Tese 2009 - Washington Luis Lima Drummond
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
WASHINGTON LUIS LIMA DRUMMOND
Pierre Verger: Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952)
– uma cidade surrealista nos trópicos.
Salvador
2009
2
WASHINGTON LUIS LIMA DRUMMOND
PIERRE VERGER: RETRATOS DA BAHIA E CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR
(1946-1952) – UMA CIDADE SURREALISTA NOS TRÓPICOS.
Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Urbanismo Orientadora: Profª. Drª. Paola Berenstein Jacques.
Salvador
2009
3
Non, non je ne suis pas là où vous me guettez, mais ici d’où je vous regarde en riant [...]. Plus d’un, comme moi sans doute, écrivent pour n’avoir plus de visage. Ne me demandez pas qui je suis et ne me dites pas de rester le même: c’est une morale d’état civil; elle régit nos papiers. Qu’elle nous laisse libres quand il s’agit d’écrire. Michel Foucault, L’archéologie du savoir.
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SUMÁRIO
Apresentação ..............................................................................................................................7 Introdução: literatura, fotografia, rua .......................................................................................12 1. A cidade surrealista e a crítica situacionista.........................................................................42 2. Pierre Verger: deambulação, fotografia, surrealismo...........................................................65 3. Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952): análise do dispositivo
cenográfico.........................................................................................................................111 Conclusão: urbanismo espetacular e o dispositivo cenográfico. ............................................143 Bibliografia.............................................................................................................................154 Anexo: caderno de fotografia.
5
Um homem se desloca até os confins da América Latina no final dos anos 70 – não
sabemos bem qual a época – com o intuito de registrar sua viagem, fotografando produções
pictóricas de artistas naïf. Esse mundo colorido, impúbere, domesticado, onde paisagem,
homem, animais reconciliados no traço infantil expulsa a visão judicativa para instaurar entre
desenhos, traços, cores, a redenção edêmica. O homem que a tudo percorre é insaciável, se
afunda em clics. Subsumindo o olhar livre ao da objetiva, acalenta a certeza de rememorar a
sua própria viagem na felicidade vívida, representada naquelas imagens de imagens. Ali, no
seu acervo fotográfico, suas férias estariam protegidas na plasmação paradisíaca das
pinturas. Saídas de mãos nativas se reconciliavam com as mais íntimas representações do
mundo natural e feliz que alimentava o dia-a-dia de sua labuta estressante como executivo de
uma mega-empresa americana.
De volta ao solo pátrio, imediatamente enviou os negativos para serem revelados,
solicitando a feitura de alguns slides para mostrá-los suntuosamente à familia e amigos. Ao
fim da tarde do dia seguinte, ansioso, montou os aparelhos e ao projetar os slides estupefato,
não acreditou no que via: imagens sangrentas de torturas e morticínios, degolas, estupros,
devastação, guerra, morte. Assustado e enojado, correu até o banheiro contíguo sem saber o
que acontecera com suas belas e singelas imagens, reproduções dos ingênuos quadros.
Aturdido, as hipóteses de seu drama lhe visitavam: o laboratório provavelmente trocara os
negativos, ou mesmo a bela moça que o atendera talvez tenha embaralhado os envelopes e
colocado seu nome num deles ao invés do de algum sádico que tirara aquelas fotos.
Retornando à sala de projeção, percebeu que seus filhos e esposa já estavam lá,
desesperado, corre tentando impedir que vejam as cenas terríveis que acabara de presenciar.
Ao atravessar a porta da salinha, já tentando se explicar, esbarra na esposa, o alarido dos
filhos ao fundo. Esta o abraça e, para sua surpresa, exclama sorrindo: “Que belas fotos que
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você tirou, como são belos e singelos esses quadros, uma sensação imensa de paz e felicidade
nos toma ao contemplá-las!!!”.
O movimento maléfico da teoria é esse: lançar na platitude do mundo a dissonância
arrogante, e às vezes violenta, de sua interpretação.1
* * *
1 Recriação livre do conto “Apocalipse de Solentiname” do escritor argentino Júlio Cortázar, apud SCARPETTA,
Guy. Cortazar, o mágico. Lemonde Diplomatique, São Paulo: agosto 2008, p. 36.
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Apresentação
A elaboração dessa pesquisa foi pautada na importância da produção imagética para a
vida urbana. A fotografia de rua, em particular, fomentou a mitificação de algumas conhecidas
cidades, contribuiu no seu pathos e apreensão de uma experiência central da vida moderna.
Impuseram uma paisagem artificial às ruas, praças, aos visitantes que chegam com olhos
maculados por elas. Algumas cidades, como Salvador, parece que assumiram as imagens
fotográficas e as narrações literárias como seu próprio corpo, espécie de imaginário objetual,
posto que sonho e mercadoria. Ainda não sabemos quase nada das outras imagens, sejam
cinematográficas ou televisivas, e o impacto no nosso cotidiano urbano. Nem sempre são belas
como as que desfrutamos na obra de Pierre Verger. Observá-las agora, na imposição da beleza
que nos ameaça e no destino que lhe foi reservado, orbitar indefinidamente por um universo de
imagens sem referência, nos coloca alerta quanto ao sentido que damos à nossa apreensão das
cidades, e sobretudo de nossa vida em comum no meio urbano. Precisar esta perspectiva nos
obrigou a fraturar a historicidade das fotografias de Verger em Salvador, criando duas cenas
(produção/espetacularização) na angústia de compreendermos, não as fotos (elas não precisam
de nós!), mas nossa trajetória nessa cidade sem controle. Ao fundo, o que nos inquieta é a
hagiografia laica do personagem urbano, espalhado em imagens ao redor do mundo, iniciado
no século XIX e que tem em Pierre Verger uma de suas inflexões. O artifício da teoria teatral
como condutora da análise, quanto ao âmbito cenográfico, foi a maneira adequada para
expurgarmos imagens que nos pensavam. Nunca do exterior, elas nos inquietam dos mais
íntimos recônditos da memória, confundindo-se com ela, na potência da gestualidade do
próprio corpo. Escaparmos através da idéia de cenografia, ou simularmos uma fuga para
reagruparmos forças e decifrarmos essas esfinges que nos assediam, gesto teatral, foi a
condição de nos desimplicarmos dessas imagens.
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O encontro com o surrealismo deu-se através dos textos benjaminianos. A passagem de
Benjamin pela Paris dos romances de Breton e Aragon foi irreversível no seu trajeto intelectual.
Ele colocou as obsessões dos anos vinte em formulações conceituais, complexas e de uma
inteligência refinada. Esforçamo-nos por realçar essas relações, como se ele já estivesse
presente, nos anos vinte, percorrendo ruas e parques abandonados entre dadaístas e surrealistas.
Seu coração débil batia mais forte quando imaginava uma aventura como essa, ou a realizava
anos depois, percorrendo os mesmos lugares descritos nos romances. Sensação que repetimos
ao visitar as Passages des Panorama e Jouffroy. Todos os nossos heróis lá estavam,
sobrevivendo, como as galerias, obstáculos para as mercadorias do hodierno Les Halles; ainda
passé frente ao turismo feérico do Beaubourg e das pirâmides do Louvre. As vitrines em
liquidação de roupas e bengalas, os sebos com livros, cartões, cartazes cinematográficos,
fotografias que ninguém mais quer, falências de lojas e restaurantes. As galerias perduram nas
formas do antiquado, sem ostentar qualquer tipo de aura revolucionária.
Ao depararmos com as ruínas arquitetônicas e culturais da cidade do Salvador, tínhamos
presente a mesma impressão, tornando o projeto de Verger (Caymmi, Amado e Carybé), visível
em nova configuração. Esses artistas concebiam, como os surrealistas e Benjamin, a trágica
aparição da beleza como epifania. Viram, antes da derrocada final, a mais bela invenção urbana
de convivência que experimentaram. Aí fizeram suas vidas, recriaram a política e a arte de
compor canções, romances, desenhos e fotografias.
Do mundo teórico que rodeava o surrealismo destacamos dois expoentes de suma
importância para a pesquisa, Artaud e Bataille. Restabelecemos um diálogo, nem sempre
amigável, entre a figura luminosa de Breton e os outros dois extremos do lado sombrio da
escrita surrealista. Esse ambiente intelectual, para nós, fundamenta não apenas Verger e o
grupo baiano, incide sobre nossa apreensão da metrópole moderna, ainda imponente, após a
subtração de toda a arenga freudiana. Surrealistas, sem inconsciente!
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Se na primeira cena o surrealismo nos ambienta as imagens de Verger, agora na
reprodutibilidade técnica, que investe contra nosso próprio meio urbano espetacularizando-o, a
teoria torna-se agressiva e desafiadora, nos obrigando a acompanhar seus contornos em textos
fundamentais sobre a questão. Pervagamos por sítios demasiadamente conhecidos, habitados
por fantasmagorias que lhe dão contornos surrealizantes. Verger está lá na entrada do portal
como o personagem kafkiano. São ruas que percorremos durante toda a vida. E sonhamos
percorrê-las ainda por um bom tempo. Antes, menos assombradas, seguíamos pelas mãos
paternas. Hoje, entre fantasmagorias, o demônio alucinante da teoria nos conduz.
* * *
Na “Introdução: literatura, fotografia, rua”, apresentamos as implicações entre relatos e
fotografias, elaborados no século XIX, enquanto semelhanças, diferenças e modulações quanto
a descrição e visibilidade do espaço urbano. Romances, contos, ensaios, poemas de De
Quincey, Engels, Poe, Baudelaire, Rimbaud, Benjamin; imagens fotográficas de Thomson,
Riis, Nègre, Marville e Atget, pioneiros da “photographie de rues”. Destacamos o fotógrafo
Atget, que, sem o espalhafato das vanguardas, constrói no anonimato as diretrizes da fotografia
moderna, antecipando ou provocando as idéias surrealistas. Ao tematizar o trauma das
transformações urbanas novecentistas até a impactante intervenção haussmanniana, escritores e
fotógrafos criam fragmentos dispersos que serão reinterpretados pela aventura surrealista.
No capítulo “A cidade surrealista e a crítica situacionista”, analisamos a aventura
surrealista, síntese e desvio das descrições urbanas do século XIX, somada às obsessões
próprias, que definirão nosso olhar sobre as metrópoles contemporâneas. As obras Le paysan
de Paris de Aragon, e Nadja de Breton fazem de Paris o tema de seus relatos, através das
deambulações por lugares banais, sensibilidade às ruínas urbanas e parques abandonados,
objetos cotidianos em desuso, vitrines de bric-à-bracs, espaços arquiteturais ameaçados de
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desaparecerem e um encantamento que emana desses lugares. Atget e os surrealistas, ao
recusarem o mapa oficial da cidade, ostentam uma crítica fulminante ao triunfalismo moderno.
A rua surrealista, seja literária, cinematográfica ou nas exposições, é locus dos acontecimentos
citadinos, espetáculo diário que não cessa de nos surpreender pelos acasos e sua eletriciade
erótica.
No capítulo “Pierre Verger: deambulação, fotografia, surrealismo”, acompanhamos a
vida de Pierre Verger, sua trajetória, os contatos com a vanguarda surrealista e as diversas
correntes estéticas fotográficas do período (documentarista/humanista/surrealista). Ao chegar
em Salvador, nos anos 40, o fotógrafo Pierre Verger encontra um grupo de artistas, ao qual se
incorpora imediatamente, iniciando a prática da photographie de rues. Carybé, Amado e
Caymmi, como os surrealistas, colocam a cidade no centro de suas obras, explorando as ruas, a
arquitetura colonial e a cultura negra da cidade na contramão do gosto oficial. Desdenham do
processo incipiente, mas contínuo, de modernização. Embora a forma estética não se assemelhe
ao surrealismo clássico, identificamos idéias centrais comuns aos dois grupos de artistas: o
deambular pelas ruas, o fascínio pela vida urbana prestes a desaparecer, as ruínas arquitetônicas
do centro histórico e a iluminação antropológica.
Em “Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952): análise do
dispositivo cenográfico”, os dois livros dedicados à vida soteropolitana, Centro Histórico de
Salvador (1989) e Retratos da Bahia (1990), são estudados sob a luz da teoria teatral e do
conceito de dispositivo cenográfico, dividido em três procedimentos e dois estágios de
emergência. O primeiro estágio, quando da produção e recepção das fotografias de Verger, e o
segundo, quando da apropriação pelo processo de espetacularização urbana. Ancorado na teoria
da história benjaminiana/foucaultiana, nos conceitos de encenação teatral de Artaud e nos de
informe e soberania, elaborados por Bataille, movemos nossa interpretação crítica.
Na “Conclusão: urbanismo espetacular e o dispositivo cenográfico”, utilizando a
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teorização de Benjamin e Debord, sobre a reprodutibilidade técnica e a sociedade do
espetáculo, respectivamente, analisamos o segundo estágio do dispositivo cenográfico.
No final do século XX, o destino da obra de Verger e de seus amigos, está entrelaçada
às transformações urbanas enquanto reprodutibilidade técnica e estetização generalizada
(espetacularização) da paisagem urbana, conduzida para a intensificação da circulação e
consumo de mercadorias. A consumação do turismo como política administrativa de socorro às
condições anêmicas da produtividade das cidades incorre na apropriação do legado modernista
dos artistas estudados. Momento em que o mesmo assume proposição inversa daquela a qual se
destinava. Finalizamos com as considerações provisórias sobre a emergência dessa nova cena e
dos jogos que aí se iniciam.
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Introdução: literatura, fotografia, rua
Os relatos e imagens de caminhadas pelas cidades modernas, que nos foram legados por
escritores e fotógrafos, colaboraram para o aparecimento de uma tradição moderna da
experiência urbana a partir do andar (deambulações, flanerie, errância ou deriva). Às
descrições das caminhadas de Engels, De Quincey, Poe, as quais se seguiram as de Baudelaire
e Rimbaud e as andanças dadaístas e surrealistas por Paris e Berlim, devem-se somar as
produções imagéticas das deambulações de fotógrafos como Eugène Atget e Brassai (Paris),
William Klein (Nova York) e Pierre Verger (Salvador). Obras de textos ou imagens como A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra (F. Engels), Confissões de um comedor de ópio
(Thomas De Quincey), O homem da multidão (Edgar Allan Poe), as Flores do mal e o Spleen
de Paris (Baudelaire), as Iluminuras (Rimbaud), O camponês de Paris (Louis Aragon), Nadja
(André Breton), Rua de mão única (Walter Benjamin) e alguns dos textos letristas e
situacionistas, ou Street life in London (John Thomson), How the other half lives (Jacob Riis),
compilações das imagens de Charles Marville e Eugène Atget, Paris de Nuit (Brassai), México
(Manuel Alvarez Bravo), Centro Histórico de Salvador e Retratos da Bahia (Pierre Verger).
Francesco Careri apresentou em seu livro Walkscapes2 uma extensa pesquisa sobre o
andar, inclusive no capítulo intitulado Anti-Walk quando analisa alguns dos textos citados.
Para ele, o que se buscava era uma caminhada estética que não prescindisse de uma produção
artística subseqüente, pois a obra seria o próprio caminhar. A estetização do andar assim
defendida apaga o principal objetivo das caminhadas sem rumo, a saber, o fruir a cidade. Ao
contrário, analisamos os diversos autores e seus deslocamentos pelo espaço urbano como
prática que permite uma posterior produção textual ou imagética, sob o longo reinado estético
do romantismo, durante o qual foram gestados vários sub-estilos. Em particular, as correntes 2 CARERI, Francesco. Walkscapes: el andar como práctica estética. Walking as an aesthetic practice. Trad.
Maurici Pla, Steve Piccolo e Paul Hammond. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
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decadentistas e simbolistas, estruturadas enquanto movimento na segunda metade do século
dezenove.
Segundo Michel Gibson3, o simbolismo seria um estado mental, estando muito além de
um mero movimento artístico, surgido numa Europa industrializada e católica em meados do
século XIX. Ao apelar para o conceito de mentalidades (estado mental), oriundo da
historiografia contemporânea francesa, o autor cita a definição que Georges Duby dá para o
termo: “sistema de imagens” e “juízos informulados, ordenados variamente nas diferentes
classes sociais”. Este é um conceito complexo e problemático no seio da própria discussão
historiográfica, algo metafísico, que requer uma temporalidade histórica lenta que se arrastaria
por enormes períodos. A sua utilização para a compreensão do simbolismo artístico dilui seu
conteúdo estético num sentido, enquanto em outro o lança numa dimensão interclassista e
inautoral. É dessa manifestação “mental” (enquanto ambiência de conceitos e imagens) que
surgiria uma gama de obras estéticas no âmbito da literatura e da pintura posteriormente
nomeados como simbolistas. Para Gibson, esses trabalhos estariam ligados a uma rejeição ao
mundo capitalista, à crescente inclinação ao materialismo que essa sociedade desenvolve, ao
seu industrialismo acelerado e, o que é mais interessante, a uma crescente urbanização e
cosmopolitização dos costumes, em detrimento de uma cultura e vida mais ruralizada,
entendida como próxima da natureza.
No romantismo clássico, a natureza é tematizada de forma complexificada e paradoxal,
as convulsões físicas confundindo-se com as de origem psicológica. O eu entendido como
fragmento único, singular, mas da mesma substância que o exterior físico, natural, tocado pelo
divino, na qual uma substância última os irmanaria. Se a natureza neoclássica fundamenta-se
enquanto cenário bucólico; no romantismo, ela se espraia, extensiva à alma humana. A sua
incontrolável força, o seu poder de destruição e incomensurabilidade não está tão distante do
3 GIBSON, Michael. Simbolismo. Trad: Paula Reis. Colónia: Taschen, 1999.
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homem romântico que se reconhece interiormente também nestes termos. Na contemplação da
Natureza dá-se um espelhamento da conturbada e abissal vida interior romântica, tão bem
expressa nos maravilhosos quadros de Friedrich ou no Wherter de Goethe: “acolhia todas essas
coisas no meu coração extasiado, [...] e as formas admiráveis do universo infinito giravam na
minha alma”. A relação sacra entre a centralidade do eu romântico e a realidade natural exterior
enquanto extensão dele definiria a lírica romântica e configurando-se, enquanto simbolismo, na
descrição de um mundo moderno, capitalista e urbano, instância denotadora da imediaticidade
das novas modelações estético-existenciais. Ruas, parques e praças externalizariam aquilo que
está no interior do indivíduo, possibilitando uma integração entre interior e exterior. O
simbolismo, espécie de romantismo tardio, expressa a nascente cultura cosmopolita modulando
o eu lírico romântico não mais pautado na complexa dualidade divinizada (eu/natureza) e
unificada pelo fazer poético, agora deslocada para uma, segundo termos lukasianos, natureza
segunda, humanizada e industrial, configurada pelo espaço urbano.
* * *
O simbolismo tem no poema Correspondências, de Charles Baudelaire, na versão
canônica, o ponto fundador do movimento. A matriz para as principais idéias do poema de
Baudelaire é também um texto clássico fundamental do romantismo, o Arcana Coelestia, de
autoria de Swendenborg, escritor e místico sueco, publicado em 1752. Reagirão a ele, de
maneira diversa, várias gerações de românticos e simbolistas finisseculares, formando uma
verdadeira legião de admiradores e discípulos.
O swendenborgismo pode ser definido resumidamente enquanto uma dualidade
correspondente entre as coisas abstratas, que habitariam o mundo interior individual, e objetos
concretos, explícitos que circundam o mesmo indivíduo, preconizando uma interação entre
exterior/interior numa projeção do mundo subjetivo no objetivo. A maestria do escritor
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americano Edgar Allan Poe, e depois, inspirado claramente por este, Baudelaire, seria a
transposição, ainda sob o romantismo, dessa concepção para o espaço urbano. Às
correspondências swendenborguianas ainda marcadas pela idéia de natureza como estância
divina, os simbolistas proporiam uma natureza urbana, fazendo com que essa teofania se
antropologizasse, apreendendo o cotidiano das cidades modernas como que sintonizada com o
mundo interior convulso dos novos cidadãos.
A lírica baudelairiana estaria fundando, além do simbolismo, as estéticas vanguardistas
do final e início dos séculos XIX/XX, sideradas pelas novas experiências proporcionadas aos
habitantes das cidades modernas. É esse cosmopolitismo poético que talvez o faça tão popular,
colocando a poesia e prosa contemporâneas abertas para o tema urbano.
Em Correspondances (Correspondências), o poeta imagina o homem caminhando
“através de florestas de símbolos” que o espreitam “com olhares familiares”, “numa tenebrosa e
profunda unidade” que promove a correspondência entre os sentidos, na qual “perfumes, cores
e sons se correspondem”. Esse embaralhamento dos sentidos que em De Quincey é provocado
pelo ópio, e em Poe, pela convalescência em confronto com o turbilhão urbano, aqui é fruto da
ordenação (ou seria de desordenação?) sinestésica dos sentidos, isto é a correspondência e
inversão perceptiva, expresso nos versos seguintes pelos “perfumes frescos como carnes de
crianças” ou “doces como oboés, verdes como prados” que “cantam os êxtases do espírito e
dos sentidos”4. Tema tipicamente simbolista, a sinestesia baudelairiana não poderia ser
estendida, numa analogia, ao caminhar nas “forêts de symboles” das vias da “tenebreuse”
cidade moderna?
A avalanche de solicitações urbanas, sensações desparatadas e intermitentes, provocam
o desfalecimento dos sentidos, seu transporte com sinais trocados. O transeunte, paciente da
experiência sinestésica, sabe as vias da cidade enquanto instante de corrosão da individualidade 4 BAUDELAIRE, Charles. Correspondances. In : _____. Oeuvres complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p. 8-9.
Nesta passagem, como em outras, a tradução é de responsabilidade do autor.
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no embotamento dos sentidos que lhe constitui. As ruas são o teatro de operações do acaso, do
inesperado, de tudo que surpreender possa o passante, abrigando uma experiência intensa e
capital em sua sensibilidade. O choque, liturgia do pedestre tornado flâneur, conduz o
embaralhamento sensorial como uma nova e prazerosa religião.
O poema simbolista condensa uma expectativa literária que de certa maneira já se
encontrava presente no romantismo. Entranhado no espectro romântico, paradoxalmente é
continuidade e superação deste. De maneira sintética e reiterativa: o simbolismo é a
sobrevivência do romantismo sob outros meios. A crítica especializada vem desgastando
completamente o conceito de romantismo, estendendo o seu campo de aplicação geográfica e
temporalmente a ponto de esgarçá-lo de tal maneira que finda roubar-lhe completamente o
sentido. É o caso de situar o simbolismo dentro de parâmetros mais definidos e circunscrevê-lo
a práticas literárias e objetos singulares: aproximar as noções de simbolismo e urbanismo,
proporcionando uma visão diferenciada das descrições do espaço público, considerando
determinados procedimentos reincidentes nas narrações e imagens que formaram a nossa
apreensão da cidade moderna.
Distante da conceituação como estado mental ou representação estética, o simbolismo
seria então um conjunto de artifícios (simulacros) literários e imagéticos utilizados e
reutilizados por vários escritores e fotógrafos (marxistas, surrealistas, situacionistas até os
diversos fotógrafos de rua dos séculos XIX e XX) no intento de descrever ou tornar visível a
experiência urbana moderna. A fotografia, em particular, parodiando os eventos, dará uma
aparência cenográfica às situações urbanas, impelindo ao máximo a sua força ilusória, acionada
pelas “potências do falso”5. As mesmas que impelem o fazer literário e que se entrelaçam num
quiasma de imagens, textos e corpos.
5 A distinção entre cidade real e irreal se dissolve ao rompermos com a idéia de representação que recupere a
“coisa em si”. Divisamos dois caminhos de fuga dessa aporia. Habermas, ao comentar a obra de Cassirer em seu esforço de livrar-se da “irritante” coisa em si, afirma que “la impression sensible que provoca el acto de la
17
* * *
Friedrich Engels6, em seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra,
publicado em 1845, no famoso capítulo As grandes cidades, denuncia o modo de estruturação
da cidade de Londres, Manchester e Liverpool, derivando-o das contradições inerentes ao modo
de produção capitalista. Assim a miséria e a deterioração dos bairros operários deixam de ser
acidentais, mas “um dos inúmeros males de importância menor” que resultam indiretamente do
embate entre capital e trabalho. A segregação econômica se reproduz espacialmente: excluídos
da distribuição das riquezas que ajudam a produzir, os operários também o são dos centros
urbanos. Triste permanência da ignomínia que se estende até os nossos dias, Engels chega a
afirmar que “toda grande cidade tem um ou vários ‘bairros ruins’, onde se concentra a classe
operária”. As descrições da vida dos trabalhadores, nos bairros miseráveis das cidades inglesas
citadas, assumem contornos literários, conjugando-se com autores que prenunciavam o
simbolismo e decadentismo estético. A repetitiva e infinda cidade, escura e encortiçada, com
suas ruas sujas, fétidas, miseráveis, de esgotos a céu aberto e ventilação difícil. Ao adentrar as
simbolizacion no es algo dado onticamente [...]. Unicamente en el interior del horizonte inaugurado por la capacidad originariamente figurativa de la representacion simbólica podemos atribuir existência a los objetos representados” (HABERMAS, Jürgen. Fragmentos filosófico-teológicos: de la impresión sensible a la expresión simbólica. Trad. Juan Carlos Velasco Arroyo. Madrid: Editorial Trotta, 1999). Enunciando a objetivação presente na representação, o que nos livra em parte de uma existência real exterior, Habermas preserva uma visão linguageira como instância última do sentido da experiência sensível. Perde-se aí a dimensão simulatória. Encontramo-nos mais abrigados nas formulações de Klossowski, que seguindo o pensamento nietzscheano, diz que o ato de abolir o mundo verdadeiro é simultâneo ao de suprimir o mundo aparente, pois o primeiro servia de referente ao último. O mundo torna-se fábula, “algo que se conta e só existe na narrativa [...] um evento contado, portanto interpretação: a religião, a arte, a ciência, a história, são interpretações diversas do mundo, ou antes variações da fábula” (KLOSSOWSKI, Pierre. Nietszche, o politeísmo e a paródia. Trad. Eloisa de Araújo Ribeiro. 34 Letras Fraude, Rio de Janeiro n°5/6, p. 146-163, set 1989, p. 151-154). À primeira vista as afirmações de Habermas e Klossowski pareceriam similares se não persistíssemos na leitura klossowskiana de Nietzsche. O ensaista, escritor e desenhista francês sabe que precisa avançar no conceito de fabulação do que “acontece ou deve ter acontecido” sem evitarmos de “seguir, tentando retomar para discernir se atrás da narrativa não haveria um ou outro momento que difere do que ouvimos contar” sob o risco de retorno da distinção entre mundo verdadeiro e aparente. O instante que difere da narração é o mundo resultante de “um certo comportamento dos impulsos entre si”, simulando a unicidade do que é nos termos nietszcheano “fragmento, enigma e horrível acaso”. A “semiologia pulsional” de Klossowski opera por intensidades, as formas interpretativas dão a ver o combate de impulsos “diferentes e contrários entre si” (“Semiologia pulsional”, termo utilizado por Carlos Eduardo E. Lins na apresentação do texto de Klossowski in: KLOSSOWSKI, Pierre. Ibidem. p. 145).
6 ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Trad: Rosa Camargo Artigas e Reginaldo Forti. São Paulo: Global, 1985, p. 35-88.
18
ruas de Londres “onde podemos andar horas sem sequer chegar ao princípio do fim”, Engels
denúncia, além da pobreza extrema, o espetáculo monstruoso das suas ruas, expresso pelo
aparecimento das multidões que “têm, por si só, qualquer coisa de repugnante, que revolta a
natureza humana”, pois só depois de “pisarmos, durante alguns dias, as pedras das ruas
principais”, abrindo “passagem através da multidão”, notamos “que estes londrinos tiveram de
sacrificar a melhor parte da sua condição de homens”.
Em outro texto famoso, Contribuição ao problema da habitação, Engels7 assinala a
visibilidade, nas ruas, das contradições econômicas do capitalismo, melhor as vias urbanas são
frutos dessas contradições, assumindo, portanto essa face monstruosa. Apesar da arenga
humanitária burguesa acerca do problema habitacional dos trabalhadores urbanos, entendendo-
o casuisticamente, Engels assinala a sua ossatura estrutural imbricada na exploração capitalista,
a mesma que ancorada na propriedade privada e na divisão social do trabalho impõe a
separação entre cidade e campo. As forças materiais, impulsionadas como nunca antes pela
burguesia, não proporcionaram ao proletariado nascente e organizado o desenvolvimento social
esperado e preconizado pelos socialistas utópicos, antes impediram a realização de uma
sociedade mais justa, soterrando inclusive as propostas desses primeiros socialistas. A
resolução do problema urbano, a superação da dicotomia campo/cidade e da questão do
alojamento operário, segundo esse raciocínio, estariam atrelados “à solução da questão social,
quer dizer, à abolição do modo de produção capitalista”.
Nesse mesmo período, entretanto, Thomas De Quincey8, citado pelos situacionistas
como precursor da deriva, que escreveu Confissões de um comedor de ópio, relata sua
experiência londrina, sob o efeito do ópio, durante os primeiros anos do século dezenove, sob
uma perspectiva contrária à de Engels. O autor percorria as ruas de Londres, sempre durante a 7 ENGELS, F. Contribuição ao problema da habitação. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas
1. Trad: Almir Matos. São Paulo: Alfa-Omega, [s/d], p. 107-117. 8 DE QUINCEY, Thomas. Confissões de um comedor de ópio. Trad. Ibañez Filho. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.
35-61.
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noite, acompanhado de sua pequena amiga Ann, uma prostituta de quinze anos. Deslocavam-se
pelas “ruas que cortam Oxford-street”, sentando-se em suas calçadas, caminhando como num
labirinto, evitando a angústia da fome, as dores de estômago ou a “agitação do Picadilly”. De
Quincey se define, assim como a sua companheira, por causa da profissão, de peripatéticos e é
sob o efeito do ópio que sua errância se torna mais profunda, aliada ao desaparecimento de
Ann. Aos sábados, procura os mercados ou outros lugares em que “os pobres costumam gastar
seus salários, nessas noites”, deslocando-se sem se preocupar com a distância ou o sentido da
caminhada, findando por se achar totalmente perdido “perplexo diante de alamedas, avenidas
sem fim, entradas enigmáticas e ruas sem saída”.
De Quincey em um dos belos trechos do livro narra seu encontro com os pobres que se
dirigem ao mercado, aproximando-se “sem parecer intruso” e proseando delicadamente sobre a
vida dura desses trabalhadores, acercando-se sobre seus salários, se estavam mais altos ou
ansiavam por algum aumento: “se diziam que o preço das cebolas e da manteiga iria baixar, eu
ficava contente; mas, se fosse o contrário, procurava no ópio uma maneira de me consolar”.
Nas Confissões de um comedor de ópio, a cidade é labiríntica e a angústia da procura
expressa o próprio meio urbano. As sensações se imiscuem nas lembranças oníricas que, por
sua vez, fundem-se ao sonho induzido do ópio. O labirinto que é Londres incita, atemoriza pela
imensidão e pobreza extrema que não passa despercebida pelos olhos visionários de De
Quincey. Um erotismo velado conduz a perambulação pelas ruas em que a busca do corpo
desejado como que eletriza o cenário urbano, tema posteriormente retomado pela literatura
surrealista. Essa errância coincide com o advento de uma etnografia urbana, o caminhante
deparando-se com as mazelas da modernização, as desigualdades que produzem não só a
miséria, mas as espacialidades que se excluem. A Londres, metrópole moderna, cidade também
dos miseráveis, pode servir de campo aberto para as descobertas do escritor De Quincey,
propiciando, além de um deslocamento espacial, sobretudo novas ambiências, reinventando os
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relatos de aventuras em sua forma urbana. Cruzar a cidade, a pé, em busca de sensações,
recriando, através da escrita, uma cidade dentro de outra. Poe irá levar essa prática às últimas
consequências.
Também Edgar Allan Poe9, no início do século dezenove, escreve sob inspiração do
cotidiano londrino. O advento da multidão nas ruas de Londres, novidade assustadora para os
novecentistas, surge sem as características “repugnantes” engelianas, obrigando uma
modulação do olhar, necessária para ajustar a visão à paisagem das novas metrópoles. Mais
encantado que aterrorizado, o personagem poeano, um fisionomista, delicia-se com as imagens
urbanas, fazendo da visão seu sentido absoluto através da observação dos tipos citadinos.
Embora em alguns pontos os dois escritores de língua inglesa, De Quincey e Poe, se
aproximem da perspectiva do ensaísta marxista, na descrição do ambiente degradado com cores
fortes, de impacto modernista e decadente, a avaliação dos espaços públicos e da multidão
londrina os distancia. A questão de fundo talvez seja a avaliação da própria cidade moderna,
condenada irremediavelmente pelo marxismo de Engels, à espera de uma redenção, e fruída
como um espetáculo, apesar dos seus horrores, por Poe e De Quincey.
Edgar Allan Poe, entre as décadas de 30 e 40 do século dezenove, escreveu o conto O
homem da multidão inspirado em Londres. A diversidade da vida urbana é retratada de maneira
apurada, detalhista, criando um mapa visual dos seus habitantes. O olhar se desloca de uma
ótica ainda classista em direção a uma espécie de etnografia urbana, pautada na figura do
fisionomista. As clivagens se multiplicam e as multiplicidades ocupam o lugar de uma
esquemática divisão da cidade. Desfalecimento da lógica classista de Engels, pois se ainda
bipartida em áreas de riqueza e de miséria, se diversifica na visibilidade de estâncias
intersticiais. O andarilho depara-se com uma fantasmagoria da paisagem urbana em que os
esforços do fisionomista são exigidos como arte da sobrevivência nas ruas. O olho instado a 9 POE, Edgar Allan. O Homem das multidões. In: ____. Ficção completa, poesia & ensaios. Trad: Oscar Mendes.
Rio de Janeiro: Aguilar, 1965, p. 392-400.
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elaborar um inventário dos personagens e ambientes percorridos. A visão como guia e
sobrevivência.
O personagem do conto está, ao entardecer, sentado no Café D..., e espreita “a rua
através das vidraças esfumaçadas” a qual é “uma das artérias principais da cidade e regurgitara
de gente o dia todo”. O clima do conto já se delineia, algo misterioso e sonambúlico, desde o
anoitecimento das ruas, com as lâmpadas bruxuleantes recém-acesas e o recrudescimento da
multidão com as “densas e contínuas ondas de passantes” que desfilam. O próprio personagem
se diz convalescendo num estado de espírito “no qual os olhos da mente se desanuviam e o
intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária”. Para Poe, o bulício citadino é como o
ópio de De Quincey, um “mar tumultuoso de cabeças humanas” que lhe proporciona “uma
emoção deliciosamente inédita”. A convalescença substituiria o narcótico na procura de um
estado alterado coincidente com as paisagens visuais. Menos do que a cidade como um todo, é
a rua, como espetáculo urbano, teatro de sensações, experiências visuais, corporais, que se
apresenta como o grande tema do conto poeano.
É essa intuição, de que algo de muito importante se passa nas ruas, que guiara não
apenas os escritores aqui analisados, mas os primeiros fotógrafos de rua. O teatro de operações
que é a rua instiga-os a buscar novas experiências que o próprio desenvolvimento urbano
propicia. Para isso é preciso rasgar os limites espaciais impostos. Deambular a pé, solitário,
pelas ruas da cidade, potencializando o envolvimento corporal com a forma urbana,
dramatizando o olhar. O livro de fotografias Street life in London de John Thomson, publicado
em Londres (1877-1878), pode ser o primeiro exemplar dedicado à vida das ruas de uma cidade
européia, embora o francês Charles Nègre tenha tirado alguns clichés como “photographie de
rues”. Sabe-se que as fotos de Thomson são encenadas, entretanto, pela beleza estética e pelo
apelo “documental”, nos lembram de esforços posteriores, sobretudo o de Atget nas ruas de
Paris. Mais celebre foi o How the other half lives de Jacob Riis, produzido na cidade de New
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York, em 1890, com o intuito de dar a ver a outra metade, pobre, da cidade. E essa ignorância
de uma parte secreta da cidade que se quer tornar visível está presente tanto na literatura quanto
na fotografia do século XIX, estendendo-se de alguma maneira até o século XX, quando atinge
a bohemia intelectual ou especificamente os exotismos dos estilos de vida urbanos. O destaque
é a vida nas ruas, das ruas, entendidas como a parte vital da experiência urbana. Uma recente
publicação, de 2007, intitulada Street world urban culture from five continents10, confirma a
idéia de tomarmos as ruas como exemplo da pujança, diversidade dos estilos de vida e de uma
espécie de voyeurismo urbanos. O livro traz fotos coloridas surpreendentes de cidades dos
cinco continentes advogando uma interconexão da “global street culture”, embora centrada
numa cultura jovem. Corpos tatuados, em êxtase musical, seja rock ou tecno, vestidos de
marcas internacionais, esportes radicais de rua (skate, ciclismo, motociclismo etc.), grafites e
pichações em carros, metrôs, paredes e um último capítulo (Coming together) cobrindo
atividades múltiplas desde shows, manifestações de protesto ou de “art opening” acontecidas
nas ruas. O exemplo fílmico é Eu sou Juani do diretor Bigas Luna que transita pelo mesmo
universo, dessa vez centrado na cidade de Madri.
Literatura ou fotografia, representação escrita ou visual, funcionam como uma devassa,
algo prazerosa, e indicam além do interesse da produção dessas obras, o surgimento
concomitante de um interesse na fruição delas. No século XIX, uma parcela da população
urbana queria deleitar-se esteticamente da chance de saber como vive a outra metade da cidade,
celebrando um olhar curioso associado ao humanismo caridoso das classes burguesas ou ao
discurso inflamado das letras marxistas11. Lembramos a sobrevivência desse olhar, deslocado
10 GASTMAN, Roger; NEELON, Calem; SMYRSKI, Anthony. Street world urban culture from five continents.
London: Thames & Hudson, 2007. 11 PARR, Martin; BADGER, Gerry. Le livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-
Gettle; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005 p. 49-53; SONTAG, Susan. On photography. Londres: Penguin Books, 2002, p. 56.
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para regiões recônditas, no sucesso contemporâneo das imagens mundialmente famosas de
Sebastião Salgado.
* * *
O personagem de Poe é um fisionomista, mais encantado do que aterrorizado, fruindo
imagens e sensações urbanas, fazendo da visão seu sentido absoluto através da observação dos
tipos citadinos. No início sob um “aspecto abstrato e generalizante” e posteriormente “com
minucioso interesse” vai salientando as variedades de “figura, traje, ar, porte, semblante e
expressão fisionômica”. Identifica-os, classifica-os individualmente para segundos depois
devolvê-los à urbe apressada.
Essa folie du voir do fisionomista esconde outra intenção, a de que é possível através do
olhar etnografar o asfalto. Enquanto em De Quincey as descrições urbanas derivadas das
caminhadas se realizam enquanto grandes planos descritivos, aproximando-o das descrições de
Engels, em Poe é o detalhe, o close nas roupas ou rostos que lhe caracterizaria. No texto, pela
aparência, o enigmático personagem encontra nobres, comerciantes, procuradores,
funcionários, jovens, mas também batedores de carteiras, jogadores, almofadinhas, militares, e
“descendo na escala que se chama distinção”, mascates, mendigos profissionais, cadavéricos
inválidos, mocinhas modestas e seus rufiões, mundanas de todas as idades. Por fim, o rosário
repugnante dos personagens urbanos: a leprosa em trapos, a velhota em rugas, bêbados,
esfarrapados, e toda uma miríade de personagens decifrados pelo fisionomista, concentrado na
aparência desses tipos urbanos: os que carregam anúncios, os que varrem, os que tocam
realejos ou cantam nas ruas, “moços de frete”, “domadores de macacos”, “ambulantes”,
artesãos maltrapilhos e trabalhadores exauridos que se arrastam até os bairros distantes e
pútridos que habitam.
