Terra das Sombras: O Guardão, de Henri B. Neto
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Adrian Regis é um adolescente extraordinário. Dotado com aincrível e - ao mesmo tempo - assustadora capacidade de ver anjos e demônios, o jovem Arcano sempre foi considerado ''esquisito'' pelos outros garotos de sua idade. Acostumado a uma vida reclusa e sem grandes atrativos, o rapaz viu o seu mundo mudar por completo com a inesperada chegada de dois fascinantes - e misteriosos - irmãos à melancólica cidade de Ventura, o levando a embarcar na mais apavorante e perigosa aventura da qual já sonhara participar.
LIVRO UM: O GUARDIÃO
Todos os direitos reservados; nenhuma parte destapublicação pode ser reproduzida ou transmitida pormeio eletrônico, mecânico, fotocópia ou de outra formasem a prévia autorização do autor.
Copyright2010, Henri B. Neto
O Direito moral de Henri B. Neto foi assegurado por ele.
Arte da Capa e DiagramaçãoHenri B. Neto
Neto, Henri B. (Henrique Batista) 1989 -Terra das Sombras – Livro Um: O Guardião Rio de Janeiro, 2012.
Continua com: O Inimigo
1. Literatura de Ficção/Juvenil 2. Sobrenatural3. Anjos/DemôniosI. Neto, Henri B. - II. Título
09 P R Ó L O G O
''Ser diferente é normal...'' - Mas quanta bobagem!
Ser diferente não é ser normal.
Acredite, sei bem do que estou falando.
Desde pequeno, todos me consideram bastante
peculiar - o que na verdade é só um jeito bonitinho e
eufemista de dizer que sou estranho. Por qualquer lugar que
eu procurasse estar, não havia jeito, sempre encontraria
cabeças que se viravam e cochichos que me seguiriam aonde
fosse. Na escola, a maioria dos estudantes mantinham uma
espécie de distância segura de mim; já os professores me
olhavam de uma forma mais humanitária, me tratando como
se eu fosse um portador de alguma coisa digna de pena.
O que não deixa de ser verdade.
Mas a grande questão é que ninguém nunca soube
realmente o que acontece comigo. É de domínio público que
eu não sou como os outros da minha idade, mas é fato
também que não fazem a mínima idéia do que eu possa ter...
ou melhor dizendo, do que eu possa ser. Pois se todas as
pessoas que conheci durante esses meus 18 anos tivessem
uma pequena idéia das coisas que eu sei, das coisas que eu
secretamente posso fazer, garanto que a minha vida chata e
sem grandes preocupações se transformaria em uma
gigantesca dor de cabeça num estalar de dedos.
Na verdade, acho que esta é uma descrição perfeita
para o que tenho: Uma Grande Dor de Cabeça! Algo que
simplesmente acontece com a gente, sem que tenhamos
sequer o direito de escolha. Por que, se eu tivesse o direito de
poder escolher ser ou não ser o que sou, provavelmente eu
escolheria a segunda opção. Afinal, entre ser um adolescente
comum e um adolescente peculiar, quem seria o idiota que
ficaria com o que eu tenho?
Bom, me desculpem, acho que até agora não me
apresentei.
Olá, eu me chamo Adrian, e sou um Arcano.
Assim como outros poucos iguais a mim, sou mais
ágil, mais forte e tenho uma resistência maior do que a de
uma pessoa comum... Mas, acima de tudo, a particularidade
que nos define é justamente por podermos ver coisas que a
maioria das pessoas acreditam que não existem.
Coisas que por serem tão surreais, tão malignas ou
assustadoras, somente alguém com as minhas habilidades
pode lidar.
Mas, voltando ao que interessa, a história que vou
lhes contar a seguir se passa justamente no momento em que
a minha vida (pobre e sem grandes atrativos) definitivamente
começou...
E que, de um jeito irônico e cruel, tentaram arrancá-
la de mim para todo o sempre.
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19 1. O S O N H O
Acordei completamente assustado.
Minha camisa estava encharcada de suor e o meu
coração martelava desvairado contra o peito. Mesmo estando
na segurança de minha cama, sentia como se o pesadelo
ainda não tivesse acabado... Como se o ser produzido pelo
meu subconsciente pudesse estar ali, escondido nas sombras
da madrugada, só esperando para me atacar.
Fechei os olhos novamente e procurei respirar fundo.
Eu sabia que estava sendo irracional. Eu sabia que não
havia um motivo real para entrar em pânico e começar a
pirar. Tudo aquilo não passava de um sonho... Um sonho
aterrorizante que – noite sim, noite não – me tirava o sono
há mais de um mês.
- Se controle, Adrian – sussurrei para mim mesmo,
enquanto me encolhia feito uma bola por de baixo do
cobertor – Você está sendo um medroso!
No mesmo instante, a porta do quarto foi aberta com
energia e se chocou contra a parede lateral do cômodo,
provocando um ligeiro tremor no piso. Sob a luz fraca do
corredor se encontrava um homem alto e esguio, seus cabelos
escuros emaranhados de uma forma estranha no topo de sua
cabeça, o rosto magro e bonito deformado em uma careta
dura de preocupação.
- Filho, você está bem?!
-Estou sim, pai - murmurei, sentido o sangue se
concentrar em minhas bochechas - Foi só um maldito
pesadelo.
-Ah, claro! - no mesmo instante, a face de Cirus se
descontraiu e ele conseguiu abrir um sorriso – Nossa, garoto,
você me assustou!!!
- Me desculpe.
Isto era tudo o que eu podia falar sem entregar o
medo que me consumia por dentro. Eu estava mais
apavorado do que queria realmente demonstrar, e isto era
ridículo, ainda mais considerando o que de fato eu era.
- Mas o que é isso, Adrian? - perguntou meu pai, uma
de suas sobrancelhas erguida em incredulidade - Você sabe
que não tem pelo o que se desculpar!
Mas é claro que eu tinha. Afinal, se não fossem por
minhas ''particularidades'', talvez aquele sonho fosse menos
assustador. Talvez eu nem tivesse esse tipo de sonho.
Percebendo a minha expressão preocupada, Cirus
deixou a sua posição protetora na porta do quarto e se
aproximou de onde eu estava, se sentando na beirada de
minha cama e me avaliando com com um ar cansado e
abatido.
- Afinal, filho, que sonhos são esses que você anda
tendo ultimamente? - instigou ele, um dos cantos de seus
lábios se crispando deliberadamente - Você realmente acha
que são apenas sonhos?
Naquele pequeno segundo de antecipação, senti o
meu sangue gelar.
Pois, assim como eu, meu pai também era um Arcano.
E, assim como eu, ele tinha certeza que eu não acabara de ter
um sonho comum.
Acho que é necessário dizer: às vezes, para um
Arcano, os sonhos podem dizer bastantes coisas. Coisas que
não fomos capazes de ver durante o dia, e que a noite nosso
subconsciente tentava nos alertar sobre o que estávamos
deixando passar despercebido. Mas por mais que eu pensasse,
nada estava me passando despercebido. A vida em Ventura
continuava a mesma - pacata e sem atrativos, com cada um
tentando bisbilhotar ou inventar alguma coisa sobre a
vidinha monótona do outro.
Então, por que essa droga de sonho não me deixava
em paz?
- Eu... Eu não sei... Quero dizer, sim! - Menti, com a
minha melhor cara de inocente - Pelo menos, acho que sim.
Sabe como sou, provavelmente não deve ser nada demais.
- Hum, então você deve estar certo - replicou meu
pai, com um olhar que dizia ''Você é o Pior Mentiroso do
Mundo''. - Acho que realmente está na hora de voltarmos à
dormir. Afinal, amanhã é dia de escola, não?
- Nossa, ótimo lembrete! - resmunguei entre os
dentes, com uma alegria claramente fingida.
Sem dúvida alguma, esta deve ser a melhor maneira
de se terminar um dia: acordar no meio da noite devido a um
pesadelo assustador e voltar a dormir pensando na ''grande''
manhã que teria na Academia Constantine.
‘’São só mais seis meses’’, eu pensei. ‘’Só mais seis
meses, e você vai estar livre daquele lugar!’’
Bom, não era pedir muito de mim, era? Afinal, depois
de Onze anos de total apatia e exclusão, esperar por apenas
mais um semestre não seria nada. Acho que no fim, o
purgatório até poderia ser um lugar acolhedor e com pessoas
amáveis, não é mesmo?
Tudo bem, a quem estava enganando - Não consigo
mentir nem pra mim mesmo.
- Isso aí, garoto, pensamento positivo! - sussurrou
Cirus, ignorando por completo a minha encenação óbvia. -
Agora, feche esses olhos... e não se preocupe com nada!
Aproveitando o fim repentino que dei em nossa
''conversa'', meu pai se levantou pesadamente da beirada da
minha cama e caminhou de volta para o seu quarto sem olhar
para trás, me deixando completamente sozinho e perturbado.
Sabe, eu gosto muito do Cirus, e reconheço todo o
trabalho que ele teve para me criar sozinho, mas
definitivamente nós não estávamos na mesma sintonia. Isto
era um fato triste, porém irrefutável.
As horas se passavam e eu não conseguia voltar a
dormir. Mesmo quando eu queria me distrair com
pensamentos estúpidos, minha cabeça trabalhava à mil por
hora. Todas as vezes que tentava fechar os meus olhos, como
o meu pai havia mandado, visões indistintas do meu pesadelo
vinham à tona. Já eram 1h da manhã, e a única coisa que se
fixava em minha mente era que eu tinha que fazer alguma
coisa.
Com um salto, me pus de pé e fui para o banheiro.
Ironicamente, sempre achei o banheiro um ótimo
lugar para se clarear as idéias. Talvez fosse a cor, talvez
fossem as luzes, quem sabe poderia ser a acústica, mas
qualquer que fosse a explicação, era lá que eu encontrava as
respostas para as minhas perguntas. E foi isso que eu fui
fazer. Encontrar a resposta para uma pergunta que nem eu
sabia qual era.
Completamente exausto, tirei a minha roupa e me
enfiei debaixo do chuveiro. Por mais gelada que estivesse a
água, aquilo estava me deixando mais relaxado. Quase pude
ver os meus músculos se descontraindo sob a pele e a minha
pulsação acelerada se acalmar. Depois de cinco minutos, saí
do Box renovado. E o melhor, meu cérebro parecia estar
trabalhando de uma forma tranqüila, e não alucinada como
estava antes da ducha.
Sentindo-me mais calmo, me enrolei na toalha e segui
em direção ao grande espelho sobre a pia. Já que estava no
banheiro e sem um pingo de sono, iria aproveitar a ocasião
pra fazer a droga da minha barba - o que me pouparia o
trabalho na manhã seguinte, me dando mais tempo livre para
ficar em casa antes de ir para a escola.
Foi então que o meu cérebro deu um click.
Só ao me olhar no espelho eu me dei conta que o
antagonista do meu sonho era extremamente parecido
comigo. Não com a minha aparência, é claro - ela não tinha
os olhos cinzentos e os cabelos escuros como eu, muito
menos a minha altura ou meu porte físico de nadador. Ao
contrário, o ser era comprido ao extremo, passando de longe
os meus 1,80. E diferente de mim - que devido a minha
condição, sou forte, porém magro - cada centímetro dele
parecia exalar uma força bruta e cruel, quase que invencível.
Na verdade, o que me fez lembrar dele foi algo que
me perturbou durante todo o tempo em que estive
inconsciente, e só agora parecia brotar do fundo da minha
mente.
O vilão que me atacava quase todas as noites e me
fazia despertar de medo era um homem... Ou, ao menos,
parecia ser um.
E era isto o que me preocupava.
Esquecendo-me por completo do que iria fazer,
recoloquei as minhas roupas e voltei para o meu quarto. Com
um movimento rápido, abri a janela e me pus a observar a
cidade.
Tudo continuava no seu devido lugar... Ao fundo, eu
podia enxergar as belas colinas de Ventura recortando o
horizonte, a luz da lua resplandecendo no topo das árvores
mais altas. Já as ruas desertas eram iluminadas apenas pelos
lampiões, e os antigos prédios góticos do centro estavam no
escuro, sua arquitetura antiquada sempre me lembrando uma
catedral gigantesca que não parava de crescer.
Por mais calmo que parecesse a paisagem, aquela
visão não me deixou nenhum pouco tranqüilo. Pelo
contrário, observar a cidade mergulhada no silêncio me
deixou ainda mais apreensivo.
Definitivamente, a calma que eu havia recuperado
com o banho estava se esvaindo pelos poros, pouco à pouco.
Minha mente era tomada de assalto por uma enxurrada de
perguntas - e as mais preocupantes pareciam grandes
letreiros de néon diante de mim.
Será que os meus sonhos estavam sendo realmente um
sinal? Ou melhor, será que o ser aterrador poderia estar
naquele exato momento em algum beco escuro de Ventura,
oculto pela sua falsa humanidade, só esperando para atacar?
Sem sombra de dúvidas eu gostaria de ter as respostas para
essas perguntas, mas infelizmente não tinha.
Então fiz a única coisa que me parecia cabível naquela
hora: fechei a janela do meu quarto, voltei para debaixo das
cobertas, e obriguei o meu cérebro a se desligar de tudo e
tentar dormir... De nada adiantaria eu continuar acordado,
me forçando a encontrar algo que ainda estava inacessível a
mim.
Por enquanto, eu sabia de tudo que era para saber.
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29 2. N O V A T O
Naquela manhã, antes mesmo do despertador tocar, eu já
estava acordado - o que não era nada bom, levando-se em
conta de que eu havia tido apenas 4 horas de sono na noite
anterior.
Durante algum tempo, tudo o que eu fiz foi ficar
deitado em minha cama, observando o teto escuro do quarto
ir clareando aos poucos com as primeiras luzes do dia,
pedindo secretamente que o sol não chegasse. Como
consequência da minha ''pequena'' vigília por respostas, meu
organismo cobrava à juros altos as horas de sono
desperdiçadas. Cada centímetro do meu corpo parecia arder
em chamas, minhas pernas pesavam mais que um saco de
concreto e eu tinha a estranha sensação de que minha cabeça
estava a ponto de explodir. Isso, sem falar no vazio que se
apoderava de mim.
Por mais cansado que estivesse, nada parecia ser capaz
de tirar da minha cabeça a terrível imagem do ser no meu
sonho. O sorriso maligno, o olhar feroz... tudo tinha sido tão
real, tão assustador, que por mais que eu tentasse esquecer,
aquilo não saia da minha mente.
''Você está começando a ficar neurótico'', disse para
mim mesmo.
O que não deixava de ser verdade. Simplesmente
tinha perdido as contas de quantas vezes, nas últimas horas,
eu havia me sobressaltado com o mínimo ruído. Qualquer
coisa naquele momento, desde uma buzina de carro até a
minha própria sombra, parecia ter o poder de me assustar.
Após meia hora de pura apatia, tomei coragem
suficiente para me levantar. Enquanto caminhava sem pressa
em direção ao armário, repassava mentalmente os
acontecimentos do último pesadelo. Não sabia como, mas
tinha a impressão de que me esquecia de um detalhe, algo
além da aparência do antagonista. Era estranho, pois só agora
percebia que eu nunca me lembrava do sonho em si, apenas
o momento em que o ser surgia diante de mim. O momento
que me fazia acordar assustado.
- Já está de pé? - perguntou uma voz masculina, bem
atrás de onde eu estava.
Meu coração quase saltou pela boca. Ao virar, me
deparo com meu pai, desta vez com seus cabelos negros
perfeitamente arrumados, vestido por completo com seu
uniforme de trabalho. Cirus era chefe da Brigada de
Paramédicos de Ventura, o que era bastante irônico, se
considerarmos o que ele secretamente podia ver e fazer.
-Meu Deus, o que está acontecendo?
-Não foi nada. Só levei um susto com o senhor...
-Anh?! - Depois de um segundo de incompreensão, o
rosto de Cirus se contorceu em uma careta de preocupação. -
Adrian, por que você não me conta logo sobre o que é esses
seus sonhos?
Sem dizer mais nada, peguei o uniforme horroroso da
Constantine e comecei a trocar de roupa. Não estava
preparado, nem com a mínima vontade de discutir sobre
aquilo com meu pai. E pelo visto, ele também percebera isso,
pois no instante seguinte, não estava mais no meu quarto.
Depois de uma rápida passada no banheiro, onde
tentei (sem sucesso) me afogar na pia, resolvi ir tomar café.
Desci rapidamente pelo poste de emergência, e corri em
direção a cozinha. Este era um dos detalhes que me fazia
gostar tanto da minha casa. Antes de meu pai e eu morarmos
aqui, o prédio era na verdade a antiga sede do Corpo de
Bombeiros da cidade. Quando viemos para cá, Cirus
reformou o lugar todo, mas manteve algumas características
como a faixada, o poste e o sino de alerta.
