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TERROR E EXÍLIO em
DIALOGUES DES CARMÉLITES, de G. BERNANOS
por FERNANDA MARIA DE SOUZA E SILVA
Departamento de Letras Neolatinas
Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo. Co-orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello
Rio de Janeiro 1998
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SINOPSE Diferentes formas de Terror na História Contemporânea. Dialogues de Carmélites, o martírio das carmelitas de Compiègne. Carmelo: espaço de conflitos entre o princípio aristocrático e os valores burgueses. Blanche de la Force, símbolo de contradição. Sua errância. O exílio de Bernanos. Errâncias.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................5
CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR...................................22
INTERTEXTO: FIGURAS...........................................................61
Compiègne - um espaço de violência ........................................62 A Ordem do Carmelo ..................................................................70
O TEXTO.........................................................................................77
Prefigurações .................................................................................79 O Prólogo de Dialogues des Carmélites ......................................79 Mudanças....................................................................................88 A profanação .............................................................................95
Valores..........................................................................................102 O código aristocrático ............................................................102 A reversão de Valores.............................................................132
Onde está Blanche? ....................................................................166 BERNANOS, O EXÍLIO?...........................................................188
UMA OBRA ETERNA?...............................................................237
BIBLIOGRAFIA ...........................................................................242
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INTRODUÇÃO
A Tese aqui apresentada, Terror e Exílio em Dialogues des
carmélites de Georges Bernanos, tem como objetivo analisar o Terror
que se apresenta sob diferentes formas no texto escolhido e
propor uma leitura da obra de Bernanos sob o ângulo do exílio.
Sinteticamente, pois deixei para momento oportuno o
desenvolvimento das questões aqui expostas, vou, de início,
localizar o escritor no panorama intelectual de sua época.
Georges Bernanos (1888-1948) é um escritor francês de
destaque, romancista consagrado, autor de Sous le soleil de Satan e
de Journal d’un curé de campagne, entre outros. Também escreveu
uma obra polêmica, violenta denúncia contra os regimes
totalitários da época, conhecida sob o título geral de Essais et
Écrits de combat, entre os quais se destacam Les Grands Cimetières
sous la lune e Lettre aux Anglais.
Classificar Georges Bernanos constitui uma difícil tarefa.
Ele recusou todos os rótulos que lhe foram, por vezes, atribuídos.
Rejeita ser considerado um profeta: "Je n’ai jamais rien prédit, mais je
veux aujourd’hui, comme d’habitude, dire tout haut ce que chacun pense tout
bas" (EEC II: 297)1. Não aceita ser considerado um
doutrinador (EEC II:141) ou um panfletário (EEC II: 1271). E,
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surpreendentemente, opõe-se ao título de escritor: “Je ne suis pas un
écrivain. La seule vue d’une feuille de papier blanc me harasse l’âme” (EEC
I: 353-4).
Esta contestação da escritura, no comentário de Jacques
Chabot, na edição da Pléiade, significa que Bernanos não se iludia
com a eficácia do instrumento do qual se serve. O autor de Les
Enfants humiliés aceita e assume a condição de homem que
escreve, mas recusa o falso prestígio de ser um criador: “Du moins
ne me suis-je jamais pris sérieusement pour un créateur” (EEC I: 873).
Ele se define como uma voz que denuncia e incomoda:
“Ma seule et modeste vocation en ce monde est de parler quand tout le monde
se tait” (CORR II: 328).
De todas estas tentativas de classificações de Bernanos,
talvez a mais persistente, para leitores menos atentos, seja a
imagem de um romancista católico, recusada pelo próprio autor: “Je
ne suis pas un écrivain catholique comme on dirait, par exemple, un écrivain
marxiste” (EEC II:1189). Escritor católico, sim, mas no sentido de
ser responsável:
Je suis un écrivain catholique, je veux dire un homme qui se tient responsable de ce qu’il écrit, non seulement vis-à vis des catholiques, mais du premier venu qui le lit, et auquel il doit toute la vérité dont il dispose. (EEC II:1189)
1 As obras de Bernanos serão citadas no corpo do trabalho, com a abreviatura convencionada no final da Introdução, seguida da página.
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A maioria dos leitores lê até: "sou um escritor católico" e não
considera que ele se dirige também a qualquer homem que o leia.
E impressiona a acolhida feita à obra de Bernanos por um grande
número de ateus.
Gildas Bourdet, ao dirigir Dialogues des carmélites, em 1987,
na Comédie Française, declarou em uma entrevista:
Inúmeras pessoas não cristãs dizem-me que não conseguem escapar aos problemas que o texto provoca. Acredito que a razão se deva ao fato de Bernanos ter ido até as ultimas conseqüências das interrogações que ele fazia a si mesmo. (Bourdet, 1988: 35)
Bourdet sugere ainda que as contradições de Bernanos,
longe de afastar, aproximam-no de pessoas provenientes das mais
diferentes classes sociais e intelectuais.
Contradições e paradoxos poderiam caracterizar o autor,
testemunha de um renascimento espiritual francês, marcado por
grandes conversões: Ernest Psichari, neto de Renan (1913),
Jacques e Raïssa Maritain (1906) e Charles Péguy (1908), entre
outros.
Bernanos participou também de algumas das grandes
querelas políticas e religiosas que agitaram as primeiras décadas
do século XX, na França: L’Affaire Dreyfus, o desenvolvimento de
le Sillon, organização católica de esquerda e o apogeu de L’Action
Française, movimento de extrema direita. O Vaticano condenou,
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sucessivamente, le Sillon em 1910, e L’Action Française, em 1926,
provocando revolta e desorientação em muitos católicos, que não
entenderam, inicialmente, as razões do Sumo Pontífice em
condenar a primazia da política em detrimento da fé.
Bernanos participou, ativamente, da renascença espiritual
que se consolidou por volta dos anos vinte e conheceu sua idade
de ouro na década de trinta. Claudel, Mauriac e Bernanos são
alguns dos grandes escritores que, aureolados de prestígio,
atingem o grande público.
Bernanos recusou a imagem de escritor católico, no sentido
de ser propagandista da fé, executor de diretrizes, mesmo que
emanadas da Igreja. Mas foi um cristão que escreveu romances.
Suas dúvidas, certezas e incertezas permitiram-lhe ser o
autor de La Grande Peur des bien-pensants (1931), elogio ao anti-
semita Drumont, e de Les Grands Cimetières sous la lune (1938),
denúncia ao regime franquista, para citar dois extremos.
E a proximidade da morte parece ter inspirado Dialogues des
carmélites, texto luminoso, sua vida passada a limpo. Escrito na
Tunísia, cenário de seu último exílio voluntário, que manifestaria
seu desencanto com a França do pós-guerra, Dialogues des carmélites
é uma meditação sobre os grandes temas que angustiam o
homem: a vida, a morte, a dor, o medo.
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Como para os grandes escritores clássicos franceses do
século XVII, a matière não é nova. Nova, sim, é a manière de tratá-
la. E é o que conta, pois aí reside o selo próprio do escritor, sua
originalidade.
Dialogues des carmélites baseia-se em um fato histórico. Em 17
de julho de 1794, durante o Terror revolucionário na França,
dezesseis religiosas do Carmelo de Compiègne foram
guilhotinadas na Praça do Trono, atual Praça da Nação, acusadas
de ser inimigas do povo e de conspirarem contra a Revolução.
Foram beatificadas por Pio X em 27 de maio de 1906.
Dois relatos do martírio foram escritos (Jauffret, 1803) e
(Guillon, 1821), porém somente em 1836 foram publicadas as
memórias de Marie de l’Incarnation com o título Histoire des
religieuses carmélites de Compiègne, conduites à l’échafaud le 17 juillet 1794.
Ouvrage posthume de la soeur Marie de l’Incarnation, carmélite du même
monastère. Embora anônima, os catálogos da Bibliothèque
Nationale de Paris e da British Library assinalam o Cardeal
Villecourt como responsável pela edição, citada sob a sigla
Villecourt.
Gertrud von le Fort consultou um exemplar dessa obra
existente na biblioteca de Munich e, inspirando-se, livremente,
neste acontecimento histórico, escreveu, em 1931, em alemão,
uma novela traduzida para o francês e publicada, em 1937, sob o
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título: La Dernière à l’échafaud. A romancista modificou
circunstâncias, permitindo-se grande liberdade criativa com a
História: Madame de Croissy, a antiga Priora, não padeceu uma
agonia humilhante; na "realidade", sofreu o martírio juntamente
com sua comunidade.
Marie de l’Incarnation não era Mestra de noviças e sim uma
das mais jovens religiosas. Seu temperamento dificilmente
poderia ser qualificado de admirável e heróico, como Gertrud von le
Fort o considera, com base no documento Villecourt, já citado,
que lhe atribui qualidades que não correspondem à "verdade"
histórica.
A confrontação da novela La Dernière à l’échafaud com a
História, assim como as diferenças entre o texto da romancista
alemã, o roteiro cinematográfico do Padre Brückberger e os
diálogos escritos por Bernanos foram analisadas, entre outros,
por Michel Estève (Estève, 1960) e Joseph Pfeifer (Pfeifer, 1963).
Remeto ao recente estudo Destinée providentielle des Carmélites de
Compiègne dans la littérature et les arts (Gendre, 1994), para eventuais
consultas.
Gertrud von le Fort criou, talvez inspirada em suas próprias
angústias e temores, uma personagem central, Blanche de la
Force, também medrosa e angustiada, com a qual a autora se
identificaria, pelo medo generalizado diante do mundo ameaçado
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pelo Terror e não apenas pelo nome que lhe atribuiu (le Fort/de
la Force). A autora revelou, posteriormente, a motivação inicial
de sua novela:
O ponto de partida de minha criação não foi em primeiro lugar o destino das dezesseis carmelitas de Compiègne, mas a personagem da pequena Blanche. Ela nunca viveu, historicamente, mas recebeu o sopro de seu ser trêmulo, exclusivamente, de minha própria interioridade e não pode, de modo algum, ser separada desta origem que lhe é própria.[...] Esta figura levantou-se, por assim dizer, de dentro em mim como a encarnação da angústia mortal de toda uma época encaminhando-se para o seu fim. (le Fort, 1958:93 apud Gendre, 1994).
Esta obra é considerada pela maioria dos críticos como
uma denúncia do nacional-socialismo, e a própria autora apoiou
esta interpretação.
Tese mais recente considera que o alvo visado seria não o
nazismo, porém o comunismo (Pottier, 1991: 174-180). Quer se
trate de uma denúncia do nazismo ou do comunismo, o texto é,
indubitalvelmente, uma denúncia contra o totalitarismo em geral
e constitui uma reflexão sobre a angústia contemporânea e a
vitória da Graça de Deus sobre o medo.
Terminada a II Guerra Mundial, o Padre Brückberger
obteve os direitos para a adaptação cinematográfica da novela de
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Gertrud von le Fort e escreveu um roteiro - cinqüenta e quatro
seqüências a serem filmadas -, o que se denominou “le scénario”.
A tarefa de redigir os diálogos para o filme foi oferecida
primeiramente a Albert Camus, que recusou, alegando ser ateu, e
sugeriu o nome de Bernanos. Este aceitou a tarefa, iniciada em
novembro de 1947, mas não a terminou no tempo
convencionado verbalmente, o que gerou uma série de equívocos
e mal-entendidos. Os diálogos foram concluídos em meados de
março de 1948, quando Bernanos já estava gravemente enfermo,
vindo a falecer a 5 de julho do mesmo ano.
O manuscrito, julgado inadequado para a linguagem
cinematográfica, pelo produtor Gaspard de Cugnac, permaneceu,
literalmente, esquecido no fundo de uma mala. Albert Béguin,
grande admirador da obra de Bernanos e encarregado pela família
do acervo de suas obras, atribuiu um título ao texto, fez algumas
alterações e publicou-o em 1949.
Além de dar um título ao manuscrito, Béguin dividiu-o em
cinco quadros e um prólogo, resumiu algumas cenas e atribuiu
nomes às religiosas que Bernanos deixara anônimas. Estas
alterações foram exigidas pela mise en scène teatral. A maioria dos
críticos é formal: Béguin respeitou, escrupulosamente, o
manuscrito de Bernanos e a fidelidade da edição póstuma é total.
Monique Gosselin revela, entretanto, outras alterações feitas por
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Béguin (como a inserção da cena da quebra da imagem do
pequeno Rei da Glória) e lamenta que este não tenha seguido o
manuscrito da mão de Bernanos e sim o de sua secretária.
Existem dois manuscritos: um do próprio Bernanos e outro
copiado por sua secretária. Estes documentos se encontram na
sala dos manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris.
O problema da autoria, objeto de muitas controvérsias, foi
parcialmente resolvido por Julien Green, em 25 de novembro de
1951, o qual opinou: a significação espiritual da obra pertence a
Bernanos, ao passo que a invenção e a criação dos principais
personagens pertencem a Gertrud von le Fort. O Padre
Brückberger e Philippe Agostini, roteiristas, também se
consideram co-autores. A lei francesa acolheu a questão que se
prolonga até hoje. Os processos referentes a Dialogues des carmélites
impedem que o roteiro, sub judice, seja consultado.
A sentença jurídica determinou que, em todas as edições e
cartazes da peça, devem constar obrigatoriamente os seguintes
dados: "segundo uma novela de Gertrud von le Fort e roteiro de R. P.
Brückberger e de Philippe Agostini".
Dentre os estudos publicados sobre Dialogues des carmélites,
destaca-se uma Tese de Doutorado sobre a gênese da obra,
posteriormente, publicada. A autora, Meredith Murray, teve
acesso ao scénario - roteiro - e reitera a originalidade de Bernanos,
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definida por Julien Green, em 1951, que consiste no sentido
espiritual da obra. Ao fazer reviver as personagens de Gertrud
von le Fort, “Bernanos deu à mesma aventura uma significação pessoal. A
dependência da origem não exclui, obrigatoriamente, a autonomia no plano
espiritual.” (Murray, 1963: 33). Esta pesquisa ainda não foi
ultrapassada, tendo em vista que ainda não veio a lume a edição
crítica, que está sendo preparada sob a direção de Monique
Gosselin.
O cotejo formal estabelecido entre o texto de Bernanos,
Dialogues des carmélites, e La Dernière à l’échafaud (Boly, 1960)
também fornece subsídios para estudos da peça.
Entre outros estudos mais recentes, cito o artigo de Pierre
Gille: "Drame spirituel et forme dramatique dans Dialogues des
carmélites" (Gille, 1984) e as análises de Monique Gosselin:
"Dialogues des carmélites, oeuvre testamentaire" (Gosselin, 1988)
e "Dialogues des carmélites, l’ultime méditation de Bernanos"
(Gosselin, 1995).
No tocante aos estudos históricos sobre as Carmelitas
mártires, destacam-se as publicações de William Bush, professor
de literatura francesa em Ontario (Canadá) e Le sang du Carmel ou
la véritable passion des seize carmélites de Compiègne texto publicado em
1954, de autoria do Padre Bruno de Jésus-Marie, religioso
carmelita. Trata-se uma obra indispensável ao estabelecimento da
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verdade histórica, com documentos inéditos. A reedição, em
1992, comprova o interesse dos estudos históricos, na época
atual.
A publicação dos Dialogues, em 1949, sob a forma de livro
teve grande sucesso, mas a revelação da força e do poder de
sedução de Dialogues des carmélites manifestou-se sobretudo no
teatro. O texto traduzido para o alemão foi encenado, com muito
sucesso, no Festival de Zurique (1951) e depois em Munique,
onde a representação se transformou em verdadeira liturgia, com
a participação espontânea da assistência entoando o Salve Regina.
Em 1952, a peça foi encenada no Teatro Hébertot em Paris,
numa adaptação de Albert Béguin e Marcelle Tassencourt, onde
permaneceu vários anos em cartaz, antes de ser incluída no
repertório da Comédie Française.
A repercussão na imprensa resume a pluralidade autoral de
Dialogues des carmélites, particularizando a contribuição de cada um:
O maior acontecimento da temporada teatral européia é uma peça
abordando um fato histórico francês, tratado por uma romancista alemã,
adaptado para o cinema por um Dominicano de Paris, teatralizado por
Bernanos e representado no Festival de Zürique. (Carrefour, 8 de agosto
de 1951)
Dialogues des carmélites, texto traduzido em várias línguas e
submetido a sucessivas adaptações para diferentes gêneros
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artísticos, teve sempre um grande sucesso de crítica e de público,
mas tornou-se internacionalmente conhecido, graças à ópera de
Francis Poulenc, que estreou no Ópera de Milão, em janeiro de
1957, e no Ópera de Paris, em junho do mesmo ano. Superando
os numerosos e complicados problemas de direitos autorais, foi
encenada com imenso sucesso nos principais teatros do mundo.
Um dos méritos de Poulenc foi o de alcançar a mesma
grandeza dramática atingida por Bernanos e provocar reflexões
sobre o medo diante da morte, o mistério da graça divina e a
violência do mal, em espaços onde tais discussões seriam
inusitadas. E, através da música, as carmelitas de Compiègne, que
haviam escolhido o silêncio e a solidão de um claustro, fazem
ouvir seu canto, interrompido pelo ruído da guilhotina em 1794.
Dialogues des carmélites foi difundido, também, através de
discos. A ópera de Poulenc foi gravada algumas vezes. A primeira
gravação data de 1958 e permanece um documento indispensável
aos que amam a música.
O filme projetado pelo Padre Brückberger, em 1947, foi,
finalmente, rodado e exibido, em 1960, sob o título Le dialogue des
carmélites. A crítica, em geral, lhe foi desfavorável. A Société des
Amis de Georges Bernanos e seus herdeiros processaram os
responsáveis, acusando-os de desonestidade intelectual e
infidelidade ao texto de Bernanos. O filme privilegia, não o plano
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espiritual, mas as relações que unem a História, o homem e a
sociedade.
Em 1984, Pierre Cardinal realizou, com sucesso, um filme
para a televisão. O diretor criou um Carmelo luminoso,
dominado pela cor branca. No elenco, uma coincidência: a jovem
atriz Anne Caudry Bernanos, falecida prematuramente, que
incarnava Blanche de la Force, era a neta do escritor.
O apelo visual e dramático, a importância da imagem em
detrimento da narrativa, ressaltam não só da gênese da obra
como também da transformação e adaptação para diferentes
gêneros artísticos: livro, peça de teatro, ópera, filme e audio.
Qualquer estudo que se faça de Dialogues des carmélites deve ter em
vista a origem do processo criativo: diálogos para um filme a ser
rodado, segundo afirma Michael Kohlhauer.
Este rápido resumo da gênese desta obra já aponta para a
importância da intertextualidade como caminho para a sua análise.
O conceito de intertextualidade, hoje amplamente
difundido, exige a priori que se explicite seu emprego e delimite
sua extensão. O ponto de vista de Marc Angenot, sobre o
assunto, é categórico: "Na minha opinião, é necessário que o
pesquisador, colocando as cartas na mesa, exponha e manifeste sua
problemática, revelando a origem de suas filiações teóricas e os objetivos que
pretende atingir" (Angenot,1984: 103).
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O conceito de intertextualidade foi cunhado principalmente
por Julia Kristeva (Kristeva, 1969), na esteira da polifonia de
Bakhtine (Bakhtine, 1970). O que assim se enfatiza é o trabalho
de produção de sentidos do texto no diálogo, implícito ou
explicito, com outros tantos textos, anteriores ou sincrônicos.
Não mais produto, dentro do circuito comunicativo Autor-obra-
público, o texto, considerado como um tecido, textura (Barthes,
1973: 100), se elabora ao tecer os fios dos discursos múltiplos, na
mais ampla acepção do termo, que o permeiam. Barthes
acrescenta a possibilidade de diálogo também com textos
posteriores, visão correlata ao processo de escritura-leitura em que
o leitor coparticipa, com o seu próprio texto, sua cultura, da
produção de efeitos de sentidos do texto escrito.
Genette demonstra, em Palimpsestes (Genette, 1982), o jogo
pelo qual um texto se superpõe a outro, substituindo-o e
escondendo-o, mas sem apagar completamente o traço anterior.
E Philippe Sollers resumiria a problemática do intertexto ao
afirmar que todo texto está situado na junção de vários textos dos
quais ele é, ao mesmo tempo, a releitura, a condensação, o
deslocamento e a profundidade (Sollers, 1968: 75).
Em minha leitura de Dialogues des carmélites, não aponto as
semelhanças e diferenças entre o texto de Bernanos e os pré-
textos que lhe foram fornecidos: a novela de Gertrud von le Fort
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e o roteiro do filme que seria rodado, nem enfoco as sucessivas
adaptações do texto de Bernanos para diferentes gêneros
artísticos: livro, teatro, ópera, audio, cinema, por fugir este
trabalho ao tema proposto.
Ao analisar Dialogues des carmélites, de Georges Bernanos,
destaco o contexto da ação na peça de teatro: o Terror, sob
diferentes formas, e tento responder à pergunta fundamental: onde
está Blanche de la Force? (4.3). A errância de Blanche, ao constituir o
núcleo da Tese, remete ao questionamento: onde estava o mundo em
1789-1794? e ao Carmelo de Compiègne. Em um processo
inverso, a Revolução Francesa é o eco dos debates internos entre
o princípio aristocrático e os valores burgueses discutidos no
claustro (Cap. 4). A inquietação de Blanche e sua angústia
ressoam no nomadismo de Bernanos e seu exílio interior. Esta
problemática, a peregrinação do autor de Les Grands Cimetières sous
la lune conduz à questão: onde estava o mundo em 1948? E finalmente
provoca a indagação: onde estava Bernanos? Estas questões serão
transpostas para um plano espiritual superior, em um desenlace
imprevisto do ponto de vista humano, sob a ação da graça divina.
Procuro estudar, também, a significativa importância de
dois contextos:
1. Contexto histórico (Cap. 2) que, aliás, é duplo: contexto do
fato histórico, a Revolução Francesa e o Terror, com seus
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conflitos ideológicos, e o contexto contemporâneo de Bernanos:
a guerra civil espanhola, a ocupação alemã, o pós-guerra e a
guerra fria, um sendo lido através do outro, subentendido mas
atuante.
2. Contexto religioso da primeira metade do século XX. Trata-
se do momento em que a renovação da fé católica faz da idéia de
santidade uma solução e um problema e assim atinge o núcleo do
mistério da salvação: a questão da graça (4.3). Tal contexto ajuda a
esclarecer certas opções políticas de Bernanos referentes à
L’Action Française e sua crise pessoal (Cap. 5).
A visão trágica de Bernanos (cap. 5) inserida nas duas
panorâmicas anteriores. Mais e melhor do que apenas a biografia
do escritor, a sua visão do mundo, sem dúvida consoante com a
sua vivência da história e da religião. Visão trágica, no sentido
empregado por Lucien Goldmann, em Le Dieu caché, a
impossibilidade de viver sob o olhar de Deus, presente e
escondido, em um mundo dominado por valores incompatíveis
com a fé (Goldmann, 1959).
Finalmente, proponho uma leitura de Bernanos, sob o
ângulo do exílio, (Cap. 5) exílio que se apresenta, sobretudo,
através de uma contínua errância.
O corpus específico de minha análise é o texto Dialogues des
carmélites tal como o apresenta a edição Pléiade de 1961.
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Enquanto não for estabelecido, através de uma edição crítica que
está sendo preparada, um texto com maior rigor ecdótico, minha
escolha justifica-se pelo texto confiável, pelo rigor das notas,
comentários e variantes.
Abreviaturas:
Dialogues des carmélites será referida no corpus da Tese sob a
forma abreviada de Dialogues e citada, nas referências
bibliográficas, sob a sigla DC seguida da página.
Oeuvres romanesques - OR
Essais et écrits de combat I - EEC I
Essais et écrits de combat II - EEC II
Combat pour la liberté - CORR II
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CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR
Pour moi, j’appelle Terreur tout régime où les citoyens, soustraits à la protection de la loi, n’attendent plus la vie ou la mort que du bon plaisir de la police d’État. Bernanos
Dialogues des carmélites, obra originalmente concebida para
um filme foi escrita por Bernanos, nos últimos meses de sua vida,
de novembro de 1947 a março de 1948.
As datas são importantes porque indicam um período
conturbado, doloroso e polêmico, vivido pela sociedade francesa.
Os anos de 1944 a 1949, de um modo todo especial, foram
dominados pelo que se denominou l’épuration, a depuração, a
tentativa de transformar a sociedade francesa, purificada dos
colaboracionistas e dos partidários de Vichy. Este processo
prolonga-se até os dias atuais, quando são julgados os acusados
de crimes imprescritíveis, os crimes contra a humanidade, como a
Shoah ou o Holocausto, tentativa nazista de destruir o povo judeu.
Constata-se a persistência de um grave problema não
inteiramente resolvido, que continua dividindo a sociedade
francesa, como outrora o processo Dreyfus a fragmentara,
reafirmando a constatação, tornada banal, da existência do que se
convencionou chamar Les deux France.
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Em 1947-1948, discutia-se e praticava-se a depuração.
Bernanos, no último exílio voluntário na Tunísia (Cap. 5), escreve
seu “testamento espiritual” e Vladimir Jankélévitch, professor de
filosofia moral e um dos mentores da juventude da época,
proclama a impossibilidade de se perdoar e de se esquecer: “O
perdão é forte como o mal, mas o mal é forte como o perdão” (Jankélévitch,
1986:15).
Os fatos são bem conhecidos: em junho de 1940, o
Marechal Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial, assina o
vergonhoso Armistício franco-alemão e, em outubro do mesmo
ano, anuncia, publicamente, sua decisão de colaborar com os
invasores nazistas. A França, dividida em zona livre e zona
ocupada, obedece ao que se convencionou chamar "Governo de
Vichy".
O início da Resistência contra os alemães dataria de 8 de
junho de 1940, quando o General Charles de Gaulle, de Londres,
falando através da rádio, denunciou a ilegitimidade de Vichy e
conclamou os franceses a resistirem: “a flama da resistência
francesa não deveria se apagar” (de Gaulle, 1944-1945: 13-14).
Durante os três anos que se seguiram, o comitê do General
de Gaulle, em Londres, simbolizou principalmente o fato de que
nem todos os franceses haviam capitulado. O movimento gaulista
poderia ter fracassado. Do ponto de vista militar, era
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insignificante e, politicamente, representava apenas a si mesmo.
Ter-se tornado o Governo provisório da República Francesa foi
o resultado de acontecimentos ulteriores ocorridos na França,
entre outros, o apoio da esquerda e, principalmente, do partido
comunista.
Em 1942, a Resistência metropolitana começou a
considerar de Gaulle um chefe e não um mero símbolo e, em
1943, a união estava consolidada entre os resistentes de Londres e
os franceses vivendo no exílio e na França ocupada.
Em 25 de agosto de 1944, Paris é libertada pelas forças
aliadas e, em 7 de maio de 1945, a Alemanha rende-se
incondicionalmente.
O processo de depuração é deflagrado a partir da libertação
de Paris pelas forças aliadas e culmina na condenação à morte de
Pétain, cuja pena foi comutada em prisão perpétua, em 1945.
Julgamentos, processos, condenações, discussões
sucederam-se motivados pelo ódio, pelo ressentimento, pelo
desejo de justiça e também por motivos menos nobres. Quem
colaborou com os ocupantes nazistas? Quem resistiu arriscando a
vida?
Nesse contexto histórico e político, destaco os anos 1944 a
1949 por constituírem o auge do processo de limpeza, de
épuration, quando Dialogues foi escrito.
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Desencadeou-se, nesse período, uma verdadeira caça aos
culpados. Importa considerar que a depuração conseguiu
desagradar à maioria dos franceses da época. Os que haviam
resistido aos alemães criticavam a sua brandura e moderação, e
alguns acusavam-na mesmo de fraqueza; os que colaboraram
lamentavam sua violência. Em todo caso, a maioria dos
estudiosos concorda que a aplicação das punições foi
profundamente injusta, preconceituosa. Verificou-se mais uma
vez a verdade proclamada por La Fontaine: “Selon que vous serez
puissant ou misérable, les jugements de cour vous rendront blanc ou noir” (La
Fontaine, Les animaux malades de la peste).
O período da depuração suscitou numerosos estudos de
historiadores idôneos e competentes,1 mas parece que somente
agora, mais de cinqüenta anos decorridos, os franceses mostram-
se capazes de examinar com isenção o tema conflituoso de um
passado doloroso - Vichy, um passado sempre presente e que
revela um luto mal resolvido, uma História inacabada.
As lembranças da Ocupação, no dizer dos autores de Vichy,
un passé qui ne passe pas (Conan & Rousso, 1994), ocupam,
atualmente, um lugar desmesurado na consciência nacional
francesa.
1 Cito, entre outros, Pascal Ory, Jean-François Sirinelli, Henry Rousso, Michel Winock, Jean-Pierre Azéma e Peter Novick cujas obras constam na bibliografia.
26
Um passado desconhecido das gerações atuais ressurgiu
brutalmente na memória dos franceses. O que conduziu a
vontade de fazer ou refazer o julgamento de Vichy e da
Colaboração e levou a uma crítica implícita da maneira como a
depuração foi realizada. Recusa-se a atitude antes preconizada, de
"virar a página", e rompe-se o silêncio mantido, durante longos
anos, sobre certos aspectos do problema que dilacerou uma
nação.
Essa mudança permitiu melhor compreensão e valorização
do notável trabalho de Peter Novick, pesquisador americano que
durante três anos, de 1960 a 1963, leu, verificou e comparou
todas as fontes acessíveis na época. Sua Tese de Doutorado,
elaborada em inglês, foi publicada em 1968. A tradução francesa
veio a lume em 1985, quando seu livro deixou de interessar
apenas aos especialistas e passou a atrair um grande número de
leitores. A grande vantagem de Novick advém da objetividade e
da seriedade com que informa os fatos. Sem envolvimentos
afetivos, o autor expõe, com honestidade e distância, o resultado
de sua pesquisa, traduzida em números.
A depuração foi obra dos vencedores, dos que fizeram a
Resistência, e a História desse período, pelo menos a curto prazo,
por eles foi escrita. Como decorrência, estabeleceram-se e
prevaleceram os postulados históricos e jurídicos da depuração: o
27
Armistício de 1940 foi um crime, Vichy um regime usurpador e a
colaboração uma política de traição (Novick, 1985: 52).
Sob esse ângulo enfocarei, em termos gerais, a Resistência
francesa e a depuração. Este processo de limpeza da sociedade
francesa aplicou-se de maneira desigual, em um contexto
conflituoso: alguns não queriam e não podiam esquecer, e outros
não admitiam reviver a lembrança dos anos negros da Ocupação
nazista que dividira a França.
Uma das conseqüências do governo de Vichy foi a
modificação ocorrida no espaço político e intelectual francês, face à
escolha inevitável que se impôs: recusar ou aceitar a política
colaboracionista. A decisão revelou-se, a posteriori, independente
de posicionamentos anteriores. Embora fosse calculável que a
direita apoiaria Pétain e que a esquerda o rejeitaria, os
acontecimentos mostraram que cada indivíduo assumiu uma
posição pessoal e imprevisível diante de um fato consumado: o
Armistício de 1940 e a colaboração.
A maioria dos intelectuais, na França, em um primeiro
momento, entoou louvores ao Marechal: Paul Claudel compôs
uma Ode au Maréchal Pétain e mais tarde elogiou, igualmente, o
General de Gaulle em Ode au Général, o que foi considerado, pelos
contemporâneos, uma palinódia. François Mauriac teria sido, por
um curto período, partidário de Pétain. E não causou nenhum
28
espanto a expressão "divina surpresa" com que Charles Maurras
saudou a consolidação do colaboracionismo, em 9 de fevereiro de
1941.
Provenientes de católicos de direita, essas atitudes políticas
poderiam ser consideradas previsíveis; porém, como justificar que
representantes da intelligentsia da esquerda parisiense, como
Emmanuel Berl e Gaston Bergery, redigissem os discursos lidos
por Pétain? (Ory & Sirinelli, 1992: 115-88).
A conclusão evidente é que, no início, reinava certa
unanimidade entre os intelectuais que permaneceram na França,
em relação a Vichy.
Mas, a partir de maio de 1941, forma-se o Comité national
des écrivains - C.N.E. - reunindo os intelectuais que se opunham ao
invasor e ao regime de Vichy. De 1942 em diante, quando as
tropas aliadas desembarcaram na África do Norte e a Alemanha
ocupou a Zona Livre, mudanças significativas acontecem. Alguns
permanecem colaboracionistas: Ferdinand Céline, Robert
Brasillach e Pierre Drieu la Rochelle, os mais conhecidos; outros
guardam prudente silêncio e afastam-se de Paris. E numerosos
são os escritores que escolhem a via da clandestinidade para
protestar, fundando uma revista e uma editora: Les Lettres françaises
e Éditions de Minuit. Um dos fundadores dessa editora, Jean
Bruller Vercors, escreveu Le Silence de la mer (1941-1943), um dos
29
mais conhecidos textos de ficção inspirado pela Resistência. A
célebre novela apresenta uma metáfora da Resistência na
personagem da jovem que, obrigada a hospedar um oficial
alemão, opõe-lhe, obstinadamente, o silêncio.
O silêncio livremente escolhido difere do silêncio imposto
aos intelectuais alemães antifascistas, refugiados na França e, que
em 1940 se viram obrigados, para escapar à prisão e à extradição,
a recorrer à fuga ou ao suicídio. O drama daqueles que
consideravam a França como sua verdadeira pátria espiritual e
que foram compelidos a um novo exílio ou à morte foi analisado
em Exil et engagement, um estudo ímpar no gênero (Betz,1991).
A resistência existiu, desde o início da guerra, entre os que
se exilaram: Georges Bernanos, no Brasil, Jacques Maritain, nos
Estados Unidos, o romancista Jules Romains, em Nova York e
depois no México, onde também se exilou André Breton, entre
outros. Apesar das diferenças ideológicas inconciliáveis, unia-os
um sentimento comum de vergonha, perda e desamparo.
Uma das formas de resistência e de presença intelectual
francesa, no exílio, foi o funcionamento de 1942 a 1945 da École
des hautes études em Nova York. Aí lecionaram Maritain e Lévi-
Strauss, entre muitos outros. Procuraram dar testemunho, mas
estavam longe, a salvo do dia a dia, da convivência quotidiana e
inevitável com o ocupante. Desaparecida logo após o final da
30
guerra, essa instituição prestigiosa era praticamente ignorada pelo
grande público. E os que dela tinham conhecimento não a
valorizavam suficientemente.
Isto porque grande ressentimento caracterizou a atitude da
maioria dos franceses em relação aos ilustres exilados que não
enfrentaram o dilema diariamente renovado: que atitude assumir
diante do mais forte? O que é mais importante, a vida ou a
honra? Uma vida sem honra teria sentido? E a realidade
comprova que os heróis, os mártires e os santos constituem uma
exceção e não a norma. Há várias espécies de coragem, como
disse Bernanos: “si la force est une vertu, il n’ y a pas assez de cette vertu
pour tout le monde” (DC:1690).
Tratava-se não mais de hipotéticas discussões cornelianas,
semelhantes àquelas encontradas nos textos clássicos, mas de
assegurar o pão de cada dia, de sobreviver.
Após a Liberação - 1944 - e, sobretudo, depois da rendição
incondicional da Alemanha - 1945 -, instala-se na França
l’épuration - a depuração - uma prática visando julgar e punir todos
os suspeitos de colaboração com o inimigo. Esses acertos de
conta do pós-guerra fizeram milhares de vítimas, culpadas ou
inocentes, em um processo que pode ser considerado um
ressurgimento do Terror reinante nos anos 1793-1794, e
31
encerrado, oficialmente, após a execução de Maximilien
Robespierre e o advento do Thermidor.
Esse processo de "purificação", a imposição do que se
considera o Bem e a Virtude pela força, sempre movido por uma
Fé, aparece, periodicamente, na História da humanidade sob
diferentes denominações: a caça às feiticeiras, a Inquisição, a
noite de São Bartolomeu. Períodos dominados pelo terror
poderiam ser enumerados e, ainda assim, a lista estaria sempre
incompleta. Proponho-me a evocar os Terrores contemporâneos
na medida em que eles podem ser comparados com o Terror de
1792-1793.
O Terror inicial da primeira República constituiu um
modelo seguido por outros processos de depuração violenta que
pontuaram o curso da História: a Comuna de Paris de 1871, a
guerra civil espanhola, o terror nazista, o terror comunista, o
terror provocado pelo medo do comunismo, os terrores asiáticos:
no Japão, na China, no Cambodja e, mais recentemente, o terror
movido pela determinação de limpar a raça, na Bósnia. No dizer
de René Sédillot, todos os Terrores se assemelham e todos são
diferentes. Mas todos os períodos de Terror evocam, de um
modo ou de outro, o Terror arquétipo: o da Revolução francesa
(Sédillot, 1990: 261).
32
Se todos os Terrores possuem características análogas às do
Terror de 1793-1794, com mais forte razão, l’épuration - a
depuração - apresenta-se dominada pelo espírito jacobino: o
desejo de extirpar o mal, impor a virtude pela força, castigar os
culpados e construir uma nova sociedade.
Augustin Cochin, autor de L’esprit du jacobinisme, observa,
com muita propriedade, que a fé inspira o sacrifício pessoal a uma
idéia a que se aderiu apaixonadamente, enquanto o fanatismo
sacrifica os outros a essa idéia. A fé e o fanatismo constituiriam as
duas faces do entusiasmo. E o espírito jacobino somente conhece
o fanatismo (Cochin, 1979:188).
O jacobinismo predominou na prática da limpeza da
sociedade, no pós-guerra francês, manifestando-se em
julgamentos sumários, delações e muitas vezes em castigos
arbitrários como o aplicado às mulheres que mantiveram ou
teriam mantido relacionamentos amorosos com os alemães - o
caso das femmes tondues - mulheres tosquiadas. As vítimas, culpadas
ou inocentes, tinham seus cabelos raspados e eram expostas à
execração pública.
A relação entre 1944 e 1793, evidenciada por historiadores,
foi demonstrada, anos mais tarde, em 1956, por Jean Anouilh em
uma peça de teatro Pauvre Bitos ou le dîner de têtes, onde o Terror e a
depuração se misturam. Anouilh reproduz a justiça sumária
33
preconizada por um Saint-Just, mostra como o mesmo modelo
serviu em 1945 e denuncia ao excessos da depuração. O autor,
amargurado pelo que considerou injustiça, como a condenação de
Brasillach, também acertou suas contas. No dizer de Sédillot, seu
dîner de têtes - jantar de cabeças -, também foi um festival de
cabeças decepadas.
Entretanto, descobrir, para castigar, os verdadeiros
culpados de colaboracionismo constituiu um problema
complexo, delicado, quase insuperável, de tal maneira o joio
estava misturado com o trigo. Tentar separá-los, antes do tempo
da colheita, como adverte a parábola evangélica, seria correr o
risco de cometer danos irreparáveis (Mt. 13, 24-30).
O passar do tempo permite maior equilíbrio na avaliação
dos "anos negros": a participação da França na vitória aliada foi
menor do que os franceses gostariam de pensar, mas também esta
colaborou menos do que alguns a acusam.
É difícil imaginar, entretanto, que os quarenta milhões de
franceses que aplaudiram Pétain em 1940 se tivessem
transformado, em 1944, em quarenta milhões de resistentes.
Ao assumir o poder, de Gaulle criou o mito da Resistência.
Segundo Henry Rousso, o general vitorioso procurou “escrever e
reescrever a história dos anos de ocupação propondo uma visão procedente de
seu imaginário pessoal” (Rousso, 1987: 26). A Resistência foi
34
assimilada e estendida a toda a nação. A salvação emanaria da
France éternelle, abstração que constitui um dos sustentáculos de
seu ideário simbólico.
