Terra Livre 53

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TERRA LIVRE PARA A CRIAÇÃO DE UM COLECTIVO AÇORIANO DE ECOLOGIA SOCIAL BOLETIM Nº 53 JANEIRO DE 2013 A Ideologia Social Do Carro a Motor Chapéus e ambientalistas Há muitos Entre em ação A MULHER E A NATUREZA

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Boletim do CAES

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TERRA LIVRE PARA A CRIAÇÃO DE UM COLECTIVO AÇORIANO DE ECOLOGIA SOCIAL

BOLETIM Nº 53 JANEIRO DE 2013

A Ideologia Social

Do Carro a Motor

Chapéus e ambientalistas

Há muitos

Entre em ação

A MULHER E A NATUREZA

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O que tem de pior nos carros é

serem como castelos ou mansões à

beira domar: bens luxuosos

inventados para o prazer exclusivo

de uma minoria muito rica, os

quais em conceção e natureza

nunca foram direcionados para o

povo. Ao contrário do aspirador de

pó, do rádio, ou da bicicleta, que

retêm seu valor de uso quando

todos possuem um, o carro, como

uma mansão à beira do mar, é

somente desejável e útil a partir do

momento que as massas não têm

um. Por isso, tanto em conceção

quanto na sua finalidade original o

carro é um bem de luxo. E a

essência do luxo é a de que ele não

pode ser democratizado. Se todos

puderem ter o luxo, ninguém

obtém as vantagens dele. Do

contrário, todos logram, enganam

e frustram os demais, e é logrado,

enganado e frustrado por sua vez.

Isto é de muitíssimo

conhecimento comum no caso das

mansões à beira mar. Nenhum

político ousou ainda reivindicar

que democratizar o direito às

férias significasse uma mansão

com praia particular para cada

família. Todos compreendem que

se cada uma entre 13 ou 14

milhões de famílias devessem usar

somente 10 metros da costa,

tomar-se-ia 140.000km de praia

para que todos tivessem sua parte!

Para dar a todos sua parte ter-se-ia

que cortar as praias em tiras

pequenas - ou espremer tão

fortemente as mansões - que seu

valor de uso seria nulo e sua

vantagem sobre um complexo

hoteleiro desapareceria. De fato, a

democratização do acesso às praias

aponta a somente uma solução: a

solução coletivista. E esta solução

está necessariamente em guerra

com o luxo da praia particular, que

é um privilégio que uma minoria

pequena toma como seu direito às

custas de todos.

Agora, por que aquilo que é

perfeitamente óbvio no caso das

praias não é geralmente visto da

mesma forma no caso do

transporte? Como a casa de praia,

um carro também não ocupa

espaço escasso? Não priva os

outros que usam as estradas

(pedestres, ciclistas, motoristas de

ônibus, etal.)? Não perde seu valor

de uso quando todos usam os seus

próprios? No entanto há uma

abundância de políticos que

insistem que cada família tem o

direito ao menos a um carro e que

é até encargo do "governo" tornar

possível que todos possam

estacionar convenientemente,

dirijam facilmente na cidade, e

possam viajar no feriado ao

mesmo tempo que todos outros,

indo a 70 mph nas estradas, às

estações de férias.

A monstruosidade deste absurdo

demagógico é imediatamente

aparente, no entanto, mesmo a

esquerda não desdém de recorrer a

A IDEOLOGIA SOCIAL DO CARRO A MOTOR

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ela. Por que o carro é tratado como

uma vaca sagrada? Por que, ao

contrário de outros bens

"privados", ele não é reconhecido

como um luxo antissocial? A

resposta deve ser procurada nos

dois aspetos seguintes da atividade

de dirigir:

A massificação do automóvel

efetua um triunfo absoluto do

ideologia burguesa no nível da

vida diária. Dá e sustenta em todos

a ilusão de que cada indivíduo

pode procurar o seu próprio

benefício às custas de todos os

demais. Leva ao egoísmo cruel e

agressivo do motorista que em

todos os momentos está

figurativamente matando os

"outros", que aparecem meramente

como obstáculos físicos à sua

velocidade. Este egoísmo

competidor e agressivo marca a

chegada do comportamento

universal burguês, e tem existido

desde que dirigir tornou-se lugar-

comum. ("você nunca terá o

socialismo com aquele tipo de

pessoas", um amigo alemão

ocidental me disse, triste ao ver o

espetáculo do tráfego de Paris).

O automóvel é o exemplo

paradoxal de um objeto luxuoso

que tem sido desvalorizado por sua

própria propagação. Mas esta

desvalorização prática não foi

seguida ainda por uma

desvalorização ideológica. O mito

do prazer e benefício do carro

persiste, embora se o transporte de

massa fosse difundido, sua

dominação seria golpeada. A

persistência deste mito é explicada

facilmente. A propagação do carro

particular deslocou o transporte de

massa e alterou o planejamento da

cidade e da habitação de tal

maneira que transfere ao carro o

exercício de funções que sua

própria propagação tornou

necessárias. Uma revolução

ideológica ("cultural ") seria

necessária para quebrar este

círculo. Obviamente não se deve

esperar isto da classe dirigente

(direita ou esquerda).

Permita-nos olhar mais de perto

agora estes dois pontos.

Quando o carro foi inventado,

ele o foi para prover poucos dos

muito ricos com um privilégio

completamente sem precedentes:

viajar muito mais rapidamente do

que todos os demais. Ninguém até

então tinha sonhado com isso. A

velocidade de todas as carroças era

essencialmente a mesma, fosse

você rico ou pobre. As carruagens

dos ricos não eram mais velozes

do que as carroças dos

camponeses, e trens carregavam

todos na mesma velocidade (não

possuíam velocidades diferentes

até eles começarem a competir

com o automóvel e o avião).

Assim, até a virada do século, a

elite não viajava em uma

velocidade diferente do povo. O

carro a motor iria mudar tudo isto.

Pela primeira vez as diferenças de

classe foram estendidas à

velocidade e aos meios de

transporte.