Nossa, não está no gibi o quanto que meu pai teve que
usar o sino para me obrigar a ir para escola, quando eu era
menor.
Ao chegar na cozinha, percebi que Cirus já estava
terminando de comer. Sua testa estava frizada, enquanto lia
com uma estranha concentração as manchetes do jornal em
suas mãos. Outra coisa que também vi foi que ele me olhou
brevemente por sobre as folhas abertas, e aquele era um claro
sinal de que algo que eu fiz o incomodava - e muito.
Obviamente, o meu silêncio sobre o pesadelo estava
começando a irritá-lo. Mas, por mais que eu quisesse ajuda
para desvendá-lo, falar com mais alguém significava que
havia uma possibilidade de tudo aquilo ser verdade... E no
fundo, não era bem isso o que eu queria.
Após meio minuto de um silêncio constrangedor,
resolvi quebrar o gelo.
- Hum, muita notícia ruim hoje?
- Não, nada grave - murmurou Cirus, olhando-me
novamente por sobre o jornal - Só a coclusão das
investigações daquele acidente do mês passado envolvendo
adolescentes em Dumont...
- Ah, sim! - respondi, tentando demonstrar interesse.
Do lado de fora do periódico, eu podia ver a manchete da
matéria encabeçando uma grande foto de um dos envolvidos,
um rapaz ruivo e simpático, que deveria ter no mínimo a
minha idade quando a imagem fora tirada. Não sabendo o
por que, aquilo me fez tremer ligeiramente... e me obrigou a
continuar perguntando - Mas então, já sabem o resultado de
tudo?
- O de maior estava alcoolizado, é claro... -
resmungou meu pai, ainda sem tirar os olhos do papel - Pelo
o que a polícia apurou, na velocidade em que o garoto vinha,
os passageiros do táxi atingido tiveram muita sorte de terem
conseguido sair dessa sem um arranhão.
A resposta fria e direta de Cirus me fez encolher aos
poucos na cadeira. Estava claro e bastante nítido que o
assunto macabro não estava ajudando em nada no desenrolar
da coisa.
E eu não podia deixar o barco continuar.
- Me desculpe, pai! - explodi, sem um pingo de
coragem para encará-lo -Tudo bem, eu sei que eu errei em
não falar nada para o senhor, mas... eu sinto que ainda não
estou pronto...
- Claro, claro - com um movimento longo, Cirus
devolveu o jornal à mesa e passou a mão sobre seus cabelos,
seu rosto demonstrando pura frustração - É só que... eu quero
que você saiba que pode contar comigo! Pra qualquer coisa!
- É claro que eu sei que posso contar com o senhor
pra qualquer coisa - resmunguei, começando a sentir o
sangue fluir sobre a minha face - além do mais, quem
acreditaria em mim se eu dissesse o que eu vejo, na verdade?
Estamos condenados a morar juntos pelo resto de nossas
vidas.
Por um breve instante, pude ver a expressão de Cirus
se descontrair e a sua risada gutural começar a ser formar no
fundo do peito. Quando ela finalmente atingiu a superfície,
toda a tensão que parecia pairar sobre as nossas cabeças veio
abaixo, como se as gargalhadas produzidas pelo meu pai
fossem a única coisa capaz de expulsá-la. E aquilo me
contagiou também. Sem perceber, eu já estava caindo de rir,
as lágrimas incontroláveis rolando pelas minhas bochechas.
- Nossa garoto, esse seu... ''otimismo''... é um
verdadeiro estimulante – disse Cirus, enquanto enxugava os
cantos de seus olhos com os punhos da camisa - Devia usá-lo
em sua escola.
- Escola... ?! - perguntei aéreo, olhando por puro
instinto para o grande relógio pendurado na parede da
cozinha - Droga, perdi a hora!
- Pode deixar... - Cirus gritava para mim, enquanto
voava de volta para o meu quarto para pegar o casaco e o
material - ... eu te levo até lá antes de terminar a palavra
''atrasado''.
Dito e feito. Foi só eu meu encostar no banco do
carona de nosso velho Mustang 64, que me pai disparou pela
rua como um louco alucinado, os pneus do carro chiando
perigosamente contra o asfalto. E assim como prometera,
antes que eu pudesse soletrar qualquer coisa, estávamos
derrapando em frente ao portão principal da Academia
Constantine.
Confesso que, mesmo depois de todos esses anos, eu
não conseguia me acostumar ao jeito ''adolescente'' que Cirus
dirigia. Muita das vezes, em situações iguais a esta, eu me via
como o pai racional e reacionário, e ele como o filho rebelde
e cabeça dura.
- Destino final!
Com uma piscadela marota, Cirus puxou o freio de
mão e abriu a porta do carona, seu típico meio sorriso
estampando suas feições. Ele nem parecia abalado por ter
quase atingido um lampião de rua com a traseira do Mustang,
e nem um pouco culpado por ter ultrapassado o limite de
velocidade em uma área escolar - algo bem diferente de mim.
Eu precisei de uns dois minutos para me recuperar,
murmurar um fraco ''obrigado'' e sair do automóvel. Assim
que coloquei os pés na calçada, o Mustang avermelhado
acelerou e partiu, se transformando em um borrão até
desaparecer na esquina.
- Tchau pra você também - falei, enquanto fechava o
meu agasalho e seguia na direção do antigo prédio a minha
frente.
Era mais uma manhã fria como de costume, mas
diferente do que se pode esperar, o céu estava claro e azul,
pontuado por gigantescas nuvens repolhudas. A fraca
claridade produzida pelo sol dava a Ventura um colorido
estranho, como se a cidade toda fosse uma enorme aquarela
viva. Sempre que eu via aquela imagem, logo me lembrava
do que o nosso cartão-postal costumava dizer: ''A beleza da
Primavera combinada com o clima do Inverno, durante todo
o ano''. Mas nem a paisagem mais bela do mundo poderia me
fazer esquecer do horror que teria que enfrentar durante
metade do meu dia.
Assim que me aproximei dos portões da escola, avistei
a pessoa que eu menos queria encontrar logo pela manhã:
Oliver Nigro, rodeado por seus asseclas, encostados
preguiçosamente no corrimão da escadaria de entrada,
enquanto exibiam para todos os seus agasalhos caros por
sobre o paletó vermelho da Constantine. Oliver, único filho
do Diretor Nigro, sempre se achou o dono da escola. O pior,
parecia que a maioria dos alunos também achavam. Desde
pequeno, ele parecia ter me escolhido como seu ''saco de
pancadas'' preferido, me constrangendo na frente dos outros
e me extorquindo pelos cantos, sempre ladeado por seus
amigos mais intimidadores.
É claro que, se eu quisesse, já teria dado um fim nesta
situação a muito tempo. Mas o que aconteceria se eu,
finalmente, desse o troco em Oliver? Sem sombra de dúvidas,
era uma idéia tentadora. Mas não seria nada ''legal'' de se ver.
Então, tudo o que eu podia fazer era abaixar a cabeça e aturar
tudo calado, como um bom garoto. E Deus sabe o quanto eu
tive que me controlar para não perder a controle e fazer uma
besteira.
Seguindo a risca o meu plano de passar o último
semestre na escola da forma mais indolor o possível, evitei de
passar na frente do ''Sr. Meu Cabelo Loiro-brilhante é
Natural'' e me encostei no tronco de uma árvore próxima.
Ainda faltavam três minutos para a sineta tocar, e cada vez
mais a calçada frontal da escola se enchia de alunos e
professores esperando o começo das aulas.
Foi quando o que ninguém esperava aconteceu.
Cruzando a rua em direção ao pátio da Constantine,
um garoto nunca visto antes seguia lentamente na direção de
Oliver e seu grupo. Era um tipo que, só de olhar, você sabia
que não tinha nascido na cidade, e era o único em toda a
quadra que usava um par de tênis Converse ao invés dos
sapatos antiquados do uniforme.
O rapaz era alto e magricela, sua cabeleira lanzuda
caía desgrenhada sobre a testa e sua pele morena tinha um
tom pálido doentio, como se não tomasse um banho de sol à
tempos. Não fazia o tipo das pessoas que andavam com
Oliver, isso eu tinha certeza. Mas não havia uma alma viva
que eu conhecia que se aproximava dos Privilegiados sem ser
convidado.
Além de todos esses detalhes, parecia que eu conhecia
o novato de algum lugar. E, não sabendo bem o por quê,
aquilo chamou minha atenção. Acho que foi a ousadia do
garoto, ou o espanto de Oliver ao vê-lo se aproximando, mas
de uma forma ou de outra, eu precisava saber o que
aconteceria.
Sabe, eu podia reclamar bastante desta coisa de ser um
Arcano - tenho os meus motivos. Mas quando eu precisava,
ter nascido com isto realmente era uma mão na roda. Hoje é
um exemplo. Se eu fosse um garoto normal, não poderia
escutar nada: a barulheira juvenil de pré-aula era quase
ensurdecedora. Mas como eu não era, tudo o que eu tinha a
fazer era me concentrar e localizar o ponto onde o som ao
qual eu estava procurando era produzido e... ''voilá''! Eu
estaria ouvindo tudo da forma mais nítida, como se estivesse
participando da conversa.
E foi exatamente isto o que eu fiz.
O estranho se aproximou tão rápido de Oliver que eu
quase perdi o começo da cena. Pelo visto, aquele era o
primeiro dia de aula para o rapaz, e tudo o que ele estava
fazendo era pedir ajuda para o primeiro veterano que
encontrava - que por acaso era O Veterano. Um engano fatal.
- Você está me perguntando aonde é a secretaria? -
perguntou Oliver, a voz carregada de irônia e falsa surpresa -
Vem cá, está me achando com cara de Balcão de
Informações?
Os Privilegiados caíram na gargalhada. Alguns
soltavam piadinhas ofensivas para o novato. A maioria das
pessoas que estavam perto da escada pareciam ter parado
para ver Oliver se fartar com a sua mais nova presa. Porém,
novamente contrariando a lógica local, o rapaz também ria
com a situação.
- Ai, Droga! Mil desculpas - murmurou o estranho,
com uma voz que indicava nenhum tipo de arrependimento
- é sério, como eu pude ser tão estúpido e não reconhecer
vocês?
Subitamente, as risadinhas pararam.
- Ah, por favor, poderiam me dar um autógrafo?
- Um...um autógrafo?! - gaguejou Oliver, desta vez
realmente surpreso.
-Mas é claro! - exclamou o novato, um sorriso
brilhante iluminando seu rosto - Sabe, eu achava que esta
história era puro clichê de filme adolescente, mas conhecer o
Rei do Baile Sem Coração e os seus Capangas Descerebrados
em carne e osso realmente é uma honra!
No mesmo instante Oliver se levantou, o punho
preparado para desferir o soco. E no mesmo instante, o
Diretor Nigro apareceu no topo da escadaria, salvando o
novo aluno com um ''timing'' que ele nunca teve com
nenhuma outra vítima de seu filho.
- Líon, aí está você, meu rapaz! - exclamou o Diretor,
abrindo os braços na direção do jovem - Pelo visto, já está se
enturmando! Não é mesmo, Oli?
Tive que me controlar para abafar o riso.
Era óbvio que Oliver e o garoto chamado Líon nunca
seriam amigos. E mais óbvio ainda era a patética tentativa do
Dir. Nigro de parecer simpático ao aluno. Ele não era
simpático. Pelo contrário, parecia haver uma competição
entre ele e o filho para saber quem conseguia ser mais
intragável. Só podia haver um motivo para essa repentina
mudança de personalidade, e qualquer que fosse, não deveria
ser nem um pouco nobre.
- Venha, eu mesmo irei apresentar as instalações da
Constantine para você... Ou prefere que o meu filho o guie?
Durante um milésimo de segundo, pude ver a
hesitação iluminar os olhos castanhos de Líon. Eu
compreendia bastante. O Dir. Nigro não era exatamente o
tipo de pessoa que você confiava a primeira vista. Nem à
segunda vista, falando com sinceridade. Seus cabelos
grisalhos e desgrenhados, a barba por fazer, as imperiosas
feições leoninas – todo o conjunto parecia refletir uma
esperteza com um quê de maligna. Porém, por mais suspeita
que fosse a impressão que o Diretor estava causando,
qualquer coisa no momento seria melhor do que a fúria
invisível que Oliver emanava.
Sem escolha, Líon subiu rapidamente a escadaria e se
postou diante do administrador geral da Academia.
- Muito Bem - Com um gesto largo, o homem enlaçou
os ombros do rapaz, o conduzindo de uma forma imperiosa
para dentro do prédio ainda vazio - Então, como está se
sentindo? Onde está a sua irmã?
- Serina não pode vir hoje - respondeu Líon, o
desconforto transparente em sua voz - Acho que ela acordou
pouco disposta.
Com um leve aceno de compreensão, o Dir. Nigro
indicou o caminho à frente e levou o garoto para longe de
todos.
Quando voltei a minha atenção para Oliver, ele
continuava parado no mesmo lugar - chocado pelo
comportamento do pai, enraivecido pela perda de sua
primeira vítima. Só depois de um cutucão de um dos amigos
brutamontes ele pareceu voltar a si, justo quando eu me
recuperava de um ataque de riso que acabava de ter.
- Está sorrindo por quê, Mestre dos Esquisitos?
A sineta impediu a resposta mal criada que eu estava
prestes a dar. Mas não me importava. De uma forma
inesperada, aquele meu último semestre na Academia
Constantine prometia.
44
45 3. S A L V A V I D A S
Antes de tomar coragem para entrar no prédio principal da
escola, decidi conferir mais uma vez os horários do meu
último semestre.
Segunda Feira:
1° tempo - Ed. Física.
Olhei para o papel em minhas mãos com extremo mal
humor. Eu não suportava as aulas de Ed. Física. De todas as
matérias, acho que ela era a única que ficava em primeiro
lugar na lista de ''Coisas Que Mais Parecem Uma Tortura
Diária''.
Mas não me leve a mal - eu não sou nemhum nerd
descoordenado. O principal motivo que me fazia odiar as
aulas de Ed. Física - logo, tudo relacionado a ela – era
bastante simples: por ser um Arcano, eu nunca pude
realmente praticar coisa alguma.
Imagine correr, saltar, nadar e fazer outras coisas
melhor do que qualquer um em sua escola e não poder nem
ao menos demonstrar um terço disto... Era frustrante! Eu
poderia calar a boca de muita gente, principalmente de
Oliver e sua gangue, mas tudo o que eu podia fazer para não
dar bandeira era entrar lá e fingir ser um perdedor total.
Perfeito, não acha?
Por isso que, quando eu finalmente resolvi deixar o
meu abrigo debaixo da árvore, meu ânimo estava no chão. Eu
estava cansado de fingir ser algo que eu não era.
Logo que eu cruzei o portão de entrada, decidi seguir
com pressa para os vestiários. O corredor estava
completamente tomado por estudantes, e sem perceber, eu
era conduzido pelo fluxo de gente em direção a Ala Norte da
Academia Constantine.
A escola era formada por um conjunto de prédios
antigos, com direito à tijolos expostos e uma Torre do
Relógio na construção principal. As aulas de Ed. Física eram
realizadas no lado mais distante do campus, em uma área
fechada a qual eu chamava carinhosamente de ''Pavilhão de
Tortura''.
Assim que eu cheguei ao portão do Pavilhão, fui
recebido pela bela - e nem um pouco simpática – Treinadora
Kara. Ela usava o agasalho oficial da escola por cima do que
pareciam ser roupas de banho. Seu cabelo negro estava preso
bem firme à um coque, e seus olhos rasgados estavam
contorcidos na costumeira carranca severa.
- Até que fim as primeira mocinha chegou para a aula
- disse a Treinadora, me olhando como se fosse capaz de me
fulminar vivo - Ande, vá se vestir... Hoje a aula vai ser na
piscina!
- Na.. na piscina? - gaguejei, sentindo o sangue se
concentrar furiosamente nas minhas bochechas.
- E você por acaso é surdo? - resmungou Kara.
Sem pensar duas vezes, fiz o que a treinadora havia
pedido. Esta era a exata reação de qualquer um depois de se
encontrar com a professora de Ed. Física. Sinceramente, eu
achava que ela teria se dado muito melhor seguindo carreira
em algum lugar mais rígido, tipo o Exército... mas é claro que
não tinha intenção alguma de compartilhar esta minha
opinião com ela.
Com relutância, troquei o paletó vermelho pelos
trajes de banho da mesma cor, corando furiosamente só de
imaginar alguém me vendo vestindo estas coisas - o que me
lembrava que este era um dos motivos que não me faziam
gostar da aula: o uniforme.
Nem tanto o tradicional - feito para as atividades na
área poliesportiva - e sim o traje de banho. Ele é vergonhoso,
é sério. Toda vez que éramos obrigado a vestir estas ridículas
sungas pretas junto com a camisa regata cor-de-tomate, as
garotas se acotovelavam aos montes na porta do vestiário
para conferir nossas... habilidades. E quando digo conferir,
estou falando em conferir mesmo - sem pudor algum, e com
direito a comentários.
