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4/15/2014 Territórios indígenas ameaçados pela morosidade do Estado. Entrevista especial com Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/526801-territorios-indigenas-ameacados-pela-morosidade-do-estado-entrevista-especial-com-maria-denise-fajardo-e-l… 1/5 Segunda, 06 de janeiro de 2014 Foto: http://bit.ly/J5rdMV Entrevistas Territórios indígenas ameaçados pela morosidade do Estado. Entrevista especial com Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi “Assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história de conquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdas territoriais”, afirmam pesquisadoras A pesada engrenagem burocrática da formalização legal das Terras Indígenas no Brasil não é o único desafio à garantia dos direitos dos índios. Conforme Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi , que concederam entrevista por e-mail à IHU On-Line, a Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana , situada na região norte do Pará, encontra-se formalmente ainda na etapa de identificação, uma vez que foram cumpridas cinco das sete etapas do processo legal, faltando a homologação presidencial e o registro em cartório. “O relatório antropológico de identificação deste território, entretanto, encontra-se devidamente concluído e tecnicamente aprovado pela Funai desde abril de 2013. A presidência tem prometido sua assinatura e publicação desde essa época, mas infelizmente tem encontrado dificuldades para fazê-lo. A morosidade deste processo de regularização fundiária vem produzindo uma situação de extrema insegurança, tendo, nos últimos anos, instaurado um clima de desconfiança entre os povos indígenas e quilombolas da região, vizinhos há mais de 150 anos”, apontam as pesquisadoras. O Estado argumenta que não procedeu o registro, pois há uma sobreposição territorial de terras para índios e quilombolas, mas o argumento não foi aceito pelo Ministério Público Federal - MPF. “O MPF instaurou um inquérito para acompanhar o processo de demarcação em 2011 e, não por acaso, recomendou que a Funai proceda à assinatura e publicação do relatório, uma vez que não há justificativa técnica para que o mesmo não seja assinado e publicado”, sustentam. Os indígenas e quilombolas da região recolhem assinaturas em uma petição pública pedindo mais agilidade da União. Compreender a complexidade do tema requer ter em conta o processo histórico de constituição do Brasil. Segundo as pesquisadoras, a distribuição das Terras Indígenas no país reflete o padrão histórico de exploração econômica e que remonta a 1500. “De tal modo que assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história de conquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdas territoriais. Tudo depende do ponto de vista que adotemos: indígena ou não indígena. Do ponto de vista dos povos indígenas a história do Brasil se confunde com a história de suas lutas, principalmente da luta pelo direito à terra .” Maria Denise Fajardo Grupioni possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo - USP. É pesquisadora do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP. Atualmente integra o Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia Social desta mesma Universidade, onde realiza atividade docente e de pesquisa, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Compartilhar Imprimir Enviar por e-mail Diminuir / Aumentar a letra

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Segunda, 06 de janeiro de 2014

Foto: http://bit.ly/J5rdMV

Entrevistas

Territórios indígenas ameaçados pela morosidade do Estado.Entrevista especial com Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi“Assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história de conquistas territoriais,também pode ser lida como uma história de perdas territoriais”, afirmam pesquisadoras

A pesada engrenagem burocrática da formalização legaldas Terras Indígenas no Brasil não é o único desafio àgarantia dos direitos dos índios. Conforme Maria DeniseFajardo e Luisa Girardi, que concederam entrevistapor e-mail à IHU On-Line, a Terra IndígenaKaxuyana-Tunayana, situada na região norte do Pará,encontra-se formalmente ainda na etapa de identificação,uma vez que foram cumpridas cinco das sete etapas doprocesso legal, faltando a homologação presidencial e oregistro em cartório.

