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1 TERRITORIALIDADE DE UMA COMUNIDADE RURAL NO NORTE DE MINAS GERAIS Thaís Dias Luz Borges Santos Integrante do Grupo de Pesquisa OPARÁ Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES Andrea Maria Narciso Rocha de Paula Coordenadora do OPARÁ Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES Resumo O objetivo deste trabalho está na análise etnográfica dos modos de vida através da descrição do cotidiano realizado nas diferentes dimensões do viver em comunidades ribeirinhas. A pesquisa acontece no sertão do São Francisco no norte de Minas Gerais na comunidade Rural de Barra do Pacuí, município de Ibiaí-MG. Descrevendo o cotidiano, as relações de trabalho e as migrações para compreender as territorialidades a partir do modo de vida e da percepção do movimento da vivência e dos seus ciclos. Entrevistas com habitantes mais velhos da comunidade, com os líderes do processo de implementação da RESEX são prioritárias para a compreensão do lugar, seu cotidiano e os embates da luta pelo desenvolvimento socioeconômico do lugar e garantia dos seus direitos. Palavras-chave: Comunidades Ribeirinhas. São Francisco. Territorialidades. Introdução Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso... (ROSA, 1994, p.28) O Norte de Minas Gerais está repleto de representações das populações tradicionais, com a pluralidade de suas festas, lendas, simbologia e religião que caracterizam e afirmam a coesão social. As populações tradicionais, segundo Diegues (2001), seguem padrões de comportamento transmitidos socialmente, modelos mentais usados para perceber, relatar e interpretar o mundo, símbolos e significados socialmente compartilhados. Afirma também que uma característica, que define culturas ou populações tradicionais, é o recnhecimento do sujeito como pertencente àquele grupo social particular. O sertão e o rio São Francisco compõe o cenário da relação campo-cidade. As histórias e estórias fazem a representação do sertão. Este trabalho busca uma análise etnográfica

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TERRITORIALIDADE DE UMA COMUNIDADE RURAL NO NORTE DE MINAS GERAIS

Thaís Dias Luz Borges Santos Integrante do Grupo de Pesquisa OPARÁ

Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Andrea Maria Narciso Rocha de Paula

Coordenadora do OPARÁ Grupo de estudos e pesquisas sobre Comunidades Tradicionais do Rio São Francisco

Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES

Resumo O objetivo deste trabalho está na análise etnográfica dos modos de vida através da descrição do cotidiano realizado nas diferentes dimensões do viver em comunidades ribeirinhas. A pesquisa acontece no sertão do São Francisco no norte de Minas Gerais na comunidade Rural de Barra do Pacuí, município de Ibiaí-MG. Descrevendo o cotidiano, as relações de trabalho e as migrações para compreender as territorialidades a partir do modo de vida e da percepção do movimento da vivência e dos seus ciclos. Entrevistas com habitantes mais velhos da comunidade, com os líderes do processo de implementação da RESEX são prioritárias para a compreensão do lugar, seu cotidiano e os embates da luta pelo desenvolvimento socioeconômico do lugar e garantia dos seus direitos. Palavras-chave: Comunidades Ribeirinhas. São Francisco. Territorialidades. Introdução

Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso... (ROSA, 1994, p.28)

O Norte de Minas Gerais está repleto de representações das populações tradicionais,

com a pluralidade de suas festas, lendas, simbologia e religião que caracterizam e

afirmam a coesão social.

As populações tradicionais, segundo Diegues (2001), seguem padrões de

comportamento transmitidos socialmente, modelos mentais usados para perceber, relatar

e interpretar o mundo, símbolos e significados socialmente compartilhados. Afirma

também que uma característica, que define culturas ou populações tradicionais, é o

recnhecimento do sujeito como pertencente àquele grupo social particular.

O sertão e o rio São Francisco compõe o cenário da relação campo-cidade. As histórias

e estórias fazem a representação do sertão. Este trabalho busca uma análise etnográfica

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dos modos de vida cotidianos realizados nas diferentes dimensões do viver na

comunidade ribeirinha. A pesquisa acontece no sertão do São Francisco no norte de

Minas Gerais na comunidade Rural de Barra do Pacuí que pertence à cidade de Ibiaí-

MG.

A obra literária de João Guimarães Rosa é um mote para a pesquisa, para compreender

o sertão norte mineiro. A organização social na comunidade tradicional é estabelecida

através da reprodução de um modo de vida camponesa que é retratada na obra Roseana.

As análises das narrativas dos moradores do lugar e dos personagens da obra literária

Roseana auxiliam a descrição da complexidade do fenômeno migratório, do ir e vir dos

sujeitos entre o rural e o urbano.

Como João Guimarães Rosa (1994, p.391) afirma no Grande Sertão Veredas: “A gente

tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...”.

Este trabalho é norteado pela abordagem qualitativa. A observação participante, as

entrevistas livres, o estar no lugar e vivenciar o cotidiano das pessoas de lá foram as

técnicas escolhidas, fazendo da etnografia o caminho da pesquisa. A percepção do

sujeito de pesquisa tem a perspectiva da pesquisa participante (BRANDÃO, 1999) e

tendo como ponto de referência situações do cotidiano, observações dos espaços e

lugares da pesquisa, do ir e vir dos atores e suas falas, assim como a descrição e

reflexão que foram realizadas no tempo de campo e relatadas no diário de campo fruto

das observações.