Arrepiado só de imaginar passar por esta situação
novamente, corri para a beira da piscina, tentando esperar
com paciência a hora que a aula iria começar. Só então
percebi que o meu desconforto era cada vez mais palpável. A
cada olhar que a Treinadora Kara lançava em minha direção,
era um gemido que eu produzia.
Depois de mais cinco minutos, a turma se encontrava
pronta e em formação diante da Treinadora. Ela caminhava
imperiosamente a nossa frente, como um General em revista
às tropas. Seu andar era firme e duro, e eu podia jurar que a
cada passo que ela dava no piso de mármore, as águas na
beira da piscina tremeluziam.
- Ora, ora, ora... se não é a minha adorável turma de
formandos - a Treinadora Kara parou diante de nós, com
uma inegável expressão de satisfação sádica. Seus olhos
faíscavam de uma maneira sombria, e ela parecia pronta para
nos inflingir uma longa seção de dores e terror.
Porém, antes dela poder continuar com seu
terrorismo psicológico, as portas do ginásio aquático foram
abertas tão inesperadamente que surpreendeu não só a
professora como também toda a classe.
- Diretor Nigro!!! - exclamou a Treinadora, enquanto
admirava estarrecida a figura leonina que invadia o pavilhão
- Que visita inesperada... Como posso ajudá-lo?
Com um leve sorriso, o administrador se aproximou
de onde estávamos e abrangeu a todos com um balançar de
cabeça que pretendia ser paternal.
- Ora, minha doce Kara, não se preocupe com nada...
- pigarreou o diretor com uma piscadela marota - Não estou
aqui para inspecionar suas aulas. Para falar a verdade, só
estava apresentando o maravilhoso campus da Constantine
para a nossa mais nova aquisição escolar!
Ainda sorridente, o homem se virou e fez um
pequeno sinal para a sombra escura que o esperava na porta
do ginásio. De início, eu não podia dizer quem era. Tudo o
que eu via era uma forma alta e magra recortada contra o sol
da manhã, que parecia não estar muito animada em se
aproximar do nosso grupo. Mas, depois que o diretor se
mexeu novamente e encorajou a pessoa a chegar mais perto,
eu pude reconhecer o novato sem nem olhar para o seu
rosto.
Líon, que já usava os trajes de banho vermelho-
tomate, caminhou incomodamente até parar entre a
treinadora e o administrador da escola. O constrangimento
parecia estar estampado na face do garoto, e como se pudesse
ser possível, sua pele castanha parecia estar mais pálida do
que o normal.
- Treinadora... formandos... gostaria que vocês
conhecessem e cumprimentassem nosso jovem companheiro,
Líon Biel!
Sem disfarçar o movimento, o Dir. Nigro empurrou o
garoto para o centro do círculo formado, numa tentativa
mais do que furada de fazer o novato se enturmar com os
novos colegas de classe. Sem saber o que fazer diante da
situação, Líon reuniu toda a coragem que tinha, se
empertigou e tentou lançar um ''positivo'' para a turma a sua
volta - mas tudo o que conseguiu foi um olhar carrancudo de
Oliver e uma conferida de cima à baixo das garotas mais
próximas.
Percebendo tardiamente que não tinha como a cena
melhorar, o administrador abrangeu novamente a turma com
o olhar e começou a recuar lentamente do grupo.
- Bom, Kara, pelo visto o meu trabalho por aqui já
está feito! - comunicou o diretor, o rosto púrpura como uma
beterraba - Acho que nos veremos na Sala Reservada durante
o intervalo, não? - sem nem esperar por uma resposta para a
pergunta, o homem acenou uma última vez para a professora
e virou-se sem cerimônia alguma para tomar o caminho de
volta para a saída do ginásio, o andar tão apressado que mais
parecia que ele queria fugir do local o mais rápido que podia.
No instante em que a porta de metal se fechou
novamente, a Treinadora Kara voltou a sua atenção para a
classe com força total - o seu ''olhar assassino'' mais poderoso
do que nunca.
O novato, que ainda não havia sentido a áurea letal
que emanava da professora, tremeu ligeiramente da cabeça
aos pés - acompanhado por todos os alunos, que pareciam ter
prendido a respiração ao mesmo tempo, como se pudessem
pressentir o que a mente engenhosa da professora poderia
estar maquinando.
-Como vocês devem saber - prosseguiu a Treinadora -
na minha matéria, o primeiro bloco do último semestre dos
formandos da Academia Constantine é dedicado para as
atividades aquáticas.
Atividades Aquáticas.
Não sabia bem o por quê, mas eu não havia gostado
nem um pouco do tom que a professora usou para falar esta
frase. Era quase como um agouro... como se algo realmente
ruim nos esperasse na piscina.
Besteira, pensei, enquanto sacudia a cabeça e
continuava a ouvir o que ela dizia.
- E já que posso ver que vocês estão devidamente
preparados - ela inclinou-se brevemente para Líon, um
sorriso maligno iluminando seu rosto oriental - acho que
posso revelar que nossa primeira modalidade será: O Salto
em Altura!
Como esperado, a turma inteira se encolheu diante da
''novidade'' da professora.
Salto em Altura? No que ela estava pensando? Posso
afirmar com segurança que nenhum de nós - incluindo eu -
nunca havíamos pulado de lugar algum. Quanto mais de uma
plataforma de concreto gigante à beira de uma piscina ''não
tão'' funda.
- Hei, por que estas carinhas tão preocupadas? -
perguntou a Treinadora, com uma risada cristalina - Eu vou
chamar um nome de cada vez, e aí, vocês só terão que subir
na plataforma e saltarem para água!
Uau, ela falando desse jeito fazia parecer tão simples...
uma pena que não era.
- Hum, Treinadora? - Oliver se destacou do grupo,
seus ombros rígidos denunciando o tremor que ele tentava
ocultar - Nós vamos ganhar algum... sei lá... bônus por tarefa
concluída?
-Bônus? - resmungou Kara, o rosto fechado – Superar
os próprios medos já vai ser um bônus e tanto. Andem,
formem uma fila descente!
Sem perder tempo, formamos uma fila única e por
tamanho diante da plataforma. A treinadora Kara se postou
próxima a escada que levava ao topo da área de salto, seus
olhos varrendo a longa lista com os nossos nomes, o papel
preso à uma prancheta vermelha com o símbolo da Academia
Constantine.
Depois de um tempo concentrada, ela ergueu os olhos
da listagem e anunciou o primeiro nome que iria se destacar
do grupo e realizaria a tarefa:
- Alice Corvel!
Alice, uma garota baixa e magricela, saiu logo da
frente da fila e subiu na plataforma. Todos, até mesmo
Oliver, pareciam apreensivos diante do que estava por vir.
Sem se abalar, ela se posicionou à beirada do declive,
ergueu os braços esguios e pulou.
Durante o pequeno tempo em que o corpo frágil da
veterana esteve no ar, a turma inteira prendeu a respiração.
Só após que a cabeleira ruiva se destacou das bolhas
produzidas na água foi que o grupo se permitiu relaxar, e os
amigos mais chegados da garota esgueiraram para a beira da
piscina e à ajudaram a sair de lá.
- Ora, até parece que foi a coisa mais difícil do
mundo! - retrucou Oliver para os seus seguidores, a voz
abafada pelo barulho dos aplausos da turma.
- Muito bom, jovem Nigro... - a treinadora Kara
riscou o nome de Amanda da lista e virou-se para encarar o
filho do diretor - Isto mostra que o senhor deve estar
querendo ser o segundo candidato à enfrentar nossa pequena
prova, não?
Oliver congelou no lugar. Estava claro que o seu
comentário não significava nada além de pura inveja. Mas
como a professora poderia ser tudo, menos injusta, era óbvio
que ele agora se via obrigado a se apresentar realmente como
segundo candidato para saltar.
Reunindo toda a dignidade que podia, Oliver se
encaminhou para a plataforma, seu olhar distante só
ressaltando seu arrependimento por ter falado na hora
errada. Com um ligeiro aceno de cabeça, ele se curvou e
saltou para o fundo da piscina.
Confesso que, por um milésimo, eu fiquei um tanto
preocupado com a segurança física dele. Mas logo depois que
o vi se erguer na beirada mais distante do tanque, com seu
habitual sorriso presunçoso no rosto, qualquer traço de
solidariedade que eu podia ter sentido se esvaiu pelo ralo
mais próximo.
- Eu disse que não era nada! - Oliver se vangloriou,
retirando o cabelo ensopado da frente de seus olhos, ao
mesmo tempo em que exibia-se para as garotas da classe.
Mais três alunos - mais três saltos. Com o passar do
tempo, pude perceber que a tarefa não era tão assustadora
quanto eu imaginava.
Era difícil, sim, mas não impossível.
Cada vez mais nomes eram chamados e, aos poucos, a
fila diminuía. Sentia que o momento em que eu seria
escolhido estava se aproximando e, por mais envergonhado
que estivesse, estava pensando seriamente se não apelaria
para uns de meus dons. Sim, eu sabia muito bem que era
errado - uma trapaça - mas na verdade, estava começando a
ficar cansado de fingir ser um ''garoto tapado''.
A treinadora Kara terminou de cumprimentar Daniel
Maltha por seu salto espetacular e voltou a sua atenção para a
prancheta. Fiquei parado, a determinação em pessoa,
esperando escutar o meu nome se anunciado em voz alta.
Mas não foi isso que aconteceu.
A professora levantou a cabeça, inspirou rapidamente
e chamou: Líon Biel.
Foi inesperado. Líon piscou umas duas vezes até
perceber que era ele quem iria saltar. Sem acreditar, o novato
olhou para todos ao seu redor, uma súplica silenciosa por
ajuda desfigurando-lhe o rosto. Tentei fazer uma careta
encorajadora, mas só o que consegui foi parecer estar em
choque. Desarmado, o rapaz caminhou lentamente para a
plataforma, os ombros caídos e o ânimo no chão. A cada
degrau que ele subia, a pouca cor que ele tinha se desvanecia.
Assim que o rapaz chegou ao topo da plataforma,
senti um calafrio estranho. Não era igual a nenhuma
sensação que eu havia sentido antes: era pior. Como um
cântico agourento, o medo chegou e me pegou, engolfando-
me em uma neblina cinza e gélida. O terror acelerou as
batidas de meu coração, e as sombras no ginásio se
atenuaram, transformando-se em formas estranhas e
tenebrosas na parede.
''Droga, o que está acontecendo?'', me perguntei,
sentindo o pânico correr pelas minhas veias.
Sacudi vigorosamente a cabeça, uma fraca tentativa de
recuperar a pouca sanidade que tinha. Minha visão estava
turva, a audição abafada, e o estranho palpitar no meu peito
parecia me puxar até o topo da plataforma, onde Líon se
preparava para pular.
Sem me dar conta do que estava fazendo, olhei na
direção do novato, procurando pelo sinal que o meu corpo
emitia... E foi neste momento que eu o vi.
Para meu espanto, Líon não estava sozinho na
plataforma.
Logo atrás dele - parado com um olhar maligno -
havia um rapaz alto e forte, de cabelos tão vermelhos quanto
o fogo. Ele não usava nada além de uma calça comprida de
brim preta, e eu não sabia o por que, mas ele me parecia
terrivelmente familiar.
De início eu não conseguia encontrar uma razão para
aquele cara estar parado junto com o novato em cima da
plataforma. Mas, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, a
minha ficha finalmente caiu.
No exato momento em que Líon tencionava os
joelhos, na beira da grande murada, o estranho se aproximou
e - com uma satisfação sombria - empurrou o garoto...
fazendo o corpo do novato se precipitar e cair erroneamente
em direção à piscina.
Sem pensar em nada, me libertei da força que me
pregava ao chão e corri o mais rápido que pude. Para meu
desespero, vi o rapaz girar pelo ar como uma gigantesca
boneca de pano, suas mãos e seus braços balançado
estranhamente em volta do corpo.
Me joguei na piscina ao mesmo tempo em que
escutava o som aterrador do choque de Líon com a massa de
água gelada. Com um forte arrepio na espinha, prendi a
respiração e senti o impacto do meu próprio mergulho sobre
a pele.
Quando abri os olhos, tudo em minha volta era de um
azul celeste, surreal. Mergulhei mais à fundo na piscina, as
bolhas produzidas pelos meus movimentos atrapalhando a
minha busca. Então eu o encontrei - esparramado no chão do
tanque, o rosto sereno como se dormisse dentro da água.
Foi assustador o ver ali imóvel, seus cabelos revoltos
contra a água, sua cabeça balançando preguiçosamente sobre
o pescoço.
Com mais duas braçadas, cheguei perto o suficiente
para poder ergue-lo com minhas mãos. Ao tocar o seu pulso,
percebi que os batimentos de Líon ficavam cada vez mais
lentos. Não perdendo tempo, o puxei para cima, lutando
internamente contra a sensação de derrota que me consumia.
Depois de abraçá-lo pela cintura, nadei com todas as
minhas forças para a superfície. Antes de chegar ao topo, eu
já podia ver os rostos da Treinadora Kara e dos outros alunos
debruçados na margem da piscina, a preocupação e o medo
visíveis mesmo com o rodopiar da espuma à minha frente.
Antes do esperado, a luz artificial do Pavilhão cegou
os meus olhos e uma algazarra de sons incompreensíveis
tapou os meus ouvidos. Incontáveis pares de mãos içaram o
meu corpo e o de Líon para fora do tanque, me fazendo
expelir ruidosamente todo o ar que havia prendido durante o
tempo em que ficara de baixo d'água - e me despertando por
completo to torpor momentâneo no qual estava envolvido.
Sem paciência, escapei rapidamente do grupo que se
inclinava sobre mim e me arrastei para o lugar onde Líon
recebia os devidos cuidados.
- Ele está bem? - perguntei à professora, minha
garganta seca como se estivesse sendo consumida por
chamas.
- Eu não sei explicar - sussurrou a Treinadora Kara,
examinando o pulso do novato com uma expressão de
angústia.
Com o coração na mão, me levantei e procurei pelo
estranho que havia empurrado Líon da plataforma contra a
piscina. Girei o meu corpo em todas as direções, tentando
encontrá-lo aonde quer que estivesse, mas tudo o que via era
o olhar preocupado dos meus companheiros de classe.
Completamente vencido, praguejei uma maldição
para mim mesmo e me sentei novamente ao lado do garoto.
Seu rosto continuava com uma cor pálida estranha, e seus
olhos fechados eram como cadeados de um diário secreto. Eu
não podia imaginar quem poderia querer o mal dele, mas
qual fosse a identidade do estranho, eu iria encontrá-lo.
62
63 4. E S P E L H O
- Acho que devemos levá-lo para a enfermaria, não? - Alice
Corvel espiava alarmada a cena por cima do braço de Daniel
Maltha, as mãos apoiadas ingenuamente no ombro
musculoso do rapaz.
- Boa sugestão... - concordou a Treinadora Kara,
avaliando cada aluno da turma com seus olhos puxados –
Mas deve ser alguém que consiga carregar o garoto daqui até
o Prédio Principal com o maior cuidado possível.
- Eu posso levá-lo - me ofereci, mandando a cautela às
favas.
Sem esperar o consentimento da professora, me
levantei em um pulo e ergui Líon como se segurasse um
recém-nascido. No mesmo ritmo, me desviei das pessoas ao
nosso redor e segui na direção da saída. Com um empurrão,
abri uma das folhas de metal que formavam o portão do
ginásio, andando tão apressado que nem parecia que
carregava uma pessoa de quase 80 quilos no colo.
Mas eu carregava.
E por onde passava, as pessoas pareciam notar este
pequeno detalhe também. Com um suspiro, me esforcei para
fazer uma careta de cansaço enquanto atravessava às pressas
o campus da escola, indo em direção à Enfermaria no Prédio
Principal. Isto não devia importar agora, mas por mais
preocupado que estivesse com o bem estar do novato, não
podia de forma alguma deixar que alguém suspeitasse de
mim mais do que já era de costume.
Mesmo com os solavancos que eu dava pelo caminho
de pedra no pátio, o rapaz não se movimentava um
milímetro sequer. Seus olhos continuavam cerrados
melancolicamente e sua respiração ainda era pesada, como se
ele se esforçasse para fazer uma tarefa tão simples. Não
conseguindo mais conter a agonia, comecei a murmurar cada
vez mais alto os meus pensamentos, esperando
ingenuamente que aquilo ajudasse o garoto em meus braços
de algum jeito.
-Ah, vamos lá cara, reaja! - resmunguei, no momento
em que eu entrava no corredor da enfermaria.
- Reagir a quê? - uma voz seca me interrogou, me
fazendo parar com o susto.