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Esteticamente estamos no âmbito das questões que possibilitarão o surgimento do
simbolismo que defenderá uma sinestesia dos sentidos. No conto, Poe descreve os efeitos
atordoantes das ruas, nas quais há uma “desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente
os ouvidos e provocando-nos uma sensação dorida nos olhos”. O corpo convalescente nos liga
menos à doença e mais ao estado alterado da percepção coadunado ao espectro também
fantasmagórico da experiência do andarilho. Estratagema utilizado por Poe em outros contos12.
Nas derradeiras páginas surge outro personagem, não menos enigmático, um “velho
decrépito”, sexagenário, fazendo nosso fisionomista sentir-se “exaltado, surpreso, fascinado” a
ponto de sair para a rua e imergir na turba seguindo-lhe os passos. O “velho”, como a prostituta
Ann de De Quincey, é o pretexto para que Poe conduza seus leitores e personagens a
experimentarem a cidade como labirinto, babel de intricados percursos, vias, vielas, praças,
paisagens: pujança econômica e arquitetônica, diversidade de tipos urbanos, bairros pobres,
ruínas. Seguiremos sem direção definida aquele personagem bizarro e misterioso. Depois de
caminharem muito, o fisionomista e o velho, este último aparentemente sem perceber que foi
seguido, chegam aos limites da cidade, adentrando num bairro proletário.
Ao final d’O homem na multidão, Poe, assemelhando-se a De Quincey, não nos poupa,
depois de nos levar a percorrer a cidade, da barbárie capitalista também descrita por Engels: os
bairros operários. Descreve-nos o “mais esquálido bairro de Londres”, sem nenhuma novidade,
pois um entre tantos bairros das camadas “desprezadas da população londrina”. Antro da
pobreza deplorável e dos crimes propiciados pelo desespero da luta pela sobrevivência, o lugar
descrito se apresenta com outra figura/descrição cara aos textos e imagens urbanos do século
XIX, a ruína. Os prédios já foram construídos de “madeiras já roídas de vermes”, cuja
aparição, “cambaleantes e arruinados” reforçavam a atmosfera decadente, fantasmagórica,
12 POE, Edgar Allan. O retrato oval. In: ____. Ficção completa, poesia & ensaios. Trad. Oscar Mendes Rio de
Janeiro: Aguilar, 1965, p. 278. Neste sentido poderia se ler algumas passagens do, WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. In. ____. Obra Completa. Trad. Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995, p.51-228.
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desolada. Mesmo pavimento era formado por pedras que “jaziam espalhadas” arrancadas que
foram do seu “leito” de origem enquanto “um odor horrível” emanava por todo ambiente
proveniente dos esgotos a céu aberto e “arruinados”.
Os três autores da primeira metade do século XIX marcaram profundamente a literatura
moderna sobre a cidade, criando descrições impactantes e condicionando os relatos às
deambulações urbanas que por sua vez incitaram outras criações nas grandes metrópoles
européias. Nos seus textos as ruas possibilitam experiências diversas, conflitantes, fortes,
marcadas por uma visão apologética (Poe) ou repugnante (Engels), mas sempre denunciadora e
politizada quanto à situação das cidades modernas. Eles souberam sinalizar as potencialidades
inerentes às ruas expressas dramaticamente pelo aparecimento das multidões, a multiplicidade
de seus personagens e o impacto do operariado urbano. A tragicidade das ruas não os impediu
de divisar o teatro de operações visuais, as mutações das aparências, o deslumbrar de
personagens e cenas tão impressionantes quanto as descritas pelos relatos de viagem a terras
distantes. Em seu próprio tecido urbano, as cidades do século XIX se abriam às investigações
de seus habitantes, daí o surgimento de livros de ensaios ou literários e álbuns fotográficos que
se multiplicaram nesse período.
Edgar Allan Poe e Thomas De Quincey, particularmente, travaram no campo estético
uma batalha com a imaginação romântica, aliando poesia e criticidade ao expor as belezas
convulsivas da incipiente e desumana sociedade capitalista ante a sua assustadora produção de
riquezas e pobrezas.
Literatura (De Quincey, Poe, Engels) e fotografia (Thomson, Riis) tematizam as ruínas
urbanas, espetáculo de pobreza e abandono, drama humano e arquitetural, como estranhamento
e denúncia. O brilho decadente das ruínas em Poe não esconde o descompasso com a grande
cidade moderna e o reformismo social, que Riis desenvolve em suas imagens e textos sobre
26
Nova York, e se aproxima do discurso dos primeiros urbanistas sob o impacto do
desenvolvimento industrial.
O signo sagitário da melancolia se imporia em outras apresentações da cidade, próximas
dos surrealistas, de Benjamin e das fotografias de Atget, na virada do século XX. Antes deles,
Baudelaire e Marville contribuirão para a sua ressignificação no campo da literatura e
fotografia no período das transformações haussmannianas.
Charles Baudelaire13 publicou em 1857 o livro Les fleurs du mal. A cidade de Paris não
surge diretamente, o poeta sugere uma experiência dos espaços públicos, imaginada a partir de
descrições fortemente decadentistas e inspiradas no universo poeano. Baudelaire, que foi o
tradutor para o francês da obra de Edgar Allan Poe, inclusive do conto O homem na multidão,
apropria-se dos seus protagonistas decrépitos e os multiplica em sua poetização da ambiência
arruinada das ruas parisienses. Para Walter Benjamin, aí está a chave da lírica baudelairiana
que pela primeira vez toma Paris com objeto da poesia lírica: a alegoria. Esse olhar denuncia o
sentimento de desconforto decorrente da atual situação dos habitantes das cidades modernas
frente às intervenções urbanas, seu estranhamento, quando experiências, textos e imagens
formam um novo quiasma e podem ser constantemente resignificados.
Em À une passante14, a aparição dramática de uma bela e majestosa mulher embriaga o
poeta, “beleza fugidia”, antes de ser tragada velozmente pela multidão, na “rua ensurdecedora”.
A fugacidade dos encontros (ou desencontros) na circulação urbana, antes de cerrar o amor
num tempo agora impossível, lança-o na imediaticidade do olhar ligeiro dos transeuntes,
sintonizando a paixão romântica ao mundo moderno. Baudelaire finaliza o poema constatando
que aquela que se esfuma desconhece o destino do poeta, tanto quanto ele ao dela, “No qual o
olhar me fez renascer repentinamente/ Não te verei mais a não ser na eternidade?”. A
instantaneidade não é o algoz da paixão moderna, mas seu campo de possibilidades. O olhar 13 BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal. In : ____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p.8. 14 BAUDELAIRE, Charles. À une passante. In: ____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p.68-69.
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sendo o enlace dramatizado do encontro fortuito que só existirá, desde então, na memória. Será
nestes termos que, posteriormente, Baudelaire encontrará utilidade para a fotografia, a despeito
de estar associada ao “gosto do verdadeiro”, deplorável aos olhos do poeta. Pensando com ele,
a imagem fotográfica das ruas, apoiada na sucessão de instantes, torna-se verdade testemunhal
do acontecido, este não mais relegado ao caráter construtivo e estético da memória. O
aparecimento decisivo da obra de Marville não se daria sobre essa mesma perspectiva, partindo
de instâncias anti-líricas e ligadas ao aparato burocrático-administrativo das cidades?
À une passante faz parte do famoso Tableaux parisiens, uma das seções do Les fleurs
du mal. Conjunto de dezesseis poemas que abordam o lado obscuro das ruas da capital
francesa, desfilando, numa etnografia perversa. Aí estão seus mais desgraçados habitantes (a
mendiga ruiva, o cisne, os setes velhos, as velhinhas, os cegos, a passante, o esqueleto lavrador,
além de meretrizes, rufiões moribundos, jogadores, escroques, etc.) numa devastadora
descrição da paisagem urbana parisiense em fantasmagorias e ruínas. Em Le soleil, Baudelaire
assume o papel de um solitário andarilho que exercita uma fantástica esgrima: “Me exercitarei
só para minha fantástica esgrima/ Farejando em todos os cantos o acaso da rima/ Tropeçando
nas palavras como no asfalto”. A estética do choque se desenvolve na banalidade do cotidiano
como nos versos iniciais do poema Les sept vieillards em que a cidade fervilha plena de
sonhos, invadida por espectros assolando os passantes: “Cidade fervilhante, cidade cheia de
sonhos/ na qual o espectro em pleno dia agarra o passante!”. Ou no poema Les petites vieilles,
onde o enrugado perfil das velhas capitais como Paris, acolhe o horror que se adorna de
encantamentos “Nas sinuosas dobras das velhas capitais,/ Onde tudo, até mesmo o horror, se
transforma em encantamentos”15. Esse famoso conjunto de poemas, uma pequena suíte de uma
Paris decadente/simbolista, é uma resposta literária às obras dos pioneiros fotógrafos do espaço
15 BAUDELAIRE, Charles. Tableaux Parsiens. In : ____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert Laffont, 1980, p.60-
66.
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urbano, esbanjando ironia e crueza, peculiar ao poeta francês, inexistente no humanitarismo
imagético.
Na prosa poética baudelairiana do livro Le spleen de Paris16 (também conhecido como
Petit poème en prose) iniciado em 1855, Les yeux des pauvres, coloca o olhar sobre a cidade de
Paris como principal personagem, voltado especificamente para suas avenidas, os
“boulevards”, oriundos das transformações urbanas. Como na análise foucaultiana do quadro
de Velásquez, uma miríade de olhares se cruzam, se cortam, dramatizados na cena. A eles
contraponho o olhar de Marville e o olhar maquinal de sua câmera que também percorriam
Paris no encalço das intervenções haussmannianas.
Baudelaire descreve o anoitecer, quando dois enamorados se dirigem a um café “na
esquina de um novo bulevar que, ainda cheio de entulho, já ostentava glorioso os seus
esplendores inacabados”, onde podem mirar tanto o interior resplandecente do estabelecimento,
quanto o seu exterior abominável. Subitamente, imagem terrível da pobreza se instala na
felicidade pequeno-burguesa do casal: “Em pé diante de nós, víamos plantado um pobre
homem [...] aspecto fatigado [...] que segurava por uma das mãos um menino e trazia no outro
braço um pequenino ser ainda muito frágil”. Espantosa família de olhos que perplexa pelo
brilho do café e dos convivas empaca frente ao casal sabendo que “é uma casa onde só podem
entrar pessoas que não são como nós”. Os olhos do menor dos meninos cintilam fascinados.
Enternecido, o namorado procura refúgio nos olhos da amada que peremptória exclama: “Essa
gente é insuportável com seus olhos abertos como portas-cocheiras! Você não poderia pedir ao
dono do café para os afastar daqui?”17.
A dura observação que afasta os amantes desvela parte do processo de intervenção
urbana empreendida, do final dos anos de 1850 em diante, pelo Barão Georges Haussmann,
16 BAUDELAIRE, Charles. Le spleen de Paris: petits poèmes en prose. Géneve: Editions de la Cité, 1948, p 86-
88. 17 Idem.
29
prefeito de Paris, que a pedido do Imperador Napoleão III, remodela de forma sistemática seu
traçado urbano, transformando suas ruas em canteiros de obras. As grandes avenidas abertas
com calçadas largas, arborizadas para o deleite burguês, estão manchadas pelas classes
humildes e miseráveis que circulam no coração da cidade. Aceleram também o movimento das
tropas de artilharia prevendo o aparecimento de barricadas, marca das insurreições populares
parisienses. Baudelaire, que teria participado de barricadas na revolução de 1848, denuncia essa
nova astúcia de constituição do espaço urbano, tomando partido daqueles miseráveis
desalojados, segregados, aprofundando os laços entre estética e crítica urbana.
A troca de olhares, pequena batalha tácita que marca o poema, denuncia o espetáculo
das ruas confrontado em versões antagônicas. A suntuosidade expressa pelo desenvolvimento
do capitalismo da segunda metade do século XIX interfere na produção do espaço, incidindo
nas ruas: o aparecimento dos olhos mecânicos, as objetivas dos aparelhos fotográficos que se
somam às famílias de olhos. Através das imagens de pioneiros da fotografia urbana como
Bruno-Auguste Braquehais que os communards ainda nos encaram em plena rua parisiense,
minutos após derrubarem a coluna Vendôme em 1871, enfrentando, como as tropas, as
objetivas e o olhar do fotógrafo. Antes, em 1848, a visão embaçada da rua Saint-Maur esconde
os olhares dos revolucionários atrás das barricadas, logo após um ataque. Distantes, parecem
posar para o registro de Thibault legando suas sombras à história como o fizeram os transeuntes
da Place Saint-Pierre-de-Montmartre, em 1870, dessa vez para o famoso Nadar. Tornava-se
cada vez mais difícil evitar os olhos dos pobres ou a visão das ruas. As descrições passam a
competir com as apresentações fotográficas.
Ao tempo que Baudelaire escrevia suas obras, outro francês se imortalizava na história
da fotografia, Charles Marville (1816-1879), contratado pelo próprio prefeito de Paris, o barão
Haussmann, com o intuito de registrar as intervenções que capitaneava na cidade de Paris. Esse
privilégio fez com que Marville fotografasse sistematicamente toda a cidade ainda medieval,
30
sendo lentamente destruída pelo famoso prefeito, que com mãos de ferros conduziu o
urbanismo modernista. Suas fotos, que se tornaram as primeiras que integraram um arquivo
governamental, são de uma intensa dramaticidade, pois registraram ruas e casas em pleno
desaparecimento, vítimas do ímpeto modernista. A tragicidade dessas fotos, agônicas,
reverberam em toda a estética surrealista, literária ou visual. A eminência do desaparecimento
ou mesmo a interrogação das formas paradoxais da modernidade estabelecem um fio comum
condutor entre Baudelaire, Marville, Atget e os surrealistas, ao abordarem as ruínas como signo
de urbanidade. Aliás, já presentes, segundo Baudelaire, nas gravuras de Charles Meryon.
O impacto das imagens de Marville nos invoca uma cidade em pleno movimento, em
metabolização, desde o trabalho dos homens demolindo velhos prédios, passando pelos vãos
que se abrem através do traçado urbano parisiense, até as ruas paradas e indefesas, talvez dias
antes de desaparecerem. As cenas públicas sem transeuntes lembram uma cidade abandonada,
por vezes arruinada. Seus habitantes quando aparecem são trabalhadores, desconcertados frente
à objetiva, por terem que posar, testemunhas mudas do poder transformador do capital. Num
contexto não menos dramático se inscreveria a obra de Atget.
Em 1858, Marville já havia sido encarregado pela administração municipal parisiense
de “importantes trabalhos no bois de Boulogne”18, onde lhe foi construído um atelier. As
seiscentas fotos tiradas teriam como destino a Exposição Universal de Londres em 1862.
Todavia, foi a chance de ocupar um posto estratégico, no meio de uma transformação radical na
história da cidade de Paris, que o tornou célebre. O Barão Haussmann, então prefeito, criou em
1865, uma Comissão de trabalhos históricos que teria a missão de elaborar uma história geral
de Paris. Em seguida, a comissão nomeia Marville para o trabalho de sua vida:
“Antes de começar os grandes trabalhos que renovaram o aspecto e a topografia
da Velha Paris, a administração acreditara que seria interessante conservar
souvenirs do passado, e com este pensamento, solicitaram ao M. Marville, 18 MARVILLE, Charles. Charles Marville. Paris: Photo Poche, 1996.
31
fotográfo, uma série de 425 vistas das antigas vias destruídas ou em vias de
destruição”. 19
Como registrou Baudelaire, em sua crítica ao Salão de 185920, a fotografia, ao menos,
poderia salvar do esquecimento aquilo que o tempo devora. O poeta acertara em cheio o
espírito que caracterizava o interesse da burocracia administrativa parisiense na arte de
Marville. Na Exposição Universal de 1878, o município parisiense apresenta lado a lado “as
vistas das ruas desaparecidas e daquelas que lhe substituíram”. O trabalho com Haussmann
tem o mesmo sentido histórico ao evitar um registro poético das ruas condenadas ao
desaparecimento, antes indicando seu caráter nocivo, obstruído, miserável. É a comparação
entre a velha e a nova paisagem urbana que valorizaria a intervenção urbana de Haussmann e
do Imperador Napoleão III.
As ruínas, agora entendidas como parâmetro de avaliação para as novas configurações
das ruas, se afastam da imagem da “cidade tenebrosa”, corroborando uma apologia do
urbanismo demolidor. No início dos anos 20, do século XX, ainda sob o impacto das
modificações haussmannianas, os surrealistas e Atget deslocariam ainda uma vez o significado
das ruínas, explorando suas potencialidades políticas e tentando expurgá-las, ainda que sem
sucesso da melancolia. Os primeiros aliariam a política ao advento do maravilhoso pela via da
iluminação na trilha dos ensinamentos poéticos de Rimbaud.
O poeta andante Arthur Rimbaud, no livro Illuminations21 (1873), escrito
provavelmente em suas pervaganças em Londres e outras cidades européias, descreve em sua
prosa poética visionária cidades de ruas e jardins habitados pelo incomum e maravilhoso. Os
espaços públicos surgem imantados de sonho e delírio a um passo de uma experiência
iluminadora. O que nos surpreende são os 42 escritos pensados como várias iluminuras, 19 Idem. 20 BAUDELAIRE, Charles. Le public moderne et la photographie. In _____. Oeuvres Complètes. Paris: Robert
Laffont, 1980, p 746-750. 21 RIMBAUD, Arthur. Illuminations. In: _____. Oeuvres. Paris: Classique Garnier, 2000.
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destacando o caráter visual e epifânico. Na segunda metade do século XIX, intensificam-se os
encontros fortuitos entre fotógrafos e pintores, sobretudo, impressionistas que abandonam os
estúdios, para se arriscarem nas ruas com seus cavaletes, aparelhos fotográficos, tintas e
pincéis. Entre tantas obras produzidas ao ar livre, Claude Monet em 1872 pinta Le Pont-Neuf,
Manet, que em 1862 já havia pintado Música em Tuileries, e entre 1878-1879, Thomas Annan
publicando seu The old classes and Street of Glasgow conjunto de imagens tiradas da cidade de
Glasgow nos moldes da obra de Marville22. As iluminuras devem ser lidas levando-se em conta
essas manifestações de produção ao ar livre, fruto de caminhadas por metrópoles e sob o efeito
da força criativa da luz. A elas, acrescenta Rimbaud a interpretação epifânica da luz sobre os
acontecimentos. Sobrevivência de uma espécie de romantismo tardio em que a deambulação
pelas ruas das metrópoles eleva essas sensações às imagens epifânicas tão caras ao surrealismo
que soube ver, ou deveria ver, segundo Benjamin, sob a iluminação os rastros de uma política.
No poema intitulado Ouvriers (Operários), Rimbaud descreve uma misteriosa Henrika
(irmã anônima de Ann?) quando do seu encontro com o poeta para “uma volta pelo banlieue”.
O tempo “estava nublado e o vento Suão libertava todos os maus cheiros dos jardins dizimados
e dos arredores secos”, o casal observa “numa poça de água cavada pelas inundações [...]
minúsculos peixes”, antes de partirem acompanhados pela cidade que os seguia de longe “com
o seu fumo e o ruído das suas oficinas”. Nas Iluminações, imagens alucinadas de abandono e
decadência, de pedestres perdidos, “indigentes absurdos” que a cidade não acolhe nem permite
escapar estão à vista de todos. Confirmando esse diagnóstico terrível, em Ville, do mesmo
livro, depois de se definir como “um efêmero e não excessivamente descontente cidadão duma
metrópole”, a qual “não ficou nenhum monumento de superstição”, Rimbaud, ou sua persona
literária, diz ver da janela “novos fantasmas deslizando pelo espesso e contínuo fumo de
22 COURTHON, Pierre. Paris des temps nouveaux. Genève, Skira, 1957, p.15; PARR Martin; BADGER Gerry. Le
livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-Gettle; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005, p. 49
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carvão”. Um desfile grotesco se estende no campo aberto da cidade, desde “a Morte sem
lágrimas, nossa activa filha e criada, um Amor desesperado” a um “lindo Crime ganindo na
lama da rua”. Outros dois poemas de mesmo título permitem a prosa poética rimbaudiana dar
forma a uma urbanidade maravilhosa em que detalhes banais assumem formas epifânicas. No
primeiro deles, alucinação e realidade fundidos, o suprarealismo, habitam as ruas: “São
cidades! É um povo para o qual se elevaram estes Alleghays e estes Líbanos de sonho!” “Dos
castelos construídos com ossos sai a música desconhecida. As lendas evoluem et os impulsos se
precipitam nos burgos”, enquanto “selvagens dançam sem fim a festa da noite”. O poeta em
êxtase vai até o “movimento de uma rua de Bagdad, onde turmas de operários cantaram a
alegria do trabalho novo”, aturdidos “circulando sem poder evitar os fabulosos fantasmas dos
montes onde devemos ter nos encontrado”. No segundo poema, perdura a embriaguez das
imagens, a acrópole da cidade excedendo “impossível exprimir a claridade fosca destilada por
este céu imutavelmente cinzento”.
O poema Metropolitain fecha nossa análise das Illuminations de Rimbaud trazendo os
pobres expulsos pela amante de Baudelaire a uma cidade fantasiosa de “areia rosa e laranja”,
onde “acabam de montar bulevares de cristal logo ocupados por famílias de pobres que comem
do que compram nas lojas de hortaliças”23.
Esses textos, ao ultrapassarem o romantismo, impregnados da virada simbolista
baudelairiana, fluem para o movimento que define a mais pertinente apreensão da cidade
moderna, o surrealismo, cujos criadores, sobretudo Breton, souberam ver em Rimbaud um
igual. Na virada do século, em completo ostracismo, o mais importante fotógrafo da
modernidade, com anos de antecedência, forjava visualmentente essa investida literária dos
jovens agitadores parisienses.
23 RIMBAUD, Arthur. Illuminations. In: Oeuvres. Paris: Classique Garnier, 2000, p. 267, 269, 271-272, 274-275,
285-286.
34
No âmbito fotográfico, as imagens e a postura que mais podemos aproximar da obra de
Verger foram aquelas produzidas pelo célebre fotógrafo, também francês, Eugène Atget
(1857/1927). Para o crítico de fotografia Ben Lifson24 “no plano documental, a obra de Atget é
a mais completa de todas as tentativas empreendidas na Europa até ali ; de fato, Atget foi o
primeiro fotógrafo a fazer uma descrição tão detalhada e exaustiva de uma cidade”. Órfão ainda
na infância, ingressou na Marinha, vivendo profissionalmente como marinheiro até completar
22 anos. Iniciou a partir daí outra profissão, tornando-se ator e se inscrevendo no Conservatoire
National des Arts Dramatiques. Durante longo período, atuou em Paris e nas províncias do
interior da França. Finalmente, fotógrafo aos quarenta e dois anos, Père Atget, como era
carinhosamente chamado pelos conhecidos, dedicou-se incansavelmente a fotografar a cidade
de Paris. Diariamente percorria suas ruas desde cedo, quando das primeiras luzes matinais, até
ao entardecer, hora em que retornava para sua casa e estúdio, cobrindo de velhas ruas até
margens abandonadas da cidade. Atget produziu em torno de dez mil negativos melancólicos e
poéticos “únicas por seu realismo lúcido e sua visão lírica que ritmam uma cidade”.
Em depoimento, Atget declara que “recolhi, durante mais de vinte anos, por meu
próprio engajamento, em toda Velha Paris, provas fotográficas, formato (18/24), documetos
artísticos da bela arquitetura civil do XVI ao XIX” Suas fotos ambicionavam retratar e
postergar o “vieux Paris”: suas ruas, le petits métiers, as velhas prostitutas, as velhas lojas,
bric-à-bracs, velhas casas com seus mobiliários, as vitrines tornadas mágicas ou deslocadas
pelo tempo e pela repetição, as ruelas e prédios arruinados, seus bosques e ermos, “este
fantástico amontoado de objetos e estilos que nomeamos Paris”.
O próprio Atget era uma figura pitoresca e algo deslocada, se alimentando apenas de
pão, leite e açúcar por causa de uma úlcera estomacal, a perambular metodicamente por ruas
desertas, esquecidas, bairros distantes, antigos prédios, adentrando-os para devassar sua
24 LIFSON, Ben; ATGET, Eugène. Eugène Atget. New York: Könemann, 1997, p 5-14, 93-94.
35
intimidade e fotografar mobiliários mais antigos ainda. Também não lhe escaparam ambulantes
de todos os tipos que como ele perambulavam durante todo o dia pelas ruas. A distância que os
separava era aquela mesma que diferenciava o flâneur do badaud.
Distante da figura do flâneur dandy que percorreria as ruas em elegância e leveza,
apesar de toda sua fortuna crítica que o liga a esses personagens urbanos do século XIX, a
prática de Atget era completamente outra. Quem imaginaria um flâneur “munido com uma
câmara de fole, pé em madeira, sacola com objetivas e negativos de placas de vidro – cerca de
vinte quilos”? Exilado dentro de sua própria cidade, dentro de sua arte, vendia suas fotos como
pequenos souvenirs para “pintores com quem ele estudara e que se inspiraram em suas fotos
para seus quadros”, além de curiosos pelas lembranças de uma cidade que desaparecia
rapidamente. Na entrada de seu apartamento-ateliê, escreve o que naquele momento entendia
como sua profissão, um criador de “Documents pour Artistes”. Em 1899, Atget descobriu outro
destino para seus clichés “um mercado de fotografia documental da velha Paris e vendeu 100
provas para a Biblioteca Histórica da Capital”, decorrência do interesse crescente pela história
urbana e da arquitetura e pelo museificação da fotografia enquanto documento. Em 1920,
alguns poucos anos antes de sua morte, ele vende por 10.000 francos, 2600 negativos ao
Ministère de Beaux-Arts, o que lhe traz, e a sua mulher, um alento financeiro.
As fotos do velho fotógrafo “estabelecendo, rua após rua, loja após loja, decoração,
teve, simultaneamente, valor de episódio no conjunto da composição”. Erigem uma
fantasmática e melancólica cidade, tão poderosa imageticamente quanto a dos escritos
surrealistas propriamente ditos, apesar da inexistência da hipóstase do inconsciente e do
automatismo político. A força compositiva de Atget, a capacidade de comover não nos esconde
a sua atração pela imagem, pelo poder demiúrgico de transformar o que via em imagem,
colocando-se além do registro humanitário e naif dos pioneiros e marcando indelevelmente seu
modernismo. A estetização precisa das imagens surpreende os incautos denuncistas definindo
36
os contornos duradouros da fotografia contemporânea. Seus clichés associam tanto a
arquitetura depauperada da velha Paris quanto os corpos de seus habitantes: velhas prostitutas
que insinuam uma beleza e desejo que só permanecem num tempo superposto, paradoxal, como
a própria cidade moderna, os “petits métiers” destinados ao desaparecimento; objetos de moda
condenados a sobreviverem como antiguidades. Um silencioso mundo em ruínas “índices que
são suficientes para nos lembrar que esta ficção é apenas devaneios sobre um mundo em
desaparição”.
Por vezes, é o inusitado, as repetições que conduzem o pensamento ao ritmo produtivo
das mercadorias ou ao alegorismo do duplo abrindo espaço para o sonho e o consumo nas
artérias da cidade e do tempo controlado, sejam transeuntes que se enfileiram para observar o
não-sei-o-que, sejam objetos, como sapatos ou antiguidades. Uma das suas fotos mais
intrigantes é o seu espectro, levemente refletido numa vitrine, que também esboça a cidade
esfumada, como se a permanência dos dois ali inquirisse a duração das coisas, ao tempo
moderno no urbano, a possibilidade mesma das coisas durarem, numa relação de proximidade e
distância, de esgotamento e resgate da aura, do que se instaura e do que se esvai. Talvez por
esse motivo, suas fotos só foram valorizadas na emergência de uma apresentação moderna
comum aos fotógrafos documentaristas e ao grupo surrealista (escritores e fotógrafos).
Algumas imagens de Atget seriam reinterpretadas pelos surrealistas e consideradas
como imagens do movimento, entretanto, Eugène Atget recusou-se a aceitar o epíteto de
fotógrafo surrealista. Publicado em La revolution surréaliste, em 1926, solicitou aos editores
que não lhe creditassem as fotos, o que não impediu da crítica aproximá-lo de uma postura
surrealista. Podemos dizer que o encontro entre os jovens vanguardistas e o velho fotógrafo foi
marcado por equívocos. O crítico de fotografia Julian Stallabrass observa que, ignorando seu
aspecto modernista, apesar dos instrumentos fotográficos antigos que usava, os surrealistas
admiravam as fotos de Atget por sua banalidade, assim como certos críticos, sob a ótica dessa
37
corrente vanguardista, destacavam a “naïveté” das imagens “o mesmo realismo de detalhes e o
humor um tanto quanto sinistro que admiravam nos filmes de enigmas populares” 25.
De qualquer maneira, ele recortava em preto-e-branco, desentranhava no início do
século vinte uma Paris que para ele não deveria morrer ou pelo menos deveria ter seu êxtase
respeitosamente registrado num rito fúnebre. Em Atget, a fotografia é a expiação da morte, o
que de alguma maneira estará presente nas críticas surrealistas à modernidade, principalmente
no O camponês de Paris de Aragon. Será que Benjamin, através do seu estudo do drama
barroco alemão, circunstancializará a adoção moderna da alegoria justamente pelo seu poder de
significar a morte como elaboração crítica da modernidade? A lírica baudelairiana foi o
instrumento desse transporte retórico da alegoria para o coração da metrópole. Críticos da
fotografia do porte de Benjamin, como Barthes e Sontag, evocarão também a morte como
parâmetro de análise.
Walter Benjamin26 associa as fotos de Atget, na época, recém-descobertas pela crítica,
ao aparecimento do surrealismo, entendendo que os novos temas buscados pelo velho fotógrafo
eram “as coisas perdidas e transviadas” que transformariam suas imagens parisienses em
“precursoras da fotografia surrealista”. O genial ensaista alemão destaca que o fotógrafo evita
os pontos turísticos da cidade de Paris, embora não negligencie “uma grande fila de fôrmas de
sapateiro, nem os pátios de Paris” onde aparecem carrinhos enfileirados, ou mesmo “mesas
com os pratos sujos ainda não retirados” nem “o bordel da rua... n 5”. Sua obra imagética
investiria contra a fotografia convencional, retratista, regiamente remunerada e que
impossibilitava o olhar surreal, politicamente engajado em libertar na intimidade do lugar as
forças do estranho. Todos esses lugares estão como que abandonados, a cidade está
abandonada, pois as imagens das escadas, dos pátios, dos terraços do café, das praças e pontes,
25 STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002. 26 BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia. In: ____. Obras Escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e
Política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 101-107.
38
estão magnificamente vazias, pois “nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que
ainda não encontrou moradores”. Esse estranhamento no que é banal, cotidiano, daria o tom da
estética revolucionária dos anos vinte em relação à cidade moderna, visto que são nessas fotos
de Atget que “a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a
seu mundo ambiente”. O tema do desconforto, mesmo estranhamento do homem moderno em
relação ao seu ambiente urbano, presente na lírica de Baudelaire e na figura do flâneur encontra
seu acabamento visual nas fotografias de Atget. Benjamin não esquece que esse mal-estar,
sintomatizado por Poe nas estórias de detetive, apreende o urbano através da aura criminal.
Ao terminar seu texto, Benjamin nos lega um curioso comentário ainda sobre Atget:
“Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em
nossas cidades um só recanto que não seja o local de um crime? Não é cada passante um
criminoso?” Estando certo o ensaísta alemão caberia aos fotógrafos ligados a essa tradição
inventariar essa modalidade criminosa e aos ensaístas arriscarem a sua taxionomia.
No texto intitulado Melancholy objects, Susan Sontag27, na trilha das idéias
bejaminianas sobre a fotografia, mas ultrapassando-as, redefine o surrealismo longe de todas as
tentativas de atingir o inconsciente através do exercício do automatismo literário, do excesso de
maneirismos estéticos que estereotipou o movimento (superposições, solarizações, colagem
etc.) ou mesmo a dimensão dos escândalos sucessivos provocados por um marcado apelo
romântico para épater le bourgeois. Denunciando o grande equívoco de seus fundadores e
teóricos, por acreditarem na universalidade do surreal, ou pior, num inconsciente também
universal, o surrealismo se revelaria “naquilo que é mais característico de determinado lugar,
etnia, classe ou época”, sendo as primeiras fotos surreais originarias dos fotógrafos que
perambularam pelas ruas de Paris, Londres e Nova York, na década de 1850, caçando
“fragmentos espontâneos” da vida urbana:
27 SONTAG, Susan. On photography. London: Penguin Books, 2002, p51-82.
39
Estas fotografias, concreta, particular, anedótica [...] – momentos de tempo perdido,
desapareceu –, parecem muito mais surreal para nós agora do que qualquer
fotografia tornada abstrata e poética por sobreposição, underprinting,
solarização, e assim por diante. [...], Os surrealistas incompreendido que foi o
movimento mais brutal, irracional, inassimilável, misteriosa – o próprio tempo. (grifo
nosso)
Para Sontag, uma foto se surrealiza pelo seu “pathos irrefutável como mensagem do
passado e a concretude de suas sugestões a respeito da classe social”. Desde que os primeiros
fotógrafos passaram a circular pelas ruas das metrópoles, tiveram olhos para as decrepitudes
dos costumes e as variações físicas do meio urbano. Atentos também às variações sociais e
classistas que acompanham a modernização das cidades européias, empreendem uma política
pautada na visibilidade do que permanecia invisível aos estratos da classe média e alta,
decorrentes da segregação espacial. Sontag nos chama a atenção para o caráter surrealista
dessas primeiras imagens possibilitadas tanto pelo deslocamento espacial quanto temporal,
agudizada pela reinterpretação contemporânea marcada pelas intuições surrealistas. Esse jogo
entre a convivência e desaparecimento de sítios urbanos e de suas respectivas culturas foi caro
aos textos surrealistas e, segundo a autora, colocado com precisão pela fotografia de rua dos
pioneiros. Em Paris, exemplificaríamos com as obras de Charles Nègre, Charles Marville e
Eugène Atget, em New York, Jacob Riis, e John Thomson em Londres, entre outros28. O
surrealismo seria uma espécie de “descontentamento burguês”, uma estética ansiando tornar-se
uma política, que “opta pelos oprimidos, pelos direitos de uma realidade marginal, não oficial”,
ocasionando todos os contratempos e acertos de contas entre seus fervorosos adeptos quanto a
adesão ou o tipo de adesão que se deveria firmar com os marxistas e o Partido Comunista
Francês. Os surrealistas marcam a época também com uma atitude militante mais geral de
crítica das instituições e o abandono da famigerada “vida burguesa”, posicionando-se como
28 WESTERBECK Colin; MEYEROWITZ Joel. Bystander: a history of street photography with a new afterword
on SP since the 1970s. Boston: Bulfinch Press Book, 2001.
40
uma corrente de crítica radical da sociedade. Entre a memória, melancolia e negação enquanto
classe giraria a obra de diversos escritores e fotógrafos do período, como o francês Pierre
Verger. Privando do ambiente intelectual parisiense, não tendo aderido a nenhuma vanguarda,
não passa incólume às questões centrais colocadas à época:
Eu era o terceiro filho de uma família muito convencional, meu pai tentara me
inculcar desde muito cedo o gosto pelos negócios e pela relação do capital. por
exemplo: quando eu ainda estava no colegial e queria convidar os colegas domigo,
estava autorizado a receber os filhos de famílias opulentas e não aqueles das mais
modestas o que me desagradava pois, eu, muitas vezes, achava os primeiros
pretenciosos e os outros mais simples e simpáticos. Eu era contra as familiares e
procurava afirmar meu desacordo e acreditava que tomando uma posição contária ao
que esperavam de mim, eu seria mais feliz. [...] depois. compreendi que mesmo
fazendo o contário do que desejava a minha família, ela continuava a me influenciar...
negativamente.29
No princípio está a melancolia, aliada a uma idealização urbana, possibilitada por esse
estado idílico das relações sociais, que se desprende do esforço memorialista expresso em
textos e entrevistas. Fantasmagórica, ela já está presente no momento mesmo de sua chegada.
Ao tentar definir a importância da fotografia em sua vida, numa entrevista de 1992, Verger alia
às qualidades fotográficas a possibilidade de reter a memória daquilo que invariavelmente
desaparecerá:
Ela me seduz por sua faculdade de fixar o que é fugidio, de tornar perceptível e
permanente o que, de outra maneira, teria desaparecido para sempre. Certas fotos
são capazes de apreender o breve instante em que o mais belo gesto é
surpreendido em pleno movimento e que o olho é incapaz de distinguir porque a
continuidade da sucessão das imagens não permite isolá-lo. Minhas fotos são para
mim o melhor suporte e ponto de partida para evocação de minhas lembraças.30
29 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Interview par Véronique Montaigne – 15/09/1992. Disponível em:
<http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=164&Itemid=550>. Acesso em: 12 set. 2008.
30 Idem.
41
A “melancolia do olhar”, para Sontag, caracterizaria a vanguarda surrealista, contaminando
parte dos artistas do entre guerras, principalmente aqueles que se refugiaram em Paris. Entre
estes, os fotógrafos se agrupavam quanto ao uso e procedimentos estéticos da fotografia, sendo
posteriormente classificados por tendências, como se percebe através da cena parisiense
descrita por Stallabrass, quando “a fotografia de rua desta época pode ser dividida em três
tendências distintas: a tendência surrealista, a tendência moderna e, em algum lugar entre as
duas, um espécie de lugar humanista de tendência universalista” 31. Entretanto, desde 1926, a
crítica cinematográfica se utilizava do termo documentário para a análise de certos filmes,
sendo expandida sua aplicação à fotografia nos anos que se seguiram, cujos expoentes famosos
seriam August Sander, Berenice Abbott e Walker Evans32. Inspirados por Eugène Atget – cuja
obra fora redescoberta pelos americanos Man Ray e Berenice Abbott – documentaristas e
surrealistas o reinterpretariam, expressando em comum um desconforto espaço-temporal
ambientado na grande cidade moderna.
31 STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002. 32 LUGON, Olivier. Le Style documentaire: d'August Sander à Walker Evans. 1920-1945. Paris: Macula, 2001,
p.5.
42
1. A cidade surrealista e a crítica situacionista.
Esse campo de ruínas e catástrofes, cujo fim não consigo avistar. (Walter Benjamin)
Inspirado pelo marxismo e surrealismo, Walter Benjamin produziu grande parte de sua
obra sob o impacto da ascensão do fascismo alemão, numa análise inusitada do
desenvolvimento urbano das cidades modernas. São muitos os textos dedicados à vida urbana
na forma de diários, memórias, ensaios sobre Berlim, Moscou e Paris. O marxismo e o
surrealismo, duas vertentes do pensamento moderno, estão presentes de maneira singular, o
marxismo, entendido como uma interpretação materialista da cultura, técnica e sociedade, sob
um ponto de vista político, e o surrealismo, como liberação do inconsciente, do sonho, da
utopia frente ao estranhamento da moderna vida da metrópole. É bom frisar que a junção entre
marxismo e surrealismo iniciou-se no seio do próprio movimento surrealista, liderada por
André Breton, ocasionando um enorme racha no movimento33. Breton escreveria em 1938, com
o líder de esquerda Leon Trotsky, um manifesto pela liberdade da criação artística, quando
fundariam a Federação Internacional da Arte Revolucionária.