A reflexão sobre a territorialidade na pequena comunidade rural Barra do Pacuí, requer

compreender e reconhecer a realidade sociocultural presente na comunidade, onde os

embates sociais, culturais e econômicos modificam relações com o lugar, modificam

modos de vida dos sujeitos que partem e dos sujeitos que ficam, mas o sentimento de

pertencimento com o rio e a região não deixa de existir, nem mesmo com os migrantes.

Sertão do São Francisco Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção. (ROSA, 1994, p. 134).

A categoria sertão tem várias significações, a nossa referência para este trabalho é com

uma dimensão simbólica, repleta de representações que são feitas e descritas pelos

moradores da comunidade e descrito por João Guimarães Rosa (1994, p.391) em sua

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obra literária “O sertão está em toda a parte.” (1994, pg. 02). O Sertão tem muitos

significados, e é imenso, ‘do tamanho do mundo’ (J. G. Rosa, 1994, p.96). Os

sertanejos, ribeirinhos, geraizeiros, vazanteiros, e tantos outros povos tradicionais que

vivem nas margens e no entorno do Rio São Francisco no sertão mineiro demonstram

que o sertão é o território de pluralidades de modos de vida tradicionais, de povos que

sabem viver/conviver e preservar a biodiversidade.

Rodrigues (2001) evidencia já no título principal do seu trabalho “Sertão no plural’ que

muitos são os sertões do Brasil, deixando entrever assim, que as diversas formas de

apropriação natural e simbólica do sertão geram também diferentes representações deste

espaço. A autora enfatiza a polissemia da noção de sertão afirmando que “A palavra

sertão tem uma imensa capacidade de evocar situações, lugares, objetos e símbolos”. A

sua presença marcante na música, na literatura de cordel, no teatro, no cinema, na

dança, nos folguedos, nos relatos que tomam para si fragmentos da vida cotidiana e na

literatura, são exemplos de sua polissemia (ALMEIDA; MENDES, 2008, p.31)”.

O sertão do Norte de Minas Gerais, também é conhecido como Região Mineira do

Nordeste. Paula (2003) afirma a partir de dados da Fundação João Pinheiro que o Norte

de Minas é composto de três regiões: “1-Bacia do São Francisco, que envolve sete

unidades da federação (alguns municípios do Norte de Minas); 2-Vale do São

Francisco, que abrange parte da região Nordeste, parte do Polígono das Secas e parte da

região Sudeste; 3- Semi-árido Brasileiro, que compreende o Polígono das Secas.(7)”.

Segundo a autora a formação do Norte de Minas se deve “a expansão da pecuária

bovina e a disponibilidade de terras livres”.

Na época da Mineração o Norte de Minas era fornecedor de alimentos para a região das

Minas. Mas somente com a Ferrovia instalada em seus territórios no séc. XX é que a

região teve contato com o Brasil em geral e povoou terras novas.

No final dos anos 50, começou a intervenção efetiva do Estado, através do investimento no problema da seca. (...)Com a criação da SUDENE – Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste- e a implementação de planos diretores começou uma expansão capitalista impulsionada pelo Estado. (...) Os governos Municipais, estadual e federal foram parceiros nos incentivos de produção e reprodução do capital no Norte de Minas, expandindo as empresas rurais e urbanas e explorando a força de trabalho humano. Na década de 70 o governo mineiro concedeu muitas áreas de propriedade estatal para empresas reflorestadoras, o que contribuiu para o êxodo rural. (PAULA et al, 2006, p.5)

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De acordo com PAULA (2003) é a partir desse ponto que podemos relacionar a

estrutura fundiária concentrada ao fluxo migratório rural regional. A pecuária trouxe

riqueza e prosperidade para alguns e desigualdades sociais e econômicas para muitos.

Com a industrialização tem-se um crescimento significativo da população urbana. A industrialização proporcionou o processo de urbanização. Os migrantes buscam, além do Sul do País, também os municípios com mais indústrias na região, sempre em busca de emprego. Essa mobilidade espacial desorganiza os municípios que não dispõem de infra-estrutura para receber novos habitantes. (...) O desenraizamento do povo gera insegurança pelo rompimento dos vínculos sociais e perda de dignidade e identidade.(PAULA, 2003, p.72)

A cidade de Ibiaí-MG e a comunidade de Barra do Pacuí são relfexos desses processos.