Olhei abismado para o novato, não acreditando no
que havia escutado. Mesmo conservando a palidez anormal e
respirando com clara dificuldade, Líon parecia cem por cento
melhor. Seus olhos, grandes e curiosos, agitavam-se em todas
as direções e seus braços magros e compridos tentavam
inutilmente se livrar do aperto inconsciente que eu dava.
- Hei, o que está acontecendo aqui? - perguntou Líon,
a confusão estampada em seu rosto redondo.
No mesmo instante, o prof. Novaz - responsável pela
enfermaria e pelas aulas de Biologia - veio correndo na
minha direção, obviamente já avisado por telefone pela
Treinadora Kara.
- Pode deixar, Adrian - ordenou ele, tomando o
novato dos meus braços e voltando para a sala às suas costas -
Eu cuidarei dele partir de agora.
- Não, eu vou com vocês - disse em voz alta, num tom
mais rude do que pretendia.
O professor se virou brevemente e concordou com
impaciência. Sentindo um estranho puxão na beirada do
estômago, segui os dois pelo corredor e entrei sem
cerimônias na enfermaria. A sala era branca e contava com
apenas uma maca, um armário para os medicamentos e uma
pequena mesa cheia de papéis que deviam pertencer ao
socorrista.
Com uma habilidade impressionante, o jovem prof.
Novaz pôs Líon cuidadosamente sobre a maca, sem
demonstrar ter consciência de minha presença logo atrás
dele. Em poucos minutos, o homem examinou a garganta do
novato, mediu sua temperatura, verificou a pressão e escutou
seus batimentos cardíacos.
Líon observava tudo com uma feição curiosa,
parecendo extremamente encantado com a situação. Nem
parecia que aquele garoto havia quase partido desta para uma
melhor há poucos instantes. Percebendo a minha expressão
especulativa, o prof. Novaz se afastou do paciente, deu a
volta na pequena enfermaria e sentou-se pesadamente na
cadeira logo atrás de sua mesa.
- Bom - suspirou ele, arrumando a papelada sob a
bancada - pelo visto, toda essa confusão não passou de um
susto.
- Um susto? - Eu mais uma vez falava com o socorrista
mais alto do que na verdade queria - Professor, o Líon
despencou de quase oito metros de altura!
- Eu sei muito bem de onde o aluno Líon caiu - o prof.
Novaz pareceu encontrar um papel pelo qual estava
procurando e se levantou - Mas, pelo exames preliminares,
tudo indica que ele está perfeitamente bem. Agora, se vocês
me permitirem, irei avisar ao responsável do jovem sobre o
ocorrido...
-Não! - Líon exclamou, a voz ainda seca, porém
demonstrando estar bastante consciente da situação.
- Não?...Mas por quê? - o professor se deteve à porta
da enfermaria, fazendo uma careta de espanto à reação
inesperada (e exagerada) do aluno.
- É que... é que... bem - o novato ergueu-se devagar,
encostando sua cabeça na parede branca e colocando suas
pernas para fora da maca - Meus pais devem estar acabando
de descarregar as nossas coisas na casa nova e... acabamos de
chegar de Dumont... bom, não queria atrapalhar eles com
uma coisa tão boba.
O homem continuou parado, ainda sem entender
aonde o rapaz queria chegar.
- Senhor, acho que deve saber... - suplicou Líon,
passando as mãos pelos cabelos molhados, o constrangimento
estampado em cada gesto - Meu pai e minha mãe passaram
por bastante dificuldades nesses últimos tempos... A última
coisa que eu quero é estragar um raro dia de calmaria para
eles com uma coisa que, segundo o senhor, nem teve tanta
importância assim!
O discurso de Líon parecia ter pego o prof. Novaz de
calças curtas. Por um segundo, ele pareceu refletir sobre o
que o garoto dissera - como se decifrasse uma misteriosa e
difícil mensagem cifrada - até menear molemente a sua
cabeça, demonstrando ter perdido a pequena batalha mental
na qual travou consigo mesmo.
- Se é assim que você quer... - ele entrou de novo na
sala, detendo-se rapidamente na sua pequena bancada – Mas
você vai me prometer uma coisa: enquanto eu estiver na
secretaria resolvendo alguns negócios, o senhor vai ficar aqui
descansando, O.k.?
- Tudo bem - concordou Líon, claramente
entusiasmado.
- Hum - resmungou ele, olhando com cautela para o
estranho entusiasmo do novato – Adrian, se não for pedir
muito, será que poderia ficar de olho neste rapazinho para
mim, por favor?
- Sim, professor, é claro que eu fico - me prontifiquei,
saindo de perto da parede e me postando perto da maca onde
Líon continuava sentado.
O prof. Novaz encarou mais uma vez o rosto abatido
de Líon, viu as horas e deixou a pequena enfermaria com
passos largos. Logo após, o novato levantou-se da cama e,
com uma determinação assustadora, se virou na minha
direção e me observou - como se os seus olhos fossem na
verdade um par de detectores de mentira humano.
- Como você fez aquilo? - ele me perguntou, sua voz
ainda seca soando muito mais sinistra do que se estivesse com
o seu timbre normal.
- Fiz o quê? - devolvi com outra pergunta, sabendo
exatamente sobre o quê ele estava falando. Sem mistério
algum, eu podia ver a questão implícita bem diante de sua
testa castanha: Como eu tinha conseguido salvar ele, antes
mesmo que qualquer outra pessoa tivesse notado o que
realmente acontecera?
Bom, na verdade, nem eu sabia. É claro que
suspeitava que tivesse alguma coisa a ver com os meus dons
de Arcano. Mas a questão é que nunca havia sentido nem
presenciado algo como aquilo... nunca havia vivenciado uma
experiência que chegasse ao menos perto daquela. Pra ser
sincero, eu estava tão impressionado quanto Líon devia estar.
E era certo que ele estava.
Por um bom tempo ele me analisou. A sensação de ser
scaneado por inteiro, provocado pelo olhar inquisidor do
rapaz, permaneceu sobre mim no que me pareceu uma
eternidade. No fim, Líon me libertou do estranho poder de
seus olhos, parecendo - no mínimo - conformado com a
minha ''não resposta''.
- Obrigado - ele disse simplesmente.
- Não à de quê - eu respondi, só agora percebendo que
havia atravessado a metade da escola com um garoto nos
braços e vestido apenas com os ridículos trajes de banho
vermelho-tomate.
Parecendo entender o meu embaraço, Líon sorriu e
voltou a se sentar na maca de vinil negro. Ele arriou a cabeça
e sem querer acompanhei o seu olhar pelo piso claro da
enfermaria, completamente marcado por nossos pés
descalços e molhados.
- Me desculpe, acho que estou sendo rude – disse o
garoto de repente, obviamente tentando acabar com aquele
silêncio constrangedor – Eu me chamo...
- Líon Biel – completei sem pensar, antes mesmo que
o rapaz terminasse de falar – Eu estava no Pavilhão... quero
dizer, no Ginásio quando você chegou.
Rapidamente, o novato se interrompeu, o seu rosto
pálido ganhando um leve tom de roxo ao se lembrar da cena
embaraçosa que o Dir. Nigro o forçou à passar.
- Sinto muito, acho que agora quem foi rude fui eu –
continuei, percebendo na mesma hora a gafe que tinha
acabado de cometer – Por que não esquecemos estes últimos
instantes e começarmos do zero?... Bom, eu me chamo
Adrian.
- Prazer em conhecê-lo, Adrian – disse Líon,
meneando levemente a cabeça na minha direção como quem
faz uma reverência.
Assim que ele se reergueu, nós dois nos entreolhamos
e – sem nenhum motivo aparente – começamos a rir. Era
óbvio para os dois que nem ele e nem eu tínhamos muito
tato quando o quesito era ''relações interpessoais'', e se nós
continuássemos tentando, o estrago só seria maior. Como se
para provar esta teoria, aos poucos as nossas risadas foram
minguando. Ainda mantínhamos um riso cúmplice nos
lábios, porém a sombra do nosso silêncio pesado de pouco
tempo atrás começava a ameaçar reinar novamente na
enfermaria.
- Sabe, por que você não quis realmente chamar os
seus pais? - me ouvi interrogando, antes mesmo de pensar
em me refrear. Era algo estúpido para se perguntar, e eu
tinha plena consciência que só estava fazendo aquilo para
que o silêncio não caísse de vez sobre nós. Só que, além disto,
havia algo que estava me incomodando. Eu sabia que ele não
havia simplesmente escorregado... Mas eu tinha que conter a
minha língua para não falar demais.
- Acho que você, assim como metade dessa cidade,
deve saber, não? - ele murmurou, os olhos ainda detidos no
chão - Meu pai e minha mãe mal se recuperaram do meu
último susto... Não quero que eles saibam de mais um erro
meu.
- Não foi um erro seu! - rebati, tentando descobrir o
que Líon achava que eu sabia, ao mesmo tempo em que me
lembrava com clareza do que tinha acabado de acontecer. -
Você estava apenas fazendo o que a doida da Treinadora Kara
havia pedido quando...
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, eu
calei a minha boca. Só pela cara do novato, dava para ver que
eu começava a falar demais. De alguma forma sinistra,
ninguém além de mim havia visto o cara estranho na
plataforma. E aquilo começava a me assustar ainda mais.
Líon me encarou novamente, mas desta vez seu rosto
não indicava que ele me avaliava – e sim, indicava que ele
admirava o estranho fato de eu demonstrar estar preocupado
com o seu bem estar. O que, sem sombra de dúvidas, me fez
corar como um louco.
- Seus pais devem ter muito orgulho de você.
- Meu pai - corrigi, olhando tão atentamente para o
chão que podia vislumbrar as falhas nos rejuntes do piso.
- Droga, me desculpe - Líon se deu um forte tapa na
testa, esperando que isto soasse como uma forma de punição
para o seu deslize. Após um segundo, ele limpou a garganta e
prosseguiu - Se bem que... hoje em dia é muito normal
vermos pais separados. Em Dumont, eu tinha vários amigos
na mesma situação que a sua.
Mordi meus lábios com força, para tentar conter o
riso desenfreado que surgia de novo. Ele estava entendendo
tudo errado.
- Não Líon, meu pai não é separado... - expliquei,
conseguindo tirar minha atenção da trama de rejuntes – Ele
na verdade é viúvo.
- Pausa para o momento ''me abra um buraco no chão
que eu quero fugir!''- Líon deitou-se na cama com força, a
mão esquerda na testa e a direita em seu pescoço, tentando se
matar de duas formas diferentes. - Deus, eu não dou uma
dentro!
Me encostei na parede e esperei o novato terminar de
se auto-flagelar. No fim, ele se recompôs, respirando
lentamente e murmurando mais mil desculpas para mim.
- Está tudo bem - respondi com sinceridade - Eu não
tive muito contato com ela.
O que era cruel de se dizer, eu reconheço, mas era a
mais pura verdade. Só que isto fez com que, mais uma vez,
nós ficássemos calados - só encarando um ao outro – sem
saber como continuar.
- Quando foi que ela... você sabe, se foi? - eu podia
ver todo o arrependimento de Líon por perguntar algo tão
pessoal através apenas de sua expressão. - Se não quiser
responder, eu entendo! - acrescentou ele de forma rápida.
- Assim que deu a luz à mim. - respondi, mesmo
sabendo que não tinha nenhuma obrigação de contar aquilo
a ele.
Mas, no fundo, eu sempre quis contar aquilo.
Na verdade, eu sempre quis contar qualquer coisa
para alguém. E além do mais, Líon foi o único - além de
Cirus - a me fazer uma pergunta tão pessoal em todos esses
meus dezoito anos. Acho que ''devia'' essa resposta a ele,
como forma de gratidão por um momento tão incomum.
Ficamos em silêncio mais uma vez, os dois virados na
direção do armário de remédios, por um bom tempo. Assim
como acontecia todas as vezes que eu me recordava de minha
mãe, fechei os meus olhos e tentei puxar alguma lembrança
em que ela estivesse envolvida. E como sempre, só o nada
preenchia a minha mente - ocupado apenas pela imagem das
fotos espalhadas por nossa casa-de-bombeiros e pelo nome
presente em minha certidão de nascimento: Helena Regis.
- Acredite, se sua mãe soubesse o que você fez por
mim hoje, ela teria muito orgulho de você - a voz de Líon já
devia estar voltando ao normal, mas ao dizer aquilo, eu podia
jurar que ela havia falhado - Pode ter certeza disto.
Antes que eu pudesse agradecer, o prof. Novaz entrou
na enfermaria a passos largos, se postando mais uma vez à
frente de Líon e o examinando rapidamente.
- E agora, como você está?
- Acho que bem melhor - o rapaz encolheu os
ombros, a careta de curiosidade e inocência de volta a sua
face.
- Hoje realmente foi um dia difícil para você – o
professor sentou-se em sua mesa, pegou um pedaço de papel
com o timbre da Academia e começou a escrever - Por que
nós não aproveitamos e lhe damos uma folga?
Líon fitou o socorrista sem palavras. Em um pulo, ele
se levantou e pegou a licença assinada pelo prof. Novaz com
as mãos trêmulas e uma expressão arrebatada.
- Obrigado, obrigado, obrigado - ele repetia enquanto
me acompanhava de volta para o corredor, o rosto afogueado
de adrenalina. Nós começamos a caminhar para a saída
quando, num surto de inspiração, ele parou, girou nos
próprios calcanhares e se inclinou de volta para a enfermaria.
- Ah, senhor... - O rapaz se dirigiu novamente à sua
bancada, a face tristonha e abatida. - Posso lhe pedir um
outro favor?
- Claro que pode - O professor fitou Líon sem
entender.
- Hum, o senhor sabe que eu não quero fazer muito
alarde sobre o ''incidente da Ed. Física'' - ele revirou os olhos
deliberadamente, como se o seu quase afogamento estivesse
em um passado bem distante - Mas eu não tenho muita
certeza se consigo ir sozinho para casa...
Parecendo cansado e distante dali, o socorrista pegou
mais um papel timbrado, rabiscou de uma forma ligeira sobre
ele, e depois o entregou a Líon. Com um último sorriso, o
aluno agradeceu a ajuda e se voltou para mim, um brilho
triunfante iluminando o seu rosto.
- Aqui - ele me estendeu o papel, quando já estávamos
de volta ao corredor - sua carta de alforria por hoje.
Logo que eu terminei de ler o que havia escrito nele,
tive que parar de andar. Eu estava em choque. Não podia
acreditar no que estava em minhas mãos.
- Você arranjou para mim uma dispensa escolar? -
perguntei com a voz entrecortada pela surpresa. - Eu nunca
tive uma dispensa escolar em, tipo, toda a minha vida!
- Bom, para isso, você vai ter que me levar para casa -
ele levantou as mãos, como se isso pudesse ser um impasse -
mas, como depois vai ter um dia inteiro de folga... Acho que
estou meio que pagando a minha dívida por... bom, por tudo
o que você fez hoje!
Continuei parado no corredor, olhando do papel para
Líon. Após uns segundos, o novato estalou os dedos diante de
mim, olhou ao redor e disse:
- Hei, cara... Acho que você não percebeu que
estamos no meio do corredor, usando apenas sungas e
camisetas!
Sentindo um grande sorriso tomar conta do meu
rosto, acompanhei o rapaz de volta para os vestiários do
Pavilhão da Tortura, mais apressado do que antes.
Mesmo usando aquela roupa ridícula, eu me sentia
bem. Pois, se houvessem mais pessoas como o Líon
estudando na Constantine antes dele chegar - sem duvida
alguma - a Academia não teria sido o lugar infeliz que foi
para mim nestes últimos onze anos.
81 5. O A N J O
Líon e eu saímos do Prédio Principal da Academia
Constantine no exato momento em que o sino da torre do
relógio anunciava para todo o quarteirão o começo do
segundo período. O sol estava apino, mas como de costume,
o vento ártico varria a rua da escola, que se encontrava
deserta aquela hora do dia.
- E então - puxei assunto, enquanto terminava de
abotoar meu agasalho por cima do uniforme - você mora
muito longe daqui?
- Não muito - disse Líon - mas você não precisa
realmente me levar pra casa... Eu só estava brincando.
- Tudo bem, eu levo mesmo assim... - completei,
seguindo o caminho que ele tomava - vai que você atravessa
a rua sem a devida atenção e não tem niguém lá pra te salvar
do atropelamento iminente?
Olhei sarcasticamente para o novato, no mesmo
instante em que ele se virava para mim e me mostrava o dedo
médio - o que foi muito grosseiro, não nego, mas me fez cair
na gargalhada. Afinal, mesmo quando estava aborrecido,
Líon era uma pessoa fácil de se lidar. E diferente dos outros
garotos de Ventura, ele não parecia esperar que eu lhe
transmitisse algum tipo de doença mortal ou qualquer coisa
do tipo.
- Bom, não pode negar que há uma possibilidade... -
continuei, logo depois de ter certeza que ele parecia não estar
mais irritado. - e que seria realmente útil se houvesse alguém
por perto.