Numa carta de 1935, escrita para Scholem, Benjamin registra o quão próximo estava do
surrealismo e que para o bom prosseguimento do seu trabalho deveria afastar-se dessa
influência. Segundo suas próprias palavras representaria “tanto uma aplicação filosófica do
33 Sobre as relações entre o surrealismo e o marxismo ver LOWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e
marxismo. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; NADEAU, Maurice. História do Surrealismo. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985; LOTTAMAN, Herbert R. A rive gauche: escritores, artistas e políticos em Paris 1930-1950. Trad. Isaac Piltcher. Rio de Janeiro: Guanabara,1987. Sobre o surrealismo e psicanálise: CHENIEUX-GENDRON, Jaqueline. Le Surréalisme. Paris: PUF, 1984; Sobre Benjamin e o surealismo: FER, BRIONY; WOOD, Paul; BATCHELOR, David. Realismo, racionalismo, surrealismo: A arte no entre–guerras. Trad. Cristina Fino. São Paulo: Cosac & Naify, 1998; BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: UFMG; Chapecó: Argos, 2002; PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens Urbanas. São Paulo: Senac, 1996; e os fundamentais ensaios de SONTAG, Susan. Melancholy objets. In: ____.On photography. Londres: Penguin Books, 2002, p51-82; SONTAG, Susan. Sob o signo de saturno. In: ____. Sob o signo de saturno. Trad. Ana Maria Capovilla e Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 1986
43
surrealismo – inclusive sua superação – bem como a tentativa de fincar a imagem da história
nos aspectos mais insignificantes da existência, isto é, nos seus dejetos”34. Benjamin se
encontrava a essa época profundamente tocado pelas questões levantadas pelas obras literárias
surrealistas, como Nadja, de Breton e O camponês de Paris, de Aragon. Este último, de vital
importância para o projeto benjaminiano, tanto da análise da modernidade urbana quanto da
teoria da história que lhe era pertinente. Aragon destaca a importância da perecividade do
moderno, nos novos envelhecimentos centrados na expressão arquitetural das passagens
parisienses e no aparecimento de uma nova mitologia. Em outra carta datada de 1935, dessa
vez para Adorno, ele relata a emocionante leitura que empreendeu na obra capital do
movimento surrealista: “No começo há Aragon, O camponês de Paris, livro do qual eu não
podia ler mais do que duas ou três páginas à noite, na cama, meu coração batendo tão forte que
me fazia deixá-lo de lado”35.
Gershom Scholem, ao descrever seu encontro com o autor alemão na capital francesa,
em 1927, geralmente nos cafés Le Dôme ou La coupole, nota que o amigo lia os textos de
Aragon e Breton publicados nos jornais, os quais “coincidiam de alguma forma com suas mais
profundas experiências”, semelhante ao que já havia ocorrido “com aquilo que denominou de
comunismo extremo”. Ainda segundo Scholem, se o livro de Aragon, O camponês de Paris, de
1926, tinha impulsionado decisivamente o amigo de longas datas a escrever seu “projeto de
estudo sobre as Passagens de Paris, cujos primeiros rascunhos ele leu para mim nestas
semanas”, era porque “os êxtases das utopias revolucionárias e da imersão surrealista” agiam
34 BENJAMIN, Walter; SCHOLEM, Gershom. Correspondência. Trad. Neusa Soliz. São Paulo: Perspectiva,
1993. 35 Apud ARAGON, Louis. O camponês de Paris. Tradução, apresentação e notas Flávia Nascimento. Rio de
Janeiro: Imago, 1996, p. 25.
44
nele como se fossem “chaves para a abertura de seu próprio mundo”, pois ansiava por “formas
de expressão totalmente diferentes, severas e disciplinadoras”36.
Bastante íntimo da literatura francesa, que acompanhava com apuro, sendo inclusive
tradutor para língua alemã do Tableaux Parisiens, de Baudelaire, Walter Benjamin escreveu
dois pequenos e importantes ensaios, Surrealismo: O último instantâneo da inteligência
européia (1929), e Pequena história da fotografia (1931), nos quais expõe a estética surrealista
em sua relação com a cidade. Anteriormente havia publicado, em 1928, o livro Rua de mão
única, obra visivelmente influenciada pelo surrealismo.
* * *
Cada época não apenas sonha a seguinte, mas sonhando, se encaminha para o seu despertar. (Walter Benjamin)
Caminhar pelas ruas da escrita benjaminiana é deparar-se com uma tensão premente
entre a crítica radical da cidade moderna e o seu desfrute cotidiano. A modernização cultural e
urbanística das cidades passa a ser compreendida e analisada por sua ambivalência, a mesma
que caracterizaria os escritos de Benjamin. Em seus textos, fruir a cidade enquanto urbanismo,
arquitetura e cultura modernas (mesmo aquela proveniente da mercantilização cultural),
possibilita tanto acercar-se da imensa mobilização criativa empreendida pelo e no capitalismo,
quanto aperceber-se das estratégias de ocultamento da miséria social e do sufocamento das
potencialidades transformadoras, revolucionárias. Mas o jogo ainda não foi todo jogado, a
estabilidade urbana burguesa sempre estará por um fio. Em Rua de mão única37, livro escrito
sob o impacto das obras surrealistas, a linguagem literária arrisca caminhos que mimetizam a
telegráfica, e o impacto de cartazes e luminosos na via publica. A própria capa da edição
36 SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. Trad. Geraldo Gerson de Souza; Natan
Norbert e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1989. 37 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; Infância em
Berlim; Imagens do pensamento. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1997.
45
original reproduz uma rua em que tabuletas viárias indicam diversos caminhos, enchem os
olhos do possível leitor-transeunte, obnubilam sua visão e raciocínio. Como num texto marcado
pela visão urbana simbolista (mesma inspiração dos surrealistas), o ambiente urbano-literário
confunde-se com o ambiente psíquico-literário do autor. Isomorfia entre persona literária e
urbis literária: a cidade vivida e a cidade descrita. No primeiro texto desse livro, intitulado
Posto de gasolina38, encontra-se uma advertência ao fazer literário de que “a verdadeira
atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias”, o
novo cotidiano urbano e suas formas comunicativas desencadeará mudanças drásticas,
obrigando a atuação literária a abandonar o “pretensioso gesto universal do livro” em favor do
cultivo das formas modestas, e recém utilizadas, de “folhas volantes, brochuras, artigos de
jornal e cartazes”. Próximas da estética cinematográfica do choque, misturam-se às fotografias,
técnica seminal no arcabouço teórico do pensador alemão, que correspondente às
transformações perceptivas “que experimenta o passante, numa escala individual, quando
enfrenta o tráfico e das que experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a
ordem social vigente”39. A estética do choque que estrutura a escrita de Rua de mão única,
onde desfilam panoramas, canteiros de obras, cartazes, reminiscências, bandeiras, edifícios,
livros e putas, mapas, guichês, metrôs, outras ruas e diversas cidades. Riga, Marselha, Weimar,
Paris somam-se, formam uma única cidade, uma única rua. No texto Canteiro de obras40, ao
criticar a idéia iluminista de fabricação de brinquedos, Benjamin define, de forma semelhante
ao bricoleur lévis-straussiano ou o trapeiro baudelaireano, as atividades criativas infantis como
“atraídas pelo resíduo que surge na construção”, pois nesses produtos residuais “reconhecem o
rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas” estabelecendo entre materiais 38 Idem, p. 12. 39 BENJAMIM, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ____. Magia e técnica, arte e
política: obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Ruanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 192.
40 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. Trad. Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho; Infância em Berlim; Imagens do pensamento. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1997, p. 18.
46
diversos “uma nova, brusca relação entre si”. Uma bela metáfora para sua própria atuação
enquanto flâneur que recompõe construtivamente a cidade partindo dos seus estilhaços
(resíduos/ruínas), pondo-os numa outra e brusca relação, como no sonho. Em outro texto,
Trabalhos de subsolo41, o sonho o arremessa “em uma região erma. Era a praça do mercado de
Weimar”, nas escavações que se seguiram o autor raspou “um pouquinnho de areia. Então
apareceu a ponta de uma igreja. [...] Acordei rindo”.
Cidade da arcana melancolia, ao mesmo tempo espaço do sonho acordado e do perder-
se, espaço da ignomínia e revolta desesperançada que desponta no longo texto intitulado
Panorama imperial42, dividido em XIV parágrafos. No primeiro deles, as imagens são
devastadoras: “As comunidades da Europa central vivem como habitantes de uma cidade
cercada, cujos víveres e pólvora estão acabando e para qual, [...] quase não é de se esperar
salvação”. Frente a uma “potência muda, invisível” que as enfrenta e não negocia “nada resta,
senão, na permanente expectativa do último assalto, não dirigir o olhar para nada a não ser o
extraordinário”. Não é quase o programa estético baudelariano/surrealista? No parágrafo IV,
nos primórdios da moderna estética da fome, o tema é a miséria urbana “em sua exibição, que
começou a tornar-se costume sob a lei da calamidade e, no entanto, torna visível um milésimo
apenas do escondido”, tornando impossível a vida numa metrópole alemã “na qual a fome força
os mais miseráveis a viver das notas com as quais os passantes procuram cobrir uma nudez que
os fere”43. Anos após ter escrito o Rua de mão única seu autor retorna ao tema do surealismo,
sob a forma ensaística, imbuído de novas e instigantes concepções.
Apesar de toda a excessiva exegese da arte surrealista, alguns textos, como o curto, mas
seminal ensaio de Benjamin, O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia, nos
legou uma compreensão diferenciada do movimento de vanguarda francesa surgido em 1919, 41 Idem, p. 26. 42 Idem, p. 20-22. 43 Idem.
47
tendo uma tríade de artistas em seu núcleo, os escritores André Breton, Philippe Soupault e
Luis Aragon. Segundo o autor alemão eles criaram uma tradição própria, selecionando autores
que consideravam afins e percursores de suas idéias estéticas. Como o poeta Arthur Rimbaud,
que tem seu livro Uma estação no inferno transformado em texto “original do movimento” ou
Charles Baudelaire, Lautréamont, Apolinaire, citados em miligramas luminosas espalhadas por
toda a produção de seus textos, explicitando neles convergência dos movimentos românticos de
feição decadentista ou/e simbolista. A análise de Benjamin coloca o tema da cidade no centro
da estética surrealista, Paris seria “o mais onírico dos seus objetos”44. Estudioso das
fantasmagorias da modernidade parisiense, Benjamin, arremata que “nenhum rosto é tão
surrealista quanto ao rosto verdadeiro de uma cidade”45. A Paris surreal torna-se um “pequeno
mundo”46 percorrida até a exaustão pelos integrantes do movimento, desde suas “excursões”
acompanhando o grupo Dadá, como a de Saint-Julien le Pauvre, de 1921, até as derivas
relatadas nos romances. As incursões dadaístas aconteceriam nos mesmos lugares banais
escolhidos posteriormente pelos surrealistas, embora tenham caráter provocativo e gratuito.
André Breton é bastante severo nas suas críticas às deambulações dadaístas, classificadas como
uma “série de visitas-excursões, de escolha gratuita, estão previstas em Paris, em Saint-Julien le
Pauvre, no Buttes-Chaumont, na Gare Saint-Lazare, no canal de l’Ourcq”. E prossegue,
concentrando-se no que para ele foi um verdadeiro fracasso do ímpeto dadaísta “a reunião no
jardim Saint-Julien le Pauvre aconteceu, mas tem contra ela a chuva forte, e mais ainda, o
laborioso nada dos dicursos que aí se proferem”47.
Em contrapartida, as deambulações surrealistas, ao acentuar o rompimento com o
dadaísmo, criam um repertório próprio de concepções e gestos amparados numa “mitologia
44 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ____. Magia e técnica,
arte e política: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 26. 45 Idem. 46 Idem, p. 27. 47 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p. 73.
48
moderna” que estariam fragmentados no seio da cidade contemporânea. No surrealismo, como
antes no simbolismo, o meio urbano moderno com suas idiossincrasias seria a extensão da
própria subjetividade. Interpretando livremente conceitos freudianos, eles acreditavam que o
inconsciente do homem moderno se confundiria com ruas, parques, arquiteturas e objetos. O
roteiro era improvável e misterioso quanto aos lugares e objetos, ainda que imersos na
cotidianidade: primeiras fábricas e construções de ferro, fotografias e roupas antigas, locais
públicos, que começam a “extinguir-se” ou “quando a moda começa a abandoná-los”48.
Seguiam à risca um trecho da quarta sessão do Manifestes du surréalisme de 1924, escrito por
Breton:
O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas, ele participa obscuramente de uma
forma de revelação geral, na qual só o detalhe chega à nós: são as ruínas românticas, o
manequim moderno, ou qualquer outro símbolo próprio a mudar a sensibilidade
humaine durante um tempo.49
Criaram poderosas imagens e descrições que nos confrontaram com um passado naturalizado e
que, às custas de suas obras, passamos a duvidar. Se abandonam os lugares comuns defendidos
pelo discurso oficial e ostentoso da economia, não se deixam exilar numa cidade imaginária.
Adotam, entre brigas e expurgos, princípios marxistas, sem abrir mão dessa perspectiva
contrária à doutrina de esquerda. Sabemos que marxismo clássico sempre associou a crítica ao
urbanismo com a recusa da cidade ou pelo menos da experiência urbana, postergando-a para
uma vivência pós-revolução. Nem a genial crítica debordiana, fílmica ou escrita, de
fundamentação marxista, esquiva-se de cair nesses termos após o idílio inicial com a cidade ao
tempo do letrismo.
Atget e os surrealistas, sob o espectro do simbolismo, evitaram esse caminho
amaldiçoado.
* * *
48 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ____. Magia e técnica,
arte e política: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 27. 49 BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1979, p. 26.
49
Aragon, no Le paysan de Paris50, de 1926, percorre a Passagem da Ópera parisiense,
reduzindo a cidade inteira ao seu interior, dando visibilidade às contradições modernas, ao
deslumbramento fetichizado da mercadoria, ao poder capitalista de distribuí-la para consumo
global e suas emanações fantasmagóricas. As lojas da galeria acumulam objetos de todas as
partes do mundo, mercadorias assombradas pelo seu desraizamento espaço-temporal, montando
um mosaico surreal do mundo. Aragon se surpreende ao deparar com uma das duas vitrines de
bengalas, em toda a riqueza sugestiva de sua “floraison de pommaux”, provocando visões
oníricas e iluminadoras. Com a galeria completamente apagada, a vitrine assume uma claridade
esverdeada e ruídos que se faziam ouvir como vozes de concha. Era o cenário para a aparição
de uma “forme nageuse” que deslizava atrás do vidro. Para total pertubação do narrador uma
“sereia se voltou para mim com um face assustada e estendeu seus braços em minha direção.
Então, a exposição foi tomada por uma convulsão geral”51. Próximos estão os jogadores, os
rufiões as prostitutas e a boemia intelectual entre dadás e surrealistas. A deriva do camponês
busca o rastreamento das sensações que esses lugares proporcionam e a identificação de seus
novos símbolos. Surrealista, e como antes havia feito Atget, dilui a utopia de uma mudança
radical da situação urbana em favor da ambigüidade de desfrute da cidade e sua crítica. Lança-
se à Paris, que sobrevive em temporalidades conflitantes evidenciadas em parques
abandonados, ruas desertas, terrenos baldios, arquiteturas em via de desaparecimento. Ao décor
memorialista do espaço urbano contrapõem o décor duma mitologia moderna que souberam
pressentir e tornar visível em imagens e textos, que percorreram incansáveis. São admiráveis
jardins de crenças absurdas, pressentimentos, obssessões e delírios”. Lugares incomuns em que
os “novos mitos nascem sob cada um de nossos passos”52. As caminhadas a esmo formam a
liturgia desses novos deuses conduzindo às descobertas no emaranhado da paisagem urbana. O
50 ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926. 51 Idem, p. 27-30. 52 Idem;
50
abandono do dadaísmo à sua própria sorte, pelos surrealistas, preconiza uma nova abordagem
da cidade, diferindo-se destes e da crítica habitual concentrada numa interpretação sígnica. O
andar, experiência corporal, torna-se instrumento indispensável para a eficácia da crítica.
Avenidas e ruas se imantam aos olhos do passante com “embriaguez em meio a mil
concretudes divinas. Eu me ponho a conceber uma mitologia em marcha que merecia,
propriamente, o nome de mitologia moderna”53. Temporalidades distintas superpostas numa rua
deserta ou na leitura de um cartaz de cinema, no esbarrar com uma bela mulher ou num jardim
crepuscular abandonado. O epifânico resultante do estado de tensão entre contradições
temporais no espaço urbano, como a descoberta espantada da novidade do velho, imposto pelo
estupefaciamento das imagens54. Por outro lado, no desbravamento noturno das paisagens
banais do Parque de Buttes-Chaumont, frisson e embriaguez. O camponês se pergunta : “Teria
eu durante muito tempo o sentimento do cotidiano maravilhoso?”
Benjamin adverte que a proposta surrealista de subverter o racionalismo ocidental
através do inconsciente, experimentado nas vias urbanas, deveria abandonar um certo
misticismo e incorporar categorias materialistas. O cotidiano urbano, abraçado em sua
imediatez, propicia aos surrealistas iluminações profanas através do estranhamento do que
lhes está próximo, em que objetos, espaços, se reorganizam em combinações inesperadas. A
iluminação deveria ser então, não mística, transcendente, mas profana e antropológica: a
militância política deveria centrar-se no despertar revolucionário das energias aprisionadas
naquilo que é antiquado, que se apresenta para nós, no meio urbano, em ruínas. Aragon escreve
que “certos lugares, vários espetáculos, eu experimentava sua enorme força contra mim, sem
descobrir o príncipio deste encantamento”55. Personagens, hábitos culturais, arquiteturas. Como
53 Idem, 1926, p. 141. 54 Idem, p. 80. “O vício chamado Surrealismo é o emprego desregrado e passional da imagem surpeendente, ou
antes, da provocação descontrolada da imagem por ela mesmo e pelo que ela produz no domínio da representação de perturbações imprevisíveis e de metamorfoses”.
55 Idem, p. 138
51
se nossa experiência urbana só pudesse ser compreendida a partir da incorporação do que é
efêmero, ou mesmo de adotarmos a efemeridade como bússola urbana, na medida em que tudo
o que nos cerca nas grandes cidades se destina à morte, entendida como possibilidade de
desaparecimento.
A dubiedade da crítica do espaço urbano moderno presente nos livros surrealistas
consiste na convivência com uma aprovação desse espaço enquanto campo de experiências que
desafiem os usos estabelecidos da cidade e seu confinamento pelo urbanismo haussmanniano.
Mais do que isso, encantamento e iluminação emanam do insólito, reeducando o flâneur para o
que só ele poderá ver e sentir, do “gosto e da percepção do insólito”, pois, a “ luz moderna do
insólito é o que vai retê-lo de agora em diante” 56. As cidades tornam-se estranhas e desafiam,
ainda mais uma vez, os seus habitantes a decifrar seus signos, “forêt de symboles”. Os
surrealistas entenderam, de forma abrupta que “a claridade me veio, finalmente, eu tinha a
vertigem moderna” e nos legaram em suas obras, que esse processo não mais se reteria. Para
eles e o paysan, “nossas cidades são tão povoadas de esfingem ignoradas que não param o
passante sonhador”. Mas é o próprio espaço urbano modernizado que lhe impõe a forma de
perceber e decifrar seus enigmas “se ele não traz para eles sua distração meditativa”57. O
choque das imagens e sensações imporia uma meditação que se afasta daquela filosófica, agora
é sob o signo da apreciação cinematográfica, meio distraída, (Benjamin soube reler essa
passagem no texto sobre a obra de arte) que nos tornamos capazes de sobreviver e desfrutar a
nova mitologia urbana. Como se fosse necessário uma recolonização do andar e olhar na cidade
sob as intempéries do moderno. Geografia sensível, os topônimos assumem vida própria e
confundem-se com clusters de sensações: rue de Seine, place Maubert, parc Buttes-Chaumont,
Passage de l’Opera, rue des Usines, place Villiers. Os passantes, sofrem aí uma “metafísica dos
lugares” que “povoam seus sonhos. Estas praias do desconhecido e do frisson [...] este 56 Idem, p.13-14, p. 18. 57 Idem, p. 18.
52
sentimento do estranho, que me tomava, quando eu ainda estava maravilhado dentro de um
cenário”58.
A ameaça que paira sobre a arquitetura das passagens, extensível a todas as coisas, o
momento de perigo que coloca em risco sua sobrevivência, atua resignificando sua importância
dentro da cultura e se revela precária, acelerada em sua desconstituição, instaurando novas
apreensões do urbano:
O grande instinto americano, importado para a capital por um prefeito do segundo
Império, que tenta recorta perfeitamente o mapa de Paris, vai logo tornar
impossível a manutenção desses aquários humanos já mortos em suas vidas
primitivas e que mercem, no entanto, ser olhados como guardiães de muitos mitos
modernos, pois é somente hoje que a picareta os ameaça, que eles se tornaram
efetivamente os santuários do culto do efêmero, que eles se tornaram a paisagem
fantasmática dos prazeres e das profissões mauditas, incompreensíveis ontem e
que o amanhã jamais conhecerá.59
Qual o poder oculto das passagens e dos parques abandonados? Por que eles provocam
experiências iluminadoras? Qual o mistério que os coloca no centro das atenções surrealistas?
Para Benjamin, a escolha dos surrealistas não é aleatória, eles foram os primeiros a pressentir
“as energias revolucionárias que transparecem no antiquado”60. O ritmo incessante do
urbanismo moderno tanto produtivo quanto destrutivo, ameaça constante da paisagem urbana,
aproxima instantaneamente o novo e o antigo, transformando-a num cenário de ruínas. A
provisoriedade do moderno só vem à luz no instante de fragilidade do que até então lhe
simbolizava. Mais que isso assumem novas significações e usos. Sua condenação sem sursis
será seu último depoimento mudo.
Essa perspectiva será retomada no tomo V das teses benjaminianas da história
espantosamente nos mesmo termos: 58 Idem, p. 17-18. 59 Idem, p. 19. 60 BENJAMIN, Walter. O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. In: ____. Magia e técnica,
arte e política: Obras escolhidas I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 25.
53
A imagem autêntica do passado aparece apenas num clarão. Imagem que surge
apenas para desaparecer para sempre no instante seguinte. A verdade imóvel que
faz apenas esperar alguém que a procura, não corresponde de maneira alguma a
este conceito de verdade tratado pela história [...] É uma imagem única
insubstituível do passado que se esvaiu com cada presente que não soube se
reconhecer mirado por ela. 61
Completada pela seguinte frase do tomo VI: “O conhecimento do passado assemelharia-
se, antes, ao ato pelo qual o homem, no momento de um perigo repentino, apresentará uma
lembraça que lhe salva ”62.
Comparando as duas citações, vemos que Aragon fornece a Benjamin o cerne de sua
teoria da história. O desvencilhamento administrado das paisagens velhas e ultrapassadas das
cidades, colocam arquiteturas, bairros, objetos em perigo, momento em que os reconhecemos
como fantasmagoria, possibilitando uma apreensão diferente das que tínhamos e que se
extinguirá, perdida para o futuro. A teoria da história benjaminiana retoma a idéia de que o
passado para ser reconhecido como tal deve ter a aprovação dos contemporâneos. A
reminiscência, entretanto, será visada sob um momento de perigo. Na forma arquitetônica das
passagens, os surrealistas encontram abrigo para montar suas estratégias de contra-memória e
reafirmação da cidade, como havia feito Atget na Paris esquecida. Os livros surrealistas de sua
época heróica se distinguem das concepções comumente associadas ao movimento, marcadas
pela tentativa de representá-lo apenas como uma transposição literária do inconsciente
freudiano. Ele é mais que isso. Para nós é a questão temporal, como já assinalamos ao citar
Sontag e Benjamin, que redefiniria o movimento. Ao instar as forças do desaparecimento, da
transitoriedade do moderno, aponta sua fragilidade e reinterpreta as ruínas românticas. É a
61 BENJAMIN, Walter. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991, p. 435. 62 Idem, p. 436.
54
duração das coisas que está em jogo, “por exemplo, a apologia do gosto do efêmero. O efêmero
é uma divindade polimorfa assim como seu nome”63.
Assim, os estilhaços de outras épocas que perduram enquanto ruínas no meio urbano
assumem o caráter fantasmagórico e explosivo: acenam para a instabilidade vivida e sua re-
interpretação no centro da cultura. Desnaturalizam a história. Ao explorar as passagens,
arquitetura depassé, a elegia às ruínas empreende uma crítica ácida, mesmo irônica, ao
triunfalismo modernizante. Símbolo do apogeu capitalista que expunha pela primeira vez as
mercadorias como forma de culto, as vitrines das galerias com seus objetos fora de tempo,
tornam-se atraentes aos surrealistas só no momento da decadência apoteótica e irreversível.
Para Aragon, “um gosto de desastre estava no ar. impregnava, tingia a vida: todo o moderno
deste tempo, essa função da duração tinha um ar que parecerá logo singular”64.
A acelerada decrepitude da cena urbana educa os cidadãos no refinado “goût du
desastre”, fazendo com que desdenhemos, como fez os surrealistas, das novas configurações
arquiteturais ou promessas modernizantes. Eles intuíam o fracasso eminente de tudo o que se
prometia moderno: “Assim, estes nascerão das ruínas dos mistérios de hoje”65. Expurgando
parte da nostalgia das ruínas românticas, reivindicavam o trabalho de luto, pois é sob o signo da
morte que as compreendiam, mesmo sem deixar de reverenciá-las. Ainda Aragon :
Procuro ler nesta rápida escritura e a única palavra que eu creio discernir dentre
estes caracteres cuneiformes, transformados sem cessar, não é Justiça, é Morte. Ó
Morte, criança charmosa um pouco empoeirada, tens aqui, um pequeno palácio
para tuas vaidades. Aproxime-se docemente sobre teus calcanhares virados,
desamasse o teu vestido seda e dance. 66
63 ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926, p.109. 64 Idem, p. 161. 65 Idem, p. 20. 66 Idem, p. 41-42.
55
No Manifesto, Breton já convidava o leitor a ser introduzido, pelo surrealismo, “na
morte que é uma sociedade secreta. ele eluvará tua mão, enterrando aí o M profundo pelo qual
começa a palavra Memória”67.
* * *
Embora não tenha o mesmo peso dos livros de Breton, em Le paysan de Paris, a figura
feminina também simboliza errância e iluminação. Assumindo variadas máscaras de
feminilidade que insta o citadino à deriva, por vezes sob o risco da noite ou pelos recônditos da
cidade, prepara-o para a experiência epifânica e laica do encontro imprevisto que sempre
“explicitamente ou não, seguir os traços de uma mulher” 68. Seja a fada: “Uma fada meio louca,
e é você, que pega pela mão a criança que sai da floresta encantada na qual finalmente
adormeceram, lado a lado, o pequeno Polegar, o Passáro Azul, a Chapeuzinho Vermelho e o
Lobo”. A passante: “Na passagem da Ópera tantas transeuntes diversas [...], de idade e beleza
variáveis, muitas vezes vulgares, e de alguma forma já depreciadas, mas mulher, mulher
verdadeiramente, e sensivelmente mulheres”. A prostituta, o manequim ou a mãe de família:
“Putas velhas, peças montadas, múmias mecânicas, gosto que vocês figurem no cenário
habitual, pois vocês são ainda os brilhos animados ao preço destas mães de família que
encontramos nos passeios públicos”69. O encontro fortuito com uma das facetas do feminino,
sua perseguição pelas ruas, é uma característica da invenção da cidade surrealista: “para bem se
fazer ver uma mulher que passa na rua” 70. As apaixonantes personagens femininas (loucas,
prostitutas) definem a ambiência sensual que eletriza ruas e praças. Esse é o tema por
excelência dos escritos de André Breton enredado no amour fou.
67 BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1979, p. 44. 68 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p. 139. 69 ARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926, p. 88 ; p. 43-44. 70 BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 1979, p. 44.
56
A personagem Nadja do romance71 homônimo de Breton se confunde com a cidade de
Paris, emanando um erotismo próximo do mistério e da loucura. O autor, personagem da
própria narrativa, desloca-se obsessivo por avenidas e parques, excitado pelo clima desvairado
de sedução, cada vez mais prisioneiro da figura feminina ao enveredar pela alucinação e busca
desesperada. A sua aparição era mais que esperada por Breton: “Eu sempre desejei,
inacreditavelmente, encontrar, em um bosque, uma mulher bela e nua”. Mas a incerteza do
quando o arrasta para “dentro de um mundo como que proibido que é aquele das aproximações
repentinas, das coincidências petrificantes”72. O erotismo surrealista entregue ao acaso,
transfigura a topografia de Paris, seu “pequeno mundo”: o boulevard Bonne-Nouvelle, o Jardin
des Tuileries, a place Dauphine, etc. Como Nantes, talvez Paris seja “a única cidade da França
na qual tenho a impressão que qualquer coisa, que valha a pena, pode me acontecer”73.
Se em Aragon, são as galerias e os bosques que se sobressaem como topografias
próprias para a errância, em Breton, são as ruas. E com que desenvoltura ele as percorre:
“podem, ter certeza, de me encontrar em Paris, de não passar mais de três dias sem me ver ir e
vir, ao final da tarde, no bulevard Bonne-Nouvelle”74. Ao procurar compreender Nadja,
descrevendo-a, Breton, ainda no romance citado, define-a como “a criatura sempre inspirada e
inspiradora que gostava apenas de estar na rua, para ela o único campo de experiência
válida”75. Essa frase pode ser aplicada aos surrealistas heróicos que viam nas ruas a parte mais
importante das cidades. O mesmo Breton, não escrevera anos antes, nas Confessions
dédaigneuse, contida no livro Les pas perdus, que “a rua com suas inquietudes e seus olhares
era meu elemento verdadeiro: aí, eu encontrava, como em nenhum outro lugar, o vento do
71 BRETON, André. Nadja. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro. Guanabara, 1987. 72 BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1998, p. 19. 73 Idem, p. 32. 74 Idem, p. 36. 75 Idem, p. 113.
57
eventual”76. Foi durante uma dessas incansáveis caminhadas, exercendo a flânerie, que
encontra a sua amada. A descrição dos lugares, o olhar sem atenção, “distraído”, capta a
aparência das ruas:
Eu seguia meu caminho na direção da Ópera. Os escritórios e ateliês começavam
a se esvaziar, de alto à baixo as casas, as portas se fechavam, as pessoas sobre as
calçadas apertavam as mãos [...]. Observava sem querer as faces, o vestuário
ridículo, os comportamentos. [...] De repente, quando ela está, talvez, ainda a dez
passos de mim, vindo em sentido contrário, vejo uma jovem mulher [...]. Ela vai,
cabeça erguida, ao contrário de todos os outros transeuntes. 77
Em seu famoso livro de entrevistas, Breton esclarece que o gosto de aventura
alimentava o grupo de jovens ao seu redor, que a procuravam na linguagem, sonho, ou na rua.
As obras Le paysan de Paris e Nadja seriam o clímax desse estado mental que incita ao
extremo o “gosto de errar”78. Após o encontro, Breton e Nadja, irmanam-se nas saídas
noturnas por locais ermos. O narrador confessa que “nós deambulamos pelas ruas, uma após
outra” ou endereços que lhes tragam relatos de acontecimentos imprevistos como o “boulevard
Magenta diante Sphinx-Hôtel”79 descrevendo uma topografia do insólito. Dois desses lugares,
freqüentados por Breton, lhe trazem sensações diversas. No primeiro deles, a Place Dauphine,
descrita como “um dos lugares, mais profundamente, menos visitados que conheço”, provoca
no poeta a vontade de “me abandonar, pouco a pouco, ao desejo de ir para outro lugar”80. O
outro, o mercado das pulgas de Saint-Ouen, que Breton percorre “à procura desses objetos que
não encontramos em nenhum outro lugar, fora de moda, fragmentados, inútil, quase
incompreensíveis, perversos [...]”81. O que nos reenvia aos insights de Benjamin quanto ao
76 Apud BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1998, p. 170. 77 Idem, p. 63-64. 78 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p. 139. 79 BRETON, André. Nadja. Paris: Gallimard, 1998, p. 105. 80 Idem, p. 79. 81 Idem, p. 55.
58
gosto surrealista pelo antiquado e da descoberta de seu caráter explosivo, aliando sonho e
revolta.
Como observa o escritor Claudio Willer, ao comentar outro livro de Breton, L’amour
fou, é a “revelação da cidade de signos”82. Nele encontra-se o relato de um dos mais belos
encontros amorosos da cidade sonhada pelos surrealistas. As idas e vindas os obrigam a andar
inicialmente por Monmartre, depois Les Halles, observando o fim de noite, até passar pelo
Hotel de Ville, assombrarem-se com a Torre Sain-Jaques e atravessar o Sena. Diversos
percursos poderiam ser evocados acerca desse livro que reitera a combinação surrealista de
devaneio e deriva, a mesma dos dois mais famosos filmes ligados ao movimento. Os filmes e
as exposições expandiram o campo de atuação da ambiência urbana surreal enquanto
cenografia e produção objetual.
* * *
Un chien andalou, de 1928, e L’âge d’or, de 1930, realizados por Luis Buñuel e
Salvador Dalí, foram tomados como expressão da imagem surrealista. O primeiro deles,
famoso pelas cenas absurdas e fortes, apresenta poucas imagens urbanas, até o aparecimento de
uma rua deserta com um homem andando de bicicleta. Após alguns segundos, ele tomba e cai,
batendo a cabeça no meio fio. Leva uma caixa e parece ser esperado e observado por uma
mulher. Alguns segundos depois, o homem que parece ser o mesmo que caíra na rua, caminha
num quarto ao lado da mulher que o observava. Em atitude suspeita, aproxima-se, com cautela
da janela, e passa a olhar a rua. Uma mulher andrógina e apática, mexe em algo com uma vara,
no meio da avenida. Transeuntes param e se aglutinam em torno dela, o tráfego está parado.
Percebemos, assustados que se trata de um punho amputado. Um guarda se aproxima
dispersando a pequena multidão. Após colocar a mão decepada numa caixa e entregá-la para a
82 WILLER, Claudio. Volta. São Paulo: Iluminuras, 1996. p, 67
59
mulher, essa se deixa atropelar. A produção de imagens bizarras para apresentar a cidade e
sobretudo suas ruas, assumem um caráter mais violento que as descrições literárias. Dali e
Buñuel, trazem vigor à visão urbana dos surrealistas sem esquecerem dos pontos centrais que
marcaram suas obras nos anos 20. A colagem, o arbitrário, o surpreendente são pautados como
expressão da vida nas ruas entre sonho e realidade.
No segundo dos filmes, em que as cenas em lugares públicos são mais freqüentes, uma
cidade antiga se adequa ao ritmo moderno. Desesperado, um homem percorre ruas em busca da
mulher amada, enquanto chuta um violino, que ao final esmaga com os pés. Ao seu redor
avenidas inteiras explodem como que bombardeadas. Rapidamente, um homem carregando um
pão na cabeça cruza seu caminho. Cartazes de publicidade (talvez de alguma diva
cinematográfica e meias femininas), vitrines, são os “aspectos diversos e pitorescos da cidade
grande”. As obsessões surreais se repetem. Uma fotografia observada por transeuntes torna-se
viva por trás da vitrine e após um cego ser chutado, uma criança é brutalmente assassinada num
jardim. Todos os que percebem o ato criminoso o aprovam como banal. O clima, além de
erótico, é onírico é violento. Melhor seria a imagem de um pesadelo que se arrasta interminável
por uma topografia desconhecida. Os caminhos escondem acasos e podem nos surpreender com
imagens repugnantes e escandalosas. Ruas abrem-se ao “acaso objetivo” emolduradas pela
atração amorosa de um homem indo em direção da mulher que o anima. Ao encontrá-la, depois
de outros imprevistos, seu olho inexplicavelmente começa a sangrar.
Exibido no Studio 28, em Montmartre, acompanhado de uma exposição de pintores
simpatizantes do movimento, L’âge d’or, foi alvo da ação política do grupo de direita
conhecido como “Os camelos do rei”, que invadiram a sala, rasgaram quadros, jogaram pedras
etc. O filme, inexplicavelmente, ficou proibido na França até 1980.
* * *
60
Nas exposições internacionais do surrealismo em Paris, de 1947, 1958, 1959 e 1965,
reiterando as descrições do erotismo dos livros de Breton e Aragon, artistas do movimento ou
agregados, provocariam fortes reações do público pela encenação erótica de uma avenida
imaginária de Paris. Quadro, manequins, objetos concorrem para o clima paródico, provocador
do erotismo surreal83. Essa teatralização que se utiliza da linguagem cênica é mais uma
alternativa, além da literatura e do cinema, de analisarmos a cidade surrealista e suas obsessões.
Em 1938, os surrealistas tiveram a oportunidade de demonstrar, além do discursivo, as
suas idiossincráticas visões do urbano, preparando neste ano, a Exposition Internationale du
Surréalisme na Galerie Beaux-Arts, 140, Rue du Faubourg Saint-Honoré, Paris. Experiência
única, quando um conjunto de artistas, sob a batuta autoritária de Breton, cenografaram uma
cidade imaginária e erotizada, com nomes de ruas espalhados por um dos vãos da galeria,
apregoadas como “as mais belas ruas de Paris”. As imagens ainda são impactantes.
Marcel Duchamp, chamado para cenografar a galeria como ambiente surrealista, teve a
idéia de atapetá-la, segundo Salvador Dalí84, com 1.200 “sacos de carvão usados, para que a
exposição se desenrolasse no escuro” que vemos nas fotos pendendo inexplicavelmente do teto.
Isso explica a foto hilária, anônima, de Paul Eluard e René Magritte, entre outros, empunhando
o que parecem ser lanternas de bolso que todos os visitantes tiveram que empunhar para
conseguirem ver alguma coisa. O ambiente reforça a erotização do espaço já presente nos
romances surrealistas da cidade enquanto grande útero. A grande rua mal iluminada, assaltada
por manequins encenados como desejos proibidos e alucinações abrem-se para propiciar uma
iluminação profana ao público estupefato85.
83 MAHON, Alyce. Surrealism and the politics of Eros 1938-1968. London: Thames & Hudson, 2005, p. 23-63. 84 DALÍ, Salvador. As confissões inconfessáveis. Trad. Flávio e Fanny Moreira da Costa. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1976. 85 MAHON, Alice. Surrealism and the Politics of Eros. 1938-1968. London: Thames & Hudson, 2005, p.23-44.
61
No pátio de entrada da galeria, Dalí propôs o Taxi pluvieux “um táxi cuja capota cheia
de buracos deixaria filtrar uma chuva contínua sobre uma Vênus deitada em meio a líquens e
conduzido por um monstro”, na verdade um chofer com ‘‘um capacete feito de um maxilar de
tubarão. A dama deveria estar vestida de preferência com um cretone sórdido”. No interior
“dezesseis manequins fantasiados”. Ainda segundo Dalí “cada manequim tinha um nome de
rua: Rua Fraca, Rua Viviane, Rua dos Lábios, Rua de Uma Pérola, Rua da Transfusão de
Sangue, Rua Cereja – compuseram assim uma espécie de Paris ideal [...].” Identificamos nas
fotografias do evento86, além das já citadas por Dali, a Passage des Panoramas, Rue de tous les
Diables, Rue Glacière, Rue aux Lèvres.