A migração sazonal tornou-se o meio dessas pessoas ganharem seu sustento sem

abandonar o seu lugar de origem. Os símbolos, os discursos e as práticas sociais se

consolidam na memória e nas representações sociais a partir do território e do lugar. É

necessário entender a mobilidade espacial decorrente dos sonhos dos sertanejos, os

sentimentos de quem parte e quem chega e as diferenças entre o lugar de origem e de

destino. Cleps e Paula (2008), em seu estudo sobre as migrações campo-cidade afirmam

que: As modificações no campo e na cidade que introduzem novas formas de contextualização do campo e da cidade, provocando a mobilidade espacial de milhares de famílias que sem muitas esperanças no campo seguem para a cidade em busca de algo que não sabem aonde encontrar, mas sabendo que não podem aguardar no meio rural. Incessantemente, permanecem chegando e partindo na procura de trabalho, de bico, de alguma forma de sobreviver. Não escolhem ocupações, aceitam qualquer tipo de serviço. O espaço se transforma através da práxis dos homens, que são totalmente alienadas ao capital, através da ideologia de uma sociedade urbana, mundializada, tecnificada e ilusoriamente “promissora”. (CLEPS; PAULA, 2008, p.02)

É nesse contexto em que a comunidade tradicional rural Barra do Pacui está inserida.

Localizada no Sertão Roseano e nas beiras do Rio São Francisco: onde, “por aqui, o

senhor já viu: Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico” (ROSA, 1994, p. 96) é um

lugar repleto de características similares aos traços da tradicionalidade de uma cultura

sertaneja e barranqueira resistentes.

Diegues (2001) cita Redfield para afirmar que a cultura das sociedades camponesas não

é autônoma, pois para se manter como tal, a cultura camponesa requer contínua

comunicação com outra cultura. Os camponeses, segundo Firth (1950), ainda que dependam fundamentalmente do cultivo da terra, podem ser pescadores, artesãos,

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extrativistas, segundo as estações do ano e a necessidade de obtenção de dinheiro para suas compras na cidade. (...) Culturas tradicionais nessa perspectiva, são as que se desenvolvem dentro do modo de produção da pequena produção mercantil (Diegues, 1983). Essas culturas se distinguem das associadas ao modo de produção capitalista em que não só a força de trabalho, como a própria natureza, se transforma em objeto de compra e venda (mercadoria). Nesse sentido, a concepção e representação do mundo natural e seus recursos são essencialmente diferentes. Um elemento importante na relação entre populações tradicionais e a natureza é a noção de território que pode ser definido como uma porção da natureza e espaço sobre o qual uma sociedade determinada reivindica e garante a todos, ou a uma parte de seus membros, direitos estáveis de acesso, controle ou uso sobre a totalidade ou parte dos recursos naturais aí existentes que ela deseja ou é capaz de utilizar (Godelier, 1984). Essa porção da natureza fornece, em primeiro lugar, a natureza do homem como espécie, mas também: 1-Os meios de subsistência; 2- Os meios de trabalho e produção; 3- Os meios de produzir os aspectos materiais das relações sociais, os que compõem a estrutura determinada de uma sociedade (relações de parentesco etc). (DIEGUES, 2001)

Barra do Pacuí é uma comunidade tradicional, com características reconhecidas no dizer

e no fazer dos moradores, de acordo com Brandão (2010) o que faz uma comunidade ser

tradicional é ter criado padrões de cultura singulares e continuarem a viverem na

reafirmação dos seus valores.

Barra do Pacuí 19 de setembro de 1867. [...] Ao meio-dia, paramos, para descanso, no lado de Pernambuco, abaixo de um lugarejo chamado serra da povoação. A montanha do mesmo nome forma uma linha meridional de blocos isolados, paralela ao rio, raramente afastando-se dele mais de três milhas. Na serra ou serrote do Pé do Morro, chega até a margem; o pequeno crescente é chamado Serra do Salitre, porque há nele uma gruta com salitre e dizem que se trata de um ramo nordestino da grande cadeia da mata da corda. Em frente dela, a Barra do Pacuí forma a habitual coroa; [...] Esse rio corre quase paralelo com o Jequitaí e recebe as águas do Montes de Formigas. Não há minas ali, mas as terras são boas para a pastagem e para a agricultura. O pacu, segundo Castelnau é o gênero Characinus de Artedi e o subgênero Curimata de Cuvier. Seu corpo, semelhante ao da carpa, tem 40 a 60 centímetros de comprimento, e sua carne é apreciada sendo o pacu-vermelho considerado o melhor. (BURTON, 1977, p.p196-203).

Um dos primeiros relatos da região do Vale do São Francisco data-se de 1852-1854

com o “Atlas e Relatório Concernente a Exploração do Rio São Francisco - Desde a

Cachoeira de Pirapora Até o Oceano Atlântico” de autoria do engenheiro civil alemão

Henrique Guilherme Fernando Halfed que a pedido do imperador Dom Pedro II realizou

uma expedição pelo Rio. Logo depois no ano de 1867 o inglês Richard Burton navegou

de canoa pelo Rio das Velhas e pelo Rio São Francisco escrevendo então o livro

“Viagem de Canoa de Sabará ao Oceano Atlântico” de onde tiramos a citação acima que

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relata a passagem de Burton pela Barra do Pacuí que foi descrito como um lugar de

terra fértil. A comunidade e localizada nas margens do Rio São Francisco e Rio Pacuí.