- Sabe, você tem razão - concordou Líon de má
vontade - São poucas as pessoas que tem a oportunidade de
conferirem o meu ''pendor para desastres'' logo no dia em
que me conhecem.
- Então devo ficar honrado? - perguntei, a expressão
sarcástica ainda em meu rosto e em minha voz.
Só pela careta de Líon, percebi que ele estava falando
sério quanto a história de ''pendor para desastres''. Sem
sombra de dúvidas, eu havia encontrado um concorrente
sério para o prêmio de Azarado do Ano. Só que tinha certeza
absoluta que a má sorte dele só não era maior que a minha
por um mero detalhe: Ele não precisava se preocupar em
esconde-la toda vez que botava os pés para fora da cama.
Depois de atravessarmos duas avenidas e percorremos
quatro blocos, entramos em uma rua calma e arborizada. Ela
era composta basicamente de residências altas e estreitas, os
jardins sem muro se resumindo a um quadrado na calçada, as
casas separadas umas das outras apenas por pequenos vãos
entre as paredes - assim como todas as áreas residenciais da
cidade.
Eu conhecia bem aquele lugar. Usando como
referência a vista panorâmica que eu tinha do meu telhado,
aquela parte de Ventura ficava atrás da minha casa, duas
quadras abaixo.
Era engraçado imaginar que, hoje pela manhã, eu não
estava com a mínima vontade de ir para a escola e, agora, eu
estava contando as horas para que o dia seguinte chegasse
logo. Como eu imaginaria que iria conhecer o primeiro aluno
decente da Constantine no meu último semestre lá?
Antes do esperado, nós já havíamos chegado à
residência de Líon e estávamos parados em frente à pequena
escada de entrada da morada dos Biel. Eu estava prestes a me
despedir do garoto quando algo surreal me paralisou: um
vulto escuro e baixo surgiu no batente da porta, um silvo
agudo escapando de suas presas à mostra. Antes que pudesse
pensar em fazer alguma coisa, a sombra negra arqueou o
corpo e saltou na minha direção, suas garras longas e afiadas
prontas para perfurarem o meu rosto.
Me preparei psicologicamente para sentir a dor aguda
do ataque... mas não foi o que ocorreu. Com uma agilidade
inesperada, Líon aparou o vulto com as mãos e o aninhou em
seu colo. Foi só então que eu percebi que a coisa que havia
acabado de tentar me atacar não passava de um gordo e feio
gato preto de olhos amarelos.
- Ai, ai, ai! O que foi isso Sortudo? - Líon ralhava com
o animal, mas o bichano continuava a me observar irritado -
O papai já não disse que não se deve atacar às visitas?!
- Papai? Sortudo? - eu sabia que meu rosto devia estar
em choque. E o gato continuava me encarando ferozmente,
os pelos da nuca eriçados e suas pequenas presas
arreganhadas como uma placa de aviso.
- Sim, ele é meu - respondeu o novato, ainda distraído
em sua tentativa de acalmar o felino - Ganhei de presente da
minha irmã, Serina... uma brincadeira com toda a história da
minha ''má sorte''.
Bom, se Líon estava tentando mudar a sua fortuna, eu
tinha absoluta certeza que ter um gato preto como bicho de
estimação não estava ajudando muito. Não que eu não goste
de gatos - pelo contrário, são eles que não gostam de mim!
Uma vez, quando eu era menor, um gato de rua
tentou arrancar os meus olhos só por que passei perto
demais. Depois do episódio, meu pai me explicou que
geralmente animais e insetos podiam reconhecer quando
uma pessoa era completamente normal ou era ''tocada'' por
algo sobrenatural. O único problema nisto estava no fato de
que geralmente os gatos (assim como a maioria dos seus
irmãos felinos) eram os únicos que não sabiam reconhecer
quando o ''toque'' significava ser algo bom ou ruim - o que os
deixam arredios e violentos sempre que se deparam com algo
que não consideram natural.
Resultado: não importa se você é um Arcano ou algo
muito pior, gatos sempre irão querer acabar com a sua raça.
Enquanto Líon tentava inutilmente acalmar os ânimos de
Sortudo, resolvi admirar um pouco a faixada da casa dos Biel.
Assim como os outros prédios da rua, a construção era
de um tom escuro, com o telhado cor-de-chumbo em
diagonal, inclinado na direção da entrada, e o canteiro ao
lado da pequena escada repleto de flores coloridas. Eu não
podia enxergar muita coisa do seu interior - quase todas as
janelas estreitas estavam cobertas por finas camadas de
cortinas de seda clara.
Quase todas... exceto uma.
Logo acima da entrada, uma janela se encontrava
ligeiramente entreaberta. As cortinas pendiam livres atrás do
vidro, formando uma pequena brecha pela qual podia-se ver
o teto rebuscado de um quarto e a luminária delicada fixada
no centro. Sem saber muito bem o por que, fixei o meu olhar
naquela direção e não desviei mais. Parecia que uma estranha
força me conduzia naquela direção, como por encanto.
Não era a mesma sensação que eu sentira na piscina
com o Líon. Muito pelo contrário. Era como se todo o meu
instinto quisesse ficar parado ali, só admirando aquele pedaço
do cômodo, sem ver o tempo passar.
E foi isto que eu fiz, por longos minutos. Parte de
mim ainda podia vislumbrar a pequena luta do novato com o
seu gato, e outra pequena parte parecia estar atenta ao fato de
eu estar parado no meio de um rua completamente estranha.
Porém, todo o conjunto dominante, desde os meus
nervos até a consciência, pareciam estar interligados àquela
janela - como se esperassem que algo grandioso e
surpreendente pudesse acontecer a qualquer instante.
E para o meu total espanto, aconteceu.
Detrás do véu de seda, um rosto belo e delicado como
o de um anjo surgiu, observando a rua deserta. Uma longa
cascata de cabelos cor-de-chocolate emolduravam a face
estranhamente perfeita, sua pele castanha irradiando
fracamente os raios de sol que se infiltravam para o quarto
pela brecha da janela. Seus olhos escuros e intensos
admiraram a rua de ponta à ponta, até que eles finalmente
recaíram sobre mim - aprisionando-me por completo.
A ligação estava feita. A garota e eu nos encaramos
por um longo tempo, e eu já podia sentir no meu rosto o
fluxo repentino de sangue se formando. Ela me observava
com as sobrancelhas cerradas, como se tentasse me
reconhecer de algum lugar - a mesma sensação que eu sentia
parado na calçada. Para mim, nada ao redor importava. Tudo
o que eu precisava era ficar ali, admirando aquele ser
celestial à minha frente.
Nosso pequeno momento parecia estar durando uma
eternidade. A garota-com-rosto-de-anjo continuou a me
olhar e eu retribuía na mesma intensidade. Após mais um
minuto, ela mordeu os lábios rosados e balançou de leve a
cabeça, como se tentasse forçar a si mesma a voltar à
realidade. Com um movimento rápido, a menina se levantou
de onde estava e fechou as cortinas - assim quebrando
bruscamente o estranho elo que havia se formado entre nós.
Sem fôlego, fechei os olhos e também sacudi a cabeça.
- Hei cara, você está legal? - Líon me encarava
preocupado, o bichano em seu colo (apesar de ainda emanar
uma áurea ameaçadora) muito mais controlado.
Balancei afirmativamente a cabeça como resposta. As
coisas ao meu redor já haviam voltado ao normal. Aquilo não
devia ter passado de um breve segundo, mas para mim foi
como se tivesse durado o dia inteiro. Mesmo estando ainda
descomposto, meu cérebro trabalhava a uma velocidade
surpreendente. Durante um breve instante para
considerações, acabei concluindo o óbvio: a garota na janela
só podia ser uma única pessoa - Serina, a irmã de Líon... Mas
isto não explicava o por quê da sensação de eu à conhecer de
algum lugar.
- Líon, por acaso você e a sua família já vieram para
Ventura alguma vez? - antes de terminar a pergunta, eu já
havia me arrependido de a ter feito.
- Hum, não - Líon franziu a testa com desconfiança,
mas continuou - Para ser sincero, mesmo morando em
Dumont, eu nunca imaginei vir para Ventura.
O novato acariciou ternamente o gato em seu colo e
suspirou. Estava na cara que se mudar para Ventura não
havia sido nada legal para o garoto. E eu não podia muito
menos culpá-lo por se sentir infeliz aqui. Afinal, eu mesmo
queria meter o pé desta cidade - que apesar de linda – era
recheada de pessoas falsas e interesseiras.
- Acho que está na hora de eu entrar - disse Líon,
ainda acariciando Sortudo.
- É, você tem razão - concordei, satisfeito por ele não
ter maldado nenhum pouco a minha pergunta. - Acho que
nos vemos amanhã na escola, não?
- Com certeza! - o novato abriu um enorme sorriso, e
girou lentamente em direção a porta.
Esperei Líon entrar e trancar a porta de entrada para
dar uma última olhada na janela do quarto de Serina e voltar
para casa. Eu estava cansado e tinha a esquizita impressão de
que minha cabeça pesava mais do que o resto do meu corpo.
Flashes dos momentos na piscina e do rosto da irmã de Líon
iam e vinham na minha mente, e cada músculo meu parecia
estar esticado e retesado como se eu acabasse de percorrer
uma maratona.
Sem duvida alguma, aquele foi o dia mais
movimentado de todos os meus 18 anos em Ventura. Eu não
entendia muito bem, mas parecia que a minha vida só havia
começado naquela manhã - como se todo o resto não passasse
de um pesadelo, uma sombra indistinta em meus
pensamentos.
Dei uma última olhada para a casa dos Biel e virei a
esquina. Por mais excitado, impressionado, desconfiado e
cansado que estivesse, tudo o que eu queria naquele ponto
era estar em casa - esparramado sobre o sofá da sala,
aproveitando cada segundo deste meu inesperado dia de
folga.
91
93 6. Q U E B R A C A B E Ç A
Assim que cheguei em casa, corri para cozinha. Já se passava
de meio-dia, e eu podia sentir o meu estômago se
contorcendo, protestando com fome. Abri a geladeira e
procurei por algo que pudesse ser feito rapidamente. Por
sorte, havia um pouco da lasanha do jantar da noite anterior.
Peguei a vasilha, tirei a tampa e coloquei no microondas.
Enquanto o meu almoço esquentava, enchi um copo
com refrigerante e me sentei à mesa da cozinha. Não existia
uma boa explicação, mas a casa parecia mais colorida. Era
como se o sol iluminasse todas as janelas de uma vez, dando
um brilho dourado e uniforme para os cômodos. Fiquei tão
distraído com esta minha nova percepção do lugar, que quase
caí da cadeira quando o timer do microondas soou avisando
que a minha comida estava pronta. Ainda um pouco
estabanado pelo susto, retirei a vasilha do eletrodoméstico e
despejei a lasanha fumegante sobre um prato. A fumaça que
se desprendia da massa borbulhante parecia formar para mim
vultos espiralantes, que se contorciam e se elevavam em
minha direção – iguais às sombras que eu havia visto um
pouco antes de Líon cair na piscina.
''Mais que bobagem'', pensei alto, levando a minha
refeição para a sala e ligando a televisão. Não havia nada de
interessante àquela hora. Depois de passar os canais umas
duas vezes, sem encontrar algo que me chamasse a atenção,
resolvi desligar o aparelho e comer o meu almoço em
silêncio. Apesar da lasanha estar extremamente quente, a
engoli com uma voracidade animalesca.
Logo depois da última garfada, me arrependi do meu
afobamento. A comida estava à tal temperatura que parecia
que a sala estava sendo consumida por um incêndio de
chamas invisíveis. Tentando consertar o estrago, bebi o
refrigerante de um só gole, ao mesmo tempo em que tirava o
paletó e a camisa do uniforme. Não adiantou nada – meu
corpo ainda transpirava e minha garganta parecia mais seca
do que nunca.
Sem pensar em nada, voei escada acima, na direção do
banheiro. Eu só precisava de um banho... talvez aquilo
resolvesse. Terminei de tirar a roupa e me enfiei em baixo do
chuveiro. De início, a ducha diminuiu a minha temperatura
elevada - mais não melhorou em nada na minha agitação.
Mas isto realmente não me surpreendia.
Em uma única manhã havia acontecido mais coisas do
que em toda a minha vida em Ventura. Conhecer Líon, o
salvar de um afogamento iminente e ainda por cima ter uma
reação estranha só de ver a irmã dele não eram coisas que eu
esperava viver quando saí de casa pela manhã. Depois de
tudo aquilo, parecia surreal que até a noite passada minha
maior preocupação era um mísero pesadelo.
Coloquei meu uniforme e minha toalha no cesto de
roupas sujas e vesti meu velho moletom. Escovei os dentes
com força, sem realmente ver meu reflexo no espelho, e saí
do banheiro não pensando muito no que ia fazer. Deixei que
minhas pernas tomassem o controle do meu corpo, guiando-
me pelo corredor do 2º andar, me levando na direção do meu
quarto. Antes que eu percebesse alguma coisa, já havia
entrado no cômodo e me sentado de frente para o meu
cavalete de desenho – um velho presente que meu avô,
desenhista de mão cheia, havia me dado um pouco antes de
morrer. Com uma reação natural, peguei um lápis esquecido
no móvel e repousei a minha mão sobre o papel em branco.
Foi automático. Assim que a ponta do grafite tocou a
superfície lisa, minhas mãos começaram a traçar linhas e
formas. Toda a minha agitação parceia fluir unicamente para
aquela zona do meu corpo, os movimentos cada vez mais
precisos e retos. Parte do meu cérebro sabia muito bem o que
eu estava desenhado, mais a outra parte - a consciente – se
surpreendia ao ver os detalhes se formando diante dos meus
olhos.
Trabalhei com afinco por horas, às vezes apagava um
canto e o redesenhava. A imagem tomava conta de todo o
papel, e assim que finalmente minha mão traçou a última
sombra, não pude deixar de arquejar - ao mesmo tempo
espantado e maravilhado. Pois, impresso à minha frente
como uma fotografia em preto-e-branco, estava a cópia exata
da janela do quarto de Serina, a figura perfeita da irmã de
Líon parcialmente oculta pelas cortinas.
Por um curto espaço de tempo fiquei adimirando o
desenho, a sombra da estranha ligação daquela manhã me
conectando a imagem. Só o fato do rosto de Serina parecer
ter sido esculpido por anjos já era motivo suficiente para
prender a minha atenção... Mas algo naquele rosto não me
era estranho. A certeza disto martelava de forma insistente
em minha cabeça, o por que de minha agitação ficando mais
claro.
Ela era um enigma. E eu tinha que desvendá-lo.
O barulho da porta de entrada sendo forçada me
despertou do devaneio. Instintivamente, olhei para o relógio
luminoso na cabeceira da minha cama e pulei da cadeira. Já
eram seis da tarde, e eu não havia feito nada além do
desenho. Com pressa, guardei a ilustração da janela de Serina
em uma pasta que estava sobre a minha escrivaninha e corri
para a sala.
- E aí, garoto? Parece que o seu primeiro dia não foi
tão ruim quanto esperava - Cirus me encarou sorridente,
assim que aterrizei no piso sob o poste de emergência.
- É, mais ou menos isso - respondi baixo, encolhendo
os ombros - Acho que fiz um colega.
que eu terminei de falar, meu pai congelou no lugar.
Com um movimento lento, ele girou nos calcanhares e me
observou estupefato.
- Vo.. você disse... um colega? - perguntou Cirus, os
olhos esbugalhados - Você está me dizendo que Adrian Regis
fez um colega?
- Bom, foi o que eu disse! - resmunguei, cruzando os
braços sobre o peito.
- Nossa, acho que estou vendo tudo girar!
Não pude deixar de revirar os olhos enquanto Cirus
fingia perder o equilíbrio e se apoiava na estante da televisão.
Era mais uma pérola dos nossos momentos de Filho versus
Pai. Sem perder tempo vendo a gracinha do meu responsável
crianção, cruzei a sala em passos largos e me sentei
pesadamente na poltrona ao canto.
- Se o senhor já terminou de me fazer de bobo...
Cirus se permitiu um último sorriso e pendurou suas
chaves no gancho ao lado da porta. Com passos firmes, ele
caminhou na direção do sofá à minha frente, acomodando-se
pesadamente com um olhar ainda divertido.
- Tudo bem, tudo bem - murmurou ele, despenteando
os cabelos negros de uma forma marota - Então, o que você
quer saber?
Eu sabia que ele faria esta pergunta, mas como
sempre, a sua falta de rodeios ainda me impressionava. Me
controlei, respirando fundo, então resolvi explicar tudo -
desde o começo, nos mínimos detalhes. Contei como conheci
Líon no pátio, falei de como ele foi paparicado pelo Dir.
Nigro até chegar ao ponto principal da conversa: o incidente
no Pavilhão da Tortura.