As descrições dos manequins feitas por Aragon enquanto vagava na Passagem sempre
incitaram ao sonho. Os surrealistas sempre se impressionaram com autômatos e manequins. O
simbolismo da perfeição feminina, a disponibilidade ao desejo masculino nos lembra as
personagens dos romances, sempre de vida incerta, algumas ligadas à prostituição. Por outro
lado, o manequim com sua forma rígida tem algo de cadavérico e monstruoso. Nas vitrines
entronizam a imagem feminina no seio do capitalismo mercantil: apoteose das mercadorias. O
meio termo entre o autômato e a idealização do corpo feminino, a superposição de sexy appeal
e morte, a forma-mercadoria. E não são sempre as mulheres que erotizam as ruas, se
confundem com elas como em Nadja ou L’amour fou de Breton? O insólito dos encontros, a
excitação de percorrer ao lado ou no encalço da mulher misteriosa, sonhada impulsionando o
deslocamento. Na rue surréaliste da Exposição Internacional de 1938, manequins-travestis com
roupas masculinas (Rue aux Lèvres), com gaiolas na cabeça e faixa sadomasoquista na boca
(Rue Vivienne), santificadas com véus e ramos secos numa alusão à Virgem (Rue de tous les
Diables), nua com uma rede sobre o corpo como se estivesse sido pescada (Rue Glacière) etc.
Assombrosa transposição para o espaço cenográfico das ruas de Paris após vinte anos de tê-las
86 SCHNEEDE, Uwe M. Begierde im blick: surrealistische photographie. Ostfildern: Hatje Cantze, 2005.
62
descrito nos livros e experienciado nas caminhadas que se iniciaram com os dadaístas. Vemos
não só a continuidade da idéia de iluminação, como a inserção da fantasmagoria da morte
assolando espaços e corpos. Pressentiriam o tom de réquiem assumido alguns anos depois, após
o fracasso da aventura situacionista, pelo mais importante agitador do movimento? (fig. 2)87.
* * *
Em 1952, os integrantes da internacional letrista fazem um zoneamento psicogeográfico
das cidades, praticando andanças sistemáticas e produzindo relatórios e mapas inusitados, que
se superpõem ao traçado abstrato, racionalizado das cidades. Debord e os letristas se dispersam
na cidade, unindo crítica ao urbanismo de Le Corbusier às derivas, definidas como “técnica da
passagem rápida através de ambiências variadas”. Críticos dos dadaístas e surrealistas,
demonstram afinidades com os últimos ao percorrem as ruas com prazer, afirmando “um
comportamento lúdico-construtivo, o que, em todos os aspectos, se opõe às noções clássicas de
viagem e de passeio”88. Imaginam uma revolução poética do espaço urbano a serviço do
urbanismo unitário, criador de ambiências urbanas, que possibilitem a reinvenção de um
cotidiano ambiguamente militante e maravilhoso.
A cidade enquanto vida cotidiana é o campo de intervenção por excelência dos
letristas/situacionistas, na vertente da tradição estética moderna, conciliando repulsa e utopia,
na sua singular apresentação da metrópole contemporânea, como se Engels e Rimbaud
pudessem tranqüilamente trilhar as mesmas ruas, descobrirem-se como companheiros atrás de
uma mesma barricada. Para Paola Berenstein Jacques89, a militância situacionista se desvia do
programa proposto inicialmente de “ir além dos padrões vigentes da arte moderna”, defendendo 87 Foto de Raoul Ubac em SCHNEEDE, Uwe M. Begierde im blick: surrealistische photographie. Ostfildern: Hatje
Cantze, 2005. 88 DEBORD, Guy-Ernest. Teoria da Deriva. In: JACQUES, Paola Berenstein (org). Apologia da Deriva. Trad.
Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p 87-91. 89 JACQUES, Paola Berenstein. Breve histórico da Internacional Situacionista – IS (1). In: Arquitextos –
Periódico mensal de textos de arquitetura. Disponível em: < http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp176.asp > . Acesso em: 20 mai. 2008.
63
“uma arte diretamente ligada à vida, uma arte integral”, para em seguida “perceberem que esta
arte total seria basicamente urbana e estaria em relação direta com a cidade e com a vida urbana
em geral”. Ao combater o urbanismo moderno e sua racionalização capitalista que “dissolve a
autonomia e a qualidade dos lugares”, expressa pelo seu projetismo e zoneamento espacial,
reivindicando ao mesmo tempo um urbanismo unitário e a criação de situações, os
situacionistas denunciam a rarefação espacial empreendida pelo urbanismo e a arquitetura
moderna, numa cambialidade e aplicabilidade total do espaço. Os situacionistas queriam o bom
uso do espaço além de sua reprodutibilidade técnica, revertendo o processo de
espetacularização do tempo/espaço e da cultura, negando-o enquanto mercadoria. As duras
críticas que fizeram ao lazer e ao turismo estão apoiadas no exercício da deriva, prática ainda
possível de fruição da cidade. O turismo usufrui da reprodução espetacular do espaço,
“subproduto da circulação de mercadorias”, quando o próprio deslocamento passa a ser
“considerado como um consumo”. Contrapostos ao andar lúdico e criativo da deriva, prática e
expressão criativa, turismo e lazer atuam na gestão do tempo livre, revés do tempo trabalhado,
“pseudocíclico” e “consumível”, restaurador das energias gastas na exploração da força de
trabalho. Ao fazer literário fica contraposto a produção, com uma certa ironia, de relatórios
críticos sobre as derivas, por vezes seguindo indicações tiradas nas reuniões do grupo.
Com La société du spectacle, Guy Debord90 rompe com a visão estética que sonha
instaurar uma guerrilha situacionista no cerne do cotidiano das cidades, preconizando o total
controle da sociedade pelo estágio do capital feito espetáculo. É visível o recrudescimento de
suas ideias marxistas em detrimento dos ideais das vanguardas estéticas. Não cabe mais
nenhuma forma de gozo nas cidades espetacularizadas, nenhuma deriva possível, só o exílio. A
superação da perspectiva estetizante aflui para a solução clássica marxista do embate de classes
como única alternativa de superação da condição urbana. O urbanismo cumpre tarefas
90 DEBORD, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992.
64
policialescas, desertificando as cidades, tornando seu cotidiano tecnicamente produzido,
racionalizado, mercantilizado, sem possibilidades de interação humana, sob o impactante
afloramento midiático. No filme A sociedade do espetáculo, Debord, conjuga imagens de
conjuntos residenciais inóspitos, desérticos, sem vida cotidiana, aparentando abandonos, com a
leitura de um trecho do seu livro homônimo que caracteriza o estado terminal e irreconciliável
da cidade moderna: “O urbanismo é este apropriamento do ambiente natural e humano pelo
capitalismo que, se desenvolvendo logicamente e em dominação absoluta, pode e deve agora
refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário” 91. A voz grave, pausada parece
entoar um réquiem para vida urbana.
91 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Disponível em:
< http://www.youtube.com/watch?v=Earbc7fuFjA>. Acesso em: 12 jul. 2008.
65
2. Pierre Verger: deambulação, fotografia, surrealismo
Nascido em Paris, no ano de 1902, num ambiente burguês o qual dramaticamente
rejeita, o fotógrafo Pierre Verger compra sua primeira máquina fotográfica em 1929, mesmo
ano que inicia suas viagens. Aprende a utilizá-la com o fotógrafo Pierre Boucher, que o ensina
ao tempo que os dois percorrem a pé a Ilha de Córsega. Com a morte da mãe em 1932, último
membro próximo de sua família, Verger, aos 30 anos, abre mão de suas ações da empresa
paterna, transferindo-as para os operários, reservando pouco para si do espólio paterno, apenas
aquilo que considerava suficiente para uma sobrevivência modesta. Ao voltar de sua primeira
viagem, descobre que está completamente sem dinheiro em Paris. Nessa época, tem um rápido
contato com o grupo surrealista, aproximando-se do poeta, escritor e roteirista de cinema,
Jacques Prévert92, que havia fundado um grupo de teatro esquerdista chamado Groupe Octobre.
Voltando da Rússia, viagem que fez influenciado por seus amigos de esquerda, Verger percebe
que suas ligações com a Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários, ligada aos
surrealistas, dividida entre Aragon, Malraux, Prévert e Breton, não correspondia a suas
expectativas estéticas e existenciais. Sua postura é sempre dura, embora ambígua, em relação
aos movimentos de vanguardas, aí incluso o surrealismo, dominante em Paris nos anos 20 e 30.
Suas críticas são marcadas por forte aversão ao mundo intelectual, posição defendida por toda a
vida: “Para dizer a verdade, na época, eu pouco me preocupava com o Surrealismo, apesar de
92 Sobre um contato direto entre Verger e os surrealistas, segundo pesquisadores e biógrafos, eles se deram pelo
menos por duas vezes, com a famosa Bande à Prévert e com a não menos famosa Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários – AEAR, ambos ligados aos surrealistas, entretanto a abordagem adotada nesse trabalho prescinde desses contatos diretos concentrando-se nas questões intelectuais/estéticas e sua circulação e debate no início do seculo XX. Para mais informações sobre o tema: NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p.43-49; LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002, p. 51-53; POSSA, Cláudia Maria de Moura. O toque Verger: estudo da obra fotográfica de Pierre Verger. Disponível em: http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=164&Itemid=550.
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conhecer Michel Leiris e alguns outros envolvidos neste movimento. Estas preocupações
intelectuais quase não me tocavam”93.
O estudo da arte e fotografia do período mostra-nos que embora muitos escritores ou
fotógrafos não tenham, como Verger, aderido explicitamente ao surrealismo, foram
simpatizantes às questões centrais do movimento. Com a derrocada do dadaísmo em Paris, para
onde seus principais líderes se dirigiram justamente tentando evitar a perda de vigor do
movimento, os surrealistas, que de início a eles se associaram, assenhoraram-se do trono vago.
Foi o período heróico do surrealismo. Na roda incessante das vanguardas, nos anos 20 e 30, os
surrealistas difundiram seus livros, imagens, e sobretudo suas idéias acerca da estética e do
novo modo de vida, no século que começava. Como ignorar nas próprias formulações estéticas
em torno da fotografia ou mesmo do intinerário biográfico de Verger, como de todos que se
descobriram artistas sob a ascensão da vanguarda surrealista, as concepções centrais do
movimento?
Verger, ele mesmo sinaliza, é bom lembrarmos, que o surrealismo levantava questões
intelectuais que “quase não me tocavam”. Em vista disso, compreende-se quando, Jean-Pierre
Le Bouler, seu mais apaixonado biógrafo, inicia o capítulo “Partida – 1932”, citando o
expoente máximo do movimento, André Breton, num texto intitulado Larguem tudo, publicado
em 1922: “Deixem ao léu uma vida cômoda, o que lhes é dado como uma situação para o
futuro. Partam pelas estradas”94. Só depois de dez anos de publicado o texto é que Verger irá se
“adequar a tais preceitos”.
Depois de abandonar o grupo de Prévert, ele resolve seguir os passos de Gauguin, e
entre o amor e a aventura, deslocar-se até a exótica e fascinante Polinésia Francesa,
desembarcando, ainda em 1932, no Taiti.
93 LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002. 94 Idem, p. 55.
67
* * *
É sintomático ser o Taiti a sua primeira escolha. Essa espécie de etnografia selvagem
tem sua linhagem formada por conhecidos artistas modernos que antecederam os surrealistas,
embora esses fossem avessos a grandes viagens. Os pais dessa “poética postsimbolista del
desplazamiento”, definição dada pelo antropólogo James Cliford95, investindo em encontros
pertubadores e não estáveis, “dramatizada pela fuga” francesa, podem ser Paul Gauguin e sua
fuga para o Taiti, Victor Segalen e o Oriente ou o desesperado deslocamento sucessivo de
Rimbaud desde sua ida à Abissínia. Próximos aos surrealistas teríamos Michel Leiris e sua
África fantasmal e o México delirante de Antonin Artaud. Reterritorialização, etnografia livre,
desraigamento existencial e, sobretudo, deslocamento. Diferenciando o termo “etnografia” da
“ciência humana que na França foi chamada de etnologia”, Clifford afirma que o “rótulo
etnográfico sugere [...] uma observação participante entre os artefatos de uma realidade cultural
desfamiliarizada” 96, esforço de tornar estranho o que é familiar.
O caso Gauguin é exemplar, lança luz na experiência vergeana de déplacement
(deslocamento) e détachement (desapego). Depois de uma vida burguesa de relativo sucesso
como empregado em uma casa de câmbio, quando conseguiu amealhar uma pequena fortuna,
Gauguin97 viu-se enredado pelo desejo de pintar, a ponto de em 1883 abandonar o trabalho. A
este se seguiu o abandono da vida familiar e a dedicação à vida boêmia, criativa e miserável. O
processo de desterritorialização aí iniciado só seria completado ao perceber que sua ruptura era
mais profunda, não apenas estética, resolvendo abandonar também o Ocidente, deslocando-se
inicialmente para as Antilhas, onde passa todo o ano de 1887. Ao retornar, encontra-se na
95 CLIFORD, James. Uma poética del desplazamiento: Victor Segalen. In: ____. Dilemas de la cultura.
Antropología, Literatura y Arte en la perspectiva posmoderna. Trad. Carlos Reynoso. Barcelona: Gedisá, 1995, p 189.
96 CLIFORD, James. Sobre el surrealismo etnográfico. In: ____. Dilemas de la cultura. Antropología, Literatura y Arte en la perspectiva posmoderna. Trad. Carlos Reynoso. Barcelona: Gedisá, 1995, p.179.
97 GAUGUIN, Paul. Noa Noa. Paris: Jean-Jacques Pauvert et compagnie, 1988.
68
França, em 1888, com outro exilado, embora de maneira radicalmente diferente, o pintor
Vincent Van Gogh. Após freqüentar os meios literários simbolistas parisienses, aos quarenta e
três anos, “volta-se para a mais afastada terra de todos os continentes sólidos”, embarcando
para a Polinésia em 1891. A descoberta do Taiti representa sua reterritorialização estética e
existencial, estabelecendo um contato íntimo com os maoris, seus costumes e seu habitat.
Produz uma série de quadros de um colorido violento, uma paisagem paradisíaca e muitas
mulheres nativas. A busca do paraíso e do exótico expresso na frase que Gauguin repetia de
maneira obstinada “Quero ir ter com os selvagens” se concretizava ao tempo que se distanciava
do modo de vida ocidental, numa tentativa de cortar o cordão umbilical com a cultura que o
gerara. Auto-exilado, refugia-se numa cultura que passa a respeitar e a defender contra os
colonos que a exploravam, tornando-se para esses persona non grata.
Apaixona-se pelas vahinés, jovens nativas que imortalizou em cores escuras, corpos
roliços e fortes, as quais desposou algumas vezes, ninfetas de 13 e 14 anos. Nessa rota de
colisão com o Ocidente e de desterritorialização/reterritorialização radical, reconstruiu-se a si
mesmo numa espécie de etnografia leiga e selvagem, retratando em seu quadros e esculturas
um mundo novo e surpreendente, utópico e cheio de deuses pagãos.
Depois de conflitos incontornáveis com a administração local, devido às duras críticas
que fazia ao comportamento das autoridades na sua nova morada nas ilhas Marquesas, Gauguin
morre em 8 de abril de 1903.
* * *
O escritor Victor Segalen98, que escreveu Essai sur l’Exotisme, esteve durante um curto
período na Polinésia na mesma época que o pintor francês. Ao sair da França, ouviu a seguinte
frase de Rémy de Gourmont, a qual reverberou em sua cabeça durante toda a demorada viagem
98 SEGALEN, Victor. Gauguin dans son dernier décor; Hommage à Gauguin. In: _____. Oeuvres Complètes.Vol I.
Paris: Robert Laffont, 1995, p. 287-291; p.349-375.
69
ao Taiti: “Veja-me lá se encontra o Gauguin”. Na Polinésia, ouvira falar do pintor e de seu
exílio. Era o ano de 1903 e entre os meses de junho ou julho, Segalen recebeu a triste notícia da
morte de Gauguin, o que o impeliu a visitar-lhe a última morada, as ilhas Marquesas. O relato
dessa empreitada, nomeado de “Gauguin no seu último cenário”, descreve minuciosamente o
mundo desse exilado voluntário do Ocidente, “último e longínquo ato de uma vida vagabunda”.
Para adentrar nesse mundo rude forjado de argila, folhagens entrelaçadas, madeiras retorcidas,
recriações esculpidas em madeira dos mitos polinésicos, telas penduradas cruamente nas
paredes, Segalen recomenda a Prece do Estrangeiro:
Chego nesse lugar onde a terra, sob meus pés, é desconhecida.
Chego nesse lugar onde o céu, sobre minha cabeça, é novo.
Chego nessa terra que será meu lar...
Ó Espírito da terra, o Estrangeiro te oferece seu coração, em oferenda a ti.99
* * *
A biografia de Verger corrobora para incluí-lo na poética do deslocamento, inclusive
sua repetição da aventura gauguiniana, nos acertos e erros. A prece do estrangeiro pode ter sido
rezada por ele todos os dias até sua chegada à cidade do Salvador e ser esquecida com o passar
dos anos, em virtude de sua aceitação como um igual entre os negros-mestiços pobres e os
intelectuais nativos, ou estrangeiros como ele, que privavam o mesmo sentimento de
pertencimento. Acompanhado de seus novos amigos ou solitário, portando sua Rolleiflex,
transferiria o desregramento geográfico/existencial para o meio urbano, assumido enquanto
prática cotidiana.
Como vimos dadaístas e, posteriormente com maior ênfase, surrealistas (que apesar dos
apelos, nunca se deslocaram muito além de Paris, fora alguns poucos exemplos)100 foram os 99 J’arrive en ce lieu où la terre est inconnue sous mes pieds./ J’arrive en ce lieu où le ciel est nouveau par-dessus ma tête./ J’arrive en cette terre qui será ma demeure.../ Ô Esprit de la terre, l’Étranger t’offre son coeur, en aliment pour toi.
70
primeiros a se manifestarem aquém da viagem etnográfica, desviando essas aventuras em terras
exóticas para deambulações no interior do tecido urbano. Dobravam a etnografia sobre si: no
seio moderno e familiar das cidades encontravam o estranho. Migravam da relação
subjetividade-natureza para a subjetividade-meio urbano, conservando o olhar do etnógrafo. O
que levaria o antropólogo James Cliford a imaginar um “etnografia surrealista” e escrever que
para eles a cidade moderna era “uma fonte do inesperado e do significativo” que provocariam
a irrupção de outro mundo mais milagroso baseado em princípios de classificação e ordem
radicalmente diferentes”101.
* * *
No Taiti, o fracasso da experiência gauguiniana parece se repetir com Verger. Através
de seus biógrafos sabemos do malogro dessa primeira investida da negação por completo do
mundo burguês em que fora criado e do qual fugira com o seu amigo Eugène Huni. Sonho
idílico taitiano de uma vida entregue aos prazeres simples, ao corpo livre das amarras
burguesas, entregue ao sol, inspirado nos chamados surrealistas da “vida livre” e “liberdade”
que tanto moveram os homens europeus na primeira metade do século XX e que estavam
presentes na filmografia da época. Segundo Verger “foi para levar essa vida ao ar livre, fazendo
esporte com mais intensidade, é que nos decidimos, um amigo pintor, Eugène Huni, e eu
mesmo, viver na ilhas cujo charme nos tinha sido revelado pelos filmes que assisti”102.
100 André Breton e Antonin Artaud, no México; Michel Leirris, na África; Benjamin Péret, no Brasil e México.
Para maiores detalhes desse deslocamento na América Latina ver o texto de Robert Ponge “Surrealismo e viagens” em PONGE, Robert (Org.). Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: Editora da Universidade – UFRGS, 1999, p. 55-75.
101 CLIFORD, James. “Sobre el surrealismo etnográfico”. In: ____. Dilemas de la cultura. Antropología, Literatura y Arte en la perspectiva posmoderna. Trad. Carlos Reynoso. Barcelona: Gedisá, 1995, p 179.
102 VERGER, P. Souvenirs de reportage: Pais-Soir (1934-1935) apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p. 54.
71
Três fotos, de 1933, quando de seu séjour taitiano nos mostra a disposição com que
enfrentava a empreitada. A Polinésia Francesa103 datada de 1933, em que Verger traz uma
grande flor sobre a orelha iluminando o rosto, e se encontra entre duas moças com longas
tranças, as quais abraça com um olhar misterioso. Mulher, Papete, Taiti104 (fig. 3), do mesmo
ano, uma imagem rara em sua obra, talvez só permitida nesse idílio gauguiniano. Essa foto
mostra uma jovem nua que cita as meninas que se tornaram célebres pelos quadros e escritos de
Gauguin. Teria sido uma das meninas que se deixaram fotografar junto a Verger? Deitada sobre
um grande lençol jogado sobre a cama, deixa ver o corpo roliço desnudo, desejável. Pernas,
seios, o rosto redondo e meio desconcertado, a cama improvisada. As luzes invadem aquele
paraíso erotizado sob o abrigo de longas esteiras no lugar de paredes, explorando curvas
corporais, entranhas entretecidas na palha. Uma alcova improvisada que recebe sua Olympia
noire. Não conseguimos nos desvencilhar do fantasma de Gauguin pelo erotismo aberto da
cena que dramatiza a sensualidade anti-européia tão explorada pelo pintor, considerada quase
ofensiva à beleza feminina da arte pictórica ocidental. A devassa empreendida pelo insaciável
olho ocidental alimenta o sonho francês de um paraíso além-mar, estranho ao mundo europeu,
denunciando sua própria fragilidade. A tentativa de desenraizar o olhar da estética ocidental é
acompanhada da exploração das sensibilidades eróticas do exótico, sendo mesmo o sentido do
deslocamento, se pensarmos a estética sob um ponto de vista mais amplo. Gauguin se
aventurando numa estética agressiva e escavando um lugar no mundo que acreditava não
europeu e insólito, preconiza os surrealistas que alimentam o mesmo projeto na cidade,
defensores de um erotismo difuso e inebriante.
103 NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002,
p. 57. 104 VERGER, P. Saída de Iaô: cinco ensaios sobre a religião dos orixás. Axis Mundi Editora/Fundação Pierre
Verger: São Paulo, 2002, p.69. Existe uma outra variação sobre esse tema, a foto com a mesma jovem e no mesmo lugar, embora não conserve o mesmo clima, Papeete, Thaiti, Polynésie, 1933 em SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 2007, p. 111.
72
A última foto analisada dessa série, Eugène Huni em Mooréa, Tahiti105 (fig. 4), que ele
tirou do seu amigo e companheiro Eugène Huni, cristaliza de maneira surpreendente o ideal de
vida que os dois perseguiam. Ao ar livre, sob um céu imenso, o corpo jovem, forte e belo de
Huni é quase um totem erigido para a celebração de um mundo novo de dimensões insuspeitas,
tanto espaciais quanto existenciais. Esta foto prenuncia a estética escultórica das imagens de
Verger posteriormente desenvolvida.
Após um ano de convivência com o companheiro Eugène Huni nesse “paraíso
terrestre”, Verger, talvez desiludido amorosamente, parte para suas viagens cada vez mais
distantes, sempre tendo à mão a sua inseparável máquina fotográfica. São muitos lugares: Itália,
Espanha, Norte da África, Argélia, Mali, Togo, Benin, Londres, Cuba, México, Estados
Unidos, China, Japão, Filipinas, Indochina, Camboja, Laos, Vietnã... Antes de partir, estabelece
relação com o Museu de Etnografia do Trocadéro (atual Museu do Homem), sendo admitido
como colaborador, o que indica uma postura etnográfica, de registro, que paulatinamente
imprimiria ao seu trabalho fotográfico.
Após um deslocamento incessante e a procura de uma vida mais livre, sem as amarras
sociais burguesas, no pleno exercício da liberdade que marcaria a sua biografia, Pierre Verger
desembarca em Salvador. Inicia-se uma experiência única em sua obra, seus olhos e máquina a
serviço de uma etnografia urbana, pautada na deambulação sistemática de uma única e querida
cidade. Sobrepondo esteticamente as vertentes de Gauguin e dos surrealistas, transfere o olhar
exótico para os corpos negros, imersos num élan sensualista, no ambiente urbano. Será uma de
suas diferenças.
* * *
105 NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio,
2002, p. 58.
73
Era o ano de 1946, retornando ao Brasil, depois de um encontro com o amigo
antropólogo Roger Bastide, Verger resolve conhecer a cidade da Bahia, estudada pelo
pesquisador francês. Nas mãos, carrega um exemplar do livro Jubiabá de Jorge Amado, que o
encantara pelas descrições da vida cotidiana de seus habitantes, marcada pela presença negra.
No dia 5 de agosto, desembarca em Salvador e imediatamente percorre a cidade guiado por um
amigo de viagem. Na rua Chile, encontra o “quarto dos seus sonhos” com uma bela vista para a
baía. Inicia-se uma relação de amor com a cidade, seus habitantes, sua cultura, que duraria toda
a sua vida. Sempre “armado” com sua Rolleiflex, deambula pelas ruas soteropolitanas,
embrenhando-se em bairros distantes, pendurando-se nos bondes, falando com um e com outro,
assíduo das festividades profano-religiosas. Gosta de brincar com os amigos, desafiando-os a
mostrarem uma viela, um caminho que não conhecesse. Depois de morar por um tempo na Rua
Chile, muda-se para mais perto do coração da cidade, alugando um sótão na ladeira do Taboão,
local estratégico entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa, que serviu de cenário para um dos
primeiros livros de Jorge Amado, Suor. Entre os anos de 1946 e 1952 produzirá as fotos que
comporão os livros Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989)106.
Na introdução de CHS, Verger arrisca uma descrição da cidade quatro décadas depois
de seu registro fotográfico:
Este álbum de fotografias mostra certos aspectos da cidade do Salvador da Bahia
de Todos os Santos tais como existiam há pouco mais de 40 anos, na época do fim
da Segunda Guerra Mundial. Toda a cidade da Bahia, nome pela qual ela era
conhecida, não contava mais que 300 mil habitantes.107
Assim como ele, um grupo de artistas já vinha redescobrindo a cidade cultural e
geograficamente, referenciada nos descendentes africanos e na sua religiosidade, da maneira
como reinventavam a vida cotidiana, no fascínio do mundo mestiço soteropolitano. Dentre eles, 106 Daqui em diante os livros Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989), ambos de autoria de
Verger, serão representados pelas siglas RB e CHS respectivamente. 107 VERGER, Pierre. Centro Histórico de Salvador. Salvador: Corrupio, 1989.
74
Verger criou laços fraternos com o argentino Carybé e os baianos Dorival Caymmi e Jorge
Amado.
Artistas modernos, desenvolvem pesquisas em suas respectivas áreas. Carybé108, que
“desembarca finalmente na Bahia nos idos de 1938” e que, além dos numerosos quadros e
esculturas, produzira uma primorosa coleção de livros de gravuras que abarca todo o cotidiano
da cidade, desenha as cenas que, de outro lado, Verger fotografa. Dorival Caymmi, autor,
dentre outras de rara beleza, de um conjunto de canções praieiras, que segundo Antonio
Risério109, “recriam esteticamente a cidade da Bahia tal como a conheceu entre as décadas de
20 e 40”, cidade bucólica, além do Rio Vermelho, na então distante praia de Itapoã, onde
pescadores tem suas sagas recontadas ao som másculo da voz e violão do autor, reproduzidas
em discos que se tornaram obras primas da música popular brasileira, principalmente Caymmi e
seu violão de 1959. Em Caymmi, a vida paradisíaca só será interrompida pelas vicissitudes do
ofício de pescador, o mar doce pra morrer, a tempestade arrastando os homens para longe das
suas mulheres. Cabe observar que a obra de criação da cidade do Salvador em Caymmi
obedece a intuições diversas, que se afastam dos outros três. No seu retrato mais famoso da
cidade, a Suíte dos pescadores, apresenta um mundo apartado do urbano, uma outra
possibilidade além do rural, do sertão, para invocar a comunidade e um interior. Seus
personagens, envoltos num mundo mágico de deuses negros e dependentes de manifestações da
natureza, são esquecidos e esquecem o país que se moderniza. Assim como a bossa-nova,
detalhe jamais mencionado na sua bibliografia crítica, seus personagens estão de costas para o
continente e consequentemente para o Brasil, prostrados de frente para o oceano Atlântico, na
fina malha do litoral, o que os imputa uma atemporalidade tão mágica quanto angustiante. Em
entrevista a um documentário da TV Globo, o próprio Caymmi acentua essa diferença entre ele
e Amado, apesar de algumas parcerias esporádicas. Ele afirma que a diferença entre os dois, e 108 CARYBÉ. As sete portas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1976. 109 RISÉRIO, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Perspectiva, 1993.
75
que por isso a cidade dele não seria a mesma de Amado, é que enquanto este se concentra no
mar do cais, do mercado, ele, Caymmi, descrevia a saga dos homens em mar aberto110.
Finalmente, Jorge Amado e seus romances111, que, se inicialmente carregam no tom realista-
socialista, como no romance Suor, tematizando a vida dura de desempregados, pequenos
trabalhadores e prostitutas alojados nos cortiços que infestam o centro da cidade,
posteriormente, quando do seu sucesso nacional e internacional, assumem uma explícita
apologia do viver “mestiço” baiano (o que se acentua depois do livro Gabriela Cravo e Canela
e seu rompimento com o Partido Comunista Brasileiro). É a mesma gente miúda, e o autor,
solidarizando-se com as suas lutas cotidianas, a descreve envolta em histórias permeadas de
erotismo, misticismo e violência. Das cenas desprende-se um imenso prazer de viver, de
aprovação da existência, ancorada na cultura e nos cultos religiosos.
Verger soma-se ao grupo nessa investigação/criação, incorporando suas fotos em preto e
branco a essa produção artística modernista que mitifica a cidade da Bahia. Nada que seja
relativo ao modo de viver dos negros da cidade lhe escapa, na verdade só tem olhos para eles,
vendedores ambulantes, carregadores, prostitutas, pequenos artesãos e comerciantes,
lavadeiras, músicos das religiões afros, capoeiristas etc. Incansável, desloca-se até os bairros
distantes para presenciar os cultos do candomblé e fotografá-los.
Salvador torna-se objeto de um dos mais poderosos mitos urbanos no entrelaçamento,
na primeira metade do século XX, das obras desses quatro artistas responsáveis pela recriação
estética modernista à revelia da modernização da cidade – arrastando-se em intervenções
desiguais e sucessivas desde meados do século XIX – que se intensifica a partir da primeira
metade do século vinte com a gestão seabrista, de 1912 a 1916. Advogam um modernismo
filiado a sua vertente crítica, denunciatória, pois defendem a cultura negra soteropolitana das
110 Entrevista de Dorival Caymmi. Documentário que acompanha o DVD Pastores da Noite. São Paulo: Globo
Vídeo, 2003. 111 AMADO, Jorge. Suor. São Paulo: Martins, 1968; _____. Jubiabá. São Paulo: Martins, 1965.
76
perseguições e constrangimentos por parte da elite baiana, numa aprovação irrestrita dessa
tradição. Esteticamente modernistas, recusam todo processo de modernização urbana,
conciliando-se com uma cidade arcaica, provinciana, centrada na reelaboração das ruínas da
cultura negra em solo americano. A visada etnográfica faz com que optem por uma cidade em
pleno desaparecimento, num gesto afirmativo deslocando a perspectiva de classe pela étnica.
Paradigma etnográfico, fundante das obras dos quatro amigos, transformado em política, nova
militância distante dos discursos intelectualizados e ideológicos submetidos à lógica
marcadamente classista.
Às intervenções sucessivas que mexem na configuração urbana no sentido de
modernizá-la, eles contrapõem a estetização das persistências de práticas e culturas adversas ao
surto renovador, urdindo “acúmulo e interações de tempos sociais e espaciais”, pois “a cidade
oferece configurações particularmente densas de interpenetrações espaço-temporais”
assumindo uma figuração específica na expressão fotográfica pois nesta, “diferentes espaços-
tempos são congelados colocados em um mundo espacial” 112.
Algumas fotos de Verger tratam dessa tessitura temporal justaposta quando práticas e
objetos de temporalidades diferentes habitam um mesmo presente condensado. Nelas, um
comentário por vezes irônico, por vezes nostálgico, confere uma tragicidade nas relações
espaço-temporais urbanas que não estão presentes nas obras dos outros integrantes do grupo,
salvo raríssimas exceções que porventura escaparam da apologia amadiana, da elegia doce e
esquecida das canções de Caymmi e das gravuras de Carybé. Em Verger, pesam o meio técnico
expressivo que se alimenta do próprio real para se expressar, e a singular perspectiva do autor,
a qual se funda para elaborar obra etnográfica, histórica e fotográfica. Uma perspectiva
112 Para o trecho em português: FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A. de Figueiras. Idealizações
urbanas e a construção da Salvador moderna: 1850-1920. In: _____. Cidade & história: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Ana Fernandes e Marco Aurélio A. de Figueiras Gomes (Org.). UFBA, Salvador,1992. Em francês: STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002.
77
temporal característica do meio literário francês, desde o simbolismo, cristalizado na figura
baudelairiana, que atinge os surrealistas, os quais, tocados ao máximo por essa “percepção”
temporal, desenvolvem discursos e práticas sobre a experiência urbana parisiense. Os
fotógrafos exilados, procurando abrigo político e intelectual na Paris dos anos vinte, somam-se
aos já existentes na cidade, e de uma maneira ou outra, dos mais próximos ou distantes, não
passam incólume ao conjunto destas questões surrealistas113. O sociólogo francês, Henri
Lefebvre114, que academicamente analisa e produz conceitos próximos aos debates
desenvolvidos pela esquerda do movimento (revolução, renovação do marxismo, reavaliação da
vida cotidiana, caracterização do mundo urbano etc.), desenvolve a idéia de tensões entre
isotopias, “lugares do mesmo, mesmos lugares”, e heterotopias, “o outro lugar e o lugar do
outro” ao mesmo tempo excluídos/imbricados, sempre concebidos dinamicamente. Questões
essas presentes no trabalho, já analisado, de Eugène Atget, o mais importante fotógrafo para
essa geração, que está no cerne das interpretações hegemônicas relacionadas ao tempo e espaço
urbanos. Nesse período são publicados diversos álbuns que tomam a cidade de Paris como tema
em livros ilustrados como 100 x Paris (1929) de Germaine Krull, Atget, fotógrafo de Paris
(1930), seleção de fotos após a morte do autor, Paris (1931) de Moi-Ver, Paris de nuit (1933)
de Brassai, Paris vu par André Kerész (1934) de André Kerész, Paris de jour (1934) de
Raymond Schall e Volupté de Paris (1935) de Brassai, entre outros115.
Pierre Verger, que está presente no seio desse grupo de escritores, pintores e fotógrafos
da cena parisiense, participando inclusive da Alliance Photo de Maria Eisner, em 1934,
acompanha, mesmo com indiferença, os debates que ali estão sendo pautados, criando uma
maneira própria de abordá-los em suas fotografias, sobretudo naquelas dedicadas à cidade do
113 Uma breve lista: Man Ray chega em 1921, Berenice Abbott, 1923, Brassai e Germaine Krull, 1924, André
Kertész, 1925, Robert Capa e Gisele Found, 1933. Para a extensa lista de escritores e fotógrafos GAUTRAND, Jean-Claude. Paris mon amour. Cologne: Taschen, 2004, p 55-22.
114 LEFEVBRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p 119-120. 115 GAUTRAND, Jean Claude. Paris mon amour. Cologne: Taschen, 2004, p 13.
78
Salvador, no seio da nova rede de criadores, agora nos trópicos, cuja principal obra, será, sem
sombra de dúvida, a estetização da cidade do Salvador. Como fizera com a cidade de Paris, o
grupo surrealista nos anos vinte.
Além de desenvolver sua obra fotográfica sintonizado com as obras dos artistas
locais116, Pierre Verger, mesmo com as precauções com que procurara se proteger117,
aproxima-se do exercício profissional dos vários fotógrafos que estavam naquele momento em
diferentes partes do mundo produzindo imagens de rua, impulsionados pela mobilidade
proporcionada por máquinas menores e de registro mais rápido surgidas no início do século.
Londres, Paris, Praga, Nova York, México. Smith, Brassai, Cartier-Breson, Saudek,
Walk Evans, Manuel Alvarez Bravo. Os fotógrafos, com suas respectivas cidades, se
multiplicam desde o final do século XIX, ao mergulharmos numa ainda incipiente
historiografia da “fotografia de rua”. Inspirados por um certo heroísmo explorador e
documental, aventuram-se em espaços urbanos marginais, revelando-os enquanto imagens,
sejam nicho de pobreza ou de boêmia; flagrando novas figurações na aparência das cidades ou
registrando flagrantes do que se acreditava condenado pelo ritmo modernizante. Paris, por
exemplo, será insistentemente fotografada por artistas, oriundos de todas as partes do mundo,
que publicarão famosos álbuns da cidade, extremamente acolhedora àquela época. Mais que
isso, ela é o local do surgimento desse estilo fotográfico, “photographie de rues”, o qual
contribuiu sobremaneira para o seu mito global118.
116 “Existiam já na época os romances de Jorge Amado, os desenhos, as pinturas e esculturas de Carybé. Foram
eles, tanto um como outro, que mais contribuiram para que a Bahia e a vida de seu povo fossem conhecidas. e que souberam ressaltar dentro de suas obras os felizes resultados da mestiçagem e da harmoniosa mistura de raças que fazem da Bahia um lugar excepcional e privilegiado.” Pierre Verger. Texto introdutório do livro Retratos da Bahia.
117 “Eu não gosto de olhar as fotos dos outros porque isso me incomoda logo depois. Se eu vejo a mesma coisa depois, não vejo a foto pois, tenho a impressão de tê-la visto e tenho a impressão de copiar a foto de um outro” SOUTY, Jérôme. Piere Fatumbi Verger. Du Regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 2007.
118 “Paris, esta cidade cosmopolita e majestosa, grande e compacta, se prevalece de ser considerada como o berço da fotografia de rua. Ela contribuiu com a invenção desse genêro de fotografia, assim com a fotografia participou da sua percepção mostrando aos parisienses, a princípio, seus prédios, em seguida seu próprio
79
Pierre Verger, ao se decidir fotografar, utilizando sua Rolleiflex119, e publicar os
volumes centrados na ambiência soteropolitana, se coloca na trilha desses pioneiros.
* * *
A essa época, nos anos 30 e 40, a abordagem fotográfica vergeana postulava as noções
correntes acerca do poder documental das imagens mecânicas e de não intervenção alçadas a
uma postura também moralizante. O dever de transparência se imporia ao próprio ofício
etnográfico oriundo da prática fotográfica, sendo mesmo o seu moralismo o diferencial frente
às outras iniciativas:
Minha abordagem nas pesquisas executadas se fez com o estado de espírito do
fotógrafo que eu era, quer dizer, um puro observador que registrava o que se passava
diante de seus olhos, em simples testemunho e sem intervir ou perturbar o desenrolar
dos acontecimentos. Essa descrição me era fácil pois eu não tinha nenhuma teoria à
verificar. Eu fotografava e tomava notas sem questionar. 120
Ao buscar um certo automatismo fotográfico, Verger se insere ainda mais uma vez no
universo teórico do movimento surrealista, oriundo dos anos heróicos de sua gestação, na
reflexo nos inúmeros retratos fotográfico reproduzidos nas revistas e livros da época”. STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Edition française. Hazan, 2002, [s/n].