Criou-se um arquétipo do herói da Resistência que, no
dizer de Jean Pierre Azéma, apresentava uma
... imagem confusa onde se entremeavam o agente secreto, o justiceiro
ou o fora da lei e que lembrava o herói dos filmes de faroeste e o cavalheiro
medieval ao fazer explodir (...) um número incalculável de usinas e de pontes
(Azéma, 1979: 169).
No pós-guerra e durante muitos anos, raciocinou-se do
seguinte modo: a Resistência é de Gaulle; ora, a Resistência é a
França; logo, de Gaulle é a França. Mas os mitos são dificilmente
suportáveis por muito tempo e o General pede demissão da
presidência do Governo provisório, em 1946, só voltando ao
poder em 1958, para renunciar definitivamente em 1969.
O problema então era que os antigos resistentes achavam
que a hora da colheita já chegara, enquanto o General de Gaulle,
considerado “o mais íntegro dos franceses”, conclamava ao perdão e
ao esquecimento, repetindo que a França tinha necessidade de
todos os seus filhos.
Viso, com estas reflexões, estabelecer o contexto no qual
Dialogues foi escrito. Por essa razão, limitar-me-ei a fazer uma
breve síntese dos resultados da depuração no pós-guerra francês,
35
com base em estudos dos historiadores anteriormente citados. A
depuração a todos desagradou e foi aplicada de modo desigual
aos diferentes setores da sociedade francesa.
Segundo Novick, o sentimento geral era de que os
escritores e jornalistas constituíram os bodes expiatórios do
colaboracionismo enquanto outros segmentos, em particular os
colaboradores econômicos, recebiam penas simbólicas ou nem
mesmo eram presos.
Também instituições tradicionais, como a Academia
Francesa, quase não sofreram retaliações. Comparável, no dizer
de Paul Bourget, à Câmara dos Lordes, ao Vaticano e ao Estado-
maior da Prússia, a Academia Francesa constituía um reduto
reacionário, colaborou com os nazistas e apoiou Vichy. A maior
parte dos acadêmicos era germanófila, com exceção de Georges
Duhamel e, sobretudo, de François Mauriac, o único acadêmico
que militou na atividade clandestina ilegal.
Após a Liberação, os resistentes mais exaltados chegaram a
cogitar da dissolução da casa de Richelieu. Fiel à sua política de
conciliação, o General de Gaulle contemporizou, acalmando os
ânimos, mas sugeriu à Academia a eleição de escritores ligados à
Resistência, para seus quadros. As promessas tranqüilizadoras
foram bem recebidas, mas as propostas inovadoras caíram no
vazio.
36
Algumas sanções, entretanto, foram aplicadas sem que a
Academia pudesse impedi-las: quatro colaboracionistas,
condenados à degradação nacional, foram excluídos
automaticamente: Abel Bonnard, Ministro da Educação Nacional
em 1942; Abel Hermant, escritor pedante e superficial; Charles
Maurras e Philippe Pétain. A reação da Academia foi passiva e
eloqüente: os lugares dos dois primeiros excluídos foram
preenchidos, mas até a morte de Maurras (1952) e de Pétain
(1951) suas cadeiras permaneceram desocupadas.
A Academia Francesa não mudou após a depuração:
continuou um reduto de antigos colaboracionistas e partidários
de Philippe Pétain. O que talvez esclareça e justifique a recusa de
Georges Bernanos em aceitar a eleição que lhe foi proposta, por
intermédio de François Mauriac, em 1946.
Ao rejeitar, formalmente, a honraria, em carta endereçada a
François Mauriac, em 27 de março do mesmo ano, Bernanos
exprime-se em tom cortês e deferente (CORR II: 627). Os
verdadeiros sentimentos, entretanto, revelam-se em sua
correspondência, quando declara não desejar conviver com os
acadêmicos que lhe inspiram aversão, sobretudo, com o "velho
impostor" Paul Claudel, eleito em 5 de abril de 1946.
Em tom mordaz, Bernanos fustiga a vaidade, denuncia o
que considera ridículo e defende sua liberdade de opinião: "Je ne
37
voudrais empêcher personne de s’ habiller d’une manière ridicule, mais il y a
des vérités qu’ on ne saurait dire, ni même écrire, en habit de carnaval, c’ est-
à-dire en jouant un personnage” (CORR II: 642).
À semelhança da Academia Francesa, a Igreja Católica, na
França, constituía um verdadeiro monumento de
conservadorismo e apoiara o governo de Vichy. Houve exceções,
entretanto, de simples católicos que honraram a Igreja, mas a
hierarquia - bispos e cardeais -, em sua maioria, era partidária de
Pétain.
A reação contra o colaboracionismo da Igreja foi pautada
por diplomacia, prudência e firmeza. O cardeal Suhard, adepto de
Pétain, foi impedido de celebrar a missa em Notre-Dame de Paris
e recebeu um tratamento glacial dos representantes gaullistas. A
morte do cardeal Baudrillart, colaborador declarado, poupou-lhe
a vergonha de comparecer ao banco dos réus. O próprio
representante do Papa, o Núncio apostólico, perdeu o cargo.
Sucedeu-lhe Monsenhor Roncalli, o futuro João XXIII, que se
viu obrigado a resolver o problema de transferir de sede os bispos
considerados indesejáveis, por terem colaborado com Vichy e
com os alemães. As pesquisas sobre o tema não são exatas. O
governo teria pedido por volta de trinta ou trinta e cinco
transferências e obteve apenas a revogação de sete bispos, em
acordo concluído em 1945. As negociações transcorreram com o
38
mínimo de publicidade, o que evidencia a cautela com que as
partes trataram um problema envolvendo a Igreja e o Estado
(Novick, 1985: 210-13).
A depuração exerceu-se, assim, de forma desigual e
aleatória. Os altos funcionários, os grandes empresários, os
militares, os magistrados e os artistas de teatro e cinema recebiam
penas simbólicas ou permaneciam em liberdade. Georges
Bernanos denuncia: “On fusille tous les jours des miliciens de vingt-cinq
ans, mais [...] les amiraux, les généraux, et les magistrats sont tabous”
(CORR II: 576).
Contrariamente, os escritores e, em particular, os jornalistas
eram julgados e condenados à morte. Robert Brasillac, jornalista
de Je suis partout, órgão colaboracionista e anti-semita, foi fuzilado
em 1945, malgrado uma campanha para obter uma comutação de
sua pena. Pierre Drieu La Rochelle, diretor da Nouvelle Revue
Francaise (NRF), germanófilo declarado, suicida-se. Louis-
Ferdinand Céline, anti-semita notório e autor de panfletos em
favor dos alemães, foge e refugia-se na Dinamarca.
Ao lado desses colaboracionistas eminentes, obscuros
jornalistas que não mereciam a pena máxima também eram
condenados à morte, constatava Albert Camus, desiludido e
enojado, depois de acompanhar durante dois meses e meio o
desenrolar dos processos na Corte de Justiça de Paris.
39
Camus e Mauriac, durante o outono e o inverno de 1944-
1945, debateram calorosamente o tema da depuração. Camus,
editorialista do jornal Combat, rejeitava, ao mesmo tempo, o ódio
e o perdão. O ódio, porque era um sentimento que desconhecia e
que lhe provocava repulsa, e o perdão, porque o considerava um
insulto aos companheiros, aos camaradas mortos durante o
período de clandestinidade e aos princípios por que tinham
lutado.
Mauriac, no Figaro, fez-se o apóstolo da reconciliação e do
perdão, e era denominado "Saint François des Assises". Esta
referência constitui um jogo de palavras intraduzível em
português: "Assise", cidade onde morou São Francisco, o santo do
perdão e do desprendimento; "Cour d'Assises" designa os tribunais
criminais na França. Com a autoridade de quem se comprometeu
na luta clandestina pela Resistência, mas com a humildade de
quem em um primeiro momento elogiara Pétain, Mauriac
concluía seu texto semanal com uma frase do Evangelho: ”Quem
de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” ( Jo. 8, 7
).
Camus cedeu a Mauriac, concluindo, entretanto, que, se a
caridade de seu opositor era admirável, sua concepção de
cidadania era deplorável. Anos mais tarde, em 1950, o autor de
L’homme révolté confessava que Mauriac tinha razão.
40
O autor de L’étranger faz uma importante distinção entre os
colaboradores, que aceitaram as honrarias e as responsabilidades
durante a ocupação, e o povo em geral, preocupado em
sobreviver durante um período de escassez, de racionamento de
víveres, filas intermináveis e câmbio negro (Rousso, 1992).
Pretendi, nesse breve histórico da questão, recortar um
momento de perturbação, violência, coragem, intranqüilidade e,
sobretudo, de insatisfação e não traçar, exaustivamente, o
processo de depuração que se revelou, a longo prazo, uma utopia.
Abstive-me de analisar o processo de limpeza nos
movimentos sindicais, assim como a radicalização relativa às
mulheres, principalmente, às prostitutas; apesar de sua relevância,
por serem excessivamente complexos e fugirem, de certo modo,
ao tema proposto.
Concentrei, portanto, meu estudo em dois blocos que
receberam tratamento diverso do governo provisório: a Academia
Francesa e a Igreja Católica, poderosas instituições, objetos de
uma depuração mitigada, e os intelectuais, alvo fácil de
investigações e violentas represálias.
No meio intelectual, há que se destacar os escritores e,
principalmente, os jornalistas considerados os mais responsáveis,
por terem influenciado, diretamente, a opinião pública.
41
A severidade com que foram julgados os jornalistas
provocou um sentimento geral de que eles estariam
representando o papel de bode expiatório, em uma sociedade que
se sentia culpada e principalmente não distinguia, de modo claro,
os culpados dos inocentes.
Procurou-se, entretanto, discernir o diferente grau de
culpabilidade dentre os acusados. Alguns foram julgados pelo
tribunal criminal e condenados à morte. Outros sofreram
diferentes restrições, abaixo esclarecidas.
No que tange aos escritores, houve uma depuração oficial e
outras oficiosas - as famosas "listas negras" que condenavam ao
ostracismo aqueles que teriam colaborado e com os quais os
membros do Comité National des Écrivains (CNE) não desejavam
manter nenhum contato profissional.
O resultado prático dessas listas era nada publicar do
escritor renegado, não mencioná-lo e, principalmente, boicotar os
jornais que, porventura, ousassem publicar seus textos. O
silêncio, o pior dos castigos, instalou-se em volta dos que o
próprio CNE reconhecia desigualmente culpados.
O valor das listas de exclusão, com o passar do tempo,
tornou-se meramente simbólico e perdeu sua importância quando
os grandes escritores não comunistas - Georges Duhamel, Jean
Paulhan, François Mauriac e Jean Schlumberger - afastaram-se do
42
CNE, a partir de 1946, motivados pela utilização indiscriminada
da lista negra e, sobretudo, por discordar de sua orientação
marxista.
A depuração não conseguiu atingir o objetivo proposto:
uma transformação total da sociedade francesa. Contudo,
modificações houve: mudanças sociais e políticas que
contribuíram para uma renovação parcial, mas profunda, na
literatura francesa. Renovação motivada pela morte de alguns
escritores - Romain Rolland, Jean Giraudoux ou pela perda de
credibilidade, decorrente de ligações comprometedoras com
Vichy - Charles Maurras, Louis-Ferdinand Céline, Henry de
Montherlant.
Albert Camus, Jean Bruller Vercors, Jean-Paul Sartre, outra
geração de escritores, marcada pela Resistência, ocupará,
doravante, a cena literária, sem conseguir, entretanto, “forçar as
muralhas da Academia francesa, monumento da vida intelectual francesa”
(Novick,1985: 210).
Dialogues foi um texto escrito, no pós-guerra, em um
momento de conflitos históricos. O texto, entretanto, está
vinculado, não à organização da resistência armada, mas à luta,
também clandestina, que alguns escritores sustentaram, com as
armas de que dispunham, para resistir, através das idéias, ao
inimigo.
43
Esta luta desenvolveu-se, sobretudo, no teatro trágico,
lugar das grandes decisões, onde as contradições inerentes ao
homem são expostas, em que se dá a catarse, a liberação, a
purgação da angústia humana (Leenhardt, 1995).
O teatro trágico ocupa um lugar de destaque na vida
intelectual francesa durante a Ocupação e no pós-guerra,
enquanto o gênero romanesco apresenta certa estagnação.
A relativa pobreza da produção romanesca, durante o
decênio 1940-1950, também pode ser explicada por fatores
externos como a presença da censura, o fechamento das
fronteiras e a escassez de papel. A tiragem era limitada a 5000
exemplares o que diminuía a difusão das obras (de Beer, 1963:
266). Tais motivos contribuíram para o florescimento do teatro
que oferecia um campo renovado e mais acessível à literatura.
Se, após a guerra, Aragon e Giono continuam sua obra,
François Mauriac dedica-se ao jornalismo; Martin du Gard não
publica os romances que escreve e Malraux já renunciara à obra
romanesca, após a publicação de L’Espoir, em 1937. Bernanos
sacrifica sua obra romanesca para dedicar-se aos Écrits de Combat,
sua obra polêmica, considerada prioritária naquele momento.
Graças à descentralização da cultura, um público maior e
mais variado tem acesso às grandes peças, antes restritas a Paris.
Data de 1947 a criação do festival de Avignon, uma data essencial
44
na dramaturgia francesa do século XX, em que se destacam a
atuação de Jean Vilar e a preocupação do testemunho, a presença
atuante de Camus e de Jacques Copeau.
Parece-me, entretanto, que os motivos da escolha do teatro
como meio de expressão das tensões de um momento
conturbado residem no próprio teatro.
No período da Ocupação, as reuniões foram,
primeiramente, proibidas e, posteriormente, desaconselhadas, por
prudência. As representações teatrais permitiam o agrupamento
de pessoas, com o álibi do espetáculo público. E o teatro
constituía, muitas vezes, um lugar de resistência onde aconteciam
verdadeiras celebrações, congraçando público, atores, diretores e
todos os que contribuíam para a "festa do instante" (Bondy, 1996).
O momento único e mágico da representação teatral jamais pode
ser repetido, mesmo com o texto inalterado, os mesmos artistas,
o mesmo espaço físico e, se possível, o mesmo público. Trata-se
de um instante fugaz e único.
Razões de outra ordem também contribuíram para o auge
do teatro nesta época: o espaço físico era um abrigo, se não
inviolável, pelo menos seguro. Além disso, era aquecido, no rigor
do inverno, quando a calefação era privilégio de uma minoria.
Mas parece que o grau calorífíco não era o único elemento
em jogo e o teatro não monopolizava o interesse do público. As
45
bibliotecas e os cinemas estavam sempre repletos, as salas de
espetáculo lotadas; o que cada um procurava era evadir-se e
esquecer, durante algumas horas, a dureza daqueles tempos.
Assim, o teatro foi, durante a Ocupação, e continuou a ser
no pós-guerra, um meio de comunicação, por excelência, entre os
que se questionavam a si próprios e às suas certezas e
transformavam-nas em indagações.
No decênio 1940-1950, as peças de Albert Camus e de
Jean-Paul Sartre constituem novidade no panorama teatral da
época. Tradicionais quanto à forma, revelam-se provocadoras
quanto à visão do mundo que propõem.
Sem pretender repetir os inúmeros paralelos estabelecidos
entre Camus e Sartre, assinalo o papel de maître à penser - mentor
intelectual - desempenhado pelos dois escritores e a visão do
mundo que exprimem, através do teatro, no pós-guerra.
A percepção aguda do absurdo do mundo e a revolta, para
Camus; a responsabilidade do indivíduo colocado em situações-
limite, para Sartre; negação do trágico, para o autor de L’État de
siège (1948); a condenação à liberdade, para o autor de Les Mouches
(1943), seriam estes os conceitos predominantes, o essencial das
preocupações que os perseguem, partilhadas com o público,
através do teatro, utilizado como uma tribuna.
46
Camus, resistente de primeira data, lutara, como redator-
chefe, à frente do jornal Combat durante os primeiros anos do
pós-guerra. À semelhança de Mauriac, suas obras, publicadas
durante os "anos negros", respectivamente, o romance L’Étranger
(1942), o ensaio Le Mythe de Sisyphe (1942) e a peça de teatro Le
Malentendu (1944) não parecem revelar nenhuma relação direta
com a conjuntura do momento político da época. Todavia,
necessário se faz lembrar que uma peça menos conhecida do
grande público, Caligula, na qual o autor evoca o clima de terror, a
loucura e o crime, foi escrita em 1938, publicada em 1944 e
representada em 1945.
Sartre combateu como escritor e não como resistente ativo
na luta clandestina. A representação de Les Mouches (1943), Huis
clos (1944) e Les Mains sales (1948) marcou época. A influência
exercida pelo autor de La Nausée é por demais conhecida. As
gerações que se sucederam, do pós-guerra até sua morte em 1980,
revelam, de um modo ou de outro, marcas de sua influência,
exercida nos mais diferentes setores: filosofia, política e literatura.
Enquanto Camus e Sartre atingiam o grande público de
esquerda, Henry de Montherlant impunha-se a um público mais
conservador. Seu percurso intelectual caracteriza-se pela
ambigüidade ideológica. Em 1945, Montherlant é uns dos poucos
47
escritores de renome, punidos com a mais grave sanção do CNE:
interdição de publicar durante dois anos.
A reputação de colaboracionista justificava-se por seus
escritos, durante a ocupação, publicados em órgãos tais como:
Cahiers franco-allemands (1940), La Gerbe (1941-1942), Comoedia
(1941). Esta revista, de jogo colaboracionista sutil, conseguiu
fazer com que grandes nomes da intelectualidade francesa
participassem de suas publicações: Giono, Sartre, Valéry, Copeau,
Dullin, Barrault. E também, ainda em 1941, quando o vazio se
fazia em torno de Drieu La Rochelle, Montherlant escreve artigos
para a NRF. Além dos artigos em jornais e revistas
colaboracionistas ou simpatizantes, Montherlant publica, em
1941, Le Solstice de juin, obra menor, mas recebida pelos leitores
como uma apologia da Alemanha, uma celebração ambígüa do
nazismo. Le Solstice de juin merece importância porque modificou,
por completo, o relacionamento do autor com o público e
justificou, aos olhos da maioria, sua presença na lista negra dos
condenados ao ostracismo intelectual, pela depuração.
O caso Montherlant não pode ser reduzido a simples
colaboração pró-Alemanha. Em 1942, o autor de Solstice de juin
escreveu La Reine morte representada com grande sucesso pela
Comédie Française. A partir daí, cessa de escrever romances, a
48
exemplo de outros grandes nomes da literatura francesa, e dedica-
se ao teatro, afirmando-se como dramaturgo.
La Reine morte, com base em fato histórico português do
século XIV, e no drama espanhol do século XVII, Régner après la
mort, de autoria de Luis Velez de Guevara, narra o assassinato de
Inês de Castro, a esposa secreta do herdeiro do trono, por
Alfonso V. Ao tornar-se rei, Pedro coroa o cadáver de Inês,
fazendo-a rainha.
Esse acontecimento inspirou inúmeros poetas e
dramaturgos, entre eles, Camões que imortalizou, em Os Lusíadas,
o trágico episódio.
Montherlant enfatiza, sobretudo, a personalidade
ambivalente do rei, atraído por Inês de Castro, mas decidido a
sacrificá-la, por razões políticas. O jogo do poder, mesclado de
sadismo, revela-se nessa peça que foi recebida, por determinado
público, como metáfora da Resistência francesa.
Jean Pierre Azéma observa, entretanto, que apenas uma
única réplica: “En prison se trouve la fleur du royaume” (Montherlant,
La reine morte, 1958), aplaudida pelo público, não permite que se
possa considerar o autor de Solstice de juin um jacobino, um
resistente (Azéma, 1979:153).
49
Se se tratasse de um caso isolado na obra de Montherlant,
La Reine morte poderia ser considerada uma obra em que há
alusões patrióticas, ou que o público quis julgar como tais.
Em 1953, o dramaturgo publica Port-Royal, o drama da
injustiça, no qual expõe as perseguições infligidas por Luis XIV às
religiosas da abadia de Port-Royal-des-Champs; perseguições que
culminaram com sua dispersão em diferentes conventos e a
destruição do próprio edifício onde florescera o jansenismo.
O rigor, a procura do absoluto e, principalmente, a recusa
dos valores mundanos tornaram o jansenismo um elemento
contestador da razão de Estado e do argumento da autoridade
sobre os quais se fundava o absolutismo. Por esses motivos, entre
outros, Port-Royal, no dizer de Louis Cognet, insere-se no vasto
movimento sociológico que provocaria o desmoronamento do
Antigo Regime. E não foi sem fundamento que certos meios
jansenistas julgaram a execução de Luís XVI, em 21 de janeiro de
1793, uma vingança póstuma do monastério destruído (Cognet,
1961: 142-45).
A gênese da obra merece ser considerada. Em 1929,
Montherlant, ao ler Port-Royal de Sainte Beuve decide escrever
uma peça de teatro inspirada em um episódio desse movimento
religioso e político que deixou marcas indeléveis na História da
França. Durante dois anos, de 1940 a 1942, trabalhou em uma
50
primeira peça que, por prudência, permaneceu inédita. Em 1948,
ao relê-la, julga-a insatisfatória e arquiva-a.
Uma nova leitura, em 1953, confirma o julgamento
anterior, e Montherlant resolve escrever uma segunda peça,
inteiramente diferente da primeira, inspirada em outro episódio
da história da controvertida abadia.
Este breve histórico evidencia a importância do tema para
o autor que declarou ser o jansenismo sua verdadeira família
espiritual: “Cette famille était et ne cessera jamais d’être la mienne”
(Montherlant, 1958: 664).
Considerado por muitos de seus contemporâneos um
colaborador ideológico, Montherlant escreveu, entretanto, La
Reine Morte e onze anos mais tarde, Port-Royal, que pode ser
recebida como a tragédia da consciência livre diante da
prepotência da autoridade absoluta.
Os críticos julgam-no um escritor de múltiplas máscaras ou
de inúmeras facetas. E o próprio Montherlant parece confirmar
sua ambigüidade e complexidade ao atribuir a Soeur Angélique de
Saint Jean, importante personagem de Port-Royal, uma declaração
que poderia endossar: “Ne cherchez pas à percer ces choses. Il y a de tout
en certaines âmes. Et parfois dans le même moment” (Montherlant, 1958:
1047) (Grifos meus).
51
Julguei importante enfatizar este aspecto da obra de
Montherlant porque Port-Royal foi representada, na cena
parisiense, aproximadamente, durante o mesmo período em que
Dialogues des Carmélites de Bernanos constituía o maior sucesso da
temporada teatral européia.
E não era por acaso que as duas peças tratavam de um fato
histórico francês, cujas personagens eram mulheres indefesas,
religiosas, vivendo em comunidade, vítimas de um poder
absoluto e arbitrário.
Port-Royal também faz parte do repertório da Comédie
Française e sempre é representada com sucesso. Dialogues foi
traduzida para várias línguas e as sucessivas montagens alcançam
grande êxito. No Brasil, foi representada diversas vezes. Destaco
a temporada, no teatro do Copacabana Palace, em 1955, pela
companhia de Henriette Morineau. Maria Clara Machado
representava Blanche de la Force e Madame Morineau vivenciou
Madame Lidoine, a segunda Priora. Se mais representações não
há, a causa reside, entre outras, nos inúmeros problemas de
direitos autorais que uma montagem acarretaria. Bernanos deixou
muitos herdeiros e há processos ainda em curso.
Dialogues, julgada por muitos críticos a melhor peça teatral
do pós-guerra, foi elaborada em plena guerra frio, conflito
eminentemente intelectual, compreendido entre 1947-1956.
52
A noção de guerra fria assume, na França, conotações de
uma verdadeira luta com toda a carga semântica de agressividade
nas relações interpessoais que o termo acarreta e de recusa em
admitir não somente a concessão, a negociação, mas também a
neutralidade e a cômoda posição de meio termo.
Após a efêmera fraternidade vivida na época da Resistência,
os intelectuais dividiam-se em campos opostos. Não ser
comunista equivalia a ser anticomunista e o anticomunista, no
julgamento exaltado da época, correspondia a um fascista.
A guerra fria remete a um passado imediato: ao processo de
depuração posto em prática após a Liberação de Paris pelos
Aliados e aos anos negros da ocupação nazista.
Esses momentos caraterizaram-se por uma espécie de
terror: a imposição, pela força, do que se considerava um direito
ou uma verdade. E, em se tratando da depuração e da guerra fria,
o terror assume o que poderia ser considerado uma manifestação
do jacobinismo sempre presente nas guerras franco-francesas
depois da Revolução de 1789.
O terror assumiu diferentes formas nos diversos
momentos: o ocupante alemão tentou eliminar os judeus, sufocar
a Resistência e provocou sentimentos de horror, medo e
vergonha naqueles que "não cantaram" para o inimigo. O acerto
de contas do pós-guerra fez milhares de vítimas, em uma
53
tentativa de limpeza que se assemelhava ao Terror de 1793. E a
esquerda, predominante na guerra fria, não admitia a menor
possibilidade de um intelectual não pertencer ao partido
comunista, desencadeando exclusões que equivaliam à morte em
vida.
O último texto de Georges Bernanos trata de um fato
histórico, ocorrido no século XVIII durante o Terror da
Revolução Francesa. Como já referido, o autor fora solicitado a
escrever os diálogos para um filme baseado em uma novela de
Gertrud von le Fort. Estas circunstâncias não invalidam o fato de
que o autor se apaixonou pela tarefa e dela fez não só uma última
meditação sobre a vida e a morte, como seus críticos assinalaram,
mas também uma reflexão sobre o momento histórico em que
vivia.
A contemporaneidade, a ocupação alemã, a depuração e a
guerra fria formam o contexto implícito de Dialogues, que se
inscreve na data de publicação do texto.
No dizer de Derrida, uma data é sempre uma metonímia e
designa a parte de um acontecimento ou de uma seqüência de
acontecimentos para lembrar o seu todo (Derrida, 1986: 41). E
também a referência à publicação da obra em 1949, sabendo-se
que fora escrita em 1947-1948, equivale, ao todo, em
determinado contexto.
54
O contexto, implícito, mas atuante, articula-se com o
período do Terror no qual a ação da peça se desenrola. Os dois
momentos refletem-se como em um processo especular - o
Terror de 1792 -1793 é revisitado à luz da contemporaneidade e
esta desvela as constantes que a ligam à Revolução Francesa,
considerada por muitos historiadores como a inspiradora de
todas as revoluções modernas (Sédillot, 1990: 272).
Assim, a inscrição da História, em Dialogues, realiza-se
através do desenrolar da Revolução Francesa.
A História, manifestada sob o aspecto da Revolução
Francesa, é considerada la toile de fond - o pano de fundo - quando
se privilegia o drama espiritual, como julga Monique Gosselin. E
também pode ser considerada a structure portante de l’action - a
estrutura que sustenta a ação - no dizer de Pierrette Renard. A
noção de estrutura, evocando um termo de engenharia,
acrescenta uma importância essencial ao papel desempenhado
pela História em Dialogues.
Parece-me, entretanto, que, além de pano de fundo e
estrutura sustentadora, a Revolução é, sobretudo, uma
personagem discreta, porém implacável, que modifica a sociedade
e que teria uma função análoga ao Destino da tragédia clássica.
Importa, assim, ressaltar que o Terror de 1793, reescrito
por Bernanos, em 1948, acha-se contaminado, em Dialogues des
55
Carmélites, por outros terrores contemporâneos. O terror da
ocupação nazista, da depuração e da guerra fria já foram
mencionados, mas o terror da guerra civil espanhola, vivido em
Maiorca, também está presente de modo implícito mas atuante.
O autor de Les Grands Cimetières sous la lune associava os
dois terrores e rebate, de antemão, em 1938, uma possível
acusação de impropriedade de termos: “Si le mot de Terreur vous
semble trop gros, cherchez-en un autre, que m’ importe!” (EEC I: 430).
Embora o terror reinante em Maiorca diferisse,
aparentemente, do Terror de 1793, Bernanos discernia o
elemento comum que os identificava: o desrespeito à dignidade
do homem e a imposição pela força, da ordem e do que se
considerava o bem e a virtude. O terror vivido em Maiorca
articula-se, portanto, também, com o de 1793.
Bernanos, em 1939, no Brasil, ao evocar a guerra civil
espanhola, enfatiza a distinção entre os dois momentos da
Revolução Francesa: “Ce n’ est pas avec Hoche ou Kléber, c’ est avec
Fouquier-Tinville et Marat que vous avez trinqué” (CORR II: 257). O
general Louis Hoche e o general Jean-Baptiste Kléber
representam, para Bernanos, um certo equilíbrio e moderação no
âmbito do processo revolucionário, o que os ligaria aos ideais de
1789, em oposição a Marat e Fouquier-Tinville, nomes
emblemáticos do Terror desmedido.
56
O autor aludira em Les Grands Cimetières sous la lune a outros
terrores que pontuaram a História da França como a noite de São
Bartolomeu e a Comuna de Paris, em 1871, denunciando o
princípio que os impulsionava: a determinação de exterminar
todos aqueles que fossem julgados indesejáveis, em um processo
de limpeza (EEC I: 433). E indesejável é aquele que é diferente,
aquele que se isola de uma verdade global.
Cumpre ressaltar, porém, a modificação do ponto de vista
de Bernanos sobre a Revolução Francesa ao longo dos anos. Seu
interesse pelo Movimento de 1789 manifesta-se após a ruptura
com Maurras em 1932, época em que Bernanos descobre “a
mensagem universalista da Revolução, revista por Michelet e corrigida por
Péguy” (Kohlhauer, 1994: 105) e, sobretudo, os valores de uma
revolução até então depreciada.
Os textos são elucidativos: em 1931, ele escreve: “...cette
Révolution fameuse, celle de 1789, n’ a eu qu’ un résultat certain: la
consolidation des biens acquis grâce à quelques poignées d’ assignats,
frauduleusement” (EEC I: 102). Como observa Monique Gosselin, a
guerra civil espanhola provoca em Bernanos a descoberta de que
o Terror não era o apanágio dos teóricos de esquerda, êmulos de
Robespierre e que poderia emanar de homens e cristãos com
quem havia partilhado os mesmos valores.
57
A atitude tomada em relação ao Movimento de 1789
evolui e leva Bernanos a considerá-lo, em 1947, “..non pas l’
écroulement, mais l’ épanouissement de l’ancienne France, éperdue jusqu’au
délire de confiance en elle-même et de foi dans l’ homme” (EEC II:1273).
Bernanos não considera a Revolução Francesa como um
todo e opõe 1789 a 1793 dentro da tradição monarquista. Este
antagonismo permanece em Dialogues, seu último texto, no qual
estão presentes todos os terrores vivenciados ou que faziam parte
de sua cultura, como o horror à Revolução de 1793 (CORR II:
257), horror explicável por sua formação católica conservadora,
tradicional e, principalmente, por suas idéias monarquistas nunca
renegadas.
A conclusão a que o autor chegara, em 1938, poderia ser
repetida, após o decurso de um decênio: “Toutes les Terreurs se
ressemblent, toutes se valent, vous ne me ferez pas distinguer entre elles, j’ai
vu trop de choses maintenant, je connais trop bien les hommes, je suis trop
vieux” (EEC I: 433).
A repetição do advérbio trop - em excesso - indica o
cansaço e o desencanto do autor, já bastante doente, e exprime
sua angústia e solidão moral.
Assinalada a articulação dos diferentes terrores, uma
pergunta impõe-se: tratar-se-ia de uma repetição ou de um
paralelismo que deve ser questionado?
58
Repetição e paralelismo não são sinônimos. Repetir
significa que um fato ou ação torna a acontecer e paralelismo
indica uma progressão semelhante de coisas comparáveis ou que
acontecem da mesma maneira.
No contexto histórico referido, trata-se de uma repetição e
de um paralelismo: o Terror de 1793 reaparece na guerra civil
espanhola, durante a ocupação nazista, na depuração e na guerra
fria, de modo análogo, mas diverso. Os diferentes terrores
articulam-se e podem ser lidos como espelho e refração. Trata-se,
então, da concepção cíclica do tempo, da volta periódica de
certos acontecimentos e de personalidades, do retorno eterno?
A novela de Gertrud von le Fort parece autorizar essa
leitura, porquanto a autora admite a teoria dos ciclos cósmicos,
do Caos: “O caos, que brame eternamente no mais profundo dos elementos,
rompeu a crosta aparentemente firme dos hábitos” (le Fort, 1937: 15).
As concepções históricas da romancista alemã e do autor
de La France contre les robots, entretanto, diferem. Para Bernanos, a
História existe em si e não consiste em repetições inevitáveis,
embora existentes. A fé, uma nova categoria introduzida no
contexto, permite, no dizer de Eliade, uma liberdade criadora por
excelência:
Ela constitui uma nova fórmula de colaboração do homem com a criação... Somente esta espécie de liberdade, (...) fundamentada, garantida e apoiada por
59
Deus é capaz de defender o homem moderno contra o terror da história... [...] Qualquer outro conceito de liberdade moderna, independentemente da satisfação que possa proporcionar a quem a possua, é impotente para justificar a história. E a não justificação eqüivale ao terror da história. (Eliade, 1969: 180)
Para Bernanos, cristão, a História existe como tal e não
como mera repetição. O passado permite-lhe melhor
compreender seu próprio tempo.
Sua visão histórica orienta-se, não para o passado, mas para o futuro, na construção de uma utopia. O termo Utopia empregado não no sentido vulgarizado de projeto irrealizável, quimera, ou fantasia, mas na acepção de construir, de refazer um mundo para os homens livres" (Kohlhauer, 1988: 113-39).
Em conferência pronunciada, em 1946, em Genebra,
intitulada: "L’esprit européen et le monde des machines", Bernanos
repete como um refrão: “Le monde ne sera sauvé que par les hommes
libres. Il faut faire un monde pour les hommes libres” (EEC II: 1370).
Nesse contexto histórico, no final da primeira metade de
um século balisado, não pelos períodos de paz, mas por duas
guerras mundiais, Bernanos reflete sobre os regimes totalitários,
sobre a prepotência da força e medita sobre o destino das
dezesseis carmelitas de Compiègne, vítimas de um regime de
exceção.
60
Como ser livre em um mundo dominado pela máquina? A
vida seria mais importante do que a honra? O sentimento de
honra é mais importante do que a vida? O que ameaça o homem?
Como reagir diante da força? E, principalmente, como conciliar o
impasse diante do poder arbitrário e a promessa de libertação, de
participar “da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rom. 8,21) ?.
A sinceridade das indagações explicaria, talvez, por que
esta peça comove mesmo aqueles que não partilham sua fé e nela
encontram o eco de suas preocupações.
Dialogues não é apenas um belo texto recitado por religiosas
contemplativas. É também uma peça sobre o medo, a vergonha
de sentir-se indigna, o drama da exclusão, a procura de um lugar
no mundo e um debate interno sobre as mudanças
revolucionárias que transpõem as paredes de um Carmelo.
Todas estas questões serão discutidas, na forma de
diálogos, à luz da fé que norteava Bernanos.
61
INTERTEXTO: FIGURAS
Les grandes abstractions sont mes amies. Bernanos
Após ter estudado o contexto histórico em que foi escrita a
peça Dialogues e antes de analisar o texto propriamente dito,
considero importante enfocar algumas figuras que funcionam
como intertexto da ação: a cidade de Compiègne, a ordem do
Carmelo, o convento do Carmelo na França em revolução.
Poder-se-ia caracterizá-las como intertextos, por vê-las não como
meros cenários ou pano de fundo. Classifico também a
Revolução Francesa como intertexto porque a considero, na
peça, não um momento histórico congelado no tempo, mas um
conjunto de discursos, com os quais dialoga o texto de Bernanos.
Primeiramente, enfocarei, nessa perspectiva, a cena do
mundo, o espaço temporal, para em seguida propor uma leitura
de Dialogues.
62
Compiègne - um espaço de violência
“Très fidèle au roi et au règne” - divisa da cidade de Compiègne, antes da Revolução Francesa.
O núcleo principal da ação de Dialogues se desenrola, como
referi, durante a Revolução Francesa, de 1789 a 1794, do início
do processo revolucionário ao ápice do Terror, no âmbito do
Carmelo de Compiègne.
A Revolução Francesa inaugurou uma nova era e, ao abolir
o Antigo Regime, pretendia suprimir os privilégios garantidos à
nobreza e eliminar as injustiças sociais. Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, complexo e utópico ideário revolucionário que, no
dizer de Celina Maria Moreira de Mello, funciona compactado
apenas como slogan, e, se analisado, exibe contradições entre a
idéia de Liberdade vinculada ao liberalismo, a de Igualdade,
inspirada no republicanismo e o ideal de Fraternidade,
influenciado pelo socialismo (Mello, 1994).
Apesar das contradições, a Revolução Francesa mudou a
História do mundo. A ruptura com o passado, a instauração no
poder político de uma ideologia burguesa e sobretudo a
possibilidade de uma certa mobilidade social marcam este
período de mudanças, de transição e de crise.
63
Neste contexto, instaura-se o Terror, uma tentativa de
impor a todos a virtude através da força e da violência. A
violência constitui uma resposta ao medo, sentimento inaceitável
para muitos e que só pode ser vencido e controlado pela
aceitação de sua existência. E o medo, no dizer de René Girard,
em La violence et le sacré (1972), uma vez desencadeado e
exprimindo-se pela violência, requer "bodes expiatórios" para ser
apaziguado.
Durante o período do Terror da Revolução Francesa, o
ódio dirigia-se contra os representantes da nobreza e do clero,
classes dominantes no Antigo Regime, porque o povo temia que
essas classes recuperassem o poder.
Quando se fala do Terror, há que se distinguir o Terror
reinante em Paris, comandado por Robespierre e seus partidários,
e o Terror existente no resto da França, desigual e dependente
daqueles que o representavam. Assim, em algumas regiões,
salvavam-se as aparências, empregava-se uma terminologia
revolucionária, mas, na realidade, os extremismos eram evitados.
Vivia-se no compromis - um meio-termo.
A cidade de Compiègne de 1789 a 1794 é a cena principal
dos acontecimentos do texto em estudo. A escolha da data em
relação à Revolução Francesa nunca é anódina e reflete uma
escolha de caráter ideológico. Há os que datam o processo
64
revolucionário a partir de 1789, consideram-no um bloco indiviso
e não fazem distinção entre 1789, início do processo
revolucionário, o Terror de 1792, marcado pelo massacre dos
padres refratários, os que se recusaram a jurar fidelidade à Nação,
e o Grande Terror de 1793-1794. Há também os que aceitam os
ideais de 1789 e condenam a violência do Grande Terror.
Essa distinção permite a concordância com os ideais de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade e o repúdio à Revolução de
1793.
Bernanos, discípulo de Péguy, admira os ideais da
Revolução de 1789,.porém confessa ter sido educado no horror
da Revolução de 1793: "J'ai été élevé dans l'horreur de la Révolution de
1793, et de ce régime des suspects dont Robespierre nous a laissé l'effrayante
formule: Il n'y a pas d'innocents parmi les aristocrates" (CORR: 257).
Ao escrever os diálogos, para o roteiro extraído da novela
de Gertrud von le Fort, Bernanos, ao contrário da romancista
alemã, menciona, rigorosamente, as datas e os espaços no início
da ação, propondo, como observa Pierrette Renard, um nível
suplementar de significação. E, no final, não mais indica as datas
com precisão, compacta os acontecimentos, visando um maior
impacto dramático, enfatizando o Terror dominante.
O início da ação é datado de 1789 e o fato histórico refere-
se à execução de dezesseis carmelitas, em Compiègne em 1794.
65
Cidade muito antiga que vem da ocupação romana, Compiègne,
está situada às margens do rio Oise, a cem kilometros de Paris,
fazendo parte do Departamento de Oise.
Sua fundação é atribuída, sem provas, a Júlio César. O mais
antigo documento onde consta o nome de Compiègne (do latim
compendium) é datado do século VI (diplôme de Childebert I, 557).