“O relatório antropológico de identificação desteterritório, entretanto, encontra-se devidamente concluídoe tecnicamente aprovado pela Funai desde abril de 2013.A presidência tem prometido sua assinatura e publicação desde essa época, mas infelizmente temencontrado dificuldades para fazê-lo. A morosidade deste processo de regularização fundiária vemproduzindo uma situação de extrema insegurança, tendo, nos últimos anos, instaurado um clima dedesconfiança entre os povos indígenas e quilombolas da região, vizinhos há mais de 150 anos”, apontamas pesquisadoras. O Estado argumenta que não procedeu o registro, pois há uma sobreposição territorialde terras para índios e quilombolas, mas o argumento não foi aceito pelo Ministério Público Federal -MPF. “O MPF instaurou um inquérito para acompanhar o processo de demarcação em 2011 e, não poracaso, recomendou que a Funai proceda à assinatura e publicação do relatório, uma vez que não hájustificativa técnica para que o mesmo não seja assinado e publicado”, sustentam. Os indígenas equilombolas da região recolhem assinaturas em uma petição pública pedindo mais agilidade da União.

Compreender a complexidade do tema requer ter em conta o processo histórico de constituição doBrasil. Segundo as pesquisadoras, a distribuição das Terras Indígenas no país reflete o padrão históricode exploração econômica e que remonta a 1500. “De tal modo que assim como a história do Brasil podeser lida como uma história de conquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdasterritoriais. Tudo depende do ponto de vista que adotemos: indígena ou não indígena. Do ponto de vistados povos indígenas a história do Brasil se confunde com a história de suas lutas, principalmente da lutapelo direito à terra.”

Maria Denise Fajardo Grupioni possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federaldo Rio Grande do Sul e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo - USP.É pesquisadora do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP. Atualmente integra oPrograma de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia Social desta mesma Universidade,onde realiza atividade docente e de pesquisa, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do

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Estado de São Paulo - Fapesp.

Luisa Gonçalves Girardi, Bacharel em Ciências Sociais e mestre em Antropologia pela Faculdade deFilosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. É Pesquisadorado Núcleo de Antropologia e Arqueologia da Amazônia - Naada/UFMG, possui experiência entreos povos indígenas da bacia do Trombetas, na Amazônia Setentrional, região à qual dedica-se desde2010.

Confira a entrevista.

IHU On-Line- Em que consiste o processo da Funaipara liberar a homologação de área de mais de 2milhões de hectares na região norte do Pará? Quala atual situação desse processo?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi - Os direitosterritoriais dos povos indígenas que vivem no Brasilestão previstos no Artigo 231 da Constituição de1988. Até hoje são regulamentados pelo Decreto1775/1996. Este dispositivo – atualmente ameaçadopela pressão de setores econômicos ligados aoagronegócio e à mineração – prevê que a regularizaçãofundiária das Terras Indígenas brasileiras devepassar por um longo processo, que inicia-se com arealização de estudos antropológicos de identificação edelimitação e termina com a homologação e registro doterritório identificado.

Resumidamente, conforme o Decreto, os processos devem atender às seguintes etapas: (1) produção deestudos antropológicos de identificação e delimitação; (2) aprovação dos estudos e publicação no DiárioOficial da União pela Presidência da Fundação Nacional do Índio - Funai; (3) abertura de período decontestação dos estudos por quaisquer interessados (90 dias a partir da publicação do resumo dorelatório no Diário Oficial da União); (4) expedição de portaria que declara os limites da TerraIndígena pelo Ministro da Justiça; (5) realização da demarcação física da área declarada; (6)homologação da Terra Indígena por decreto presidencial; (7) registro da TI em cartório.

A Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, situada na região norte do Pará, encontra-se formalmenteainda na etapa de identificação. O relatório antropológico de identificação deste território, entretanto,encontra-se devidamente concluído e tecnicamente aprovado pela Funai desde abril de 2013. Apresidência tem prometido sua assinatura e publicação desde essa época, mas infelizmente temencontrado dificuldades para fazê-lo. A morosidade deste processo de regularização fundiária vemproduzindo uma situação de extrema insegurança, tendo, nos últimos anos, instaurado um clima dedesconfiança entre os povos indígenas e quilombolas da região, vizinhos há mais de 150 anos. Ogoverno chegou a afirmar que aguarda que seja resolvida a questão da sobreposição de terras indígenase quilombolas para publicar o relatório, desconsiderando que, na verdade, é a própria indefinição quetem produzido a tensão na região.