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Este meio de transporte no início

parecia inacessível às massas – ele

era muito diferente dos meios de

transporte comuns. Não havia

nenhuma comparação entre o carro

a motor e os outros: o bonde, o

trem, a bicicleta, ou a carroça.

Seres excecionais saíam em

veículos com autopropulsão que

pesavam pelo menos uma tonelada

e cujos órgãos mecânicos

extremamente complicados eram

tão misteriosos quanto escondidos

das vistas. Um aspecto importante

do mito do automóvel é que pela

primeira vez as pessoas andavam

em veículos particulares cujos

mecanismos de funcionamento

eram completamente

desconhecidos deles, e cuja

manutenção e alimentação tiveram

que confiar a especialistas. Aqui

está o paradoxo do automóvel:

parece conferir aos seus

proprietários liberdade ilimitada,

permitindo que viajem quando e a

onde quiserem em uma velocidade

igual ou maior que a do trem. Mas

de fato, esta aparência de

independência tem por debaixo

uma dependência radical. Ao

contrário do cavaleiro, do

carroceiro, ou do ciclista, o

motorista iria depender para suprir

combustível, assim como para o

menor tipo de reparo, dos

negociantes e dos especialistas em

motores, lubrificação e ignição, e

da possibilidade de troca das

peças. Ao contrário de todos os

proprietários anteriores de meios

de locomoção, o relacionamento

do motorista com seu veículo viria

a ser aquele do usuário e

consumidor - e não do proprietário

e do mestre. Este veículo, em

outras palavras, obrigaria o

proprietário a consumir e usar uma

gama de serviços comerciais e

produtos industriais que somente

poderiam ser fornecidos por um

terceiro. A independência aparente

do proprietário do automóvel

apenas escondia a dependência

radical real.

Os magnatas do petróleo foram

os primeiros a perceber o ganho

que poderia ser extraído da

distribuição em escala do carro a

motor. Se as pessoas pudessem ser

induzidas a viajar em carros, eles

poderiam vender o combustível

necessário para movê-los. Pela

primeira vez na história, as

pessoas tornar-se-iam dependentes

de uma fonte comercial de energia

para sua locomoção. Haveriam

tantos clientes para a indústria de

petróleo quanto houvessem

motoristas - e uma vez que

haveriam tantos motoristas quanto

houvessem famílias, a população

inteira se transformaria em cliente

dos comerciantes de petróleo. O

sonho de todo capitalista estava a

ponto de se realizar. Todos iriam

depender para suas necessidades

diárias de um produto que uma

única indústria possuía em

monopólio.

Tudo que se deveria fazer era

deixar a população dirigir carros.

Pouca persuasão seria necessária.

Seria suficiente baixar o preço do

carro usando a produção em massa

e a linha de montagem. As pessoas

atropelariam umas as outras para

comprá-lo. Correriam sem

perceber que estavam sendo

conduzidas pelo nariz. O que, de

fato, a indústria do automóvel lhes

ofereceu? Apenas isto: "de agora

em diante, como a nobreza e a

burguesia, você também terá o

privilégio de dirigir tão rápido

quanto qualquer um. Em uma

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sociedade de carro a motor o

privilégio da elite é tornado

disponível a você".

As pessoas se apressaram para

comprar carros até que, quando a

classe trabalhadora começou a os

comprar também, os motoristas

perceberam que haviam sido

enganados. Tinha sido prometido a

eles um privilégio de burgueses,

tinham entrado em débito para

adquiri-lo, e agora viam que

qualquer um poderia também obter

um. Qual é o gosto de um

privilégio se todos puderem o ter?

É um jogo de tolo. Pior, ele coloca

todos em posição antagônica

contra todos. A paralisação geral é

criada por um engarrafamento

geral. Quando todos reivindicam o

direito de dirigir na velocidade

privilegiada da burguesia, tudo

pára, e a velocidade do tráfego da

cidade cai vertiginosamente - em

Boston como em Paris, Roma, ou

Londres - abaixo daquele da

carroça; no horário do rush a

velocidade média nas estradas

abertas cai abaixo da velocidade

de uma bicicleta.

Nada ajuda. Todas as soluções

foram tentadas. Todas elas

terminam piorando as coisas. Não

importa se elas aumentam o

número de vias expressas, túneis,

elevados, estradas de 16 pistas e

estradas com pedágio na cidade, o

resultado é sempre o mesmo.

Quanto mais estradas a serviço,

mais os carros as obstruem, e o

tráfego da cidade torna-se mais

paralisantemente congestionado.

Enquanto houverem cidades, o

problema permanecerá sem

solução. Não importa quão larga e

rápida uma superhighway seja, a

velocidade na qual os veículos

podem sair dela para entrar na

cidade não pode ser maior do que

a velocidade média nas ruas da

cidade. Enquanto a velocidade

média em Paris é 10 a 20 kmh,

dependendo da hora, ninguém

poderá sair delas em torno e na

capital a mais do que 10 a 20

km/h.

O mesmo é verdadeiro para todas

as cidades. É impossível dirigir a

mais do que uma média de 20kmh

na embaraçada rede de ruas, de

avenidas, e de bulevares que

caracterizam as cidades

tradicionais. A introdução de

veículos mais rápidos

inevitavelmente atrapalha o

tráfego da cidade, causando

gargalos - e por fim uma

paralisação completa.

Se o carro deve prevalecer, há

ainda uma solução: livre-se das

cidades. Isto é, enfileire-os por

centenas de milhas ao longo de

enormes estradas, fazendo delas

subúrbios de estradas. Isto é o que

está sendo feito nos Estados

Unidos. Ivan Illich mostra a

consequência deste modo: "O

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americano típico devota mais de

1500 horas no ano (que são 30

horas por semana, ou 4 horas por

dia, incluindo domingos) a seu

carro. Isto inclui o tempo gasto

atrás do volante, andando e

parado, as horas de trabalho para

pagar por ele e para pagar pelo

combustível, pneus, pedágios,

seguro, bilhetes e taxas. Deste

modo ele toma deste americano

1500 horas para andar 6000 milhas

(no curso de um ano). Três milhas

e meia custam-lhe uma hora. Nos

países que não têm uma indústria

do transporte, as pessoas viajam

exatamente nesta velocidade a pé,

com a vantagem que podem ir

onde quiserem e de não estarem

restritas às estradas de asfalto".

