo quando o próprio meio urbano se encontra apartado por opções culturais

sob a ótica étnica. A cultura posiciona-se no centro das atenções estético-políticas e torna-se o

local primordial dos conflitos, instaurando um paradigma etnográfico.

O ensaísta Hal Foster212, partindo de uma conferência de Walter Benjamin, utiliza-se do

conceito de paradigma etnográfico para caracterizar a arte e os artistas contemporâneos. Para

ele, a arte de esquerda militante teria sido colocada em cheque pelas reflexões de Benjamin,

pois este entende que o engajamento de artistas ao lado do proletariado seria insuficiente para

enquadrar a obra como revolucionária. Efetivamente uma arte revolucionária deveria ter uma

forma produtiva também revolucionária que possibilitasse colocar em xeque o aparelho

produtivo burguês, pois do contrário, definir o artista de esquerda “ao lado do proletariado”,

partindo de suas convicções, é situá-lo num lugar impossível.

212 FOSTER, Hal. The artist as ethnographer. In: ____ . The return of real. London: Mit Press, 1996.

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O novo paradigma etnográfico nortearia os artistas contemporâneos no sentido de

escaparem desse lugar impossível, propondo distinções binárias entre arte e artista, classe e

etnia, identidade e comunidade, numa ordem em que a contradição fundamental não mais seria

social, mas cultural. A visada etnográfica de Verger ao afastar-se do lugar impossível teria

encontrado a impossibilidade do lugar que só poderia ser elaborado pelo dispositivo

cenográfico das fotografias, acompanhado de perto das descrições amadianas e as gravuras de

Carybé que tematizam o mesmo espaço-tempo estetizado.

Espantoso é darmos conta de que esse lugar impossível se acomodara no espaço

espetacular. O dispositivo cenográfico se midiatiza (novelas, especiais e filmes inspirados em

Amado, exposições espetaculares de Verger, surgimento das fundações Amado e Verger,

localizadas no centro histórico) sendo relocado e assumido como realidade cultural pelos

soteropolitanos. A máscara que para nós nada esconde além das intensidades sem forma e

nome, foi tomada como rosto próprio. A cidade torna-se o próprio espaço do paradigma

etnográfico espetacular, confluindo consensualmente elites intelectuais, econômicas, políticas e

a enorme gama de marginalizados sociais. Uma combinação de exclusão econômico-social e

hegemonia cultural. A crítica mais radical denuncia o conluio do pensamento único como

abismal, infelizmente também ela enredada no pensamento único das categorias adornianas que

rodopiam no vazio. Estado terminal do capitalismo e do pensamento adorniano, pós-

debordiano. Antes do fim, olhos roçando o apocalipse, melhor seria perguntarmo-nos quais as

estratégias que estão em jogo de ambas as partes?

Nos anos sessenta, a obra de Jorge Amado surpreende os críticos literários: o livro

Dona Flor e seus dois maridos tem uma tiragem nunca antes imaginada e rapidamente se

afirma como um bestseller. É o ano de 1966, desde o início da década uma incipiente

racionalização da cultura se estabelece no país, no sentido da formação de um público

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consumidor de massa, reverberações globais atingindo o terceiro mundo com a

espetacularização da cultura.

A cidade do Salvador criada pelo grupo baiano modernista sofre uma mudança

qualitativa entre os anos 30/50 ao ver-se transportada para o espaço midiático e espetacular,

afinada com o projeto político carlista de administração que a transformaria em uma city

marketing turística, definindo sua “vocação” terciária213. A cidade de Salvador agarra-se ao

turismo como possibilidade de superar suas crises econômicas no bojo de uma modernização

fundada numa política extremamente conservadora que por sua vez se apóia numa engrenagem

midiática que fagocita os artistas modernos, desenvolvendo a oficialização do mito modernista

soteropolitano. A administração carlista ao tempo que renova o traçado urbano da cidade, suas

famosas avenidas de vale, o deslocamento do centro administrativo etc., exerce uma política

agressiva no sentido de transformar a cidade como centro de lazer e turismo.