O Ministério Público Federal instaurou um inquérito para acompanhar o processo de demarcação em2011 e, não por acaso, recomendou que a Funai proceda à assinatura e publicação do relatório, uma vezque não há justificativa técnica para que o mesmo não seja assinado e publicado. Portanto, neste, comoem vários outros processos de regularização fundiária de terras indígenas atualmente parados, nãoestamos diante de uma questão técnica, e sim claramente diante de uma questão de vontade política.

IHU On-Line - Qual a situação da terra indígena de Oriximiná, onde vivem cerca de 3,5 milíndios?

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Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi - Oficialmente vinculadas ao município de Oriximiná, existemhoje três Terras Indígenas devidamente homologadas (TI Zo’é, TI Nhamundá-Mapuera e TITrombetas-Mapuera) e outra em processo de demarcação (TI Kaxuyana-Tunayana). As quatroáreas são tradicionalmente ocupadas por diversos povos indígenas que, em conjunto, possuem umapopulação estimada em 3.500 pessoas. Na TI Kaxuyana-Tunayana existem 15 aldeias, distribuídas aolongo da calha dos rios Nhamundá, Trombetas e seus afluentes, Cachorro e Mapuera. Estas aldeias sãotradicionalmente ocupadas pelos Kaxuyana e Tunayana – que dão nome às áreas–, mas também pelosHixkaryana e Waiwai. Juntas, as aldeias possuem uma população estimada em 500 pessoas, conformelevantamento realizado em 2010. Também existem evidências que sugerem a presença de povosindígenas isolados, isto é, de grupos que, voluntariamente, têm evitado o contato com outros índios enão índios na região.

A TI Kaxuyana-Tunayana faz fronteira com as outras Terras Indígenas existentes na região e évizinha de Unidades de Conservação de Proteção Integral, Uso Sustentável (Reserva BiológicaTrombetas, Estação Ecológica Grão-Pará, Floresta Estadual do Trombetas, Floresta Estadual deFaro) e de Territórios Quilombolas (Cachoeira Porteira e Alto Trombetas). A região em que asaldeias localizam-se é de difícil acesso, e por isso mantiveram-se, até hoje, preservadas da exploraçãoagropecuária, hidroelétrica, madeireira e minerária. A existência e permanência deste conjunto de áreasprotegidas é extremamente importante para a manutenção do modo de vida dos povos locais, quedependem, sobretudo, da agricultura familiar, caça, coleta e pesca. Os serviços de educação e saúde nasaldeias das Terras Indígenas já homologadas são existentes, ainda que precários. Embora a maioria dasaldeias possua escolas de ensino fundamental e pequenos postos de saúde, faltam equipamentos,infraestrutura e materiais. Já nas aldeias da TI Kaxuyana-Tunayana, em processo de regularização, apresença de dentistas, enfermeiros e médicos é rara e as aldeias mais distantes não possuem sequerAgentes Indígenas de Saúde - AISs ou Agentes Indígenas de Saneamento - AISANs. Nestesentido, a regularização fundiária é importante também para que estes serviços sejam garantidos commais facilidade.

IHU On-Line- Quando o processo de regularização fundiária desta terra foi iniciado?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi - A demanda indígena pela regularização de seu território deocupação tradicional remonta ao início dos anos 2000. Em 2003, as lideranças indígenas protocolaramna Coordenação Geral de Identificação e Delimitação da Funai documento no qual apresentaramum mapa detalhado de sua área de ocupação tradicional e solicitaram o reconhecimento pelo órgãoindigenista de sua terra tradicionalmente ocupada. No mês de agosto de 2005, foi formalizada, naCoordenação de Identificação e Delimitação da Funai, sua demanda de estudo e regularizaçãofundiária em área contígua à Terra Indígena Trombetas/Mapuera. Mas somente em julho de 2008 aFunai constituiu Grupo Técnico com o objetivo de realizar o estudo de identificação e delimitação daTerra Indígena Kaxuyana e Tunayana (Portaria 875 de 31/07/2008). Esse estudo, tecnicamenteaprovado em abril de 2013, está à espera de assinatura pela Presidência da Funai e da publicação noDiário Oficial da União.