Além de ser uma das residências preferidas dos reis da França,
esta cidade foi sempre um teatro de guerras, de lutas e de
decisões históricas.
Marcada por importantes acontecimentos políticos e
violentas paixões que tiveram como cena sua floresta, seus
castelos e suas igrejas, a cidade de Compiègne foi sempre um
espaço de violência.
Em 1430, Joana d’Arc foi aprisionada por seus inimigos às
portas da cidade. Uma história controvertida e até hoje mal
explicada. Foi no castelo de Compiègne que Luis XV recebeu a
arquiduquesa Maria-Antonieta, noiva do futuro Luis XVI. Em
1810, Napoleão Bonaparte restaurou o castelo para recepcionar
Maria-Luiza d’Áustria.
O Armistício de 11 de novembro de 1918, quando a França
venceu a Alemanha, foi assinado na floresta de Compiègne, assim
como o vergonhoso Armistício de 1940 em que o governo de
Vichy se rendeu ao inimigo.
66
Alvo de bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial,
Compiègne foi sede de um campo de prisioneiros políticos.
A sociedade de Compiègne, antes da Revolução Francesa,
podia ser caracterizada pela moderação, pelo compromis, pelo
meio-termo. E o meio-termo permite soluções variadas e
aleatórias.
Essa cidade, nostálgica das estadas lucrativas do rei e de sua
corte, amargava, nos idos de 1790, uma recente derrota: a perda
do centro administrativo que coube à cidade de Beauvais. Havia
um certo acordo político, em aceitar o conjunto das reformas
impostas pela Revolução, sobretudo as referentes à Igreja.
Nesta sociedade notava-se o peso da influência de um
grande número de padres conformistas, os que haviam jurado
fidelidade à Constituição Civil do Clero, em janeiro de 1791. O
que se procurava, sobretudo, era salvaguardar o equilíbrio interno
da sociedade e, para isso, todos os acordos políticos necessários
eram realizados.
Importa considerar que a Revolução foi uma época
favorável à ascensão de categorias sociais durante muito tempo
discriminadas. Entre estas destacava-se o baixo clero, constituído
de párocos e vigários, plebeus, mal remunerados e descontentes
com o alto clero. Os nobres, que formavam o alto clero, eram
beneficiários do dízimo e ocupavam importantes e rendosos
67
cargos: eram bispos, cônegos, vigários episcopais. Essa dicotomia
do clero contribuiu para a queda do Antigo Regime e para a
consolidação das conquistas revolucionárias.
Ora, durante os anos 1793-1794, com o advento do Grande
Terror, já não havia possibilidade de acomodação, de meio-
termo. Motivado, segundo alguns historiadores, sobretudo pela
revolta da Vendéia, pela presença dos inimigos nas fronteiras e
pelas dificuldades econômicas, o Terror se fez exigente. E as
autoridades e a sociedade de Compiègne foram acusadas de
"tiédeur républicaine", no jornal de Marat, pelo geógrafo Bussac. A
reação não se fez esperar: o autor da denúncia foi punido e
encarcerado e a associação jacobina Amis de la Constitution aderiu
de maneira oportunista à Montanha, o partido de Marat, Danton e
Robespierre.
A sociedade de Compiègne procurou demonstrar, em
seguida, um grande espírito revolucionário. O clube jacobino
chegou a propor que Compiègne fosse rebatizada de Marat-sur-
Oise. Além disto, as autoridades constituídas de Compiègne
apressaram-se em promulgar um edital descristianizador sobre a
regulamentação dos cemitérios, em 29 de outubro de 1793,
calcado no edital de 10 de outubro do mesmo ano. O zelo em
cumprir as determinações revolucionárias revelaria talvez um
receio de não se ser considerado suficientemente patriota.
68
A condenação e a execução das dezesseis carmelitas de
Compiègne, em 1794, estaria ligada ao desejo de fazer esquecer
que Compiègne ostentara outrora a divisa: "très fidèle au roi et au
règne"? Teria sido um meio de exorcisar um passado
comprometedor e provar a fidelidade à Revolução?
Havia, evidentemente, um ódio contra os conventos. Entre
outros motivos, devido à estreita união entre a aristocracia e a
Igreja católica, que constituía ao mesmo tempo uma instituição
religiosa e política. E os conventos eram considerados, em geral,
redutos da nobreza. Por isso foram perseguidos e sofreram as
medidas revolucionárias: proibição de emissão dos votos
religiosos - 28 de outubro de 1789, anulação dos votos religiosos
- 13 de fevereiro de 1790, supressão da vida monástica: confisco
dos bens e expulsão das religiosas de seus conventos - 18 de
agosto de 1792.
Por que as carmelitas foram guilhotinadas? As religiosas
teriam representado o papel de uma espécie de "bode
expiatório"? De acordo com a teoria de R. Girard, a escolha recai
sempre sobre uma vítima um pouco marginal em relação ao
grupo social: mulheres, estrangeiros, loucos, crianças. A vítima
devia ser indefesa e não provocar vingança.
As carmelitas de Compiègne representaram, em um
determinado momento da Revolução, a vítima ideal. Mulheres
69
que haviam renunciado ao mundo, exilando-se em um convento
e na maioria pertencendo à nobreza, representavam um bom alvo
à ira do povo que nelas via a síntese da opressão: religião e
nobreza. Fácil foi a Fouquier-Tinville, acusador público do
tribunal revolucionário e que também morreu guilhotinado,
acusá-las de atividades contra-revolucionárias e enviá-las ao
cadafalso.
70
A Ordem do Carmelo
Non, ma fille, nous ne sommes pas une entreprise de mortification ou des conservatoires de vertus, nous sommes des maisons de prière.
Bernanos
A palavra Carmelo serve para designar, ao mesmo tempo, a
Ordem do Carmelo (Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria,
designação oficial) e os conventos desta mesma Ordem.
Sua origem, pouco conhecida, remonta à 3ª cruzada (1189-
1192). Com Jerusalém libertada, os cruzados descobriram os
eremitas que viviam nas encostas áridas do Monte Carmelo
(Palestina), levando uma vida solitária, de oração silenciosa e
pessoal. No século XIII, por volta de 1220, Santo Alberto,
patriarca de Jerusalém, promulgou a Regra da Ordem que ainda
hoje é observada. Em torno de 1235, os carmelitas foram
expulsos pelos Sarracenos e espalharam-se pela Europa. Em
1254, São Luis, rei da França, trouxe de sua Cruzada seis
carmelitas que se estabeleceram em Paris.
Os carmelitas sofreram uma reforma no século XV,
quando foi criado o ramo feminino da Ordem, e outra no século
71
XVI, mais profunda, orientando o Carmelo para uma vida mais
austera e mais contemplativa. Santa Teresa d’Avila e São João da
Cruz foram os grandes reformadores da Ordem. No século
XVII, em 1604, foi fundado em Paris o primeiro Carmelo
Reformado.
O Carmelo desenvolveu-se extraordinariamente na França.
Diferentes classes sociais aí se encontravam, mas sempre
constituiu o reduto de uma aristocracia social e religiosa, que ali
procurava um lugar propício à busca dos valores eternos.
Esta ligação alienava a simpatia da alta burguesia, da noblesse
de robe, para com o Carmelo. O termo noblesse de robe (nobreza de
toga), empregado genericamente em sociologia, independe do
fato de ter havido ou não enobrecimento de um ou outro
indivíduo e aplica-se principalmente aos magistrados.
Cada grupo social possuía sua visão do mundo e essas se
revelavam antagônicas. A expressão "visão do mundo" é empregada
segundo a definição de Goldmann: "o conjunto de aspirações, de
sentimentos e de idéias que reune os membros de um grupo (freqüentemente de
uma classe social) e os opõe a outros grupos" (Goldmann, 1959: 26).
Assim, conta-se que no início do século XVII, Mère Marie-
Angélique Arnauld, a "abadessa-criança", filha de Antoine
Arnauld, advogado do Parlamento de Paris, no início de sua
conversão, ao cogitar procurar um convento mais austero, antes
72
de descobrir que sua verdadeira vocação era reformar Port-Royal,
afastou a possibilidade de escolher o Carmelo. Entre outras
razões, julgara ser este bem-visto demais na Corte e contar com
um número excessivo de religiosas da mais alta nobreza. (Cognet,
1950: 81).
Ainda no século XVII, em 1674, Louise-Françoise de la
Baume le Blanc, duquesa de La Vallière, abandonada por Luis
XIV, refugiou-se no Carmelo parisiense da Encarnação, rue Saint
Jacques, sob o nome de Louise de la Miséricorde. Escreveu
Réflexions sur la miséricorde de Dieu e, segundo as crônicas, viveu
uma vida exemplar.
No século XVIII, de maneira menos romanesca, Madame
Louise de France, filha de Luis XV e de Maria Leczinska, fez-se
carmelita no Carmelo de Saint-Denis. Inúmeros casos seguem o
seguinte esquema: ao ficar viúva, Madame X entrou no Carmelo,
onde levou uma vida edificante.
Há muito o que se dizer sobre a importância sócio-
econômica, política e sentimental dos conventos na França e
alhures. De modo geral, em um certo imaginário, os aspectos
sócio-econômicos foram minimizados e o sentimental
exacerbado, encontrando no roman noir sua forma privilegiada de
expressão. É importante observar que este gênero literário,
caracterizado pela hipérbole, que explora o sentimentalismo dos
73
leitores, abusando de um vocabulário onde predominam palavras
como mártir, sacrifício, renúncia, pecado, regeneração, condenação, luz e
trevas, conheceu seu apogeu entre 1780 e 1790, na França e na
Inglaterra, e era lido por um grande número de leitores.
O tema da religiosa a contragosto, assim como o da mulher
desiludida com o amor que se refugia num convento, revela-se
recorrente na literatura. Bastaria citar Mélanie ou la religieuse de la
Harpe (1770), drama inspirado no suicídio de uma jovem religiosa
ou La victime cloîtrée de Boutet de Monvel (1792, atenção à data) e
o célebre La Religieuse de Diderot (1796) com o qual Bernanos
evidentemente dialoga, sem esquecer On ne badine pas avec l’amour
de Alfred de Musset (1834), sempre representado com sucesso e
Port-Royal de Montherlant (1954).
A figura da religiosa atrairia talvez por dois motivos: trata-
se da virgem, santa, meiga, compassiva, da esposa de Cristo.
Desejá-la, seria provocar os céus; seduzí-la, um sacrilégio. A outra
explicação seria a fantasia masculina de encontrar a mulher-irmã.
Baudelaire, ao cantar a mulher amada, chamava-a freqüentemente
"ma soeur" (Baudelaire, 1917: 195). Tratar-se-ia da necessidade que
o homem tem de bondade, de ternura e de cumplicidade. A
irmã, soror, não é o simples feminino de irmão, frater; aqui existe
um componente a mais, de compaixão e de simpatia (no sentido
etimológico de sym + pathia: sofrer junto). Roland Barthes
74
qualifica esta forma de amor, cuja versão institucional seria o
casamento, como uma utopia “L'amour sororal... une utopie, un
lointain très ancien ou très futur" (Barthes, 1963: 17), utopia
recorrente nos que consideram a ternura uma qualidade
exclusivamente feminina.
De modo geral, a religiosa que exerce fascínio é a
contemplativa, a enclausurada. A monja velada significa o
interdito e por essa razão atrai as fantasias masculinas que lhe
atribuem beleza, juventude e fragilidade, personificando a vítima
indefesa. Bernanos ironiza esse cliché, vulgarizado por Diderot,
ao mostrar uma religiosa muito idosa, em vez da jovem
seqüestrada que os revolucionários esperavam encontrar, durante
a busca ordenada pelo Comité Revolucionário (DC: 1637).
Entretanto, as religiosas que exercem uma atividade
apostólica e que podem ser olhadas seriam consideradas seres
assexuados e designadas indistintamente como irmãs de caridade.
Prevalece a qualificação caridosa, eliminando outras possíveis
adjetivações. E não é por acaso que os franceses englobam todas
as religiosas apostólicas com a designação: Les bonnes soeurs, que
corresponde a Les bonnes femmes, expressões ligeiramente
pejorativas.
Os conventos representaram um papel muito importante
na França, durante o Antigo Regime, podendo ser um refúgio
75
para as viúvas, as mulheres muito pobres ou muito feias, uma
espécie de colégio interno onde as jovens aristocratas adquiriam
alguns conhecimentos e esperavam o casamento, ou mesmo um
lugar onde se procurava viver um ideal de perfeição, através da
renúncia e da oração.
No caso especfíco do Carmelo de Compiègne, há laços
que sempre o ligaram à família real. Ana d’Áustria, Luis XIV, o
Duque de Orléans, Madame de Maintenon, Maria Leczinska,
Luis XV e mesmo Maria- Antonieta e Luis XVI, cultivaram
grande amizade e admiração pelas filhas de Santa Teresa. Maria
Leczinska talvez tenha sido a que mais próxima esteve do
Carmelo. Profundamente católica, buscava, sempre que podia,
refúgio no Carmelo.
As crônicas carmelitanas relatam até que ponto as
religiosas eram observantes da Regra. A rainha Maria Leczinska
resolveu, um dia, dormir no Carmelo, por motivos pessoais.
Quando a Priora, que não tinha sido consultada, tomou
conhecimento do fato, forçou, delicadamente, a rainha a voltar
para o palácio, pois a Regra não permitia que mulheres casadas
dormissem no convento.
Estas relações entre o Carmelo e a nobreza, com o Antigo
Regime, mais do que evidentes e em nenhum momento
76
renegadas, constituíram um dos motivos da condenação da
comunidade de Compiègne em 1794.
Feitas estas considerações referentes ao intertexto:
Revolução Francesa, cidade de Compiègne, Ordem do Carmelo e
o Convento do Carmelo, analisarei o texto propriamente dito, ao
propor uma leitura de Dialogues de Georges Bernanos.
77
O TEXTO
J'ignore pour Qui j'écris, mais je sais pourquoi j'écris. J'écris pour me justifier. - Aux yeux de qui? - Je vous l'ai déjà dit, je brave le ridicule de vous le redire. Aux yeux de l'enfant que je fus.
Bernanos
Dialogues des Carmélites, espécie de testamento espiritual de
Bernanos, representa o termo de uma evolução política, literária e
espiritual. No dizer de Monique Gosselin, esta obra sintetiza toda
a experiência humana e espiritual de Bernanos, elucidada e
transfigurada pela escritura.
A epígrafe de Dialogues é uma citação de La joie:
En un sens, voyez-vous, la Peur est tout de même la fille de Dieu, rachetée la nuit du Vendredi-Saint. Elle n'est pas belle à voir - non - tantôt raillée, tantôt maudite, renoncée par tous... Et cependant, ne vous y trompez pas: elle est au chevet de chaque agonie, elle intercède pour l'homme (OR: 675).
O medo superado e resgatado, a reversão de valores, temas
centrais em La joie (1929) e em Dialogues (1947-48), textos
separados por quase vinte anos, revelam a unidade da obra
bernanosiana.
Importa reiterar que qualquer estudo que se faça da peça
deve considerar o fato de Bernanos tê-la escrito sob a forma de
diálogos para um filme a ser realizado. O escritor cronometrava
78
as cenas e privilegiava as imagens. Como observa Michael
Kohlhauer, o apelo visual, o olhar do escritor, caracteriza a obra
bernanosiana em geral. Bernanos escreve como alguns filmam: o
mais perto possível do olhar.
Olhar é uma ação voluntária e significa dirigir o olhar para
ver melhor. Ver significa uma percepção pela visão, que pode ser
involuntária.
Pierrette Renard ao analisar Les grands cimetières sous la lune
assinala o emprego recorrente do verbo voir. E Bernanos
confessa: “Oui, certes, il m’a été donné de voir des choses curieuses,
étranges" (EEC I: 419), antes de relatar um acontecimento
revoltante, do qual se inteirara quase a contragosto. E comenta os
massacres presenciados atestando sua veracidade, com o
argumento: eu vi. "J’ ai vu, j’ ai vu de mes yeux, j’ ai vu moi qui vous
parle, j’ ai vu un petit peuple chrétien [...] s’ endurcir tout à coup, j’ ai vu s’
endurcir ces visages" (EEC I: 468). Quando deseja enfatizar a
atenção, o propósito, Bernanos emprega o verbo olhar: “Il est dur
de regarder s’avilir sous ses yeux ce qu’on est né pour aimer” (EEC I: 438).
Toda a obra de Bernanos pode ser lida sob o signo do
olhar, de Sous le soleil de Satan a Dialogues des carmélites.
79
Prefigurações
O Prólogo de Dialogues des Carmélites
Ao escrever os diálogos para um filme baseado na novela
La dernière à l’échafaud, Bernanos reescreve tanto a História quanto
a ficção.
Os dois planos, histórico e ficcional, interligam-se. É difícil
separar, em uma primeira leitura, a história da ficção. Os Duques
de la Force, por exemplo, realmente existiram e pertenciam à
mais antiga nobreza da França. Gertrud von le Fort identifica-os
com o nome patronímico, com o significante la Force, mas
transforma os duques em marqueses. Bernanos mantém
inalterada a modificação feita pela romancista alemã.
Curiosamente, porém, os Duques de la Force eram os
senhores de Caumont, onde o pai de Mère Saint-Augustin seria
negociante de gado - "marchand de boeufs" - uma criação de
Bernanos que será analisada.
Em toda a peça, nota-se a coexistência de elementos
históricos e ficcionais que Maria Teresa de Freitas, em Literatura e
história (1986), chama de "narrativa híbrida", meio de expressão da
visão trágica de Bernanos.
80
En 1774. Place Louis XV à Paris, le soir des fêtes données pour le mariage du Dauphin, futur Louis XVI, avec l’archiduchesse Marie-Antoinette. Les carrosses des aristocrates passent au milieu de la foule joyeuse contenue par le service d’ordre. Dans l’un des carrosses, on aperçoit un jeune couple, le Marquis de la Force et sa femme, qui est enceinte. Le Marquis descend de voiture et s’ éloigne vers les tribunes. Bernanos- Dialogues – Prólogo
Paris, 1774. Especificar uma data, personagens e lugares
referindo-se a um acontecimento equivale a inserir-se na História.
E esta data não é anódina. Refere-se às festas oferecidas por
ocasião do casamento de Maria-Antonieta e do futuro Luís XVI.
Trata-se de um fato histórico verificável.
Ao introduzir uma data, Bernanos procuraria dar um
estatuto histórico ao seu texto? Ou seria uma maneira de alertar
o leitor / espectador para a prefiguração da Revolução que esta
cena constitui?
O primeiro quadro apresentado é de alegria e de festas. Nas
comemorações do casamento do Delfim, futuro Luís XVI,
enfatiza-se a função - príncipe herdeiro - enquanto sua
identidade, colocada como um aposto, indica uma previsão a ser
realizada. O contraste evidencia-se com a apresentação da futura
rainha - a arquiduquesa Maria--Antonieta, designada por seu
nome próprio. O leitor, conhecedor dos fatos históricos, pode
81
deduzir um indício de um dos grandes processos da História: a
importância do papel representado por Maria Antonieta e seu
destino trágico, contraposto ao do futuro Luís XVI, cuja função -
ser rei - foi mais importante do que sua personalidade. Embora
suas contradições, teimosia, hesitações e fraquezas tenham
apressado o fim da monarquia na França, Luís XVI é visto, por
inúmeros historiadores, como o rei, vítima dos nobres e,
principalmente, daquela que é julgada ora "La pauvre Marie-
Antoinette" ora o castigo infligido por Deus à França.
Mas na festa de seu casamento com o herdeiro do trono
francês, Maria Antonieta, filha da imperatriz Maria-Teresa da
Áustria, era festejada com entusiasmo.
No prólogo, o primeiro quadro é de alegria e festa,
movimentação harmoniosa e policiada. "Les carrosses des aristocrates
passent au milieu de la foule joyeuse contenue par le service d'ordre".
As carruagens, fechadas, metonímia de casas, protegem os
aristocratas e permitem que eles possam atravessar "au milieu", no
meio, a multidão sem entrar em contato com o povo. Os nobres
passam, não se detêm. Este movimento e a carruagem agridem a
massa popular que alegre e inconsciente libera a alegria permitida
e policiada pelo serviço de segurança.
O Marquês de la Force e sua mulher, que está grávida,
permanecem, como os outros nobres, dentro de sua carruagem.
82
Eles possuem os valores positivos: nobreza, juventude, beleza e
fecundidade, esperados do casal real cujo casamento é festejado.
Uma ação provocará mudanças nos acontecimentos: "Le Marquis
descend de voiture et s' éloigne vers les tribunes". É noite, o que indica o
final de um ciclo.
O segundo quadro reverte o anterior:
Le feu d’artifice commence, mais soudain des caisses de fusées s’enflamment et les explosions se succèdent. Quoi qu’il n’y ait aucun danger grave, la panique s’empare de la foule. Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés. La jeune Marquise, effrayée, pousse le verrou de la portière. Le cocher fouette les chevaux qui s’emballent et se lancent dans une course folle. Brusque colère de la foule, on arrête les chevaux, une vitre vole en éclats. (DC: 1567)
"Le feu d'artifice commence". Manifestação luminosa, o fogo
apresenta-se qualificado como sendo de "artifício", indica o
artifício da festa, sua precariedade e alude ao brilho e desperdício
das festas da nobreza, assim como à superficialidade, à
supremacia do parecer, características de uma classe social em
decadência.
Segundo Durand e Bachelard, o fogo, símbolo rico, de
significações complexas e opostas, apresenta duas direções ou
duas constelações psíquicas, dependendo da maneira como é obtido:
por percussão ou por atrito. No primeiro caso, ele está ligado ao
83
relâmpago e à flecha, possui valor de purificação e de iluminação
e opõe-se ao fogo sexual, obtido por fricção.
O fogo, conforme observou Elias Canetti, em Masse et
puissance, é o mais poderoso símbolo da massa, da multidão.
Múltiplo e destruidor, o fogo é insaciável, podendo surgir rápida e
inesperadamente de qualquer lugar. O fogo atua como se fora um
ser vivo e como tal deve ser tratado (Canetti, 1966: 78-83).
O prólogo da peça teatral em estudo ilustra a ação do fogo
sobre a multidão e sua identificação constitui a prova irrefutável
da estreita ligação que existe entre a massa e o fogo.
Em um primeiro momento, o fogo participou dos festejos
e atuou de modo lúdico. Mas o percurso previsto interrompe-se.
"Soudain des caisses de fusées s'enflamment et les explosions se succèdent" -
Repentinamente (soudain), o fogo aprisionado nas caixas (caisses)
liberta-se e incendeia-se. Há explosões sucessivas. O fogo
imprevisível propaga-se.
"Quoique n' y ait aucun danger grave, la panique s' empare de la
foule. Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés". O
pânico, injustificado, apodera-se da multidão. No espaço
destinado às comemorações de júbilo, um quadro de terror
instala-se: "bousculade", empurrão, o contato físico negativo, "cris de
peur", gritos de medo, "des gens tombent à terre et sont piétinés". A
multidão é pisoteada, pisada pelos cavalos das carruagens.
84
Nestes dois quadros, prefigura-se a tragédia que se
desenrolará. Os elementos essenciais aí se encontram. Situação
inicial: alegria, festa e fogos de artifício mas também latência de
possibilidade de excessos indicada pela ação limitadora de um
poder coercitivo. Reversão da situação: à explosão dos foguetes de
artifício corresponde o pânico generalizado: agressões, ameaças,
pisoteamentos.
Ao ser agredida, a multidão reage: "Brusque colère de la foule,
on arrête les chevaux, une vitre vole en éclats" (grifo meu).
A carruagem dos nobres significa uma proteção e seria o
equivalente a uma casa. Quebrar um vidro significa abolir uma
separação, violar um espaço interdito e tornar vulneráveis os seus
ocupantes.
O vidro protege e permite que as elites possam olhar e
serem olhadas, à distância, sem qualquer contato. Mas o vidro
pode também isolar e enfraquecer. Há um desequilíbrio entre ver,
sentido ativo, e ser visto, sofrer uma ação. Aquele que é visto
torna-se objeto e não sujeito da ação.
Esse tema revela-se recorrente na literatura francesa.
Examinarei dois exemplos paradigmáticos:
Flaubert, em 1857, mostra Emma Bovary dançando no
salão de baile do marquês d’ Andervilliers, no castelo de
85
Vaubyessard e sendo vista pelos camponeses que se comprimiam
diante da janela envidraçada.
Une domestique monta sur une chaise et cassa deux vitres; au bruit des éclats de verre, madame Bovary tourna la tête et aperçut dans le jardin, contre les carreaux, des faces de paysans qui regardaient. Alors le souvenir des Bertaux lui arriva. [...] elle se revit elle-même, comme autrefois... (Flaubert, 1972:61) (grifos meus)
A presença dos significantes vidros, barulho de vidros quebrados,
e a ação de olhar e ser olhada justificam a aproximação do texto
citado com o prólogo de Dialogues. Um exemplo análogo ao texto
de Flaubert é encontrado em Proust. Em 1918, de maneira mais
incisiva, o autor de À la recherche du temps perdu denuncia a
oposição pobreza/ riqueza ao enfocar os humildes admirando os
ricos que jantavam em um grande "aquário", separados pela
barreira do vidro:
Une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger. (Proust, 1954: 681)
Proust formula a indagação : um dia, os pobres, que
observam, avidamente, não quebrarão o aquário para comer os
peixes - os ricos - que estão protegidos pelo vidro? Remete a uma
revolução social hipotética ou talvez à Revolução Russa. Poderia
86
referir-se também à Revolução Francesa, de certa maneira
malograda, visto que a igualdade não foi alcançada, o vidro
persiste como barreira.
As paredes de vidro podem isolar não apenas os indivíduos,
mas os grupos e classes sociais. O vidro seria o sinal sensível dos
preconceitos, da intolerância e da insensibilidade dos homens.
O vidro provoca a indignação e parece mais destrutível; a
madeira da porta fechada de uma casa excita a imaginação. A
carruagem atrai, duplamente, a fantasia e a cólera da multidão,
por conter vidro e madeira, por parecer uma unidade fechada que
se crê inviolável.
Em Dialogues, após o confronto entre o povo e os soldados,
a ordem é restabelecida. Ressoara, porém, proferida por uma voz
de homem, uma ameaça que repercute também como uma
maldição: "Tout va changer bientôt, c'est vous autres qui serez massacrés, et
nous roulerons dans vos carrosses!" (grifo meu). Importa destacar
que a superioridade social é representada por um objeto - a
carruagem, símbolo do poder de uma classe favorecida, na
expressão "rouler carrosse".
O texto indica que a violência premeditada contra a
Marquise de la Force não foi executada. E o prólogo termina. A
seguir, uma indicação cênica informa o nascimento de uma
menina e a morte de sua mãe, a Marquesa de la Force. A
87
referência à Revolução que eclodirá bientôt é feita através do
silêncio.
Se uma vidraça, uma porta fechada, uma carruagem,
alimentam ódios e fantasias, um convento de freiras
enclausuradas constitui alvo ainda mais fácil para o rancor, pois
pertence ao domínio do interdito, do proibido.
O Carmelo, uma espécie de "bastilha" na imaginação
popular, atrairá o desejo de desvelar mistérios inexistentes, de
demolir muros que separam, mais na imaginação do que na
realidade
O prólogo prepara e prefigura a grande reversão social que
se anuncia. A cena do mundo é o momento em que o Antigo
Regime desmorona e instala-se uma nova era, conseqüência da
Revolução Francesa.
O Carmelo será invadido pelos revolucionários. Porém,
antes de ser ocupado, materialmente, sofrerá mudanças,
intensificadas pela presença de Blanche de la Force, nascida após
a sublevação popular tratada no prólogo. Estas mudanças se
fazem sentir, através de conflitos de valores, que se refletem na
eleição de uma superiora burguesa, para um cargo
tradicionalmente exercido pela nobreza.
88
Mudanças
En d’autres temps, personne n’eut songé à Madame Lidoine, mais il y a maintenant de nos soeurs pour dire que Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la municipalité, parce que son père était marchand de boeufs à Caumont.
Bernanos
Bernanos consagra a primeira cena do terceiro quadro às
conjecturas em torno da eleição da nova Priora, da qual duas
religiosas, Blanche de la Force e Constance de Saint-Denis estão
excluídas, por serem apenas noviças.
Poderia, à primeira vista, parecer anacrônico falar em
eleições diretas no século XVIII. Nas Congregações apostólicas,
comumente chamadas ativas, as eleições são indiretas. Os
conventos não são autônomos: a superiora local é nomeada pela
superiora geral, eleita pelas delegadas, representantes das
diferentes comunidades religiosas. Quando a Congregação se
distribui pelo mundo inteiro, a superiora geral nomeia superioras
provinciais que escolhem as superioras locais.
Entretanto, desde a origem monástica, estruturada por
São Bento, por volta de 530, as Ordens religiosas elegem
diretamente seus superiores, supervisionados pelo bispo da
diocese, em escrutínio secreto. A eleição não pode ser
considerada universal, porque as religiosas que ainda não
89
proferiram os votos perpétuos e as noviças dela são excluídas,
como o texto o confirma.
No ano de 1789, morrera a Priora, a aristocrática Madame
de Croissy. Noutros tempos, a nova superiora seria Marie de
l’Incarnation, uma nobre de sangue e de espírito. Entretanto, as
religiosas passam a cogitar no nome de uma burguesa, uma
plebéia, considerando as mudanças sociais, as rupturas definitivas
e sobretudo as ameaças que se fazem pressentir.
O contraste entre o outrora e o agora evidencia-se.
Contrariamente ao previsível, o curso de História mudou, os
valores políticos e sociais inverteram-se e Mère Saint-Augustin
representa uma possibilidade de entendimento com a
municipalidade, tendo em vista sua origem plebéia.
Todo um passado de preconceitos e de ligações
aristocráticas está contido nesta constatação. Antes da Revolução
de 1789, nem mesmo se cogitaria a hipótese de eleger como
Priora, em um Carmelo francês, uma plebéia, filha de um
negociante, de um "marchand de boeufs à Caumont".
A expressão marchand de boeufs - vendedor de gado, revela-
se extremamente rica em sentidos. O boi simboliza a burguesia
que trabalha e contrasta com a nobreza ociosa.
O comerciante está sempre trabalhando: pesa, discute,
compra e vende com lucro. Ele não produz. Está sempre em
90
movimento e constitui um elo entre as diferentes classes sociais.
O fato de ser negociante de gado representa uma dupla inserção
espacial: por ser negociante está ligado à cidade e à estrada, às
mudanças rápidas, à ação. Vender gado representa também uma
ligação com a terra, com os valores estáveis, com o tempo, com o
ser.
Na Europa, a origem do comerciante, negociante (le
marchand), segundo os estudos de Régine Pernoud, em Histoire de
bourgeoisie en France (1962), está situada entre o século X e XI e
coincide com o renascimento do comércio. A aparição do
negociante é o índice da retomada de atividade em todos os
domínios e acompanha-se, se é que não o precede, de um
recomeço da circulação. Em todos os caminhos, principalmente
os freqüentados pelos peregrinos, encontrar-se-á o vendedor.
Aqueles que se recusam a lavrar a terra podem, de agora em
diante, procurar alhures a subsistência, mudar de condição social
e encontrar em suas andanças a fortuna que não teriam podido
constituir nos domínios paternos. Freqüentemente, o fluxo dos
peregrinos os atrai. Espertos, os vendedores compreenderam que
a multidão de fiéis reunidos para as cerimônias religiosas
representava também uma clientela certa.
E estes negociantes também vão construir, porque
necessitam de entrepostos para a mercadoria e precisam, durante
91
o inverno rigoroso, morar em algum lugar. A origem de muitas
cidades francesas, como Lille, está ligada à atividade comercial. E
em um mundo dominado, até então, por nobres ou camponeses,
a cidade será o feudo deste homem novo que se chamará: o
burguês. A cidade nasceu da estrada (Pernoud, R. 1962:120).
Em Dialogues, a expressão "marchand de boeufs" é pura criação
de Bernanos e, localizá-lo em Caumont, seria, talvez, uma
referência implícita a Pas-de Calais e aos burgueses imortalizados
em uma escultura por Rodin.
Gertrud von le Fort, em La Dernière à l’ échafaud, não faz
alusão à classe social de Madame Lidoine, suas origens, sua
família. E o documento histórico também não justifica a criação
de Bernanos, extremamente importante.
O padre Bruno de Jésus-Marie afirma, em Le sang du Carmel,
que Madame Lidoine era filha de um modesto funcionário do
Observatório, que lhe proporcionou uma boa educação, mas não
podia dar-lhe o dote exigido pelo convento, o que foi feito por
Maria Antonieta, a pedido de Madame Louise de France, filha de
Luis XV.
O problema do dote merece algumas explicações. O dote
era um costume aceito e em nenhum momento questionado pela
sociedade da época. Tratava-se de uma soma em dinheiro ou em
bens que a mulher levava para seu novo lar. Dificilmente ela
92
conseguiria casar-se sem dote. Seria tão fora dos costumes que
Molière apresenta esta possibilidade como um fato cômico.
Quem não se lembra do célebre "sans dot" de Harpagon,
considerado um argumento irresistível? Havia raras exceções,
quando alguém se apaixonava por uma beldade pobre... Mas a
Doxa atesta a inconveniência de tal proceder: “Quand on ne prend en
dot que la seule beauté, le remords est bien près de la solennité”.
A História e a Literatura registram o problema enfrentado
pelos pais ou tutores para concederem um dote conveniente a
suas filhas ou tuteladas. Quanto maior o dote, mais vantajoso
seria o casamento. Muitas vezes os pais praticamente se
arruinavam para casar bem suas filhas. E havia o caso de jovens
que eram obrigadas a entrar no convento, onde o dote exigido era
consideravelmente menor, mas existente. Hoje, esse costume foi
abolido, subsistindo apenas uma contribuição voluntária
ocasional.
O costume obrigatório de levar um dote para o casamento
perdurou depois da Revolução Francesa, no século XIX, como
ilustra Balzac em Le père Goriot (1834) e mesmo no século XX, se
bem que de maneira mais sofisticada e menos explícita, embora
Sartre refira-se explicitamente ao dote trazido por Odette em
L’Âge de raison.
93
Estas considerações explicam a importância do donativo
feito por Maria Antonieta à futura Mère Marie de Saint Augustin.
Ter um dote facilitou sua entrada no Carmelo. Caso contrário, ela
teria sido talvez admitida como simples irmã coadjutora
(encarregada dos serviços domésticos), o que a impossibilitaria de
ser eleita Priora, mesmo em situações não previstas e
perturbadoras, como a França em revolução.
“Et Madame Lidoine est d’ avis qu’ on devrait faire la part du feu”.
“Faire la part du feu” significa renunciar ao que não se pode salvar
para preservar o que pode ser salvo. No conflito com o poder
temporal, há que se fazer maleável, saber fazer concessões no que
é acidental.
O fogo, observa Elias Canetti, representa a massa humana,
a multidão e, por constituir o seu mais poderoso símbolo, teria
direito, de fato, à sua parte. Para salvar o essencial, mister se faz
abrir mão do que não pode ser salvo. Mère Saint-Augustin está
disposta a fazer concessões, a dar a Cesar o que é de Cesar, com
uma única condição: que seja concedido, às religiosas, viver a
vocação carmelitana com dignidade, liberdade e honra. E
exprime-se sem ambigüidade: “Comptez donc bien que rien ne me
coûtera pour obtenir qu’on nous laisse vivre ici, selon notre vocation, dût le
reste du monde s’ embraser” (DC: 1627).
94
Na rede textual, o signifiante feu faz ressoar o prólogo com
suas seqüências: o fogo de artifício da festa da realeza que se
inflama e explode.
É preciso notar também que ao cogitar, para o cargo de
Priora, no nome de Mère Saint-Augustin, caracterizada,
diretamente, como aquela que faz "la part du feu", as religiosas
também estão optando por uma atitude conciliadora. O texto é
explícito: "Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la
municipalité". O Carmelo representava uma espécie de Bastilha
sitiada e não foi preservado pela Revolução em curso. Destruí-lo,
seria concretizar as mudanças: “Oui, cette maison est une bastille, et
nous détruirons ce repaire” (DC: 1642), dizem os revolucionários.
As transformações da linguagem precederam as mudanças
sociais e políticas ou as provocaram. A violência da linguagem
revolucionária revela-se no emprego do significante repaire, antro,
covil de animais ferozes e repugnantes e traduz a representação
que o povo fazia dos conventos: antros de despotismo, de
superstição e de mentira (DC: 1642). Ao anúncio da destruição
sucedem-se as seguintes etapas: ocupação do espaço físico através
dos sons revolucionários, de atos de vandalismo e finalmente a
dessacralização de um lugar considerado inviolável.
95
A profanação
On entend chanter la Carmagnole sous les murs du couvent; et les commissaires, suivis de la foule qui continue à chanter, font irruption dans l’enceinte. Ils enfoncent la porte de clôture. Précédés d’une Soeur sonnant la clochette, ils envahissent la sacristie.
Bernanos
A Revolução invade, primeiramente, o Carmelo, através de
uma sonoridade profana: ruídos, desfiles, vozes e barulhos
amedrontadores e pelas estrofes provocantes das canções
revolucionárias, La Carmagnole e Ça ira, escutadas a contragosto.
O ritmo alegre, em contrate com as palavras ameaçadoras,
contribuía para tornar mais brutal a oposição entre a paisagem
sonora revolucionária e a existente no Carmelo.
A noção de paisagem sonora, empregada por Murray Schafer
em O ouvido pensante (1970), subverte o universo sonoro,
englobando em um novo olhar os ruídos, as canções, os silêncios
aparentes, os gritos, os sons da natureza. Escolhi esta abordagem
por julgá-la mais adequada ao presente estudo. A paisagem
sonora violadora agita, provoca medo e mesmo pânico e
contrasta com a do convento. Há que se fazer distinção entre o
silêncio-ausência, que só existe teoricamente, e o silêncio-paz, a
“música callada, la soledad sonora” de que fala São João da Cruz,
96
densa e plena, introspectiva e que se executa em um outro
registro.
No Carmelo a paisagem sonora compõe-se não só de
silêncio- paz, mas também de orações em voz alta, diálogos e
conversas informais em alegres recreios. Mas, tudo transcorre de
modo previsto, obedecendo a uma rotina, regulada pelo som dos
sinos. O grande sino chama para a oração, marca o início do
grande silêncio e ordena o despertar. Um sininho - “clochette” -
pode indicar o início e o fim de atividades rotineiras como
levantar-se, sentar-se, ajoelhar-se, entre outras. Pode também
servir de aviso discreto de que algo de inusitado está
acontecendo. Os sinos desempenham papel importante em todas
as religiões e têm como função primordial convocar para o
momento presente, para o agora.
Os cantos revolucionários que incitam à violência
contrapõem-se a esta paisagem sonora. Em várias indicações
cênicas de Dialogues, as duas canções La Carmagnole e Ça ira são
citadas, sempre provocando angústia e medo.
La Carmagnole foi um dos cantos mais difundidos da
Revolução. A origem da melodia é controvertida, porém todos
concordam que a letra foi composta logo após a prisão de Luís
XVI e de sua família no Templo. A canção evoca com precisão
os acontecimentos de 1792. Dançado e cantado nas mais variadas
97
ocasiões, tornou-se um dos acompanhamentos habituais das
execuções pela guilhotina.
Trata-se de uma canção de treze estrofes e um refrão. Há
algumas variações e paródias. Cito, apenas, duas estrofes e o
refrão, julgando-os suficientes para o estudo que desenvolvo.