119 No Brasil, a máquina Rolleiflex foi imortalizada pela bossa nova na voz de João Gilberto: “fotografei você na minha Rolleiflex” sinônimo de leveza, modernidade, mobilidade. Das diversas máquinas que surgiram com essas características, as mais famosas foram a Leica de 1925 e a Rolleiflex de 1928. “Uma objetiva de grande abertura e um dispositivo de armamento rápido fizeram da Leica a máquina mais prática de sua época. Tais aperfeiçoamentos permitiram, enfim, aos fotógrafos confiar, antes, em sua intuição, que nos sábios cálculos, e trabalhar no centésimo de segundo para produzir verdadeiros retratos do cotidiano. Os muitos outros aparelhos que utilizavam o filme de 35 mm que então apreceram e a invenção da Rolleiflex à boîtier maior em 1930 (ainda bastante pesada) determinaram o nascimento de um estilo de fotoreportagem mais realista. A facilidade com aqual se podia daí em diante tirar fotos, o formato reduzido dos negativos e a pressão dos prazos editoriais incitaram o fotógrafo a mandar revelar o filme 35mm por profissionais no laboratório. O fotógrafo ou iconógrafo, depois, se contentavam em escolher e reenquadrar as fotos que deviam ser publicadas. Esta nova liberdade de ação, assim com a possibilidade de representar o movimento ou de reter expressões fugazes e de operar num mesmo quandro as aproximações mais singular, logo, apaixonaram todos os fotógrafos”. “Inúmeros modelos diferentes foram apresentados entre 1889 e 1928, mas esse tipo de máquina foi aceito pelo grande público apenas após a aparição da Rolleiflex em 1928”. ROSENBLUM, Naomi. Une histoire mondiale de la photographie. Trad. Paul Alexandre; Dominique Férault; Jean Pêcheux; Sabine Porte e Julie David. Paris: éditions Abbeville, 2000, p. 465, p. 624.
120 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Interview par Véronique Montaigne – 15/09/1992. Disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=164&Itemid=550>. Acesso em: 12 set. 2008.
80
década de vinte. André Breton, nesse período, define a escrita automática como “uma
verdadeira fotografia do pensamento”, demonstrando sua superioridade “na imitação da
aparência”121. Breton acredita que os rasgos de genialidade creditados aos escritores seriam
fruto apenas de nossa visão elitista do ato criativo, quando não passavam de uma experiência
próxima à fotografia, isto é, automática. No “Le message automatique”, ele escreve que “tudo
está escrito sobre a página em branco” em que os escritores buscam “algo como uma revelação
ou uma ampliação fotográfica” (grifo do autor)122. O automatismo literário, assim como a
fotografia, nos traria sem mediações a imitação da aparência, seja dos pensamentos, no
primeiro caso, ou do real, no segundo. O importante seria abandonar as intervenções apoiadas
numa estética que pudessem ferir a transparência das imagens verbais ou fotográficas, findando
por escamotear as complicadas relações entre representação e realidade quanto ao seu aspecto
constitutivo. Em 1952, ao recordar a gênese do movimento que conduziu com punhos fortes,
Breton declara a André Parinaud que:
para que esta escrita seja verdadeiramente automática, é necessário, de fato, que o
espírito tenha conseguido se colocar em condições desapego em relação as
preocupações individuais de ordem utilitária, sentimental etc., qeu passam por ser
muito mais do pensamento oriental que do ocidental e supõem da parte desse
último uma tensão, um esforço dos mais elevados.123
A tentativa de apagamento do indivíduo lembra o zen-budismo suscitado por um
importante fotógrafo moderno e inicialmente próximo ao movimento surrealista. Henri Cartier-
Bresson refere-se, nos idos dos anos 50, ao misticismo zen como inspiração de sua estética
121 Apud SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Trad. Joaquim Paiva. Rio de Janeiro: Arbor, 1981, p. 105. 122 CHENIEUX-GENDRON, Jaqueline. Le surréalisme. Paris: PUF, 1984, p. 74. 123 BRETON, André. Entretiens avec André Parinaud. Paris: Gallimard, 1969, p.87.
81
fotográfica, pregando um “esquecimento de si, espontaneidade do ‘não-querer’” na sua
formulação do “instante decisivo” 124.
Embora apresente diferenças quanto à concepção de “momento decisivo” desenvolvida
por Cartier-Bresson, após a leitura do depoimento abaixo, vemos como Verger se encontra
enredado nas discussões estéticas do período:
“Quando eu tiro as fotos, não sou eu que fotografo, é alguma coisa em mim que
aperta o disparador sem que eu verdadeiramente decida. Eu não procuro fazer um
belo enquadramento; o lugar das pessoas e das coisas aparece evidente no visor.
Após, o clique deixa a foto em suspenso, ela existirá apenas muito tempo após, no
laboratório: o momento do seu verdadeiro nascimento”125.
Entretanto, a contrapelo tanto do autor quanto de seu melhor crítico, o francês Jérôme
Souty, não podemos ignorar a estetização do mundo operada pelos olhos e máquina fotográfica
de Verger. Qualquer amador de fotografia se queda abismado pelo poder formal das imagens
vergeanas, de uma composição rígida, aguda quanto às proporções e tons, ao centramento do
corpo humano e de sua musculatura no enquadramento dos temas.
Várias dessas declarações esparsas de Verger incidem sobre essa definição do ato de
fotografar em consonância com outros fotógrafos praticantes do estilo documentário ou
humanista, no período do entre guerras126. Em entrevista ao Estado de São Paulo, declara que:
A fotografia é simplesmente um documento. O fotografar não se apreende. É um
ato intuitivo, não cerebral. Sem saber o porque, capto um gesto, um movimento,
uma luz. É preciso ficar atento ao que acontece em volta, sem se deixar tolher por
uma idéia fixa de imagem preconcebida intelectualmente. Às vezes, só depois da
imagem feita você mergulha nela e a entende.
124 SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché à la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve
& Larose, 2007, p. 27. 125 Idem, p. 26. Mesma indicação para uma comparação crítica entre as concepções dos dois fotógrafos, p. 26-27 126 Nesse sentido, estamos pesquisando, selecionando, organizando e em alguns casos traduzindo as entrevistas e
textos em que Verger se dedica a explicitar as suas idéias sobre a fotografia e o ato de fotografar para propormos uma publicação, com o intuito de preenchermos essa lacuna sobre a sua obra.
82
Ou ainda em entrevista a Photo Spécial Brésil, quando revela que não procura por “um
belo enquadramento. O lugar das pessoas e das coisas aparece evidente no visor. Depois, o
disparador da máquina deixa a foto em suspense, ela existirá, tempos depois, no laboratório: o
momento do seu verdadeiro nascimento”127.
Os defensores do style documentaire, nos anos 30 e 40, em fotografia, apresentam sua
perspectiva através de concepções similares às de Verger. Em alguns casos, comungam uma
indefensável “gramática e uma sintaxe visual” expressa nas próprias coisas, com declarações
quanto ao sentido de transparência da fotografia, criando uma crítica, algo naïf, do problema
representacional, e uma recusa do caráter estético, pelo menos enquanto criação esteticista
imposta por uma sensibilidade artística que eles queriam evitar.
O pesquisador Olivier Lugon, que se dedicou a investigar o “style documentaire” entre
os anos 20 e 45, do século passado, abarcando figuras preeminentes dessa prática fotográfica
como August Sander, Walker Evans e Berenice Abbott, ao compará-los aos expoentes da
Nouvelle Objetivité, outro importante estilo fotográfico do período, escreve:
A priori, as duas correntes dividem a mesma preocupação de objetividade
perfeita, uma mesma busca de transparência absoluta, de não alterar a coisa como
ela é. O duplo credo de Sander - “ver as coisas como elas são” – e de Evans – “a
beleza profunda das coisas tais como elas são” – encontra varaintes inumeráveis
na literatura acompanhando a Neue Sachlichkeit.128
A Nova Objetividade, movimento iniciado nos anos 20 na Alemanha, busca uma
apreensão clara e direta dos objetos, pois são eles que conformam a imagem, pois “é a
qualidade do objeto que faz a da imagem”, ou ainda:
127 BRIL, Stefania. Os deuses africanos e seu espectador: Pierre Verger. O Estado de São Paulo. São Paulo, 14 abr.
1981. Entrevista concedida por Verger; Verger, Pierre. Entrevista a Photo Spécial Brésil, n. 329, abril 1996, p.32-37. Apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002.
128 LUGON, Olivier. Le style documentaire. D’August Sander à Walker Evans 1920-1945. Paris: Macula, 2001.
83
Desembaraçava nossa percepção do véu cultural que normalmente nos separa do
objeto. A mediação mecânica suplementar teria a capacidade paradoxal de diluir
todas aquelas que a precedem, todos os filtros humanos, as deformações
perceptíveis, o peso do conhecimento e das tradições visuais.129
Os objetos fotografados assumem uma visibilidade inatingível aos olhos não
mediatizados pelo aparelho fotográfico no sentido de uma maior transparência só aqui
conquistada, “eles aparecem na medida em que revelam o aspecto, desconhecido até aí, de sua
presença em si, uma presença pura, preexistente a todo olhar humano”. No início do seu livro,
Lugon, ao tentar definir a noção de “documentaire” esboçara que “a idéia de uma ‘arte
documental’ se encarrega, a partir de agora, de uma conotação eminentemente positiva,
fidelidade às especificidades do médium e por consequência, pureza, honestidade moral”.
Fidelidade e pureza são os termos pelos quais procuramos definir alguns procedimentos
do dispositivo cenográfico posto em movimento para reinvenção imagética da cidade da Bahia
operada por Verger, e não é surpresa o surgimento dessas noções próximas de uma forte
postura moral. A condenação do mundo moderno, que podemos verificar nas imagens, tanto
pelo que mostram como pelos índices de modernização que são relegados às bordas ou
simplesmente ignorados, dá-se também nos prefácios dos álbuns RB e CHS:
Os habitantes do Pelourinho levavam entre vizinhos uma vida de bairro, fazendo
suas compras nas modestas lojas locais. Chegada a noite, eles permaneciam
sentados nas soleiras das portas batendo papo com seus vizinhos, sentindo-se em
completa segurança. Eles não eram como hoje atraídos por programas de diversos
canais de televisão, de valor duvidoso, que mantêm as pessoas lacradas dentro de
casa olhando novelas. [...] Seria desejável que o contato deles com o mundo
exterior não estivesse restrito à presença provocadora dos turistas que passeiam
pelo bairro, devassando a intimidade dos moradores e ostentando toda uma
parafernália de objetos valiosos e fantasiosos.130 (CHS)
129 Idem. 130 VERGER, Pierre. Centro Histórico de Salvador. Salvador: Corrupio, 1989.
84
Ao lado encontrava-se o antigo Mercado Modelo e o pequeno Porto dos Saveiros,
nesta época lugares privilegiados da Bahia que, lamentavelmente, foram vítimas
da onda invasora dos carros e da necessidade de lhes criar grandes avenidas e
espaçosos estacionamentos. Um incêndio “oportuno” fez desaparecer o mercado e
em consequência os saveiros foram descarregar em outra parte os produtos
trazidos dos diversos pontos do Recôncavo. Esses veleiros foram duramente
atingidos pela concorrência dos caminhões, cuja utilização cresceu com a
construção de novas estradas.131 (RB)
* * *
As imagens que o fotógrafo Pierre Verger nos legou em dois livros sobre a cidade do
Salvador, Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989) nos permitem
teorizar sobre as relações entre fotografia e espaço urbano. Os clichés tirados de 1946 a 1952,
selecionados e organizados pelo autor, apresentam uma cidade bucólica, através da arquitetura
colonial, do porto e das praias distantes, com mulheres e homens negros que se deslocam com
desenvoltura pelas ruas, ladeiras e praças. O mar da Baía de Todos os Santos se deixa entrever
sobre os telhados, nesgas entre paredes ou limitando as fotos em que surge plácido e soberano
sem esconder a sua continuidade infinda. Nuvens embaçam o céu deixando escapar a luz na
maioria das vezes visíveis num chiarescuro que o urbanismo colonial impõe por suas ruelas
sinuosas, roubando sombras ao sol. Algo de um ar pausado que dormita pairando sobre todos,
transforma as situações da vida urbana em cenas que o autor flagra durante suas caminhadas
que exploram a cidade ainda desconhecida. Os habitantes tornam-se expressivos personagens
de um espetáculo que se dá nas ruas e a herança arquitetural uma intensa cenografia a céu
aberto. As cenas dramatizam o dia-a-dia do homem comum em sua labuta permanente, nos seus
momentos de folga, nas crenças religiosas e festividades. Cercam a banalidade dos dias nos
interstícios da cotidianidade, marcam a reinvenção desta nas festas e ritos religiosos. O impacto
dessas imagens desperta para a vida das ruas e praças ocupadas por negros em seus gestos,
131 VERGER, Pierre. Retratos da Bahia 1946 a 1952. Salvador: Corrupio, 1990.
85
corpos e faces examinadas pela objetiva da Rolleiflex. São paisagens nunca vistas da/pela
cidade, campos desertos inexplorados, como, por exemplo, o rosto negro de um estivador
iluminado por um riso. Máscara eternizada que nos olha e interroga em plenitude de vida,
sensualidade, potência. RB Rampa do Mercado – gente da estiva, (fig. 5). Os corpos dos
habitantes e da cidade se deixam ver de novo, duplicando na fixidez fotográfica o que foi
movimento e devir. Ressurgem cenografados pelo olhar meio humano, meio maquinal do
confronto entre fotógrafo e máquina, pelo ofício da revelação e das composições químicas.
Teatralização das situações urbanas, a fotografia recria, duplicando-as em cenas, momentos que
se perderiam do ir-e-vir das ruas. Pedestres, animais, carroças, autos.
O fluxo da vida é retido em favor da composição, do perspectivismo que reordena e
resignifica as situações vividas, congelando-as. As fatias impressas de aventura em preto-e-
branco, fruto da luz tropical que devassa o escuro da máquina e impressiona o filme são
coleções de coleções. Do evento à fotografia, o fotógrafo é esse traficante de instantes
entregues ao consumo crescente de imagens na sociedade contemporânea.
Os momentos, milésimos de segundo, plasmados durante a revelação, e agrupados
numa coleção (objeto-livro) não são janelas abertas para o real. Visão sobremaneira simplória
do complexo fenômeno da representação e figuração no suporte fotográfico, a relação de
objetividade maquinal e transparência conceitual ou ideológica vem sendo admoestada por
diversos analistas da fotografia, cada um à sua maneira132.
132 FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Tradução do
autor. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 82; ROSSET, Clèment. Fantasmagories. suivi de le réel, l’imaginaire et l’illusoire. Paris: Les Editions de Minuit, 2006, p. 108; BAUDRILLARD, Jean. Car l’illusion ne s’oppose pas à la realité... Paris: Descartes & Cia, 1998.
86
À idéia de imagens como “janelas para o real” contrapomos a de encenação do real,
presentes como insights nas obras de Walter Benjamin (décor, théatre) e Roland Barthes
(théatre)133.
As situações e transeuntes que as fotografias de rua figuram sem espelharem ou
imitarem um real que sempre lhes escapa, sobretudo simulando-o, encenando sua
visibilidade134.
A palavra “theatron”135, nos seus primórdios gregos, pode ser definida também como o
lugar de onde se vê o espetáculo: em analogia, de um lado o ponto perspectivo de onde parte o
olhar do fotógrafo, enquadrando a cena; do outro, a imagem revelada, fotografia de onde agora
olhamos a cidade. As janelas se apagam onde surgem as cenas; a transparência vacila onde a
cenografia do real se insinua.
O termo theatron é palavra irmã do termo theoria, indo da organização e
“caracterização de um ambiente” à “organização de um ponto de vista”136. Sob o suporte da
teoria da encenação teatral apoiada nos termos do que lhes são peculiares (cena, cenografia,
personagem, ator, máscara, performance) evitaríamos o processo, sempre presente na história
da fotografia, de naturalização da sua imagem e efeitos.
* * *
A musa única da fotografia é a luz, nunca avaliada na proporção de sua importância ou
sempre analisada de forma equívoca. Por longo tempo atribui-se-lhe a função de escrever a
133 BENJAMIM, Walter. Ecrits français. Paris: Gallimard. 1991; BENJAMIM, Walter. Oeuvres II. Paris:
Gallimard, 2000; BARTHES, Roland. La chambre claire. In: Oeuvres complètes. Tome V. 1977-1980. Paris: Seuil, 2002.
134 ROUBINE, J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.86.
135 DEL NERO, Cyro. Cenografia: uma breve vista. São Paulo: Claridade, 2008, p. 14; PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2007.
136 DEL NERO, Cyro. Cenografia: uma breve vista. São Paulo: Claridade, 2008, p. 29-30.
87
imagem, sabe-se o sucesso da infeliz expressão definidora da fotografia como “escrita de luz” a
despeito do autor, László Moholy-Nagy, elaborar uma teoria da imagem fotográfica
considerada como “arte da representação” e perceber a importância da luz na pintura, cinema,
“cenografia e no design”137. Em 1924, Moholy-Nagy publica “Nouvelle méthodes en
photographie”, quando escreve que “fotografar significa escrever, desenhar com a luz”138.
Desenhar com a luz se afirmou menos que a idéia de escrita. Talvez, daí, advenha outra
expressão que grassou nos estudos fotográficos, a não menos desastrosa “leitura de imagens”.
As analogias são claras: percepção e interpretação de imagens submetidas ao modelo da
linguagem escrita e sua leitura. Entretanto, a imagem esteve sempre ao lado do teatro no
sentido artaudiano. Em Le Théatre et son double, do ensaista e dramaturgo francês Antonin
Artaud, o teatro é uma instância autônoma e não deve ser submetido à ditadura das palavras,
desviantes da encenação que solicita os sentidos: cor, gesto, imagem. A despeito das
concepções críticas artaudianas específicas para o teatro e seus traços ocidentalizantes,
podemos resgatar algumas idéias forjadas no capítulo La mise en scène et la métaphysique e
aplicá-las ao nosso objeto. As fotografias, com na fábula inicial inspirada em Cortázar, estão,
da mesma maneira que o teatro na análise artaudiana, à mercê da interferência das palavras. As
legendas, comentários, textos, as interpretam e lhes dão sentido. Das imagens pode ser dito
quase tudo. Infeliz destino comum do teatro e da fotografia, reféns da importância desmesurada
da palavra. Para Artaud, “no Ocidente, tudo que é especificamente teatral, quer dizer, tudo que
não obedece a expressão pela fala, pelas palavras [...], é deixado em último plano”, Sem
utopias, recusamos o extremado visionarismo de Artaud e a existência autônoma do teatro ou
das imagens. Para sermos criteriosos, nem mesmo ele parecia acreditar nessa autonomia
impossível, advogava com veemência a linguagem física e concreta que escapa à linguagem 137 BAQUÉ, Dominique. Ecriture de la lumiére (Préface). In: MOHOLY-NAGY, László. Peinture, photographie,
film: et autres écrits sur la photographie. Traduzido do alemão por Catherine Wermester e do inglês por Jean Kempf e Gérard Dallez. Paris: Gallimard, 1993, p. 16.
138 Idem, p. 189.
88
articulada, “tudo que ocupa a cena, em tudo que pode se manifestar e se exprimir
materialmente na cena”. Artaud nomeara essa linguagem de “uma poesia do espaço” que não se
reduz estritamente às palavras e que são “utlizáveis em uma cena, como música, dança,
plástica, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e cenário”139.
Quanto à imagem fotográfica, cena fixa na qual destacaríamos da listagem artaudiana a
plasticidade, gesto, arquitetura, iluminação e cenografia, a teoria da encenação teatral poderia
lhe ser menos agressiva prospectando o campo analítico em busca de caminhos inusitados.
Deixar a descoberto o caráter sempre violento do gesto interpretativo e desnaturalizar a relação
entre a aparição da imagem e sua redução aos modelos linguísticos. Estamos nos antípodas do
distanciamento brechiano, apesar da aparente contiguidade. O dramaturgo alemão cria
procedimentos para tornar visíveis “os modos de produção do espetáculo”, investindo contra o
processo de naturalização da cena com o intuito de “munir-se de todos os meios de evitar o
ilusionismo inerente à tradição aristotélica”140. Ao dissecarmos, como Brecht fez ao teatro, “os
modos de produção da fotografia” objetivamos, ao contrário, potencializar seu poder
ilusionista. Na crítica que Roubine faz ao ilusionismo teatral naturalista do século XIX,
entendido como correspondente da “utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos
o mundo, reproduzindo-o”, vemos a situação da fotografia do período, no bojo dos mesmos
processos mecânicos, concretizados no “sonho do capitalismo industrial: a conquista do mundo
real”141, os quais ambicionamos desmontar.
* * *
139 ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2006, p. 524-525. 140 ROUBINE, J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.
91-93. É possível uma outra interpretação do distanciamento brechtiano num sentido contrário de que ele reforça a teatralidade da cena.
141 Idem, p. 25.
89
A luz da fotografia, afastada da comédia linguageira inspirada pela escrita e estudada no
espaço renovado da cenografia contemporânea, se adequa melhor às nossas análises. Assim,
adaptamos para a análise fotográfica o conceito de dispositivo cenográfico definido como o
conjunto de procedimentos técnicos, estéticos e intelectuais que incidem sobre a imagem
fotográfica. O fotógrafo, apesar de não atuar como criador da cena que irá fotografar, como o
cenógrafo, “dispõe as áreas de atuação, os objetos, os planos de evolução de acordo com a ação
a ser representada”. Ao determinar a perspectiva do olhar através da objetiva, enquadra a cena
urbana permitindo que ela visualize “as relações entre as personagens” facilitando a sua
gestualidade e a expressividade do entorno. Ressaltam-se espaços e corpos como cenários e
personagens ambos imprimindo a virtuosidade de suas formas142.
Na imagem fotográfica a luz, como na cenografia de Appia, “não é apenas aquele
instrumento funcional que se limita a assegurar a visibilidade do espaço cênico, ou no melhor
dos casos criar um ‘clima’. Ela permite esculpir e modelar as formas e os volumes. Evitando a
reprodução atmosférica, a luz no espaço cênico pode “modelar, modular, esculpir [...], dar-lhe
vida, fazer dele aquele espaço de sonho e da poesia aspirado pelos simbolistas”143. Três fotos
de Verger são especialmente dramáticas pelo jogo de sombras, impondo um simbolismo
latente: CHS Procissão do Encontro na Praça (fig. 6), RB Rua dos droguistas Cidade-Baixa
(fig. 7). Aí a luz escapa das laterais da foto buscando espaços e como um deus demiúrgico
produz formas, corpos, cria espaços, zonas de mistério e silêncio. Clareiras simbolistas onde,
desviando levemente as palavras de Del Nero144 “o cenário empresta o seu corpo à liquidez da
luz”, corpo este que foi recomposto por ela, “como um instrumento” refletivo/reflexivo.
* * *
142 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e
Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.105. 143 Idem, p.137; p. 21. 144 DEL NERO, Cyro. Cenografia: uma breve vista. São Paulo: Claridade, 2008, p. 19.
90
No texto introdutório ao livro RB, escrito pelo próprio Verger, encontramos a seguinte
afirmação: “o espetáculo da Bahia está nas ruas”. Sabemos da gênese do livro, assim como de
sua elaboração, através dos relatos de Cida Nobrega e Regina Echeverria145. Um grupo
formado por Arlete Soares, Cida Nobrega, Analdo Grebler e Eneas Guerra resolveu divulgar a
obra do francês num álbum que reunisse “as fotos que Verger havia feito da Bahia, tal como a
conheceu, ao desembarcar ali pela primeira vez, em 1946, e que tinham sido mostradas na
exposição organizada pelo grupo ZAZ”. Surpreendentemente, se levarmos em conta a aceitação
da obra vergeana segundo os padrões estéticos e etnográficos atuais, Arlete Soares não
conseguia, na época, convencer as editoras a publicarem o livro, pois segundo ela “percebemos,
então, como somos racistas − a dificuldade é que eram fotos de negros e ninguém queria
publicar, porque o assunto não vendia”.
Resolveu-se a celeuma com a criação de uma pequena editora em 1979, a Editora
Corrupio, iniciando-se os encontros para a feitura do livro. Será interessante acompanharmos,
ainda segundo o depoimento de Arlete Soares, o empenho de Verger em seu intuito de reviver
em livro as experiências das ruas soteropolitanas:
Ele espalhava aquelas fotos todas sobre a mesa e ficávamos fascinados cada vez que
ele puxava um pacote de fotos, a gente vibrava e ele ficava super contente com o
nosso interesse [...] Começamos com cerca de 800 delas e tínhamos que fazer uma
seleção dolorosa para subtrair muitas até chegar a umas 200. Não conseguimos ir além
de 250, o número final, que ainda era demais.
Arnaldo Grebler descreve com minúcias o processo de elaboração da “boneca” do livro
e a participação de Verger tornando temerosa qualquer iniciativa de modificação das obras em
reedições posteriores:
Ele sabia muito bem o que queria. Nosso papel era o de ficar acompanhando e
dando alguns palpites. Às vezes, aceitava uma idéia ou outra, mas acho que ele
145 NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002,
p. 295-298.
91
sabia muito bem o que queria. Apesar de ter milhares de negativos, sabia
especificamente os que queria, em qual sequência, com qual casamento de página.
Parece que a coisa estava pronta na cabeça dele, e dificilmente ele acatava alguma
outra solução. Às vezes a gente dizia: “Verger, vamos botar esse daqui?” Ele
respondia: “É, pode ser”. Mas dali a pouco ele encostava a mão sorrateiramente e
tirava a foto fora.
O que buscava Verger? O que quer um fotógrafo ao compor um livro? E
especificamente um livro destinado a reproduzir “o espetáculo das ruas”?
* * *
Nos últimos anos, surgiram diversos livros, em língua inglesa e francesa, que tratam de
uma nova caracterização das fotografias que antes estavam relegadas à indiferenciação do
conjunto de imagens produzidas desde meados do século XIX146. A “street photography” ou
“photographie de rue” são problematizadas nesses livros enquanto um gênero fotográfico, com
personagens próprios e muitas vezes em diálogo com pintores e escritores que se debruçaram
sobre o mesmo objeto, o espetáculo diário das ruas, sobretudo nas metrópoles. O debate se
concentra na definição dessa prática fotográfica, marcando um terreno diverso do documental
ou da foto-reportagem ao tempo que se insere na discussão mais geral da própria estética
fotográfica147.
146 Bibliografia mínima para a fotografia de rua: STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad.
Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002; SCOTT, Clive. Street Photography. From Atget to Cartier-Bresson. London: I.B. Tauris, 2007; BROUGHER, Kerry; FERGUSON, Russel. Open city. Street photographs since 1950. Moma Oxford/hatje Cantz. Ostfildern, 2001. WESTERBECK Colin; MEYEROWITZ Joel. Bystander: a history of street photography with a new afterword on SP since the 1970s. Boston: Bulfinch Press Book, 2001; para o estilo documentário: LUGON, Olivier. Le Style documentaire: d'August Sander à Walker Evans. 1920-1945. Paris: Macula, 2001; MUSEUM OF CONTEMPORARY ART (LOS ANGELES). RALPH M. PARSONS FOUNDATION PHOTOGRAPHY COLLECTION. The social scene. Ostfildern: Hatje Cantz, 2000. BRAVO, Manuel Alvarez; CARTIER-BRESSON, Henri; EVANS, Walker. Documentary and anti-graphic photographs. Germany: Steidl, 2004. entre outros.
147 Um pequeno resumo do debate pode ser encontrado na introdução do livro Street photography. From Atget to Cartier-Bresson. London: I.B. Tauris, 2007, p. 5-6, do pesquisador Clive Scott. Para este último, uma definição desejável de ser adotada seria a dos autores Joel Meyerowitz e Colin Westerbeck como “imagens cândidas da vida cotidiana nas ruas”, ao tempo que enuncia a definicão de Giles Mora, outro pesquisador, que pocura aproximar os dois gêneros (documentário/de rua) em termos ambíguos, “Os fotógrafos de rua perseguem o instante fugaz, fotografando seus modelos abertamente ou sub-repticiamente, como transeunte casual ou como observadores sistemáticos”.
92
O que parece estar em jogo é o critério que o fotógrafo utiliza para ir às ruas ou mesmo
a sua intenção, seja como observador sistemático ou passante distraído, e a finalidade de
produzir simplesmente instantâneos urbanos ou uma imagética memorialista. Daí, a retomada
dos dois personagens urbanos conflitantes quanto ao propósito de fruição das ruas a esmo ou
exercitar um voyeurismo urbano sistemático, respectivamente o badaud e o flâneur. Evitando a
inutilidade desse debate, optamos por uma abordagem mais pragmática, no sentido de que, em
primeiro lugar, está o interesse desses fotógrafos pela vida urbana (um conjunto de imagens
que centradas nos indivíduos reverberam para o cenário urbano, imagens de vias, arquiteturas,
privilegiando o fora, a rua) e em segundo, a produção dessas imagens. Na introdução, vimos
como a literatura e a fotografia desenvolveram, em todo o século XIX, esse gênero estético.
Inclusive o estudo da história da fotografia nos revela que a prática de fotografar as ruas não
está necessariamente ligada ao deslocamento dos fotógrafos pelas mesmas. Lembremos do
famoso fotógrafo da cidade de Praga, Joseph Saudek, que, escondido em seu quarto,
imobilizado, fotografava a cidade da janela de sua casa.
O fotógrafo de rua que mais nos seduz, entretanto, é aquele que, apaixonado pelas
aparências urbanas, as celebra através de suas imagens num contínuo deambular pela cidade,
quando o ato de fotografar se alia a uma performance de deslocamento e deriva. A exigência
dessa relação corporal com a cidade, um dos pólos de definição da “fotografia de rua”,
enquanto um estilo específico, problematiza a figura do fotógrafo, ele mesmo habitante urbano,
como sujeito e objeto de sua ação.
O caráter de aprovação do real, das paisagens urbanas, se consagra mesmo nas obras
que assumem o espectro denunciador dos espaços degradados, de grupos étnicos minoritários,
das classes sociais desfavorecidas e em situação de risco, ou de indivíduos marginalizados
(prostitutas, homossexuais, delinquentes etc). Obsedado pelo aspecto visual, instigante das
ruas, da excitação diária sob o signo da luz que delineia corpos, arquiteturas, objetos, esse
93
andarilho urbano, armado com a sua máquina, quase um cyborg, olhando as ruas pela objetiva,
faz dessa uma prótese, coletando fragmentos, colecionando-os, compondo um mosaico
empírico das aparências urbanas. Olhar astuto, percorre a cidade, atenção distraída, para num
gesto flagrar o instante em que o drama urbano do cidadão moderno se configura. Pois não
seria essa a sua arte? Na aparência das cidades implicar seus transeuntes na dramática cena de
seu aparecimento e desaparecimento instantâneo junto com as situações em que atua148. Algo
como (num détournement do que escreveu André Breton no Second manifeste du surréalisme)
o mais simples ato surrealista: sair de máquina fotográfica em punho, descendo a rua e
fotografando ao acaso, tanto quanto possível, a multidão149.
O apego ao ir-e-vir diário citadino e o gosto pelo andar sem rumo talvez sejam os
grandes culpados das análises que se limitam a traçar semelhanças entre os fotógrafos de rua e
a figura do flâneur. Entretanto, os primeiros se distanciam do flâneur, pois acreditamos que
mais do que perambular pela cidade, o fotógrafo é o transeunte que para, que se aquieta para
num momento preciso emboscar sua presa e capturá-la. E todo o perder-se da caminhada é
apenas uma preparação para o momento de estancar, substituir o olhar livre pelo das lentes,
fundir o olhar maquinal ao seu e congelar um centésimo de segundo do mundo urbano. Se nós
quase nada sabemos do olhar do fotógrafo, em contrapartida temos acesso ao que ele produziu
e como ele as produziu.
Dentre a enorme tradição artística da fotografia de rua procuramos uma linha que nos
possibilite analisá-la, tanto na aprovação da paisagem urbana, quanto na sua crítica, elaborando
uma espécie de hagiografia laica do homem e ambiente moderno. 148 Como escreve Jean-Pierre Bucciol Sutto: “A fotografia de rua me interessa, aquela que considero aqui, e aquela
que creio ter dado letras de nobreza ao genêro e a fotografia em geral, é a fotografia de pessoas, homens, mulheres, crianças, na rua ou em locais públicos das cidades”. SUTTO, Jean-Pierre Bucciol. Petit précis de street photography, ou le révélateur psychologique du photographe. Disponível em: <http://www.vide.memoire.free.fr/photo/street2/street.php>. Acesso em: 03 mar. 2008.
149 A frase orignal é: “L’acte surréaliste le plus simples consiste, revolvers aux poings, à descendre dans la rue et à tirer au hasard, tant qu’on peut, dans la foule”. (“O ato surrealista mais simple consiste em descer a rua de revólveres nas mãos e atirar ao acaso, tanto quanto se possa, em meio a multidão”). BRETON, André. Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard, 2001, p. 74.
94
O processo construtivo do fotógrafo de rua, em sua maioria, divide-se em duas etapas.
Primeiro a “escolha” do lugar e do instante de clicar o evento, depois a seleção do que publicar,
entre todo o acervo produzido, e sua ordenação no corpo do livro. O dispositivo cenográfico
seria acionado nos dois momentos: o primeiro, quando oportunamente cenografa o evento
escolhido através da objetiva, e posteriormente, quando da elaboração do livro, recria a cidade,
compondo cenograficamente os diversos eventos registradas. Serão sobre esses dois momentos
(produção das fotos/ produção dos livros) que o álbum fotográfico de cidades se erigirá
enquanto obra de arte e mesmo como uma mídia específica dentre o conjunto dos livros de
fotografia. O estudo dos diversos álbuns fotográficos nos leva a ponderar sobre o conceito de
fluidez cenográfica aplicada aos nossos objetos, pois revela que as opções tomadas pelos
autores oscilam entre manter a leveza das mudanças de cenários ou precipitá-las buscando
rupturas abruptas, deslocamentos imprevistos, contrastes. Elaborado por Appia preconiza que a
“fluidez representa, no caso, o grau ideal de mobilidade que permite evitar as quebras de ritmo
e as quedas de tensão habitualmente introduzidas pelas diversas modalidades da mudança de
cenários” (grifo do autor)150.
Poderíamos, utilizando o conceito de Appia, exemplificar os dois casos teorizados
(mudança abrupta ou suave das cenas) com os livros, Atget, photographe de Paris, organizado
por Berenice Abbott em 1930, que explora a passagem não traumática das cenas urbanas
fotografadas por Atget, e as obras de Lorinczy Gyorgy, New York, New York, e de Dado
Moriyama, Sashin yo Sayonara (Bye Bye Photography), ambas de 1972. Experimentando o
fluxo imagético no sentido de romperem com a fluidez cenográfica, o álbum de Gyorgy pode
ser classificado como exploratório do “stream of consciousness”, enquanto o de Moriyama
caracteriza-se por sua vontade “de ir até o fim da coerência fotográfica [...] um equivalente da
escrita automática dos surrealistas” onde “a cadência é frenética, bombardeio incessante de 150 ROUBINE, J. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.
136-137.
95
imagens” 151. Se no primeiro exemplo, Atget-Abott compreende a existência de uma “linha de
ação contínua”, conceito definido por C. Stanislavski152, como “linha de ação básica que
atravessa todos os episódios”, os dois últimos, Gyorgy/ Moriyama desenvolveriam uma linha
de ação descontínua objetivando uma cenografia do choque e das disjunções das metrópoles
americanas e japonesas.
Caçado por colecionadores, os álbuns de fotografias tiveram um recente boom na
Europa e Estados Unidos, elevando o preço das publicações originais. Objeto de culto, alguns
de rara beleza encantam inclusive amadores a se arriscarem na tentativa de um bom negócio ou
simplesmente de se iniciarem no afã do colecionador. As reedições críticas luxuosas enchem os
olhos dos amantes de livros e de fotografias seguem a tendência editorial de reproduzirem as
edições originais, publicação de fac similes, edições de aniversário das publicações etc. Surge
uma crítica especializada tateando uma análise específica da mídia que alguns consideram a
ideal como suporte para a fotografia. Pode ser que para o imenso público contemporâneo de
arte, as fotos de Atget na Bibliotèque Nacionale ou as de Brassai na exaustiva exposição de arte
contemporânea do Georges Pompidou impressionem pela volta da autenticidade aurática do
cliché revelado em papel específico, moldurado e pendurado na parede. Para o estudante,
pesquisador e colecionador, o formato álbum torna-se insuperável pela praticidade e
manualidade. Perto das mãos e olhos, de fácil manuseio, desde o final do século XIX, o álbum
de fotografias vem se impondo no desejo e biblioteca de muitos.
* * *
151 PARR Martin; BADGER Gerry. Le livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-
Gettle; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005, p. 127, 263, 298. 152 STANISLAVSKI, C. Manual do ator. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 15-
16.
96
Martin Parr153, no prefácio de seu belo Le livre de photogaphies: une histoire. Volume
1, no qual teoriza e historiografa, entre outros, os “álbuns de fotografia” de rua, comenta que ao
comprar a segunda edição do famoso The americans (1959) de Robert Frank sentiu-se
estimulado, com a potencialização da fotografia não mais isolada, mas vista em um conjunto
definido, pois:
revelou-me o verdadeiro potencial da fotografia [...]. Também me sensibilizou a
idéia de que um livro bem pensado pode valorizar um conjunto de fotografias. A
associação de imagens e a composição cuidadosa da página de um belo livro,
agradável de abrir e folhear, é ideal para traduzir as idéias e as opiniões estéticas
preconcebidas de um fotográfo.
Os livros de fotografias passam a ocupar um local determinado na cultura
contemporânea, abertos à investigação, interpretação e historiografia. Não são mais um simples
veículo de imagens acumuladas à esmo, trazem em seu corpo uma forma apoiada na escolha
das imagens e na relação que estas estabelecem entre si. Um domínio próprio que nos incita a
uma experiência estética além das fotos, incorporando a escolha do papel, da sequência, dos
textos e títulos que incidem sobre o formato geral da apresentação. O problema da distinção
antagônica entre intentio auctoris e intention lectoris se apaga, nesse trabalho, considerando
que, para o primeiro, ainda existe algo que resiste, o corpo-livro, independente do autor, mas
submetido ao seu tempo criativo; quanto ao segundo, explicita enquanto interpretação datada,
as práticas herdadas e as que lhe são correntes como invenções de seu próprio tempo.
Perspectiva que possibilita inclusive a divisão analítica da obra vergeana em dois momentos,
subtendendo-se duas interpretações e usos (práticas) diferenciados.
Para Parr, o álbum fotográfico cria gemealidade com o romance, o filme e o teatro de
imagens:
153 PARR Martin; BADGER Gerry. Le livre de photographies: une histoire volume I. Trad. Virginie de Bermond-
Gettle ; Anne-Marie Terel. Paris: Phaidon, 2005, p. 4, 5
97
Trata-se de uma obra, com ou sem texto, na qual a primeira mensagem é
transmitida pela fotografia. Seu autor é um fotógrafo ou uma pessoa que edita e
agencia a obra de um ou de vários fotógrafos. Possui um caráter próprio, distinto
da prova fotográfica, quer seja a simples prova funcional “de trabalho” ou a prova
artística “de exposição”.154
Em consequência surge a figura do fotógrafo-autor, que centraliza as decisões em torno
do livro, objetivando-o enquanto estética, conceito e meio expressivo, pois “o fotógrafo-autor,
aqui, é considerado como um autor no sentido cinematográfico do termo, a saber, o diretor
autônomo que cria o filme em função sua própria visão artística”. Embora recusemos a
conceituação de que o livro de fotografias tenha “a constituição de uma longa narração em
fotografia” ou que “aparenta-se a um ‘romance em imagens’”, por nos parecer redutor ao efeito
linguagem, similar ao que se tentou fazer com o cinema, introduzindo-o a uma análise pautada
em operadores herdados da crítica literária, entendemos o caráter intermediário do nosso
objeto, prostrado numa encruzilhada entre romance, cinema e efeito cenográfico. Surgido em
várias partes do mundo, acompanhado do desenvolvimento das técnicas fotográficas, químicas
e tipográficas, os álbuns se particularizam fazendo aparecer uma cidade-imagem. Manuseá-lo,
nos acessa não apenas à obra, mas faz com que possuamos a cidade em seu duplo objetificado,
tornando-a não menos fascinante e disponível, além de colecionável. Quer dizer, reter instantes
vividos, guardá-los, ordená-los, que possam ser deslocados, revisitados, no espaço privado da
intimidade. O colecionador, arquétipo benjaminiano da modernidade, amontoa imagens e
livros, fragmentos de cidades e os armazena na eminência da desapropriação dos lugares
fotografados pelas intervenções urbanas incessantes ou pela concretude dessa experiência
mesma. Imagens que comungam com a sensação de perda da experiência suscitada pela
memória, a qual o colecionador pode estar querendo redimir.