IHU On-Line - Em que consiste a proposta de mudança do Ministério da Justiça no processo dedemarcação de terras indígenas?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi - No último mês, José Eduardo Cardozo, Ministro daJustiça, fez circular entre as lideranças indígenas que integram o Conselho Nacional de PolíticaIndigenista - CNPI uma minuta de portaria ministerial para encaminhar a mudança do procedimentoque orienta a demarcação das Terras Indígenas no Brasil, o que vem sendo anunciado desde maiodeste ano. A minuta propõe o acréscimo de diversos procedimentos administrativos ao Decreto1775/1996 – que, como mencionado, hoje regulamenta os processos de demarcação – e, de acordo como discurso oficial, tem o objetivo de “diminuir a judicialização”.

A proposta, entretanto, burocratiza os procedimentos necessários para a regularização fundiária dasTerras Indígenas, além de propor a formalização da intervenção de interessados nos processos de

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demarcação desde o seu início. Na prática, essa burocratização deve paralisar as demarcações, e por issoa proposta não foi bem recebida pelo movimento indígena.

IHU On-Line- Há uma solução jurídica para a demarcação e homologação das terras indígenas?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi - Para a demarcação e homologação das áreas existe soluçãojurídica, desde que não haja nenhum tipo de sobreposição em termos de ocupação e uso.

Em havendo sobreposição, tanto devido à presença de outras populações tradicionais (quilombolas,ribeirinhos, etc.) quanto de unidades de Conservação, como é o caso da TI Kaxuyana-Tunayana, queencontra-se sobreposta por uma comunidade quilombola (Cachoeira Porteira) e por uma FlorestaEstadual (Flota Trombetas) no Pará, neste caso até hoje não existe solução jurídica. Os problemascausados por tal sobreposição têm tensionado as relações entre índios e quilombolas na região e nãoforam até o momento equacionados. Se por um lado os processos de regularização fundiária, tanto daocupação indígena quanto quilombola, remontam ao início dos anos 2000, em dezembro de 2006 ogoverno estadual criou as Florestas Estaduais Trombetas (Decreto 2.607, de 04/12/2006) e Faro(Decreto 2.605, de 04/12/2006) sobrepostas às terras ocupadas não só pelos quilombolas de CachoeiraPorteira mas também pelos índios Kaxuyana e Tunayana. E, no caso da Flota Trombetas, tambémpela comunidade quilombola Ariramba (no limite leste, no município de Óbidos). A criação dessasFlotas desrespeitou os direitos constitucionais destas populações às suas terras bem como o direito àconsulta livre, prévia e informada assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional doTrabalho - OIT. A sobreposição com a Unidade de Conservação permanece como mais uma questão aser equacionada nesse processo. Os índios e quilombolas dessa região se conhecem há mais de 150anos, mais precisamente, desde a época da Cabanagem (1836), quando os quilombolas subiram o rioTrombetas em busca de refúgio, e foram dar em territórios indígenas. Avizinhando-se, estranharam-se,confrontaram-se, e por fim aliaram-se, estreitando relações não só em torno da atividade castanheira (osíndios extraíam castanha em troca das mercadorias levadas pelos negros a partir de Óbidos e Oriximiná),como também em torno de laços de compadrio, reciprocidade e, eventualmente, de casamentos. Laçosestes que, com o tempo e as mudanças no contexto geopolítico e econômico da região, enfraqueceram-se, dando lugar, tanto da parte dos índios quanto dos quilombolas, a novas relações com novos agentes,focadas não mais na interação preexistente, mas na quase ausência de interação. Mais recentemente, noinício dos anos 2000, a demanda pela regularização fundiária acabou por colocar índios e quilombolasem lados opostos uma vez que trouxe a necessidade de se estabelecer limites claros num espaço atéentão compartilhado em uma convivência regida por regras próprias, baseadas na busca de bom sensopor ambas as partes e na informalidade. A nosso ver, o processo foi acirrado pela dificuldade dos órgãosgovernamentais em estabelecer uma agenda positiva de diálogo na busca da construção de uma soluçãoacordada, na falta de uma solução jurídica predefinida para esse tipo de situação fundiária.