Madame Veto avait promis (bis) De faire égorger tout Paris. (bis) Mais le coup a manqué Grâce à nos canonniers Dansons la Carmagnole, Vive le son,vive le son, Refrain Dansons la Carmagnole, Vive le son du canon! Monsieur Veto avait promis D’être fidèle à son pays. Mais il y a manqué Ne faisons plus d’quartier. Sabe-se que Luis XVI, apelidado de "Monsieur Veto",
usando o direito de vetar de que ainda dispunha, proibiu o
decreto contra os padres refratários e opôs-se à permanência do
acampamento dos federados em Paris. Apesar da manifestação
do povo que invadiu as Tulherias, Luis XVI manteve a interdição.
Maria-Antonieta, considerada a inspiradora das proibições, era
cognominada de "Madame Veto". O canto arrebatador e violento
98
denuncia a traição do rei e faz o elogio da força, exaltando o som
dos canhões.
A canção Ça ira também foi uma das mais populares do
período revolucionário. Composta por volta de 1786 intitulava-se
Le Carillon National. Maria-Antonieta tocava esta música, sem
imaginar que seus últimos momentos seriam ritmados por esta
canção tornada ameaçadora. A letra original foi substituída, em
1790, por uma estrofe que refletia o otimismo revolucionário
(“...le bon temps reviendra... tout trouble s’ apaisera”) para finalmente
transformar-se no célebre refrão:
Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates à la lanterne Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates on les pendra. Si on n’les pend pas On les rompra. Si on n’les rompt pas On les brûl’ra. Ah! Ça ira, ça ira, ça ira...
Nesta canção: os significantes pendre - enforcar, rompre -
despedaçar e brûler - queimar, exprimem o ódio aos aristocratas,
aos quais se desejava a tortura, a degradação e a ignomínia. No
Antigo Regime, enforcavam-se os plebeus, porém os nobres
eram fuzilados. A guilhotina democratizaria as execuções, não
99
mais fazendo diferença entre nobres e plebeus. Mas o que o povo
cantava, na sua revanche, era o desejo de infligir uma morte
infamante aos antigos senhores.
A multidão invisível, mas não menos ameaçadora, se faz
presente através dos sons que invadem a clausura e violam o
espaço sagrado, antes que a profanação se concretize. A pilhagem
da sacristia é ritmada pelas violentas estrofes de La Carmagnole.
A este canto as religiosas opõem o som de um sininho. As
canções perturbadoras, os barulhos da multidão, sempre
inesperados, provocam, em um primeiro momento, grande
agitação nas religiosas: “Le premier mouvement des religieuses est de
courir ça et là dans le petit jardin” (DC:1678). Trata-se de uma reação
natural de medo, diante de uma ameaça que não se vê, mas se
escuta. Mas, logo em seguida há uma mudança de registro. As
religiosas se acalmam e rezam diante da estátua da Virgem. O
medo foi superado pela ação da graça.
A Revolução penetrou no Carmelo, não somente através
das canções e dos barulhos e ruídos. Os problemas sociais aí se
fazem sentir. A própria negação: “Il n’ y a point chez nous de
bourgeoises ou d’ aristocrates” (DC: 1621) revela um vocabulário
contaminado pela nova ideologia.
A nobreza começou a ser chamada de aristocracia por volta
de 1789, em uma acepção pejorativa, reveladora de um conflito
100
social inevitável. Embora o significante aristocrata, proveniente
do grego aristos, signifique o melhor, era empregado, nos
panfletos difundidos depois da queda da Bastilha, para designar
os insensatos nobres que pretendem possuir bens, privilégios,
altos postos, honrarias e dignidades sem o mínimo de trabalho
(Martin, 1990: 64).
Se a religiosa repreendida afirma ter querido dizer
simplesmente que todas eram irmãs, o que foi dito, já não pode
ser anulado. E a Priora constata com sabedoria e uma certa
ironia: “Voilà dix minutes que nous vous laissons un peu la bride sur le col
et vous en êtes déjà, Dieu me pardonne, à tenir séance entre vous, comme ces
Messieurs du Parlement” (DC: 1626).
O emprego da expressão "laisser la bride sur le col" deve ser
entendida no contexto da obediência cega exigida pela Ordem do
Carmelo. Ela significa permitir a alguém toda liberdade possível,
entregá-lo a si mesmo, como quando não se usa o freio para um
animal de montaria. Há uma alusão implícita a "cavalo domado".
O homem necessitaria de freios para controlar seus instintos e a
obediência religiosa exerceria tal função. A observação feita pela
Priora revela pessimismo em relação à natureza humana: livres,
durante dez minutos, as religiosas discutem e agem como se
estivessem no Parlamento. A referência ao Parlamento, lugar
onde todos os representantes do povo podem exprimir,
101
livremente, sua opinião, possui conotação negativa e precisa ser
entendida no contexto histórico da época. Em 17 de junho de
1789, instalou-se a Assembléia Nacional e a França passou a ser
regida por um regime parlamentar. Na opinião das religiosas,
católicas e monarquistas, a instituição parlamentar soa como
sinônimo de desordem, desrespeito à hierarquia, demagogia.
O Carmelo, onde vivem as religiosas, exiladas do mundo
por vontade própria, não constitui uma ilha isolada, inatingível.
“Dirait-on pas que l’ esprit du siècle pénètre partout, jusqu’à travers les
murailles du Carmel” (DC: 1621) constata a Priora ao ouvir as
discussões das religiosas. E por "siècle" compreende-se, na
linguagem religiosa, a vida do mundo, cujos valores são mutáveis,
em oposição à vida espiritual, de valores imutáveis e atemporais.
Nesse espaço, diferentes discursos existentes na época circulam,
entrelaçam-se e confrontam-se de modo violento e dissimulado,
na linguagem e através da linguagem.
Estes discursos representam diferentes valores que se
opõem: o discurso da nobreza e o discurso que chamaria de
burguês. Os valores aristocráticos concentram-se nas
intransigências de um código de honra e os valores burgueses
caracterizam-se pelo equilíbrio, pela maleabilidade, mas
principalmente, por constituírem uma outra maneira de julgar,
uma outra visão do mundo.
102
Valores
O código aristocrático
[...] mais vous parlez de l’honneur comme si nous n’avions pas depuis longtemps renoncé à l’estime du monde.
Bernanos
Bernanos, ao escrever Dialogues, lembra conceitos de honra
e de coragem emblemáticos do século XVII, na França. Este
ideal, individualista, nobre, com laivos de paganismo e resquícios
do compromisso feudal, é uma herança intacta recebida do século
XVI.
Honra é uma exigência pessoal, mas se manifesta na
opinião do outro, na reputação desfrutada. Em si, não só
constitui uma virtude, como também um conjunto de qualidades,
variáveis no tempo e no espaço social. O rei podia distribuir
honrarias - des honneurs - mas não podia conceder nem retirar a
honra - l’honneur.
O conceito de honra está ligado, originalmente, à nobreza e
ao exercício do poder. Somente os nobres mereceriam confiança
em seus compromissos; era-lhes outorgado o porte de armas e a
honra era um de seus insolentes privilégios.
103
Em que consiste a honra do fidalgo, este sentimento de
dignidade própria que leva o indivíduo a procurar merecer e
manter a consideração geral de seus pares?
Os nobres obedeciam a um código de regras fixas, a certos
costumes imutáveis e julgavam que o fato de ser nobre
assegurava possuir todas as qualidades inerentes a sua classe
social: coragem, altivez, generosidade, fidelidade, etc.
Acreditavam tudo saber sem nada ter aprendido, e a força do
sangue da raça - Genos - garantia-lhes sucesso e perfeição em
todos os empreendimentos. Como observa Maria do Carmo
Pandolfo, “A linhagem reúne, verticalmente, no tempo, os membros de uma
mesma família, ligada pelo sangue e unificada como um só ser na noção de
Genos” (Pandolfo,1977: 88).
E a noção de família amplia-se, pelos laços de parentesco,
fazendo com que a nobreza se considere um grande clã. Fato
reconhecido pela velha Priora: “Sur une personne telle que Blanche de
la Force, et qui est un peu notre parente” (DC: 1599), aludindo aos
laços de sangue que entrelaçam os nobres.
Nesta acepção, a honra parece ser uma qualidade
especificamente masculina dependente de outros valores tais
como força, lealdade e coragem.
O grande teatro clássico francês constitui um hino ao herói
que possuiria todos os atributos específicos da fidalguia: grandeza
104
de alma, energia, audácia, força de vontade, intrepidez. Todas
estas qualidades estariam encarnadas em Rodrigue, personagem
principal de Le Cid de Pierre Corneille (1637), o herói completo
que consegue realizar em vida a conciliação do desejo e da honra
(Pandolfo: 1977: 101-102), quando Rodrigue, orgulhosamente,
exclama:
Je suis jeune,il est vrai; mais aux âmes bien nées La valeur n’attend pas le nombre des années (Le Cid: v. 405-6)
não exprimia senão a consciência de pertencer a uma classe
superior. Os nobres julgavam possuir um sangue mais puro e
formar uma espécie de casta. Exigiam seus privilégios com altivez
e intransigência e proclamavam superioridade e virtude.
A origem etimológica prevalece ao tratar-se da virtude do
herói, aquele que é forte e que se esforça por superar os próprios
limites.
O termo virtude, proveniente do latim virtus, significa força
viril, oriunda de vir, homem. No antigo francês, designava
bravura, força física, poder. A Chanson de Roland (1080) qualifica o
herói de vertueux, no sentido de valente, corajoso.
A nobreza, arrogante e intransigente quanto aos seus
direitos, deveria, entretanto, ser dotada de uma qualidade
essencial - a coragem - da qual decorreriam a honra e todos os
105
privilégios e prerrogativas que lhe eram outorgados. Ter sua
coragem proclamada constituía a mais alta qualificação a ser
obtida.
A honra, segundo o código da nobreza, é mais importante
do que a vida. Uma vida desonrada não teria nenhum sentido.
Esse conceito de honra sintetiza-se na interrogação de Rodrigue:
"Qui m’ose ôter l’honneur craint de m’ôter la vie?" (v.438).
No que se refere às mulheres, o sentido da palavra honra
difere do conceito de honra atribuído aos homens. A honra
feminina estava ligada à fidelidade e importava não somente à
mulher, mas também aos homens de sua família - pai, irmão,
marido - que dela seriam os guardiães.
A honra acha-se ligada ao sentimento de orgulho,
manifestado sob a forma de altivez e, freqüentemente, de
arrogância. Importa ressaltar que a altivez não era considerada
pelos nobres um defeito, e sim uma qualidade imprescindível.
E o que seria o orgulho? Esta tendência humana é quase
sempre apresentada de maneira negativa, embora não sejam claras
as razões dos critérios depreciativos que lhe são atribuídos. O
orgulho constitui um dos sete pecados capitais e merece uma
reflexão e uma breve revisão.
Os sete pecados capitais: orgulho, ira, gula, preguiça,
luxúria, inveja e avareza constituem tendências fundamentais do
106
homem e passaram a ser considerados pecados capitais somente a
partir do século XIII. Essas tendências fundamentais, quando são
exageradas, tornam-se pecados para a Igreja. Elas originam-se
numa desordem patológica individual, ou resultam de condições
de ordem sociológica e caracterizam-se pela desmedida, afirmou
Norma Tasca, em conferência sobre o orgulho, proferida no
Congresso de Semiótica, realizado em 1995 em Urbino (Itália).
O orgulho seria uma estima exagerada de si mesmo, logo, é
uma desmedida, e estaria ligado a uma hybris insultante. Ele
transgride o limite concedido a uma auto-estima legítima e a
sociedade moraliza este excesso, condenando-o.
A tradição judaico-cristã está baseada na humildade e na
submissão a Deus. E a transgressão, fruto do orgulho,
normalmente associada à desobediência de Eva e à revolta de
Lúcifer contra Deus, pode ser também encarada, sob o aspecto
de ignorar o outro e não respeitar os seus direitos. O orgulhoso
não conhece limites, porque não sabe quem é o outro e quem é
ele próprio. Volta-se para si mesmo, numa atitude ilegítima e
narcisista, que acarreta conflitos na ordem social existente.
O orgulho apresenta-se de variadas maneiras: vaidade,
altivez, vanglória, presunção e outros parassinônimos. De certo
modo, estas diferentes manifestações do orgulho são menos sutis
107
e mais superficiais do que a falsa humildade, espécie de orgulho
que muitas vezes se esconde atrás de uma aparente modéstia.
Em Dialogues, os valores aristocráticos, como o ideal de
uma casta ameaçada, podem ser sintetizados em um código de
honra e exprimem-se através de diferentes personagens: Blanche
de la Force, o Marquês de la Force, o Chevalier de la Force, a
antiga Priora, Madame de Croissy, Constance de Saint-Denis,
mas, sobretudo, por Mère Marie de l’Incarnation, a sub-Priora do
Carmelo.
Cada personagem profere seu discurso pessoal, entretanto,
todos apresentam um ponto em comum: constituem a expressão
de uma ideologia aristocrática, de uma casta social que se crê
superior, que acredita em suas prerrogativas e não se esquiva dos
deveres e das responsabilidades decorrentes de uma situação
privilegiada.
Emprego o termo discurso não só na acepção de texto ou de
manifestação verbal, mas também no sentido de “conjunto coerente
de conhecimentos partilhados, construído, a maior parte do tempo, de maneira
inconsciente pelos indivíduos de um grupo social.” (Charaudeau, 1982: 40
).
Esses fragmentos de discursos sociais, exprimindo valores,
presentes no texto de Bernanos, pressupõem uma
108
interdiscursividade e se apóiam nos saberes compartilhados
socialmente pelas personagens.
Há os que se identificam com o discurso de sua casta e,
verbalmente, o assumem. O que importa ressaltar é que as
personagens têm seus traços discursivos identificadores
acentuados pelo meio a que pertencem.
O código de honra da nobreza, em que predominam o
orgulho da raça e a altivez, as diversas manifestações dos valores
aristocráticos revelam-se nos discursos das personagens deste
grupo social, e, principalmente, em Marie de l’Incarnation,
protótipo desse imaginário.
Enfocarei, primeiramente, um grupo familiar: Blanche, o
velho Marquês, o Chevalier de la Force e, em seguida, o Carmelo,
espaço influenciado pela nobreza.
Blanche, filha do Marquês de la Force, consciente de sua
linhagem, decidiu tudo sacrificar para recuperar a honra de que se
acredita privada. Um dos argumentos, a seu ver muito
importante, é obrigar-se a conviver com religiosas que lhe seriam
inferiores pelo nascimento e pela educação. Avalia, inclusive, a
eventual hipótese de dever obediência a uma superiora de nível
social muito diferente do seu. Dispõe-se a “vivre parmi des compagnes
et sous l’autorité de supérieurs d’une naissance et d’une éducation souvent bien
inférieures” (DC: 1578). Acredita agir de boa fé ao pretender
109
negociar com Deus, mas seu pai denuncia o orgulho
inconsciente dessa atitude:
Ma fille, il y a dans votre résolution plus d’orgueil que vous ne pensez. Je ne passe certes pour dévot, mais j’ai toujours cru que les gens de notre état devaient en agir honnêtement avec Dieu.On ne quitte pas le monde par dépit... (DC: 1578).
Observe-se que, ao condenar o orgulho de um
despojamento aparente, o Marquês denuncia, implicitamente, o
mérito da troca burguesa e incorre em um orgulho de classe,
restringindo à nobreza o privilégio de uma relação honesta com
Deus. Como se apenas os nobres merecessem confiança, o que
seria um outro nome da honra.
A consciência dessa superioridade traduz-se, aqui, não pela
arrogância, mas pela condescendência, atitude aparentemente
positiva, que, no entanto, nega a existência do outro. Assim, o
velho Marquês por não vislumbrar um pretendente melhor,
aceitaria como genro, um nobre que outrora não seria
considerado um grande partido, visto que sua nobreza era
recente, pois datava apenas de três séculos (DC: 1572). E
também, por alguns instantes, sua memória o faz reviver a noite
trágica da explosão dos fogos de artifício, mas logo se controla e
tenta convencer-se de que a Revolução não começou e que “Le
peuple de Paris est bon diable et tout finit par des chansons” (DC: 1574).
110
O Chevalier de la Force, irmão de Blanche, é o protótipo
do nobre soldado a serviço do rei, em uma relação que
remontaria ao feudalismo. Lúcido e protetor em relação a
Blanche, não teme a morte e procura somente cumprir o dever.
Sem pretensões intelectuais, ele admite que, às vezes, é rude e que
fala como um soldado (DC:1630).
Os valores e o código de honra da nobreza também são
válidos no Carmelo, espaço de uma "transposição espiritual e eclesial
do mundo aristocrático" (Balthazar, 1956: 446) e microcosmo da
sociedade francesa da época.
O Carmelo pretende conciliar a busca da perfeição
evangélica e os valores sociais e morais de um passado que
desmorona.
A nobre Madame de Croissy reconhece que, mesmo em
um claustro, a mentalidade reinante não poderia deixar de ser
influenciada por “certaines habitudes de penser selon le siècle, que la vie
religieuse a bien pu discipliner, mais non pas tout à fait réduire” (DC:
1599).
Experiente e sábia, ela admite que as religiosas trazem para
o convento toda a sua cultura, compreendendo, entre outros, a
mentalidade e os preconceitos da classe social a que pertencem. A
vida religiosa pode atenuar tais exageros, mas não destruí-los
completamente.
111
Às vésperas da morte, a velha Priora alude ao próprio
conhecimento do coração humano: “Oh! Je sais ce que je dis”
(DC: 1599). Por essa razão, ela já advertira Blanche, de que não
lhe seria exigido esquecer sua grande nobreza e que também era
necessário vencer e não forçar a natureza. E forçar a natureza
seria querer o impossível, pretender que as religiosas, ao entrar
para o convento, fizessem tabula rasa dos valores inerentes a seu
meio social.
No Carmelo, onde todas as classes sociais estavam
representadas, com o predomínio da nobreza., refletiam-se, como
em uma espécie de prisma, as ideologias circulantes na França em
revolução.
A velha e aristocrática Madame de Croissy assume o
discurso de sua casta, com o qual se identifica. Da mesma forma,
a jovem Constance de Saint-Denis, revela uma perfeita adequação
ao código de honra e aos valores morais da nobreza. A alegria, a
irreverência de suas réplicas e afirmações não escondem a
realidade: Constance ignora as transformações que ocorrem a sua
volta e tudo enxerga sob o ângulo desses valores.
Desse modo, ao evocar os camponeses de sua região,
refere-se a eles como “nos bons villageois de Tilly” e afirma: "Ces
pauvres gens m’aimaient tous à la folie, parce que j’étais gaie..." (DC:1592)
o que faz ressoar La nouvelle Heloïse de Rousseau. O orgulho às
112
vezes ingênuo de Constance, leva-a a indagar sobre o paradeiro
dos franceses, dos bons franceses que deveriam proteger e
defender os padres perseguidos (DC: 102-103). Os preconceitos
sociais, o orgulho atávico e a conhecida ignorância da nobreza
revelam-se na interrogação: “Hé! Qu’avons-nous besoin des Grecs et des
Romains? Est-ce que nos Français ont des leçons à recevoir de personne?”
(DC:1624).
A personagem nobre, luminosa e quase perfeita de
Constance de Saint-Denis, historicamente filha de um agricultor,
revela inconseqüência e presunção, ao afirmar que São Pedro
renegara o Cristo porque não era nem francês nem nobre
(DC:1625).
A indicação cênica (régie) assinala que todas as religiosas
riem após ouvir essa declaração. Constance tenta, com habilidade,
remediar o que dissera, invocando um mal-entendido. Mas suas
palavras reiteraram os valores da nobreza que, em breve, revelar-
se- iam anacrônicos.
Demarcar, entretanto, as classes sociais, atribuindo-lhes um
discurso correspondente é não levar em conta a complexidade do
real. Cada um fala também a linguagem de sua família espiritual e
não apenas a de sua casta social. Como observou Proust, "... on
s’ exprime toujours comme les gens de sa classe mentale et non de sa caste d’
origine” ( Proust,19, 900).
113
A concepção moral é determinada não só pelo Genos, mas
também pelas afinidades intelectuais e morais que levam o
homem a escolher seus antepassados intelectuais, espirituais e
morais. E esta escolha nunca é aleatória.
Esta observação torna-se imprescindível em se tratando de
Mère Marie de l’ Incarnation que, com sua força de caráter, serve
de contraponto à fraqueza de Blanche de la Force e, em seu
desejo exaltado de martírio, opõe-se ao equilíbrio da nova Priora,
Madame Lidoine, em religião, Mère Marie de Saint-Augustin.
É importante aclarar que não é meu objetivo tentar,
sistematicamente, assinalar a "verdade histórica" e a ficção, só o
fazendo quando imprescindível, como a análise da personagem
Marie de l’Incarnation, que impõe uma pergunta preliminar: em
que medida se trata de uma personagem histórica ou fictícia?
Françoise-Geneviève Philippe, Madame Philippe, em
religião, Soeur Joséphine-Marie de l’Incarnation (1761-1836), filha
natural de Louis-François de Bourbon, Príncipe de Conti, relatou,
transcorridos mais de quarenta anos, o martírio das dezesseis
religiosas do Carmelo de Compiègne, ao qual pertencera.
A redação do manuscrito ocorreu em um outro contexto
político: a Revolução de 1830 colocara no trono Louis-Philippe
d’Orléans, filho de Philippe-Égalité, guilhotinado pelo Terror e
de quem Madame Philippe era prima irmã.
114
O fato não poderia deixar de impressionar o futuro Cardeal
Villecourt, que prefaciou e publicou o manuscrito, deixando-se
levar pela imaginação e pelos devidos respeito e deferência por
uma sobrevivente do martírio, idosa e bem nascida. O prefácio
forneceu subsídios para a construção de uma personagem
literária, ao conceder-lhe qualidades admiráveis, não
comprovadas historicamente.
Há um certo comedimento ao falar de Madame Philippe-
Soeur Marie de l’Incarnation. William Bush fala de sua "destinée
mystérieuse e si intrigante personnalité" (Bush, 1991: 10). E o Padre
Bruno de Jésus-Marie refere, além da documentação histórica,
estudos grafológicos, que não revelam nenhuma tendência para a
grandeza trágica que lhe é atribuída por Gertrud von le Fort e
reiterada por Bernanos e Poulenc.
Gertrud von le Fort modifica a personagem e faz-lhe o
panegírico em seu texto. Marie de l’Incarnation é sempre
apresentada com grandes elogios - "grande dama de sangue real,
grande carmelita, mulher admirável", impressionante, notável,
milagrosa, grande e digna religiosa, heróica e muitos outros
encômios (le Fort, 1938).
Francis Poulenc, em sua ópera, fá-la partilhar uma grandeur
terrifiante com Madame de Croissy e a nova Priora, no constante
115
oscilar entre luzes e escuridão, cumes e abismos (Coutance,
1994).
Terrível, parece ser a melhor caracterização da personagem,
fazendo ressoar o Cântico dos Cânticos: “Quem é esta, que avança como
a aurora quando se levanta [...] terrível como um exercito formado em
batalha?" (Cântico: 6,9 ).
Assim, uma personagem histórica tornou-se inteiramente
fictícia, caracterizada pela grandeza trágica.
Importa enfatizar que Marie de l’Incarnation, como
referido, era filha natural do Príncipe de Conti. Gertrud von le
Fort menciona o fato, omitido por Bernanos, embora este faça
referências às relações de família e de amizades que a ligavam à
nobreza.
Os filhos naturais não eram estigmatizados na corte
francesa. Louis XIV reconheceu e dignificou os seus bastardos.
Cito, entre outros exemplos, a legitimação dos dois filhos de
Louise, Duquesa de la Vallière, assim como a de todos os filhos
de Madame de Montespan, outra favorita.
Mas o fato de ser filha ilegítima modificaria, a meu ver, seu
posicionamento em relação ao código de honra da nobreza. Seu
lugar na sociedade não é algo que lhe é devido - seu quinhão e
seus direitos - mas o resultado de uma certa condescendência e
tolerância social.
116
As pesquisas não fazem referência ao nome da mãe de
Marie de l’Incarnation, sendo somente mencionado o nome do
pai, o Princípe de Conti, que lhe legara uma pensão. Isso
justificou a ida da religiosa à Paris para tratar da referida pensão.
Portanto, quando suas compenheiras foram encarceradas e
condenadas à guilhotina, ela não estava presente.
Em Dialogues, Bernanos apresenta Marie de l’Incarnation
com uma sobriedade clássica. Ela seria a mais digna de ser eleita
Priora. Tal constatação, feita por Blanche (DC: 1613) e por Mère
Lidoine (DC: 1665), não explicita as razões de sua superioridade.
Apenas uma vez lhe é atribuído o adjetivo admirável,
contrariamente a Gertrud von le Fort que o banaliza pela
repetição.
A personagem se caracteriza pelas ações e pela maneira de
ser: sua voz “basse et martelée où l’on sent toute la passion contenue”
(DC: 1663); a violência, às vezes, transparece: “Son visage trahit
violemment un premier mouvement, sans doute impossible à reprimer, de
mépris et de colère pour la lâcheté de Blanche” (DC: 1638). A paixão e a
violência manifestam-se em uma conduta firme e inflexível, sendo
reconhecidas inclusive por adversários, em um confronto que não
exclui certa admiração (DC: 1642).
117
Seu discurso revela-se com ímpeto contido. Emoções
controladas, mas não menos violentas que poderiam fazer ressoar
um “jardim fechado, fonte selada” (Cântico: 4,12).
A violência se esconde no despojamento, na obediência
voluntária, na linguagem polida e codificada, misteriosa e
diferente das religiosas. A paixão é linguagem e a linguagem
torna-se ação.
A personagem Marie de l’Incarnation apropria-se do
discurso masculino sobre a honra e lhe confere características
mundanas em desacordo com o espírito da honra cristã. É
preciso considerar que se trata de um discurso masculino, uma
vez que não era exigido das mulheres heroísmo e coragem. Das
mulheres, esperava-se dignidade e fidelidade. Conforme observa
Paul Bénichou, “as princesas disputavam a posse dos reis ou dos grandes
homens” (Bénichou, 1948: 27).
E Marie de l’Incarnation acredita ser a esposa de “Sa
Majesté”, designação corrente no Carmelo para designar Deus.
Nesse ponto, embora sob a ótica mundana, identifica-se com
Santa Teresa que escolheu um amor que durasse eternamente.
Bernanos considera a honra uma espécie de manifestação
carnal do amor de Deus e o tema da honra cristã são recorrente
em sua obra. Em Jeanne relapse et sainte (1929), La grande peur des
bien pensants (1931), Les Grands Cimetières sous la lune (1938), Scandale
118
de la vérité (1939) e Lettre aux Anglais (1942) perpassa e define-se
um conceito de honra cristã, que o autor considera mais
importante para o gênero humano do que a tradição helênica
(EEC I: 572). O autor declara: “car il y a un honneur chrétien. [...] Il
est humain et divin tout ensemble. [...] Il est la fusion mystérieuse de
l’honneur humain et de la charité du Christ “(EEC I: 572)”.
O conceito de honra para Santa Teresa d’Avila, a
reformadora do Carmelo, opõe-se à honra mundana e acrescenta
outra dimensão à honra cristã, ultrapassando-a. Madame de
Croissy, a velha Priora, em agonia, precisa as diferenças:
Dans l’humiliation où je me trouve, il m’est plus facile de comprendre qu’il en est de la règle de l’honneur mondain à l’égard des pauvres filles du Carmel comme de l’ancienne loi pour le Seigneur Jésus- Christ et ses apôtres. Nous ne sommes pas ici pour l’abolir, mais au contraire pour l’accomplir en la dépassant. (DC: 1600)
Importa observar que dépasser - ultrapassar - não significa
abolir. Uma etapa pode ser superada, ultrapassada, mas não
necessariamente abolida. Portanto, Santa Teresa de Jesus, não
invalida o conceito cristão, mas o cumpre e vai mais além,
transpondo seus limites.
A reformadora do Carmelo, em seus escritos, afirma,
primeiramente, que a verdadeira honra não consiste no que o
mundo chama de honra (Ávila, 1995: 139), sendo os dois
119
conceitos incompatíveis (Ávila, 1995: 493). O primeiro, uma
completa reversão de valores, consistiria em perder a vida e a
honra segundo o mundo para compartilhar a humilhação do
Cristo (Ávila, 1995: 141).
O grande obstáculo na conquista da verdadeira honra seria
o amor próprio, concretizado no que se chamava uma questão de
honra - le point d’honneur. Com perspicácia, a Doutora da Igreja
observa que “acreditamos ter renunciado à honra entrando no convento, ou
iniciando a vida espiritual em busca da perfeição, porém, se se toca em nossa
honra pessoal , esquecemos que já a confiamos a Deus” (Ávila, 1995: 70).
A maior honra consistiria em ser pobre. “A pobreza", para
Teresa de Jesus, é "... um bem que encerra todos os bens do mundo. A
verdadeira pobreza é, em si, uma honra imensa que por ninguém pode ser
contestada" (Ávila,1995: 367-368) que se traduz em desapego total
não só dos valores mundanos: nascimento, sangue nobre
(Ávila,1995:495), como também da consideração do outro, “a
alma... não se preocupa em ser estimada ou não. [...] ela se aflige mais de ser
honrada do que de ser desonrada” (Ávila, 1995: 494-495).
O desejo de ser desprezada, tema recorrente nos escritos de
Teresa de Jesus, pode ser sintetizado em uma de suas poesias, no
qual encoraja suas filhas espirituais a caminharem para o céu,
"humildes e desprezadas" (Ávila, 1995:1089).
120
Humildade e desprezo da honra do mundo não
caracterizam a personagem Marie de l’Incarnation. Vale ressaltar,
entretanto, que a cena se desenrola em um contexto histórico-
social que explica, sem justificar, seus desvios do ideal
carmelitano.
O texto de Bernanos, como observa Monique Gosselin,
além de escrito em estilo literário característico do século XVII,
também faz reviver a moral dessa época, através do código de
honra da nobreza.
Se a Igreja valorizava, pelo menos teoricamente, a
humildade, a moral do século não considerava o orgulho um
defeito e sim uma qualidade. Como referido, os grandes não eram
modestos e nem desejavam a obscuridade. O herói corneliano
nunca é humilde. Seu orgulho se afirma com altivez, insolência e
desmedida, valores remanescentes de uma sociedade feudal.
O conceito de honra para Marie de l’Incarnation identifica-
se com estas exigências de uma honra aristocrática e mundana.
“La véritable humilité est d’abord une décence, un équilibre” (DC: 1633).
Equilíbrio, decência e dignidade são os valores fundamentais
desse sistema. Em todas as circunstâncias, há que se manter
calma, tranqüilidade e altivez.
Marie de l’Incarnation dirige-se, com autoridade e firmeza,
à Blanche, transtornada pela visita do irmão: “Remettez-vous, Soeur
121
Blanche” para acalmá-la (DC:1632). Depois, exorta, em um misto
de advertência e ordem: “Tenez-vous fière” (DC:1633). Blanche
deve corrigir não apenas o porte que se encurvara, mas agir com
altivez, moldar-se às exigências e obrigações impostas por seu
nascimento ilustre. Tenez-vous droite, ordem recebida por todas as
meninas bem nascidas, seria a expressão prevista na situação e
não tenez-vous fière. Marie de l’Incarnation joga com o significante
fière, produzindo essa multiplicidade de sentidos.
O discurso de Marie de l’Incarnation apresenta várias
peculiaridades. Trata-se de um posicionamento sobre o código de
honra ligado a um grupo social que raramente ultrapassa os
limites da família. Esses valores persistem e são tolerados no
convento. Com perspicácia, Madame de Croissy observara:
Et pour tout résumer d’un mot qui ne se trouve plus jamais sur nos lèvres, bien que nos coeurs ne l’aient pas renié, en quelque conjoncture que ce soit, pensez que votre honneur est à la garde de Dieu. (DC: 1601)
Entretanto, mesmo em relação aos valores da nobreza, há
uma desmedida, Hybris gerada pelo orgulho, que faz com que a
personagem Marie de l’ Incarnation exorbite constantemente seu
lugar. Ao ser-lhe concedida a palavra no Capítulo, em uma
deferência excepcional que lhe faz a Priora, ela argumenta:
Mes Soeurs, Sa Révérence vient de vous dire que notre premier devoir est la prière. Mais celui de l’obéissance n’est pas moins grand et doit être accompli dans le
122
même esprit, c’est-à-dire dans un profond abandon de nous-mêmes et de notre jugement propre. Conformons-nous donc, non seulement de bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence. (DC: 1615)
Para refutar o discurso de sua superiora, ela o repete: “Sa
Révérence vient de vous dire que notre premier devoir est la prière”. É
importante notar que a personagem não se inclui entre as
destinatárias do discurso, pois diz vous dire e não nous dire. E passa
a argumentar, mostrando seu desacordo.
A proposição é ambígüa. É preciso obedecer à Priora.
Entretanto, é preciso também obedecer ao convite ao martírio.
Nesse dilema, resta conformar-se à vontade expressa da Priora,
representante de Deus: “Conformons-nous donc, non seulement de
bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence”. O raciocínio deve
ser entendido no contexto do Carmelo, onde a obediência é
considerada virtude primordial. Pois, para a reformadora, Deus
pode ser encontrado mesmo no meio das panelas e a obediência é
preferível ao sacrifício. “O caminho da obediência é o que mais
rapidamente conduz à perfeição” (Ávila, 1995: 633).
Há uma contestação camuflada nessa aparente submissão.
Conformar-se significa submeter-se a contragosto. É preciso
amoldar-se à maneira de ser da Priora. "Conformons-nous... aux
volontés de Sa Révérence". A expressão prevista seria conformar-se
com a vontade de Deus de quem a Priora é a representante. O
123
emprego do plural "aux volontés de Sa Révérence" possui um sentido
ambígüo e insinua que a ordem da Priora origina-se de um ponto
de vista pessoal, o de suas vontades, que não coincidiria
necessariamente com a de Deus. Embora convoque a uma
obediência "non seulement de bouche, mais de coeur", na realidade,
Marie de l’ Incarnation contesta, parcialmente, a ordem da Priora
e de um certo modo a invalida.
Lembro que coeur faz ressoar também o tema da coragem,
no campo semântico do martírio, “conformons-nous... de coeur”
assume um sentido primeiro de conformemo-nos de coração,
mas faz ressoar seu oposto, nesta situação, o qual seria tomemos
a forma da coragem, ou seja, do martírio.
Se Rodrigue, personagem principal de Le Cid, seria o
protótipo literário dos valores da nobreza francesa, o modelo
discursivo de Marie de l’ Incarnation, segundo Bernanos, pode
ser aproximado daquele de Polyeucte (1643) de Pierre Corneille, em
sua atração desmedida pelo heroísmo.
Polyeucte, recém-convertido, destrói as imagens dos ídolos
pagãos, desafia a autoridade romana e permanece inabalável
diante das súplicas de Pauline, sua mulher, que tenta salvá-lo da
morte.
Este procedimento era desaprovado pela Igreja que sempre
aconselhou a prudência e a não provocação.
124
Os valores de um grupo social, a nobreza, evidenciam-se
no confronto entre Marie de l’Incarnation e os revolucionários
que investigam possíveis abusos contra a liberdade humana no
espaço conventual.
A perquirição do Comissário e de seu auxiliar tem como
resultado destacar o sentido de honra para Marie de l’Incarnation.
A honra falaria mais forte do que o medo, o temor. Assim, a sub-
Priora declara ao Comissário que procura encontrar religiosas
enclausuradas a contragosto, para libertá-las: “Monsieur, sachez que
chez la plus pauvre fille du Carmel, l’honneur parle plus haut que la
crainte”.(DC: 1640).
Exprimindo-se por uma máxima, gênero literário
valorizado pelos escritores mundanos do século XVII, Marie de
l’Incarnation emprega o registro de sua classe social, ao opor a
honra ao temor.
Ao contrariar as ordens da Priora, Marie de l’Incarnation
mostra-se altiva, arrogante e insolente diante do Comissário,
pondo em risco a segurança de toda a comunidade. Age de modo
individualista e não como humilde carmelita que deveria ser (DC:
1681).
É necessário, em primeiro lugar, tentar responder à
seguinte indagação: como se caracteriza sua visão do mundo? Em
Dialogues, o discurso manifesta-se cheio de certezas, não
125
admitindo a dúvida nem a possibilidade de diálogo. Caracterizada
pela desmedida e pela rigidez, a visão do mundo de Marie de
l’Incarnation apresenta-se tradicional e rigorista. Sua maneira de
agir poderia mesmo ser qualificada de jacobina, se tal adjetivo não
fosse reservado, naquele momento histórico, aos mentores do
Terror revolucionário de 1792 e 1794.
Ainda segundo a ótica de Marie de l’ Incarnation, os lugares
no mundo estão previamente marcados pelo nascimento, pelo
sangue, pela linhagem, e não existiria possibilidade de mudanças
nem transformações. Suas exigências e intransigências tornam
impossível aceitar as transformações do mundo. Diante das
mudanças operadas, ela declara preferir a morte a aceitá-las:
Vivre n’ est rien, c’est cela que vous voulez dire. Car il n’ est plus que la mort qui compte lorsque la vie est dévaluée jusqu’ au ridicule, elle n’a pas plus de prix que vos assignats. (DC: 1681).
Cair no ridículo, ser ridículo equivalia a uma degradação em
um sistema de valores em que essa era a mais eficiente das armas.
“Est-il croyable qu’un gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer
les voeux?" (DC: 1647). O ridículo, o grotesco, deveria ser evitado
a todo custo.
E seria risível demonstrar emoção de forma excessiva. Dor,
alegria, ódio, amor e medo, sentimentos inerentes ao coração
humano, poderiam ser revelados, mas de maneira contida, sem
126
exageros. Decência resumiria a atitude a ser mantida a todo custo.
Oferecer-se em espetáculo, sob o efeito de uma forte emoção,
constituiria uma prova de mau gosto, seria ridículo.
Assim, Marie de l’Incarnation, mesmo durante a
profanação da capela do convento, acompanhada do canto da
Carmagnole, permanece digna e aristocraticamente calma:
“Allons! Allons! Mes filles, soyez calmes. Pour l’ instant il n’est d’ autre
prière possible que celle-là”.(DC: 1654).
Atitude análoga assumem os nobres presos, à espera da
guilhotina. A indicação cênica (régie) indica que eles são “très
énervés mais qui le laissent paraître le moins possible et se reprennent dès
qu’il le faut” (DC: 1693). Para isso, até jogam baralho. Um dos
nobres, ao ser chamado para a execução, despede-se da mulher
amada, prevê uma gorjeta para o carcereiro e acrescenta: “et vous
présenterez mes civilités au Marquis de la Force. Je le vois là-bas qui
sommeille et je n’oserais pas le réveiller pour si peu” (DC: 1693).
A expressão si peu é a litotes irônica e lírica com a qual o
condenado se refere à morte iminente e à separação da mulher de
quem gostaria de beijar as mãos, se este gesto galante não soasse
ridículo em espaço inadequado. “Adieu, Héloïse. Je vous baiserais bien
les mains si la chose n’était ici ridicule” (DC: 1695) (grifo meu).
A secreta satisfação de considerar-se superior e o desprezo
pela vida revelam-se na réplica do aristocrata, acusado por um
127
dos seus, de não amar a vida: “Nous avons joui d’ elle, et elle jouit de
vous. Nous l’avons possédée, et c’est elle qui vous possède” (DC: 1696).
Marie de l’Incarnation compartilha esse sistema de valores e
acrescenta-lhe a atração pelo martírio, considerada como a
expressão de um amor que deseja a morte. É importante salientar
que seu amor se manifesta de modo contido e frio. Essa maneira
de ser e agir coaduna-se com a personagem histórica que lhe
serviu de inspiração. Ao tentar justificar a não retomada da vida
conventual, Madame Philippe arguia ter tido uma vocação “d’
appel” - de chamado e não “d’ attrait” - atração (Bush, 1988:14).
Nenhuma semelhança com os êxtases amorosos de Teresa de
Jesus que exclamava: “Ansiosa de verte /deseo morir” (Ávila,
1995:1082).