154 Idem.
98
Do período em que Verger se inicia no métier até o término de sua produção das
fotografias soteropolitanas, os mais célebres álbuns de fotografia de cidade foram: New York de
Alvin Langdon Coburn (1910), Metal de Germaine Krull (Paris-1928), Atget, photographe de
Paris de Berenice Abbott (1930), Paris de Moi Ver (1931), Moi Parij (Mon Paris) de Ilia
Ehrenbourg (1933), Paris de nuit de Brassai (1933), A Night in London de Bill Brandt (1938),
Changing New York de Berenice Abbott (1939), Naked City de Weegee (New York-1945), Day
of Paris de André Kertész (1945 ), The Decisive Moment (Images à la sauvette) de Henri-
Cartier Bresson (1952). Por diversas maneiras, esses livros definiram e ampliaram
sucessivamente os limites expressivos do meio, afirmando-o como objeto de culto e arte, ao
tempo que substituíam a pintura nesse processo de reflexividade imagética da vida urbana.
Atualmente o livro de fotografias, embora de circulação menor, estabelece vantagens
sensíveis, quanto a reflexividade urbana, frente ao romance e ao vídeo, por sua manipulação
imediata e fácil, sobretudo pela particularidade do seu processo de representação. O filósofo
Vilém Flusser155 reporta-se ao confronto entre linhas (escrita) e superfícies (imagens) para
analisar a representação e o design contemporâneos. Enquanto a narração escrita pode reduzir a
cidade a uma linearidade verbal, apesar de seu enorme poder evocativo, e o cinema, através do
movimento, conduzir a fruição da obra, impondo sua interpretação e ordenação imagética
coletivamente, em lugar específico, nas salas escuras, o livro de imagens urbanas se deixa
percorrer de diversas maneiras, pois embora tenha uma organização que obedece
frequentemente aos desejos de seu autor, em nossas mãos percorremos mais livrementes as
imagens, nos detendo em algumas, pulando outras, pousando o olhar sobre uma ou mais
imagens por um tempo que determinamos.
Mesmo com o advento do DVD, e as possibilidades de o reproduzirmos de maneira
livre, a forma cinematográfica se impõe muito fortemente com trilha sonora, encadeamento de 155 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. Por uma filosofia do design e da comunicação. Trad. Raquel Abi-
Sâmara. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.102-125.
99
personagens e cenas que se interpenetram nos cortes e montagens. Essas cenas urbanas
transformadas em imagens-movimento nos escapam, antes de arrastar-nos ao seu ritmo intenso
e peculiar. Com o livro de fotografias ainda resiste o tempo individual que, talvez a contragosto
de seu autor, se lhe impõe. Retomando as distinções frente à escrita que narra a cidade, essa
última se emparelha quanto ao seu valor de manipulação pelo caráter intrínseco da mídia livro,
contudo queda frente ao maior poder de exponibilidade interpretativa das imagens. Segundo
Flusser156, a escrita deve submeter a experiência urbana aos seus limites discursivos, à
linearidade da representação verbal, da gramática. Seu código fechado em torno de uma língua
reduz enormemente sua capacidade de acesso, pois se destina unicamente aos falantes de uma
mesma língua, nativos ou aqueles que a aprenderam. As imagens fotográficas, por suas
características representativas, ainda que não sejam como comumente se pensa, de
interpretação universal, obedecem a processos interpretativos menos restritivos, e cada vez
mais amplos por sua proliferação metastática em nossa sociedade contemporânea, adestrando
aos vivente globalizado às regras do seu código ou “gramática visual”.
As formas de interpretação da fotografia estão cada vez mais expandidas e obedecem a
uma colonização, junto com o cinema, das formas de interpretação visual. Por outro lado, o
livro escrito, ao representar uma cidade acarreta problemas semelhantes, descritos
anteriormente em relação ao cinema (narração e ritmo conduzidos), no que contrasta com o
caráter cenográfico mais aberto quanto à interpretação do livro de fotografias. Questões que nos
remetem ao problema da recepção, isto é, o modo pela qual esses livros, que nos trazem
representações de cidades diversas, são hoje interpretados, manipulados, e publicizados, no
momento mesmo de sua suplantação, seja pela reapropriação e modificação de sua estrutura
primeira no sentido de sua modernização e comercialização, seja pela desmaterialização do
livro empreendida pela digitalização e circulação global via Web. Note-se que a obra de Pierre
156 Idem, p.102-125.
100
Verger está sendo paulatinamente digitalizada e disponibilizada no site da fundação que leva o
seu nome, ao tempo em que os seus livros passam por um processo de renovação com a
inclusão de novas fotos e modificações gráficas.
* * *
Quais as relações que um álbum de fotografia de cidade pode estabelecer com a
disciplina urbanística? O que pode mesmo um livro de imagens de rua no universo estabelecido
do urbanismo e dos urbanistas? As cidades-imagéticas nesses livros seriam propostas urbanas
sugeridas num ponto de outridade em relação ao exercício do urbanista, uma projeção selvagem
ao ato instaurador e disciplinar do urbanista (tanto como campo teórico quanto como campo de
relações de poder). Desde já, defendemos a disparidade dos objetivos, pois entendemos que um
artista nunca é um urbanista, na medida em que o seu projeto não se insere numa malha de
poderes que realizariam o seu projeto na cidade. Podemos admitir que por vezes essa
apresentação, através de suas ruas, esteja próxima de uma verdadeira crítica aos destinos da
cidade, e ainda uma visão utópica ao destacar fragmentos, perspectivas não hegemônicas,
desprezadas por poderes públicos, em uma articulação com instâncias culturais e
mercadológicas. Em alguns casos, vê-se um certo desprezo pela cidade moderna, como
demonstram os trabalhos de Atget e de Verger, acompanhados de muito perto pela escrita
surrealista, na procura do inusual, das ruínas temporais físicas ou culturais, da epifania e
sensualidade das ruas, da historicidade complexa.
Sem o suporte institucional, inclusive em linha de fuga das malhas institucionais, a
projeção visual desse gênero se insinua nos interstícios, cuja visão é fadada ao fracasso e é bom
que assim seja, o que não quer dizer que ela não possa estar a serviço ou ser apropriada por
essas instâncias de realização/concretizações urbanas instituídas.
101
As imagens que nos trazem da cidade que um dia eles viram, respondemos
colecionando-as, comercializando-as, consumindo-as. A produção incessante dessas imagens-
objetos pode tanto suscitar suas estranhezas, quanto concorrer para uma estetização e
“espetacularização das cidades” cujo processo é indissociável das novas estratégias de
marketing mundial157. A obra de Pierre Verger não se encontraria hoje nesse impasse,
instrumentalizada para a propaganda preservacionista, numa visão positivista tanto da
etnografia quanto da fotografia?
Historicamente temos dado ênfase ao caráter de espelhamento e semelhança das
imagens fotográficas em relação àquilo que representam158. Nossa análise intenta diminuir o
valor de autenticidade e reprodução acurada do real para externar os procedimentos
compositivos que estruturam a síntese mágica do dispositivo cenográfico. O propagado “efeito
de real” da imagem tecnicamente reprodutível faz-se acompanhar de um efeito de
desrealização, que nos impele a perguntar, constrangidos, mais uma vez, sobre o que fez, ou
faz, olharmos e sermos surpreendidos mais pelo efeito de realidade do que pela
desusbstancialização da mesma através da cenografia fotográfica. Esse processo de furto, de
elisão de características que “constituem” a realidade poderia ser resumida como a supressão de
algumas das suas dimensões, a paralisia, a perda do odor e de sua temperatura. A constatação
das bases técnicas também nos trairia a presença humana sempre entendida como subsumida na
aparência mecânica e objetiva. E até o seu contrário, isto é, um desnudamento do aparelho
157 JACQUES, Paola Berenstein. Prefácio. In: JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das cidades. Trad. Rejane
Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005, p.47. 158 O artigo do prof. Renato da Silveira traz uma aboradagem crítica dos conceitos mais importantes do historiador
da arte Pierre Francastel. Embora, tenha chegado tardiamente em nossas mãos, foi de fundamental importância, pois indicava a proximidade de algumas de nossas análises com a crítica da pintura do ensaísta francês, principalmente no que se refere à autonomia da imagem, pois “o signo plástico é diferente do signo verbal e exige apreciação específica”; a relação com a técnica, já que “a arte nunca está em contradição com a técnica, uma não é capaz de criar sem a outra”; e finalmente por recusar a idéia de representação como espelhamento e entendê-la como um processo entre “o mundo real, o percebido e o imaginário”. SILVEIRA, Renato da. A ordem visual: uma introdução à teoria da imagem de Pierre Francastel. In: VALVERDE, Monclar (org). As formas do sentido: estudos em Estética da Comunicação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 123-147.
102
fotográfico quanto ao seu modo de “produção do real” imagético. No primeiro caso, a escolha
do local, a tomada de perspectiva frente ao objeto (uma rua, uma fachada, transeuntes), a
relação primeiro plano e fundo etc. Quanto à máquina fotográfica, Flusser159 alude à
compreensão de que ela de início já contém uma programação específica que determinaria seu
funcionamento quanto à captação do “evento” (conjunto de lentes, absorção de luz, velocidade)
que deverá ser admitida, cabendo ao usuário simplesmente manipulá-la. Dependendo de sua
habilidade técnica, o operador da máquina se limitaria a explorar os determinantes funcionais
do aparelho. Ao nos depararmos com uma bela foto de rua, um cruzamento movimentado de
uma grande cidade, não devemos esquecer que o que vemos não se reduz ao que o fotógrafo
viu, mas o que ele pode ver através de uma máquina que por sua vez já contém em si um
processo óptico pré-programado. Por fim, o renquadramento e escolha de tons que
caracterizaria a revelação e a escolha da prova final, sem esquecermos os sofisticados, mas
banalizados, atuais programas de pós-produção digital. O desafio será, mantermos a crítica à
fotografia, denunciando seu caráter construtivo, conservando sua corrosividade teórica de tentar
duplicar aquilo que por definição é irreprodutível num jogo de perdas e ganhos. A
sobrevivência mesma da fotografia como documento de vital importância para a história do
urbanismo dependeria dessa redefinição do seu caráter documental. E é essa visada teórica,
mais que sua historiografia ou estética, que insta o pensamento contemporâneo. Conduzirmos
essa potencialidade para o campo do urbanismo nos abriria insuspeitas vias disciplinares ainda
não percorridas.
Se nossas considerações sobre o álbum-fotográfico e seu autor foram pertinentes para o
que chamamos de primeira cena vergeana, analisada enquanto bom uso dos conceitos de sujeito
e obra, cidade e imagem, essas distinções parecem ceder frente aos múltiplos aspectos
observados pelas redefinições deleuzeanas sobre o livro que corresponderiam ao que 159 FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Tradução do autor.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 21, 28.
103
chamamos de segunda cena vergeana. Em “Introdução: Rizoma”160, Deleuze e Guattari alertam
que, ao atribuirmos objeto e sujeito ao livro, perderíamos as possibilidades conectivas desse
meio, ignorando as “linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades ” assim
como “linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação”. Insistir na figura
do sujeito-autor e de sua presença transcendente e obsessiva sobre a obra, poderia negligenciar
sobretudo a “exterioridade das correlações”, pois um livro antes de ser um dentro, é um corpo
exposto, antes de deter um sentido escondido sobre as entranhas, é um campo de atuação de
forças que produzem cartografias, “ regiões ainda por vir ” no lugar de sentidos. Compreende-
se, portanto, que um livro não pode ter uma identidade que se repetiria no continuum histórico,
da mesma maneira que uma interpretação que a revelasse. Os seus limites deixam de ser
tomados como fechamentos, possibilitam reconexões e aberturas de configurações,
superposições, segmentaridades ou zonas de indiscernibilidade. Aquilo que o territorializa
(território-identidade) é mesmo o que possibilita sua desterritorialização (todas as
interpretações, sem se perguntarem se estão fugindo ou não de uma identidade perdida). A sua
apresentação, seu acabamento já é seu início, potência perpassada por forças quando da sua
feitura. Indistinção absoluta entre o que “um livro fala e a maneira de que é feito”, pura
exterioridade. Como nos lembra Deleuze e Guatarri, um livro é “uma pequena máquina”
implicando numa relação com o fora, “existe apenas pelo fora e no fora”. A metáfora da
máquina utilizada, que a princípio pode soar estranha, justifica-se, pois os autores querem
imaginar acontecimentos sem sujeitos ou essências, e mais o caráter produtivo do que
representativo. Menos significado, mais espaços de ação, pois “quando se escreve, é saber com
que outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar”.
Logo, é nessa exterioridade, nas conexões que se formatam os significados e as novas zonas de
atuação medidas quanto à qualidade dessas conexões pelas forças que aí operam. 160 DELEUZE, Gilles, FÉLIX, Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra e
Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. p.11-13.
104
Em nossos termos, as imagens do livro de fotografias se confundiriam com a
cenografia, que por sua vez é a cidade entregue ao devir de sua interpretação, enquanto
historicidade efetivada, não tanto pela intensidade das forças que a reconstituirão, mas pelo seu
impacto aos que lhe são coetâneos. O contrário, abandoná-la (a cenografia visual) ao canto
mavioso da sereia-memória, é perpetuar o mesmo em sua repetição infernal. (Essa é a estratégia
do espetáculo e sua reprodução técnica denunciada por Debord e Benjamin).
A teoria da história benjaminiana, de inspiração nietzschiana e surrealista, aponta que é
ao presente que reivindicamos as imagens do passado. No presente reelaboramos o passado
reincidentemente, ele nos pertence enquanto imagem para o futuro com a qual exorcisamos a
tirania doce da nostalgia. Assim, um livro nunca seria um ensimesmamento, o erro de
afirmarmos a cidade que ele contém e nos debruçarmos nos arroubos interpretativos, mas, a sua
exterioridade, compreendida pela sua historicidade: quais os perigos que ameaçam o ou os
eventos que possibilitaram as cenas? Qual a força de sedução dessa situação de perigo para os
que a vivem?
Se em Benjamin161, a imagem que podemos ter do passado surgirá apenas como um
clarão para no instante seguinte desaparecer, é na instantaneidade do presente que o jogo se
fará. O continuum histórico trocado pela fulguração instantânea que nega uma verdade imóvel à
espera do historiador que a recolha. O passado não está em nenhum lugar além, nem habita
paragens temporalmente distantes, ele se presentifica. É no presente que se deve reconhecê-lo
como tal, na medida em que se descobre visado por ele. Em sua imediaticidade, o clarão que o
anuncia nos lembra um flash fotográfico que preconiza a impressão de uma imagem no filme
virgem.
A teoria da história benjaminiana suspeita radical das continuidades, atribui ao presente
a tarefa de travar uma luta com o passado que não cessa. A cronologia explodida pelo
161 BENJAMIM, Walter. Sur le concept d'histoire. In: _____. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991, p. 432-443.
105
acontecimento − instante de reconhecimento pela imagem do passado – só admite a
continuidade das perdas sucessivas daqueles que agora exigem a redenção. Esse engajamento e
crítica nem sempre estão presentes quando pensamos o urbanismo e a cidade historicamente.
Nelas as imagens que herdamos têm um solo comum a todos e ininterruptamente se estende em
cronologias e continuidades.
Benjamin, talvez, não estivesse imbuído apenas da intuição histórica surrealista, quando
cunhou o enigmático tomo V, de seu Sur le concept d’histoire. Convertido ao marxismo, devia
ter em mãos o famoso texto de Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Citando Hegel, Marx,
lança mão de uma metáfora teatral para definir a história: “Hegel observa em uma de suas obras
que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por
assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda
como farsa”. Para Marx, os homens são oprimidos pela tradição das “gerações mortas” e ao
tentarem criar algo novo, sucumbem aos “espíritos do passado”, dando-lhe “os nomes, os gritos
de guerra e as roupagens” de outrora162.
No exposé de 1939, Paris, capitale Du XIX° siècle163, redigido em francês, Benjamin
alerta, reiterando o raciocínio marxiano, que “As novas formas de vida e as novas criações,
com base econômica e técnica que nós devemos ao último século, entram no universo de uma
fantasmagoria”. Assim como Napoleão, não entendeu a natureza funcional do novo estado
burguês, os arquitetos também não compreenderam a natureza funcional do ferro, senão
retomando velhos usos e significações, em ambos os casos criando fantasmagorias164.
Daí as duas cenas vergeanas indicando dois estágios de seu dispositivo cenográfico. O
primeiro, sob o signo da tragédia, Verger, junto ao grupo baiano, elabora sua obra dedicada ao
162 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos
escolhidos. José Arthur Giannotti (org.). Trad: José Carlos Bruni... [et al.]. São Paulo: Nova Cultural, 1987-1988, p. 7.
163 BENJAMIM, Walter. Paris, capitale Du XIX° siècle. In: _____. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991, p. 375. 164 Idem, p. 377.
106
estilo de vida soteropolitano. Sobre eles pairavam o desaparecimento da vida urbana e da
arquitetura que tanto amavam. O segundo, a sobrevida de sua obra, ainda ligada aos amigos,
sobretudo Amado, sob o signo da farsa, aos auspícios do espetáculo e seu tempo morto. À
revelia, a maior parte da recepção e crítica contemporâneas do seu trabalho o tomam como
fantasmagorias, isto é, recusam a emergência do novo, e interpretam o segundo estágio aos
moldes do primeiro.
No Nietzsche, la généalogie, l’histoire, texto elucidativo de sua compreensão da
história, Foucault165 defende que a genealogia não se opõe ao que é histórico mas ao
metahistórico e às teleologias. Nem permanências, nem linearidades. Ponto de fuga das
finalidades em busca das singularidades, evitando o traço que se arrasta de uma evolução,
propondo em seu lugar “Diferentes cenas na qual encenaram papéis diferentes” ou mesmo as
lacunas, o momento que não teve lugar. Nunca a origem. Se entendemos o presente como fim,
que já estava na origem, é porque esquecemos a história como devir e adotamos o destino em
seu lugar. Foucault detecta uma recusa nietzschiana, que também acalenta, em relação ao
desejo de pesquisar a origem das coisas. Pesquisa empenhada em procurar “a essência exata
das coisas, [...] anterior a tudo o que é externo, acidental e sucessivo”. Acredita que a
genealogia trabalharia em sentido inverso do “tirar todas as máscaras” para desvelar a
identidade primeira, “essência exata da coisa”. Contrário ao efeito metafísico, a genealogia
apreende que por trás das coisas tudo é diferente do “segredo essencial e sem data, mas o
segredo que elas estão sem essência”. O que nomeamos de essência foi constituído,
acidentalmente, ao acaso, “a apartir de figuras lhe eram estranhas”.
O genealogista historiador sabe que no começo, longe de encontrarmos a pureza
essencial das coisas, ainda preservada da sua origem, encontraremos discórdia e surpresa.
Vemos, com ele, que nosso presente é a emergência de práticas e significados novos, não a sua 165 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire. In: _____. Dits et Ecrits I, 1954-1975. Paris:
Gallimard, 2001, p. 1004-1024.
107
repetição modorrenta. Como não possuem “em si significação essencial”, serão recolocadas
sempre “num outro jogo”, submetidos a um outro movimento e a outras regras, tornando-as
visíveis “como acontecimentos no teatro de proceduras”
Ao aplicarmos as metáforas teatrais marxistas aos fragmentos nietzschianos do texto de
Foucault, que se alimenta de uma linguagem do campo teatral (inopinado encontro entre Marx
e Nietzsche), diríamos que a tragicomédia da origem, com a perfeição que antecede a queda
(verdade originária, erro que não se altera) seria seguida pela emergência da farsa: a máscara
que nenhum rosto encobre.
A história foucaultiana é pensada como narração daquilo que não persevera no mesmo,
lugar movente do dessemelhante num teatro de superfícies. Onde o passado quer mostrar seu
rosto resultante do desenho perfeito de sua evolução, continuidade e cronologia, desafia com a
proliferação dos erros e desvios, inversões, que gargalham sob a máscara.
Mais uma vez, abordando a dupla divisão que nos propusemos fazer em torno da obra
de Verger, não poderíamos analisá-la sem os pressupostos de origem ou a essencialização tão
em voga da cidade provinciana? Não seria mais interessante acompanhá-la nos seus desvios e
acidentes? Denunciar as fantasmagorias e sugerir a emergência de outras? Das vicissitudes da
chegada do fotógrafo e sua aventura inicial, com suas continuidades, sobretudo os cortes
históricos formadores de sua obra, às novas dramaturgias a que tem se submetido.
Tomar cidade e obra fotográfica de Verger como um corpo, que na definição
foucaultiana é “superfície de inscrição dos acontecimentos”, cabendo ao trabalho analítico
“mostrar o corpo todo marcado de história e a história arruinando o corpo” faz-se
imprescindível.
* * *
108
Em 1976, organizou-se no “Cemitério Sucupira”, sub-solo da Praça Tomé de Souza,
uma exposição das imagens soteropolitanas de Verger, e observou-se que “todas as fotos
estavam marcadas pelas digitais dos visitantes”166. A fisicalidade do toque, ou mesmo a dança
dos corpos ante ou entre as imagens de uma exposição, se completava nessa geografia urbana
mediatizada pela técnica em que os dedos querem furar a superfície da imagem. Essa
espectativa frustrada pela consistência do corpo-corpo e do corpo-imagem indicam uma
cartografia desconhecida. O urbano torna-se informe, escapa das conceitualizações que o
definiam, rompe formas provocando “o dilaceramento de um tecido”. A forma monstruosa,
reconhecida como “possibilidade de metamorfose”, forma aberta, “ambiguidade terrível”167.
Urbano-informe, urbano-monstro. Rito de passagem, a exposição é um dos vasos comunicantes
entre os dois momentos dos trabalhos de Verger, nos conduzindo para o momento espetacular.
Não teríamos como ainda manter a separação entre a cidade vivenciada e a dos livros (cidade
real/cidade representada) amalgamados por um único e mesmo espaço. Da visão direta das
situações, ilhadas num tempo de baixa reprodutibilidade técnica, emergiríamos numa geografia
imagética indiscernível entre o que os olhos vêem sem ou com mediações técnicas. As imagens
reprodutíveis modificam a nossa percepção do espaço, visto agora de outra maneira, sem
estarmos nele imersos, pelo menos como antes.
Uma imagem reprodutível (cinema/fotografia) apesar da sua iconicidade, deveria ser
tomada por ela mesma, sem a romântica nostalgia do mundo real perdido no espaço
cenográfico da representação. O que se quer é a reconstituição do mundo ou mesmo uma re-
(a)presentação de forma acurada ou verdadeira, recusando-se às imagens reprodutíveis suas
características (o que já é muito) verossimilhantes em relação ao que chamamos real. Roland
Barthes (“efeito de real”), Michel Foucault (“similitude”/“semelhança”) e antes deles Pierre 166 NOBREGA Cida; ECHEVERRIA Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p.
261. 167 NEGRI, Antonio. De volta: abecedário biopolítico. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 71,
133.
109
Klossowski (“paródia, simulacro, fábula”), ressaltando as particularidades, transitam ao redor
dessa idéia em seus respectivas trabalhos168. Evitando os excessos pós-estruturalistas que
preconizavam uma “textologia”, ou mesmo, uma “imagetologia” derivada de um apagamento
do mundo (“tudo é texto!”/ “tudo é imagem!”), como se além de textos e imagens não houvesse
absolutamente nada, acreditamos que “texto é texto, imagem é imagem” e estes não podem ser
compreendidos sem o conjunto das práticas a que estão submetidos. Assim uma imagem não
deverá ter um lugar de “secundidade” frente a um real “verdadeiro”, mas tomada em sua
instância primeira de aparecimento, quase como se nos fosse possível esquecer que há algo por
trás dela, ou, ao menos, que o que havia estaria perdido para sempre. Isso quer dizer que as
cidades-imagéticas cenografadas pelos procedimentos técnicos devem ser fruídas enquanto
aparições visuais plenas, o que nos remeteria à própria “concretude” dessas imagens: cores,
formas, cenas, luz etc; o discurso teórico (inclusive este) não deverá dizer a última palavra
sobre essas imagens. Uma teoria das imagens reprodutíveis deve assumir seu caráter de
provisoriedade e arbitrariedade e um jogo de sedução mútuo entre palavra e imagem, evitando
criar taxionomias, glossários técnicos, gramáticas visuais urbanas, dissecações etc. A adoção do
dispositivo cenográfico para analisar as imagens fotográficas, nesse sentido, é um investimento
de caráter teórico que, visando criticar e ampliar as análises atuais, evita assumir-se como
discurso ou método verdadeiro e único; as imagens não deverão ser decifradas. Percebemos
que há um jogo trágico entre as aparências (superfícies), seja entre o real e as imagens-
reprodutíveis, ou destas entre si, como uma astúcia tácita em que só podemos responder à
última jogada que nos remeterá ao próximo lance. Longe de estabelecer as dualidades cidade-
real versus cidade-imagética, pousar no jogo das aparências e, talvez, desviarmo-nos para o
jogo entre as próprias imagens-reprodutíveis de cidade (de uma mesma época, de épocas
168 BARTHES, Roland. L'effet de réel. In: ___. Oeuvres Complètes. Tome III. 19768-1971. Paris: Seuil, 2002, p.
25-32; FOUCAULT, Michel. Ceci n’est pas une pipe. In: ____. Dits et Ecrits I, 1954-1975. Paris: Galimard, 2001, p. 663-678; KLOSSOWSKI, Pierre. Nietszche, o politeísmo e a paródia. Trad. Eloisa de Araújo Ribeiro. 34 Letras Fraude, Rio de Janeiro n°5/6, p. 146-163, set 1989.
110
diferentes, de cidades diversas, de constituições técnicas diferentes etc.). São dois momentos
diferentes que instam abordagens teóricas diferentes, por isso a ruptura entre as duas cenas
vergeanas; a proliferação das imagens contemporâneas não poderá continuar sob as
intempéries das análises iconoclastas de fundamentação platônica e puritana. A condenação
das imagens contemporâneas em seu processo de metástase já foi realizada num processo que
se assemelha a uma inquisição teórica (adorniana/debordiana/baudrillardiana). Buscam-se
outras análises que retomem o gosto barroco pela proliferação das imagens (horror vacui) e
sem receio do caráter vertiginoso dos seus efeitos, compreendendo que as inúmeras formas de
produção e manipulação das imagens-urbanas, inclusive em seus formatos numéricos, sejam
holliwoodianos, publicitários, políticos, banais, devam escapar do mito da sociedade totalitária
(espetacular/simulacro) derivada do puritanismo imagético que prega a satanização do aparente
(superfícies imagéticas). As formas da aparência urbana reprodutível (agora sob o impacto do
digital) se transformaram também em nossa própria paisagem urbana (num quiasma), na
medida em que esta se torna também reprodutível, confundindo-nos, e anunciando o que nos
poderá advir, quem sabe a total indistinção entre elas169. Parodiando o estadista francês
Clemenceau, diríamos que as imagens são importantes demais para serem deixadas nas mãos
dos cineastas, fotógrafos e produtores de imagens digitais.
169 DRUMMOND, Washington. Narrativas Urbanas I: a dramaticidade da luz. In: SAMPAIO, Alan; OLIVEIRA,
Valter. Arte e Cidade. Salvador: Eduneb, 2006, p. 21-33.
111
3. Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador (1946 a 1952):
análise do dispositivo cenográfico
Utilizando a teoria teatral da cenografia procuraremos analisar o dispositivo
cenográfico nos três procedimentos que estruturam visualmente a cidade de Salvador nos livros
Centro Histórico de Salvador e Retratos da Bahia, quando Verger elabora uma sofisticada
apresentação da cidade, inspirada no surrealismo. Ao lado de Carybé, Amado e Caymmi e ao
avesso do gosto oficial, critica o incipiente processo de modernização.
O surrealismo visual afirmou-se com formas rebuscadas, uma espécie de maneirismo
sob os cuidados do inconsciente, cujo representante mais famoso é o espanhol Salvador Dalí.
Na literatura, imagens fortes e desconexas aludem ao onírico e maravilhoso. Congelou-se essa
interpretação, apelando ao óbvio, classificando o movimento entre o didatismo e a repetição.
Ensaístas como Clifford, Sontag e sobretudo Benjamin, souberam nos mostrar, através de
conexões ainda não exploradas, uma face mais elaborada do movimento apoiada na deriva, na
imagem fotográfica, na iluminação profana, respectivamente. Para os dois últimos os
surrealistas definem a maneira de descrevermos as metrópoles contemporâneas. Particularmente, é o
trabalho de Benjamin, ao estudar a literatura surrealista dos anos 20, que indica as principais
características da constituição da nossa principal ferramenta de análise, o dispositivo
cenográfico. Se nele, em relação à obra de Verger, a forma estética não se assemelha ao
surrealismo clássico, antes próxima do neo-realismo italiano170, as idéias centrais que
determinam a apreensão da cidade são comuns aos dois momentos em que são analisados: o
deambular pela cidade, o fascínio pela vida urbana que se extingue, sensibilidade às ruínas
urbanas, a iluminação antropológica, objetos cotidianos em desuso, prostitutas, espaços
170 Observação feita pelo professor Pasqualino Romano Magnavita durante a qualificação da tese. Ao qual
agradeço o comentário.
112
arquiteturais ameaçados de desaparição e um encantamento que emana desses lugares. Como
moldura as ruas, que os surrealistas idolatram como teatro de encontros e acontecimentos
imprevistos (hasard objetif) e pelo erotismo que por elas circulam.
* * *
No conjunto, os dois álbuns (RB/CHS) nos revelam o primeiro procedimento acionado
por Verger: o conluio visual entre a herança colonial e os primeiros arroubos modernos,
insinuando, sem nunca corromper, transformações na configuração colonial ainda existente, ou,
pelo menos, aquela que se apresenta organicamente colada a uma representação canônica do
passado soteropolitano. Passado que será reinterpretado visualmente por Verger ao introduzir
como vetor de sua constituição a experiência dos negros na cidade.
Nos capítulos anteriores afirmamos que passado sempre está em perigo para um
historiador benjaminiano171. As linhas de combate, os arranjos, as fugas, perdas e vitórias que
garantem no presente um passado, o estigmatizam como verdade, turvando as águas que ainda
guardam as lembranças da luta e da rapina. Deveríamos desconfiar do que tomamos como
passado, repetido nos monumentos, nos livros, na memória. Benjamin nos aponta o caráter
construtivo da memória, mais que isso, o combate sem fim que aí se dá. Tudo é movediço, e o
que tomamos como rosto pode ressurgir como máscara mortuária.
Por que a memória como verdade do já acontecido e não como butim dos vencedores?
Memória e fotografia nascem de jogos de morte. A primeira, triunfante, se espoja sobre os
despojos dos vencidos, os que morreram e não podem legar seu passado aos vivos; a segunda,
eterniza uma cena do real, que é sua lembrança, ao tempo de seu rito fúnebre. Persevera sendo
o que foi, sem nunca assim ter sido. A rigidez cadavérica das imagens fotográficas é
assustadora. O que foi rosto, o que é máscara mortuária?
171 BENJAMIN, Walter. Sur le concept d’histoire. In: ____. Ecrits français. Paris: Gallimard. 1991, p. 432-455.
113
No segundo procedimento, Verger fotografa a natureza ainda exuberante na Salvador
dos anos 40. A arborização, a geografia acidentada e a Baía de Todos os Santos são espaços
cênicos da performance corporal da cidade e dos seus personagens. Vemos um só corpo
orgânico em que a idéia de moldura desaparece para dar lugar a uma concepção moderna de
cenografia.
A história da encenação teatral relata as importantes configurações pela quais
passou a elaboração do espaço cênico de mero décor às funções de expressividade, da
acomodação textual ao caráter intervencionista. Ao avaliar as inovações cenográficas de Craig,
Roubine assinala as complexas “possibilidades expressivas do espaço cênico” desenvolvidas
pelo encenador ao “ampliar a profundidade cênica, de conferir ao espaço cênico um poder de
sugestão que ele nunca havia conhecido”172. Cada vez mais “em oposição ao cenário
tradicional, uma segunda direção, aquele do ‘cenário’ construído, vai ocupar um lugar [...]. Um
cenário que joga com o autor tende a substituir um cenário-quadro”173.
De onde vemos, daquilo que o olho de Verger viu pela objetiva e o aparelho fotográfico
registrou, o meio natural não é só paisagem, assume seu lugar expressivo nas cenas fixadas.
Árvores abrigam transeuntes e embelezam vias urbanas, circundam praças como um grande
útero enfolhado de onde se arriscam transeuntes displicentes, suaves sobre a sombra-proteção
na RB Praça Cairu (fig. 08). As exposições surrealistas cenografaram as ruas também como
ambientes uterinos e disformes, habitados por manequins femininos. A um só tempo
acolhimento e estranheza. A Salvador de Verger é o útero materno de águas, vegetações e
casarios por onde se desloca o corpo negro erotizado, desnudo, esculpido em músculos
precisos, contornos arredondados. Bocas, peitoril, coxas, nádegas. No trabalho, alongado,
descansando nas ruas, na festa e no transe. A Nadja que conduz as deambulações pela cidade 172 ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. p. 89 173 VEINSTEIN, André et COUCOSH Victor. Le lieu théâtral. In: COUTY, Daniel; REY, Alain (direction). Le
théâtre. Larousse, 2003, p. 208.
114
tropical tem a tez negra e algumas vezes incorpora num corpo masculino. Clima sensualizado
muito recentemente explorado pela crítica. Amado, que conviveu com os surrealistas em Paris,
durante o exílio, utiliza do mesmo artifício para conhecer a cidade. Na abertura do livro Bahia
de todos os santos174, convida a sua amada, uma Nadja imaginária, (sua esposa Zélia Guattai
que era paulista?), a se perder pelos mistérios e misérias soteropolitanos acuados pela feiúra
moderna:
E quando a viola gemer nas mãos do seresteiro na rua trepidante da cidade mais
agitada, não tenhas, môça, um minuto de indecisão. Atende ao chamado e vem. A
Bahia te espera para sua festa quotidiana. Teus olhos se encharcarão de pitoresco,
mas se entristecerão também ante a miséria que sobra nestas ruas coloniais onde
começam a subir, magros e feios, os arranha-céus modernos.
Os manequins não passaram despercebidos às objetivas e foram incorporados às
fotografias. Como Atget (Magasin de vêtements pour hommes) e os surrealistas, Verger sente-
se atraído pela fantasmagoria da forma humana congelada que nos desafia. Espalhados pelas
cidades, ostentam um mundo entre o onirismo e as mercadorias que agenciam. Em RB 241 (fig.
1) (sem nome) três manequins parecem trocar intimidades num clima de mistério, expostos
junto ao parapeito de uma janela. São senhores brancos, de certa elegância sóbria, mas a camisa
incompleta de um deles (rota?) frente ao péssimo estado do prédio onde se encontram, denota
uma crítica à decadência da vida das elites soteropolitanas.
Em RB Terreiro de Jesus (fig. 9), mãos no bolso, transeuntes levam chapéus de vários
tipos, ou mesmo malas sobre as cabeças. Vão preenchendo o lado sombreado e deixando a
descoberto a inclemência do sol sobre a praça em reformas. Nos dois casos, as linhas retas e as
superfícies lisas dos casarões da arquitetura colonial são tocadas, maculadas pela não
uniformidade da vegetação eriçada. Hirsuta, encravada no vazio urbano da praça, a vegetação é
áspera aos olhos como o é o Objet: déjeuner en fourrure de Meret Oppenheim, exposto na
174 AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos. São Paulo: Martins, 1967, p. 17.
115
exibição de objetos surrealistas de 1936 em Paris. A fotografia dessa obra, tirada por Dora
Maar no mesmo ano, coloca o objeto sobre um guardanapo propondo uma disjunção entre os
pelos e as formas quadradas, retilíneas175. Processa-se uma desfamiliarização do objeto-xícara
pelo informe. Em RB Cidade Baixa e Cidade Alta (fig. 10) afirma-se o mesmo processo de
estranhamento, em que os casarios são invadidos pela vegetação, que brota sem controle,
compondo um informe urbano, que rompe a visão ordenada e funcional da natureza na cidade.
Distante dos cartesianos jardins franceses geometrizados, a irrupção do informe não repete as
metáforas do organismo que marcam o urbanismo. Georges Bataille176, participante ativo da
empreitada surrealista, em seu dicionário crítico, escreve que “informe não é somente um
adjetivo, tendo tal sentido, mas um termo servindo para desclassificar, exigindo geralmente que
cada coisa tenha sua forma. O que ele designa não tem seus direitos em nenhum sentido e se
faz esmagar em todos os lugares como uma aranha ou uma minhoca”177. Verger antevia essa
última vitalidade verde no espaço da cidade, em que sua pujança preconiza o lento extermínio
finalizado nas praças lisas e inóspitas da Salvador contemporânea. O informe procurará outras
vias para nos surpreender.
As imagens aquáticas, marítimas ou fluviais do RB podem ser divididas em cenas de cultos
religiosos, afros e católicos, cenas de trabalho, cenas de festa. Águas que alimentam a cidade
muito além das idas e vindas dos saveiros com os produtos do Recôncavo, como na série RB
Porto dos Saveiros (fig. 11), mas também com as graças dos santos católicos, a felicidade dos
orixás, ou os peixes em cuja labuta se misturam ao suor dos corpos. É uma extensão da cidade,
povoada por homens e deuses, zona informe que estende o conceito de cidade e realidade. Seja
no mar da RB Galeota de Nosso Senhor dos Navegantes (fig. 12) em que sombras amalgamam 175 FER, Brion. Surrealismo, mito e psicanálise. In: FER, Brion; BATCHELOR, David; WOOD, Paul. Realismo,
racionalismo, surrealismo. Trad. Cristina Fino. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 175-176. 176 Georges Bataille, representa o lado obscuro do surrealismo. Sempre rejeitado com veemência por Breton que
advogava um surrealismo solar. Entre livros de ensaios e romances publicou Histoire de l’oeil e La part maudit.
177 BATAILLE, Georges. Le dictionnaire critique. L’Ecarlate, 1993, p. 33
116
os marinheiros negros com a imagem barroca no comando da embarcação em direção à areia
tomada pelos fiéis que desaparece deixando um contínuo onde todos parecem estar
mergulhados nas águas; ou fotos como RB Presente nas águas da Lagoa do Abaeté (fig. 13)
em que águas turvas da lagoa recebem presentes e reverberam, meios naturais de transmissão, a
fé do povo do candomblé; na RB Pesca do Xaréu (fig. 14) vemos os pescadores, a medida
humana na desmedida do oceano ou do firmamento, nuvens e ondas alvas lambem seus corpos
suados. Por último, a série RB Dique de Tororó (fig. 15) evocando a convivência das práticas
de limpeza, transporte, subsistência dispostos na cotidianidade banal.
A zona informe entre terra e água, homens e deuses, propicia as ações, sendo a fusão
dos ambientes que interagem. Replicam-se, tornando-se indistintas as linhas divisórias entre as
expressividades paisagísticas e de seus atores. O informe, onde o sincrético se anula para lhe
dar lugar, resulta como aquilo que não tem terreno ou conceito definido, o inclassificável que
assusta as disciplinas e que não estabelece híbridos ou misturas. Movente território: zonas de
indiscernibilidade nunca tratam de combinação de formas, mas de produzirem “um fato
comum”178.