É verdade, Illich aponta, que em

países não-industrializados a

viagem usa somente 3 a 8% do

tempo livre da pessoa (que é

aproximadamente duas a seis horas

na semana). Assim uma pessoa a

pé anda tantas milhas em uma hora

gasta em viagem quanto uma

pessoa em um carro, mas devota 5

a 10 vezes menos tempo na

viagem. Moral: Quanto mais

difundidos veículos rápidos estão

dentro de uma sociedade, mais

tempo - a partir de um

determinado ponto – as pessoas

gastarão e perderão viajando. Isto

é um fato matemático.

A razão? Nós acabamos de vê-la:

As cidades foram divididas em

infinitos subúrbios de estrada,

porque esta era a única maneira de

evitar o congestionamento em

centros residenciais. Mas o lado

oculto desta solução é óbvio:

finalmente as pessoas não podem

se deslocar convenientemente

porque estão distantes de tudo.

Para construir espaço para os

carros, as distâncias foram

aumentadas. As pessoas vivem

longe de seu trabalho, longe da

escola, longe do supermercado -

que requer então um segundo carro

para que as compras possam ser

feitas e para as crianças irem à

escola. Passeios? Fora da questão.

Amigos? Há os vizinhos... e só. Na

análise final, o carro desperdiça

mais tempo do que economiza e

cria mais distâncias do que supera.

Naturalmente, você pode ir ao

trabalho a 60 mph, mas isto porque

você vive a 30 milhas de seu

trabalho e está disposto a dar meia

hora às últimas 6 milhas. Somando

tudo: "uma boa parte do trabalho

diário é gasto para pagar pela

viagem necessária para ir ao

trabalho". (Ivan Illich).

Talvez você esteja dizendo, "mas

ao menos desta maneira você pode

escapar do inferno da cidade após

o fim do dia de trabalho". Lá nós

estamos, agora nós sabemos: "a

cidade", a grande cidade que por

gerações foi considerada uma

maravilha, o único lugar que vale

a pena viver, é considerada agora

um "inferno". Todos querem

escapar dela para viver no campo.

Por que esta reversão? Por uma

única razão. O carro fez a cidade

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grande inabitável. A fez fedorenta,

barulhenta, sufocante, empoeirada,

congestionada, tão congestionada

que ninguém quer sair mais de

tardinha. Assim, uma vez que os

carros mataram a cidade, nós

necessitamos carros mais rápidos

para fugir em superestradas para

os subúrbios que estão ainda mais

distantes. Que argumento circular

impecável: dê-nos mais carros de

modo que nós possamos escapar da

destruição causada pelos carros.

De um artigo luxuoso e uma

marca de privilégio, o carro

transformou-se assim numa

necessidade vital. Você tem que

ter um para escapar do inferno

urbano dos carros. A indústria

capitalista ganhou assim o jogo: o

supérfluo tornou-se necessário.

Não há mais a necessidade de

persuadir as pessoas de quererem

um carro; sua necessidade é um

fato da vida. É verdadeiro que

alguém possa ter suas dúvidas ao

prestar atenção à fuga motorizada

ao longo das estradas do êxodo.

Entre 8 e 9:30 da manhã., entre

5:30 e 7 da tarde, e em fins de

semana por cinco ou seis horas as

rotas de fuga se prolongam nas

procissões de para-choque-à-para-

choque que vão (no máximo) à

velocidade de um ciclista e em

uma nuvem densa de emanações da

gasolina. O que sobra das

vantagens do carro? O que é

deixado quando, inevitavelmente,

a velocidade superior nas estradas

é limitada exatamente pela

velocidade do carro mais lento?

Nítido suficiente. Após ter

matado a cidade, o carro está

matando o carro. Prometendo a

todos poderem andar mais

rapidamente, a indústria do

automóvel termina com o resultado

previsível de que todos tem que

andar tão lentamente quanto o

mais lento, em uma velocidade

determinada pelas leis simples da

dinâmica dos fluidos. Pior: sendo

inventado para permitir que seu

proprietário vá a onde deseja, na

velocidade e tempo que deseja, o

carro transforma-se, de todos os

veículos, no mais servil, perigoso,

não dependente e incômodo.

Mesmo se você deixa uma

extravagante quantidade de tempo,

você nunca sabe quando os

gargalos o deixarão chegar lá.

Você está limitado à estrada tão

inexoravelmente quanto o trem a

seus trilhos. Não mais do que o

viajante de trem, pode você parar

em um impulso, e como o trem

você deve ir em uma velocidade

decidida por outra pessoa.

Concluindo, o carro não tem

nenhuma das vantagens do trem e

possui todas as suas desvantagens,

mais algumas próprias: vibração,

espaço apertado, o perigo dos

acidentes, o esforço necessário

para dirigi-lo.

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No entanto, você pode dizer, as

pessoas não tomam trem. Claro!

Como poderiam? Você já tentou

alguma vez ir de Boston a New

York de trem? Ou de Ivry a

Treport? Ou de Garches a

Fountainebleau? Ou de Colombes

a l'Isle-Adam? Você tentou em um

sábado ou domingo de verão?

Bem, então tente e boa sorte! Você

observará que o capitalismo do

automóvel pensou em tudo. Tão

logo o carro matou o carro, ele fez

com que as alternativas

desaparecessem, tornando

compulsório, deste modo, o carro.

Assim, primeiramente o estado

capitalista permitiu que as

conexões de trilho entre as cidades

e o campo circunvizinho se

deteriorassem, e então acabou com

elas. As únicas que foram

poupadas foram as conexões inter-

municipais de alta velocidade que

competem com as linhas aéreas

para uma clientela de burgueses.