Ao propor e, de certo modo, impor o voto de martírio a
uma comunidade pouco entusiasmada com a possibilidade
concreta de morrer declara:
Je me félicite de vous voir accueillir cette proposition aussi froidement que le Seigneur m’ inspire de la faire. (...) Nous devons donner notre vie avec décence. La donner même à regret, ou du moins avec une arrière-pensée de tristesse, ne saurait nullement offenser la décence. Ce serait, au contraire, y manquer gravement et grossièrement que de nous monter la tête entre nous avec de grands mots et de grands gestes. (DC: 1684-5) (grifos meus)
128
Os valores perseguidos são a decência e a dignidade.
Devem ser evitados: o exagero, a exibição dos sentimentos. O
ideal de uma moral nobre e clássica seria viver a litotes na literatura
e na vida de todos os dias. Litotes que, em grego, significa
simplicidade, é a figura discursiva que melhor caracteriza a atitude
reservada e violenta de Marie de l’Incarnation. “Elle est toujours
extraordinairement simple et naturelle” (DC: 1684), diz o texto.
Sua atitude diante da vida imita a do herói e a do santo que
se despojam dos bens sem os usufruir ou para melhor usufruí-los.
O herói e o santo se assemelham, numa função
mistificante, praticando em si próprios a grande e magnífica
destruição que constitui o ideal de uma família espiritual.
Diferem, entretanto, no que toca às provas que lhes são impostas
por Deus. O herói não duvida de seu destino e até vai ao
encontro das perdas e do sofrimento, enquanto o santo se
submete ao despojamento que lhe é imposto e o aceita.
Marie de l’ Incarnation atua no domínio do heroísmo,
desejando o martírio em um movimento individual, ainda que o
preço a pagar seja a destruição, uma espécie de potlatch. Potlatch
seria um dom ou uma destruição com características sagradas,
que exigiria do favorecido o desafio de uma retribuição
equivalente. Enfocarei não a estrutura potencialmente violenta do
dom (Mauss, 1960: 173), mas a destruição improdutiva, conceito
129
desenvolvido em Saint Genet comédien et martyr (Sartre, 1952) e em
La part maudite (Bataille, 1967).
Segundo esses estudos, algumas elites praticam o potlatch,
sob o aspecto do dispêndio improdutivo. Elas não produzem,
não consomem e desejariam tudo destruir em um rito sacrificial.
Considerado como a suprema glória, o potlatch exige
requisitos: para destruir riquezas é necessário antes de tudo
possuí-las. Enfocado desse modo, o dispêndio inútil é o contrário
do instinto de conservação. Trata-se de um não à vida e de uma
atração pela morte.
Aparenta-se ao potlatch o que Sartre chama de sophistique du
non: uma identificação total entre uma elite e um processo de
destruição, que ninguém aproveita do ponto de vista social. O
supremo requinte consistiria em aniquilar um bem, sem dele
aproveitar-se. Mas o aristocrata possui, em alto grau, o bem
sacrificado, pois, segundo essa ótica, o prazer supremo consistiria
em recusar o prazer.
Os aristocratas inutilizaram o ouro, aplicando-o nas paredes
das igrejas (Sartre, 1952:190). O ouro inútil seria uma metáfora do
trabalho humano, dos prazeres da vida sacrificados e destruídos,
não por amor aos pobres, mas por amor a Deus.
Como justificativa, fala-se de honra e principalmente de
suprema renúncia: viver é morrer; morrer é viver; a recusa é
130
aceitação. E Sartre cita o espanhol São João da Cruz, poeta maior,
que cantou o despojamento total
Para venir a gustarlo todo no quieras tener gusto en nada. Para venir a saberlo todo no quieras saber algo en nada. Para venir a poseerlo todo no quieras poseer algo en nada. ... Para venir a lo que gustas has de ir por donde no gustas. (São João da Cruz, Monte Carmelo) Tal é a visão de Sartre, coerente com sua visão do mundo.
O que não invalida suas observações pertinentes, quando afirma
que esta sophistique du non agrada, não apenas aos místicos, mas
também aos aristocratas em geral, e, sobretudo aos
conservadores. A Sophistique du non não constitui uma ação;
muitas vezes, é apenas uma retórica, e não é isto que mudará o
curso do mundo.
Os nobres, durante a Revolução Francesa, não queriam
mudar a História, um conceito dinâmico e burguês; preferiram
perder a vida a renunciar aos privilégios. A morte física pouco
lhes importava diante da destruição de um mundo, de um regime
com o qual se identificavam e que fazia parte de suas existências.
131
A personagem Marie de l’Incarnation, em sua visão do
mundo individualista e exaltada, despreza a vida que não mais
corresponde aos padrões rígidos e intransigentes da classe
privilegiada. Deseja o martírio, que lhe será, posteriormente,
negado, e deve, no momento, submeter-se à autoridade de uma
superiora que representa o ponto de vista comunitário, burguês,
astucioso, pragmático, flexível e que, surpreendentemente, a
conduzirá ao martírio.
132
A reversão de Valores
Par ma coiffe! Le Carmel n’est un pas un ordre de chevalerie, que je sache” !
Bernanos
Como qualificar o discurso que se opõe aos princípios
aristocráticos? Classificá-lo apenas como um discurso burguês
seria por demais simplista. No século XVIII, às vésperas da
Revolução, a sociedade francesa compreendia dois grandes
grupos, havia os nobres e os plebeus - les roturiers - que se
subdividiam em burgueses, artesãos e camponeses. A burguesia é
diversa e múltipla. Talvez o único ponto em comum entre a
grande, a média e a pequena burguesia seja o fato de não ser
nobre. E a nobreza também possuía subdivisões: nobreza de
sangue, de toga, pequena, grande nobreza, entre outras.
Contra todas estas discriminações será proclamado em
1789: “todos os homens nascem iguais”. O nobre adquiriu
nobreza, em alguma longínqua ocasião, em que foi recompensado
pelo bel prazer do rei ou por lealdade e coragem. Sua
superioridade advém de possuir um nome com grande extensão
no tempo e conhecer o que faziam seus antepassados na época
das Cruzadas. Orgulhava-se o fidalgo de ter nascido distinto, filho
d’ algo, de alguém célebre, conhecido por suas posses ou suas
133
façanhas. Ser nobre, ao contrário do que se queria fazer crer, não
é possuir uma essência inata, mas uma questão de tempo e de
memória, apenas.
Assim pensava Arouet de Voltaire, em 1726, ao acreditar
pertencer à nobreza por suas qualidades intelectuais e permitir-se
responder ao Cavalheiro de Rohan que zombara de sua nobreza
recente e de seu nome: “J’ aime mieux être le premier du mien que le
dernier du vôtre” (Peyrefitte, 1985). Voltaire foi espancado, preso na
Bastilha e pressionado a deixar a França, refugiando-se na
Inglaterra.
Cito este episódio emblemático, por ter Voltaire se iludido
a respeito de seus amigos da alta estirpe e remeto à leitura das
Mémoires do Duque de Saint-Simon que desperdiçava parte do seu
talento contestando a nobreza de seus pares.
Reiteradas a insolência, a arrogância da aristocracia e a
multiplicidade e diversidade da burguesia, indago: que nome
atribuir ao discurso que contesta o princípio aristocrático?
Qualificá-lo de pragmático não seria abrangente e limitaria o seu
emprego. Classificá-lo como novo não corresponde à realidade,
pois os valores que se afirmam e se fazem ouvir sempre existiram,
embora ocultados por uma moral heróica oficial. Princípio
democrático também não engloba o conjunto de valores que se
opõem à moral aristocrática. Resta-me empregar a expressão
134
discurso burguês, embora considere o sentido pejorativo que
atualmente lhe é atribuído. Enfatizo que o termo é utilizado no
sentido de valor plebeu, daquele que não é nobre, de quem
acredita em mudanças, em que não há mérito em nascer nobre e
principalmente crê que todos os homens nascem iguais.
O discurso burguês representado em Dialogues,
principalmente, por Mère Lidoine, a nova Priora, oriunda da
pequena burguesia, denuncia as incoerências e exageros do
código de honra da nobreza. E vai revelar a rigidez e as
contradições de um discurso distorcido pela exaltação, pela
desmedida e que se manifesta entre as religiosas no desejo do
martírio: “Il n’est pas question pour nous de martyre, je ne veux pas
que vos têtes s’echauffent là-dessus. Nous risquons d’être jetées à la rue,
rien de plus. [...]. Voilà de quoi refroidir vos imaginations” (DC: 1627)
(grifos meus).
A Priora usa toda a autoridade que o cargo lhe confere para
ordenar: “Je ne veux pas”. A força brutal da expressão deve ser
avaliada em um meio em que predominam as perífrases corteses e
as fórmulas antiquadas de polidez. O emprego da forma verbal na
lª pessoa do singular explica-se pela gravidade da situação e é
reforçado por: “Nous risquons d’ être jetées à la rue, rien de plus”. "Rien
de plus", nada mais, coloca um ponto final na ordem expressa da
Superiora, não admitindo réplicas ou contestações.
135
A oposição s’échauffer x refroidir revela o que deve ser
evitado; s’échauffer, perder o controle, deformar a realidade por
causa dos sentimentos exaltados e refroidir contém a idéia de
equilíbrio, predominância da razão. A linguagem popular
emprega freqüentemente “não esquenta”, “é uma pessoa
esquentada” e também o “fica fria”, no sentido de “veja os
problemas de um modo racional”, “mantenha a calma”.
Em um registro voluntariamente coloquial, a Priora, serena
e modesta, procura preservar as religiosas contra o fanatismo do
ideal que seria desejar o martírio, quando o problema que se
coloca é o de serem expulsas do convento, que a ameaça
existente é ficar sem teto, ser jogada na rua, nada mais.
Ela dialoga com um discurso não explícito, mas em
circulação - o dos valores aristocráticos. Responsável pela
comunidade diante de Deus e diante das autoridades civis tentará
todos os meios lícitos para preservá-la. Seu comportamento visa
o poder civil e as religiosas. Quanto à lei, conformar-se-á com os
decretos, sem discutí-los (DC: 1647) e quanto às religiosas,
procurará mantê-las equilibradas e dentro da realidade, opondo à
exaltação do desejo de martírio, o equilíbrio e a humildade. A
humildade consiste em conhecer o seu lugar e representa o
oposto do orgulho. Enquanto Blanche procura seu lugar no
mundo e Marie de l’Incarnation extrapola o seu, Mère Saint-
136
Augustin sabe exatamente qual é o seu lugar. Sua força e
equilíbrio decorrem deste conhecimento. A propósito do desejo
de martírio, ela declara:
Ce n’est pas à nous de décider si nous aurons ou non, plus tard, nos pauvres noms dans le bréviaire. Je prétends bien n’être jamais de ces convives, dont parle l’ Evangile, qui prennent la première place et risquent d’ être envoyées à la dernière par le Maître du festin. (DC: 1663)
Ter o nome inscrito no breviário, ser um santo canonizado,
reconhecido publicamente pela Igreja, é uma alusão recorrente
em Bernanos. Convém ser humilde e procurar não os primeiros
lugares nos banquetes, como os grandes deste mundo, mas sim os
últimos lugares, pois “quem se exalta será humilhado e quem se humilha
será exaltado” (Lc: 18,14). Aqui se estabelece um diálogo em
surdina com outro texto do Evangelho “os últimos serão os
primeiros” (Mt: 19,30), que prenuncia uma reversão total no
desenrolar previsto da ação.
O tema da graça, da escolha misteriosa de Deus, que chama
alguns e recusa outros, está presente nessa postura contrária à
visão exaltada de Maria de l’Incarnation que representa, no
momento, a quase maioria da comunidade.
Referindo-se ao desejo do martírio, a Priora afirma falar
como todo o mundo, usando o sentido mais comum das palavras:
137
Je donne au mot son sens ordinaire, je parle le langage de tout le monde. [...] Par ma cornette! Lorsque nous aurons nommé bonheur ce que le commun des hommes appelle malheur, en serons-nous bien avancées? (D.C: 1664) (grifos meus)
Em um discurso coloquial, intercalado por uma expressão
popular - "par ma cornette", a Priora assume uma posição em favor
da Doxa, saber comum. A acumulação de "sens ordinaire, tout le
monde, le commun des hommes" faz ressoar a Declaração dos direitos
do homem e do cidadão que proclama a igualdade fundamental
do homem. Segundo estes valores, quem decide é a maioria,
composta de pessoas comuns. Importa a quantidade de vozes e
não a posição social de quem pleiteia.
Esta é a grande mudança em relação ao princípio
aristocrático, em que o poder emanaria de Deus, que se faz
representar pelo rei, que por sua vez delega poderes aos nobres.
No seu discurso, Mère Lidoine alude aos valores
comumente aceitos, exprime a opinião geral, a Doxa, em oposição
aos valores de uma elite.
Continuando sua exposição, a Priora denuncia a fatuidade
de desejar o martírio: “Désirer la mort en bonne santé, c’ est se remplir l’
âme de vent, comme un fou qui croit se nourrir à la fumée du rôti” (DC:
1664). Ela refuta a sophistique du non, e evidencia o vazio e um
138
certo ridículo contido no jogo de palavras e na reversão dos
valores: o viver é morrer, morrer é viver... E desqualifica, de
modo definitivo, qualquer ação que precipitasse o martírio e, até
mesmo, o simples desejo de martírio.
O efeito provocado por esse discurso é previsível: todas as
religiosas abaixaram a cabeça, em sinal de submissão aparente.
Após observar a reação da Comunidade, sobretudo das freiras
mais jovens e, portanto, mais seduzidas pela idéia do martírio, a
Priora muda de tom e de tática:
J’avais besoin de vous remettre un peu d’aplomb, mes filles. Vous ne teniez plus au sol, vous deveniez si légères qu’un coup de vent dans vos jupes aurait suffi pour vous élever au ciel et vous perdre dans les nuages, comme le ballon de Monsieur Pilâtre. (DC: 1664)
O discurso da Priora é extremamente hábil. Após falar com
toda a autoridade que lhe confere seu cargo, ela faz apelo ao
sentimento, à emoção. Ela possui um Logos, mas, por tática,
dissimula-o, ao empregar um registro coloquial, expressões
familiares, visando convencer e conseguir a adesão não apenas
formal, mas de coração, daquelas que considera suas filhas.
Denuncia a ilusão de desejar e provocar o martírio, em termos
concretos e familiares, e alude a um acontecimento da época. Um
vento mais forte nas saias - "dans vos jupes" - seria suficiente para
que elas voassem e se perdessem nas nuvens "comme le ballon de
139
Monsieur Pilâtre". Hoje, o nome de Pilâtre de Rozier é
desconhecido, mas, por volta de 1783, este pseudo-cientista fazia
experiências com a eletricidade e balões diante de um público
elegante, constituído sobretudo de mulheres, encantadas com as
lições de física experimental do jovem professor (Darnton,1984:
188). A alusão de Bernanos não é inocente e reforça a idéia de
que desejar o martírio é alimentar uma quimera, uma ilusão,
como os extraordinários jogos de luz utilizados por Pilâtre de
Rozier em 1783, em Paris.
Prudente na direção de sua comunidade religiosa, a Priora
se mostra igualmente hábil e correta em relação ao poder civil.
Tendo já declarado que tentaria todos os meios lícitos para
preservar seu convento, tanto do ponto de vista espiritual quanto
material, ela se mostrará conciliante, porém digna. Procura viver
o espírito da regra carmelitana que, antes de enfrentar a violência,
tudo faz para desarmá-la.
Ao se submeter ao decreto que proíbe a emissão de novos
votos religiosos, a Priora age com uma correção exemplar. Dá a
César o que é de César. Diante da reação apaixonada de Marie de
l’Incarnation, que esperaria uma atitude de desobediência ao
poder civil, ela replica não poder arriscar a segurança de toda a
comunidade e infringir uma ordem, em benefício de uma única
pessoa, mesmo em se tratando de Blanche de la Force. Prevalece
140
o critério democrático da maioria: “Je ne puis risquer de sacrifier à
Mademoiselle de la Force la sécurité de toutes mes filles” (DC: 1648).
Inconformada, Marie de l’Incarnation apela para um
sentimento de honra mundano e alude às últimas vontades de
Madame de Croissy. A Priora relembra em que consiste a
verdadeira honra, para uma carmelita, e alude à possibilidade de
um desígnio particular para Marie de l’Incarnation. A
argumentação que se segue pertence a uma outra ordem: “Mère
Marie, je ne veux rien dire de trop, mais vous parlez de l’honneur comme si
nous n’avions pas depuis longtemps renoncé à l’estime du monde”
(DC:1648). A Priora sabe muito mais do que faz transparecer e
deixa sem resposta a pergunta que é uma afirmação: “Que
pourrions-nous désirer de mieux que de mourir?" (DC: 1649).
O silêncio também é uma resposta. A verdade intuída não
pode ser demonstrada pela lógica e Mère Saint-Augustin se cala,
indicando que o mais importante não foi dito. Silêncio que
dialoga com a atitude de Cristo, diante de Pilatos: “E Jesus se
calava” (Mt: 27,14).
O discurso de Mère Lidoine percorre vários registros de
linguagem: alterna uma linguagem coloquial com expressões
populares e, quando necessário, exprime-se com elevação e
grandeza. Além disto, tem a habilidade de esconder a própria
habilidade em argumentar, em convencer.
141
Para convencer, a Priora emprega diversos recursos que
serão assinalados ao longo desta análise e que consistem em:
argumento da autoridade pura e simples, considerações de ordem
espiritual, apelo à emoção, razões de ordem prática e de
sobrevivência e a tática de conceder a última réplica ao
interlocutor.
O confronto entre os dois sistemas de valores, aristocrático
e plebeu, representados no texto por Marie de l’Incarnation e
Mère Saint- Augustin, pode ser exemplificado no diálogo que se
segue :
Mère Marie: Est-il croyable qu’un gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer les voeux? La Prieure: Croyable ou non, ce décret doit vous paraître assez clair. Mère Marie: Votre Révérence est-elle décidée à s’y conformer? La Prieure: Oui (DC:1647)
Ao finalizar a discussão densa e contida, Mère Lidoine
explicita suas razões de prudência e de obediência civil: uma
cerimônia no Carmelo dificilmente passaria despercebida em uma
cidade cheia de espiões. E a menor indiscrição lhes faria perder a
cabeça. A inserção no momento histórico e na cidade de
Compiègne marca a mudança de registro finalizada com o
intencionalmente prosaico: “La moindre indiscrétion nous ferait couper
le cou” (DC: 1649).
142
O Carmelo não mais é visto como uma cidadela inviolável
e, de certo modo, invisível. Os muros da clausura, tornados
transparentes, exporiam as religiosas ao olhar ameaçador do
outro.
A Priora enfrenta um conflito que se desenrola em dois
planos: o circunstancial, com as medidas hostis da Revolução
contra os religiosos e o espiritual, agravado pelas visões do
mundo antagônicas, no interior do Carmelo.
A proibição de emitir novos votos atingiu particularmente
duas noviças, as personagens Blanche de la Force e Constance de
Saint-Denis.
Diante do dilema: obedecer a Deus e arriscar a segurança
da Comunidade, ou curvar-se diante de uma ordem arbitrária, a
Superiora assume o conflito, mas tenta, primeiramente, resolvê-lo
de modo prático.
Se a Assembléia Nacional interditara a profissão de votos
religiosos e se Blanche se revelara incapaz de superar o medo, o
mais prudente seria considerar seu período de noviciado
insatisfatório e despedi -la.
A Priora age dentro das normas, pois o noviciado é um
tempo de preparação imposto pela Igreja aos candidatos à vida
religiosa, com uma duração mínima de doze meses e no máximo
de três anos. Durante esse período, o canditado pode desistir ou
143
ser julgado inapto à vida religiosa ou àquela determinada Ordem
ou Congregação.
Diante da reação humilde e desesperada de Blanche, a
Priora decide refletir mais sobre o assunto. Despedir Blanche era
uma solução oficial e parcial: restava solucionar o problema dos
votos de Constance de Saint-Denis.
Importa observar que, antes de tentar resolver o problema
da proibição de emitir votos religiosos, a Priora já o tinha
dirimido através da linguagem ao empregar uma grande
habilidade ou a inteligência astuta, a Mètis grega.
Segundo Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne (1974), a
civilização grega, caracterizada pela Mètis, cala freqüentemente a
seu respeito. Não há tratados nem sistemas filosóficos sobre os
princípios da inteligência astuta, como há tratados sobre a lógica.
A astúcia, a mètis, presente no universo mental dos gregos, precisa
ser descoberta no jogo das práticas sociais e intelectuais, em que
sua presença se revela de modo às vezes obsessivo. Os dois
helenistas estudam a etimologia de mètis. Como substantivo
comum, mètis significaria uma forma de inteligência, uma certa
prudência. Como nome próprio, Mètis teria sido a primeira
mulher de Zeus, filha do Oceano e mãe de Atena. Sua atividade
cessa ao ser engolida por Zeus que, receoso de ser suplantado por
um possível filho, conserva a Astúcia dentro de si e torna-se a
144
própria astúcia. Há deuses colocados sob o signo da astúcia:
Atena, Hermes, Afrodite, Hefesto, e os que não a possuem como
Apolo e Dionísio.
Mètis, a astúcia, seria, portanto, mais uma categoria mental
do que uma noção. Ela é uma forma de inteligência e de
pensamento; um modo de conhecer; implica um conjunto
complexo, mas muito coerente, de atitudes mentais, de
comportamentos intelectuais que combinam o faro, a sagacidade,
a previsão, a maleabilidade de espírito, o fingimento, o
desembaraço, a atenção vigilante, o senso da oportunidade,
habilidades diversas e uma experiência longamente adquirida
(Detienne & Vernant, 1974:10).
O agir da Priora revela habilidade e astúcia, sua mètis, ao
recitar o Hino de Santa Teresa d’Avila antes de ler o decreto da
Assembléia Nacional. Observarei, primeiramente, a indicação
cênica - régie - que antecede o Hino.
Chapitre. Toutes les religieuses sont solennellement rassemblées. Avant de lire le décret, la Prieure récite avec ses filles l’hymne de Sainte Thérèse d’Avila:
Je suis vôtre et je suis en ce monde pour vous. Comment voulez-vous disposer de moi? Donnez-moi richesse ou dénuement, Donnez-moi consolation ou tristesse, Donnez-moi l’allégresse ou l’affliction
145
Douce vie et soleil sans voile Puisque je me suis abandonnée tout entière Comment voulez-vous disposer de moi?
La Prieure: Je dois vous donner lecture du décret de l’Assemblée qui suspend jusqu’ à nouvel ordre les voeux de religion. No tocante a "Chapitre" - Capítulo ou sala do Capítulo -
deve ser esclarecido que se trata de um espaço, no interior do
Carmelo, onde se reúnem as religiosas para deliberar e tomar
decisões. A Priora comunica as diretivas do dia. Tudo o que é
importante decide-se, oficialmente, nesse espaço consagrado à
autoridade.
Outra indicação teatral já havia descrito a sala do Capítulo
“Comme toute les salles communes, celle-ci est petite et voûtée. Au mur un
très beau crucifix. Sous le crucifix le fauteuil de la Prieure.Le long des murs,
un banc où s’assoient les religieuses” (DC:1614).
Nessa sala comum, destaca-se "un très beau crucifix. Sous le
crucifix le fauteuil de la Prieure". A oposição "fauteuil - banc" -poltrona
- banco - representa a hierarquia religiosa. As religiosas sentam-se
em um banco. Há que se notar o apelo cinematográfico da
indicação que, no quadro espaço-temporal, destaca três planos:
no alto, o crucifixo; abaixo, a poltrona da Priora; e a uma certa
distância, o banco das religiosas, anônimas.
146
Nesse espaço organizado sob o signo da autoridade
espiritual, "Toutes les religieuses sont solennellement rassemblées". As
religiosas são aquelas que pronunciaram votos numa religião.
Várias hipóteses tentam explicar a etimologia da palavra religião.
Originária do latim religio (veneração, atenção escrupulosa),
religião pode ter sua origem no verbo religare e este sentido é
muito conhecido. Pode também significar juntar e sua origem
etimológica seria o verbo legere: reunir, no sentido próprio, e ler,
no sentido figurado.
As religiosas, religadas a um poder sobrenatural, reúnem-se
em comunidades, para melhor atingir seu objetivo. Elas sabem,
principalmente, ler, descobrir o sentido não evidente dos seres e
das coisas (Kristeva,1969:181).
Em Dialogues, trata-se de uma reunião solene. Solennellement,
de acordo com sua etimologia, solennelle, radical en do latim annus,
exprime um acontecimento, um fato que ocorria apenas uma vez
por ano. O emprego do advérbio solennellement destaca o caráter
oficial e excepcional da reunião capitular.
Antes de ler o Decreto - domínio civil -, a Priora recita o
Hino -domínio espiritual -. No conflito entre a horizontalidade -
a marcha da História - e a verticalidade - a aspiração para o alto -,
destaca-se a mètis, a astúcia da Priora. Ela se adapta ao imprevisto
147
das circunstâncias e diante dos acontecimentos sabe pilotar seu
navio com arte e segurança.
A inteligência astuta exerce-se em diversos planos, mas
sempre de modo prático: a habilidade do artesão, do sofista, a
prudência do político ou a arte do piloto dirigindo seu navio. Não
existem regras imutáveis. Cada dificuldade exige a procura de
uma solução, de uma saída.
À rigidez aristocrática opõe-se a maleabilidade burguesa. A
astúcia é um valor não-nobre. O fidalgo julgaria aviltante ser astuto.
Somente quem está em situação inferior precisa empregar ardis,
ser esperto. Quem exerce o poder, aquele que é ou se julga
superior emprega a condescendência, a autoridade ou a
arrogância.
Diante do impasse, ameaçada pelo Terror, Mère Lidoine na
condição de autoridade, recorre, então, à astúcia, através da
linguagem.
O verbo réciter, do latim recitare, tem como raiz o verbo
latino cio: empurrar, agitar, provocar, excitar. Recitar significa ler
em voz alta um documento em uma sessão pública. Recitar não é
simplesmente repetir palavras. Significa pedir socorro, provocar
emoções, despertar sentimentos. Todas essas idéias são evocadas
no texto. As religiosas conhecem o Hino, tantas vezes repetido.
Sua recitação solene, na sala do Capítulo, é um pedido de socorro
148
e uma ação que se concretizam no dizer. O Hino constitui uma
promessa de união espiritual e um compromisso que se realizam
no momento em que é pronunciado.
A idéia de que existem atos que podem ser realizados pela
palavra não constitui uma novidade. A criação do mundo,
relatada no livro do Gênesis, decorre da palavra de Deus: “E disse
Deus: Haja luz. E houve luz” (Gênesis, 1,3). E esta fórmula repete-se
na narrativa da criação, centralizada no verbo dizer e seguida do
verbo ver: "E viu Deus que isso era bom” (Gênesis, 1,18). A idéia da
palavra criadora é tratada por Aristóteles principalmente na
Poética.
A palavra cria, constitui uma ação e pode tornar-se uma
realidade autônoma. Na tragédia clássica francesa o dizer equivale
a um fazer.
Quando a personagem Phèdre de Racine revela sua paixão
incestuosa por Hippolyte, torna-se culpada pelo fato de ter
falado, dado corpo a um sentimento. O silêncio constituía sua
liberdade; seu falar coincide com o fazer.
Esta noção está presente no pensamento grego antigo,
embora não seja tão evidente em nossa época, na qual a ação
concreta é mais valorizada. Existiria uma gradação de importância
crescente em pensar, falar e agir. Assim, no Confiteor, o cristão se
acusa de ter pecado "por pensamento, palavras e obras".
149
Recitado na 1ª pessoa do singular do Indicativo Presente, o
Hino de Santa Teresa realiza o que enuncia. Renovou os votos das
religiosas e permitiu que Blanche de la Force e Constance de
Saint-Denis professassem, apesar da proibição da Assembléia
Nacional.
Expressão de um amor intenso, síntese do espírito
carmelitano, o cântico congrega todas as religiosas. É também o
ponto de convergência, em que os discursos antagônicos
encontram um denominador comum: o abandono total à vontade
de Deus. O discurso da alma enamorada de Deus e os termos nos
quais se exprime a paixão humana muitas vezes coincidem.
O místico, ao comunicar sua experiência de união com
Deus, recorre freqüentemente a uma linguagem erótica,
transgressora e poética, a “lingua nova”, a “logothesis" (Barthes,
1994:1043). E tentaria produzir na linguagem efeitos relativos ao
que não está na linguagem. Os místicos aspiram a um gozo além
do plano físico, a uma fusão, a uma comunhão que pode utilizar,
como metáfora, o amor humano. Neste sentido, pode ser
entendida a afirmação de que somente os corações religiosos
conhecem a verdadeira linguagem das grandes paixões.
A procura de um amor eterno, infinito, não submetido à
usura do tempo, poderia concretizar-se no Carmelo. Santa Teresa
dizia procurar um amor que durasse para sempre.
150
A alma diz-se seduzida por Deus e a distância que a separa
do Ser amado aumenta seu desejo em lugar de diminuí-lo. O
profeta Jeremias sintetiza o sentimento da alma envolvida no jogo
de sedução do qual Deus é o grande parceiro: “Tu me seduziste,
Senhor, e eu me deixei seduzir; foste mais forte do que eu, e pudeste mais"
(Jeremias, 20,7).
Além de ser um canto de amor, o Hino constitui os termos
de um contrato de casamento. Convém lembrar que o ministro
do sacramento do matrimônio não é o sacerdote e sim os
nubentes através de um consentimento mútuo.
A alma, enamorada de Deus, reafirma o dom total de si
própria e destaca o domínio de sua ação: “Je suis en ce monde pour
vous”. "Ce monde", este mundo, possui uma conotação espaço-
temporal, inscreve-se na História e se opõe ao reino de Deus.
“Meu reino não é deste mundo”, diz o Cristo (Jo, 18:36). A alma
reitera que ela vive neste mundo, de modo provisório, e anseia
encontrar Deus em uma outra vida, em um outro mundo. E
viver, de acordo com a tradição judaico-cristã, baseada, entre
outros, em Platão, seria um exílio.
O Hino de Santa Teresa é a expressão dessa espiritualidade
carmelitana. Ao ser recitado, estreitou os laços que uniam as
religiosas entre si, possibilitou a renovação dos votos proferidos e
a emissão de novos votos. A habilidade da Priora tornou possível
151
obedecer a Deus, sem provocar o poder civil, através da mètis, da
astúcia.
A Priora lê o decreto. Ler não é recitar. Ler vem de lex, do
latim legere. As autoridades civis tomaram uma decisão através de
um decreto, determinação escrita com força de lei. Sozinha, a
Superiora cumpre o dever de seu cargo de modo objetivo e
neutro. Trata-se de uma obrigação externa, civil. Não julga. Justo
ou não, o decreto deve ser obedecido e a Priora a ele se submete
para proteger a Comunidade. Neste momento, toda uma
habilidade entra em ação para conseguir um objetivo: a
sobrevivência das religiosas como indivíduos e como entidade
religiosa.
No estudo consagrado à mètis grega, há exemplos das
táticas de sobrevivência: a raposa finge estar morta e o ouriço
fecha-se em si mesmo. É a atitude oposta do herói que desafia a
morte e se expõe ao perigo.
Precisa-se, um pouco mais, a grande oposição entre os
valores, aristocrático e burguês, o emprego da astúcia para
sobreviver. Não se trata de covardia, mas de simples bom senso.
Agindo com habilidade e tendo superado o dilema entre o
sagrado e o profano, através da linguagem, a Priora, após ler o
decreto, permite-se um discurso pessoal. Depois de algumas
considerações preliminares que fazem apelo à generosidade, à
152
vocação carmelitana baseada na humildade e na modéstia, a
Priora, cônscia de sua responsabilidade, recusa a desmedida, a
hybris.
Primeiramente ela adverte:
Car en toute conscience des devoirs de ma charge, je dois vous dire que je ne saurais tolérer plus longtemps une certaine exaltation qui - si élevés qu’ en soient les motifs - ne nous en distrait pas moins des modestes devoirs de notre état. (DC: 1652) (grifo meu)
A advertência contra a exaltação, contra a desmedida
fundamenta-se, também, no ideal carmelitano: há que se ter a
justa medida em tudo o que se faz. Somente o amor de Deus
pode ser desmedido.
Prudente e reservada, a religiosa deve cumprir o seu dever e
desconfiar de tudo o que possa afastá-la da oração, mesmo que se
trate do martírio. Conta-se que, enquanto a Santa Inquisição
deliberava se as visões e êxtases de Teresa tinham origem divina
ou demoníaca, a Santa varria os corredores do convento,
observando que a mulher que ocupa as mãos não perde a cabeça.
Somente o trabalho pode afastar os delírios de uma imaginação
desregrada.
Após ter advertido, a Priora ordena: “Ma volonté bien réfléchie
est que cette communauté continue de vivre aussi simplement que par le
passé” (DC: 1652).
153
O valor dessa ordem deve ser avaliado dentro do espírito
da regra do Carmelo. Santa Teresa d’Avila introduziu um novo
elemento no processo de ascese mística: a obediência, na
tentativa de neutralizar as teorias do livre exame, as teorias de
Erasmo que circulavam na Espanha. Sob o signo da obediência,
reafirma a autoridade da Igreja, numa época em que o poder
espiritual abrangia também o poder temporal.
As religiosas despojaram-se, voluntariamente, da liberdade
através do voto de obediência e devem obedecer à Priora,
representante de Deus e intérprete da Lei. As relações
estabelecidas entre Deus, as religiosas e a superiora são
sintetizadas em Dialogues: “C’ est à Dieu qu’ elle appartient, mais Votre
Révérence en reste l’usufruitière de par la charge à laquelle nous l’ avons
volontairement et librement désignée”, pondera uma das
carmelitas (DC:1711) ( grifo meu).
A Priora responde diante de Deus e diante do poder civil
pelas religiosas. Este esquema repete, no convento, a mesma
estrutura da monarquia francesa de direito divino, como a de Luís
XIV. O rei só prestaria contas a Deus, mas é responsável pelo seu
povo - os súditos -, que lhe devem obediência.
É importante constatar a diferença existente entre a
personalidade da Priora e o exercício de seu cargo. Mère Lidoine
se caracteriza como uma velha religiosa, um pouco repetitiva e
154
sem grandes pretensões: “Une vieille femme un peu terre à terre, un peu
radoteuse.” (DC: 1664). Conciliante e bondosa, ela representaria a
sabedoria, o aspecto positivo da velhice. Entretanto, age de modo
autoritário, porque está investida de poder que lhe confere a
hierarquia da Ordem do Carmelo.
As religiosas devem obedecer à vontade de Deus expressa
através das ordens da Priora e esta tem plena consciência dos
deveres de seu cargo: “c’est moi qui répondrai de vous toutes et je suis
assez vieille pour savoir tenir mes comptes en règle” (DC: 1699).
Porém, antes de determinar sua ordem, a Priora tentara, ao
assumir o superiorato, convencer as religiosas utilizando uma
linguagem metafórica que ilustra, reitera e sintetiza sua maneira
de pensar. Primeiramente. ela aconselhou:
Je vous répete que nous sommes de pauvres filles rassemblées pour prier Dieu. Méfions-nous de tout ce qui pourrait nous détourner de la prière, méfions-nous même du martyre. [...]. Lorsqu’ un grand Roi, devant toute sa cour, fait signe à la servante de venir s’ asseoir avec lui sur son trône, ainsi qu’ une épouse bien-aimée, il est préférable qu’ elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses oreilles, et continue à frotter les meubles. (DC: 1615) (grifos meus)
A Priora não diz "si un grand roi" mas “lorsqu’un grand Roi".
O emprego da conjunção lorsque - quando, indica uma realidade,
uma circunstância atual. O grande Rei acena: o Terror
155
revolucionário fazia vítimas. Não se trata de uma hipótese, mas
de uma probabilidade cada vez mais próxima. A idéia do martírio
não é afastada, mas designada metaforicamente como "l’ invitation
du grand Roi". Mister se faz agir com prudência e uma certa
reserva. "Il est préférable qu’ elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses
oreilles, et continue à frotter les meubles". "Frotter les meubles" que
significa esfregar os móveis para fazê-los brilhar, vai ao encontro
do costume praticado por Santa Teresa de trabalhar
manualmente. A palavra chave é o advérbio d’abord,
primeiramente. Desconfiar de tudo o que é extraordinário, seguir
a rotina, continuar a trabalhar como se nada tivesse acontecido e,
somente depois, admitir a possibilidade da exceção, do
extraordinário. O senso comum e, sobretudo a humildade
recomendam duvidar da imaginação e do amor próprio que
falseiam muitas vezes a realidade.
O bom senso caracteriza o espírito do Carmelo. Conta-se
que Santa Teresa teria prescrito comer carne a uma religiosa que
dizia ter visões. A ordem foi executada e as visões cessaram. Esse
equilíbrio, esse respeito pela natureza do homem, revela-se em
uma humildade que é sinônimo de verdade. É preciso vencer e
não forçar a natureza, dizia Madame de Croissy (DC: 1582).
Importa também estar consciente de que confiar em Deus
não significa estar protegido contra o sofrimento nem contra as
156
mudanças violentas. Numa época de transformações sociais e de
rupturas, tudo é aleatório, mais do que nunca:
(...) ne comptons jamais que sur cette espèce de courage que Dieu dispense au jour le jour, et comme sou par sou.. C’est ce courage-là qui nous convient, qui s’accorde le mieux à l’ humilité de notre état. (DC: 1652)
Mère Lidoine explicita seus argumentos: somos pobres
servas de Deus e a coragem que nos convém é aquela que é
concedida, dia a dia, e “comme sou par sou” expressão que revela
uma das características de quem se definiu: “je ne suis pas de celles
qui jettent leur bien par la fenêtre” (DC: 1716).
Trata-se de privilegiar a economia, a boa administração dos
bens materiais, de ter consciência de seus limites e de não se
envergonhar de saber calcular. Ao ser-lhe dito que Madame de
Croissy, tal como as aristocratas, não sabia fazer contas e que
desse fato retirava mesmo uma certa vaidade, Mère Saint-
Augustin replica que calcular é o seu forte (DC:1620).
Face às restrições impostas pela Revolução, ela calcula
aquilo de que dispõe, antes de começar a contar com rendas
futuras. Há uma oposição entre a atitude burguesa, que sabe
calcular, e o desprezo aristocrático do dinheiro que, de uma certa
forma, fazia parte da mentalidade reinante no Carmelo.
157
Os nobres afetavam desprezar o dinheiro, o lucro, e
julgavam ser o trabalho indigno de sua classe social. Atitudes que
lhes apressaram a decadência e a ruína.
Mère Saint-Augustin se opõe a esse discurso aristocrático,
sob todos os aspectos. Em relação à coragem, posiciona-se a
favor, não do heroísmo exaltante, mas da difícil coragem de
enfrentar o dia a dia, o quotidiano, o dever obscuro. “Car il y a
plusieurs sortes de courage, et celui des grands de la terre n’est pas celui des
petites gens, il ne leur permettrait pas de survivre” (DC: 1615). Aos
poderosos, convêm as virtudes heróicas; aos pequenos, as
virtudes sem brilho: a boa-vontade, a paciência, o espírito de
conciliação e, sobretudo, a humildade. Significativamente, a
astúcia não é mencionada, mas escondida. É preciso não esquecer
que Zeus engoliu Métis, incorporando-a.
As razões de Mère Lidoine podem ser resumidas em um
silogismo: existem as grandes e as pequenas virtudes. As grandes
virtudes convêm aos poderosos e aos ricos; as pequenas virtudes
convêm aos pequenos e aos humildes. Ora, nós somos pequenas.
Logo, somente nos convêm as pequenas virtudes.