O terceiro procedimento, é a invenção do petit monde. Encravado como um cristal no
centro da cidade, é abrigo e expressão que se coaduna às ações exploradoras dos personagens
neste cenário, constituindo-se como um campo de atuações ao largo das grandes linhas de
modificações gerais e globalizadas. As deambulações por esse sítio, por parte de Verger e seus
personagens, é a prática de exploração e adensamento da experiência das ruas. Alimenta-a a
expectativa que o surrealismo nos legou de deslocarmos-nos pela cidade em busca de encontros
fortuitos, enlaces amorosos, epifanias. O pequeno mundo, topografia que se confunde com o
Centro Histórico, propicia a iluminação profana, centrada na visada antropológica dos
acontecimentos urbanos, inclusive aqueles do universo religioso. Único encantamento possível 178 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon. Lógica da sensação. Trad. Roberto Machado (coordenador). Rio de Janeiro:
Zahar, 2007, p. 29.
117
para quem, como Verger, se dizia cético, incapaz para o transe, porque francês. O que não o
impossibilitou à iniciação nos cultos afros nem à dedicação e entrega aos preceitos exigidos.
As imagens do pequeno mundo impõem o olhar que recompõe harmonias em
dissonâncias. Ou tenta, ao menos. Tudo o que poderia representar o moderno não se afirma
como signo norteador do caráter urbano. Salvador nas obras vergeanas é um conjunto
imagético de experiências urbanas que reforçam formas e práticas culturais enraizadas,
indiferentes aos fluxos modernos associados às elites brancas. As tensões que delineiam a nova
configuração modernizante são amenizadas no sentido de, se não desaparecerem das
fotografias, ao menos serem citadas pelas bordas, em aparições controladas, sem centralidade,
pois o foco da objetiva sempre recorta, enquadra, a cidade provinciana, enquanto arquitetura
colonial apropriada pelo transe da tradição cultural e religiosa de origem negra.
Uma boutade vergeana confirma nossa perspectiva. Segundo Cida Nobrega e Regina
Echeverria, biógrafas do francês, este só se apercebera da presença de brancos na cidade em
1951, quando da sua colaboração, via UNESCO, com o antropólogo Thales de Azevedo, de
uma pesquisa sobre as elites brancas soteropolitanas. Foi nessa ocasião “que ele passou a
frequentar os bairros da elite de Salvador e se deu conta de que a cidade abrigava também uma
população de brancos”179. Apenas cinco anos após a chegada do fotógrafo, ele percebera que
além da cidade negra (ou negro-mestiça) havia uma outra cidade, formada por habitantes
brancos e, tratando-se dos bairros elitizados, com uma proeminente modernização urbana. Em
entrevista a Maria José Quadros, Verger declarou: “Quando cheguei à Bahia, em 1946, nem
notei que aqui vivia também gente branca. Só descobri que tinha branco tempos depois, quando
tive de ilustrar um livro de um professor da Universidade Federal da Bahia, sobre elites de cor
179 A boutade vergeana apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto.
Salvador: Currupio, 2002, p. 188.
118
da cidade, publicada pela Unesco”180. Esse olhar seletivo vai fatiar a cidade, oriunda de suas
peregrinações aos sítios que mais lhe agradavam e das situações do espaço público tornadas
imagens fotográficas. Os cenários de sua predileção serão os bairros humildes, as extremidades
da cidade, as vilas de pescadores, ou o antigo centro, antes habitado pelas elites, e hoje
relegados aos pobres, os quais viam vantagem em morar próximos ao vigor do comércio e das
docas. Particularmente, o livro Centro Histórico de Salvador será a organização e apresentação
do “petit monde”, com seus ambientes e personagens formando um território livre, núcleo de
uma utopia urbana fechada sobre si, que desdenha jubilosamente do seu destino. Em texto
introdutório, escreve Verger:
A área denominada Centro Histórico de Salvador compreende a região da cidade
situada ao norte da praça Municipal e que se estende até a Igreja de Santo Antônio
além das Portas do Carmo. A parte mas falada desta área é o Pelourinho [...].
Tudo passa pelo Pelourinho. As festas cívicas e religiosas, patrióticas como a do 2
de julho onde desfilam o caboclo e a cabocla, símbolos do Brasil livre [...]. O
carnaval- os principais blocos, batucadas e afoxés.181
A. Métraux, antropólogo francês, amigo de Verger, relatou, sobre seu último passeio
com o amigo pela cidade, cruzando o Pelourinho em direção à Cidade Baixa:
Verger e eu vagabundamos pela Cidade Baixa. Saudações e beija-mãos das
vendedoras de acarajé. Ele conhece um número inacreditável de pobres diabos
que moram no porto: estivadores, engraxates, marinheiros e outros sem ocupação
bem definida. Ele lhes dá dinheiro, diz-lhes brincadeiras, se informa o porque
deles não estarem na cadeia. Muitos destes miseráveis de calças rasgadas
frequentam candomblés e tem mesmo cargos.182
180 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Entrevista de Pierre Verger por Maria José Quadros publicada no jornal O
Globo 16/08/1992 disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=163&Itemid=549>. Acesso em: 12 set. 2008.
181 VERGER, Pierre. Centro Histórico de Salvador. Salvador: Corrupio, 1989. 182 Citação de Metraux: METRAUX, Alfred. Intinéraires I (1935-1953). Paris: Payot, 1978, p.319-320. Apud
NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p. 194.
119
O livro CHS é dedicado ao povo pobre que circula pelo Pelourinho e, segundo Verger, a
preservação do centro histórico deve ser creditada a uma parcela ainda mais marginalizada,
pois “o que provavelmente preservou o Pelourinho de ser desfigurado pela invasão dos
edifícios modernos foi o fato dele estar cercado de um lado a outro pelos quarteirões onde
instalaram seu domicílio e o lugar de suas atividades as ‘damas de poucas virtudes’”.
Verger, em CHS ou RB, dedica-se a colecionar cenas do cotidiano soteropolitano
acossado pelas transformações do capital no âmbito do espaço, da cultura e do trabalho. Para o
fotógrafo, “o Pelourinho resiste vitoriosamente à vaga de modernização dos prédios da cidade e
à proliferação dos ‘espigões’ promovida por empresários ávidos de grandes lucros financeiros
construindo edifícios de 10 a 20 andares que caracterizam, infelizmente, a Bahia de hoje”183. A
precária modernização da cidade estará sempre nas extremidades das imagens, é o que sobra, o
que resta, nunca numa posição central que pudesse ameaçar a soberania do cotidiano negro e da
cidade velha e “barroca” retratada.
A peculiaridade da inserção da obra de Pierre Verger, nesse sentido, se alimenta de uma
idéia de fidelidade, por vezes ambígua, mas que margeia sua etnografia e o próprio trabalho
fotográfico, seja em relação às imagens obtidas ou às concepções que alimenta quanto ao modo
de fotografar. Ao quantum de pureza cultural devemos responder a um quantum de fidelidade,
assim o relato etnográfico ou o registro fotográfico devem estar o mais colado possível ao
fenômeno observado. A transposição criativa da cultura iorubá africana, idealização que
esconde/abriga diversos grupos étnicos africanos, para a sua sobrevivência diaspórica no
continente americano, conforma o viver cotidiano baiano e lhe concede o status de vida
original, contraposta aos influxos modernizantes, dos quais o autor francês já fora vítima,
quando resolveu abandonar a cidade de Paris, arriscando-se na fracassada empreitada das
colônias francesas. Ao contrário, a sua experiência anterior na África o leva a admitir Salvador
183 Idem.
120
como sua morada definitiva, marcada pela adesão e celebração da cultura iorubá. Como
corresponder etnologicamente à pureza constitutiva dessas práticas humanas que da África aqui
desembocaram?
Num livro de caráter excepcional sobre as relações que Pierre Verger estabelece entre
fotografia e etnografia, Jérôme Souty assinala que, a partir dos anos 40, a obra do francês se
concentra na “problemática da fidelidade à ‘tradição africana’, da resistência e da sobrevivência
cultural dos cultos afro-américanos”. Ora, não é nesse mesmo período que Verger fotografa a
cidade de Salvador, entre 1946 e 1952? Souty ainda nos adverte sobre o fato de que a obra de
Verger pode ser apreendida “como uma arquelogia da memória e da identidade coletiva
iorubá”, nos advertindo que “do destaque da fidelidade ao ‘fidelismo’ para a defesa da pureza é
apenas um passo”184. Nesse mesmo sentido, Leny Silverstein, em crítica ao livro Fluxos e
Refluxos de Verger, publicada no Jornal do Brasil, argumenta que o modelo proposto pelo autor
“parece desligado do tempo e da história”, pois é “muito difícil hoje para um antropólogo
reconhecer que exista uma cultura nagô pura e tradicional, que ela não sofreu influências com o
tempo, que teve uma vitalidade e dinamismo que impedem essa ideologia da pureza”185. A
resposta, em suspenso, se fecha com a tentativa vergeana de elaborar uma etnologia que não se
quer interpretativa, que não se deixa sobrepor por uma teoria. É ainda Souty que nos socorre,
por perceber que o fotógrafo Verger vai progressivamente se aproximando do etnógrafo,
interessado sobremaneira no material empírico, pois “trata-se, para ele, de mostrar pela
imagem, de recolher material bruto”. Ele aproxima duas surpreendentes declarações de Verger,
onde o fazer fotográfico aproxima-se do fazer etnográfico. “Eu não procurei nada de fato, olhei
sem realmente entender; me é muito díficil de definir uma coisa à qual, no fundo, eu jamais
184 SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché a la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve
& Larose, 2007, p. 209. 185SILVERSTEIN, Leny. Os porões da escravidão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 ago. 1987.
Idéias/Documento, p.6-7. Apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002.
121
pensei, pois minhas fotos são feitas, sobretudo, sem intenção”. A segunda declaração define a
concepção etnográfica vergeana que se confunde com a sua prática fotográfica:
Eu não tinha caderneta, eu deixava a pessoas me mostrarem o que eles queriam
me mostrar, sem lhes fazer perguntas sobre as quais eles jamais pensaram,
evitando a situação desconfortável que consiste em responder qualquer coisa para
agradar. Minha abordagem se fez com com o estado de espírito do fotográfo que
era, quer dizer, um puro observador que registrava o que se passava diante de seus
olhos. 186
O historiador João Reis, ao comentar o livro Fluxo e Refluxo de Verger, também faz
uma comparação percuciente entre o modus operandi do historiador e do fotógrafo francês,
apontando para as aproximações acima referidas:
Há muito de positivista neste método, mas pensando bem se tratava talvez do
fotografismo do autor. É como se ele entendesse a construção de sua narrativa
como uma colagem de “retratos” documentais que assegurariam a fidelidade e a
isenção do historiador aos fatos. O Verger fotógrafo se incorporou ao Verger
historiador.187
Recusar estrategicamente os traços canônicos de uma cidade é investir contra o passado
reificado em cartões-postais, cartazes, souvenirs, fotografias que assumem o papel de memória
visual, conformação de uma cenografia instituída e perpetrada pelas elites dominantes que se
locupletam no poder. Qual estratégia surda estrutura os ataques e contra-ataques, nessa
guerrilha de um homem só sem nenhuma certeza de sucesso? Alijado dos círculos do poder,
das poderosas redes que se imiscuem por toda sociedade e acumulam vitórias que se
perpetuam, o fotógrafo, munido de sua máquina de olhar e simular/cenografar realidades, se
aventura em propor um cenário particular, que por vezes só ele o vê. Do clic da máquina ao
186 Para a primeira citação “Pierre Verger, etnologue”, Mémoires du siècle, France Culture (8 oct. 1980); para a
segunda Propos de recueillis par M. Anthony. Des plantes et des dieux dans les cultes afro-brésiliens (2001). Apud SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger. Du regard détaché a la connaissance initiatique. Paris: Maisonneuve & Larose, 2007, p. 25.
187Apud NOBREGA, Cida; ECHEVERRIA, Regina. Verger, um retrato em branco e preto. Salvador: Corrupio, 2002, p. 321.
122
espanto do aparecimento da imagem na revelação, o fotógrafo acumula pequenas vitórias.
Quem saberá se não espera que um dia elas possam ser repotencializadas em outro combate, em
condições menos adversas? Ocupar o teatro de operações dos embates tácitos e dispersos
substituindo o modelo da guerra pelo da guerrilha.
* * *
Em RB e CHS, Verger nos legou imagens plácidas de Salvador. As diversas camadas
de passado arquitetural se sobrepõem docemente. Igrejas seiscentistas, fortalezas, casarões
reformados, alguns prédios modernos. Grandes planos dos telhados que se somam desde a
Igreja da Conceição até os prédios ainda modernamente imponentes do Comércio, não sem
sobrevoarem o Mercado Modelo, desembocando nos galpões rasos do cais, como na RB Vista
da Cidade-Baixa com o Mercado Modelo e Porto dos Saveiros (fig. 16). Ao desviar levemente
a objetiva, Verger mostra em RB Vista da Cidade-Baixa com o telhado da Igreja da Conceição
da Praia (fig. 17) uma das torres da Igreja da Conceição, em primeiro plano, roçar a murada
que se estende até as proximidades do Forte São Marcelo. Na RB Praça Castro Alves (fig. 18),
meios de transportes, sobrepondo temporalidades, são dispostos lado a lado. Bondes, carros e
carroças em praças modernizadas, abertas, que findam em ruas apertadas e antigas. Como se a
geografia urbana palimpsesta, que guarda temporalidades arquiteturais diversas, fosse propícia
para fazer o mesmo com costumes e meios de transportes. Nela, expostas em CHS Ladeira do
Pelourinho (fig. 19), CHS Ladeira do Pelourinho e Ladeira do Carmo, homens conduzem
animais, arrastam-se por ladeiras ansiando sombras, na persistência de um tempo que se recusa
a evanescer.
Observemos em relação aos apelos publicitários, essa recomposição da paisagem visual
urbana mundial, impelida pela internacionalização das mercadorias e afirmações das grandes
marcas mundiais. Entretanto, se para Julian Stallabrass “durante as décadas que antecederam a
123
Segunda Guerra mundial, constata-se que a fotografia focaliza frequentemente o contraste entre
os habitantes, o espaço físico da cidade e o dispositivo comercial invadindo, aos poucos, quem
os transforma”188, a Salvador das cenas vergeanas segue na contramão, como num estado de
suspensão da investida publicitária, predominando mais uma vez uma composição que favoreça
o conjunto arquitetônico colonial e o ambiente cultural da tradição negro-mestiça. Evita-se
enquadrar perspectivas que incidam no dilaceramento visual caótico, de fortes contrastes
provocados pela publicidade urbana, impedindo uma visualidade mais convencional,
circunscrita à leitura dos nomes de rua e reclames do pequeno comércio local. Verger parece
concordar com Stallabrass, acreditando que “passeando, as pessoas lêem a rua, mas o cartaz
publicitário ou os anúncios podem ser sentidos como uma interrupção no fluxo da estruturação
visual e auditiva de suas pecepções, exigindo deles uma trasferência repentina e muitas vezes
involuntária de atenção”189. Surgem, então, em demasia, os reclames populares, seja de
pequenos estabelecimentos comerciais ou mesmo de barracas de feira, em detrimento das
publicidades que correspondam às grandes empresas pertencentes ao capitalismo que se
moderniza, espargindo-se pelos continentes na forma de outdoors e luminosos visualmente
agressivos. Duas fotos RB Fachada de Casa Comercial (fig. 20), da Casa Fortaleza e Casa
Machado, comportam um humor raro nas imagens do fotógrafo expresso pela literalidade do
jogo entre palavra e imagem.
Em Verger nem mesmo um cartão-postal da cidade, como o Elevador Lacerda, tem
lugar garantido nos seus álbuns. Dos dois analisados, RB e CHS, ele só aparece no primeiro,
em duas fotos. Na primeira, no canto direito, na iminência de saltar para fora do
enquadramento, como numa gravura japonesa; na outra, se sobrepõe à cruz que o próprio Cristo
carrega em procissão, reduzido ao tamanho da penitência sagrada, e cedendo a atenção do
188 STALLABRASS, Julian. Paris photogaphié 1900-1968. Trad. Neele Dehoux. Paris: Hazan, 2002 189 Idem.
124
olhar, à imagem religiosa como em RB Cidade Baixa e Cidade Alta (fig. 17); RB Procissão do
Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção (fig. 21).
As formas do trabalho impostas pela racionalização crescente das formas produtivas
desaparecem em favor de um desdém generalizado. A força de trabalho tematizada nas imagens
de Verger são trabalhadores que cochilam nos bancos, ou carregam coisas, transportando e
apregoando mercadorias em ladeiras, ruas estreitas, praças. Animais e seus condutores também
passeiam entre a insolência e a ignorância frente aos modernos meios de transportes, carros ou
bondes, impondo um ritmo lento ao fluxo citadino. Indicam uma recusa ao trabalho de lógica
fordista, na figura do trabalhador fatigado que dorme em bancos, ou ao reordenamento
funcionalista do espaço e ritmos urbanos. De um lado, apologia de uma contra-ordem/contra-
poder do uso do tempo e da energia, do outro, o total descaso pelas formas aflitivas do trabalho
mesmo que submetidos às redes produtivas. A série de homens cochilando, RB Dorminhocos
(fig. 22), um conjunto de pequenas fotografias de trabalhadores dormindo em pleno trabalho,
na maioria vendedores de frutas e bugigangas, homens e crianças sempre à luz do dia, é
exemplar dessa ironia corporal dos soteropolitanos. Diferem sobremaneira dos adormecidos de
Brassai, vagabundos da Place Denfert-Rochereau ou Boulevard Rochechouard em Paris
(Homem a dormir num banco, Sem-abrigo), nos idos da primeira metade dos anos 30, que
estavam à margem da ordem do trabalho, perdendo a crítica ácida das fotos de Verger.
Hoje, que as questões da biopolítica se arrastam sobre os vestígios conceituais
foucaultianos, seria bom inscrevermos as fotos de Verger numa reflexão avant la lettre. O
corpo negro no dispositivo cenográfico é sempre soberano. Ao contrário de uma biopolítica
que age no esmagamento das energias em favor do funcionamento da máquina estatal ou da
máquina capitalista, as aparições corporais dos seus personagens urbanos estão eletricamente
sensualizados, aproximando bíos e eros. Se formos criteriosos, o dispositivo não postula uma
biopolítica, mas um biopoder. Reconhece que os investimentos de potência sobre o corpo não
125
se limitam às redes institucionais de controle, ou mesmo apenas mediada por redes
micropolíticas de assujeitamento ou disciplinarização corporal. Ao mesmo tempo não se
investiria como contra-poder o que lhe determinaria ao campo reativo. É que, partindo de
Verger, entendemos biopoder como constituição positiva do corpo em potência criativa. Antes,
são as redes de poder que reagem ao corpo belo, gozoso e em transe. A vida nunca é reativa,
mas potência que agencia intensidades. As redes de poder são segundas e reagem a esses
agenciamentos que procuram desinvestir. A disposição cenográfica dos corpos em Verger
favorece a tradição como potência criadora de onde emergem as intensidades que se
conformam segundo as festas, as escapadas ao trabalho disciplinado, os ritos religiosos.
Podemos ir mais longe e afirmar que no dispositivo cenográfico a experiência religiosa,
manifesta no transe, é o território comum que alimenta as outras atividades. Mas é possível
pensar essa experiência fora dos quadros da antropologia religiosa. Ao conceitualizar a
expérience intérieure contraposta à experiência mística, Bataille190 nos fornece uma idéia
aproximada ao que denominamos biopoder expresso nos corpos:
Entendo por experiência interior o que habitualmente nomeia-se experiência
mística: os estados de êxtase, alegria, de emoção meditada. Mas, sonho menos
com a experiência confessional [...] que com uma experiência nua, livre de
amarras, mesmo de origem, a qualquer confissão que seja. Por isso, não gosto da
palavra mística.
Gostaríamos de indentificar essa experiência interior como um “ultrapassamento de
todo discurso, de todo sentido, de toda presença”191 recusando uma avaliação conceitual.
Mesmo possibilitada pela cultura, rompe com ela no momento de sua realização, explodindo
em mil intensidades que se reagrupam além do imaginário ou discursivo e só reconhece na sua
própria força e expansão. É a soberania (souveraineté) preconizada por Bataille.
190 BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Paris: Gallimard, 2006, p 15. 191 ARNAUD, Alain; EXCOFFON-LAFARGE, Giséle. Bataille. Paris: Seuil, 1976, p. 28.
126
A linha de ação contínua do dispositivo em relação aos corpos mantém-se interligando
as cenas como um fio elétrico imaginário, oriunda dessa experiência interior que lhe refaz os
gestos e alimenta a plasticidade dos movimentos. São visualizações dramatizadas das
intensidades dispersas do biopoder que lhes constituem. A série RB Capoeira (fig. 23) é uma
sequência impressionante de gestos ligados a essa luta em que “na base da plasticidade dos
movimentos” se estabelece “um fluxo interior de energia”, para Stanislavski “a plasticidade
exterior baseia-se em nosso senso interior do movimento da energia”192.
Carybé, explorara com seu traços rápidos, que nos lembram as gravuras japonesas zen-
budistas, o universo da capoeira. No livro As sete portas da Bahia193, uma antologia dos
desenhos publicados na coleção Recôncavo, os capoeiristas contorcem os corpos em
movimentos flexíveis e impressionantemente rápidos, diluindo a rigidez escultórica das
fotografias. Em Verger essa plasticidade intensiva se desloca por entre as cenas de festas e
transes. Na outra série RB Samba de Roda (fig. 24) ressurge o corpo soberano, glorioso em
seus movimentos erotizados, as mãos nas cadeiras da mulher, as pregas do vestido ao ritmo das
ancas que sambam sob os olhos desejosos dos homens que tocam. Por fim, os corpos nas fotos
RB Xangô, Oxossi (fig. 25), transidos, tomados, que dançam e rodopiam. A gestualidade
obedecendo a uma ordem que os organiza. Se “o gesto pelo gesto, sem significado interior, não
tem nenhuma função cênica”, então “faríamos melhor se adaptássemos estas convenções, poses
e gestos teatrais, à execução de algum objetivo substancial e à expressão de alguma experiência
interior”194. Nesse conjunto de fotos é importante notar a maneira como o fotógrafo francês
posiciona os corpos: riqueza de olhares, movimentos simétricos, entrecruzar de braços e pernas,
acolhimento do personagem central pelos outros corpos-coadjuvantes etc. A cenografia abriga
192 STANISLAVSKI, C. Manual do ator. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 153. 193 CARYBÉ. As sete portas da Bahia. Rio de Janeiro: Record, 1976, p. 52, 53. 194 Idem, p. 98.
127
os personagens como atores, estabelecendo uma “relação com o espaço circundante,
principalmente com seus parceiros de atuação, com o público e com o espaço”195.
A persistência dessa cidade colonial negromestiça de traços “barrocos” é analisada num
texto pouco conhecido de Verger, que defende uma curiosa teoria da sobrevivência dessas
práticas ditas barrocas. Emanando da arquitetura para o urbanismo e o imaginário, esse barroco
das ruas se irmaniza com as práticas populares religiosas ou festivas, compondo um todo
orgânico.
A cidade é concebida como espetáculo, com seus tipos que se insinuam nas retinas dos
incautos transeuntes, num colorido e bulício de suas ruas, realçados pela claridade intensa dos
seus dias, desvelando uma paisagem urbana de características barrocas, definição mais
antropológica que estética, numa concepção bastante peculiar que a cultura francesa tem
elaborado do estilo seiscentista. Do mesmo modo, uma evocação do conceito de “estilo de
vida” bastante caro aos antropólogos e sociólogos que pesquisam o cotidiano.
Pierre Verger196, citando Roger Bastide, escreve que o estilo barroco no Brasil
ultrapassara o campo artístico, deixando de ser uma mera decoração utilizada nas igrejas, para
se tornar, outrora, um verdadeiro estilo de vida nos trópicos. Na Bahia, sobretudo, o barroco
precipitou-se das igrejas, plasmando comportamentos, expressões, cotidianizando o espírito
seiscentista.
Utilizando textos de viajantes que passaram pela Bahia em 1696, 1786, 1830, 1860 etc,
o ensaísta francês descreve como o estilo de vida barroco se expressava nas procissões com as
fantasias dos fiéis, suas alegorias, os instrumentos musicais e dançarinos que criavam uma
atmosfera fantástica, ilusionista, de forte apelo imagético. Toda essa pompa efêmera que
reuniu, por exemplo, em 1830, na procissão do triunfo da cruz de Cristo Nosso Senhor, um 195 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2007,
p. 76. 196 VERGER, Pierre. Procissões e carnaval no Brasil. In: Cadernos do Centro de Estudos Afro-Orientais.
Salvador, n˚ 5, Out 1990, ensaios/pesquisas.
128
viçoso séquito: imagens de Sansão, Judite com o estandarte de Nabucodonosor em uma das
mãos, e na outra a espada que decepou a cabeça de Holofernes; Davi, Moisés com as tábuas da
lei; o Triunfo, vestido de forma trágica, com capa de veludo; São Domingos, São Francisco,
São Gonçalo do Amarante etc.
O mesmo estilo barroco marcava, para Verger, as festividades da devoção popular do
Senhor do Bonfim, descrita por Maximiano da Áustria, que aqui esteve em 1860. Em seu
diário, descreveu as impressões que ficaram dessa famosa festa baiana, como um verdadeiro
tumulto, tanto na praça como na igreja, formado por vendedores de cachaça, devotos negros
vestidos para festas, jovens negras vendendo amuletos, velas e quitutes etc. Não faltava
também o apelo sexual, climatizado pelas vendedoras, negras, bonitas, vestidas com gazes
transparentes que mais encobriam do que ocultavam os seus encantos. O ar festivo invadia até o
adro da igreja, tornando-se impossível ao padre rezar a missa. O que, com o passar do tempo e
o endurecimento da tolerância das elites soteropolitanas, apoiadas numa revisão do
entendimento das festas populares feito pela igreja católica, culminou com a proibição do
acesso a certos locais da Igreja do Bomfim. Sendo ainda hoje vedado ao povo adentrar a igreja.
A quinta-feira do Senhor do Bonfim é, segundo as análises de Verger e Bastide, uma expressão
viva e colorida do estilo barroco, barroco de rua que também está expresso no carnaval. Pierre
Verger finda o texto com a descrição do carnaval baiano com seus mascarados, o jogo de
entrudo, os negros dos cucumbis disfarçados de branco, as batucadas que reuniam chocalhos,
marimbas e zabumbas.
Diversas imagens reproduzidas nos dois livros analisados exemplificam esse barroco
das ruas. A concepção de uma cidade orgânica, aglutinando sociabilidade popular e estética
religiosa barroca, também surgira nas fotografias dos dois álbuns de Verger, aliás seguido de
129
perto pelo fotógrafo baiano contemporâneo, Mario Cravo Neto197. Nas fotos iniciais do
Retratos da Bahia, RB Claustro do Convento de São Francisco (fig. 26), RB Detalhe do
púlpito da Igreja de São Francisco, RB Detalhe do interior da Catedral Basílica (fig. 27),
surge o claustro do Convento de São Francisco em duas imagens de sobriedade e constrição
que explode em reentrâncias e volutas nas fotografias de dois detalhes barrocos do pulpito da
Igreja de São Francisco e do interior da Catedral Basílica.
Em CHS, a capa reproduz uma foto das páginas centrais do livro, CHS Interior da
Igreja de São Francisco – Cariátide e escultura em jacarandá (fig. 28), uma cariátide barroca
da Igreja de São Francisco. As duas fotos que a antecedem no interior do livro retratam a
fachada da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, com seu esplendor churrigueresco e o
teto da Igreja de São Francisco. Após a cariátide seguem imagens de seu interior e do claustro
da famosa igreja barroca. Além de outros exemplos espalhados no livro, ao final, a imagem do
Senhor Morto, CHS Imagem do Senhor Morto (fig. 29), talvez seja a alusão mais dramática
dessa organicidade barroca que se completa com o registro da procissão, CHS Procissão do
Senhor Morto (fig. 30), que acontece na Sexta-feira Santa, se deslocando para fora da igreja em
direção ao centro da cidade, o cortejo observado por uma pequena multidão que se acotovela.
O aparecimento abrupto dessas imagens cria uma ambiência onde se fundem interior e
exterior que se mimetizam, uma só cidade em que dobras barrocas se retorcem e replicam nos
telhados do casario, nos frontões das igrejas, nos dobrões dos vestidos e paletós de linho. Não
mais um fora e um dentro, mas instantes congelados como passagens, pequenos portais de
acesso espaço-temporais. Em RB, corpos de negros seminus esculpidos pela luz filtrada de
Verger esculturalizam-se, como na série já comentada dedicada aos pescadores RB Pesca do
197 Pelo menos dois livros do fotógrafo dramatizam as fachadas do barroco colonial baiano, do único exemplo do
barroco espanhol na cidade (Ordem Terceira de São Francisco), e apresentam a arquitetura colonial e a imaginária barroca como personagens entre os habitantes da cidade (da Igreja do São Francisco e do Carmo). CRAVO NETO, Mario. Bahia. São Paulo: Rhodia, 1990, p. 50-51 e CRAVO NETO, Mario. A cidade da Bahia. São Paulo: Aries Editora, 1984, p. 89-91-92-93-94-97 respectivamente.
130
Xaréu (fig. 14), e fundem-se às esculturas barrocas, RB Detalhe do pulpito da Igreja de São
Francisco, anjos rechonchudos também desnudos, humanizados pela mesma luz. As volutas
múltiplas do interior da igreja, por sua vez se estendem às dobras das vestes de linho dos
transeuntes da Rua da Misericórdia, em RB Rua e Igreja da Misericórdia (fig. 31).
Nos livros, recriam-se essas passagens silenciosas entre dois instantes culturais,
retirando-as do segredo, expondo-as enquanto visualidades pinçadas do cotidiano vivido
tacitamente, que se funde ao compor uma ambiência urbana perfeita aos olhos do fotógrafo
francês.
Nesse sentido, as cenas da famosa lavagem do Bonfim corroboram nossa hipótese. A
primeira delas mostra uma baiana centralizada na foto tendo um jarro de flores sobre a cabeça,
depois um emaranhado de cotovelos e ramos que se destacam do conjunto de baianas
compenetradas por privarem desse momento sacro. As cenas seguintes se desdobram na
entrada do cortejo de baianas na igreja (o que posteriormente foi proibido e vige até hoje) e na
lavagem do adro. São quatro fotos de intenso movimento, da fricção dos corpos negros das
baianas e fiéis, até o esfregar do piso da igreja, lavado com vigor e alegre determinação
religiosa, vistos no balé das vassouras de RB Lavagem do Bonfim (fig. 32). Conjunção que
tanta animava Verger e inspirava o seu barroco das ruas.
As imagens do carnaval, RB Mercadores de Bagdá, Batucada na Rua Barão do
Desterro (fig. 33), não fogem à regra: mascarados, indianos filhos de Gandhi, filhos de Bagdá,
maracatus, princesas, espalhados em folia pelo Centro Histórico recriam o cotidiano numa
irrealidade urbana. A coroação das cenas é um bando formado por indianos, RB Filhos de
Gandhi (fig. 34), autodenominados filhos de Gandy (sic), que superlotam o bonde 110 em
direção a uma Índia imaginária.
O livro sobre o Centro Histórico reforça nosso argumento com uma Embaixada
Mexicana que desfila guiada por um mestre de cerimônias malabarista, os filhos de Gandhi
131
com uma alegoria pintada do líder indiano, os filhos do mar que trazem às mãos pequenas
reproduções de embarcações de várias épocas, os filhos de Obá que portam lanças e coroas, e
uma cena pitoresca do carnaval baiano, o grupo de travestis.
Na foto CHS Filhos de Obá (fig. 35), Verger que não é dado a ironias em suas imagens,
cria um recurso que é comum aos diversos fotógrafos de rua do período. Como a foto Parabole
Optique, 1931 de Manuel Alvarez Bravo que cria uma multiplicidade de olhares fotografando
grandes olhos de uma imagem publicitária, Verger cria um surpreendente encontro entre a
lança empunhada pelo homem negro de coroa com uma flecha publicitária do Café Derby que
está pendurada provavelmente numa marquise, mas que parece flutuar. O que em Manuel
Alvarez Bravo é dissonância, em Verger torna-se consonância. Mas não apenas as festas
carnavalizadas testemunham em favor desse barroco vergeano, ocorrem imagens de procissões
se deslocando pela cidade, seja no centro ou no Rio Vermelho.
Nas imagens de Verger, embora possamos estendê-la para a sua etnografia, a potência
da indiferença frente ao moderno reside na intensidade de sua pureza. Sua força, impactante,
seja nos confins da África, no lusco-fusco dos ambientes sacros do terreiro ou nas ruas semi-
desertas de Salvador, é estar sob o signo da pureza. E nesse sentido, tanto a sua maneira de
fazer etnografia, ou de fotografar, propiciam essa captura do real sob circunstâncias que
viabilizem a transparência quanto ao gesto e ao objetivo, evitando seu caráter intervencionista.
Como se fosse possível apagar, enquanto fotógrafo ou etnógrafo, a própria performance, sob o
risco de modificar a constituição primeira do mundo pré-observação. A fotografia, no início do
século XX, orbita, como vimos, em torno desse tema, sendo surrealista, no apelo ao
inconsciente no ato de fotografar; documentarista, na objetividade maquinal; ou humanista,
enquanto captação de uma imagem que se forma no momento decisivo. Verger transita com
desenvoltura nas três correntes. Surrealista ao incorporar, junto aos documentaristas, o discurso
do automatismo e a apreensão da cidade como temporalidades e espaços sobrepostos e a
132
ameaça de destruição pelo moderno. Humanista, por fotografar indivíduos negros como nunca
antes, afastando o mais possível o exótico e retratando-os com dignidade. Na re-invenção
fotográfica da cidade da Bahia, ou no interior dos terreiros, insta-se um duplo corte no
dispositivo cenográfico: um primeiro talho deve seccionar a presença de quem observa
(fotógrafo/etnógrafo) e, posteriormente, outro talho recorta o visto segundo a sua organicidade
interna, medida pela sua rejeição ao que lhe é externo, no caso o moderno, e ameça a tessitura
de sua própria constituição.
Por duas vezes, Amado fez referências à busca da pureza na atividade etnográfica de
Verger, a qual tentamos aproximar do seu trabalho fotográfico dedicado ao cotidiano urbano de
Salvador. Na primeira, ao comentar a tentativa de “fazer o candomblé voltar ao que fora em
suas origens, a fim de restituir-lhe a identidade africana, e principalmente da nação keto –
(nação nagô em ioruba (sic))”, Amado lança críticas àqueles que compreendem a cultura fora
de uma “situação histórica precisa”, esquecendo as negociações tácitas que se estabeleceram
para a continuidade de práticas religiosas negras proibidas. Ele só estava uma vez mais
reiterando o seu ponto de vista sobre a cultura baiana, a qual entendia como sincrética, mestiça,
fruto do trabalho e invenção de camadas populares oriundas de uma pluralidade étnica. Na
mesma entrevista, do livro Conversando com Jorge Amado, ele explicita:
Há alguns anos, Pierre Verger, que é muito versado no candomblé, um grande
etnólogo, um africanista, resolveu, junto com um padre francês, também ligado ao
candomblé, e alguns outros professores, criar uma casa-de-santo, um candomblé
que fosse de uma pureza absoluta, um verdadeiro templo ioruba (sic).198
Anos depois, Amado, ao escrever seu “livro de memórias que jamais escreverei”, num
texto datado de 1980, acompanhado da palavra “purismo”, ele se pronuncia mais
198 Entrevista dada em francês a estudiosa da obra amadiana Alice Raillard, publicada pela Gallimard em 1990.
Edição brasileira RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, p. 89-90.
133
enfaticamente, quiçá agressivo, criticando de forma contundente essa pretensa negação do
sincretismo baiano:
Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François e os demais
velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé baiano,
mestres de tudo quanto se refere as seitas afro-brasileras, ao sincretismo religioso
e cultural, estudiosos das relações África x Brasil, conhecedores das similitudes e
das diferenças, sabendo que elas existem e porque existem, de repente, sem prévio
aviso, se fazem puristas africanos, [...] Resolveram os bons velhinhos, os
veneráveis, montar uma casa-de-santo na cidade da Bahia que fosse a
reconstituição exata de candomblé de Lagos ou de Porto Novo, na costa ocidental
da África [...] os velhinhos esfregavam as mãos no regozijo da experiência posta
em prática: o puro, o puríssimo candomblé da África negra por fim estabelecido
na terrra do sincretismo.
O espanto do escritor dá-se na medida em que o reconhece como um dos “mestres” do
“sincretismo religioso e cultural”. Para Amado, “quem mais sabe disso tudo é Pierre Verger,
(que) mais que ninguém nos revelou a face mestiça da verdade”. O famoso escritor baiano
termina o texto se regozijando do fracasso da empreitada “apenas os velhinhos vão às suas
casas repousar, no terreiro troca-se de nação, a festa nagô se dá por terminada [...] o sincretismo
se impõe, não resta fumaça da pureza que os mestres foram buscar na África”199.
Ao comentar esses fragmentos, quando da publicação francesa de Navegação de
cabotagem, Jean-Pierre Le Bouler, biógrafo de Verger, assinala que o fotógrafo francês “se
mostra preocupado com a ‘fidelidade’ – até mesmo no caso com o ‘fidelismo’ – às tradições
religiosas africanas”. Para ilustrar o seu ponto de vista após escrever que “Roger Bastide havia
insistido outrora sobre esta preocupação do autor de Dieux d'Afrique”, reproduz, em nota, este
extrato de Le “Candomble” de Bahia (Rite Nago) do famoso pesquisador francês: “O interesse
199 AMADO. Jorge. Navegação de cabotagem. São Paulo: Círculo do Livro, 1992, p. 404-407.
134
de P. Verger reside num outro aspecto que não o estudado nestas páginas; a comparação entre a
África e a Bahia, para ressaltar a fidelidade africana dos negros baianos”200.
Longe de ser uma certeza, essa dubiedade de Verger surge em vários momentos de sua
obra ou nas declarações que fazia acerca do seu extenso trabalho etnográfico, seja escrito ou
visual. Indicado, Mesmo quando o critica veementemente, Amado alerta para o caráter
ambíguo da postura do pesquisador que reaparece no supracitado discurso que fez na Câmara
dos Vereadores. De maneira elogiosa discursa: “o doutor Jorge Amado celebrava,
recentemente, num discurso, “as virtudes do povo da Bahia e da condição mestiça da
civilização, resultante da fusão e do amor entre raças diferentes”. Ambiguidade expressa
também no comentário que Bouler faz ao artigo “Métissage au Brésil” em que Verger, após
louvar, mais uma vez, os textos de Jorge Amado, onde “chama a atenção para o fato de que a
mestiçagem teve como resultado valorizar as qualidades das duas raças”, segundo o biógrafo,
“insiste no tema da ‘fidelidade’ às tradições religiosas africanas dos ancestrais”201. O
“fidelismo” e a “pureza” que aqui nos ajudam a compreender as fotografias da cidade do
Salvador, tiradas por Verger, (sendo imperativo registrar que não obedecem a nenhuma
sobrevida de reminiscências de dircurso racial), devem ser tomadas como noções que, ao
nortearem sua obra, são reelaboradas. Uma forma de “resistência” ao ímpeto modernizante,
como salvaguarda do estágio idílico, e por que não, aos contornos estéticos perfeitos, obtidos
pelo desenvolvimento e conservação da tradição cultural. É a forma cultural, orgânica,
imbricada num décor barroco, concentrado na vida soteropolitana que será fruto de sua elegíaca
obra fotográfica e que deverá ser preservada da destruição. Como nesta entrevista de 1992, que
200 LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger,
2002, p. 611-617, para a citação de R. Bastide, Le “Candomble” de Bahia (Rite Nago), Paris, Haia, Mouton & Co, 1958, p. 9, apud LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002, p.617.