Durante toda a minha descrição do atentado, o rosto
de Cirus se transformou de divertido para apreensivo.
Quando terminei minha breve narração, ele fechou os olhos
de forma concentrada e balançou vagarosamente a cabeça
para cima e para baixo, como se coloca-se engrenagens
invisíveis para funcionar só com a força do pensamento.
Continuei sentado na poltrona, meus braços
envolvendo minhas pernas, esperando pacientemente o
veredito dos fatos ocorridos naquela manhã - coisa que
aconteceu meio minuto depois.
- Hum, interessante - começou Cirus, abrindo os
olhos - Você disse que sentiu algo parecido como um imã lhe
atraindo para o garoto Líon, um pouco antes dele escorregar
da plataforma?
- Sim...
- E também que viu um garoto... alguém que você
nunca viu na vida e que, pelo visto, só você o havia notado...
empurrando o seu colega do alto da plataforma?
- Sim... - respondi, desta vez mais nervoso do que
antes.
- Hum, interessante - repetiu Cirus, pondo-se de pé e
caminhando na direção da janela à minhas costas – Pode
parecer estranho, mais não exite outra explicação!
Meu pai se virou para mim e, desta vez, sua face trazia
uma expressão de surpresa. Sua boca se entreabriu
boquiaberta e seus olhos cinzentos pareciam querer saltar das
órbitas.
- Filho - disse ele, num tom mais baixo que um
sussurro - acho que o seu colega está sendo perseguido por
um... demônio.
- O quê?! - exclamei, alarmado demais só de imaginar
algo como aquilo.
O que Cirus estava me dizendo não fazia o menor
sentido. Eu já havia visto um demônio antes. Para falar a
verdade, eu já havia visto uma dezenas deles. E uma coisa era
certa: todos, sem exceção alguma, não lembravam em nada o
garoto que empurrara Líon da plataforma da piscina.
- Pai, isto não pode ser possível – resfoleguei,
começando a sentir o ar me faltar nos pulmões - Eu já vi
demônios antes, e tenho certeza que saberia reconhecer um.
Mas o cara da Constantine... não, ele parecia tão
comum... tão humano!
Cirus meneou a cabeça em consentimento. Ao que
parecia, ele esperava que eu tivesse aquela reação.
- Eu sei, eu sei - concordou ele, ainda balançando a
cabeça - Eu prestei bastante atenção ao seu relato. Mas
Adrian, acredite, a maioria dos demônios que você já viu
nesses seus dezoito anos, por mais breve que foi o momento,
já foram exatamente como o rapaz misterioso da sua escola.
Eu ainda não podia acreditar. Como se fosse possível,
expeli o pouco ar que me restava nos pulmões e apertei ainda
mais o abraço que dava em minhas pernas. Percebendo a
minha reação, Cirus se postou no braço da poltrona aonde eu
estava e começou a afagar ligeiramente o topo da minha
cabeça.
- Fica calmo, amigão, isto tudo pode ser resolvido bem
rápido - prometeu ele, agitando um pouco mais rápido os
meus cabelos, se esforçando ao máximo para demonstrar
confiança no que estava dizendo. - Afinal, ao que parece, o
demônio de Líon ainda está em um estágio inicial... E como
dizem, quando o mal é descoberto no começo, ele pode ser
neutralizado mais rápido.
- ''O demônio de Líon ainda está em um estágio
inicial'' - repeti , não entendendo patavinas sobre o que meu
pai estava falando - O que o senhor quer dizer com isso?
Avaliando a minha confusão, Cirus se levantou do
braço da poltrona e se postou na minha frente com os braços
cruzados. Eu reconheci aquele movimento. Significava que
meu pai estava pronto para me dar mais uma ''Lição de Como
Ser Um Arcano''.
- Adrian - começou ele, sua voz já no modo
''professor'' - você sabe como ''nasce'' um demônio?
Mesmo tentando me controlar, tive que revirar os
olhos diante da pergunta. É claro que eu sabia como os
demônios haviam nascidos. Acho que até quem não era um
Arcano sabia. Porém, avaliando a minha rápida conclusão,
Cirus balançou a sua cabeça negativamente e continuou:
- Não, não estou falando dos Originais, muito menos
dos Semi-demônios ou os das Classes Inferiores... O que
estou perguntando é se você sabe como os demônios
Comuns, aqueles que nós enfrentamos no dia-a-dia, surgem?
Aquilo sim me pegou de surpresa. Que diferença
poderia haver entre os Originais e os outros tipos de
demônios? Mas uma vez naquele dia parecia que pai falava
uma língua que eu não conhecia.
- Eu acho que não estou entendendo aonde o senhor
quer chegar - confidenciei, a confusão crescendo cada vez
mais em minha mente.
Com outro aceno, Cirus se distanciou de mim e
postou-se no sofá mais a frente, a resignação de ter que
explicar algo que parecia óbvio para ele estampada em sua
face.
- Filho - Cirus piscou, o meio sorriso brincando em
seus lábios - os seres que enfrentamos não são os mesmos das
Primeiras eras. Assim como o pessoal do nosso lado, eles
também se dividiram e formaram novas raízes. Os demônios
que chamamos de Comuns, e que nós enfrentamos tão
rotineiramente hoje em dia, só podem atuar no Mundo
Material... Diferente dos Originais, que são muito mais
poderosos e perigosos.
Assenti devagar, começando a entender o que ele me
falava.
- Então, como nascem esses ''demônios Comuns''? -
perguntei, já tentando imaginar qual seria a resposta.
- Bom, é uma história um pouco complexa - confessou
Cirus, encolhendo os ombros ligeiramente – Basicamente,
todos eles já foram humanos.
- Já foram o quê?! - exclamei, o choque cobrindo a
minha face.
- Isso mesmo, já foram humanos - repetiu meu pai,
não alterando o seu tom calmo - Na verdade eles são
justamente isto: Humanos que morreram mas que não
completaram a passagem devido a algum empecilho.
Empecilho? Que tipo de empecilho poderia poderia
aprisionar alguém na forma eterna de uma criatura das
trevas?
- Geralmente, o rancor - continuou Cirus, antevendo
a minha pergunta antes mesmo de fazê-la - ou o ódio
extremo. Somente esses dois sentimentos poderiam ter o
poder de confinar uma alma aqui na terra e transformá-la em
um demônio, mesmo o corpo dessa pessoa estando morto.
- Mas isto é horrível! - exclamei, o choque e o medo
presentes tanto na minha voz quanto em meu rosto.
- Eu sei - concordou meu pai, o olhar mais penetrante
a cada palavra - Mas é a verdade. Quanto mais essa alma
guarda este rancor, ou este ódio, mas ele se transforma em
um ser negro. Por isso o jovem que você encontrou lhe
pareceu diferente dos outros demônios que encontramos. Ele
ainda está no começo do processo... ainda há chances de
intervir sem danos piores.
''Danos Piores''. Agora eu conseguia enchergar o que
essas palavras significavam. E, tenha certeza, eu não desejava
esse destino para o meu pior inimigo - muito menos Oliver.
- O que vamos fazer? - questionei por fim, a pressão
em meus pulmões mais dolorosa do que nunca.
- Hoje, nada - afirmou Cirus, pondo-se de pé e indo
em direção à cozinha da nossa casa de bombeiros – Amanhã,
eu vou procurar no meu intervalo alguma peça que esteja
faltando nesse nosso pequeno quebra-cabeça. Enquanto isso,
quero que você fique de olho nesse Líon. Por mais que eu
ache que o garoto-demônio possa demorar um pouco para
agir novamente, é melhor estarmos preparados para qualquer
surpresa, não?
Concordei molemente com a cabeça, o cansaço e a
força das revelações desta noite fazendo um grande esforço
contra as minhas costas. Antes que eu pudesse pensar em
fazer alguma coisa, meu pai voltou a se sentar no braço da
poltrona ao meu lado, o olhar cintilando estranhamente à luz
do anoitecer.
- Tudo vai ficar bem, O.k.? - murmurou ele, ao
mesmo tempo em que dava palmadinhas desajeitadas em
minhas costas - Acho que tivemos um longo dia, não? Por
que você não vai lá pra cima descansar um pouco enquanto
eu preparo o jantar para nós dois?
Era tudo o que eu precisava. Sem dizer uma palavra,
me levantei da poltrona e fui para o meu quarto. Assim que
entrei no cômodo, me atirei na cama e enfiei minha cara no
travesseiro, sem me preocupar em ascender a luz. Pelo o que
eu podia ver, o céu exibia profundos tons púrpuras e já estava
escuro o suficiente para que os lampiões de ruas estivessem
acesos.
Agora já estava bem explícito o que havia acontecido
no Pavilhão de Tortura. A questão era que a resposta havia
me deixado mais encucado do que a própria pergunta. Eu
não me sentia nem um pouco relaxado, muito pelo contrário,
estava ainda mais apreensivo.
Então Líon estava sendo perseguido por um demônio
psicótico? Como a única pessoa legal que eu havia conhecido
na Constantine poderia ser o objeto de ira de uma criatura
tão maligna?
Com o passar do tempo, fui sentindo meu corpo mais
pesado e minha mente mais leve. Eu sabia que logo a
inconsciência iria chegar, mas será que eu queria realmente
dormir? Tentando não pensar no assunto, puxei minhas
cobertas e me acomodei na cama. Entre as dúvidas que eu
tinha sobre o presente e o meu pesadelo, eu ficava com o
segundo. Pelo menos, com ele eu só tinha tinha que me
preocupar durante a noite.
E foi assim que – ao tentar não me preocupar com
nada - minhas pálpebras foram ficando cada vez mais pesadas
e, junto com o sereno da noite, o sono chegou.
108
109 7. V I S I T A N T E
Foi uma noite longa, com pouco descanso para mim.
Assim que os primeiros raios de sol cruzaram as
densas nuvens que cobriam os céus de Ventura, pulei da
cama sem cerimônia alguma e corri para o quarto de Cirus.
Para minha decepção, meu pai já não estava mais em casa.
Tudo que havia no cômodo dele era um pequeno pedaço de
papel recostado sob a cama arrumada e os simples dizeres
escrito às pressas:
Tive que sair...
Chamado de Emergência. Me desculpe.
Olhando desolado para o recorte dobrado em minhas
mãos, voltei para o meu quarto e me obriguei a vestir o
uniforme antiquado da Constantine.
Por mais receoso que estivesse até o momento com o
dia que iria enfrentar, eu sabia que tinha dado a minha
palavra à meu pai - uma palavra de Arcano -, e não havia
chances de burlar o acordo. Além do que, por mais perigoso
que pudesse ser estar com Líon neste exato momento, uma
boa parte de mim realmente queria ver o garoto de novo...
(sem contar a outra parte que estava de fato fascinada e
intrigada pela irmã dele).
E foi neste estado de espirito pra lá de divido que eu
resolvi acabar com aquela lenga-lenga e me dirigir para a
escola de uma vez. E foi neste exato momento que eu escutei
o estranho barulho de algo caindo com estrépido no andar de
baixo.
Assim que o som alto e metálico chegou aos meus
ouvidos, todo o meu corpo se enregelou. Eu não sabia
explicar o por que, mas eu podia sentir o medo começar a
invadir a minha corrente sanguínea. ''Se meu pai saiu, quem
poderia ser?'', eu pensava, não querendo imaginar o que
poderia estar me esperando no 1° piso.
Quase que involuntariamente, meu cérebro me levou
para o dia anterior - para ser mais preciso, a enfadonha aula
de Ed. Física, no Pavilhão de Torturas - e sem me dar conta,
o rosto glorioso e infernal do jovem demônio de cabelos cor-
de-fogo se materializou na minha frente, um sorriso maligno
lhe estampando os lábios.
Então era isto? Era ele que estava lá embaixo, me
esperando?
Não podia ser.
Eu não queria acreditar.
Tomado por um impulso de coragem extra e anormal,
saltei pela passagem do poste de emergência e aterrizei de
gatas no chão de linóleo da sala. Sem deixar brechas para que
o meu medo surgisse novamente, me coloquei de pé sem um
único ruído e me pus a escutar com atenção.
O barulho parecia estar vindo da garagem - e lá era o
pior local onde o demônio-em-treinamento poderia estar.
Era na garagem que Cirus guardava e produzia todos
os objetos que usávamos nas nossas Sessões de Exorcismo. E
se - de alguma forma - o intruso descobrisse para quê servia
todas as coisas presentes nos armários embutidos do cômodo,
eu tinha certeza que o ''bicho ia pegar'' para o meu lado.
Ainda agindo unicamente pelo ''instinto Arcano'',
cruzei a distância de onde estava até a porta da garagem em
apenas duas batidas do meu coração. Com o máximo de
cuidado, me agachei e encostei o ouvido na fechadura,
cerrando os olhos para poder me concentrar em todos os
ruídos produzidos do outro lado da passagem de madeira
branca.
Como se adivinhasse o que eu estava fazendo,
subitamente o intruso ficou mortalmente silencioso. Tentei
olhar pelo buraco da fechadura, mas não havia nada para ver.
A via estava escura, com certeza obstruída pela chave presa
no verso oposto da porta.
Fiquei nesta posição - encolhido e imóvel como uma
estátua - por uns bons cinco minutos. Quando eu começava a
achar que toda aquela situação crítica não passava de
paranoia produzida pela minha imaginação, a maçaneta
prateada logo acima da minha cabeça começou a girar, e as
velhas dobradiças enferrujadas começaram a ranger e gritar
melancolicamente.
Sem ter para onde fugir, saltei o mais rápido que
podia e me segurei igual a uma aranha nas paredes estreitas
do corredor, obrigando aos meus músculos à se fixarem o
mais firme que podiam. Um segundo depois de me esconder,
o chão de linóleo foi tomado pelo vasto rastro de luz amarela
que vinha da garagem, revelando - para o meu total
desespero - uma sombra longa e disforme.
- Mas que merda! - resmunguei baixo, quando uma
única gota de suor ameaçou escorregar da ponta do meu
nariz e cair inconvenientemente no chão. No mesmo
instante, o intruso apareceu abaixo de mim, vestindo um
estranho par de botas de cano-alto, uma calça de brim negra
surrada e um velho moletom com capuz.
Com um último e longo suspiro, me precipitei com
violência na direção do desconhecido, deixando que a
gravidade somada ao meu peso agisse por conta própria.
Percebendo o meu ato de insanidade, o intruso se
esquivou de meu ataque de forma ágil e fugiu pela porta da
garagem. Assim que meu corpo se chocou contra o concreto
firme e gelado, todo o ar que eu havia segurado foi expelido
para fora dos pulmões, o impacto da batida ecoando em todo
o meu interior feito um sino de igreja. De imediato, meus
olhos se encheram de lágrimas e um terrível tremor
percorreu por toda a minha coluna - com certeza uma
consequência nada boa do meu erro de cálculo.
Eu sabia que com aquela burrada eu assinava o meu
próprio epitáfio. Machucado e desarmado, não conseguia
enxergar um palmo sequer diante de mim, e para completar,
o corredor parecia girar ao meu redor.
''Mas que situação, hein?'' pensei infeliz, tomando a
real consciência dos riscos que enfrentava e decidindo fazer a
única coisa que me restava: lutar até o fim - por mais idiota
que parecesse - como um verdadeiro Arcano.
Ainda vendo estrelas, tentei me levantar e atacar
novamente, o mais rápido que podia. Porém, antes que eu
pudesse alcançar a garagem, a porta de madeira se fechou
ruidosamente em meu rosto, estalando com um ruído
canhestro a minha cartilagem nasal e me atirando com um
baque surdo no piso encerado.
Para mim, era o fim. O confronto havia acabado.
Sem chance alguma de defesa, limpei o filete de
sangue que escorria até os meus lábios e esperei a chegada de
minha hora mais sombria. Com um ruído baixo e seco, ouvi
meu carrasco se aproximar de mim lentamente, e para meu
completo estarrecimento, produzir um ruído alto e
estrangulado de preocupação.
- Adrian Regis! - exclamou o intruso, com uma voz
aguda e feminina estranhamente familiar – Mas que idiotice
foi essa?!
Atordoado, fiz força para focalizar o estranho logo
acima de mim, ao mesmo tempo em que ele - quero dizer, ela
- tirava o capuz do casaco de sua cabeça, deixando revelar
uma longa cascata de cabelos prateados escorridos, que
chegavam até o meio de sua cintura. Com a claridade que
irradiava da garagem, vi que seus olhos eram de um azul
profundo aterrador e sua pele clara parecia irradiar a luz
ambiente ao seu redor igual à uma fada gigante.
Em toda a minha vida eu só conhecera uma única
pessoa que corresponderia à estas singulares características
físicas, e pensar que ela poderia estar ali na minha casa -
aquela hora da manhã - foi um choque e uma alegria tão
grande para mim que, mesmo tomado pela dor, me levantei
num salto e a agarrei no abraço mais apertado que eu podia
dar.