A história recente desse processo que se abate sobre a cidade do Salvador, revelando

sua turistização, segundo o pesquisador Benedito Veiga214, coincide com o lançamento do livro

amadiano Dona Flor e seus dois maridos, quando o governo baiano, na figura do Governador

Luiz Viana Filho e do prefeito Nelson de Oliveira, através da Superintendência de Turismo da

Bahia-SUTURSA, assume as festas populares, iniciando uma indústria estatal do turismo,

sendo “a marca que caracteriza a fixação do pólo turístico: a articulação entre o mercadológico

e o cultural, com a apreensão da cultura negra”.

Em 1967, indicado pelo Governador Luiz Viana Filho, o deputado federal pela Arena,

Antônio Carlos Magalhães, assume a prefeitura da cidade do Salvador em plena ditadura

militar. Em 1972 é criada a BAHIATURSA, órgão estatal, tendo o deputado Manoel Castro

como seu primeiro presidente. Este fato confirma a perspectiva de Veiga de que a formação do 213 SAMPAIO, Antonio H. L. Formas Urbanas: Cidade Real e Cidade Ideal. Salvador: Quarteto, 1999;

SÁNCHEZ, Fernada. A Reinvenção das Cidades para um mercado mundial. Chapecó: Argos, 2003. 214 VEIGA, Benedito J. de Araújo. Ah! Dona Flor, Dona Flor... (Memória da Vida Cultural Baiana). Tese de

Doutorado. UFBA. Instituto de Letras. 2001, p. 286.

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pólo turístico baiano coaduna instituições políticas e setores sociais hegemônicos que visam

lucrar simbólica e economicamente cooptando “artistas e escritores que, até então, teriam

vivido por sua própria conta e que [...] se tornariam uma mercadoria de consumo. Seus quadros,

suas tapeçarias, seus textos seriam tornados mercadoria, apropriados como forma de construir

imagens da Bahia para alteridade do turismo”. O incentivo financeiro institucional fez “com

que circulassem financiamentos e se quebrasse a pasmaceira provincial”. A implantação do

pólo turístico assume uma imagem de democratização da cultura, o que é incisivamente

descartado por Veiga, quando escreve que o “jogo de poderes faz parecer democrático o que é

publicitário, como a permissão e o incentivo às práticas da cultura negra que, de reprimidas,

passam a ser estimuladas e liberadas pelos órgãos governamentais”.

O mesmo autor relata um encontro entre Antônio Carlos Magalhães e o escritor Jorge

Amado, em 1973, quando da inauguração do Centro Administrativo da Bahia, obra inclusa no

projeto modernizante que descentra as funções administrativas da cidade. De fato, no livro

Navegação de cabotagem215, sob o título Bahia, 1973 – Toninho, seu autor Jorge Amado conta

que, em visita ao centro administrativo, Antônio Carlos Magalhães incita os artistas a

colaborarem com as transformações que o prefeito modernista empreendia na cidade

provinciana:

Jenner Augusto e eu visitamos o canteiro de obras a convite do governador [...]. A

urbe vai sair dos limites históricos, vai se estender em direção a Itapuã, crescerá

na orla marítima, a velha cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, capital

da colônia, modorrenta, se transformará na capital dinâmica de um Estado

Industrial.

O autor continua sua descrição do encontro e a intenção do governador de aliar à sua

obra modernista do centro administrativo as criações dos artistas baianos, também modernos:

215 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. São Paulo: Círculo do Livro, 1992, p. 453-460.

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Toninho pretende colocar painel de artista baiano em cada um dos edifícios,

decorar salas e gabinetes com óleos, aquarelas, desenhos, deseja que sua

administração decorra sob o signo da arte, pede-nos, a Jenner e a mim, que o

ajudemos no projeto. Aceitamos a prebenda, parece-nos válida por todos os

motivos: inclusive por bem-vinda às finanças sempre parcas dos artistas.

Jorge Amado, inicia a colaboração propondo “a Antônio Carlos que a realização do

grande painel destinado ao plenário da Assembléia Legislativa do Estado seja confinada a

Carlos Bastos”. A ele seguem os nomes de outros importantes artistas:

Os contratos iam sendo assinados com a rapidez exigida por Antônio Carlos para

gáudio dos artistas que se punham ao trabalho, na Secretaria de Planejamento já se

podiam admirar a matriz de Calasans Neto, no painel em madeira a cidade da

Bahia, e a escultura de Mário Cravo, A Tentação de Santo Antônio, resgatada do

abandono à chuva e ao tempo no jardim do atelier. Carybé trabalhava a parede da

Secretaria de Finanças, Hansen Bahia a do quartel da Briosa, Floriano a do prédio

da Secretaria de Energia, Transporte e Comunicação [...] .