Há um progresso para você!

A verdade é que ninguém tem

realmente qualquer escolha. Você

não é livre para ter um carro ou

não porque o mundo dos bairros é

projetado em função do carro - e,

cada vez mais, é assim o mundo da

cidade. É por isso que a solução

revolucionária ideal, que é afastar

o carro em proveito da bicicleta,

do ônibus, e do bonde, não é

sequer mais aplicável nas cidades

grandes como Los Angeles,

Detroit, Houston, Trappes, ou

Bruxelas, que são construídas por

e para o automóvel. Estas cidades

estilhaçadas são formadas por

alinhadas ruas vazias possuindo

desenvolvimentos idênticos; e sua

paisagem urbana (um deserto) diz,

"estas ruas são feitas para se

dirigir tão rapidamente quanto

possível do trabalho para casa e

vice-versa. Você anda através

daqui, você não vive aqui. No fim

do dia de trabalho todos devem

permanecer em casa, e qualquer

um encontrado na rua depois do

anoitecer deve ser considerado

suspeito de ‘fazer o mal’". Em

algumas cidades americanas o ato

de dar uma volta nas ruas à noite é

vista como suspeita de crime.

Então estamos fritos? Não, mas a

alternativa ao carro terá que ser

abrangente. Para que as pessoas

possam abandonar seus carros, não

será suficiente lhes oferecer um

transporte de massa mais

confortável. Terão que poder

dispensar o transporte por se

sentirem em casa nos seus bairros,

nas suas comunidades, nas suas

cidades de tamanho humano, e por

sentirem prazer em andar do

trabalho para casa a pé, ou se

preciso for, de bicicleta. Nenhum

meio de transporte e fuga veloz

jamais compensará a vexação de

viver em uma cidade inabitável na

qual ninguém se sente em casa, ou

a irritação de somente ir à cidade

para trabalhar ou, por outro lado,

de estar sozinho e dormir.

"As pessoas", escreve Illich,

"quebrarão as correntes do

domínio do transporte quando

voltarem a amar, como se fosse

seu próprio território, seu próprio

ritmo particular, e temer ficar

demasiado distante dele". Mas a

fim de amar "o seu território" ele

deve antes de mais nada ser

habitável, e não congestionável. O

bairro ou a comunidade devem

novamente transformar-se em um

microcosmo esculpido por e para

todas as atividades humanas, onde

as pessoas possam trabalhar, viver,

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relaxar, aprender, se comunicar, e

discutir sobre ela, e no qual elas

controlem conjuntamente como o

lugar de sua vida em comum.

Quando alguém lhe perguntou

como as pessoas gastariam seu

tempo após a revolução, quando o

desperdício capitalista tivesse sido

eliminado, Marcuse respondeu,

"nós traremos à baixo as grandes

cidades e construiremos novas.

Isso manter-nos-á ocupados por

enquanto".

Estas novas cidades poderiam ser

federações de comunidades (ou de

bairros) cercadas por cinturões

verdes nos quais cidadãos - e em

especial crianças em idade escolar

- passariam diversas horas da

semana cultivando os alimentos

frescos de que necessitam. Para se

locomoverem todos os dias

poderiam usar todos os tipos do

transporte adaptados a uma cidade

de tamanho médio: bicicletas,

bondes ou bondes elétricos

municipais, táxis elétricos sem

motoristas. Para longas viagens no

país, assim como para convidados,

uma quantidade de automóveis

comunais estaria disponível em

garagens do bairro. O carro não

seria mais uma necessidade. Tudo

teria mudado: o mundo, a vida, as

pessoas. E isto não virá por si só.

Entretanto, o que deve ser feito

para se chegar lá? Sobretudo,

nunca faça do transporte um

assunto em si mesmo. Conecte-o

sempre ao problema da cidade, da

divisão social do trabalho, e à

maneira que isto

compartimentaliza as muitas

dimensões da vida. Um lugar para

o trabalho, outro para "viver", um

terceiro para as compras, um

quarto para aprender, um quinto

para entretenimento. A maneira

que nosso espaço é arranjado dá

continuidade à desintegração das

pessoas que começa com a divisão

de trabalho na fábrica. Corta uma

pessoa em fatias, corta nosso

tempo, nossa vida, em fatias

separadas de modo que em cada

uma você seja um consumidor

passivo a mercê dos comerciantes,

de modo que nunca lhe ocorra que

o trabalho, a cultura, a

comunicação, o prazer, a

satisfação das necessidades, e a

vida pessoal podem e deveriam ser

uma e mesma coisa: uma vida

unificada, sustentada pelo tecido

social da comunidade.

Texto de André Gorz

Le Sauvage, Setembro-Outubro

de 1973

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Imbuídas do sentimento de

estarem ligadas aos ritmos da

natureza, as mulheres

compreendiam a interconexão

entre esta e os seres humanos. A

prevenção contra a destruição

ambiental tinha seu ponto forte

nesse vínculo. Assim, essa

identificação tornou-se um projeto

positivo, que as alçou ao nível de

guardiãs da ecologia

por Janet Biehl

Seriam as mulheres mais ecológicas

do que os homens? Teriam elas uma

relação particular com a natureza, ou

um ponto de vista privilegiado em

relação aos problemas da ecologia?

Ao longo das últimas décadas,

mulheres que se dizem feministas

responderam a essas perguntas de

modo afirmativo.

De fato, essa posição é praticamente

tão antiga quanto o aparecimento do

movimento ecologista moderno. Em

1968, em seu livro The Population

Bomb1

(“A bomba populacional”), o

biólogo e educador norte-americano

Paul R. Ehrlich afirmou que a

superpopulação estava levando o

planeta à ruína. Ele acrescentou que a

melhor coisa que poderia ser feita em

benefício da Terra era a recusa em

reproduzir-se. Anos mais tarde, uma

feminista radical francesa, Françoise

d’Eaubonne, constatou que metade

da população não tinha o poder de

optar por isso: as mulheres não

controlavam sua fertilidade. O

“sistema macho” patriarcal,

conforme ela o chamava,

as queria descalças, grávidas e

reprodutoras.