- Ti... tia Angelina! - gaguejei, não conseguindo
controlar a enxurrada de perguntas que tomavam o meu
cérebro de assalto - O que a trouxe aqui? Como você entrou
em casa? Quando chegou a Ventura? Quanto tempo vai ficar?
- Calminha aí, garotão... - esbravejou Tia Angelina
com a sua vozinha de vento - Do que é que foi que você me
chamou mesmo?
Só depois da pequena bronca que percebi a grande
gafe que eu havia acabado de cometer; eu acabara de chamar
minha tia Angelina de ''tia''... e, para ela, não poderia haver
insulto maior nem mais imperdoável.
Tentando reparar o meu erro, sorri da forma mais
inocente que podia, o pedido de desculpas implícito em meu
rosto. Afinal, desde que me conheço por gente, eu entendo
essa implicância que Angel (o apelido adotado por ela assim
que começara a falar) tinha ao título que recebera. Pois, se eu
estivesse no lugar dela, e me deparasse com um sobrinho
apenas 3 anos mais novo e com 15 centímetros a mais de
altura, acho que me comportaria de uma maneira muito
menos delicada.
- Ah, que se dane - resmungou Angel, retribuindo o
sorriso, ao mesmo tempo que revirava os olhos de forma
deliberada - Desculpas aceitas! Mas então, onde está o meu
querido, rabugento e possessivo irmão mais velho?
Antes que eu pudesse responder algo a respeito, caí na
gargalhada. Isso era tão estranho. Só de pensar em Cirus
como alguém ''rabugento'' e ''possessivo'' eu me dobrava de
rir. Era engraçado, até irônico, ver a diferença de
tratamentos dele para com nós dois. Enquanto, na maioria
das vezes, Cirus se comportava como o meu irmão mais
velho idiota e irresponsável, quando o assunto era Angel, ele
era totalmente o oposto: um controlador ao extremo,
exatamente como um pai deveria ser.
- Cirus? - perguntei, ainda tentando controlar o riso -
Ele saiu muito cedo, pelo visto. Só me deixou um bilhete,
que não dizia coisa nenhuma - então, quando parei de rir,
percebi algo mal explicado na pergunta dela - Hum, Angel...
Se você não viu o meu pai, como foi que você entrou aqui em
casa?
Por um momento, Angel congelou no lugar e me
lançou um olhar do tipo que vemos em pessoas pegas no
flagra. Mas, antes que perdesse por inteiro a compostura, ela
girou nos calcanhares tal qual uma ninfa dos bosques e
voltou-se para a garagem. Ainda esperando a sua resposta,
me apoiei na parede do corredor e a segui aos trancos e
barrancos.
- Acho que você me não respondeu - comentei de
forma incisiva, assim que entrei no cômodo, contendo a dor
que me queimava por inteiro - Por falar nisto, você ainda
não respondeu a nenhuma das minhas perguntas.
- Se quer saber mesmo - disse ela, sua atenção voltada
para uma pesada mochila aberta aos seus pés - Eu estava
tocando a minha vida como sempre faço, resolvendo um caso
de perseguição demoníaca em Dumont, não contando com a
ajuda de ninguém. Só que, antes que eu pudesse agir de
alguma forma, as vítimas foram embora e, como uma formiga
abandonada pelas suas companheiras, eu me vi sozinha no
meio do nada. Então, sem ter o que fazer e sem um tustão
furado no bolso, me lembrei que o meu único irmão (e meu
sobrinho enxerido e encrenqueiro) moravam na cidade ao
lado de onde estava, e que isto era uma opção viável para
mim. Reunindo as poucas coisas que tinha, peguei a primeira
carona que arrumei na estrada e cheguei aqui hoje, antes que
o sol começasse a aparecer no céu ou que os lampiões da rua
se apagassem. Mesmo não tendo a chave da porta, eu (com
ajuda de umas habilidades que você, a essa altura do
campeonato, deve conhecer bem) consegui forçar a trinca do
portão da garagem, assim entrando aqui e não perturbando
ninguém logo cedo, como uma boa convidada deve ser... E,
antes que me esqueça - ainda sem olhar para mim, Angel
puxou algo pesado e comprido do fundo da sua mochila e o
jogou na minha direção - acho que isto pertence a você!
Com um movimento rápido, aparei o objeto lançado e
o coloquei diante dos meus olhos. Para minha surpresa e
espanto, era nada mais nada menos do que o meu velho skate
de guerra, dado pelo meu pai no meu décimo segundo
aniversário. Os desenhos presentes na base de madeira eram
de uma ''sutileza'' ímpar: Céu e Inferno travando uma
batalha épica, com direito a nuvens carregadas, labaredas de
fogo e, é claro, anjos e demônios.
Há um ano e meio, desde que Angel partiu daqui de
casa pela última vez, eu vinha procurando por aquele skate
feito louco. E só agora, da forma mais idiota possível, eu
consegui ligar um fato ao outro e descobri aonde ele estava
esse tempo todo.
- Então - pigarreei, lutando para não demonstrar o
quão irritado estava por finalmente saber quem tinha pego o
meu skate emprestado sem a minha permissão - pelo visto,
você não viu o meu pai sair.
- Não, eu não vi - fechando sua bolsa mais
violentamente do que o necessário, Angel se levantou e
recostou-se sobre a máquina de lavar desligada - mas se por
acaso eu tiver chego em uma má hora, eu posso muito bem
sair e só voltar quando o Cirus chegar.
Mas uma vez, apenas naquele dia, percebi o quanto
estava sendo rude com Angel, e mais uma vez tentei me
desculpar.
- Não seja boba - suspirei, andando até ela e pegando a
mochila de suas mãos - você sabe que esta casa é tão minha
quanto sua.
- Então você está dizendo que eu posso ficar?
Não respondendo a sua provocação, dei as costas a
Angel e segui para a cozinha. Eu sabia que ela deveria estar
com mais fome do que demonstrava, por isso não me
surpreendi quando, assim que joguei a sua mochila no tampo
de mármore da pia, ela já se encontrasse sentada à mesa -
como quem espera o seu pedido em um restaurante elegante.
Revirando os olhos, abri a geladeira e procurei por
algo que pudéssemos comer. Havia uma embalagem de ovos
fechada e um pedaço de queijo e outro de presunto. Sem
pensar em nada, peguei os três de uma única vez, coloquei o
que era necessário sobre a mesa e me agachei para procurar a
frigideira que meu pai guardava dentro do forno do fogão.
- Pelo visto, acho que teremos Omelete-Maluca no
café, não é mesmo Cheff Adrian?
- NÃO É uma Omelete-Maluca - respondi entre
dentes, não conseguindo me refrear.
Desde quando éramos pequenos, Angel sempre me
achincalhava pelo fato de eu saber cozinhar. Bom, não foi ela
quem perdeu a mãe assim que nasceu, e cujo pai passava
metade do tempo fora de casa. Assim que o pensamento me
veio a cabeça, isto me fez lembrar de uma outra coisa – uma
coisa que eu tinha certeza que a irritaria profundamente.
- Mas, e aí, você por acaso falou com a vovó que vai
ficar por um tempo aqui em Ventura?
Como esperado, o rosto de Angel se transformou por
completo à minha frente - da forma exata como um felino se
comporta quando se encontra com um Arcano. Logo depois
de presenciar a sua reação, me arrependi de verdade de ter
feito o comentário.
A relação de Angel e Vovó era, no mínimo,
conturbada. Assim como a minha mãe não era uma Arcano
nem sabia nada sobre isso quando conheceu o meu pai, o
caso de Zoraia e Galadriel Regis foi bastante parecido. Só
que, enquanto a nora aceitava da melhor forma possível o
fardo do marido, o mesmo não acontecia com a sogra.
Pelo o que eu sabia, no começo Vó Zora até aceitava,
mas tudo mudou quando ela descobriu que os ''dons'' eram
hereditários - e que, de uma forma incancelável, os seus dois
filhos estavam obrigados a seguir o mesmo destino perigoso
do esposo.
A única coisa que posso dizer é que ela não ficou nada
feliz ou satisfeita ao ver que meu pai e tia Angel não se
importavam tanto assim com o ''trabalho obrigatório'' que
eles receberam quanto ela; e acho que nem é preciso falar
que tudo foi de mal a pior quando o Vô Gal se foi em um
combate sangrento junto com o demônio mais maligno e
cruel que eu já vira em toda a minha vida.
De qualquer forma, citar as obrigações de filha para
minha tia era quase tão irracional quanto andar em uma
auto-estrada movimentada na contramão.
- Escute aqui - recitou ela, seus olhos azuis tão
brilhantes quanto fogo-fátuo em mato seco - se você pensa
que vai me irritar com isto, pode tirar o seu cavalo da chuva!
Angel me falou de forma baixa e clara, mas cada pelo
do meu corpo se arrepiou tanto com cada palavra que parecia
que ela havia cuspido todas elas diante da minha cara. Sem
dizer nada, apenas assenti o mais breve possível e voltei toda
a minha atenção para o café da manhã.
Quando terminei de preparar os nossos omeletes,
separei dois pratos na mesa da cozinha e coloquei as porções
fumegantes em cada um, enquanto Angel ia até a geladeira e
trazia dois grandes copos de leite para nós.
- Olha bem - disse ela, colocando os copos na nossa
frente, sua voz no tom de sino novamente - Acho que
começamos o dia meio que com o pé esquerdo, não?
- Eu acho que sim - concordei, ainda não conseguindo
tirar os meus olhos do prato sobre a mesa.
- Então, e aí? - continuou Angel, o sorriso de fada
voltando a iluminar o seu rosto - Como vão as coias na
escola, na Constantine? Você já fez algum amigo? Por acaso
já conheceu alguma garota legal?
- Constantine? Amigo? Garota?! - entoei, tirando os
meus olhos como por encanto da mesa e os guiando para o
relógio da cozinha, dando um salto da cadeira ao ver a hora -
Mas que droga, estou atrasado de novo!
Repetindo a manhã anterior de uma forma tenebrosa,
corri para o meu quarto em um piscar de olhos, apanhei todo
o material que precisava levar e voltei voando para o térreo,
sem tempo nem para ver como eu estava.
- Adrian, se acalme! - exclamou Angel para mim, seus
olhos azuis tentando acompanhar o borrão vermelho em que
eu me transformara.
- Me acalmar? - parei por um momento, não
acreditando no que eu havia acabado de escutar - Eu não
tenho tempo para me acalmar, a escola fica a três quadras
daqui de casa e eu só tenho 14 minutos para chegar lá!
Como se tivesse acabado de ter uma grande ideia,
Angel olhou para o molho de chaves jogado sobre a cômoda
da sala, depois voltou o rosto na direção da porta da garagem
e, do jeito mais maroto do mundo, disse:
- Acho que existe uma forma bem rápida de você ir
para a escola sem se atrasar, e se quiser, eu posso ajudá-lo...
Só de acompanhar o pensamento que surgia a minha
frente, eu pude sentir o meu sangue gelar. É claro que sabia
sobre o quê Angel estava falando. Mas se ela estava
imaginando que eu ia dar autorização para ela mexer na
''sacro-santa'' moto de Cirus... Eu não estava pronto para ser
morto, muito menos nas mãos do meu próprio pai.
Se havia algo que Cirus amava mais do que tudo -
mais até que nossa Casa-de-Bombeiros ou o Mustang 64 - era
essa bendita moto. Foi o presente que o Vô Gal dera a ele no
seu décimo oitavo aniversário, e a sua adoração para com o
troço era tanto que ele nem andava com a máquina... Apenas
a lavava e a mantinha na garagem, em um espaço que mais
parecia um altar.
Eu nem queria saber o que Cirus poderia fazer com
quem tocasse na coisa, então logo tratei de cortar as asinhas
de Angel pela raiz.
- Ah, você nem é louca! - suspirei atordoado,
ajeitando as alças da minha mochila sobre os ombros - No dia
em que estiver com pensamentos suicídas tudo bem, mas
hoje nem pensar!
- Oras, mas se eu não te levar para escola na moto do
Cirus, como você vai conseguir chegar lá a tempo?
Angel me acompanhava na direção da garagem, e eu
não podia acreditar que ela estava tentando me fazer
entregar os pontos usando a sua carinha de ''gato sem dono''.
Se eu não a conhecesse, já teria lhe dado as chaves da moto à
muito tempo; mas como eu conhecia, apenas dei as costas à
ela sacudindo a minha cabeça, entrando na garagem e
abrindo o portão.
- Sabe, eu acho que existe outra forma de chegar à
Constantine sem correr o risco de morrer hoje a noite -
respondi, me colocando com habilidade sobre o meu skate
recém-recuperado e partindo na maior velocidade que podia
sem dar bandeira para os vizinhos, deixando Angel e sua
carranca contrariada no batente da nossa Casa-de-
Bombeiros.
127
129 8. S E R I N A
Como por milagre, consegui fazer todo o percurso da Casa-de
Bombeiros até a Academia em apenas 4 minutos. Quando
finalmente cheguei ao portão da escola, o pátio de entrada
ainda estava abarrotado de estudantes e a barulheira de
conversas que tomava conta de todo o ar parecia ainda pior
do que a do dia anterior.
Completamente cego pela forte claridade do sol
naquela manhã, desencavei do fundo da minha mochila o
meu velho par de óculos escuros e me encostei na mesma
árvore frondosa de sempre - brincando distraidamente com
as rodas gastas do meu skate enquanto observava o ir e vir do
corpo docente e discente da Constantine por detrás das
minhas lentes baças.
Sem prestar atenção em nada particular, percebi um
ligeiro burburinho se formar no canto mais distante da rua.
Ouvindo a confusão de vozes que chegava até a mim,
me inclinei com cuidado na direção da algazarra e apurei a
minha audição o máximo que podia – distinguindo
claramente o tom insuportavelmente pretensioso de Oliver
Nigro, acompanhado pelas gargalhadas estúpidas de todos os
seus asseclas da turma Privilegiada.
- Vejam só, caras - cacarejou Antoni Pabin, o Capitão
''só-músculos'' da Equipe de Natação da escola, para quem
quisesse ouvir - acho que a gatinha aqui não tem língua!
Em resposta a provocação do amigo, todos os garotos
urraram e assobiaram com prazer. Ao que parecia, a horda de
desocupados da Constantine havia encontrado uma nova
vítima para atazanar e, não sabendo muito bem o por que,
aquilo não estava me cheirando nada bem.
- Hei, não precisa ficar com medo - disse Oliver
cauteloso, suas verdadeiras intenções disfarçadas em um tom
de voz cordial que eu nunca o vira usar com ninguém – Eu
não vou te machucar, acredite... nós só queremos, você sabe,
conhecer melhor nossa nova colega de classe.
Antevendo a confusão formada, contornei o tronco da
árvore aonde eu estava escondido e encarei o famoso
grupinho de baderneiros, minhas sobrancelhas unidas só de
imaginar o que eles poderiam estar aprontando.
Para meu espanto, Oliver e todos os seus seguidores
formavam um círculo estranho e ameaçador ao redor de
ninguém menos que Serina Biel - cujo rosto perfeito estava
visivelmente lívido em uma mescla de impaciência e asco ao
ver um de seus cachos escuros se enroscarem entre os dedos
pálidos do malicioso filho do Dir. Nigro.
Sentindo um formigamento nada convencional me
subir pela coluna, caminhei à passos largos a pequena
distância que separava o gramado da Constantine da esquina
da rua e mergulhei no interior da roda de Privilegiados. Eu
sabia que estava cometendo um suicídio - não só no sentido
social - mas acotovelei todos os idiotas que me trancavam a
passagem até parar bem à frente do líder estúpido deles, a
vista embaçada e vermelha iguais à de um touro enfurecido.
- O que vocês pensam que estão fazendo com ela? -
perguntei, não reconhecendo o tom sombrio de minha
própria voz, tamanha a força que me controlava.
Por um segundo, todos me encararam. Pelo visto, eu
não havia sido o único que fora pego de surpresa pela
''audácia'' dos meus instintos. Eliezer Mantiz e Lucas Darvel
trocaram uma longa e significativa olhada, enquanto a
maioria dos caras da Equipe de Natação - incluindo o
parrudo Antoni Pabin - deram meio passo para trás, como se
só a minha presença ali fosse capaz de lhes transmitir o vírus
ebola.
Eu estava pouco me lixando para a reação daqueles
acéfalos bombados e sobre o quê eles pensavam ou deixavam
de pensar sobre mim.
O que me importava - e me consumia pouco a pouco
por dentro como o veneno quente e pegajoso de uma víbora -
era o fato de que, por mais perturbado que pudesse parecer,
Oliver continuava com sua mão nojenta nos cabelos da irmã
de Líon. E que, além de repulsiva, a atitude parecia ser de
uma ousadia sem par - mesmo para brutamontes estúpidos
como os Privilegiados.