Por último, “Juarez Paraíso, que faria o painel para a Secretaria da Agricultura”, depois

de ter seu nome embargado inicialmente por parte da burocracia carlista e ter sido liberado para

realizar a obra, segundo ainda Amado, através da intervenção do próprio governador.

Aliando urbanismo e estética, a administração de Salvador azeitava o caráter inovador

da gestão, promovendo a nova figuração da cidade com seus aspectos provincianos recriados

pelo modernismo estético. Sintoniza-se com o projeto turístico nacional, em pleno fomento no

ano de 1975, afirmado na realização do congresso mundial da American Society of Travel

Agents – ASTA no Rio de Janeiro e o esforço das autoridades governamentais brasileiras para

que o país ingressasse na rota turística internacional.

O caráter eminentemente modernista de ACM é assinalado por Amado, no mesmo

texto, que retoma a arenga:

Ora, a verdade manda dizer e reconhecer: quem mudou a Bahia foi Antônio

Carlos Magalhães. Primeiro a urbe, quando Prefeito. Acanhado burgo de

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província, em suas mãos de administrador virou a metrópole que aí está. Rasgou

avenidas, assentou bairros, construiu esgotos, não existiam, obra impopular, não

traz votos, realizou reformas, retirou a cidade do marasmo e a fez de novo e outra.

E excusando-se de criticar a intervenção carlista, arremata de maneira surpreendente “se

melhor para viver, não sei, pois sou natural refratário aos grandes centros, prezo as cidades

pequenas, por isso gosto de Paris, conglomerado de cidadezinhas, todas elas fascinantes, mas

essa é outra história.”

Nesse momento, a novidade está na astúcia da administração carlista em adotar o

modelo modernista de cidade do grupo baiano como seu e gestá-lo num projeto de

modernização reacionária216 da cidade transferindo-o para o campo midiático espetacular. Ao

assumir o controle do Estado, o grupo carlista estende sua atuação modernizante além das

instituições estatais, articulando-se num dispositivo midiático privado poderoso ( jornal, rádio,

televisão, agência de propaganda e empresa de eventos) potencializando o poder de simulação

na emergência de uma ordem pós-cultural e conseqüentemente aumentando a sedução do

projeto modernista primevo. Por outro lado, pautava-se num reacionarismo profundo ao

submeter as potencialidades democráticas dos meios técnicos utilizados a uma gestão elitista e

excludente economicamente, que no início do século XXI lega-nos uma cidade do Salvador

estigmatizada pela violência e miséria.

A implantação do pólo turístico na cidade assumiu uma imagem de democratização da

cultura, na medida em que se apoiou em artistas inspirados na cultura popular urbana negra,

que simularam uma cidade esteticamente moderna e culturalmente étnica. Sem dúvida a

cosmética da fome217 urbana submete o sonho, a utopia, arremessando aos escombros as

iniciativas teóricas que o perseguiam. O pragmatismo cosmético alija a cidade dos sonhos. A

216 HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura, e política na República de Weimar e no 3˚

Reich. Trad. Claudio Frederico da S. Ramos. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 13-16. 217 A pesquisadora e crítica de cinema Ivana Bentes cunhou a expressão cosmética da fome, em oposição à estética

da fome glauberiana, para analisar o filme Cidade de Deus de Fernando Meirelles, entre outros.

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Salvador turistizada, de negros lindos e saudáveis em outdoors e vídeos, numa alegria artificial

midiatizada, é a cidade aberta ao capital que será apropriado pelo pool gestor da cultura

cenográfica (administradores, produtores culturais, empresários) enquanto cosmética da miséria

social. Somos todos vítimas do cenário, já disse Virílio.

Alijado de sua parte maldita, patrimonializado pelo passado recomposto que em tempo

diverso combatia, o dispositivo cenográfico de Verger está preparado para sua sobrevida.

Combalido, assume ares testemunhais, e participa das estratégias do turismo, da cultura como

mercadoria, do espetáculo. Está no bojo de uma intervenção pública, oriunda do projeto carlista

de turistização de Salvador, que se arrasta até hoje na zona morta do pós-carlismo.