A relação dos moradores com os rios é fundamental para a compreensão do modo de

vida no lugar. O território da Barra do Pacuí é gestado na compreensão da simbiose com

o rio. A compreensão do rio como lugar de obtenção do alimento do dia a dia provoca

nos moradores a delimitação de normas e regras de utilização do mesmo. Essa forma

própria de utilização do rio provoca também a territorialidade. Para entender esse

processo usamos o conceito de território e territorialidade de LITTLE (2002), onde: A territorialidade é o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela especifica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim seu “território” ou homeland (cf. SACK 1989: 19). Casimir (1992) mostra como a territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explica depende de contingências históricas. O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto especifico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado. (LITTLE, 2002: 3 apud MAZZETTO 2007: 222)

A Barra do Pacuí está localizada a 22Km da cidade de Ibiaí, e surgiu no inicio da

década de 30, século XX. Cinco amigos trabalhadores de uma fazenda na cidade de

Pirapora-MG ficaram sabendo que esse lugar de 38 hectares nas beiras do Rio São

Francisco estava sendo vendido, e resolveram juntos comprar e mudar pra lá. Foram cinco amigos: Benedito Nunes Siqueira, Francisco José Soares conhecido como Chico Bigodão, Anacleto Pereira de Matos, Manoel de Alcântara conhecido como Manuel Vermelho e Benedito de Paula Estevão. Anacleto e Benedito são da mesma família, primos distantes. Seu Benedito Siqueira deixou quatro filhos, deles três ainda residem na Barra, e já com filhos e netos. Francisco Bigodão deixou apenas o neto João Bento, os demais se foram. Eles compraram 48 alqueires de terra através do fazendeiro Seu Coralino que foi quem fez o negócio com a dona da área que era Dona Serja. Eles trabalhavam para Seu Coralino lá em Pirapora e ai quando os filhos dele assumiram a fazenda o clima não ficou bom e o próprio Coralino ajudou para que eles comprassem as suas próprias terras. Eles não queriam muita terra, mas tinham uma vontade que fosse terra de beira rio e do rio São Francisco. (Seu Antônio Conceição de Souza, (Antônio Verde) 73 anos, morador da Barra do Pacuí, entrevista para Andréa M. N. Rocha de Paula em junho de 2008).

Como era característico da época, era através do comércio e transporte no rio que a

circulação de pessoas e coisas aconteciam: as mudanças e o comércio aconteciam no rio

como afirma NEVES (1998):

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As barcas estavam presentes no dia-a-dia dos ribeirinhos. Em primeiro lugar, porque aportavam em cidades, vilas, povoados e sítios para fazer comércio ambulante não apenas no Rio São Francisco, mas também em alguns afluentes. Os barqueiros, seus proprietários, vendiam a varejo as mercadorias que transportavam, mas compravam também produtos regionais das mãos de sitiantes e agregados, ou seja, o campesinato ribeirinho. (NEVES, 1998)

Quando chegaram na Barra do Pacuí se estabeleceram bem as margens do rio, mas com

as cheias, época do ano em que o rio sobe, eles acabaram por estabelecer a comunidade

a pouco mais que 2Km do rio. Com o tempo a comunidade cresceu hoje tem

aproximadamete 60 famílias morando ali. O caminho de terra solta da cidade até a

comunidade é estreito, cheio de pedras, e existem cerca dos dois lados: estão

encurralados por duas grandes fazendas. Vivem da pesca e da agricultura familiar. A

saída é plantar nas ilhas já que ao longo do tempo os fazendeiros foram puxando mais e

mais suas cercas e tomando o territóriO que antes tinha 38hectares e hoje tem

aproxidamente 20hectares. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA, 1994, p.42)

Ao chegarmos na comunidade somos sinônimo de curiosidade dos moradores

acostumados a viverem isolados e sem tantos ‘estranhos’. A comunidade tem seus

espaços muio bem delimitados entre os espaços públicos e espaços privados. As casas

dos moradores são separadas por arames e plantas e não existem muros na comunidade,

somento o do prédio da escola. Entre os espaços públicos temos, a pracinha da Igreja de

Nossa Senhora Aparecida e o campo de futebol como lugares de lazer e convivio. São

nestes dois espaços que os moradores se reúnem, pagam promessas e realizam

competições esportivas, mas também discutem a luta pelo seu território que vem sendo

tomado pelos fazendeiros, assim como a luta pelo processo de Unidade de Conservação,

RESEX - Reserva extrativista1 que vem sendo boicotada pelos grandes agricultores da

regiões. No Norte de Minas, o modo como as populações se apropriam das diferentes condições naturais da região (brejos, várzeas, encostas, chapadas, áreas de cerrado, caatinga e mata seca), na constituição de sistemas agrícolas e culturais específicos, é expressivo da construção identitária de geraizeiros, caatingueiros e vazanteiros (PORTO-GONÇALVES, 2000, p. 23). O regime alimentar, as práticas agrícolas, extrativas e de convívio com o sertão mineiro, encontra seu nexo na relação homem-natureza e se realiza nas práticas sociais, no modo e nas condições de vida das comunidades locais (PORTO-GONÇALVES, 2000).

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Foi a partir da década de 50, século XX, que começaram a surgir agressões aos modos

de vida tradicionais e ameaças de desorganização ecológica e cultural. A política estatal

para a região de valorizar e incrementar os complexos agroindustriais foram e são fator

de expulsão das populações tradicionais. “A situação desses sistemas tradicionais de

acesso a espaços e recursos de uso comum começaram a ser ameaçados com o processo

relativamente recente de incorporação desses territórios pela expansão urbano-industrial

e a da fronteira agrícola.”(DIEGUES 2001).