201 VERGER, Pierre. “Mesclagem no Brasil” Etudes litéraires, vol. 25, n 3, inverno de 1992-1993, pp. 121-125. Apud LE BOULER, Jean-Pierre. Um homem livre. Trad. Anamaria Morales. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002, p. 612.
135
surgem os temas da cultura ameaçada frente às inovações técnicas em sua ambiguidade de se
perceber una e fundada sobre matizes diversas:
Não há um Brasil, são muitos brasis. Reconheço que os estados brasileiros, que
culturalmente são diferentes uns dos outros, começam a ficar parecidos,
misturados, talvez por influência da televisão. Mas a Bahia tem um sabor
particular, essa influência muito forte dos descendentes de africanos da costa do
Benin. Essa terra ainda é muito diferente do resto do país. O que me atrai aqui é
justamente essa mistura cultural, que faz com que na Bahia possam conviver
pessoas de origens diferentes, sem problemas. Há problemas começando agora,
mas são coisas que vêm de fora.202 (grifo nosso).
De maneira mais ampla, essa aposta se destina ao próprio tempo, à caducidade das
formas e da sua beleza, como uma refutação desesperada do seu sentido trágico, aqui definido
quanto à possibilidade do seu desaparecimento. A compreensão da fotografia, enquanto
apreensão do que é dado, registrando o real sem modificá-lo, ao tempo que não se reconhece
estetizante, comunga secretamente com essas concepções vergeanas de fidedignidade como se
a transparência do que era visto pudesse ser infectado pela projeção de uma subjetividade
estética ou etnológica. Ele o dirá inúmeras vezes “mes photos sont faites sans intention
surtout”, gesto sem intenção, que não deixaria nódoa ou rastro de sua presença, apagado por um
inconsciente ótico, apoiado no caráter maquinal do ato fotográfico. Por sua vez, a cidade
deveria surgir, então, enquanto aparição única, menos como “resistência” ao que quer que seja
ou representação e mais enquanto sua forma de indiferença soberana, ao processo
modernizante ou à inevitável ação transformadora, e por vezes letal, do tempo. Nas obras de
Verger e Jorge Amado, marcadas pelo surrealismo, a beleza está associada à sua precariedade.
A inevitabilidade do desaparecimento, como o olhar da passante que se esvai no sumidouro da
202 FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Entrevista de Pierre Verger por Maria José Quadros publicada no jornal O
Globo 16/08/1992. Disponível em: <http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_content&task=view&id=163&Itemid=549>. Acesso em: 12 set. 2008
136
multidão ou a arquitetura das passagens, é a ocasião de sua aparição mais perfeita e
encantadora.
A cidade do Salvador nas linhas de Jorge Amado torna-se uma cidade misteriosa, de
homens corajosos, humildes e mulheres-damas que preenchem a noite bebendo, dançando e
amando. Amado genialmente reinventa sua escrita pós-Suor, os homens raivosos e as mulheres
esquálidas transformam-se em corpos negros, musculosos ou arredondados, sensuais. Na
denúncia da classe trabalhadora e negra através do seu cotidiano de luta, dos malandros e
capitães de areia relatados em Jubiabá (1935), o livro que, além de Verger, trouxe também
Carybé até Salvador, esconde-se a epopéia da consciência de classe revolucionária do
personagem Balduino, sempre com respeito profundo aos preceitos religiosos da comunidade
negra, identificada no personagem Jubiabá. O romance também se passa nas ruas encantadas da
cidade, afirmando, como as gravuras (Carybé) e canções (Caymmi), e agora fotografias, as
formas de vida urbana marcadas pela etnicidade negra. A trajetória dos personagens
acompanha uma virada de perspectiva política. A luta não mais se configurando sob o ponto de
vista classista, mas afirmando-se enquanto embate étnico-cultural.
Contudo, é em Pastôres da noite203 que Amado mais desenvolve uma descrição
centrada na vida vivida nas ruas da cidade, aproximando-se das literaturas simbolistas e
surrealistas quanto à apreensão do espaço urbano, em que prevalecem as deambulações de um
grupo de amigos, concentrados no Centro Histórico da Cidade, o Pelourinho. Pastôres da noite,
escrito em 1963, relata as estórias de um pequeno grupo de homens e mulheres entre a religião,
a violência e o amor, reincidindo no quadro de exaltação elegíaca ao universo noturno
soteropolitano. Nesse ir-e-vir os dramas se desenrolam e a cidade, ou o trecho central escolhido
para representá-la, assume o papel de principal protagonista. O romance, apesar de
embriagador é de difícil acesso pelos termos e ritos descritos sem notas de rodapé, o que o
203 AMADO, Jorge. Os pastôres da noite. São Paulo: Livraria Martins, 1969. A ortografia original foi mantida.
137
torna mais hermético e fascinante para estrangeiros, um texto de iniciação ao universo pagão e
religioso negro. Percorrendo as ruas centrais da cidade, os Pastores da noite são os donos das
ruas. Estancam no Pelourinho, escorregam pelo Taboão e no cais deslizam do mercado para o
mar, por vezes, desembocando no Recôncavo. Nesse mesmo sítio Verger irá situar todo o seu
livro CHS sobre o centro histórico, e uma parte do RB. Podemos ler várias passagens do livro
como descrições das imagens de Verger ou vice-versa. O seguinte trecho, embora centrado no
anoitecer, parece servir de legenda para as fotos RB Rua do Passo, RB Largo do Pelourinho,
RB Ladeira do Pelourinho à luz da manhã e Ladeira do Pelourinho com a Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos à luz da tarde (fig. 36) respectivamente:
Caía a noite envôlta em brisa, docemente sôbre as ladeiras, as praças e as ruas, o
ar estava môrno, uma dolência estendia-se sôbre o mundo e as criaturas, uma
quase perfeita sensação de paz como se já nenhum perigo ameaçasse a
humanidade, como se o ôlho da maldade houvesse sido fechado para sempre. Era
um momento de pura harmonia quando cada um sentia-se feliz consigo próprio.204
Explorando o claro-escuro, Verger compõe uma pequena suíte de sombras que
invadem o coração do centro histórico, o que surpreende a quem folheia o livro, pois as fotos
que a antecedem e as seguintes são cheias de uma luz intensa. Muda também o plano, abrindo
para o skyline da cidade. Amanhecendo ou anoitecendo são os desenhos escuros, sombreados
que redobram as ruas se projetando sobre as paredes como manchas escuras, criando um
ambiência de aparecimento/desaparecimento, sonho/realidade de tons simbolistas. A
iluminação profana, defendida pelos surrealistas, surpreende o passante, absorto em suas
deambulações. Momento epifânico de uma aparição de inesperada irrupção205.
Na primeira das fotos, um escurecido vendedor com a sua mula estão completamente
metamorfoseados em sombras numa rua deserta. A Igreja do Rosário dos Pretos, a última foto,
204 Idem, p. 5. 205 FRIES, Heinrich (dir). Dicionário de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual Vol. II. Educação/
Imortalidade. São Paulo: Loyola, 1983, p. 33.
138
recebe as últimas luzes que se aventuram sobre o casario, do outro lado, a cidade já emergiu em
trevas. Nada aqui, entretanto, evoca o tenebroso, o que definirá essa pequena suíte imagética
encontra-se no cerne das palavras de Amado: a calma que se abate sobre a cidade. As ruas e,
portanto, a cidade, é o abrigo do homem, sua alma feita pedra. Dolente o mundo, dolente o
homem. Encontro cósmico entre a alma humana e espaço construído. O que quer dizer que
desaparecem as considerações dicotômicas de que se alimentam o urbanismo em favor da pura
harmonia entre cidade e homem.
Quando o personagem Martim se dirige até a feira de Água dos Meninos para um
carteado, Amado não apenas a descreve mas avalia sua importância como fomentadora da
cultura na cidade:
Era mais uma demonstração de suas habilidades num ambiente acolhedor e
cordial do que mesmo jôgo a sério. Faziam-se pilhérias, risadas espocavam, tudo
em meio a muita amizade, quase uma família. Do alto de uns caminhões ali
parados, choferes e ajudantes espiavam e alguns molecotes, em tôrno, aprendiam.
[...] Aquela era a Universidade que cursavam, a escola da vida onde não há férias,
e nela o cabo Martim, gratuita e generosamente, transmitia seus conhecimentos,
professor emérito.206
Verger parecia ter a mesma compreensão sobre a feira e o demonstra numa série de
fotografias dedicadas à “universidade popular”. São 17 fotos que repertoriam as atividades da
feira, circunscrevendo vários âmbitos dos fazeres populares. Entre as primeiras, visões amplas
da feira que mostram a Igreja do Colégio dos Órfãos, os saveiros que faziam circular as
mercadorias e um plano geral das barracas enfileiradas na beira da praia ou distribuídas
próximas a uma fileira de árvores em RB Feira de Água de Meninos. O povaréu transita entre
elas, formando uma multidão que lembra uma festa de largo. A complexa imagem RB Filhas
de Santo Obaluaye em Água de Meninos (fig. 37) instaura há um tempo a ligação entre a
religiosidade e a culinária nessa escola a céu aberto. Três baianas parecem conversar 206 Idem, p. 29.
139
alegremente. Duas delas trazem as obrigações na cabeça, lindamente vestidas, sorriem para a
terceira baiana que vende quitutes atrás de um tabuleiro. O riso estampado nos belos rostos
indica a satisfação de percorrer o intricado da feira ao tempo em que reconhece as amigas que
sabem do culto. Do lado esquerdo um policial de costas conversa logo atrás das duas baianas.
Como indicando a coexistência pacífica entre as forças repressoras e as práticas religiosas
dispóricas populares. As fotos seguintes, RB Cerâmicas (fig. 38) demonstram a capacidade
inventiva, manual, de criar pratos, potes, panelas de barro, moringas de diversos tamanhos e
formatos. Alguns pratos apresentam um grafismo delicado e repetitivo dos quais Verger
consegue potencializar a beleza, inclusive se deixando trair por uma estilização aos moldes
construtivistas, compondo formas através da repetição dos objetos, arrumados uns sobre os
outros. Imagens como RB Artesanato, arrumadas numa única página, extendem as técnicas do
inventivo fazer popular elencado na feira para abanadores e chapéus de palha trançada,
instrumentos musicais, cabaças. Os cestos de RB Frutas e Legumes remetem a uma das
principais criações populares, a gastronomia. Quiabos, pimentas, maxixes, pimentões e chuchus
dispostos em cestos de palha, o que indica a mobilidade dessas mercadorias por vezes levadas
na cabeça, ou em tabuleiros. Poucas vezes Verger inventaria com tanta minúcia os sítios da
cidade, sendo mais comum poucas imagens representativas. Como fotógrafo não nos lega,
como Atget em Paris, um repertório obsessivo e completo das cenas, nos dois livros ele insinua
situações proporcionando uma visão geral da vida urbana.
O que aproximaria as palavras de Amado às imagens de Verger é a afirmação genial
que as formas de construção de saber e fazer se distanciam, remetendo a práticas diferentes e
históricas. Saber e memória impõem-se enquanto instâncias históricas, construídas na
diversidade de suas práticas. A “universidade popular” não deve ser uma repetição, ou procura
de homologias.
140
Já a linha de bonde da Baixa de Sapateiro, que dava acesso ao centro mágico da
literatura amadiana, surge nos Pastôres da noite num momento de encantamento:
Bonde tão colorido e alegre como aquêle vindo dos lados do Cabula, por volta das
seis e pouco da manhã, jamais correra sôbre os trilhos da cidade do Salvador da
Bahia de Todos os Santos. Dirigia-se para a Baixa do Sapateiro, lotado de filhas-
de-santo com suas saias coloridas, suas anáguas engomadas [...]. Ia o bonde ora
numa lentidão de lêsma, com se não existissem horários a obedecer, como se o
tempo lhe pertencesse por inteiro, ora em alta velocidade, comendo os trilhos,
rompendo tôdas as leis do trânsito, na urgência de chegar. [...]Desceram do Bonde
na Baixa do Sapateiro, encaminharam-se para a Ladeira do Pelourinho.207
Verger, por sua vez encantado, escreve na abertura de RB:
O Taboão era na época o único ponto de passagem prático entre os bairros onde
residia a maioria dos trabalhadores [...] e as áreas da Cidade Baixa onde exerciam
suas atividades [...] Eles chegavam pela Baixa dos Sapateiros, amontoados e
pendurados em pencas dos dois lados dos bondes da Circular [...] a Baixa dos
Sapateiros servia de passagem aos bondes que vinham dos bairros mas
“decentes”: Brotas, os dois Matatu, o grande e o pequeno, e Santo Antonio Além
do Carmo.208
Nesse mesmo livro, três fotos dessa linha de bonde oscilam pelos dois textos. RB
Bondes na Baixa dos Sapateiros (fig. 39) revive a experiência dos transportes urbanos marcada
pela linha que levava trabalhadores braçais aos mercados e às docas, onde se acotovelavam
espremidos, arriscando-se “pendurados em pencas” em ambos os lados do bonde; RB Filhos
de Gandhy (fig. 34) condensa surpresa e assombro. A imagem parece evocar o encantamento
sugerido em Amado, quando imprevisíveis “indianos” atravessam a cidade em outra linha de
bonde. São as ruas do Centro Histórico, em todos esses momentos, que possibilitam em Amado
e Verger a experiência do estranho, atestando a sua riqueza enquanto espetáculo, sem
207 AMADO, Jorge. Os pastôres da noite. São Paulo: Livraria Martins, 1969. p. 188. A ortografia original foi
mantida. 208 VERGER, Pierre. Retratos da Bahia 1946 a 1952. Salvador: Corrupio, 1990.
141
tergiversarem quanto à denúncia social. O Pelourinho figura como enclave na epiderme da
cidade, escolhido para figurar como topografia simbólica.
Ao comentar os personagens dos Pastôres da noite, no livro de Alice Raillard, Amado
diz que as “putas e os vagabundos [...] são personagens que me apaixonam, trato-os com
cuidado especial no meu trabalho, e realmente estou próximo a eles. É por isso que eu gosto do
livro que intitulei os Pastôres da noite”209.
É esse pequeno mundo de vagabundos e prostitutas que está ameaçado de desaparecer,
junto com a forma e cultura urbana que os acolheu, e que deve ser retratado em sua derradeira e
luminosa aparição. Nas primeiras páginas, uma espécie de introdução escrita em prosa poética
por Amado210 assinala o envolvimento entre os pastores da noite e a cidade: “conduzindo a
noite apenas ela nascia no cais, palpitante pássaro do mêdo, as asas ainda molhadas do mar, tão
ameaçada em seu berço de órfã, lá íamos nós pelas sete portas da cidade, com nossas chaves
pessoais e intransferíveis”. Em seguida, na abertura do romance, logo na primeira página, ele
avisa da impossibilidade de se deter a experiência da vida urbana vivida pelos seus
personagens, pois o tempo é o da memória e da perda:
Foi neste tempo que está se acabando cada vez mais depressa, um fim de tempo,
um fim de mundo. Tão depressa, como guardar memória de acontecimentos e de
pessoas? E ninguém mais – aí, ninguém! – verá sucederem coisas assim nem
saberá de gente como essa. Amanhã é um outro dia, e, no nôvo tempo recém-
desabrochado, na flor da nova madrugada do homem, êsses casos e essas pessoas,
não caberão.211
No seu longo depoimento para Alice Raillard, Amado confirma essa sensação de perda
que o envolve tanto quanto a Verger. Ele próprio, elabora suas obras num indisfarçável esforço
memorialista ou nos últimos resíduos, fragmentos, ruínas de um mundo em desaparecimento.
209 Apud RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, p. 270, 310, 311. 210 AMADO, Jorge. Os pastôres da noite. São Paulo: Livraria Martins, 1969. 211 Idem, p. 3-4.
142
Pois, “os Pastores da noite é um romance sobre os vagabundos. A maioria de meus personagens
é de vagabundos. E já disse mais de uma vez, não haverá lugar para eles no mundo de
amanhã”. Indagado sobre a função do romance, responde sem ilusões que “todo o meu esforço
tende a conservar a lembrança de um tempo que está acabando, que em parte já acabou”.
Anteriormente citamos as palavras de Verger sobre a rede de indivíduos, em sua
maioria marginalizados, que, segundo ele, concorreram para a conservação do Pelourinho,
quando do seu abandono pelas famílias abastadas. Em conseqüência, o aspecto do Centro
Histórico evoca um amontoado de ruínas atgetianas. Particularmente em CHS Moradoras do
Maciel (fig. 40), conhecida rua de prostituição que tanto incomodava a cidade naquele período.
Sem glamour, as mulheres são cenografadas numa arquitetura também, como elas, sob o
espectro da ruína. Pedra e corpo arruinados. Roupas rasgadas, pés descalços, cabelos em
desalinho atuam com o entorno de paredes rachadas, carcomidas, calçadas danificadas, paredes
úmidas. Contrastam com as de Atget que ainda guardam uma elegância fora de tempo como na
Fille publique faisant le quart tirada em La Villette, 1921, embora o aspecto arquitetônico
esteja nas mesmas condições precárias. Em CHS Ladeira do Passo (fig. 41), um cavaleiro
conduz garboso o animal pela ladeira ao largo da destruição do tempo. Casas emparedadas,
muros desfeitos, madeiras empilhadas, do outro lado da calçada uma grande sombra recorta a
imagem. São dois regimes de sombra que o fotógrafo faz com que dialoguem silenciosamente.
Mas a beleza que escapa dessas paragens aprendemos a fruí-la com os surrealistas e antes deles
com Atget. Aprendemos a vê-las, transpostas para os trópicos como promessas e retomadas,
desvio e afirmação. Verger escreveu e tornou visível esse lugar de potência. Um prazer algo
perverso de saber que a opulência de ontem recai, no presente, na deterioração. O que nos faz
regozijar com a queda do que hoje nos impõem como modernidade. Sabemos da sua comédia
antecipadamente. Essa é uma lição surrealista.
143
Conclusão: urbanismo espetacular e o dispositivo cenográfico.
Pierre Verger se coloca distante de qualquer confronto político clássico aos moldes
marxistas acima descritos. De qualquer maneira, tanto ele quanto Jorge Amado ou Carybé,
artistas que durante longo tempo criaram suas obras ao lado do francês, exercem uma postura
militante, embora Jorge Amado seja o único que militara de maneira sistemática num partido
de esquerda, chegando a ser eleito deputado pelo Partido Comunista Brasileiro. Os três amigos,
na defesa da cultura negra, iniciam uma militância voltada para a etnicidade que marcaria
profundamente a política da cidade, em detrimento da política baseada no confronto entre
classes. A falência e o descrédito das conquistas políticas institucionais da esquerda ou direita,
as denúncias do regime stalinistas que vazaram nessa época aclimataram as militâncias
etnográficas sobretudo quando o próprio meio urbano se encontra apartado por opções culturais
sob a ótica étnica. A cultura posiciona-se no centro das atenções estético-políticas e torna-se o
local primordial dos conflitos, instaurando um paradigma etnográfico.
O ensaísta Hal Foster212, partindo de uma conferência de Walter Benjamin, utiliza-se do
conceito de paradigma etnográfico para caracterizar a arte e os artistas contemporâneos. Para
ele, a arte de esquerda militante teria sido colocada em cheque pelas reflexões de Benjamin,
pois este entende que o engajamento de artistas ao lado do proletariado seria insuficiente para
enquadrar a obra como revolucionária. Efetivamente uma arte revolucionária deveria ter uma
forma produtiva também revolucionária que possibilitasse colocar em xeque o aparelho
produtivo burguês, pois do contrário, definir o artista de esquerda “ao lado do proletariado”,
partindo de suas convicções, é situá-lo num lugar impossível.
212 FOSTER, Hal. The artist as ethnographer. In: ____ . The return of real. London: Mit Press, 1996.
144
O novo paradigma etnográfico nortearia os artistas contemporâneos no sentido de
escaparem desse lugar impossível, propondo distinções binárias entre arte e artista, classe e
etnia, identidade e comunidade, numa ordem em que a contradição fundamental não mais seria
social, mas cultural. A visada etnográfica de Verger ao afastar-se do lugar impossível teria
encontrado a impossibilidade do lugar que só poderia ser elaborado pelo dispositivo
cenográfico das fotografias, acompanhado de perto das descrições amadianas e as gravuras de
Carybé que tematizam o mesmo espaço-tempo estetizado.
Espantoso é darmos conta de que esse lugar impossível se acomodara no espaço
espetacular. O dispositivo cenográfico se midiatiza (novelas, especiais e filmes inspirados em
Amado, exposições espetaculares de Verger, surgimento das fundações Amado e Verger,
localizadas no centro histórico) sendo relocado e assumido como realidade cultural pelos
soteropolitanos. A máscara que para nós nada esconde além das intensidades sem forma e
nome, foi tomada como rosto próprio. A cidade torna-se o próprio espaço do paradigma
etnográfico espetacular, confluindo consensualmente elites intelectuais, econômicas, políticas e
a enorme gama de marginalizados sociais. Uma combinação de exclusão econômico-social e
hegemonia cultural. A crítica mais radical denuncia o conluio do pensamento único como
abismal, infelizmente também ela enredada no pensamento único das categorias adornianas que
rodopiam no vazio. Estado terminal do capitalismo e do pensamento adorniano, pós-
debordiano. Antes do fim, olhos roçando o apocalipse, melhor seria perguntarmo-nos quais as
estratégias que estão em jogo de ambas as partes?
Nos anos sessenta, a obra de Jorge Amado surpreende os críticos literários: o livro
Dona Flor e seus dois maridos tem uma tiragem nunca antes imaginada e rapidamente se
afirma como um bestseller. É o ano de 1966, desde o início da década uma incipiente
racionalização da cultura se estabelece no país, no sentido da formação de um público
145
consumidor de massa, reverberações globais atingindo o terceiro mundo com a
espetacularização da cultura.
A cidade do Salvador criada pelo grupo baiano modernista sofre uma mudança
qualitativa entre os anos 30/50 ao ver-se transportada para o espaço midiático e espetacular,
afinada com o projeto político carlista de administração que a transformaria em uma city
marketing turística, definindo sua “vocação” terciária213. A cidade de Salvador agarra-se ao
turismo como possibilidade de superar suas crises econômicas no bojo de uma modernização
fundada numa política extremamente conservadora que por sua vez se apóia numa engrenagem
midiática que fagocita os artistas modernos, desenvolvendo a oficialização do mito modernista
soteropolitano. A administração carlista ao tempo que renova o traçado urbano da cidade, suas
famosas avenidas de vale, o deslocamento do centro administrativo etc., exerce uma política
agressiva no sentido de transformar a cidade como centro de lazer e turismo.
A história recente desse processo que se abate sobre a cidade do Salvador, revelando
sua turistização, segundo o pesquisador Benedito Veiga214, coincide com o lançamento do livro
amadiano Dona Flor e seus dois maridos, quando o governo baiano, na figura do Governador
Luiz Viana Filho e do prefeito Nelson de Oliveira, através da Superintendência de Turismo da
Bahia-SUTURSA, assume as festas populares, iniciando uma indústria estatal do turismo,
sendo “a marca que caracteriza a fixação do pólo turístico: a articulação entre o mercadológico
e o cultural, com a apreensão da cultura negra”.
Em 1967, indicado pelo Governador Luiz Viana Filho, o deputado federal pela Arena,
Antônio Carlos Magalhães, assume a prefeitura da cidade do Salvador em plena ditadura
militar. Em 1972 é criada a BAHIATURSA, órgão estatal, tendo o deputado Manoel Castro
como seu primeiro presidente. Este fato confirma a perspectiva de Veiga de que a formação do 213 SAMPAIO, Antonio H. L. Formas Urbanas: Cidade Real e Cidade Ideal. Salvador: Quarteto, 1999;
SÁNCHEZ, Fernada. A Reinvenção das Cidades para um mercado mundial. Chapecó: Argos, 2003. 214 VEIGA, Benedito J. de Araújo. Ah! Dona Flor, Dona Flor... (Memória da Vida Cultural Baiana). Tese de
Doutorado. UFBA. Instituto de Letras. 2001, p. 286.
146
pólo turístico baiano coaduna instituições políticas e setores sociais hegemônicos que visam
lucrar simbólica e economicamente cooptando “artistas e escritores que, até então, teriam
vivido por sua própria conta e que [...] se tornariam uma mercadoria de consumo. Seus quadros,
suas tapeçarias, seus textos seriam tornados mercadoria, apropriados como forma de construir
imagens da Bahia para alteridade do turismo”. O incentivo financeiro institucional fez “com
que circulassem financiamentos e se quebrasse a pasmaceira provincial”. A implantação do
pólo turístico assume uma imagem de democratização da cultura, o que é incisivamente
descartado por Veiga, quando escreve que o “jogo de poderes faz parecer democrático o que é
publicitário, como a permissão e o incentivo às práticas da cultura negra que, de reprimidas,
passam a ser estimuladas e liberadas pelos órgãos governamentais”.
O mesmo autor relata um encontro entre Antônio Carlos Magalhães e o escritor Jorge
Amado, em 1973, quando da inauguração do Centro Administrativo da Bahia, obra inclusa no
projeto modernizante que descentra as funções administrativas da cidade. De fato, no livro
Navegação de cabotagem215, sob o título Bahia, 1973 – Toninho, seu autor Jorge Amado conta
que, em visita ao centro administrativo, Antônio Carlos Magalhães incita os artistas a
colaborarem com as transformações que o prefeito modernista empreendia na cidade
provinciana:
Jenner Augusto e eu visitamos o canteiro de obras a convite do governador [...]. A
urbe vai sair dos limites históricos, vai se estender em direção a Itapuã, crescerá
na orla marítima, a velha cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos, capital
da colônia, modorrenta, se transformará na capital dinâmica de um Estado
Industrial.
O autor continua sua descrição do encontro e a intenção do governador de aliar à sua
obra modernista do centro administrativo as criações dos artistas baianos, também modernos:
215 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem. São Paulo: Círculo do Livro, 1992, p. 453-460.
147
Toninho pretende colocar painel de artista baiano em cada um dos edifícios,
decorar salas e gabinetes com óleos, aquarelas, desenhos, deseja que sua
administração decorra sob o signo da arte, pede-nos, a Jenner e a mim, que o
ajudemos no projeto. Aceitamos a prebenda, parece-nos válida por todos os
motivos: inclusive por bem-vinda às finanças sempre parcas dos artistas.
Jorge Amado, inicia a colaboração propondo “a Antônio Carlos que a realização do
grande painel destinado ao plenário da Assembléia Legislativa do Estado seja confinada a
Carlos Bastos”. A ele seguem os nomes de outros importantes artistas:
Os contratos iam sendo assinados com a rapidez exigida por Antônio Carlos para
gáudio dos artistas que se punham ao trabalho, na Secretaria de Planejamento já se
podiam admirar a matriz de Calasans Neto, no painel em madeira a cidade da
Bahia, e a escultura de Mário Cravo, A Tentação de Santo Antônio, resgatada do
abandono à chuva e ao tempo no jardim do atelier. Carybé trabalhava a parede da
Secretaria de Finanças, Hansen Bahia a do quartel da Briosa, Floriano a do prédio
da Secretaria de Energia, Transporte e Comunicação [...] .
Por último, “Juarez Paraíso, que faria o painel para a Secretaria da Agricultura”, depois
de ter seu nome embargado inicialmente por parte da burocracia carlista e ter sido liberado para
realizar a obra, segundo ainda Amado, através da intervenção do próprio governador.
Aliando urbanismo e estética, a administração de Salvador azeitava o caráter inovador
da gestão, promovendo a nova figuração da cidade com seus aspectos provincianos recriados
pelo modernismo estético. Sintoniza-se com o projeto turístico nacional, em pleno fomento no
ano de 1975, afirmado na realização do congresso mundial da American Society of Travel
Agents – ASTA no Rio de Janeiro e o esforço das autoridades governamentais brasileiras para
que o país ingressasse na rota turística internacional.
O caráter eminentemente modernista de ACM é assinalado por Amado, no mesmo
texto, que retoma a arenga:
Ora, a verdade manda dizer e reconhecer: quem mudou a Bahia foi Antônio
Carlos Magalhães. Primeiro a urbe, quando Prefeito. Acanhado burgo de
148
província, em suas mãos de administrador virou a metrópole que aí está. Rasgou
avenidas, assentou bairros, construiu esgotos, não existiam, obra impopular, não
traz votos, realizou reformas, retirou a cidade do marasmo e a fez de novo e outra.
E excusando-se de criticar a intervenção carlista, arremata de maneira surpreendente “se
melhor para viver, não sei, pois sou natural refratário aos grandes centros, prezo as cidades
pequenas, por isso gosto de Paris, conglomerado de cidadezinhas, todas elas fascinantes, mas
essa é outra história.”
Nesse momento, a novidade está na astúcia da administração carlista em adotar o
modelo modernista de cidade do grupo baiano como seu e gestá-lo num projeto de
modernização reacionária216 da cidade transferindo-o para o campo midiático espetacular. Ao
assumir o controle do Estado, o grupo carlista estende sua atuação modernizante além das
instituições estatais, articulando-se num dispositivo midiático privado poderoso ( jornal, rádio,
televisão, agência de propaganda e empresa de eventos) potencializando o poder de simulação
na emergência de uma ordem pós-cultural e conseqüentemente aumentando a sedução do
projeto modernista primevo. Por outro lado, pautava-se num reacionarismo profundo ao
submeter as potencialidades democráticas dos meios técnicos utilizados a uma gestão elitista e
excludente economicamente, que no início do século XXI lega-nos uma cidade do Salvador
estigmatizada pela violência e miséria.
A implantação do pólo turístico na cidade assumiu uma imagem de democratização da
cultura, na medida em que se apoiou em artistas inspirados na cultura popular urbana negra,
que simularam uma cidade esteticamente moderna e culturalmente étnica. Sem dúvida a
cosmética da fome217 urbana submete o sonho, a utopia, arremessando aos escombros as
iniciativas teóricas que o perseguiam. O pragmatismo cosmético alija a cidade dos sonhos. A
216 HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura, e política na República de Weimar e no 3˚
Reich. Trad. Claudio Frederico da S. Ramos. São Paulo: Ensaio, 1993, p. 13-16. 217 A pesquisadora e crítica de cinema Ivana Bentes cunhou a expressão cosmética da fome, em oposição à estética
da fome glauberiana, para analisar o filme Cidade de Deus de Fernando Meirelles, entre outros.
149
Salvador turistizada, de negros lindos e saudáveis em outdoors e vídeos, numa alegria artificial
midiatizada, é a cidade aberta ao capital que será apropriado pelo pool gestor da cultura
cenográfica (administradores, produtores culturais, empresários) enquanto cosmética da miséria
social. Somos todos vítimas do cenário, já disse Virílio.
Alijado de sua parte maldita, patrimonializado pelo passado recomposto que em tempo
diverso combatia, o dispositivo cenográfico de Verger está preparado para sua sobrevida.
Combalido, assume ares testemunhais, e participa das estratégias do turismo, da cultura como
mercadoria, do espetáculo. Está no bojo de uma intervenção pública, oriunda do projeto carlista
de turistização de Salvador, que se arrasta até hoje na zona morta do pós-carlismo.
A obra de Verger ganha notoriedade com o advento da sua fundação, localizada no
portal do projeto de recuperação do Pelourinho, passando a corresponder às intenções
governamentais e econômicas de uma imagem da cidade que se espetaculariza através de um
longo e terminal processo. A melancolia do desaparecimento parece esvair-se com os primeiros
chamados da eternização da imagética urbana espetacular e mercantil. O esforço compositivo
de suas imagens esfuma-se no testemunho da cidade bucólica feito fetiche. O que poderia ser
criação estética em Amado, através da literatura, nem sempre confiável, posto que marcado por
arroubos imaginativos, juízo que pesa sobre as canções caymmianas ou gravuras de Carybé,
não encontra abrigo na produção fotográfica. Esta é sempre compreendida como espelhar e não
constitutiva de um dispositivo que cenografa a cidade através de opções e intervenções no ato
fotográfico. As imagens de Verger são hoje o encontro seguro entre a imagem fetiche do
turismo espetacular do Estado e sua veracidade tecnicamente comprovada. Como se a
ideologia, de persistência retiniana, conseguisse se reafirmar enquanto idéia, apagando seus
rastros políticos, autonomizada e redimida pela técnica.
Verger, que intuiu o desaparecimento da Salvador que conhecera, sitiada por uma
modernização periférica cada vez mais agressiva, não podia imaginar que, trinta anos depois,
150
correlato a esse processo, ocorresse a transposição do cotidiano da cidade, alicerçada pela sua
obra e de outros criadores, ao nível midiático espetacular. Fratura de dois momentos que se
miram como advindos de mundos totalmente diferenciados. Um estranho ao outro.
A obra espetacularizada de Verger perde o caráter denunciatório como um duplo da
alegria cultural baiana, em que suas imagens assumem o caráter de patrimonialização visual de
algo que não cessa de desaparecer. Querem nos convencer que se Verger soube vê-la ao tempo
de sua origem, dela podemos usufruir, como águas cristalinas, ainda agora, sem nem mesmo
imaginarmos seu termo. Em seu bojo, esse processo traga não só Verger, mas seus irmãos
Amado, Carybé e Caymmi. Talvez no afã de resgatar, em sua dignidade, as imagens culturais
soteropolitanas, intelectuais, burocratas, religiosas, independente da matiz ideológica (estamos
muito longe da política oriunda da Revolução Francesa), aliada ao sempre fracasso econômico
da cidade que não arrisca a se desvencilhar de um modelo predatório de turismo, sedimentam
uma equivocada interpretação das imagens vergeanas! Num livro de publicação recente218, nos
deparamos com esse erforço de associar ao trabalho de Verger um “fidelismo” duvidoso, assim
como uma a-temporalidade, marcada pelo continuismo de suas imagens que se referem a uma
realidade brasileira “revelada em preto e branco, em cada fotograma com perfis da diversidade
cultural do seu povo, mutáveis com o tempo, é verdade, mas representativos do ontem e do
agora”219. Pois é esse continuismo artificioso que faz com que as imagens vergeanas ocupem o
espaço aberto da espetacularização de sua obra e da cidade aberta ao turismo. Como se as
imagens ocupassem diagramaticamente as posições da ideologia, não mais se contrapondo a
uma realidade (pois o conceito de ideologia se esvai com a espetacularização imagética e a
hecatombe teórica do marxismo), mas às possibilidades interpretativas criativas que rompessem
com o uso de concepções históricas que reiteram a expropiação simbólica e econômica. Ainda
218 VERGER , Pierre. O Brasil de Pierre Verger. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2006. 219 BARADEL, Alex; TASSO, Franco. O Brasil de Pierre Verger. In: VERGER, Pierre. O Brasil de Pierre
Verger. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2006, p. 13.
151
no mesmo texto220, “a liberdade total da ação de Verger com sua câmera fotográfica [...] faz
com que seu trabalho, no contexto geral da mostra Brasil, desfrute de uma singularidade
raríssima” ou:
os fotogramas compõem um quadro da relidade tal qual se expressava naquela
época, sem retoques, sem maquiagens, sem a necessidade de recompor ou
adulterar cenários para que as imagens se adequassem à estética do autor. Com
Verger, tudo é muito real.
Contrapor uma continuidade das imagens é secretar que as práticas que as inspiraram
também são contínuas e ao seu tempo, deslocarmos os estilhaços daquela experiência urbana
para uma moldura, uma tela simbólica, que apagaria todas as outras imagens que se irradiam do
presente. Estamos tomando a cultura urbana soteropolitana atual como continuismo ou mesmo
sobrevivência originária daquela primeira. Mas se já a vemos nas fotos de Verger como ruínas,
o que a teria recomposto em um todo? Ou, retomando o raciocínio, o que nos faz recompor os
atuais estilhaços da cultura negra urbana nesse todo em que as imagens que nos chegam
“comprovariam” essa totalidade?
Se apagarmos o caráter constitutivo das imagens de Verger, se o alienarmos das
concepções estéticas de seu próprio tempo, e o situarmos além de tempo e espaço, estaremos
preparados para reificar suas imagens que já não nos dizem absolutamente nada, pontos de
trasmissão do discurso cultural aliado ao turismo, onde não há mais nenhuma cultura;
hipostasia de um viver e fazer urbano histórico num mito urbano de alegria; realidade visual
reprodutível que se impõe como verdade atemporal.
Quando Walter Benjamin221, sob o impacto da República de Weimar e da
racionalização da arte frente ao advento do rádio e do cinema, tematiza a reprodutibilidade
técnica da obra de arte teria ele pensado na cultura como um todo? Que a obra “não aurática”
220 Idem, p. 14. 221 BENJAMIN, Walter. L’oeuvre d’art à l’époque de sa reproduction mecanisée. In: ____. Ecrits français. Paris:
Gallimard, 1991, p. 177-220.
152
possibilitaria uma cultura, por sua vez, reprodutível tecnicamente? Não mais situada, local ou
temporalmente, sem originalidade, eterna e aquém da sua própria perspectiva sem origem? A
fotografia e o cinema, melhor, a sua forma técnica reprodutível, instaurou um pós-cultural,
onde seu modus operandi contaminou todas as outras formas estéticas, quiçá a própria vida
durante todo o século XX. Desenraizados, os bens culturais tornaram-se cambiáveis, oriundos
de não-lugares, mercadorias perfeitas, que em breve suplantariam a todas as outras,
completando aceleradamente um processo iniciado no século passado.
Nos termos da economia política, a cultura seria arrancada do paradisíaco valor-de-uso
(aurático?) e afirmada, pela racionalização técnica capitalista, enquanto valor-de-troca. O tal do
vestuário operário tão ordinário, que só “servia apenas para comprar”. Para Benjamin, esse
processo de relegar para segundo plano o valor-de-uso das mercadorias estabeleceria uma
ordem fantasmagórica aprimorada pela “indústria de diversões” onde o sujeito moderno se
entregaria ao desfrute. As análises benjaminianas dos novos meios técnicos apresentam um
ponto de vista dúbio, na medida em que apontam potencialmente tanto para uma nova era de
democratização da arte, com modificação das relações entre esta e as massas, quanto ao
desaparecimento do seu caráter aurático e as consequentes fantasmagorias resultantes. Mas esse
não seria o movimento mesmo da espetacularização?
Em Debord, há uma recusa provinciana das imagens reprodutíveis da sociedade de
massas. Quando a recusa soa mais como uma recusa do presente e de suas instâncias de
reprodução e publicização delas. Aqui a especularização é denunciada como uma reificação das
condições de sobrevivência do lupemproletariado urbano soteropolitano, seja ele negro,
mestiço, branco. O espetáculo não pode ser um mal em si. Estamos, talvez, contra Debord, na
medida em que vemos a pactuação do espetáculo com amplos setores sociais seduzidos pelos
modelos visuais aí produzidos. Como estamos também distantes do marxismo, a
espetacularização pode também atender a pequenos anseios dos atores sociais espalhados pela
153
malha urbana e lhes servir como estratégias de sobrevivência. Perguntaríamos então quais tipos
de estratégias estaríam sendo agenciadas e que tipo de vida estaria sendo positivada. Tanto
pelas redes de poder quanto as de contrapoderes. Ainda não temos uma avaliação desse
processo que nos parece estar assumindo novos desdobramentos, uma terceira cena, que criaria
o campo reflexivo para comentarmos as duas anteriores. De qualquer maneira, estaríamos
completamente afastados das estratégias que as imagens de Verger tornaram visíveis.
154
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