O tema das pequenas virtudes encontra-se, também, em La
peste de Albert Camus. O Dr. Rieux, personagem principal do
romance, ao propor como herói, Grand, herói insignificante e
apagado (Camus, 1947:129) e ao definir a honestidade como fazer
158
seu trabalho, posiciona-se a favor do dever quotidiano, feito com
exatidão, e das virtudes escondidas e sem brilho. Cuidar dos
doentes, dizia o médico, era fazer seu trabalho. E Mère Lidoine
afirma: “La prière est un devoir, le martyre est une récompense” (DC:
1615), fazendo ressoar a afirmação da velha Priora: "Notre affaire
est de prier, comme l’affaire d’une lampe est d’éclairer" (DC: 1584). No
dilaceramento da depuração, já referida, Camus, em 1945, recusa
publicar, em Combat, um artigo violento e injusto de Bernanos, e
argumenta que o heroísmo e a santidade constituem exceções e
não são accessíveis ao comum dos homens.
Em 1948, Bernanos pode escrever: “Si la force est une vertu, il
n’y a pas assez de cette vertu pour tout le monde” (DC: 1649). A
intransigência do autor cedeu lugar à humildade que possibilita
aceitar as limitações individuais e as diferentes reações diante do
perigo, diante da morte.
Assim, a Priora evidencia, também, que desejar a morte não
significa trilhar o único caminho que leva a Deus. Não há infâmia
em defender-se, em tentar evitar a morte por todos os meios
legais.
Mère Marie de Saint-Augustin denuncia igualmente a
tentação de onipotência que se insinua no Carmelo: a de
preocupar-se com problemas que não dizem respeito à
comunidade: “Cela ne nous regarde pas”, (DC: 1662) afirma, no seu
159
sadio individualismo burguês. Individualismo que não significa
egoísmo, mas bom senso e humildade. Cada coisa virá a seu
tempo. Não é prudente imiscuir-se em assuntos que escapam ao
campo de ação destinado a cada um. O problema do outro é o
problema do outro.
Este pragmatismo se exprime freqüentemente por uma
Doxa, constituída de provérbios, frases feitas e clichês não
desprovidos de certo senso de humor.
Aspecto subestimado pela crítica bernanosiana em geral, o
humor marca a ruptura da tensão e a volta à vida quotidiana.
O apelo à sabedoria popular, ao consenso social, é um dos
recursos do discurso da Priora, que se humilha, voluntariamente,
ao empregar um registro coloquial e, às vezes dialetal, em um
espaço onde seria esperado um registro culto e formal. Monique
Gosselin, ao estudar o emprego das máximas aristocráticas e
provérbios populares em Dialogues, assinala, entre outras, a tensão
entre uma visão espiritual aristocrática e uma espiritualidade do
despojamento que se confrontam e se complementam, sem se
anularem (Gosselin,1983:241).
Ao enumerar estas máximas e provérbios justapostos e
modificados: “Chien qui aboie mord mie - paroles vides mauvaises raisons
- mieux vaut douceurs que violence et une seule once de miel prend plus de
mouches que sentier de vinaigre” (DC: 1615), a Priora emprega um
160
recurso que pode ser comparado à atitude de Ulisses fazendo-se
passar por desprovido de eloqüência diante de seus compatriotas,
para mais facilmente convencê-los.
Os argumentos da Doxa, vulneráveis, ambíguos, prestam-se
a uma réplica inevitável. A todo provérbio ou máxima, pode ser
oposto um outro provérbio ou máxima. Consciente dessa
limitação, a Priora cessa de utilizar esses meios e após ordenar a
fidelidade ao quotidiano e à simplicidade, muda o registro e,
superada a oposição entre os valores aristocráticos e os valores
burgueses, atinge outro domínio: o da transcendência.
Mère Saint-Augustin passa a contemplar o escândalo da
Paixão do Cristo.
Lorsqu’ on les considère de ce jardin de Gethsémani où fut divinisée, en le coeur Adorable du Seigneur, toute l’ angoisse humaine, la distinction entre la peur et le courage ne me parait pas loin d’ être superflue et ils nous apparaissent l’ un et l’autre comme des colifichets de luxe. (DC: 1653) (grifos meus)
Somente o homem contempla. Mais do que simplesmente
olhar, é necessário considerar, olhar com atenção, contemplar a
agonia do Cristo. A tortura moral, no Jardim das Oliveiras,
resgatou o medo, a angústia e reverteu todos os valores. O medo,
inconfessável e inadmissível, foi colocado no mesmo nível da
coragem. Aceitar o medo e a humilhação subseqüente, eis o
161
caminho dos pequenos e dos pobres. Sobretudo, insistir na
diferença entre o medo e a coragem seria compactuar com os
resíduos de uma moral aristocrática que sobreviveria no Carmelo.
A Priora restabelece o conceito da verdadeira honra,
lembrando a fidelidade à vocação escolhida: seguir o Cristo na
vergonha, na ignomínia e no medo. "Vous savez très bien que c’est
dans la honte et l’ignominie de sa passion que les filles du Carmel suivent
leur maître." (DC: 1648).
Sua exposição oscila sempre entre um clímax e um
anticlímax. Depois da evocação da Agonia do Cristo, do
escândalo de sua Paixão, a reversão dos valores é traduzida em
outro registro, mais coloquial. A distinção entre o medo e a
coragem seria comparável a "colifichets de luxe" - pendurucalhos.
Esta palavra possui um sentido pejorativo e significa: pequeno
objeto de fantasia, sem grande valor e também enfeites de um
gosto duvidoso. Em conseqüência, o sentimento de honra
segundo os critérios mundanos, o desejo do martírio, o medo do
medo, seriam apenas vãos enfeites de uma moral aristocrática,
inúteis em um convento.
A espiritualidade da Priora denuncia a vaidade de provocar
o martírio e valoriza o abandono total à vontade de Deus. Estar
na mão de Deus não significa uma imunidade contra o
sofrimento, contra a dor. A lógica divina não coincide,
162
necessariamente, com a lógica humana. “... nous oublions trop
aisément que rien ne nous assure contre le mal, que nous sommes toujours
dans la main de Dieu” (DC: 1614). E o Evangelho prega a reversão
de valores (Sermão da Montanha, Mt 5,1-10), facilmente esquecida
em tempos prósperos e de tranqüilidade.
A fraqueza, na obra de Bernanos, pode dar acesso ao
sagrado, e o opróbrio pode transformar-se em glória. A ruptura
das normas, a humilhação e a morte podem vir a ser outro
caminho, caminho que não se escolhe, mas no qual se é colocado.
O texto de Bernanos dialoga com o célebre texto de Pascal
"Grandeur de Jésus-Christ: les trois ordres" (Pascal, 793) e com as
Epístolas de São Paulo onde o tema da fraqueza transformada em
força é recorrente. “Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para
confundir as sábias; Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para
confundir as fortes” (I Coríntios, I, 2).
No Carmelo, um espaço onde fermentam conflitos latentes,
duas ordens de valores enfrentam-se, coexistem e
complementam-se: a moral espiritual aristocrática e a de Mère
Marie de Saint-Augustin, baseada no despojamento total, agindo
no mesmo domínio, com meios de ação diferentes. Convém
ressaltar que Bernanos expõe os diálogos, mas não toma partido.
Cada leitor faz a sua leitura, cada espectador se posiciona,
diferentemente, diante da problemática apresentada.
163
Ao sentimento exacerbado de honra, ligado a uma classe
social, ao desejo do martírio, à sophistique du non, à desmedida, é
contraposta a aceitação do humilde dever quotidiano que é a
oração e o trabalho. Sobretudo, trata-se de ter a sabedoria e a
humildade de distinguir entre o que se deve aceitar perder e a
renúncia para preservar o que pode e deve ser salvo. A difícil
distinção entre o essencial e o acidental.
Marie de l’Incarnation deseja o martírio individual e
procura arrastar toda a Comunidade em sua hybris. Representaria
um certo discurso aristocrático, aquele que expressa o sentimento
exacerbado da honra, o desprezo pela vida e a renúncia aos
prazeres deste mundo. A intuição impulsiona suas decisões. Sua
meta consiste em atingir o supremo gozo de não gozar. O
martírio, um magnífico potlatch, afigura-se-lhe um meio de abolir o
tempo, a espera e a ausência que a separam do Eterno.
A Priora representa a moral burguesa, com seus valores
peculiares: a austeridade, a astúcia, o pragmatismo, o bom senso,
a dignidade do homem, a liberdade de escolha. Ela se considera
não a esposa, mas a serva de Deus. O priorizado é o serviço. Seu
ideal é ser ancilla Domini.
Cada personagem possui sua verdade, resultado de um
olhar sobre o mundo. As duas visões do mundo completam-se no
grande jogo de tentar ler, decifrar o mundo. E é ainda a Priora
164
que define a aparente oposição: “Nous paraissons un peu différentes,
nos voies ne sont pas tout à fait les mêmes, et pourtant nous nous
comprendrons toujours très bien, s’il plaît à Dieu” (DC:1617-1618).
Representam duas maneiras de amar a Deus.
Em relação ao bem comum, também as atitudes são
divergentes. Marie de l’Incarnation procura realizar seu ideal, sem
levar em consideração as fraquezas e peculiaridades do grupo a
que pertence. A Priora, ao contrário, cônscia de seus deveres,
preocupa-se com a comunidade como um todo, constituído de
diferentes elementos, uns mais fortes, outros mais fracos. Com
muita sabedoria, faz a importante distinção: se a responsável
diante de Deus e da sociedade fosse Marie de l’Incarnation, de
bom grado ela pronunciaria o voto de martírio, em suas mãos: “Si
vous étiez à ma place, ce serait aussi un grand bonheur pour moi de
prononcer ce voeu du martyre, et de le prononcer entre vos mains”.(DC:
1665).
Estas duas maneiras de ser podem ser encontradas em
todos os domínios: Marta e Maria, D. Quixote e Sancho Pança, o
sonho e a realidade, a morte e a vida. Nem sempre as duas
atitudes se apresentam nitidamente separados. Há um pouco de
Marta em cada Maria e um pouco de Maria em cada Marta.
165
E o Carmelo acolhe os diferentes discursos. Cada um fala a
sua linguagem, cada um segue o seu caminho, mas existe um
denominador comum que é a procura do Eterno.
Os valores aristocráticos e burgueses coexistiam no
Carmelo, mas havia uma predominância do princípio aristocrático
do código de honra, a valorização do fanatismo do martírio, da
destruição improdutiva - potlatch -. As rupturas e transformações
ocasionadas pela Revolução Francesa repercutem no Carmelo. E
a primeira grande mudança ocasionada foi a eleição para Priora
da burguesa Marie de Saint-Augustin, preferida à aristocrática
Marie de l’Incarnation. Esta eleição anunciou o fim do Antigo
Regime, a instauração dos valores burgueses, a ruptura com o
passado e, sobretudo uma renovação.
Os conflitos existentes no Carmelo intensificam-se com a
presença de Blanche de la Force, nobre e covarde, à procura de
sua identidade, de seu lugar no mundo.
166
Onde está Blanche?
Qu’importe pour quoi nous sommes faits puisque Dieu peut nous faire, défaire et refaire à mesure?
Bernanos
Blanche de la Force, nascida logo após o tumulto da
multidão em pânico, provocado pela explosão dos fogos de
artifício, é um ser marcado pelo medo e pela angústia. Ela “oferece
o exemplo limite desta articulação do sobrenatural sobre o real da angústia.
[...] Ela é angústia” (Renard, 1989: 243).
Frágil e desamparada, Blanche assume o código de honra
de sua classe social, mas exagera seus deveres na tentativa de não
desmerecer seus ancestrais, de respeitar o nome de seu pai, de ser
de la Force. E, pelo medo, sente-se desonrada.
Seu conflito desenvolve-se em dois planos: interiormente, o
que ela exige de si mesma, de acordo com o que imagina ser seu
dever, e no plano exterior - as obrigações que lhe são realmente
impostas.
Dialogues inicia-se com uma indagação: “Où est Blanche?”.
Esta pergunta formulada por seu irmão, o Cavalheiro de la Force,
assume outras conotações e informa o problema fundamental de
167
Blanche: ela não sabe qual o seu lugar no mundo e desconhece
sua identidade.
O conhecimento da identidade pessoal e social e do lugar
que lhes correspondem estão interligados. Em seu ensaio sobre a
abjeção, Julia Kristeva analisa a situação do exilado, do excluído
que se indaga onde está, em vez de se perguntar quem ele é. Em vez
de se interrogar sobre o seu ser, ele se interroga sobre o seu lugar.
Isto porque o espaço que o preocupa apresenta-se-lhe divisível,
dobrável e catastrófico. O lugar onde está confere-lhe uma certa
identidade, a única que lhe parece concedida (Kristeva,1980:15).
Onde está Blanche? Onde está “esta alma que se procura, se
revolta e foge, sem cessar, de si mesma. [...] Onde está realmente Blanche?
Em que tempo e em que espaço se movem sua alma e seu espírito?”,
interroga-se o cenógrafo da versão da ópera de Francis Poulenc,
representada na estação teatral de 1994-1995, na França
(Coutance, 1994).
Antes de tentar seguir Blanche em suas errâncias, mostrarei
como sua personagem se caracteriza e depois analisarei onde ela
está ou procura ficar, mostrando a interação das duas questões.
Quem é Blanche? Ao se referir a Blanche, o Cavalheiro
emprega um tom que faz pensar no início dos contos de fadas:
Elle est venue au monde comblée de tous les dons de la naissance, de la fortune de la nature. La vie était pour elle comme remplie à pleins bords d’un breuvage
168
délicieux qui se changeait en amertume dès qu’elle y trempait les lèvres. (DC: 1634)
Como não pensar na estória da princesa que recebera todos
os dons das fadas madrinhas, mas fora amaldiçoada pela excluída
da festa? E se fada procede etimologicamente de fatum - destino,
teria a multidão, pisoteada na noite dos fogos de artifício,
representado o papel de uma Erínia vingadora? Anatole France,
em Le Livre de mon ami (1996), reafirma a crença difundida pelos
contos infantis que cada ser humano teria uma fada madrinha,
responsável pelos dons maravilhosos ou terríveis que nos
acompanharão ao longo de toda a vida.
Blanche de La Force, ao nascer, recebera dons especiais e
um defeito - o medo - infamante para sua classe social, o que a
torna um ser contraditório e inquietante.
A imagem da personagem Blanche é construída através do
diálogo entre o Marquês, seu pai, e o Cavalheiro de la Force, seu
irmão. Suas posições divergem a respeito da personalidade e da
conduta de Blanche. O irmão exprime inquietude diante do medo
incontrolável, da singuralidade de Blanche enquanto o pai tenta
minimizar tais receios:
Le Chevalier: Oh! Ce n’est pas pour sa sécurité que je crains, vous le savez, mais pour son imagination malade.
169
Le Marquis: Blanche n’est que trop impressionnable, en effet. Un bon mariage arrangera tout cela. Allons! Allons! Une jolie fille a bien le droit d’être un peu craintive. [...] Le Chevalier: Croyez-moi: ce qui met la santé de Blanche en péril, ou peut-être sa vie, ne saurait être seulement la crainte. Ou alors, c’est la crainte refoulée au plus profond de l' être, c’est le gel au coeur de l’arbre... Oui, croyez-moi. Monsieur, l’humeur de Blanche a quelque chose qui passe l’entendement ordinaire [...] Le Marquis: Ouais! Vous parlez comme un villageois superstitieux. L’attachement que vous avez toujours eu pour votre soeur égare un peu votre jugement. Blanche me paraît le plus souvent naturelle, et parfois même enjouée. Le Chevalier: Oh! Sans doute, il arrive qu’elle me fasse illusion à moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours la malédiction dans son regard.... [...]
O diálogo prossegue entre o Marquês e o Cavalheiro, do
qual seleciono apenas os julgamentos sobre Blanche:
Le Chevalier: Vous voulez dire qu’elle en aura été une fois de plus quitte pour la peur ... Quitte pour la peur! Quand il s’agit de Blanche. Le rapprochement de ces deux mots fait frémir... Une fille si noble et si fière! Le mal est entré en elle comme le ver dans le fruit... [...] Le Chevalier: J’ignore si la bizarrerie de sa nature pourrait entraîner Blanche à quelque action blâmable, du moins selon l’idée qu’elle se fait des devoirs d’une fille de qualité, mais je sens
170
bien qu’elle n’y survivrait pas. (DC: 1570-71) (Grifos meus)
As qualidades que são atribuídas a Blanche: juventude,
beleza, nobreza e altivez, constituem dons gratuitos, efêmeros e
ambivalentes. A altivez e a nobreza representam atributos
questionáveis. A nobreza é um simples acaso. Não há mérito em
nascer nobre. E a altivez, considerada pela aristocracia uma
qualidade e não um defeito, representava, durante a Revolução
Francesa, uma ameaça, uma séria indicação para a guilhotina.
A afirmação do Cavalheiro de que Blanche teria uma
imaginação doentia: "son imagination malade", é contestada,
parcialmente, com um eufemismo: "Blanche n’est que trop
impressionnable". E uma moça bonita teria o direito de ser um
pouco medrosa, afirma o velho Marquês.
E ao constatar que o medo de Blanche não se trata de um
simples receio, mas de um temor profundo, como "le gel au coeur de
l’arbre", o Cavalheiro é censurado pelo Marquês que considera sua
linguagem exagerada, análoga à de um camponês supersticioso.
A linguagem do velho Marquês, contida e equilibrada, é a
de um nobre do Antigo Regime, a do Cavalheiro, colorida, cheia
de imagens, um pouco excessiva, é a linguagem do período que
antecedeu a Revolução Francesa.
171
Segundo o Marquês de la Force, Blanche parece "le plus
souvent naturelle, et parfois même enjouée". Importa notar que Blanche
parece natural. No seu esforço para demonstrar uma normalidade
que não possui, provoca um efeito contrário, um mal-estar
naqueles que não se enganam com sua atitude enjouée - amável,
alegre. A etimologia de enjouée (en + jeu) revela um outro sentido:
entrar no jogo, na acepção de respeitar as convenções
estabelecidas, o conjunto de regras a serem observadas. Blanche
joga conscientemente um jogo, tenta dissimular o medo que a
humilha, porém é traída pelo olhar "il arrive qu’elle me fasse illusion à
moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours la malédiction
dans son regard".
O emprego das palavras le sort - feitiço, magia -, e la
malédiction - maldição, intensificado pelo advérbio toujours - sempre
- poderia indicar uma infelicidade à qual se foi condenado pelo
destino, uma situação da qual se é a vítima. O cavalheiro insinua
a possibilidade do cumprimento da maldição, a ameaça proferida
durante o incidente da carruagem jogada contra o povo (4.1.1.).
As palavras pronunciadas possuiriam, no imaginário
humano, força e possibilidade de se tornar realidade. O dizer
tornou-se ação.
Blanche se caracteriza, principalmente, pela desmedida. Seu
comportamento foge à normalidade: "l’ humeur de Blanche a quelque
172
chose qui passe l’entendement ordinaire". A expressão quelque chose não
revela pobreza de linguagem. Trata-se de uma imprecisão
voluntária, uma decisão de permanecer vago, por motivos táticos.
O Cavalheiro não quer revelar tudo o que sabe e prefere manter-
se na generalidade. Seu julgamento sobre Blanche é matizado de
inquietude e lucidez.
A excentricidade, a anomalia da natureza de Blanche "la
bizarrerie de sa nature" justificaria todos os temores. Tanto o melhor
quanto o pior podem ser esperados de sua parte. Esse leque de
possibilidades imprevisíveis e inquietantes encontraria, talvez, um
obstáculo na exagerada concepção que ela se faz de seus deveres
de nobre. A tensão entre o sentido da honra, "les devoirs d’une fille
de qualité" e sua vulnerabilidade, prenuncia um desenlace trágico:
"mais je sens bien qu’elle n’ y survivrait pas".
Ao aparecer, pela primeira vez em cena, Blanche revela
perturbação, vulnerabilidade e esforço em se dominar,
verificáveis na indicação cênica e no diálogo que se seguem:
Les traits de Blanche sont profondément altérés, mais elle a eu visiblement le temps de se reprendre, et s’ efforce de parler avec enjouement. Blanche: Monsieur le Chevalier est trop bon pour son petit lièvre... Le Chevalier: Ne répétez pas à tout propos une plaisanterie qui n’a de sens que pour nous deux. Blanche: Les lièvres n’ont pas l’habitude de passer la journée hors de leur gîte. Il est vrai que je transportais le
173
mien avec moi. mais une simple glace entre cette foule et ma craintive personne m’a paru un moment, je vous assure, une proctection bien dérisoire. Je devais avoir l’air très ridicule. Le Marquis fait signe à son fils de se taire. (DC: 1573) (Grifos meus)
Embora seu rosto esteja profundamente alterado, Blanche
se controla e admite ser temerosa, em uma tática defensiva:
adiantar-se em aceitar um defeito minimizado. Ela se intitula "un
petit lièvre", uma lebrezinha. Trata-se de uma brincadeira afetuosa
entre os dois irmãos, e o Cavalheiro sente-se constrangido pelo
fato de Blanche repeti-la diante do pai.
Reminiscência, talvez, de leituras integrantes da cultura
francesa, como as fábulas de La Fontaine ou referência à Doxa
que considera a lebre medrosa. Este animal representa, em certos
imaginários, o mesmo papel do cordeiro cristão: animal manso,
inofensivo, herói e mártir por excelência (Durand, 1969: 362).
O nome próprio Blanche, que também pode ser
empregado como adjetivo, remete a imaculado, inocente, e seria
uma personificação da pureza.
Blanche representa uma personagem. Isto é, joga
continuamente durante toda a cena, procurando esconder sua
perturbação através das palavras, o que provoca certo
constrangimento.
174
Nas duas primeiras cenas do primeiro quadro, reaparece a
importância da carruagem e do vidro (4.1.1.) considerados como
uma proteção segregadora. O Marquês procurara tranqüilizar-se,
quanto à segurança de Blanche, argumentando que sua carruagem
é sólida, os velhos cavalos, tranqüilos, o cocheiro, fiel, e os dois
lacaios, velhos e corajosos soldados.
Entretanto, Blanche, retida pela multidão “au carrefour de
Bucy” (DC:1569), julga insuficiente o espaço-abrigo da carruagem.
Um simples vidro a separá-la da massa popular, que compra e
vende na feira da encruzilhada de Bucy, parece-lhe uma proteção
irrisória, como se revelara ilusório e ineficaz no acidente dos
fogos de artifícios. A multidão executa a ação silenciosa de reter a
carruagem. Não há registros nem de ameaças verbais nem de
violências físicas.
As ruas de Paris, espaço aberto, amedrontavam Blanche; o
incidente ocorrido inspira-lhe pavor. Horas depois, ela confessa,
o sentimento experimentado: “...j’ étais glacée jusqu’au coeur” (DC:
1579).
A caracterização da personagem, dominada pelo medo,
completa-se quando o jogo de representar é interrompido, o
frágil equilíbrio se rompe e ela grita, aterrorizada por uma
sombra.
175
A casa paterna, o palacete do Marquês de la Force, espaço
semi-aberto, não representava para Blanche o abrigo desejado. O
sobrenome de la Force constituía, ao mesmo tempo, um motivo
de legitímo orgulho e de humilhação. “Par quel miracle serais-je née
tout à fait indigne de tant d’hommes de bien, justement réputés pour leur
valeur?" (DC: 1578), tortura-se Blanche, assumindo um ônus que
não lhe era exigido.
Blanche refere-se a si mesma como "ma craintive personne",
admitindo ser timorata, temerosa, o que não constituía uma
desonra. Na casa paterna, que participa do mundo e, portanto,
ameaça e, ao mesmo tempo, protege, Blanche oscila entre admitir
o medo e minimizá-lo, preocupada em salvar as aparências, sob o
olhar benevolente dos que a amam.
Admitindo que não consegue viver em sua casa, em seu
meio, enfim, no mundo, Blanche resolve cessar o jogo de fazer de
conta que é forte, que é digna de ser de La Force. Decide
conquistar o seu espaço e entrar para o Carmelo, espaço fechado,
que sua imaginação apresenta como um refúgio. O claustro
parece-lhe o único lugar onde ela poderia recuperar a honra e o
respeito pessoal.
Blanche propõe uma troca com Deus, enfatizando suas
renúncias. Mas, ao tentar negociar com Deus, Blanche age
segundo o valor burguês da permuta e não com a generosidade
176
atribuída ao aristocrata. Há orgulho e ingenuidade em sua atitude.
Ela espera resolver, humanamente, seu problema, longe de um
mundo que seus nervos não podem suportar.
Blanche luta para entrar no Carmelo. Há que se fazer
aceitar como postulante aquela que pede. Sua nobreza pode lhe
facilitar o caminho, mas não constitui um fator decisivo. Há que
ter caráter, força e, sobretudo vocação - ter sido chamada.
Madame de Croissy, já velha e bastante doente, mas perspicaz e
clarividente, percebe as ilusões de Blanche quanto ao Carmelo e
tenta desfazê-las, durante uma longa entrevista. Deixando de
representar, de jogar, a postulante reconhece com sinceridade: “Je
n’ai pas d’autre refuge, en effet”.(DC: 1587). Admitida na Ordem, ela
acredita-se protegida e julga que nada pode atingi-la dentro dos
muros do claustro.
Blanche fugiu do mundo, mas este está presente dentro do
claustro e manifesta-se nos critérios de julgamento, semelhantes
aos valores sociais da época. Ali também a coragem era
valorizada e o medo, desprezado.
Medo, receio, angústia, pavor, terror não são sinônimos,
embora designem situações análogas e apresentem vários pontos
em comum. A angústia é experimentada diante de algo impreciso,
interno, porém ameaçador. O medo resulta do conhecimento de
um perigo real e externo, bem delimitado (Freud, 1951: 97).
177
Pavor e terror não podem ser empregados indiferentemente. O
pavor emudece e paralisa, enquanto o terror não exclui a
possibilidade de agir.
Antes de entrar para o convento, Blanche angustiava-se
diante do mundo que não conhecia, experimentava medo e terror
diante de sombras e deixou-se dominar pelo pavor imobilizante
ao se ver ameaçada pela multidão, protegida somente por um
vidro.
No espaço fechado do convento, o medo de Blanche torna-se
mais visível e sem disfarces. O olhar do outro, nem sempre
benevolente, acentua sua fraqueza revelada em diferentes
circunstâncias: ao recusar fechar a porta de sua cela antes de
dormir e principalmente ao fugir da vigília mortuária da antiga
Priora (DC: 1608).
Seu medo aumenta e transforma-se em pavor. O episódio
da perquirição mostra Blanche paralisada e sem voz, depois de
emitir um grito dilacerante (DC:1638). A personagem é mostrada
como apavorada (effrayée), aterrorizada (terrifiée), com um olhar
desvairado (hagard).
Sua angústia mortal, terrível tristeza e imenso cansaço se
fossem enumerados sucessivamente poderiam remeter a um caso
patológico.
178
Esse comportamento e maneira de ser provocam o desdém
mal disfarçado da maioria das religiosas, sintetizado em um cruel
jogo de palavras: “Blanche de la Force... Sans méchanceté, Soeur Blanche,
on devrait plutôt vous appeler Blanche de la Faiblesse”.(DC: 1670). A
restrição "sans méchanceté", mera fórmula de delicadeza, suaviza,
mas não anula, a falta de piedade e a dureza em relação a Blanche
e revela o quanto uma casta predominava no Carmelo. O
sobrenome de la Force impõe-se mesmo quando Blanche já se
chama de l’Agonie du Christ, confirmando o que a velha Priora
afirmara: que não lhe seria exigido o esquecimento de sua grande
nobreza. O que se revelaria uma faca de dois gumes, pois a
exigência de ser corajosa continua a ser-lhe feita, mesmo no
espaço consagrado ao espiritual, ao transcendente.
Os sentimentos de rejeição de uma grande parte da
comunidade religiosa em relação a Blanche são sintetizados por
Marie de l’Incarnation: “J’ ai honte de penser qu’ une fille de grande
naissance puisse, le cas échéant, manquer de coeur” (DC: 1599).
A expressão manquer de coeur significa não ter coragem.
Coeur, usado no sentido de coragem, é recorrente na linguagem
do século XVII. Avoir du coeur significa ser corajoso.
Mais do que por ser medrosa, Blanche é menosprezada por
sua falta de firmeza e de coerência de atitudes, o que poderá
179
constituir uma ameaça à sua comunidade religiosa. “...ce manque de
caractère peut devenir un péril pour la Communauté.” (DC: 1617).
Os sentimentos de angústia, medo, e terror experimentados
por Blanche intensificam-se e atingem o clímax na última noite de
Natal passada no Carmelo já invadido e despojado. Ao ouvir
ressoar o canto da Carmagnole, sob os muros do convento,
Blanche deixa cair a estátua representando Jesus Menino. Mais
uma vez, faz-se sentir a ação da massa popular, embora invisível,
através do canto revolucionário. O texto assinala o efeito
produzido em Blanche: “Terrifiée, avec l’expression d’une stigmatisée”
(DC: 1656).
A nova Priora, inicialmente, subestimara a fraqueza de
Blanche e acreditava ter tempo de transformá-la em uma
verdadeira filha de Santa Teresa d’Ávila. O processo
revolucionário, entretanto, pressionava cada vez mais as
religiosas, visando acabar com os conventos.
Considerando que Blanche se revelara incapaz de superar o
seu medo, levando em conta a fraqueza de seu caráter, tendo em
vista o bem comum e usando do direito que lhe conferia seu
cargo, a Priora decidiu julgar seu período de noviciado
insatisfatório e despedi-la, isto é, devolvê-la à sua família (4.2.2).
Ao entrar para o Carmelo, Blanche acreditara ser possível,
como referido, mediante uma troca com Deus, vencer sua
180
fraqueza e seu medo. Durante algum tempo iludiu-se a respeito
de si mesma e julgou poder enfrentar as dificuldades. Suas
palavras soam falsas e mesmo arrogantes e não convencem o
irmão, que tentou persuadi-la a voltar ao palácio da família de La
Force, pois o Carmelo já não constituía uma fortaleza
intransponível.
Ao tomar conhecimento da decisão da Priora, Blanche,
humildemente, declara já não ter a veleidade de poder superar seu
medo e que arrastaria onde quer que fosse sua desonra, como um
condenado aos trabalhos forçados os seus grilhões. Com imenso
esforço, ela declara:
C’ est vrai que je n’espère plus surmonter ma nature.[...] Oh! Ma mère, partout ailleurs je traînerai mon opprobre ainsi qu’un forçat son boulet. Cette maison est bien le seul lieu au monde où je puisse espérer l’offrir à Sa Majesté, comme un infirme ses plaies honteuses. (DC: 1658)
Blanche já não é mais a aristocrata disposta a todos os
sacrifícios para recuperar uma honra mundana. Assume sua
angústia mortal, seu medo, sua covardia, e esperaria poder
oferecê-los a Deus no Carmelo. Oferecer, remete a oferenda e a
sacrifício. Ela quer oferecer o que tem e, sobretudo o que é,
considerando-se uma enferma, no sentido de não ter forças, de
ser fraca.
181
A Priora perturba-se diante da angústia de Blanche,
vislumbra um desígno especial de Deus e suspende sua decisão.
Os acontecimentos precipitam-se. A Revolução invade o
Carmelo, através de cantos, barulhos, ruídos, desfiles e
perquirições que se amiúdam.
Sentindo-se ameaçada dentro do recinto que julgara
inviolável, e tornado inseguro, Blanche sucumbe ao medo e
refugia-se no “séchoir” - secadouro (DC: 1682). Reservado à
secagem de roupas, o secadouro comumente localiza-se no sótão,
na parte superior das construções. Blanche escondera-se ali,
como uma criança, e preocupara Mère Marie de l’Incarnation que
a procurava em silêncio: “... je ne savais où la chercher” (DC: 1682).
As ações de Marie de l’Incarnation, que a velha Priora antes
de morrer, tornara responsável por Blanche, revelam-se
contraditórias. Se, por um lado, procura-a, e após localizá-la,
habilmente, faz cessar os comentários sobre sua ausência,
alegando um motivo honroso, por outro lado, precipita sua fuga
do convento, ao insistir no pronunciamento do voto de martírio.
Esse voto, para a preservação do Carmelo e salvação da França,
obrigaria as religiosas, não a provocar o martírio, mas a evitar
qualquer medida para impedi-lo, “... comme un malade refuse la
médecine qui le sauverait ...” (DC: 1685).
182
Incapaz de se opor publicamente ao que quer que seja,
cansada de lutar contra seu terror, Blanche pronuncia o voto de
martírio com voz forçada e muito clara e depois, abandona o
Carmelo, foge (DC: 1688).
Blanche refugia-se no mundo, outrora tão temido, abdica
de toda e qualquer consideração humana e acredita-se protegida
por ter atingido o mais alto grau de abjeção: “Où je me trouve, qui
penserait à me chercher? La mort ne frappe qu’en haut.” (DC:1701),
declara a Marie de l’Incarnation que viera buscá-la.
Nada mais esperando nem do outro nem de si mesma, ela
grita com a violência inesperada dos fracos:
La peur n’offense pas le bon Dieu. Je suis née dans la peur, j’ y ai vécu, j’ y vis encore, tout le monde méprise la peur, il est donc juste que je vive aussi dans le mépris. Voilà longtemps que je le pense. Le seul être qui aurait pu m’ empêcher de le dire, c’ était mon père. Ils l’ ont guillotiné voilà peu de jours. (DC: 1702) (grifo meu)
A morte do pai liberou a voz de Blanche. Nada a impede
de proclamar sua miséria. Já não há mais troca nem oferenda,
apenas a aceitação de uma fraqueza da qual não se sente
responsável. Blanche faz mesmo questão de declarar sua
vergonha de ter sido espancada em sua própria casa, onde
desempenha o papel de criada (DC: 1702). Nada resta da
aristocrata orgulhosa de sua linhagem.
183
Nas ruas de Paris, um paralelo com a situação inicial,
Blanche, despojada de tudo o que possa significar segurança,
começa a dominar, pouco a pouco, seu medo. Embora
demonstre, algumas vezes, terror em seu rosto (DC: 1705), já não
se encontra paralisada pelo pavor. Ela se comunica com o povo,
fala, indaga.
No convento, Blanche era considerada uma criança - une
enfant (DC, 1640), etimologicamente, aquela que não fala. Seu
sobrenome - de la Force - e o nome escolhido ao professar os
votos - de l’Agonie du Christ - pesados demais, sufocavam-na.
Como uma voz anônima, Blanche pode informar-se da
sorte das carmelitas encarceradas. O processo de libertação
coexiste com sua covardia. Ela nega conhecer até mesmo a
cidade de Compiègne e fornece uma identidade social fictícia
(DC: 1705). Esta negação poderia fazer ressoar a de São Pedro,
quando o Cristo foi aprisionado.
Embora revele sinais, mesmo físicos, de medo e de terror,
ela os supera com uma "résolution désespérée" (DC: 1705) e dirige-se
à casa da atriz Rose Ducor, que lhe fora sugerida, como abrigo,
por Marie de l’Incarnation.
A reversão de valores evidencia-se. No Antigo Regime, os
atores eram desprezados e discriminados, socialmente. Nem
mesmo tinham o direito de serem enterrados em cemitérios
184
religiosos, lugar sagrado. Durante a Revolução, Rose Ducor, uma
atriz, tem coragem de proteger os que estão ameaçados. Sua casa,
espaço semi-aberto, revela-se protetor.
A revolta motiva a ida de Blanche à casa da atriz. Ela quer
impedir a morte decretada das carmelitas e indigna-se com a
alegria e aceitação demonstradas por Marie de l’Incarnation:
Mourir, mourir, vous n’avez plus que ce mot à la bouche! Serez-vous tous jamais las de tuer ou de mourir? Serez-vous jamais rassasiés du sang d’autrui ou de votre propre sang? (DC: 1707)
Blanche tornou-se a figura da revolta e do horror. Ela quer
viver e recusa a morte. Esta aversão diante do sofrimento
antevisto seria, talvez, uma atualização da agonia do Cristo no
Monte das Oliveiras (Mc: 14-33). Blanche de la Force age com a
força do nome recebido ao nascer e vive o mistério do nome que
escolhera ao tornar-se religiosa: de l’Agonie du Christ. Há uma
crença de que o nome escolhido ao entrar no convento norteará
o caminho espiritual a ser trilhado. Blanche vivenciou sua própria
agonia e revive a agonia do Cristo.
As últimas palavras que pronuncia, no texto, são um grito
de protesto: “Je ne veux pas qu’elles meurent! Je ne veux pas mourir”
(DC: 1707).
Depois de tentar mudar os acontecimentos, Blanche foge,
volta às ruas de Paris, espaço aberto, que lhe parece o lugar mais
185
seguro. Ela volta ao mundo, outrora temido, recomeça sua
errância e não mais falará, até o canto final.
A procura de um lugar pode ser esquematizada no quadro
que se segue:
Espaço Aberto
(Ameaça)
Espaço Semi-Aberto
(Insegurança)
Espaço Fechado
(Refúgio)
Ruas de Paris
→
Palacete → Convento
Palacete → Convento → “Séchoir”: secadouro
Palacete → Casa da Atriz → Cadafalso
↓
Lugar mais exposto =
refúgio
Como já referido, os dezesseis Carmelitas do Carmelo de
Compiègne, condenadas pelo Terror Revolucionário, foram
executadas em 1794. E, segundo o texto de Bernanos, baseado na
novela de Gertrud von le Fort, a personagem Blanche de la Force
termina o canto de suas irmãs que o ruído da guilhotina calara
uma a uma.
186
Imprevisivelmente, aquela que não queria morrer, que
fugira, que tinha medo, sob a ação da Graça Divina, contra as
humanas previsões, dirige-se para o cadafalso. O texto acentua
que Blanche se exprime através do canto, porém de modo mais
claro, mais resoluto do que o das outras religiosas e deixando
entrever algo de infantil que remete à sua verdadeira natureza:
“une nouvelle voix s’élève, plus nette, plus résolue encore que les autres, avec
pourtant quelque chose d’enfantin” (DC: 1719).
Ao deixar transparecer algo de infantil, Blanche afirma a
ação da Graça que se enxertou em sua natureza, transformando-a,
sem anulá-la.
A transformação de Blanche revela a força do dogma da
Comunhão dos Santos, a circulação da Graça Divina entre os
membros do Corpo Místico de Cristo. Cumpre-se o que
Constance de Saint-Denis previra: "On ne meurt pas chacun pour soi,
mais les uns pour les autres, ou même les uns à la place des autres, qui sait?"
(DC:1613).
Importa salientar que, segundo a fé cristã, Deus age através
dos acontecimentos e pessoas. Deste modo, a massa humana,
sempre presente e atuante na vida de Blanche, antecipa o
desenlace: “Brusque mouvement de foule. Un groupe de femmes entoure
Blanche, la pousse vers l’échafaud, on la perd de vue” (DC: 1719). O
grupo de mulheres participa, inconscientemente, do plano de
187
Deus, precipitando os acontecimentos e auxiliando a vontade de
Blanche, movida pela Graça. E tudo é graça, como dizia o humilde
Curé de Campagne (OR: 1259), repetindo a expressão de Santa
Teresa de Lisieux.
Em sua errância, Blanche intensificou sua angústia e seu
medo ao acrescentar-lhes sucessivas rupturas, informadas pelo
sentimento essencial de exílio, na busca incessante de seu lugar
no mundo, uma manifestação da procura de sua identidade. E
cada lugar conquistado revelou-se inadequado e perigoso.
Apesar de parecer aniquilada, Blanche tornou-se capaz de
reviver pois “a abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu)”
(Kristeva, 1980: 22). Ela participara da Agonia do Cristo, ao
recusar a morte e também o acompanha ao subir, livremente, ao
cadafalso. Blanche, finalmente, encontrou seu lugar.