Os reflorestamentos, a pecuária extensiva e os grandes empreendimentos urbanos no

rural expulsaram as populações do campo e a migração se tornou uma forma de

enfrentamento da realidade imposta a região aos seus moradores locais.

A migração A compreensão da migração perpassa não somente quem migra, mas também a família

do migrante que fica no lugar de origem. Percebemos a migração na comunidade da

Barra do Pacuí como deslocamentos realizados por indivíduos que saem do seu lugar de

origem temporariamente, partindo geralmente em busca de trabalho que possibilite uma

situação econômica diferente daquela que tem no seu lugar, fato esse que vem

ocorrendo com frequência no Norte de Minas Gerais.

Adotamos a concepção de migrante de SILVA (2008) onde o mesmo é fruto das

relações sociais de produção: Considera-se o migrante sob duas óticas: inicialmente, trata-se de um (a) trabalhador (a) produzido no bojo de determinadas relações sociais, resultantes de processos de violência e expropriação. O migrante acha-se inserido numa realidade social, definida por laços sociais (familiares, grupos de vizinhança, valores, ideologias etc.), que o caracterizam como pertencente a um determinado espaço social e cultural. Portanto, a denominação abstrata de migrante esconde o conjunto de situações concretas e particulares, que definem sua identidade individual e social. Essas duas perspectivas conduzem às reflexões, segundo as quais, os fatores econômicos não são os únicos a serem levados em conta na análise da migração e dos migrantes. (SILVA, 2008, p.6)

Portanto o fenômeno migratório envolve processos e relações sociais que muitas vezes

ficam invisíveis nos números divulgados pelas instituições de pesquisa, sendo

necessário compreender a migração através das pessoas que fazem a migração. Na

reflexão de PAULA (2009) a autora acredita que a

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...categoria migrante está marcada simultaneamente pela separação entre os povos e o estado, onde o pertencimento torna-se também em transito, na subalternidade e pela ameaça da desordem. No sentido etimológico a palavra diáspora, tem ligação com os termos gregos “dia” (através, por meio de) e speirõ (dispersão, disseminar ou dispersar), entendemos a diáspora sertaneja não somente como um processo do ato ir e vir das pessoas, de saída do lugar de origem e deslocamento físico de um local geo- referenciado, mas um processo, onde a mobilidade espacial-temporal são representações das ações humanas nos lugares, nas relações carregadas de símbolos, de imaginários, na hibridização que formam as identidades que fazem as culturas dinâmicas. Um processo de aproximação, confronto e encontro de tradições recriadas à medida que a modernidade se instala. A diáspora abrange nas representações mutáveis uma “coerência imaginária” a um conjunto de identidades dinâmicas (PAULA, 2009, p. 06).

Em “A natureza do espaço” de autoria de Milton Santos (1999), encontramos aporte

teórico para compreender o ir e vir do sertão e suas resistências, nesse sentido é

importante destacar que:

A vida social, nas suas diferenças e hierarquias, dá-se segundo tempos diversos que se casam, entrelaçados no chamado viver comum. Esse viver comum se realiza no espaço, seja qual for a escala - do lugarejo, da grande cidade, da região do país inteiro, do mundo. A ordem espacial é a ordem geral, que coordena e regula as ordens exclusivas de cada tempo particular. Segundo'Leibniz (1695), o espaço é a ordem das coexistências possíveis. (...) Poderíamos mesmo dizer, com certa ênfase, que o tempo como sucessão é abstrato e o tempo como simultaneidade é o tempo concreto já que é o tempo da vida de todos. O espaço é que reúne a todos, com suas múltiplas possibilidades, que são possibilidades diferentes de uso do espaço (do território) relacionadas com possibilidades diferentes de uso do tempo (SANTOS, 1999, p. 104).

É necessário diferenciar e pensar os tempos e espaços vividos, no contexto da vida

social dos sujeitos migrantes, sempre pensando no seu lugar de origem e nos seus

lugares de destino: as chegadas e as partidas e os vários níveis que esse deslocamento

implica. Assim: O nível global e o nível local do acontecer são conjuntamente essenciais ao entendimento do Mundo e do Lugar. Mas o acontecer local é referido (em última instância) ao acontecer mundial. Desde o nascimento, o acontecimento se inclui num sistema para o qual atrai o objeto que ele acabou de habitar. O acontecimento é a cristalização de um momento da totalidade em processo de totalização. Isso quer dizer que outros acontecimentos, levados pelo mesmo movimento, se inserem em outros objetos no mesmo momento. Em conjunto, esses acontecimentos reproduzem a totalidade; por isso são complementares e se explicam entre si. Cada evento é um fruto do Mundo e do Lugar ao mesmo tempo (SANTOS, 1999, p.108).