Contudo, d’Eaubonne também

acrescentava que as mulheres podiam

e deviam responder, exigindo a

liberdade de reprodução: o acesso

fácil ao aborto e à contracepção.

Com isso, elas teriam condições de

emancipar-se e, ao mesmo tempo,

salvar o planeta da superpopulação.

“A primeira consequência da relação

entre a ecologia e a liberação das

mulheres”, escreveu a autora, “é a de

que as mulheres devem reapoderar-se

do crescimento demográfico e, assim

fazendo, reapoderar-se do seu

corpo”. Em seu livro publicado em

1974, Le féminisme ou la mort (“O

feminismo ou a morte”), ela deu a

essa ideia o nome de

“ecofeminismo”.

Os defensores estadunidenses do

meio ambiente retomaram seu

pensamento, embora eles também lhe

atribuíssem um sentido diferente.

Recordaram-se de que a autora de

Silent Spring (“Verão silencioso”), o

livro que inspirara a luta em defesa

da ecologia em 1963, era uma

mulher: Rachel Carson.2 Eles

constataram que as mulheres haviam

A MULHER E A NATUREZA: UMA MÍSTICA RECORRENTE

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tomado a frente das manifestações

contra as centrais nucleares e

daquelas contra o lixo tóxico – como

fizera Lois Gibbs em Love Canal, no

estado de Nova York. Uma mulher,

Donella Meadows, figurava entre os

autores do influente relatório The

Limits to Growth3

(“Os limites do

crescimento”), publicado em 1972.

Petra Kelly era uma figura

emblemática dos movimentos

ecologistas na Alemanha. No Reino

Unido, um grupo denominado

Women for Life on Earth (“As

mulheres em prol da vida na Terra”)

organizou um “acampamento da paz”

na base aérea de Greenham Common

para protestar contra a disseminação

de mísseis de cruzeiro pela

Organização do Tratado do Atlântico

Norte (Otan).

Muitas participantes se

proclamavam ecofeministas; mas a

sua militância não se inscrevia numa

luta pela liberdade de reprodução. As

pessoas começaram a enxergar uma

relação específica, sui generis, entre

as mulheres e a natureza. Esta se

manifestava na própria língua: as

palavras “natureza” e “Terra” são do

gênero feminino, as florestas são

“virgens”, a natureza, que é a nossa

“mãe”, é “mais sábia”. As mulheres

podem ser “selvagens” encantadoras.

Um insulto transformado em elogio

Fazendo contraste com essas

afinidades, as forças que tentavam

“domar a natureza” e “violentar a

Terra” eram as da ciência, da

tecnologia e da razão, todas as quais

eram frutos de projetos masculinos.

Há milênios, Aristóteles definiu a

racionalidade como masculina; ele

pensava que as mulheres eram menos

aptas a raciocinar e, por conta disso,

menos humanas. Ao longo dos dois

milênios que se seguiram, a cultura

europeia havia considerado as

mulheres como intelectualmente

deficientes, e havia tentado dominar

a Terra, no que ela seguiu os

preceitos da Gênese. Então, as Luzes

– outro projeto aparentemente

masculino – haviam encontrado

novas maneiras de destruir a natureza

por meio da ciência, da tecnologia e

das usinas. Os autores dessa

destruição do meio ambiente foram

homens que reduziram a natureza a

um conjunto de recursos que eles

podiam explorar e transformar em

mercadorias. Ao buscar dominar a

natureza e glorificando a razão ao

mesmo tempo, o projeto das Luzes

destruiu o planeta, segundo afirma a

filosofia da Nova Era e do

ecofeminismo. Essa era a tese de

autores como Frijtof Capra e

Charlene Spretnak.4

Mas, conforme garantiram as

feministas durante os anos 1970, as

mulheres tinham as mãos limpas.

Além disso, o mundo precisava de

menos racionalidade destruidora da

natureza; portanto, se as mulheres

eram mais intuitivas e mais

emocionais do que os homens, elas

eram o antídoto. Imbuídas do

sentimento de estarem ligadas aos

ritmos da natureza, elas

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compreendiam intuitivamente a

interconexão entre esta última e os

seres humanos. A prevenção contra a

destruição do meio ambiente tinha o

seu ponto forte precisamente nesse

vínculo específico. Assim, identificar

as mulheres com a natureza tornou-se

um projeto positivo, que as alçou ao

nível de guardiãs da mensagem

ecologista. A sua abordagem acabou

sendo legitimada pelos estudos da

psicóloga Carol Gilligan, que sugeriu

que o desenvolvimento moral

específico das mulheres fazia com

que elas fossem portadoras de uma

“ética do cuidar dos

outros”,5 ou care.

6 Algumas delas,

como Mary Daly, chegaram até

mesmo a sugerir que a natureza era

uma deusa, imanente em todas as

criaturas vivas, e que as mulheres

participavam da sua essência.7

Por sua vez, as feministas, ao menos

as que lutam para garantir uma

melhora no plano dos seus direitos,

ficaram horrorizadas com essa

concepção. Elas rebateram que o

ecofeminismo veiculava estereótipos

patriarcais: para elas, ele se

apoderara de um insulto muito

antigo, que ela passara a apresentar

como uma virtude. No século 19,

esses estereótipos haviam servido

para justificar a ideologia das

“esferas separadas”, que haviam

limitado ao universo doméstico as

opções de vida das mulheres, ainda

que pintassem de ouro as grades da

sua prisão lançando mão de

homenagens esfuziantes à sua

superioridade moral. O

ecofeminismo não passava de uma

recriação desses estereótipos

opressivos. Por mais renovados e

“esverdeados” que fossem, não havia

espaço para estes últimos na luta

feminista; eles nada faziam senão

abrir a porta para uma nova iteração

da “mística feminina”. Além disso,

na realidade, nos anos 1970, muitos

defensores do meio ambiente eram

homens.