A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos,
que admitia, em carta a Jorge de Lima: “Je suis vraiment, comme vous
le dites, un exilé”.(CORR II 248).
188
BERNANOS, O EXÍLIO?
Tout monde est un exil pour ceux qui philosophent. C’est encore un voluptueux, celui pour qui la patrie est douce. C’est déjà un courageux, celui pour qui tout sol est une patrie. Mais il est parfait, celui pour qui le monde entier est un exil.
Hugues de Saint Victor
Todo exílio é doloroso, ainda que para alguns se apresente,
aparentemente, dourado, o que não é o caso de Bernanos.
Exílio não deve ser confundido com desterro, degredo,
deportação, expatriação, proscrição, ou outros parassinônimos.
Desterro é o lugar onde vive aquele que está fora de sua terra. O
degredo consiste na pena de desterro que a justiça impõe a
criminosos. A deportação refere-se, sobretudo à execução da
sentença condenatória de expulsão de um lugar, enquanto
expatriar emprega-se nos casos de banimento da pátria.
Proscrever refere a existência de um edital, voto escrito ou
sentença de condenação. Os editais de degredo eram escritos em
tábuas que se afixavam em lugares públicos.
O exílio não é uma punição desonrosa. Banimento e
desterro o são. Na monarquia absoluta, o rei podia exilar um
ministro, mas não banir. Os dois verbos exilar e banir exprimem
189
uma sanção pronunciada contra alguém, porém não são
sinônimos. Banir possui uma carga semântica mais forte do que
exilar, mas pode ser empregado no sentido figurado, de forma
atenuada: banir uma preocupação. O verbo exilar, ao contrário,
restringe-se à acepção de afastamento de algum lugar. Costuma
ser empregado na forma pronominal ou na voz passiva.
Deleuze afirma que não há conceito simples; todo conceito
seria, pelo menos, duplo ou triplo e teria um contorno irregular,
dificilmente demarcável. Trata-se de um problema de articulação,
de recorte e de desbaste (Deleuze & Guattari, 1991:21).
Assim, a noção de exílio aqui adotada ultrapassa a idéia de
um simples deslocamento geográfico, um afastamento
temporário. Cito, a título paradigmático, o célebre exílio de
Ulisses, a viagem sem retorno de Enéias e o ostracismo de
Ovídio, exilado por Augusto na longínqua Dácia, atual Romênia.
E como exemplo da atualidade, assinalo uma vertente na
literatura romena que se intitula uma literatura de exílio, na qual
figuram, entre muitos outros, os nomes de Emil Cioran e Eugène
Ionesco.
Examinarei o conceito de exílio, considerando
rapidamente seus aspectos filosóficos e religiosos. Em seguida,
analisarei a obra de Georges Bernanos sob esse ângulo,
demonstrando as diferentes formas de exílio que se apresentam:
190
numerosas e sucessivas mudanças de domicílio, rupturas
marcantes, exílio voluntário, exílio interior, o que sugere uma
forma de nomadismo ou errância.
A origem do conceito de exílio, do ponto de vista
filosófico, encontra-se, como se sabe, em Platão. Segundo os
ensinamentos do filósofo que tanta influência exerceu sobre o
pensamento cristão, a alma é imortal, provém da esfera do divino.
Existiu antes de prender-se a um corpo e continuará a existir após
a morte. O corpo seria uma prisão, um túmulo para a alma.
Platão exprime essa teoria em duas palavras: SOMA = SÈMA. O
corpo - soma - é um túmulo - sèma - para a alma que sofre como se
estivesse doente. De acordo com essa teoria, a finalidade da vida
terrestre é o retorno da alma a seu estado original (Platon, 1954:
1213).
Considerado sob o ponto de vista religioso, a origem do
exílio essencial, para a mística judáica (Kabala), situava-se em
Deus, exilando-se de si mesmo no ato da criação, e nos
consecutivos exílios vividos pelo homem em sua dimensão
histórica ou pessoal. José Augusto Seabra escreve:
Era em Deus mesmo que para os kabalistas se situava a origem do exílio de que Israel fez a experiência trágica, desde o Exílio no Egipto aos sucessivos exílios da Diáspora. Esta abriu-se tanto mais à mística kabalista quanto ela correspondia à sua própria vivência de uma errância. Mas o Exílio de Israel não é
191
apenas um acontecimento histórico e sim, como a Redenção, algo que tem a ver com o mistério do ser, do homem e de Deus mesmo, desde o início da criação. Ele é o símbolo místico de tudo quanto existe e da Divindade que o criou. (Seabra, 1996)
O exílio seria também uma missão e não apenas um
sofrimento e é sob esse enfoque que a Kabala procura explicar os
sucessivos exílios, conseqüências das expulsões motivadas pela
intolerância religiosa, através dos séculos. A expulsão dos judeus
da Península Ibérica, em 1492, ao provocar a dispersão, pode ser
considerada sob esse ângulo.
O conceito de Platão sobre a alma exilada, difundido
principalmente por Santo Agostinho, e a mística judáica, raiz do
cristianismo, influenciaram o pensamento religioso cristão que
privilegia, entretanto, a Queda e a Redenção do Homem e
sobretudo o mistério da Encarnação da Segunda Pessoa da
Santíssima Trindade. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”
(João, 1,14).
As três correntes afins, Platonismo, Kabala e Cristianismo
confluem e alimentam um pensamento eclético em que,
teologicamente, todos se sentem exilados, prisioneiros do próprio
corpo e vivendo exilados, em um vale de lágrimas, como o atesta
o belo hino à Virgem Maria, o Salve Rainha.
192
Essa concepção pessimista da vida influenciou de tal modo
o pensamento cristão, predominante na Idade Média, que
necessário foi esperar o Século das Luzes para que a idéia de
felicidade fosse recuperada e considerada uma idéia nova na
Europa (Lins, 1993:23). Séculos de cristianismo privilegiaram a
imagem de um Cristo padecente; enfatizava-se a permanência do
sofrimento, enquanto o direito à alegria e aos prazeres dessa terra
eram minimizados ou, prudentemente, esquecidos.
O tema do sofrimento inerente à vida humana, do qual o
exílio essencial seria uma das conseqüências, apresenta-se como
tema constante de nossa cultura.
O exílio é um tema recorrente do pensamento e da criação dos tempos modernos e contemporâneos. Ele está no centro de muitas obras, de inspiração religiosa ou não, tocadas, de uma forma ou de outra, pela mística judaica. (Seabra, 1996).
Nessa acepção, todo homem seria um exilado. Apesar das
diferenças, existe um denominador comum entre as diversas
concepções que consideram o exílio uma condição do ser
humano nesse mundo. O exílio definiria a condição do homem
nessa terra. Emmanuel Levinas confirma essa especulação, em
um evidente diálogo com o Deuteronômio (6,12):
La condition - ou l’incondition - d’étrangers et d'ésclaves en pays d’Égypte, rapproche l’homme du prochain. Les hommes se cherchent dans leur incondition d’étrangers.
193
Personne n’est chez soi. Le souvenir de cette servitude rassemble l’humanité. (Levinas, 1972: 108)
Segundo se depreende da reflexão de Levinas, as razões
definitivas do exílio seriam transcendentais, porém as causas que
o determinam relacionam-se com circunstâncias sócio-
econômicas, com a História.
Em que sentido pode ser empregada a palavra exílio para
caracterizar a obra de Bernanos? Distinguirei diferentes formas de
exílio: uma errância - as inúmeras mudanças de casa e de país. E
um exílio total - no tempo e no espaço - o que permitiria talvez o
emprego da expressão um exílio no exílio, revelado em sua obra.
Antes de propor uma leitura da obra de Bernanos, sob este
ângulo, julgo pertinente extrair de sua biografia elementos
esclarecedores e referências cronológicas.
Há alguns anos atrás, a crítica universitária, de inspiração
estruturalista em sua vertente mais radical, rejeitaria referências
biográficas. Hoje, voltou a ser considerada importante e mesmo
indispensável uma biografia sem biografismos.
Isto porque o escritor, independente de sua vontade, está
ligado à História, à sua estória. E quem conta um conto, conta o
seu conto, diz a sabedoria popular. A biografia importa, na
medida em que esclarece o texto, e este adquiriria valor
testemunhal quando o narrador, ao fazer a enunciação na
194
primeira pessoa do singular, assume um discurso aparentemente
autobiográfico. O que não garante a autenticidade do
testemunho, que pode ser mera ficção. A vida do escritor, no
fundo, não tem a menor importância, exceto se deixou marcas
em seus textos, como é o caso de Georges Bernanos.
Em se tratando da relação vida e obra, as declarações de
Bernanos são, aparentemente, contraditórias. Se, por um lado,
afirma: “Je ne suis pas l’homme de mes livres, mais du moins je ne mens pas
à mes livres, ma vie ne dit rien, ma vie se tait” (EEC I: p.877), declara
também: “Mon oeuvre, c’est moi-même, c’est ma maison" (EEC II :16).
Como ler essas declarações? O que interessa é apenas o texto
escrito, e por que não a personagem do escritor produzida pelo
texto? Por outro lado, se Bernanos e sua escritura constituiriam
algo indivisível, a razão derradeira, o que realmente importa? As
duas interpretações parecendo-me válidas, opto por recortar na
vida de Bernanos os fatos e as circunstâncias que julgo
esclarecedores e que corroboram minha hipótese de leitura da
obra bernanosiana sob o ângulo do exílio.
Minha pesquisa biográfica baseia-se, entre outros, em dois
livros que se completam: Georges Bernanos à la merci des passants,
(1986), de Jean-Loup Bernanos, filho mais novo do escritor.
Exaustivo trabalho biográfico, o autor retraça um perfil do pai,
com a necessária distância e objetividade, atingindo o objetivo
195
proposto - o olhar do filho depurado pelo tempo e matizado pela
emoção; e Georges Bernanos (1989), de Max Milner, professor
universitário e eminente especialista bernanosiano. Trata-se de
uma documentada síntese biográfica que procura analisar,
imparcialmente, a complexa obra do autor de Les grands cimetières
sous la lune. Refiro as fontes consultadas, reconhecendo, de
antemão, que posso ter assimilado informações, extraídas das
obras mencionadas e que já não poderia, rigidamente, demarcá-
las.
Considerando as suas inúmeras e sucessivas mudanças de
casa, região e país, procurarei responder à pergunta: Onde estava
Bernanos?
A leitura de uma biografia de Georges Bernanos revela seus
constantes e inúmeros deslocamentos. Os motivos evocados são
quase sempre de saúde ou de ordem econômica, excetuando o
exílio no Brasil, por razões ideólogicas.
Julgo pertinente considerar vários exílios dentro de um
grande Exílio. Bernanos era monarquista em pleno regime
republicano; católico, em um mundo ateu; patriota quando
muitos se rendiam à Alemanha. A solidão, a independência, a
valorização de um modelo heróico, enraizado na Idade Média
feudal, não revelariam uma estrutura de exílio? Qualquer que seja
196
a leitura destes fatos, há que se reconhecer a existência de uma
inadequação ao momento presente; Bernanos está sempre ailleurs.
Uma tentativa de classificar as diferentes formas de
romantismo anticapitalista, de Michael Löwy e Robert Sayre, em
Romantismo e política, qualifica Georges Bernanos de "romântico
restitucionista". “O tipo restitucionista [...] aspira à restituição - ou seja, à
restauração ou a recriação desse passado no presente...”. Em sua maioria
literatos, como Chateaubriand, Vigny, Lamartine e Hugo, entre
outros, o romântico restitucionista volta-se para uma Idade Média
idealizada. “Tal concentração do ideal no passado medieval, sobretudo em
sua forma feudal, talvez se explique, por um lado, devido à sua relativa
proximidade no tempo (comparada às sociedades antigas, pré-históricas etc.)”
Georges Bernanos pode ser considerado um caso exemplar do
restitucionismo. “Em seu universo romanesco a única atitude válida é a
aceitação da necessidade de uma luta absurda e perdida de antemão, para
restaurar o paraíso perdido”.(Löwy & Sayre, 1993: 41-46).
Ao se exilar, Bernanos difere da atitude predominante entre
os católicos que confiam na Providência Divina e normalmente
não se expatriam. O judeu e o protestante, pertencentes a
minorias raciais e religiosas, tentam mudar os acontecimentos e
muitas vezes se exilam.
No século XX, Jacques Maritain e Georges Bernanos
constituem exceções no meio católico. Maritain, convertido de
197
origem protestante, emigra para os Estados Unidos em 1940 e
publica À travers le désastre, difundido na França por Edmond
Michelet.
Bernanos exilou-se no Brasil, onde escreveu a maior parte
de seus Écrits de Combat, uma violenta e apaixonada acusação
contra o poder temporal da Igreja e contra as classes
conservadoras. E o protesto vindo de dois grandes escritores
católicos não é um mero acaso (Cf. 2).
Ler a obra de Bernanos através da ótica do exílio
esclareceria seus aspectos aparentemente contraditórios e
permitiria melhor compreender as rupturas que pontilharam sua
existência e deixaram marcas em sua escritura.
Delimitei o exílio bernanosiano stricto sensu à sua estada no
Brasil - 1938-1945 - e o conceito de exílio lato sensu à sua visão
trágica do mundo.
Para Bernanos, a visão trágica do mundo caracteriza-se pela
presença multiforme de Satã e a ausência aparente de Deus. E
para vencer esta presença é preciso resistir, lutar, submeter-se à
vontade divina e, principalmente, superar a tentação do
desespero: “La plus haute forme de l’ espérance, c’ est le désespoir
surmonté” (EEC II: 1263).
A visão trágica de Bernanos, a impossibilidade de viver em
um mundo em que Deus se esconde (Goldmann, 1959)
198
concretiza-se em mudanças, rupturas e, sobretudo em estar sempre
longe. "Où sommes-nous ? me demandera-t-on. Heureux l’artiste qui peut
répondre, qui aurait le droit de répondre: Que vous importe? Nous
sommes loin.” Bernanos (EEC I: 1097) (Grifo meu).
As rupturas e continuidades da obra bernanosiana
constituíram o tema de um Colóquio realizado em 1988, em
Nancy, e serão enfatizadas no recorte de sua peregrinação que
se segue.
Georges Bernanos (1888-1948) nasceu em Paris, cidade que
ele amava quando estava longe, no dizer de Jean-Loup Bernanos,
mas o cenário da maior parte de seus romances será Fressin, em
Pas-de-Calais, onde sua família passava as férias.
Quando a Primeira Guerra Mundial foi deflagrada, ele se
alistou e foi aceito, embora tivesse sido reformado em 1910.
Após a guerra, trabalhou como inspetor de uma companhia
de seguros. Durante suas viagens de trem no leste da França, de
1920 a 1925, redigiu, lentamente, seu primeiro grande sucesso
literário, Sous le soleil de Satan, publicado em fins de março de
1926, ano em que também veio a lume Saint Dominique, obra
hagiográfica. Bernanos, provavelmente, começou a amadurecer a
idéia do romance, logo após o Armistício em 1918. Em todo
caso, oito anos decorreram entre o final da guerra e sua
publicação.
199
Em entrevista concedida a Frédéric Lefèvre, redator de Les
Nouvelles Littéraires, periódico caracterizado pela imparcialidade
política e aceitação de verdadeiros talentos, Bernanos declara: “Je
crois que mon livre est un des livres nés de la guerre” (EEC I: p.1039).
Esta afirmação pode ser estendida ao conjunto de sua obra,
nascida da guerra. Cito o notável artigo de Joseph Jurt sobre o
assunto, Un univers né de la guerre (1998) antes de fazer minha
leitura e reiterar a pertinência dessa afirmação.
No pós-guerra, 1926 foi um ano marcado pelo
aparecimento de grandes obras literárias: La Tentation de l’Occident
de Malraux, Les Faux-Monnayeurs de Gide, Les Bestiaires de
Montherlant. Georges Bernanos publica Sous le soleil de Satan,
graças aos esforços de seus amigos. Robert Vallery-Radot, Henri
Massis e François Le Grix convenceram a Editora Plon a publicar
o romance na coleção Le roseau d’or, dirigida por Maritain. Foi
ainda Massis quem teria pedido a Daudet que escrevesse sobre a
obra. Saudado por Léon Daudet, um fazedor e também
demolidor de reputações, inclusive literárias, como o romancista
do pós-guerra, Bernanos conheceu a consagração de um dia para
o outro.
Artigos, declarações e entrevistas multiplicaram-se. A
primeira edição esgotou-se rapidamente, providenciou-se uma
segunda edição, o que é muito significativo em termos editoriais.
200
Autores existem que experimentam um sucesso efêmero, porém,
não ultrapassam uma primeira edição esgotada, dificilmente
seguida de uma outra.
Uma pergunta impõe-se: quem lia Sous le soleil de Satan em
1926? Joseph Jurt, ao pesquisar, exaustivamente, a recepção de
Bernanos pela crítica jornalística de 1926 a 1936, inferiu que a
maior parte das leituras, favoravéis ou hostis, eram
predominantemente ideológicas. Dissociar valor estético e
ideologia constituía uma exceção.
Durante os anos loucos, Bernanos antecipa a consciência
trágica dos anos 30. Sua obra estaria em desacordo com a idéia de
gratuidade, característica da literatura dos anos 20. Essa falta de
adequação às idéias em voga, à l’air du temps, não impediu um
imenso sucesso literário, talvez mesmo o justifique.
Anos mais tarde, o escritor dirá com certa ironia:
“... car je n’ai pas l’honneur d’ être un écrivain méconnu, mes livres se vendent - ce qui prouve qu’un grand nombre de gens les lisent sans les comprendre, ou peut-être, hélas! Les achètent sans les lire”.(EEC I: 896).
Após o êxito de Sous le soleil de Satan, Bernanos resolve
abandonar a Companhia de Seguros em que trabalhava e se
dedicar à sua obra literária. Essa decisão foi tomada,
principalmente, devido à saúde de sua mulher que precisava
201
passar dois anos à beira mar. Esta escolha condená-lo-á aos
trabalhos forçados literários até o fim de sua vida. Envelhecido e
doente, vivia, exclusivamente, da remuneração do seu trabalho de
escritor, paga por seu editor a cada página escrita. Os problemas
financeiros acompanharam-no durante toda a sua existência.
Outra conseqüência do êxito obtido foi a mudança de
domicílio. Instalou-se durante o verão em Ciboure e em seguida
em Bagnères-de-Bigorre, localidade próxima a Tarbes, não mais
sendo obrigado a residir em Paris ou no Leste da França.
Esses deslocamentos revelaram-se, a posteriori, as primeiras
etapas de uma longa errância, justificados, aparentemente, por
problemas monetários e pela busca de um clima ameno, favorável
à saúde de sua família. Jean-Loup Bernanos menciona uma
trintena de mudanças que sua mãe enfrentou ao longo do
casamento. Sem pretender arrolar todas as mudanças de casa,
região, país ou continente, empreendidas por Bernanos,
procurarei destacar as que considero mais importantes e
significativas para a leitura proposta.
Tendo abandonado um emprego seguro, Bernanos
acreditou-se livre para escrever com tranqüilidade. Os
acontecimentos provariam o contrário. Em 27 de agosto de 1926,
o arcebispo de Bordeaux publicou uma declaração condenando
202
as posições doutrinais da Action Française e acusando seu diretor,
Charles Maurras, de paganismo.
Movimento de extrema direita, L’Action Française marcou a
primeira metade do século XX francês sob todos os aspectos:
religioso, intelectual e político, e ainda hoje se manifesta, entre
outros, no jornal quotidiano lepenista Présent.
Fundada em 1898 por Maurice Pujo e Henri Vaugeois,
L’Action Française prega a doutrina da restauração monarquista,
sob a influência de Charles Maurras que preconizava o
nacionalismo integral. Para Maurras, ser patriota equivaleria,
obrigatoriamente, a ser monarquista. Dispondo, a partir de 1908,
de um jornal quotidiano do mesmo nome, L’Action Française
exerceu grande influência no meio católico de extrema direita,
sobretudo sobre os estudantes e sua ação se estende a uma
grande parte da burguesia.
Ao apogeu de 1918 seguiu-se a condenação pontifical em 5
de setembro de 1926, em que o Papa Pio XI ratifica a tomada de
posição do arcebispo de Bordeaux.
Diante das reações violentas e para esclarecer as
controvérsias, o Sumo Pontífice pronuncia uma nova condenação
da Action Française em 20 de dezembro do mesmo ano. Colocado
publicamente no Index, uma das proscrições máximas da Igreja,
por um decreto da Congregação do Santo-Ofício, em 29 de
203
dezembro, esse movimento será definitivamente condenado, em
março de 1927.
A reprovação formal, pela Igreja, da Action Française
transtornou Bernanos. Embora já se tivesse afastado do
movimento em 1919, julgou ser uma questão de honra defender
Charles Maurras e o movimento ao qual estava ligado desde a
juventude, quando, Camelot du Roi, se batia nas ruas do Quartier
Latin.
Les Camelots du roi eram um grupo de monarquistas de
extrema direita, filiados à L’Action Française, reputados pela
violência de seus métodos de ação. Vendiam jornais e promoviam
tumultos no Quartier Latin e na Sorbonne. Elementos de diferentes
classes sociais faziam parte de suas fileiras. Uma das últimas
manifestações do grupo, registradas pela imprensa, data de 6 de
fevereiro de 1934 e Sartre denuncia em Le Mur o fanatismo e a
intransigência desta associação.
Bernanos, dividido entre o dever do católico de submeter-
se a Roma e o senso pessoal de honra, opta, dentro dos limites
compatíveis com a obediência, pela solidariedade à pessoa de
Charles Maurras. Essa escolha contraditória apresentaria analogia
com o dever de fidelidade feudal que ligava pessoalmente o
vassalo ao suzerano. Bernanos acreditava que uma vez
204
empenhada a palavra, um homem - ou um povo “doit la tenir, quel
que soit celui auquel il l’a engagée” (EEC II: 969).
A contradição reside no fato de que, desde o final da
guerra, Bernanos discordava da nova orientação política da Action
Française, julgando-a infiel a seus ideais primeiros, passiva demais
e jogando o jogo do poder. A essa discordância acresce-se o fato
de que Bernanos admirava Maurras, porém não era seu amigo
pessoal. Nada, entretanto, o impediu de lançar-se numa defesa
desesperada daquele que considerava um verdadeiro mártir,
defensor da integridade da pátria e, sobretudo da Igreja Católica,
na França. Bernanos enfocava o problema de um ponto de vista
exclusivamente religioso, o que não era exatamente a ótica de
Maurras, ateu notório, mas defensor da Igreja, por patriotismo.
Essa diferença de motivações constituiu o cerne de um mal-
entendido que, posteriormente, transformou-se em ruptura.
O julgamento da Action Française representou uma etapa
decisiva na vida de Bernanos. Durante anos, a dilaceração foi a
tônica de seus sentimentos. Mas superou a provação e, livre das
limitações de um partido, pôde escrever, mais tarde, entre outras
obras-primas, Les Grands Cimetières sous la lune (1938), Journal d’un
curé de campagne (1936) e Dialogues des Carmélites (1949).
Ao deter-me sobre essa condenação, meu objetivo
consistiu em salientar a importância da crise pessoal provocada
205
em Bernanos e, sobretudo da célebre ruptura de 1932, início de
uma série de rupturas, as inúmeras partidas sem voltas que balizaram
a existência de Georges Bernanos.
No meio do turbilhão de idéias provocado pela condenação
da Action Française, em um ambiente entristecido por doenças e
luto, Bernanos redige, em menos de um ano, seu segundo
romance, L’Imposture, lançando-o em novembro de 1927. O
projeto inicial chamar-se-ia Les Ténèbres, porém as circunstâncias
obrigaram-no a publicar, separadamente, dois romances que, na
realidade, constituem uma unidade. Bernanos declara,
amargurado:
“Personne n’est obligé de savoir - mais moi je le sais - quel roman eût été L’Imposture et la Joie si le temps m’avait été laissé de fondre les deux volumes en un seul, soit.” (CORR II: 26).
Poucos meses depois de terminar L’Imposture, ele muda-se,
em julho, para Clermont-de-l’Oise, uma pequena cidade ao Norte
de Paris. Seus biógrafos referem que ele escrevia não em casa,
mas em um café, na cidade vizinha de Mouy-sur-Oise, para onde
se dirigia, de bicicleta, em um pequeno deslocamento, todos os
dias. As mudanças, o amor ao movimento são constantes que se
revelarão ao longo de sua vida.
O hábito, comum entre os franceses, de trabalhar em cafés,
não significa apenas a fuga dos inevitáveis barulhos familiares. O
206
escritor gostava dos trens, dos albergues e, principalmente, dos
cafés. Precisava dos ruídos da vida para escrever. E o ambiente de
um café sinistro parecia-lhe a garantia de um contacto com a
realidade e uma proteção contra um excesso de fantasia e de
irrealidade. Confessa essa particularidade a uma correspondente:
“...et moi j’ écris dans le seul café vraiment sordide que j’ ai pu trouver sous
ce ciel béni” (CORR I: 65), que contraria o imaginário tributário de
um certo romantismo que se tem, freqüentemente, do autor, que
necessita de silêncio e paz para deixar fluir a inspiração. E
Bernanos precisava de ruídos para escrever e precisava publicar
para garantir seu ganha-pão.
O recorte efetuado nos dados biográficos de Bernanos
permite-me uma interpretação. Nasceu em Paris, porém, escolheu
como cenário de quatro romances: Sous le soleil de Satan, (1926),
Journal d’un curé de campagne (1936), Nouvelle histoire de Mouchette
(1937) e Monsieur Ouine (1946), a localidade de Fressin, o paraíso
de sua infância. E não se trata de um simples cenário, mas de
uma relação vital com a terra, com a região de Artois: a energia
tradicionalista, o ritmo das estações e as formas de que se
revestem as pessoas e a natureza.
Atribuiu a suas personagens nomes próprios característicos
da região; descreveu os caminhos, o clima e o ambiente da terra
207
de Artois como alguém que realmente aí viveu e, sobretudo a
amou.
Este assunto foi estudado, entre outros especialistas, por
Monique Gosselin, em Bernanos et le pays d’Artois, e por Yves-
Marie Hilaire em Bernanos et l' Artois (cf. Anais do Colóquio
Bernanos et le monde moderne, 1989). Refiro as fontes para uma
possível consulta, observando, entretanto, que a ligação do
escritor com a paisagem de sua infância ultrapassa um simples
apego ou enraizamento. Essa terra, que não era o torrão natal,
fazia parte de seu ser.
Considero significativo que, em sua errância, anos mais
tarde, Bernanos não tenha retornado a esses sítios. Procurou
regiões mais ensolaradas, climas mais amenos. Como se não fosse
possível voltar ao oásis da infância, tornado mítico e,
provisoriamente, inatingível. Comprova-se, assim, uma
característica bernanosiana - a procura de um ailleurs, o estar
longe do que se ama.
A errância ou nomadismo, as rupturas com os lugares,
refletem-se também no interior dos textos de Bernanos e foram
analisadas por Michael Kohlhauer em Traverses, sursauts;
appartenances. Modernité du roman bernanosien (Kohlhauer, 1998:
57).
Bernanos escreveu em 1939, de Vassouras, a um amigo:
208
Pour moi, l’oeuvre de l’artiste n’est jamais la somme de ses déceptions, de ses souffrances, de ses doutes, du mal et du bien de toute sa vie, mais sa vie même, transfigurée, illuminée, réconcililée [...] Voyez-vous, je crois qu’il ne s’agit pas de se préférer à son oeuvre ou son oeuvre à soi, mais d’être assez simple pour s’aimer dans son oeuvre, ainsi que Dieu dans sa création. (CORR II: 250)
Antes de tentar considerar a vida transfigurada, iluminada e
reconciliada de Bernanos, mister se faz assinalar as etapas vividas
pelo autor. Não se pretende aplicar o método lansoniano de
descobrir a vida na obra ou a obra na vida. Trata-se de sugerir,
não uma solução ou saída, mas de propor um caminho a
percorrer.
Em 1928, Bernanos lança Une nuit e Dialogue d’ombres, obras
menores, escritas em 1922, que passaram relativamente
despercebidas. Em compensação, o ano de 1929 revelou-se
particularmente fecundo. Publicou Jeanne, relapse et sainte e obteve
o prêmio Femina com um romance que mostra uma certa
evolução espiritual, La Joie. O tema da Comunhão dos Santos, a
circulação da graça divina entre os membros do Corpo Místico de
Cristo, que poderia constituir um fio condutor de leitura da obra
de Bernanos, perpassa, de maneira implícita, Sous le soleil de Satan;
apresenta-se em L’Imposture com conatações sombrias e
tenebrosas e revela-se de maneira clara e luminosa em La Joie.
209
A evolução das posições de Bernanos, a este respeito,
aparece no diálogo explícito de La Joie com a doutrina de Santa
Teresa de Lisieux, praticada por Chantal, a principal personagem
feminina. Perturbadora em sua luminosidade, a heroína defende-
se do mal com uma única arma, a simplicidade, “une foudroyante
simplicité” (OR: 611).
Bernanos dizia a respeito dessa obra: "Tous les gens qui
m’aiment, aiment ce livre", relatou D. Letícia Redig de Campos, em
comunicação no Colloque Bernanos e o Brasil (1998).
La Joie, alegria, refere-se ao latim gaudium e significa
sobretudo um sentimento agradável e profundo experimentado
pela consciência, podendo até mesmo coexistir com o
sofrimento. Nessa acepção, alegria não significa, necessariamente,
prazer. Bernanos define, alhures, o sentido da palavra alegria: “La
joie vient d’une part trop profonde de l’âme, pour que ses racines ne plongent
pas dans la tristesse, qui est le fonds de l’homme depuis qu’il a perdu le
paradis" (CORR II: 54). E o próprio texto do romance confirma a
importância desse sentimento em sua visão do mundo: “... la joie
suffit, la joie de Dieu, dont nous sommes avares” (OR: 603).
Consagrada pela crítica e pelo público, La Joie é, raramente,
considerada uma obra autônoma. Ora releva-se a intenção
primeira, confirmada pelo escritor, ora enfatiza-se a unidade
temática da trilogia Sous le soleil de Satan, L’Imposture e La Joie.
210
Caracteriza-os: a presença do mal e a luta da alma diante de Deus,
solucionados à luz da Comunhão dos Santos e, sobretudo a
presença de personagens emblemáticas - os sacerdotes.
O sacerdote era considerado um ser à parte,
misteriosamente escolhido por Deus. Cercava-o uma aura de
mistério, provocando respeito e admiração ou ódio e
agressividade; em todo caso, nunca a indiferença.
A figura do sacerdote, vivendo no mundo sem ser do
mundo, a serviço dos homens, domina o universo romanesco de
Bernanos na trilogia inicial e trava uma luta com o demônio, o
anjo decaído. Já se observou que o pecado da carne não se
apresenta relevante, na obra bernanosiana.
Ao contrário de François Mauriac e suas personagens
atormentadas pela luxúria, Bernanos enfatiza o pecado do
espírito, o orgulho e as sutis e profundas manifestações de que
pode se revestir.
Qualquer que seja a leitura que se faça dos romances
citados, impõe-se constatar a presença de sacerdotes, suas lutas
com o invisível e a ação da Graça Divina alterando o jogo da
vida.
Não é por acaso que no ano de 1929, Bernanos publicou
La Joie e Paul Claudel encenou Le Soulier de Satin, redigido durante
o período de 1919 a 1924. Os dois escritores abordam, cada um a
211
seu modo, uma só temática: renúncia, despojamento, primazia do
espiritual e triunfo da Graça sobre a natureza.
Bernanos (1888-1948) e Claudel (1868-1955) possuem em
comum, malgrado as diferenças de geração e divergências
pessoais, o fato de pertencerem à burguesia, pequena burguesia
em ascensão, no caso de Bernanos, média burguesia no de
Claudel. Ambos eram franceses, escritores e católicos.
Participaram de um renascimento espiritual, que coincidiu com a Belle
Époque, afirmou-se na década de 20 e conheceu uma idade de
ouro nos anos 30. O que explicaria certa recorrência dos temas
encontrados em suas obras.
A recepção feita a La Joie, mais calorosa do que a acolhida
dispensada a L’Imposture, mas sem o entusiasmo quase unânime
do consagrado Sous le soleil de Satan, indica que os críticos e o
público começavam a desejar que Bernanos superasse a evocação
do estreito e sufocante ambiente clerical e abordasse outros
temas.
Em 1929, ele interrompe provisoriamente sua produção
romanesca e envolve-se no turbilhão da luta política: pronuncia
conferências e escreve artigos, obstinando-se em defender
L’Action Française, apesar dos desentendimentos e mal-entendidos
se acumularem de parte a parte. O período de 1929 a 1934 foi
marcado por atitudes contraditórias, dificuldades financeiras,
212
problemas de saúde, mudanças de domicílio e, sobretudo pela
grande ruptura com Charles Maurras.
Reitero que julgo as referências acima aludidas uma
manifestação de uma problemática interna e nunca o fundamento da
explicação. Os dados biográficos esclarecem e objetivam as
hipóteses levantadas e funcionam como um procedimento
auxiliar e parcial, a ser controlado e enriquecido por abordagens
diferentes (Goldmann, 1959:19).
A questão que norteia esta etapa da pesquisa é: Onde estava
Bernanos de 1929 a 1934?
Durante esse período, ele colabora, eventualmente, no
jornal de Charles Maurras, ao mesmo tempo que encoraja o
grupo da revista Réaction, de extrema-direita, dissidente da Action
Française. Em abril de 1931, publica La Grande Peur des Bien-
Pensants, uma espécie de biografia de Édouard Drumont, escritor
e jornalista conhecido por suas idéias anti-semitas e chamado de
"meu velho mestre", por Bernanos. Essa filiação espiritual
constrange a maioria dos admiradores do escritor, que preferem
enfatizar a importância de Léon Bloy e de Charles Péguy, na
evolução do pensamento bernanosiano.
Teria sido Bernanos anti-semita? Os críticos bernanosianos
tentam distinguir o anti-semitismo da tradicional aversão francesa
pelo judeu, detentor do poder econômico. Neste sentido,
213
Bernanos não poderia ser acusado de racismo. E a partir do terror
nazista, ele repudia o termo anti-semitismo. Mas em 1944, no
Brasil, escreve, em um artigo intitulado Encore la question juive, essa
declaração surpreendente: “Ce mot me fait de plus en plus horreur,
Hitler l’ a déshonoré à jamais” (EEC II: 614). Como se, outrora,
noutro contexto, tivesse sido possível honrar o anti-semitismo.
Bernanos permaneceu fiel à memória de Drumont de quem
se considerou sempre discípulo. Essa fidelidade à pessoa revela
um sentimento feudal que remonta à Idade Média. Trata-se de
uma questão de honra, de um vínculo que não poderia ser
rompido sem desonra. Além disso, voltar-se para Drumont
poderia representar a procura de sua família intelectual, cuja
escolha nunca é aleatória e, sobretudo um retorno em busca de
certezas, à época em que tudo se apresentava claro e seguro, em
contraste com o momento atual: incerto, doloroso e conturbado.
A evocação de Drumont por Bernanos pode ser, de certo
modo, explicada e compreendida; mas torna-se extremamente
difícil justificar da mesma maneira a participação do escritor no
jornal de direita, Le Figaro, a partir de novembro de 1931. A
amizade que o unia a Robert Vallery-Radot, diretor literário, não
convence totalmente, tendo em vista que Le Figaro representava
tudo o que Bernanos sempre denunciou: o poder do dinheiro, as
elites elegantes, mundanas e bem-pensantes. O proprietário e
214
diretor do quotidiano, o milionário François Coty, conhecido
perfumista, intervinha na orientação do jornal, imprimindo-lhe
uma orientação favorável ao fascismo.
L’Action Française desencadeou, no início de 1932, uma
violenta campanha, para destruir Coty. Bernanos, mais uma vez,
acha-se na obrigação de defender aquele que considera
injustiçado e tenta esclarecer a opinião pública. Maurras toma a
iniciativa da separação, dizendo adeus ao antigo Camelot du Roi.
Bernanos concretiza a ruptura, anunciada desde 1919, com a
célebre carta A Dieu, Maurras, publicada em maio de 1932.
As conseqüências dessa separação não se fizeram esperar.
L’Action Française desenvolveu uma das mais torpes campanhas
visando desmoralizar o antigo aliado. Georges Bernanos foi
ridicularizado, caluniado e exposto à execração pública. Sua vida
foi submetida a uma rigorosa devassa e suas faltas reais,
exageradas ou inventadas, foram divulgadas pela imprensa. O
ódio e o ressentimento de seus primeiros amigos não
desapareceram com o tempo. Quarenta anos após sua morte, em
1988, um jornal que se intitula La Restauration Nationale - Centre de
Propagande Royaliste et d’Action Française, qualifica Bernanos de
"incoerente e instável" e acrescenta que para ele não há nem amnésia
nem anistia.
215
Se os inimigos enfatizavam suas contínuas flutuações, os
acontecimentos pareciam confirmar esse julgamento
desfavorável. Em junho de 1932, afasta-se do Figaro, por
discordar da sua orientação ideológica, retornando em outubro
do mesmo ano para defender sua equipe dos virulentos ataques
da Action Française. Ao se convencer que suas sugestões para
transformar o Figaro em um instrumento de luta por grandes
ideais caiam no vazio, o escritor separa-se, definitivamente, do
polêmico jornal.
Esses cinco anos, de 1929 a 1934, foram marcados por
grandes perdas, o amadurecer de uma renovação literária,
dificuldades financeiras e mudanças de domicílio - o que
configura um processo de despojamento e errância. Bernanos
perde: reputação, amigos, saúde, dinheiro e torna-se cada vez
mais solitário.
Os ataques à sua honra e à sua credibilidade, a perda dos
antigos companheiros da Action Française amarguraram-no
profundamente. Em 1930, morre sua mãe. Além dos danos
morais, em 1933, Bernanos sofreu um acidente de moto que o
deixou, para sempre, dependente de muletas. Com o tempo, a
limitação física foi superada, e o escritor pode referir-se a seu
acidente como a execução de parte dos desígnios da Providência
a seu respeito.
216
Do ponto de vista literário, vários projetos foram
desenvolvidos simultaneamente: Un Mauvais Rêve, Un Crime e os
primeiros capítulos de M. Ouine, embora nenhum romance tenha
sido concluído e publicado.
A vida errante se acentua: Vésenex, Toulon, La Bayorre.
Sua situação financeira tornou-se insustentável. As dificuldades
acumularam-se a tal ponto que todos os pertences do escritor
foram leiloados para pagamento de três meses de aluguel
atrasados antes de sua partida para Palma de Maiorca.
Em 1934, viaja para a ilha de Maiorca, à procura de
melhores condições de vida: “Je suis venu ici parce que la vie est
matériellement moins difficile qu’en France. Un point c’est tout”.(CORR II:
19).
O período vivido em Maiorca, de 1934 a 1937, pontilhado
por cinco mudanças de domicílio, coincide com uma grande
transformação em sua vida. “Cette expérience d’Espagne a été, peut-être,
l’événement capital de ma vie”.(EEC II: 969) avaliará o escritor em
1945, já no Brasil.
A evolução de seu pensamento político tornada pública em
Les Grands Cimetières sous la lune (1938), poderia parecer brusca e
repentina. Ao contrário, ela foi progressiva e correspondeu a uma
tomada de consciência, revelada na correspondência enviada a
amigos.
217
Enquanto esteve absorvido pela redação de Journal d’un curé
de campagne (1936), Bernanos não prestou muita atenção aos
problemas políticos espanhóis. Terminado o romance, ele
começa a refletir sobre o que acontecia no país e a ver os
massacres cometidos à sua volta. E revolta-se contra a repressão
da direita espanhola e, sobretudo, com a cumplicidade da Igreja.
"Le personnage que les convenances m’ obligent à qualifier d’ évêque-archevêque avait délégué là-bas un de ses prêtres qui, les souliers dans le sang, distribuait les absolutions entre deux décharges." (GCL: 422).