A obra de Verger ganha notoriedade com o advento da sua fundação, localizada no

portal do projeto de recuperação do Pelourinho, passando a corresponder às intenções

governamentais e econômicas de uma imagem da cidade que se espetaculariza através de um

longo e terminal processo. A melancolia do desaparecimento parece esvair-se com os primeiros

chamados da eternização da imagética urbana espetacular e mercantil. O esforço compositivo

de suas imagens esfuma-se no testemunho da cidade bucólica feito fetiche. O que poderia ser

criação estética em Amado, através da literatura, nem sempre confiável, posto que marcado por

arroubos imaginativos, juízo que pesa sobre as canções caymmianas ou gravuras de Carybé,

não encontra abrigo na produção fotográfica. Esta é sempre compreendida como espelhar e não

constitutiva de um dispositivo que cenografa a cidade através de opções e intervenções no ato

fotográfico. As imagens de Verger são hoje o encontro seguro entre a imagem fetiche do

turismo espetacular do Estado e sua veracidade tecnicamente comprovada. Como se a

ideologia, de persistência retiniana, conseguisse se reafirmar enquanto idéia, apagando seus

rastros políticos, autonomizada e redimida pela técnica.

Verger, que intuiu o desaparecimento da Salvador que conhecera, sitiada por uma

modernização periférica cada vez mais agressiva, não podia imaginar que, trinta anos depois,

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correlato a esse processo, ocorresse a transposição do cotidiano da cidade, alicerçada pela sua

obra e de outros criadores, ao nível midiático espetacular. Fratura de dois momentos que se

miram como advindos de mundos totalmente diferenciados. Um estranho ao outro.

A obra espetacularizada de Verger perde o caráter denunciatório como um duplo da

alegria cultural baiana, em que suas imagens assumem o caráter de patrimonialização visual de

algo que não cessa de desaparecer. Querem nos convencer que se Verger soube vê-la ao tempo

de sua origem, dela podemos usufruir, como águas cristalinas, ainda agora, sem nem mesmo

imaginarmos seu termo. Em seu bojo, esse processo traga não só Verger, mas seus irmãos

Amado, Carybé e Caymmi. Talvez no afã de resgatar, em sua dignidade, as imagens culturais

soteropolitanas, intelectuais, burocratas, religiosas, independente da matiz ideológica (estamos

muito longe da política oriunda da Revolução Francesa), aliada ao sempre fracasso econômico

da cidade que não arrisca a se desvencilhar de um modelo predatório de turismo, sedimentam

uma equivocada interpretação das imagens vergeanas! Num livro de publicação recente218, nos

deparamos com esse erforço de associar ao trabalho de Verger um “fidelismo” duvidoso, assim

como uma a-temporalidade, marcada pelo continuismo de suas imagens que se referem a uma

realidade brasileira “revelada em preto e branco, em cada fotograma com perfis da diversidade

cultural do seu povo, mutáveis com o tempo, é verdade, mas representativos do ontem e do

agora”219. Pois é esse continuismo artificioso que faz com que as imagens vergeanas ocupem o

espaço aberto da espetacularização de sua obra e da cidade aberta ao turismo. Como se as

imagens ocupassem diagramaticamente as posições da ideologia, não mais se contrapondo a

uma realidade (pois o conceito de ideologia se esvai com a espetacularização imagética e a

hecatombe teórica do marxismo), mas às possibilidades interpretativas criativas que rompessem

com o uso de concepções históricas que reiteram a expropiação simbólica e econômica. Ainda

218 VERGER , Pierre. O Brasil de Pierre Verger. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2006. 219 BARADEL, Alex; TASSO, Franco. O Brasil de Pierre Verger. In: VERGER, Pierre. O Brasil de Pierre

Verger. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2006, p. 13.

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no mesmo texto220, “a liberdade total da ação de Verger com sua câmera fotográfica [...] faz

com que seu trabalho, no contexto geral da mostra Brasil, desfrute de uma singularidade

raríssima” ou:

os fotogramas compõem um quadro da relidade tal qual se expressava naquela

época, sem retoques, sem maquiagens, sem a necessidade de recompor ou

adulterar cenários para que as imagens se adequassem à estética do autor. Com

Verger, tudo é muito real.