Santos (1999) vê o mundo como um aglomerado de possibilidades, onde nos

encontramos em tempos de mudanças proporcionado pela mobilidade dos indivíduos,

onde:

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A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as ideias. Tudo voa. (...) O presente não é um resultado, uma decorrência do passado, do mesmo modo que o futuro não pode ser uma decorrência do presente, mesmo se este é uma "eterna novidade", no dizer de S. Borelli (1992, p. 80)134. O passado comparece como uma das condições para a realização do evento, mas o dado dinâmico na produção da nova história é o próprio presente, isto é, a conjunção seletiva de forças existentes em um dado momento. Na realidade, se o Homem é Projeto, como diz Sartre, é o futuro que comanda as ações do presente (SANTOS, 1999, p. 222).

Na Barra do Pacuí-MG existem muitos fatores que estão por trás dos processos

migratórios, sejam eles motivando a saída ou o retorno para o seu lugar de origem.

Passado, presente e futuro hora se confundem, ora se impõe, influenciando nas decisões

dos indivíduos. O que há de mais forte por trás dessa migração apontada pela moradora

da Barra é a necessidade de sustento: Aqui muitas pessoas tá indo embora mas esse pessoal que tá na reserva é pessoa que não sai daqui não , mas se conseguir trazer a reserva a gente conseguiria manter os jovens aqui né porque traz mais serviço, porque aqui serviço nós não consegue, porque você vê que os jovens tudo saí daqui aí forma e fica aqui parado então, tem que ir pra outro lugar, mas eu acho que se nós conseguisse dava uma força muito grande. Hoje no campo se a pessoa investir tiver um lugar ele tira uma renda boa que dá pra sobreviver né. Tá na hora da gente lutar e consegui. Hoje em dia você não consegue nada se você não lutar, se você não brigar. E eu não pretendo sair, e se eu conseguir? Quero ficar aqui, não quero e não vou sair, claro que toda mãe quer os filhos por perto. Se eu conseguir uma renda boa pra mim eu quero ter meus filhos aqui, assim como todos os outros quer né, até aqueles que estejam fora venham também pra comunidade. (Nélia, 35 anos, moradora de Barra do Pacuí, entrevistada por Thaís Dias Luz Borges Santos em outubro de 2011)

Os deslocamentos na comunidade já aconteceram em maior intensidade nas décadas de

70, 80 e 90 do século XX. As saídas da população aconteciam sempre em grupo e com

lugares pré determinados, como o interior de São e o Triângulo Mineiro. Os postos de

trabalho disponíveis aos moradores, eram o corte de cana de açúcar, o plantio e colheita

de café. Hoje os relatos mostram novos lugares como Nova Serrana para indústria de

calçados, embora as migrações para São Paulo e o Triângulo Mineiro permaneçam. A

migração mais comum é sazonal. Os moradores saem para outras regiões entre os meses

de abril e outubro e retornam no período das águas entre outubro e março. As idas e

vindas acontecem sempre com a população em idade ativa e os mais velhos ficam

‘tomando conta’ de crianças e das casas e plantações. As políticas públicas assistenciais

como bolsa escola, bolsa família, tem auxiliado a manter as famílias na comunidade,

embora os membros mais jovens sigam fazendo as rotas migratórias.

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Nos relatos dos moradores são descritos idas para cidades grandes, cidades médias da

própria região e também trabalhos temporários em fazendas e em municípios vizinhos.

Em todos os relatos a migração é uma estratégia de manutenção da terra. Alguns

migram para juntar um valor de dinheiro e voltar para casa, outros migram e ficam o

tempo necessário para continuar mantendo a casa até que outra alternativa de sustento

apareça, e uma minoria migra e não pretende voltar a morar no seu lugar de origem. A

territorialidade dos moradores de Barra do Pacuí auxilia na manutenção do território e

na reprodução do modo de vida tradicional.

É entre o lugar de partida e o lugar de chegada que as relações se constroem,

constituindo assim uma rede entre quem parte e quem fica. Os migrantes constroem

laços no lugar em que chegam a partir da sua força de trabalho e da comunicação com

aqueles que já conhecem no lugar. Como afirma OLIVEIRA (2008) ‘há conexões

simbólicas e identitárias; circulação de mercadorias, informações e pessoas; relações

políticas, de influência e controle, regulação de parentes, amigos e mesmo de pessoas

estranhas’.

Processo Reserva Extrativista – RESEX: Unidades de Conservação de Uso Sustentável Em 2007 é insituído no Brasil o decreto nº 6040 que instituí a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, que considera: i - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos cultu-ralmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como con-dição para sua reprodução cultural, social, religiosa, an-cestral e econômica, utilizando conhecimentos, inova-ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição; ii - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz res-peito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamen-te, o que dispõem os os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e de-mais regulamentações; e iii - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da quali-dade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras.