Nesse meio-tempo, as ecofeministas

ocidentais passaram a se interessar

pelo Terceiro Mundo, onde projetos

de desenvolvimento financiados pelo

Banco Mundial estavam em vias de

realização. Engenheiros construíam

barragens em rios para produzir

energia hidráulica e, assim fazendo,

devastavam inúmeras comunidades.

O agronegócio transformava em

monoculturas terras que havia muito

vinham sendo cultivadas de maneira

sustentável, produzindo colheitas

exclusivamente destinadas a serem

exportadas no mercado mundial;

derrubava florestas que, por muito

tempo, forneceram aos moradores de

pequenas cidades frutas, combustível

e material próprio para o artesanato,

e que haviam protegido as águas

subterrâneas e os animais. Esse “mau

desenvolvimento”, conforme era

chamado pelos seus opositores – um

capitalismo internacional explorador,

descontrolado –, estava destruindo

não apenas as florestas, os rios e as

terras, como também comunidades e

modos de vida ecologicamente

sustentáveis.

Povos autóctones lutaram contra

essas devastações. No norte da Índia,

mais particularmente, quando uma

companhia planejou dedicar-se à

exploração florestal, as mulheres da

aldeia se opuseram ao projeto,

agarrando-se fisicamente às árvores

para impedir que fossem derrubadas.

Durante a década seguinte, o seu

movimento, que foi batizado de

Chipko, alastrou-se por todo o

subcontinente.

O movimento Chipko estimulou a

Page 13: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 13

imaginação das ecofeministas

ocidentais, enquanto a realidade dos

fatos sociais contribuiu para reforçar

a mística, associando a mulher com a

Terra. Nas regiões rurais da África,

da Ásia e da América Latina,

Vandana Shiva e muitas outras

explicaram que as mulheres são as

jardineiras e as cultivadoras das

hortas; elas possuem um saber e uma

perícia ímpares em relação aos

processos da natureza.

A fascinação do ecofeminismo pelo

movimento Chipko aproximava-se de

uma idealização da agricultura de

subsistência. Como ficavam então as

mulheres que aspiravam à educação,

a uma vida profissional e a uma

plena cidadania política? As

ecofeministas pareciam achar

preferível que elas mantivessem seus

papéis antigos, ficando descalças e

jardinando. Sem esquecer o fato de

que também havia homens

envolvidos no movimento Chipko…

Contudo, esse interesse teve o mérito

de evidenciar de quais maneiras

particulares a destruição do meio

ambiente deixa as mulheres abaladas.

Quando terras agrícolas produtivas

são convertidas à monocultura,

muitas delas, que praticam

maciçamente a agricultura de

subsistência, são transferidas para

morros onde as terras são menos

férteis, o que provoca o

desmatamento e a erosão dos solos e

as condena à pobreza.8

O aquecimento climático também

atinge as mulheres em primeiro

lugar: a inferioridade da sua condição

e dos seus diferentes papéis sociais

aumenta sua vulnerabilidade aos

desastres – tempestades, incêndios,

enchentes, secas, ondas de calor,

doenças e penúrias alimentares. Todo

ano, segundo um relatório da

Women’s Environmental Network

(WEN – Rede Ambiental das

Mulheres), uma organização baseada

no Reino Unido, mais de 10 mil

mulheres morrem em desastres

relacionados à mudança do clima,

contra 4.500 homens. As mulheres

representam 80% dos refugiados de

catástrofes naturais; dos 26 milhões

de pessoas que perderam sua

habitação e seus meios de

sobrevivência em razão da mudança

climática, 20 milhões são mulheres.9

Nos Estados Unidos, a interpretação

romântica da relação entre a mulher e

a natureza conheceu recentemente

outro renascimento após o

desmoronamento financeiro

provocado pela ganância de Wall

Street: “As mulheres estão voltadas

para relações e estratégias de longo

prazo que dão prioridade para as

gerações futuras”, escreve Shannon

Hayes em seu livro dedicado

às radical homemakers (“donas de

casa radicais”).10

Essas novas

encarnações da Mãe Terra renunciam

às vantagens econômicas que

poderiam lhes proporcionar um alto

nível de educação e uma carreira

profissional: elas optam por ficar em

casa para cuidar da sua família e dar

aos seus filhos uma alimentação

saudável, a partir de alimentos

Page 14: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 14

saborosos que elas mesmas cultivam

no seu jardim. Elas também cultivam

suas relações com os outros,

privilegiam a simplicidade e a

autenticidade. Independente e

autônomo, o seu lar passa a ser uma

rede de segurança contra um eventual

desastre econômico. Além disso, o

seu consumo de carbono é muito

reduzido. Dessa forma, elas

conseguem ter um desenvolvimento

virtuoso no plano pessoal e conferir

um sentido para a sua vida – ao

menos à primeira vista.

Voltar às “esferas separadas”?

A defesa do meio ambiente já existe

há tempo suficiente para que os

pesquisadores em ciências sociais

tenham conseguido elaborar estudos

a respeito da atitude respectiva dos

homens e das mulheres em relação à

ecologia e constatar eventuais

diferenças. Desde os anos 1980, uma

maioria dentre eles chegou à

conclusão de que, nos países

industrializados, as mulheres se

mostram efetivamente mais

preocupadas do que os homens com a

destruição do meio ambiente.

Segundo certos estudos, elas têm de

fato uma pegada ecológica mais

reduzida. Um relatório sueco indica

que os homens participam no

aquecimento global de maneira

desproporcional se comparados com

as mulheres, pois eles circulam em

distâncias mais longas: três quartos

do trânsito automobilístico na Suécia

são atribuídos a homens.11

Como fica então a ação política

motivada pelas questões ambientais?