Essa mudança provocou uma grande surpresa nos leitores,
porque o escritor, no início, manifestara admiração e entusiasmo
pelo movimento franquista, comprovada pela presença de seu
filho mais velho, Yves, de 16 anos, nas fileiras da Falange.
Vários fatores podem explicar essa adesão primeira: sua
formação católica, o amor pela ação e todo o seu passado de
Camelot du Roi e militante da Action Française. Pouco a pouco, a
surpresa, o horror e a reprovação o dominam. Seu filho, Yves,
começa a discordar dos métodos empregados pela Falange, pensa
em desertar e acaba fazendo-o. Jean-Loup Bernanos relata que o
irmão, antes de partir para o Brasil, teria manifestado o desejo de
voltar à Espanha para lutar ao lado dos republicanos. Não o fez,
mas a mudança foi radical.
218
O horror presenciado em Maiorca inspirou a Bernanos
além de Les Grands Cimetières sous la lune, Nouvelle Histoire de
Mouchette, (1937), seu último romance. O objetivo do autor é,
além de denunciar, ensinar o leitor a ver, a ler, a decifrar os
acontecimentos e não apenas comover e provocar emoção.
Denuncia o processo de degradação, que faz do adversário um
trapo ensopado de gasolina, contorcido pelo fogo, depois de ter
sido abatido como um animal, nos grandes cemitérios sob a lua.
Ele não ignora os excessos do campo oposto e os
menciona, além de declarar: “L’ armée républicaine ne m’ inspirait, je l’
avoue, aucune confiance” (GCL: 415). Os republicanos de todas as
tendências - anarquistas, comunistas - também matavam e
torturavam, mas não em nome da honra, da ordem ou de Cristo.
Matavam em nome do ideário da Revolução Francesa: Liberdade,
Igualdade e Fraternidade. O grande escândalo consistia no fato de
a Igreja aprovar o Terror franquista, justificando-o em nome de
valores religiosos e morais.
"Où que le général de l’episcopat espagnol mette maintenant le pied, la mâchoire d’une tête de mort se referme sur son talon, et il est obligé de secouer sa botte pour la décrocher” (GCL: 409 ).
Bernanos retorna à França em março de 1937 e publica, em
1938, Les Grands Cimetières sous la lune, um divisor de águas em sua
vida. Abandonado pela direita, sem querer se filiar à esquerda,
219
recusa todas as etiquetas. É um homem pobre, solitário e livre e
nisso consiste sua força.
A repercussão da denúncia do terror franquista, ao alienar
os bem-pensantes, atraiu, em compensação, as simpatias da
esquerda. Simone Weil escreveu-lhe, em 1938, uma longa carta da
qual citarei um trecho:
Depuis que j’ai été en Espagne, que j’entends, que je lis toutes sortes de considérations sur l’Espagne, je ne puis citer personne, hors vous seul, qui, à ma connaissance, ait baigné dans l’atmosphère de la guerre espagnole et y ait résisté. Vous êtes royaliste, disciple de Drumont - que m’importe? Vous m’êtes plus proche, sans comparaison, que mes camarades des milices d’ Aragon - ces camarades que, pourtant, j’ aimais.”(CORR II: 203-204)”.
Apesar desse fervor da esquerda, Bernanos sente-se
isolado. Abandona a criação romanesca e dedica-se a seus Écrits
de Combat. Os problemas financeiros continuam. A experiência do
terror franquista o faz compreender a inexorabilidade da guerra
que se anuncia.
Volta-se para a América do Sul, realizando seu velho
sonho, muitas vezes reiterado, de partir alhures... As razões de
sua partida, ele as evocará, mais tarde, já instalado no Brasil, em
1941:
J’ ai quitté mon pays en 1938. Je l’ ai quitté librement. Je n’ en ai pas été chassé. Je ne l’ ai pas fui non plus.
220
(...) J’ ai quitté mon pays parce que la vérité y était devenue stérile, parce qu’ une parole libre y était aussitôt étouffée. (EE II:293)
Em 20 de julho de 1938, Bernanos, sua família e alguns
amigos embarcam para o Paraguai, com uma escala prevista no
Rio de Janeiro. No Brasil, o escritor foi acolhido
entusiasticamente por Alceu Amoroso Lima, Augusto-Frederico
Schmidt e Aluisio de Salles que foram encontrá-lo a bordo do
navio Flórida e o convidaram a almoçar em Copacabana. Essa
recepção calorosa determinará mais tarde o estabelecimento, por
sete anos, de Bernanos no Brasil.
O Paraguai representava, na época, para Bernanos, uma
espécie de Eldorado mítico. Criar uma colônia francesa no
Paraguai constituíra, outrora, um dos sonhos de Bernanos e de
seus amigos Maxence de Colleville e Ernest de Malibran. Estes
dois realizaram em parte o projeto, visitando o país por volta de
1914, mas foram convocados para lutar na Primeira Guerra
Mundial.
Bernanos, ao decidir se exilar, resolve viver o antigo sonho: "Je partais pour le Paraguay, ce Paraguay que notre dictionnaire Larousse, d’accord avec le Bottin, qualifie de Paradis Terrestre. Je n’ai pas trouvé là-bas le Paradis Terrestre” (EEC I : 629).
221
O paraíso se revelou uma decepção. Dificuldades de visto
de permanência, vida cara, acolhida fria, levam-no a voltar ao
Brasil, onde é acolhido com entusiasmo.
Uma elite de intelectuais - Virgilio de Mello Franco, Alceu
Amoroso Lima, Raul Fernandes, Oswaldo Aranha, Joaquim de
Salles - o acolhe e desdobra-se para facilitar sua estada no Brasil e
tornar o exílio mais suportável.
Amou o Brasil. Considerava-o uma segunda pátria
espiritual. Mas não foi um amor à primeira vista. Ele passou a
amá-lo quando o compreendeu melhor, ultrapassando clichés e
preconceitos. Os brasileiros corresponderam a esse amor
desmitificando a imagem oficial de Bernanos, visto na França da
época como uma espécie de santo literário.
No Brasil, ele é evocado pelos que o conheceram como um
homem que ama a vida, os amigos e um bom vinho e não apenas
como o atormentado escritor que tinha se encontrado com o
demônio, imagem predominante em certos meios literários
franceses da época.
Somente mais tarde, Bernanos pode entender o alcance de
sua estada no Brasil. Em 1946, na França, ele escreverá:
Depuis que je suis rentré dans mon pays, je comprends mieux qu’ autrefois que mon séjour au Brésil n’ a pas été un simple épisode de ma pauvre vie, mais qu’ il était inscrit depuis toujours dans la trame de mon destin. (CORR II: 615)
222
Acaso, destino, Providência Divina, pouco importa.
Bernanos viveu no Brasil durante sete anos, anos que o marcaram
indelevelmente.
Seu itinerário, no Brasil: Rio de Janeiro, Itaipava, Juiz de
Fora, Vassouras, Pirapora, Barbacena e Paquetá, revelou-se uma
verdadeira peregrinação pelo interior do país, pelo sertão, à procura
de uma utopia - um lugar tranqüilo, longe das grandes cidades,
onde ele pudesse trabalhar e sustentar sua numerosa família.
Pirapora, na época última estação da Central do Brasil, às
margens do rio São Francisco, representou para Bernanos um
desafio para sua força e capacidade de resistência. Lá ele
encontrou, não a casa de seus sonhos, mas a que mais se
assemelhava à sua vida:
“Les portes n’ y ont pas de serrures, les fenêtres pas de vitres, les chambres pas de plafond. [...] Pour une maison ouverte, on peut dire de cette maison qu’ elle est ouverte." (EEC I: 878-879).
A casa aberta, "la maison ouverte", parece tornar-se o símbolo
da própria vida o escritor que aceita o despojamento e afirma
desejar estar, ele e seus livros, à mercê dos que passam. Além da
casa aberta, outras metáforas são empregadas pelo escritor: a do
223
pão comum - “Dieu veuille que je sois ce pain de ménage” (EEC I: 869)
e, dentro do mesmo campo semântico, a imagem de um forno
banal, comum.
Un four banal c’ est le four de tout le monde. Je ne suis pas un homme de théâtre, je n’ ai pas le préjugé des fours, je voudrais pouvoir espérer que mon l’ oeuvre fût ce four où chacun vient librement cuire son pain. (EEC I: 874)
O texto fala de "four" - forno - lugar onde o pão é assado.
Four, na gíria do meio artístico e, sobretudo na de teatro, significa
fracasso. Forno ou insucesso, qualquer uma das acepções pode
ser aplicada à leitura que se faça de Bernanos. Quem considera o
tempo transcorrido e os espaços percorridos, entre Sous le soleil de
Satan e Dialogues des Carmélites, não pode deixar de surpreender-se
com um desenrolar entrecortado de rupturas e de partidas,
sucessos e desastres.
É importante ressaltar que foi no Brasil que ele escreveu a
maior parte de seus Écrits de Combat - sua obra política.
Cada texto corresponde aproximadamente a um lugar,
como se pode verificar no quadro que se segue:
ITINERÁRIO OBRAS Itaipava - novembro, 1938 - um mês
Início de Nous autres Français
Juiz de Fora - dezembro, 1938 - janeiro, 1939 - dois meses
Scandale de la vérité - 1939
224
Vassouras - fevereiro - julho, 1939 - cinco meses
Nous Autres Français - 1939
Pirapora - julho,1939 - maio, 1940 - oito meses
Les Enfants humiliés, publicado em 1949. O último capítulo de M. Ouine.
Belo Horizonte e Rio de Janeiro - junho e julho, 1940
Artigos publicados na imprensa brasileira.
Barbacena - Agosto, 1940 - junho, 1945 - cinco anos
Lettre aux Anglais - 1942 La France contre les robots -1944 Le Chemin de la Croix-des-Âmes - 1943-1945.
Paquetá - uma temporada durante o ano de 1943-1944.
Artigos publicados na imprensa brasileira
Bernanos mudava, freqüentemente, de casa após terminar
um livro. Quando são mencionadas as inúmeras e sucessivas
mudanças do escritor, importa ressaltar que não se trata apenas
de um elemento curioso, anedótico, ou meramente de registro
biográfico. As repetições constituem um sintoma, produzem
sentidos. Outros diriam: revelam uma estrutura.
O romper, sistematicamente, com lugares, coisas ou
pessoas significa expressões plurais de uma grande ruptura,
manifestações visíveis de sua visão trágica do mundo.
Os anos de exílio, no Brasil - de 1938 a 1945 - foram
extremamente fecundos do ponto de vista intelectual, como pode
ser verificado no quadro acima.
Vale ressaltar: Les Enfants humiliés - uma espécie de diário, é
um texto escrito de 1939 a 1940 e publicado em 1949, após sua
morte. E Lettre aux Anglais é uma obra do exílio, que se apresenta,
225
desde a escolha da forma de carta ou cartas ligada à condição de
um duplo exílio: geográfico e histórico. Geográfico, porque
escrito no Brasil, mas, sobretudo histórico: a renúncia definitiva a
uma certa idéia da grandeza da França (Kohlhauer, 1995).
O último capítulo de M. Ouine, considerado um dos textos
mais estranhos da literatura francesa do século XX, iniciado em
1931 foi terminado no Brasil em 1940. Publicado, primeiramente,
no Rio de Janeiro, em 1943, e, posteriormente, na França, em
1946, numa versão incompleta, conheceu a primeira versão
integral em 1955.
Le Chemin de la Croix-des-Âmes, coletânea de artigos
publicados na imprensa brasileira de 1940-1945, conheceu uma
primeira edição em quatro volumes de 1943 a 1945, no Brasil,
antes de ser reeditada em 1948, pela Editora Gallimard.
O exílio de Bernanos no Brasil não deve ser considerado
um todo indivisível. Sua correspondência, abrangendo o período
1938- 1945, revela duas etapas bem distintas: antes e após o
Armistício de 1940.
Em um primeiro momento, apesar das dificuldades
materiais, das desilusões inevitáveis, e das freqüentes mudanças
de domicílio, o tempo decorrido entre sua chegada - setembro de
1938 - e a rendição da França em junho de 1940 - não constituiu,
a meu ver, um período de dépaysement, de estranhamento.
226
Acolhido com entusiasmo por uma elite intelectual e social,
em tudo parecida com o estilo da alta classe média francesa,
Bernanos freqüentava amigos que conheciam e amavam a França
e tudo fizeram para que seu exílio lhe fosse suportável.
Se Bernanos declarou, já de volta à França, que gostaria de
morrer no Brasil, os sentimentos confiados a seu Diário (1939-
1940) são mais comedidos: “Je ne hais pas ce pays, je ne saurais dire
que je l’ aime, je l’ aimerais s’ il pouvait m’ aimer”1 (EEC II:824).
Durante algum tempo, ele se considerava um exilado recente, em
um país completamente estranho, “ce pays absolument étranger à mon
âme” (EEC II: 824). Sentindo-se cada vez mais ligado à sua pátria,
refuta de antemão a possibilidade de ser considerado un déraciné,
um desarraigado; e o próprio nome de exílio parece-lhe um
exagero: “... ce mot d’ exil est trop grand pour moi” (EEC II: 788).
O tom muda sensivelmente após a ocupação de junho de
1940. Sente-se isolado, humilhado e procura mais do que nunca o
conforto da amizade.
“Au point où je suis, l’amitié sera peut-être demain pour moi, ma
seule patrie” declara em 1941 (CORR II: 387). Seu artigo "Brésil,
terre d’amitié" (EEC II: 1121) revela o quanto esse sentimento lhe
era precioso e indispensável.
1 Não fica claro, no texto, se o autor se refere ao Brasil ou, mais especificamente a Pirapora.
227
Entretanto, mesmo a amizade revelou-se impotente diante
da sensação de exílio total, inscrito no tempo e no espaço,
sentimento que o dominava. “Nous avons connu quelque chose de pire
que l’exil, ou plutôt l’ exil total, lorsque résolus à aimer plus que jamais
notre peuple, nous désespérions de le comprendre.” (EEC II: 207). De
Pirapora, ele escreve ao grande amigo, o poeta Jorge de Lima:
“J’ai la sensation de traverser l’enfer. Dans la plus profonde humiliation et avec une honte écrasante, je viens de reprendre la conscience de mon pays”.(CORR II: 285).
À dor, à vergonha, à humilhação que o abatem, acrescenta-
se o angustiante sentimento de estar dividido, cindido: “Car une
part de moi-même est restée de l’ autre côté de l’ eau, je pense à moi, je pense
à cette créature délaissée, je pense à elle, comme à un parent lointain.” (EEC
I: 862). Bernanos fala de si mesmo como de um outro, não com
desprezo, mas com distância e estranheza. Suas crises de angústia
se sucedem, crises que o obrigarão, posteriormente, a procurar
um tratamento específico no Rio de Janeiro.
O desânimo inicial, entretanto, foi superado e Bernanos
parte, corajosamente, para o combate por uma França livre, com
as armas de que dispunha: sua voz e seus artigos. "Je travaille
beaucoup. J’ écris pour les journaux clandestins français, pour un journal de
Beyrouth et pour la Marseillaise du Caire.”(CORR II: 512),
escrevia na época. Falava também pela BBC, de Londres, mesmo
228
que esse recurso lhe fosse doloroso:” J’ ai répugnance à parler
personnellellement à la BBC. Il est douloureux pour un Français de ne
pouvoir parler à son pays que par l ’ intermédiaire de l’ étranger” (CORR
II:.341).
Escrevia, sobretudo artigos em francês, que eram
traduzidos antes de serem publicados na imprensa brasileira. O
fato de escrever em sua língua materna reforça a idéia de
testemunho.
Derrida afirmava, em suas aulas na EHESS, em 1995, que
não se pode testemunhar em língua estrangeira, o que
configuraria uma ficção. Bernanos testemunhava e fazia tudo o
que podia para ajudar a Resistência francesa. “Ce n’ est pas que je me
fasse illusion sur l’ aide que je puis apporter au chef de la Résistance
française, mais en ce moment, on offre ce qu’ on peut” (CORR II: 515).
O peso do exílio, apesar dos amigos poderosos e
dedicados, fazia-se sentir: solidão, doenças, dificuldades
financeiras e as mudanças de domicílio que pontilharam sua
existência. Bernanos aceita o ônus do exílio sabendo que: “L’ exil
est l’ exil. Je n’ ai jamais désiré que le mien fût un exil truqué ou doré”
(CORR II: 490).
A peregrinação através do sertão interrompe-se durante
algum tempo: os cinco anos passados em Barbacena, onde
229
encontrou uma certa tranqüilidade. Participava, ativamente,
através de artigos e conferências, da vida intelectual do país.
Sua ação enriqueceu o pensamento intelectual da época,
contribuindo para a evolução política de Tristão de Athayde que
declarou: “Através de Bernanos, então vivendo no Brasil, de Chesterton e
Maritain. (...) iria evoluir numa direção que é a de hoje” (Carpeaux,
1978: 57). Bernanos, sobretudo, impediu que os intelectuais
brasileiros adotassem Pétain, como já se tinham enganado com
Franco e os franquistas “endeusados como anjos, em luta contra os
republicanos demoníacos” (Carpeaux, 1978: 82).
A voz do autor de Les Grands Cimetières sous la lune
incomodou, profundamente, com suas denúncias, muitas vezes
violentas e intempestivas, mas contribuiu para a divulgação de
idéias novas e acenou com outras perspectivas no panorama
intelectual da época, freqüentemente pouco informado ou mal
informado, sofrendo as conseqüências da ditadura Vargas.
Os anos passados no Brasil concorreram para a evolução
de seu pensamento político. Bernanos evoluiu, indubitavelmente,
mas não mudou de ideologia. Continuará católico e monarquista,
porém, como observa Monique Gosselin, um evidente
amadurecimento permitir-lhe-á compreender melhor os que o
cercam e, sobretudo a França, sua pátria.
230
Durante seu exílio no Brasil, Bernanos tomou plena
consciência ao mesmo tempo da universalidade e da
especificidade da civilização francesa. No momento em que a
França decepcionava o mundo, ele pôde constatar que a vocação
histórica da França correspondia ao que o mundo dela esperava.
E essa constatação exacerbava seu sentimento de estar
duplamente exilado: "L’immense étendue de mer qui me sépare de mon
pays peut toujours être traversée; l’obstacle infranchissable, c’est le souvenir de
l’Affront”.(EEC II: 26).
Quando Bernanos parecia ter terminado sua errância,
instalado em Cruz-das-Almas, o General de Gaulle insiste em
chamá-lo de volta à França. “Votre place est parmi nous”, telegrafou-
lhe, no dia 16 de fevereiro de 1945, o próprio General.
Seus amigos brasileiros tentam convencê-lo a não voltar.
Bernanos decide partir e retorna à França em junho de 1945,
onde conhecerá uma outra espécie de exílio, paradoxal e
doloroso, o exílio dentro da própria pátria. Desiludido, ele
constata que apenas mudou o cenário de seu exílio. “J’ai compris
depuis six mois que le poids de l’ exil est parfois moins lourd à porter sur une
terre étrangère que dans son propre pays”, escreve ele já de volta à
França (EEC II: 1115).
231
Ao deixar, livremente, a França em 1938, Bernanos
consumara uma separação que não permitia volta. Pergunta-se
Pierre Gille:
"Por que Bernanos teria voltado à França? Ele deixou um lugar onde tinha encontrado sua verdadeira pátria espiritual, para reencontrar um país do qual se sente separado por uma espécie de divórcio moral, consumado por sua partida desde 1938 e que os acontecimentos da guerra, provavelmente, pouco atenuaram. (EEC II: 1760).
No pós-guerra de 1945, o escritor representava um passado
muito recente que muitos queriam esquecer. A Resistência, que
ele idealizara, tinha se transformado em um partido político. A
voz de Bernanos soava anacrônica e incomodava aqueles que
desejavam esquecer um passado muito recente, onde nem sempre
a Resistência e a Colaboração foram nítidas. Fiel a suas
exigências, recusou uma embaixada, um ministério, a Academia
Francesa e declinou, pela quarta vez, receber a Légion d’Honneur.
As dificuldades financeiras persistem. A casa que abriga o
escritor e sua numerosa família é descrita como fria, gelada, sem
gás, sem eletricidade e sem água encanada - um “château de la
Misère”. As mudanças se sucedem.
Ele enfrenta, em 1945, não mais uma campanha
difamatória, como em 1932, por ocasião de seu rompimento com
Maurras, mas um muro de silêncio, o imenso vazio que se
232
constituiu a sua volta. “Ce n’ est plus maintenant la solitude qui m’
entoure, c’ est le vide. Il me semble que rien ne me répond plus, ne me
répondra jamais”, escreve em janeiro de 1946 (CORR II: 601).
Sua correspondência revela a situação insustentável em que
se encontra: "Quant à la France, elle est inhabitable pour moi. J’ y étouffe.
Le régime de la libération - je veux dire le régime issu d’ elle - se trouve
aujourd’ hui en pleine décomposition." (CORR II: 747).
Em 1947, decide instalar-se na Tunísia, um outro sonho
longamente acalentado. Desde 1943, ainda em Barbacena,
escrevera a um amigo:
Ce que je souhaite seulement peut-être, c’ est d’ aller m’ installer, avec les miens, dans quelque coin du Maroc, et d’ y vivre comme je vis ici, avec la possibilité pourtant d’ aller passer une semaine ou deux ici, ou là. (CORR II: 525)
O que prova que o último estágio do exílio não foi uma
decisão súbita, mas um desejo há muito existente.
Bernanos lamentará sempre ter deixado o Brasil: “Combien je
regrette d’ avoir quitté le Brésil! Si j’ étais encore là-bas, j’ aurais du moins la
certitude d’ être utile à mon pays” (CORR II: 751), escreve em 1948,
ano de sua morte.
Uma pergunta impõe-se: Por que Bernanos não retornou
ao Brasil, onde era respeitado, possuía amigos dedicados e
influentes que o receberiam de braços abertos? Várias hipóteses
233
podem ser levantadas. Parece-me, entretanto, baseada nas
partidas e rupturas que pontilharam sua vida, que ele nunca
retornava aos lugares, mesmo amados, por onde passara.
Acredito ter encontrado uma explicação, na longa passagem em
que ele fala das paisagens de sua infância e juventude:
Je n’ ai pas revu ceux de ma jeunesse, j’ en ai préféré d’ autres, je tiens à la Provence par un sentiment mille fois plus fort et plus jaloux. (...) Pourquoi évoquerais-je avec mélancolie l’ eau noire du chemin creux, la haie qui siffle sous l’ averse, puisque je suis moi-même la haie et l’ eau noire? (EEC I: 788)
Os lugares e as pessoas passariam a fazer parte de seu ser e
não precisariam ser revisitados para continuarem amados. Não se
repete sucesso. Não se repete fracasso. Não se volta ao que
passou.
As dificuldades habituais enfrentadas na Tunísia - falta de
dinheiro, luto, foram acrescidas pela doença do escritor, atingido
por um câncer no fígado. Nessas condições precárias, Bernanos
empreende a redação de sua última obra.
De novembro de 1947 a março de 1948, gravemente
enfermo, Bernanos dedica-se a esse texto, publicado,
posteriormente, sob o título de Dialogues des Carmélites.
Transportado, às pressas, para a França, morreu no Hospital
Americano de Neuilly, em 5 de julho de 1948.
234
A leitura dos fatos mais marcantes da vida de Bernanos
revela uma errância, que procurei ressaltar ao longo desse
capítulo. Ele mesmo se definiu como uma espécie de viajante, de
vagabundo “Jamais je ne me suis plus senti un errant, un vagabond, un
clochard” (CORR II: 275) (grifo meu).
E a errância informa a vida de Bernanos. Um longo e
progressivo despojamento tornou-o solitário e livre, uma voz e
um olhar, um vagabundo.
Bernanos viveu a vida como um exilado. Durante toda a
vida, procurou um lugar onde pudesse trabalhar livremente. Tudo
o que ele pedia era: “Un coin,le plus éloigné possible, où je puisse le cas
échéant nourrir ma pension de famille de ce qui pousse dans mon jardin, ou
broute dans mon pré” (CORR II: 650). Essa aspiração, dialogando
com os escritos de Rousseau, permaneceu um anseio, uma utopia
nunca concretizada.
No Brasil, ele parecia ter encontrado o que mais se
aproximava daquilo que buscava incessantemente; porém as
circunstâncias e o que considerava ser o seu dever impeliram-no a
recomeçar uma errância que somente terminou com sua morte.
Ler sua obra através da ótica do exílio esclareceria seus
aspectos aparentemente contraditórios e permitiria compreender
suas rupturas, expressão de uma Ruptura essencial: o homem,
235
expulso do Paraíso Terrestre, procura Deus, que se esconde, e só
o encontra através da morte.
Dialogues des Carmélites, coincidentemente, apresenta a
mesma problemática: Blanche de la Force buscou um refúgio, um
lugar onde recuperar a honra, mas procurou, sobretudo, seu lugar
no mundo, sua identidade. Sua errância faz ressoar a peregrinação
de Bernanos.
E não é certamente por acaso que o autor se identifica, às
vésperas da morte, com o destino das carmelitas, discípulas de
Teresa d’Ávila, acusada de ser "uma mulher inquieta e errante"
(Auclair, 1960).
Quatro figuras femininas teriam ajudado Bernanos em sua
meditação derradeira: Madame de Croissy, a vencer o medo da
morte; Marie de l’Incarnation, a superar o sentimento de desonra
experimentado no pós-guerra (Bush,1988:18); Mère Lidoine, a
entregar-se inteiramente à vontade divina; e Blanche de la Force,
a dominar o terror e a angústia, através da Comunhão dos Santos.
Quem foi Bernanos? Certamente um autor contraditório.
Os que o criticavam consideravam-no um desadaptado. Seus
admiradores diziam que o exílio lhe convinha e que ele era feito
para falar do alto e de longe. Os dois julgamentos não se excluem
e até confirmam sua visão trágica do mundo: “a impossibilidade
236
radical de realizar uma vida que valha a pena no mundo”
(Goldmann,1959:117).
Proponho qualificar Bernanos como o errante. Sempre longe
e sempre presente, Bernanos, no final de sua vida reconhecia: "On
y réussit mieux de loin. C' est d' ailleurs pourquoi j' ai bien envie de
reprendre le bateau" (CORR II: 676).
Retomar o barco, expressão empregada em seu sentido
próprio, mas, certamente, metáfora da vida, considerada a viagem
na qual estamos todos embarcados, como disse Pascal. De porto em
porto, somos todos viajantes, queiramos ou não.
Bernanos vivenciou a errância. E o mundo lhe foi um
incessante exílio.
237
UMA OBRA ETERNA?
Une oeuvre est éternelle, non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle toujours la même langue symbolique à des temps multiples.
R. Barthes
Dialogues des carmélites, obra escrita no pós-guerra de 1947-
1948, é um texto nascido dos conflitos e da guerra: da Primeira
Guerra Mundial, do Terror de 1793-1794 vivenciado por
Bernanos na guerra civil espanhola e da Segunda Guerra mundial.
Os diferentes terrores destes diversos momentos históricos
dialogam, articulam-se e constituem manifestações do mesmo
fenômeno, de um único Terror. Terror foi conceituado como
todo e qualquer regime pautado, não pela lei, mas pela exceção,
mesmo que esta pretenda ser necessária e provisória. Todos os
regimes de terror invocaram e invocam a manutenção da ordem
geral em detrimento da liberdade individual.
Bernanos, em uma linguagem calcada no estilo do século
XVII, reescreve um fato histórico ocorrido no século XVIII, que
se repete sob a forma de paralelismo, na França do pós-guerra. A
sociedade francesa, que vivera o vergonhoso Armistício de 1940 e
a Ocupação alemã, uma vez terminada a guerra, preocupava-se
238
com sua reconstrução. Mas, antes de reconstruir, era necessário
proceder a uma limpeza, à l’épuration.
Neste contexto histórico, discutia-se o que se passara
durante os anos negros - les années noires (1940-1944) e indagava-se
qual a atitude que se deve manter diante da força? A vida seria
mais importante do que a honra? Quem colaborou com os
alemães e sobreviveu? Quem fugiu? Quem resistiu ao poder e
morreu?
As carmelitas de Compiègne, em 1794, tinham-se
defrontado com um dilema análogo: como viver a fé em um
momento de perturbação? Elas haviam tentado resolver o
problema, humanamente, através da astúcia da linguagem, o que
se revelou ineficaz. Condenadas à guilhotina, pelo Terror
Revolucionário, acederam a uma outra ordem, à da
transcendência, através do martírio.
Bernanos aceitou escrever diálogos, para um filme, sobre
este episódio e ele se apaixonou pela idéia de examinar o martírio
das carmelitas, à luz das questões do século XX e das indagações
que o atormentavam, às vésperas de sua morte.
Dialogues des carmélites permite diversas leituras ou, no dizer
de Barthes, sugere sentidos diferentes ao mesmo leitor. Minha
leitura apresentou o contexto histórico e político no qual a obra foi
escrita (1947-1948) e as Figuras que atuam como intertexto: a
239
cidade de Compiègne, a Ordem do Carmelo e o convento das
carmelitas em Compiègne, espaços modificados pela Revolução
Francesa.
O movimento revolucionário é visto, no texto,
principalmente, como uma troca de lugares. A ameaça referida no
prólogo do texto: “... et nous roulerons dans vos carrosses”, anuncia a a
reversão dos espaços sociais. Rodar alude ao movimento giratório
da vida e carruagem seria uma metonímia dos privilégios do poder,
um dos sinais visíveis da nobreza. Nos movimentos da roda da
fortuna, os revolucionários ocupam os palacetes e conventos, os
nobres são encarcerados, condenados e executados. A rua e o
anonimato tornam-se o melhor refúgio. As mudanças são
múltiplas e consistem em uma “reversão de situações, opiniões, valores,
sentimentos, linguagens”. (Barthes,1980:38).
No Carmelo, a primeira grande mudança é a eleição para
Priora da burguesa Mère Lidoine, preferida à aristocrática Marie
de l’Incarnation. Esta escolha revela uma situação nova: a
necessidade de contemporizar com as autoridades revolucionárias
e também a mobilidade social crescente, uma vez que Mère
Lidoine é filha de um vendedor de gado.
Foi analisado de que modo o princípio aristocrático e os
valores burgueses coexistem no denso espaço do convento, com
o predomínio dos valores da nobreza. A eleição da nova Priora
240
possibilita, então, a manifestação de um discurso plebeu, já
existente, intensificado pela influência dos ideais revolucionários
sofrida, a contragosto, pelas religiosas. Esta modificação se reflete
na variedade de registros dos diálogos e na diversidade dos
sentimentos expressos pelas religiosas. O Carmelo mostrou-se
permeável, às novas idéias, antes de ser invadido e saqueado pela
multidão e agredido pelas canções revolucionárias. O século está
presente no claustro e seus conflitos e seus muros não são
intransponíveis.
O mundo está presente no Carmelo, sobretudo, nos
conflitos entre os valores aristocráticos e burgueses,
intensificados diante da contradição vivida por Blanche de la
Force, nobre e covarde. Blanche representa o elemento
catalisador da oposição entre o heroísmo exaltado de Marie de
l’Incarnation e o senso prático e comunitário da Priora.
A nova Priora opõe o equilíbrio e a humildade, valores
antes subestimados, às exigências do código de honra da nobreza.
Ela restabelece o conceito da verdadeira honra e explicita, a seu
modo, a loucura da santidade. A aceitação do medo torna-se,
portanto, um valor, sentimentos humano, assumido pelo Cristo
no Jardim das Oliveiras, em sua agonia.
Blanche de la Force, Blanche de l'Agonie du Christ oferece
o exemplo-limite desta mudança de valores. Tendo atingido o
241
mais baixo nível de auto-estima, ela é a própria imagem da
abjeção e da exclusão, antes de se tornar a figura emblemática da
vitória da fé, sobre o medo, propiciada pela Graça.
Blanche de la Force, em seus deslocamentos sucessivos, à
procura de seu lugar no mundo, em busca de sua identidade
pessoal e social, concentra em si a angústia e o terror diante da
morte, dos quais seria a própria representação.
As carmelitas de Compiègne foram acusadas por Fouquier-
Tinville, promotor público, de conspirar contra a República e
condenadas, sumariamente, em 1794. Estas mulheres que
escolheram o silêncio e o anonimato, ao serem sacrificadas,
alcançam a graça do martírio, negado a Marie de l’Incarnation e
concedido a Blanche. Graça imprevisível, porque: “Dieu choisit ou
réserve qui lui plaît” (DC: 1718).
A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos,
vivido sob a forma de um certo nomadismo. Dialoga, sobretudo,
com a visão trágica do escritor, com o viver sob o olhar de um
Deus presente, mas escondido.
“Il y a plusieurs sortes de courage, voilà ce que je pense
maintenant”.(DC: 1578), dizia Blanche de la Force. Parafraseando-
a, relembro que há várias formas de exílio manifestadas no
repouso, no silêncio, na errância.
242
BIBLIOGRAFIA
1. Textos do Escritor
BERNANOS, Georges. Oeuvres romanesques. Préface par
Gaëtan Picon. Texte et variantes établis par Albert Béguin. Notes
par Michel Estève. Paris: Gallimard, 1961 (Bibliothèque de la
Pléiade).
------. Essais et écrits de combat I. Textes présentés et annotés par
Yves Bridel, Jacques Chabot et Joseph Jurt, sous la direction de
Michel Estève. Paris, Gallimard, 1971 (Bibliothèque de la
Pléiade).
------. Correspondance. Recueillie par Albert Béguin et présentée
par Jean Murray, O. P. Paris: Plon, 1971. (2 v.)
------. Combat pour la vérité. Paris: Plon, 1971.
------. Combat pour la liberté. Paris: Plon, 1971.
------. Lettres retrouvées. Paris: Plon, 1983.
------. Essais et écrits de combat II. Textes établis, présentés et
annotés par Yves Bridel, Jacques Chabot, Michel Estève,
François Frison, Pierre Gille, Joseph Jurt et Hubert Sarrazin, sous
la direction de Michel Estève. Paris: Gallimard, 1995
(Bibliothèque de la Pléiade).
243
Todas as citações, salvo indicação expressa, referem-se às edições
da Bibliothèque de la Pléiade.
O corpus específico de minha análise é o Dialogues des carmélites,
obra publicada pela Bibliothèque de la Pléiade em 1961. Minha
escolha justifica-se pela confiabilidade do texto, rigor das notas,
comentários e variantes. Esta edição da Pléiade é a fonte mais
segura de que se pode dispor, no momento, enquanto não for
estabelecido, através de uma edição crítica que está sendo
preparada, um texto com maior rigor ecdótico.
2. Períodicos, Anais, Coletâneas.
"Etudes bernanosiennes" in: La Revue des Lettres Modernes. Paris:
Minard. 20 volumes a partir de 1960. Consultei especialmente o
nº 19 Confrontations 2.
Georges Bernanos 1888-1988. Nord’. Lille: Société de littérature
du Nord, nº11, juin 1988.
Paradoxes et permanence de la pensée bernanosienne.Etudes publiées
sous la direction de Joël Pottier. Paris: Amateurs de Livres, 1989.
Bernanos et le monde moderne. Textes recueillis par Monique
Gosselin et Max Milner. Lille: Presses Universitaires de Lille,
1989.
244
Annales Historiques de la Révolution Française. Paris: nº 297, juillet-
septembre, 1994: nº3.
Georges Bernanos, Témoin. Textes publiés sous la direction de
Pierrette Renard. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail,
1994.
Georges Bernanos. Europe. Paris: nº 789-790, janvier-février.
1995.
3. Bibliografia geral
ANGENOT, M. "Intertextualité, interdiscursivité, discours
social" In: Texte. Toronto: Trintexte, 1984.
ARON, R. "Le message de Bernanos" In: COMMENTAIRE.
Paris: v.17, nº 68, p.913-919, 1994-1995.
AUCLAIR, Marcelle. La vie de Sainte Thérèse d’Avila. Paris:
Seuil, 1960.
AUSTIN, J.L. Quand dire, c'est faire. Introduction, traduction et
commentaire par Gille Lane. Postface de François Récanati.
Paris: Seuil, 1970.
ÁVILA, Thérèse d’. Oeuvres complètes. Texte français par
Marcelle Auclair. Paris: Desclée des Brouwer, 1995.
AZÉMA, J.-P. & BÉDARIDA, F. De l' Occupation à la
Libération. Paris, Seuil, 1993.
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Stock 2, 1979.
BAKTINE, M. La poétique de Dostoïevski. Paris: Seuil, 1970.
BALTHASAR, Hans Urs von. Le chrétien Bernanos. Traduit par
Maurice de Gandillac. Paris: Seuil, 1956.
BARTHES, Roland. Sur Racine. Paris: Seuil, 1963.
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------. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973
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Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.
RESUMO
Esta tese assinala diferentes formas de Terror na História
contemporânea: no período revolucionário de 1792-1794, na
guerra civil espanhola, na Ocupação alemã, no pós-guerra e na
guerra fria na França, que se articulam e se exprimem em
Dialogues des Carmélites, peça de teatro de Georges Bernanos, re-
escritura do martírio das Carmelitas de Compiègne em 1794. O
objetivo foi estudar o conflito entre o princípio aristocrático e os
valores burgueses, solucionado na Transcendência. Angustiada,
Blanche de la Force, personagem nobre e covarde, é um símbolo
de contradição e torna-se elemento catalisador entre os diferentes
valores. Sua errância, à procura de um lugar no mundo,
equivalência de uma busca de identidade, dialoga com o exílio de
Bernanos. A leitura da obra de Bernanos sob o ângulo do tema
do exílio, diferentes exílios, esclarece algumas contradições e
paradoxos.
260
SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em Dialogues
des Carmélites, de Georges Bernanos. Rio de Janeiro: UFRJ,
Fac. de Letras, 1998. 259 fl. mimeo. Tese de Doutorado em
Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.
RÉSUMÉ
Cette thèse signale différents moments de la Terreur dans
l’Histoire contemporaine: la période révolutionnaire de 1792-
1794, la guerre d’Espagne, l’Occupation allemande, l’après-guerre
et la guerre froide em France, qui s’articulent, s’entrecroisent et
s’expriment dans Dialogues des Carmélites, de Georges Bernanos,
pièce qui réécrit le martyre des carmélites de Compiègne em
1794. Le but en a été d’étudier l’antagonisme entre le principe
aristocratique et les valeurs bougeoises, résolu dans la
Transcendencee. Angoissée, Blanche de la Force, personnage
nobre et lâche, est le symbole de cette contradiction. Son errance,
à la recherche de son identité, rejoint celle des nombreux
déplacements de Bernanos. La lecture de l’oeuvre de Bernanos à
la lumière du thème de l’exil expliquerait alors les contradictions e
les paradoxes de cet auteur.
261
SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em
Dialogues des Carmélites, de Georges Bernanos. Rio de Janeiro:
UFRJ, Fac. de Letras, 1998. 259 fl. mimeo. Tese de Doutorado
em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.
ABSTRACT
This thesis presents forms of Terror in the Contemporary
History: in the 1792-1794 revolutionary period, in the Spanish
Civil War, during the German occupation, in the post-warperiod
and during the Cold War in France. These different ‘terrors’
articulate and express themselves in Dialogues des Carmélites, a play
by Georges Bernanos, re-script of the martyrdom of the
carmelites of Compiègne in 1794. My aim was to study the conflit
disclosed in the Carmel between the aristocratic principle and the
bourgeois values, which was solved by transcendency. Blanche
de la Force, a noble, coward anguished character is a symbol of
contrradiction and becomes a catalyst element between differents
values. Her wandering insearch of a place in the world,
equivalence of a search for her own identity, interacts with
Bernanos’ exile. The reading of Bernanos’ oeuvre through the
exile’s point of view, through different exiles’ point of view,
clarifies some of his contradictions and paradoxes.