A Barra do Pacuí como comunidade de povos tradicionais tem sofrido constantes

ameaças ao seu modo de vida e tem sido a institucionalização da Unidade de

Conservação de Uso Sustentável2 - RESEX uma possibilidade de manutenção do

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território. Como fica claro no relato da Nélia, de 35 anos, moradora da Barra e líder na

luta pela RESEX: Nós já tivemos até avançado né, só que aí quem entrou com esse processo da reserva pra nós foi um pessoal lá de Goiânia, lá é uma cooperativa e nós participamos dela, e quem participa lá da cooperativa é assim igual a nossa tradicional também. Quando eu entrei já tinha outro pessoal, tinha um rapaz: ele saiu e eu fiquei. A gente estava bem forte já e estava marcada até a data pra fazer o decreto e tudo, só que aí um monte de gente desistiu porque aqui a pressão dos fazendeiros em cima de nós foi muita, eles não estavam deixando mais a gente fazer coleta nas propriedades e nós aqui somos cercados, você sabe que nós aqui temos uma cerca e só esse pedacinho é da comunidade o outro é tudo dos fazendeiros aí muitas famílias desistiu. Agora nós já cadastramos mais famílias querendo, e eu vou ter mesmo uma reunião lá em Brasília pra levar esses novos cadastros pra eles. Aí agente vê se dá uma avançada maior, mas aqui agora tá parado. Na comunidade tem 86 famílias, mas pro cadastro até agora eu fiz 68 porque eu peguei algumas, não peguei todas daqui porque não é todas as pessoas que enquadram, aí já peguei algumas pessoas que trabalham nas fazendas, e com esses já tem 74. Aqui você vê nós não temos outra renda, a renda é a ilha e agora nós com o extrativismo nosso tá ajudando muito a gente aqui. Pra você ver essa área nossa é área que podia ser toda preservada tá toda desmatada, que do outro lado do rio eu fui fazer uma visita numa comunidade lá e o desmate tá até assim na beirinha do rio. (...) Mas eu não desisto e não acredito que nós não vamos conseguir porque a rede dá muita força pra gente, é uma união muito grande. E eles já vieram aqui e teve um avanço, mas depois as famílias foram desistindo... Eu estou entendo mais porque eu estou sempre indo. Eu que estou na frente, eu mecho tem nove anos e quando eu entrei estava bem calmo porque não tinha uma pessoa, e já eu sou assim: quando eu vejo alguma coisa eu corro atrás eu vou em Pirapora sabe , tudo que precisa eu vou e quando era o outro rapaz não, ele só ajudava a gente mas não tava na área dele, então ele não fazia muita coisa não sabe, porque ele é de lá de perto de Ibiaí, e eu não. Então assim, por isso que eu estou mais a par. (...) Nós aqu, mesmoi sem ter que resex ainda, a gente tem a serra então, eu mesma já tô conseguindo tirar uma renda de dois em dois meses, porque a gente coloca os produtos pra comercializar na cooperativa depois que agente recebe, eu já consigo tirar de dois em dois meses 580 reais, é uma luta aí né. A gente sabe que é claro que não vai ser de uma hora pra outra, você nunca consegue as coisas pensando que fez hoje e amanhã consegue não, tem que ter persistência... e o pior que eles até vieram a fazer vistoria, sabiam as coisas de carvoeira, então os fazendeiros ficam em cima, aqui você sabe que ninguém guenta lutar com eles porque eles tem muito mais do que a gente. Teve muita gente que desistiu por isso, mas, eu não desisti e eu não tenho medo não, eu não vou invadir nada de ninguém, não vou tomar... é um coisa de direito que o INCRA vai comprar e vai pagar, Na ilha. Agora nós já tá, aumentando a produção, porque antes era só milho, feijão, essas coisinhas mesmo por causa de peso, e agora com a cooperativa nós também planta já a abobora. A cooperativa da pra gente abobora. Ano passado nós entregamos três carretas grande de abobora lá da ilha. Esse ano nós não entregamos porque não teve mercado sabe, a gente não fez o planejamento pra vê quanto que ia dar. Ai quando nós descobrimos que ia da pra passar pra lá, ai não achou mercado. Achou depois, mas o preço era muito baixo e lá a dificuldade é muita pra trazer elas pra cá. Mas agora eu acredito que vai aumentar muito a produção da gente, porque nós já vamos trabalhar com alho, com tomate desidratado, todas as famílias que ta na associação né, todas vai trabalhar com alho, com gergelim, alguns já trabalham com açafrão, tudo bom. Eu pretendo que isso ajude bastante a gente, porque você não tem outra renda aqui né. Tem hora que eu fico imaginando, se nós perder aquela ilha ali, não sei o que nós vamos plantar. Lá que todo mundo planta, é lá que todo mundo