No nível nacional, segundo o

Institute for War & Peace Reporting

(IWPR),12

a participação e o papel

dirigente das mulheres nessa ação

específica são mais reduzidos que os

dos homens: as diretorias das grandes

organizações ecologistas nacionais

são essencialmente masculinas. Mas,

no nível local, nos grupos

constituídos para combater uma

ameaça particular contra o meio

ambiente, a saúde ou a segurança da

comunidade, a participação das

mulheres, tanto atuando como

membros quanto como líderes, é

mais importante que a dos homens.

Cerca da metade de todos os grupos

de cidadãos que se constituíram para

lutar contra desastres ecológicos, tais

como os que envolvem emissões

perigosas provenientes de usinas ou

de incidentes nucleares, é dirigida

por mulheres ou por uma maioria

delas.

Mas será o caso de considerar todos

esses fatos como sendo provas de

uma diferença essencial,

ressuscitando os estereótipos

patriarcais? Será o caso de aceitar

que os homens predominem nos

comandos dos movimentos

ecologistas nacionais, ou que as

mulheres assumam sozinhas as

tarefas que implicam em cuidar dos

outros? E o que devemos pensar

dessa falta de reconhecimento que

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Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 15

mulheres infligem a si próprias em

nome do feminismo?

Pois existe o risco de retornarmos às

“esferas separadas”. Mesmo para as

“donas de casa radicais”, a esfera

doméstica acaba perdendo parte da

sua alegria, conforme sublinha a

ensaísta feminista Peggy Orenstein,

se os seus companheiros não

estiverem envolvidos nela e não

dividirem suas tarefas em partes

iguais. “Se [as mulheres] não

estiverem vivenciando isso como

uma relação verdadeiramente

igualitária”, alerta, elas podem acabar

sofrendo de “uma perda do respeito

de si mesmas, uma perda de

vitalidade e uma incapacidade de se

reinserir no mundo e de nele

encontrar suas

referências”.13

Quando os homens

ganham quase todo o dinheiro do

casal e as mulheres cuidam do lar,

praticamente sozinhas, isso provoca

um desequilíbrio do poder no âmbito

das famílias que é nocivo para as

mulheres e as crianças. É possível

diminuir esse desequilíbrio para uma

mudança tanto social quanto

ecológica?

Janet Biehl

Militante no campo da

ecologia social, radicada em

Burlington (Vermont, EUA). Autora

de Rethinking Ecofeminism Politics,

South End Press,

Cambridge (Estados Unidos), 1991.

1 Publicado na França sob o título

Paul Ehrlich, La Bombe P: Sept

milliards d’hommes en l’an

2000, Fayard, Paris, 1972. Nos

Estados Unidos: The Population

Bomb, Ballantine Books, 1968.

2 Rachel Carson, Silent Spring,

Houghton Mifflin, Boston, 1962.

3 Donella H. Meadows, Dennis L.

Meadows, Jørgen Randers e William

W. Behrens III, The Limits

to Growth, Universe Books, Nova

York, 1972. Publicado na França sob

o título Halte à la croissance?

4 Fritjof Capra, The Turning Point,

Simon & Schuster, Nova York,

1982; Green Politics: The

Global Promise (com Charlene

Spretnak), Dutton, Nova York, 1984.

5 Carol Gilligan, In a Different

Voice, Harvard University Press,

1982.

6 Ler Evelyne Pieiller, “Rumo a uma

sociedade do cuidado”, Le Monde

Diplomatique Brasil, setembro de

2010.

7 Mary Daly, Gyn/Ecology: The

Metaethics of Radical Feminism,

Beacon Press, Boston, 1978.

8 Jodi Jacobson, “Women’s

Work”, Third World,

n° 94/95, McGraw-Hill, Nova

York, janeiro de 1994.

9 “Gender and the Climate Change

Agenda”, www.wen.org.uk, 2010.

10 Shannon Hayes, Radical

Homemakers:

Reclaiming Domesticity from a

Consumer Culture, Left to

Write Press, Richmondville (Estados

Unidos), 2010.

11 “Are men to blame for global

warming?”, New Scientist, Londres,

10 de novembro de 2007.

12 Vide o site http://iwpr.net.13

Peggy Orenstein, “The Femivore’s

Dilemma”, The

New York Times, 11 de março de

2010.

Fonte:

http://silenciodospoetas.wordpress.com/

tag/janet-biehl/

Page 16: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 16

Tal como “chapéus há muitos”,

ecologistas e ambientalistas é fauna que

anda muito longe de andar em vias de

extinção. Do mesmo modo, são mais do

que muitas as correntes de opinião

existentes sob o guarda-chuva do

ecologismo e do ambientalismo.

Nos últimos tempos, a corrente que

mais adeptos têm granjeado é a

ambientalista que tem proliferado sob a

asa protetora dos governos ou das

empresas que prezam muito a sua

responsabilidade social e ambiental e

que, segundo se diz, investem mais em

publicidade para lavar a sua cara do que

em projetos concretos.

Os ambientalistas encartados que se

julgam parceiros sociais, mas que não

passam de jarras para enfeitar as salas

de reuniões, caracterizam-se por

defenderem uma ecologia para “ricos”,

que pinta de verde o selvagem

capitalismo que comanda os destinos do

mundo, mas que aos olhos da imprensa

cor-de-rosa-alaranjada, como dizia o

temido e destemido escritor e jornalista

Manuel Ferreira, são portadores de um

discurso modernaço e tranquilizador.

Se o seu discurso é capaz de fazer

chorar as pedras de qualquer calçada, a

prática é confrangedora e caraterizada

pelo silêncio absoluto ou quase perante

os mais abomináveis atentados

ambientais, pela organização de

encontros onde são apenas um apêndice

ou são falsos promotores, já que se

limitam a pagar as despesas com verbas

que os governos transferem para as

contas bancárias das suas organizações.

São, também, atividades prediletas dos

ambientalistas mencionados a promoção

de atividades periódicas que nada

resolvem, como campanhas de limpeza

de praias, portos ou marinas, campanhas

de erradicação de infestantes ou

plantação de endémicas.