Contrapor uma continuidade das imagens é secretar que as práticas que as inspiraram

também são contínuas e ao seu tempo, deslocarmos os estilhaços daquela experiência urbana

para uma moldura, uma tela simbólica, que apagaria todas as outras imagens que se irradiam do

presente. Estamos tomando a cultura urbana soteropolitana atual como continuismo ou mesmo

sobrevivência originária daquela primeira. Mas se já a vemos nas fotos de Verger como ruínas,

o que a teria recomposto em um todo? Ou, retomando o raciocínio, o que nos faz recompor os

atuais estilhaços da cultura negra urbana nesse todo em que as imagens que nos chegam

“comprovariam” essa totalidade?

Se apagarmos o caráter constitutivo das imagens de Verger, se o alienarmos das

concepções estéticas de seu próprio tempo, e o situarmos além de tempo e espaço, estaremos

preparados para reificar suas imagens que já não nos dizem absolutamente nada, pontos de

trasmissão do discurso cultural aliado ao turismo, onde não há mais nenhuma cultura;

hipostasia de um viver e fazer urbano histórico num mito urbano de alegria; realidade visual

reprodutível que se impõe como verdade atemporal.

Quando Walter Benjamin221, sob o impacto da República de Weimar e da

racionalização da arte frente ao advento do rádio e do cinema, tematiza a reprodutibilidade

técnica da obra de arte teria ele pensado na cultura como um todo? Que a obra “não aurática”

220 Idem, p. 14. 221 BENJAMIN, Walter. L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mecanisée. In: ____. Ecrits français. Paris:

Gallimard, 1991, p. 177-220.

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possibilitaria uma cultura, por sua vez, reprodutível tecnicamente? Não mais situada, local ou

temporalmente, sem originalidade, eterna e aquém da sua própria perspectiva sem origem? A

fotografia e o cinema, melhor, a sua forma técnica reprodutível, instaurou um pós-cultural,

onde seu modus operandi contaminou todas as outras formas estéticas, quiçá a própria vida

durante todo o século XX. Desenraizados, os bens culturais tornaram-se cambiáveis, oriundos

de não-lugares, mercadorias perfeitas, que em breve suplantariam a todas as outras,

completando aceleradamente um processo iniciado no século passado.

Nos termos da economia política, a cultura seria arrancada do paradisíaco valor-de-uso

(aurático?) e afirmada, pela racionalização técnica capitalista, enquanto valor-de-troca. O tal do

vestuário operário tão ordinário, que só “servia apenas para comprar”. Para Benjamin, esse

processo de relegar para segundo plano o valor-de-uso das mercadorias estabeleceria uma

ordem fantasmagórica aprimorada pela “indústria de diversões” onde o sujeito moderno se

entregaria ao desfrute. As análises benjaminianas dos novos meios técnicos apresentam um

ponto de vista dúbio, na medida em que apontam potencialmente tanto para uma nova era de

democratização da arte, com modificação das relações entre esta e as massas, quanto ao

desaparecimento do seu caráter aurático e as consequentes fantasmagorias resultantes. Mas esse

não seria o movimento mesmo da espetacularização?

Em Debord, há uma recusa provinciana das imagens reprodutíveis da sociedade de

massas. Quando a recusa soa mais como uma recusa do presente e de suas instâncias de

reprodução e publicização delas. Aqui a especularização é denunciada como uma reificação das

condições de sobrevivência do lupemproletariado urbano soteropolitano, seja ele negro,

mestiço, branco. O espetáculo não pode ser um mal em si. Estamos, talvez, contra Debord, na

medida em que vemos a pactuação do espetáculo com amplos setores sociais seduzidos pelos

modelos visuais aí produzidos. Como estamos também distantes do marxismo, a

espetacularização pode também atender a pequenos anseios dos atores sociais espalhados pela

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malha urbana e lhes servir como estratégias de sobrevivência. Perguntaríamos então quais tipos

de estratégias estaríam sendo agenciadas e que tipo de vida estaria sendo positivada. Tanto

pelas redes de poder quanto as de contrapoderes. Ainda não temos uma avaliação desse

processo que nos parece estar assumindo novos desdobramentos, uma terceira cena, que criaria

o campo reflexivo para comentarmos as duas anteriores. De qualquer maneira, estaríamos

completamente afastados das estratégias que as imagens de Verger tornaram visíveis.

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