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tira sustento... To lutando ai sabe, assim, eu entrei, eu já era associada da cooperativa, mas eu entrei pro conselho em janeiro agora de 2011, e assim quando você entra, você tem mais força pra lutar, aí eu to correndo atrás. Todo dia eu to mandando e-mail sabe, eu vou até mandar um e-mail essa semana agora pra mim perguntar, que eu to querendo que eles vem vistoriar uma área aqui. E eu não tenho medo não. Se precisar de ir eu vou... Nossa senhora minha filha, agora ta na coleta do baru, nós lá na cooperativa tamo, porque lá na cooperativa é da gente entendeu? Então não é só a comunidade nossa aqui, tem muitos outros municípios. Doze carreta de baru lá. E nos achando que não vamos consegui esconder esses carros dos fazendeiros. Eles vão descobrindo, sabe que vai tendo renda alta, e fica de cima. Já começa a aparecer os produtos da gente, porque aqui já ta tudo na merenda escolar. É os produtos de baru que a gente coleta, tem barrinha de cereal, você conhece? Já tem barrinha de cereal, agora nós ta lançando com granola, tudo isso. Ai assim, quando eles vê o produto parece que eles acham que nós estamos conseguindo, ai eles ficam em cima sabe? Fica pressionando a gente... aqui mesmo tem do outro lado do rio um fazendeiro que não deixou a gente coletar baru lá, não permitiu a gente entrar nas áreas, ai eu mostrei pra ele a autorização e que a gente corta e fica pro gado também, mas ele não deixou , ai eu não quis falar nada não, então tudo bem, tem problema não. Ate que ponto vai chegar isso eu não sei, porque se vai você nunca tem uma solução, você corre corre atrás eles vai dando pressão. Eu acho que se não tiver uma pessoa que não tiver medo e encarar, nós vamos perder tudo que já lutamos ate agora né. Por isso que eu não desisto não, eu to ai na luta, e procurando achar mais pessoas pra fortalecer o trabalho, procurando novas famílias. (Nélia, 35 anos, moradora de Barra do Pacuí, entrevistada por Thaís Dias Luz Borges Santos em outubro de 2011)

O depoimento da moradora descreve a luta pela manutenção do território através da

mobilização que é uma característica camponesa. Vivem em grupo e se unem em prol

da unidade do grupo. A compreensão da terra e água como bens de uso comum perpassa

a luta pela preservação de ritos, valores costumes, festejos que fazem o modo de vida.

A institucionalização da RESEX é a possibilidade do retorno de muitas famílias à

comunidade, bem como, da manutenção das famílias que permanecem no lugar.

Considerações finais

O senhor vá lá, verá. Os lugares sempre estão aí em si, para confirmar. (ROSA, 1994, p.31)

Como foi exposto, a resistência e luta dos moradores de Barra do Pacuí está em

preservar o lugar para plantar, pescar, colher e acima de tudo conviver com suas

famílias. Essa preservação do território se dá na manifestação da territorialidade e na

manutenção de costumes, crenças, e ritos do povo do lugar. É notável a pressão que essa

comunidade sofre pelos fazendeiros que a todo momento violam seus direitos enquanto

moradores que lutam pela ancestralidade e tradicionalidade. Mesmo assim, as famílias

da Barra continuam mobilizadas para a institucionalização da Resex, na expectativa de

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manter seu modo de vida camponês e sonhando com dias melhores. A migração

continua sendo estratégia para que o alimento não falte à mesa. Homens e mulheres

seguem migrando para que possam sempre retornar, ou seja, para que continuem

moradores da Barra do Pacuí. A migração é uma estratégia de manutenção do território

tradicional. E mesmo entre o ir e vir da cidade para o campo e do campo para cidade

procuram se afirmarem como ‘tradicionais do lugar’.

A vida, a luta, o estar e permanecer no lugar fazem parte da ‘estória’ desse lugar que

como as águas dos rios margeam a comunidade seguem sendo símbolo de força, de

correntenza. O que permanece é o desejo de garantir que seu território abrigue e

alimente as gerações futuras, sem que seus direitos sejam violados e sua tradição e

cultura desrespeitada.

Notas _______________ 1Reservas Extrativistas são espaços territoriais destinados à exploração auto-sustentável e conservação dos recursos naturais renováveis, por populações tradicinais. Em tais áreas é possível materializar o desenvolvimento sustentável, equilibrando interesses ecológicos de conservação ambiental, com interesses sociais de melhoria de vida das populações que ali habitam. (Disponível em: http://www.ibama.gov.br/resex/resex.htm Acesso em: 01 maio 2012) 2Como conseqüências da situação de degradação dos ecossistemas, surgiu a necessidade de se criar áreas para proteger e manter os remanescentes dos ecossistemas nativos, a fim de reduzir a perda da biodiversidade e garantir sua sustentação em longo prazo (...) Em linhas gerais, uma Unidade de Conservação (UC) é um território cuja proteção é garantida por lei, conta com regime especial de administração e visa conservar os recursos naturais e a biodiversidade existentes em seu interior. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) instituído no Brasil em 200 pela Lei nº 9985, estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das Unidades de Conservação no País. O SNUC divide as Unidades de Conservação em dois grupos: as unidades de Conservação de Proteção integral (cujo objetivo é o de preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais) e as Unidades de Conservação de Uso Sustentável (que visam compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais). (Disponível em: http://siscom.ibama.gov.br/licenciamento_ambiental/UHE%20PCH/Couto%20Magalh%C3%A3es/EIA/Textos/VOL.III%20-%20Cap.IV%20-%204.Diag%20Meio%20Bi%C3%B3tico/TOMO%20III/4.5%20Unidades%20de%20conserva%C3%A7%C3%A3o.pdf Acessado em: maio/2012 Referências ALMEIDA, M. G; MENDES, G. F. Memória, símbolos e representações na configuração socioespacial do sertão da Ressaca – Bahia. Mercator – Revisa de Geografia da UFC, ano 07, número 13, 2008. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Repensando a pesquisa participante/ - São Paulo: Brasiliense, 1999

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