Para confirmar o afirmado acima, basta

ver a quantidade de lixos que são

CHAPÉUS E AMBIENTALISTAS HÁ MUITOS

Page 17: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 17

retirados, ano após ano, nos mesmos

sítios.

No caso do trabalho voluntário e

gratuito poderemos estar perante uma

competição com todas as pessoas que

perderam o seu emprego e que

poderiam ser contratadas para realizar

os trabalhos em questão em troca do

pagamento de um salário justo. E não

me venham com a conversa do costume,

de que estamos em crise e não há verbas

suficientes para mais contratações

porque dinheiro para ser esbanjado em

inutilidades há muito. Façam a conta ao

dinheiro desbaratado em futebóis e

outros desportos profissionais, com

equipas onde mal entram os jovens

açorianos ou em touradas ou vacadas

onde os animais são mais ou menos

vítimas de maus tratos, sofrem ou

morrem inutilmente e alguns humanos

aprendem a insensibilidade, outros são

feridos e outros ainda acabam por

morrer, ficando toda a gente tranquila e

sem problemas de consciência pelo

simples facto das vítimas se

encontrarem, depois de ter sido dado o

sinal costumeiro, dentro das linhas que

delimitavam o percurso.

Outros ambientalistas, mais

recatados, limitam-se a refletir não se

sabe sobre o quê, reduzindo o seu raio

de ação à área da sua casa e, por vezes,

acrescentado àquela a do seu quintal.

Uns convenceram-se de que a ciência e

a tecnologia são capazes de resolver os

problemas do mundo e outros, munidos

de outro tipo de fé, acreditam que se

mudarem a si mesmos o mundo, por

inércia, também fica melhor.

Ambos seguem a cartilha dos grandes

grupos económicos que convenceram,

os mais incautos ou os subservientes, de

que a responsabilidade pela situação de

crise em que todos vivemos é dos

indivíduos, desviando, assim, a atenção

dos verdadeiros culpados que são eles

próprios e os seus agentes nos diversos

estados.

Page 18: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 18

É baseado nesse falso pressuposto, que

também considera que as alterações se

conseguem se as pessoas mudarem os

seus comportamentos, que funcionaram

alguns projetos de educação ambiental

dinamizados pelas antigas ecotecas e

pelos clubes escolares ou que

funcionam as eco-escolas que, com

atividades rotineiras e circunscritas a

um número limitado de alunos e com

dinamizadores socialmente apáticos, são

no meu entender uma grande farsa que

se mantem apenas para enfeitar as

estatísticas dos relatórios do estado do

ambiente.

Esquecem-se, ou não querem ver, que

os problemas ambientais têm as suas

raízes em problemas sociais e que,

como muito bem escreveu Récio

“acreditar que as ações individuais são

capazes de gerar mudanças estruturais é

um mito” pelo que se torna

imprescindível uma ação politica e

social.

O pai da ecologia social, o americano

Murray Bookchin também manifestou

opinião idêntica, tendo afirmado que

“nenhum dos problemas ecológicos que

hoje defrontamos se pode resolver sem

uma profunda mutação social”.

A grande falha do movimento ecológico

está precisamente no facto de nunca ter

assimilado aquela ideia.

Teófilo Braga

Page 19: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 19

Caros/as amigos/as,

Pedimos a vossa ajuda no envio desta

carta que pede a retirada de videos de

touradas dos postos de turismo das

ilhas dos Açores.

Agradecemos desde já!

Para: [email protected],

[email protected]

cc: [email protected], srtt-

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected],

[email protected]

Bcc: [email protected]

Exmo Senhor Diretor Regional do

Turismo

c/c Secretário Regional do Turismo e

Transportes, ao Presidente do Governo

Regional dos Açores e aos responsáveis

pelas Delegações e Postos de Turismo

dos Açores

Temos conhecimento de que em vários

estabelecimentos comerciais, sobretudo

os especializados em produtos para

turistas, são emitidos regularmente

vídeos sobre touradas à corda.

Destes estabelecimentos é bom exemplo a

Loja Açores situada nas Portas do Mar,

em Ponta Delgada, onde é possível

encontrar três grandes ecrãs a passar,

simultaneamente, vídeos de “Marradas”,

que conhecemos bem através da

publicidade aos mesmos que é feita no

Youtube

(http://www.youtube.com/watch?v=8727Jo

OJXrg).

Os mencionados vídeos, para além de

ENTRA EM AÇÃO

Page 20: Terra Livre 53

Terra Livre nº 53 ◊ Janeiro de 2013 Página 20

transmitem imagens de violência contra

os animais, mostram a brutalidade duma

tradição que provoca sofrimento às

pessoas que, participando são

voluntariamente ou não, alvo de

ferimentos, nalguns casos de elevada

gravidade, ou que acabam por morrer,

como já aconteceu este ano na Terceira e

no Pico.

Como pessoa consciente e compassiva,

venho manifestar a minha preocupação

pelo facto da transmissão das referidas

imagens constituírem um poderoso

instrumento de deseducação para

insensibilizar, habituar e até viciar

crianças e adultos no abuso sobre

animais, o que poderá induzir mais

violência sobre animais e sobre pessoas.

Para além do referido, as imagens

transmitidas constituem uma enorme

vergonha para os Açores e poderão

dissuadir o turismo de muitas pessoas

provenientes de países onde este tipo de

eventos é fortemente repudiado e até

perseguido criminalmente.

Temos conhecimento que a transmissão

de marradas nos aeroportos, para além de

já terem deixado horrorizados alguns

turistas, tem causado perplexidade a

algumas pessoas que têm visitado a

Região, a convite de empresas ou do

próprio governo regional, e embaraço

aos seus acompanhantes.

Face ao exposto, venho solicitar a tomada

de medidas no sentido de por fim à

transmissão de vídeos de marradas e

touradas em todos os locais onde os

mesmos possam contribuir para a

banalização do sofrimento de animais e

pessoas e para manchar a imagem dos

Açores junto de potenciais visitantes.

Atentamente,

(Nome)