IHU On-Line - Qual é hoje a situação mais complicada em torno da demarcação e homologaçãode terras indígenas no país? Entre as etnias, quais vivem em condição mais difícil no que se refereao direito à terra?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi - Basta olharmos para a distribuição das Terras Indígenas nomapa do Brasil para vermos que as maiores terras indígenas encontram-se na Amazônia, e as menoresespalham-se rarefeitamente pelo resto do país. Isso é reflexo de um processo histórico de avanço daexploração econômica, de toda costa em direção ao interior, e do sul em direção ao norte do Brasil, queremonta a 1500. De tal modo que, assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história deconquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdas territoriais. Tudo depende doponto de vista que adotemos: indígena ou não indígena. Do ponto de vista dos povos indígenas, ahistória do Brasil se confunde com a história de suas lutas, principalmente da luta pelo direito à terra.Neste sentido, o artigo 231 da Constituição de 1988 representa uma vitória no âmbito dessa luta.Mesmo assim, ainda hoje, os povos indígenas que habitam regiões exploradas por setores econômicosvinculados à agropecuária, às hidroelétricas, à indústria madeireira e à mineração vivenciam situaçõesbastante delicadas. Os Guarani Kaiowá e os Terena, no Mato Grosso do Sul, e os Tupinambá, no sulda Bahia, têm experimentado um cotidiano extremamente violento, marcado pelo constante confronto

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com latifundiários. Conforme relatório publicado pelo Conselho Indigenista Missionário - CIMI, 60índios foram assassinados no país em 2012, 37 dos quais no Mato Grosso do Sul. Este ano não foimuito diferente: no último mês recebemos notícias sobre o incêndio de um ônibus escolar quetransportava alunos terena, sobre o assassinato de Ambrósio Vilhalva, importante liderança guarani-kaiowá e, por fim, sobre o “Leilão da Resistência”, em que os ruralistas angariaram mais de R$ 640mil para “resolver a questão indígena” no Mato Grosso do Sul. A situação é impressionante epreocupante, e evidencia o flagrante desrespeito dos direitos dos povos indígenas que vivem no país.

Para ler mais:

10/12/2013 - Demarcação de terras indígenas é ponto sensível06/12/2013 - A propósito da proposta de mudança na sistemática de demarcação das terras indígenas04/12/2013 - Adeus Terras Indígenas04/12/2013 - Nova regra de demarcação de Terras Indígenas vai diminuir a judicialização?25/11/2013 - Carta de Bispos gaúchos sobre demarcação de terras indígenas18/12/2013 - Ruralistas saem pela “Porta dos Fundos”13/12/2013 - Ruralistas detêm 72% de comissão especial da PEC 21509/12/2013 - Chamado ‘Leilão da Resistência’ ruralista arrecada R$ 640,5 mil em Mato Grosso do

Sul09/12/2013 - Índios criticam leilão e acusam ruralistas de enfraquecer Funai20/11/2013 - Para Funai, usina São Manoel gera '8 impactos irreversíveis'01/10/2013 - Direitos de índios podem ser aniquilados, diz chefe da Funai

Veja também:

Em busca da terra sem males: os territórios indígenas. Revista IHU On-Line, nº 257