- O que vocês pensam que estão fazendo com ela? -
repeti a pergunta, mantendo os meus braços trêmulos bem
colados junto ao corpo, contando de 1 até 100 para não fazer
nenhuma loucura.
Recuperando-se gradativamente do choque
momentâneo que minha entrada causou, Oliver se
desvencilhou de Serina e se virou para mim - a atitude
autoritária e de superioridade que ele sempre utilizava
quando falava comigo no seu nível máximo.
- E o que o Senhor Bizarro tem a ver com isso? -
devolveu o garoto, suas mandibulas tão tensas que eu seria
capaz de dizer quantos músculos haviam surgido em sua face.
- Pelo o que percebi, o assunto ainda não chegou na lixeira
que você mora...
Tive que respirar umas cinco vezes para não esmagar
o filho do diretor na frente daquelas hienas que ele chamava
de amigos. Foi um momento de perigo particular. Por mais
que o meu lado consciente e racional dissesse para mim que
qualquer tolice pudesse representar o fim da minha vida
''silenciosa'' em Ventura, o resto do meu ser gritava para
acabar com o falatório e ir para os finalmentes com o Rei dos
Bundões.
Eu não sabia explicar minha reação – estava
encurtando ainda mais a distância que havia sido feita no
centro do círculo, minhas mãos cerradas em punhos e o meu
coração palpitando tanto que eu não conseguia escutar os
meus próprios passos. Era como se, naquela manhã, um
Adrian menos responsável e mais exibido tivesse se libertado
dentro de mim... e o seu primeiro desejo era esfregar a
carinha mais-que-simétrica de Oliver no asfalto quente até
não sobrar nada, só para ver como é que ficaria.
Porém, antes que o ''Adrian Rebelde'' pudesse agir e
ferrar com tudo, Serina saiu de seu estado de observadora e
se colocou no centro do círculo - suas mãos agarrando o meu
braço esquerdo ao mesmo tempo em que seus olhos escuros
fuzilavam o líder dos Privilegiados com uma indiferença
quase que mortal.
- Nossa, até que enfim... pensei que você não ia
chegar nunca!
Com um sorriso angelical, a garota me encarou e
piscou - e eu conseguia ler em cada traço de sua expressão
inocente as palavras de aviso: ''se acalme, não se encrenque e
deixe tudo comigo''.
- Muito bem, acho que não preciso mais da ajuda de
vocês - continuou ela, reforçando a palavra ajuda como quem
dizia ''caiam fora da minha frente agora, ou vão me conhecer
de verdade!'' - Adrian, por que não me leva para conhecer a
Academia?
Não pensando duas vezes, puxei a novata pelo braço e
a tirei do círculo, sentindo os olhares incrédulos de Oliver e
seus cumpinchas perfurando as minhas costas de uma forma
bastante ofensiva. Eu poderia dizer que o meu ''Eu louco''
ainda rosnava para o grupo deixado para trás, mas a verdade
era que - assim que Serina colocou as suas mãos suaves e
delicadas sobre a minha pele - toda a raiva e a tensão que
parecia prestes a explodir de mim desapareceu, como se nem
tivesse existido.
- Obrigada - sussurrou Serina, quando estávamos
longe o bastante para não sermos ouvidos pelos Privilegiados
– Eu já ia resolver tudo com aqueles... otários, mas... Foi
muito legal você ter aparecido para me defender. Muito legal
mesmo.
- Não precisa me agradecer - respondi, sentindo o
sangue fluir e se concentrar em meu rosto - Eu vi o que eles
estavam fazendo e não achei justo. Só fiz o que era o certo.
Por um milésimo, ela me encarou e sorriu.
- Líon tem razão - comentou a garota, assim que
chegamos às raízes da árvore onde eu havia largado minhas
coisas – Meu irmão acha que você deve ter algum tipo de
gene sobre-humano ou coisa assim. Depois do que você fez
hoje, tenho que concordar com ele.
Sentindo um forte aperto no peito, parei e olhei para
Serina um tanto assustado. Então Líon desconfiava de mim,
mesmo me conhecendo em menos de um dia... Será que eu
era tão estranho assim que ninguém acreditava no meu
disfarce de ''adolescente normal''?
- Bom, ele não fez nenhum tipo de fofoca - continuou
ela, percebendo minha reação e interpretando de forma
errada, como quem se desculpa por ter dito algo errado -
Líon só me contou o que aconteceu ontem na piscina, e devo
dizer que estava assombrado. Acho que notou que ele não é
exatamente o típico garoto que faz muitas amizades em uma
escola; mas aí chega alguém como você e o trata como um
igual, com respeito... Eu não tenho nem palavras para
agradecer, de verdade!
Eu fiquei parado no mesmo lugar sem entender aonde
ela queria chegar.
Se Líon não desconfiava do que eu realmente era, por
que ele ficaria tão impressionado comigo? Eu não processava
nem um pouco como uma pessoa normal poderia se sentir
assim com relação a mim, e muito menos o que Serina queria
dizer com aquela história de ''alguém como você''. No
ranking para descobrir qual adolescente era o Mais
Deslocado do Mundo, eu tinha certeza que levaria o primeiro
lugar em disparada.
E foi tentando dizer isso a ela que eu acabei
percebendo o quão próximos nós dois estávamos. Meu rosto
deveria estar a uns dez centímetros acima do dela, e só de
olhar o meu reflexo naqueles seus olhos escuros e profundos,
uma sombra forte e embaraçosa da ligação que eu havia
sentido na manhã anterior tomou conta de todo o meu corpo
de assalto e se espalhou pelo ar igual á uma tempestade de
verão. Eu tinha certeza, mais do que nunca, que a conhecia
de algum lugar – mas de onde era o mistério.
Em um tempo inestimável, ficamos congelados
naquela posição - um encarando o outro - até que um pigarro
alto e claro ao nosso lado nos despertou por completo.
- Pelo visto, acho que você e minha irmã se
conheceram muito bem...
Líon estava parado à uma pequena distância de nós, os
braços cruzados sobre o agasalho com capuz e a expressão
dividida entre a confusão e o divertimento. Rapidamente,
Serina e eu nos separamos, o que me deu a chance de me
virar e pegar o meu material no chão - evitando ao máximo o
olhar pra lá de inquisitivo do rapaz às minhas costas.
- Nossa garoto, mas você demorou! - ofegou Serina,
como se tivesse acabado de realizar a prova dos 200 metros
com barreira.
- O que eu podia fazer? - retrucou o novato, pegando
o meu skate com os pés e o segurando na minha direção -
hoje é o primeiro dia do papai no trabalho novo, e o
banheiro da suíte dele e da mamãe não está funcionando...
Ainda um tanto afobado, me levantei da posição em
que me encontrava e peguei o skate das mãos de Líon, o
agradecendo pela ajuda sem ter coragem o suficiente de o
encarar nos olhos.
- E aí, será que eu preciso mesmo fazer as
apresentações? - perguntou o garoto, sua voz destilando
sarcasmo - Por que, se quiserem, eu faço com todo prazer:
Serina, este é o Adrian, de quem eu lhe falei ontem... Adrian,
esta é minha irmã-gêmea Serina.
Depois dessa, eu tive que levantar o meu rosto e
admirar o novato à minha frente.
- O quê? - soltei sem pensar, tendo certeza que a
minha expressão estava tão espantada quanto eu me sentia -
Ela é sua irmã-gêmea?
Sem cerimônia alguma, tirei os óculos escuros da
minha frente e me virei de um para outro umas cinco vezes.
Aquilo era inacreditável. Enquanto Serina era baixa e sua
pele castanha parecia resplandecer cada raio de sol, Líon era
um verdadeiro poste, cuja pele morena parecia não ter visto a
luz do dia por um longo tempo... Nem o cabelo dos dois eram
iguais: o do novato era lanzudo e sem forma, caindo para os
lados de todas as direções - já o da garota era bonito e sedoso,
uma verdadeira cascata cacheada da cor do chocolate.
- Sim, infelizmente ele é o meu gêmeo - respondeu a
garota para mim, ao mesmo tempo em que empurrava com
força o ombro esquerdo do irmão - Porém eu sou a filha mais
velha.
- Só oito minutos mais velha! - protestou Líon,
massageando a clavícula de cara feia.
- Claro, mas isto não muda o fato que eu continuo
sendo a mais velha...
Antes que eu me recuperasse totalmente da surpresa,
o sinal da Academia ecoou pela calçada. Sem perceber, tanto
Serina quanto o novato me levaram escada acima para o
Portão de Entrada, os dois rindo até não poderem mais da
minha careta congelada de espanto.
Quando chegamos no pequeno patamar, Oliver e os
Privilegiados nos alcançaram, tirando Líon e eu do caminho
- ao mesmo tempo em que olhavam para a irmã do novato e
resmungavam para quem pudesse ouvir coisas como ''Que
desperdício!''.
Foi então que o pequeno balão de entusiasmo que
havia crescido dentro de mim desde que Serina me tocara
começou a se esvaziar. Estava na cara que toda aquela
atenção que a garota estava tendo comigo logo iria acabar.
Era só olhar para o lado; por onde ela passava, não
importava quem fosse, todos a acompanhavam. Com o
tempo, finalmente Serina iria ver que existiam companhias
muito melhores e mais parecidas com ela na Constantine do
que o irmão-gêmeo e - é lógico - eu.
E com a cabeça cheia de tudo aquilo, nem notei o
vulto alto e ruivo que nos seguia à uma pequena distância ao
longo do corredor, seus olhos negros e malignos
transbordando em um prazer ofensivo.
141
143 9. O C O N F R O N T O
Contrariando todo o bom senso, logo na primeira aula – que
foi no laboratório de Biologia - Serina dividiu a mesa com o
irmão e comigo. E verdade seja dita, oportunidade de se
esquivar de nossa companhia não lhe faltou.
Depois que entramos na sala, toda a turma de
veteranos nos encarou - ou melhor, encararam à ela -
estupefatos. Percebendo nossa chegada, o Prof. Novaz pediu
para que a garota se apresentasse à classe, antevendo que
Líon já deveria ter tido a oportunidade de fazê-lo no dia
anterior. Aceitando o convite com um meio sorriso tímido, e
uma naturalidade sem tamanho, ela o fez.
Pelos dois minutos em que falou, ela nos teve na
palma de sua mão. Nem mesmo Oliver e parte do grupo dos
Privilegiados que dividiam as aulas conosco pareciam ser
imunes ao poder que Serina irradiava. Secretamente,
enquanto a observava à frente do quadro negro, percebia o
quanto ela se parecia com o sol lá fora - repleta com uma
força magnética, a garota era capaz de envolver quem quer
que seja ao seu redor.
Assim que terminou o seu pequeno discurso, metade
das garotas - incluindo Alice Corvel e suas amigas -
ofereceram suas mesas para Serina se sentar. Porém,
surpreendendo à todos, ela recusou educadamente os pedidos
e se acomodou entre Líon e eu (me lançando uma rápida
piscadela que quase fez meu estômago rodopiar).
Durante o resto do dia, os dois irmãos me seguiram
por todas as salas de aula. Mas, diferente de mim ou do
novato, a menina atraía a atenção das pessoas por onde
passava.
Sem dúvida alguma, o momento mais embaraçoso foi
na hora do intervalo. Metade dos grupinhos espalhados pelo
Pátio Central da Constantine pareciam ter separado um lugar
cativo para Serina ao meio deles. Só que, novamente
frustrando a expectativa geral, a garota preferiu se recolher
junto comigo e Líon em uma pequena banqueta na Galeria
que ligava o Prédio Principal da Academia à velha
construção que nos servia como Biblioteca.
Por alguns minutos, tudo o que fiz foi ficar admirando
como a claridade que invadia a Galeria por entre as frestas
deixadas por suas colunas de tijolos vermelhos resplandecia
pela pele morena da garota. Eu tinha plena consciência que
Líon falava alguma coisa comigo, mas todas as palavras que
saíam de sua boca pareciam flutuar a minha volta, como se
eu estivesse usando potentes fones de ouvido no volume
máximo.
''Não fique encarando muito a novata, esquisitão!'', eu
me repreendia silenciosamente, quando Serina descansou o
sanduíche que comia em seu colo e virou-se na minha
direção, seus olhos castanhos repletos de uma preocupação
que não combinava com suas feições angelicais.
- Acho que aquele loirinho de hoje cedo está
encarando você... - cochichou ela, inclinando minimamente
o seu queixo na direção de Oliver Nigro, cujo a expressão
carrancuda parecia indicar que ele estava me fulminando
mentalmente.
- Ah, não se preocupe - respondi, não conseguindo
controlar o riso que surgia em meus lábios - Ele e os
amiguinhos dele sempre fizeram isto... Não é agora que iriam
parar.
- Mas por quê? - continuou Serina, sua face
demonstrando todo o choque que sentia - Por que eles te
tratam desse jeito?
- Sei lá... Acho que não me encacho nos ''altos
padrões'' de aceitação dos Privilegiados.
Parecendo não acreditar no que havia acabado de
escutar, a garota chegou mais perto de mim e me
esquadrinhou por inteiro, igual às garotas que ficavam
espremidas na porta do vestiário masculino antes das aulas de
Ed. Física.
- Você só pode estar brincando! - disse ela, meneando
a cabeça em descrença, um breve sorriso surgindo em seus
lábios - Ou isso, ou você não deve ter um espelho sequer na
sua casa!
Agora quem não acreditava no que havia escutado era
eu. Foi isso mesmo que eu ouvi? Serina, a garota que
praticamente parou a Constantine com a sua chegada,
acabara de dizer que me achava bonito?
- Hei, sobre o que vocês estão cochichando? -
interrompeu Líon, olhando de mim para a irmã com pura
suspeita.
- Nada - respondeu sua gêmea, pegando de volta o seu
sanduíche e o mordiscando de leve - Só estava dizendo para
o Adrian aqui que eu acho que aquele loirinho, da nossa sala,
está pensando em aprontar alguma coisa pra cima dele...
- O quê? O Oliver?! - exclamou o novato, não
disfarçando seu olhar de repulsa ao se inclinar para o outro
lado do pátio, onde os Privilegiados estavam - Tudo bem,
ontem ele se mostrou para mim um Otário com O
maiúsculo... Mas por que ele iria armar alguma coisa contra o
Adrian?
- Bom - começou Serina, claramente arrependida de
ter tocado no assunto na frente do irmão - Assim que eu
cheguei na escola, ele e o grupinho dele meio que... me
importunaram - na menor menção de Líon em se levantar, a
garota correu para apoiar sua mão esquerda sobre o peito
dele, tratando logo de acrescentar - Mas eu tinha tudo sobre
controle! Só que... bem, o Adrian viu e interferiu.
- E? - indagou o novato, claramente nem um pouco
convencido com o final que sua gêmea havia dado ao
assunto.
- Ahn - continuou Serina, olhando para mim como
quem pedisse um pouco de apoio - Ficou meio óbvio que esse
tal de Oliver não ficou feliz com a interferência do Adrian na
nossa ''conversa''. Só que, antes que as coisas ficassem
realmente feias, eu consegui separá-los.
- Então era por isso que vocês dois estavam se
agarrando em baixo da árvore quando eu cheguei?
- Sim, quero dizer, não! - engasgou-se a garota, ao
mesmo tempo em que eu tentava afrouxar o nó da minha
gravata - Não seja idiota.
Depois que Serina me alertou sobre o comportamento
de Oliver, durante o resto do dia me vi observando o garoto
por cima do braço - sempre me esquivando quando percebia
que ele se virava para mim. Era bastante nítido para qualquer
um que nós dois nunca tivemos uma relação de grande
camaradagem ao longo desses onze anos. Mas, até então, eu
nunca tinha visto o filho do diretor me encarar com tamanha
raiva - geralmente era só nojo.
Pois foi isso o que Oliver fez: me encarou com raiva
no intervalo... me encarou com raiva na aula de Cálculo...
Me encarou com raiva no Laboratório de Informática,
até que o último sinal do dia tocou, e toda a turma de
veteranos se dispersou, fugindo da sala como se houvesse
uma ameaça de bomba na escola.
Quando terminei de vestir o meu agasalho de
estimação por cima do paletó vermelho do uniforme,
acompanhei Líon e Serina na direção da entrada, fazendo
questão de ignorar o olhar persistente do rapaz sentado no
canto mais escuro do Laboratório.
- Então - eu disse, colocando minha mochila sobre os
ombros e subindo em cima do meu skate - tenho uma vaga
sobrando no meu automóvel. Quem quiser uma carona para
casa, é só subir. Mas vou avisando, as damas tem prioridade!
O Novato revirou os olhos deliberadamente, ao passo
que sua irmã se colocou entre nós dois e sorriu de forma
marota para mim.
- Você é um palhaço, sabia? - riu ela, ajeitando uma
mecha escura que havia caído sobre o seu rosto - Mas hoje
vou ter que recusar. Papai vem buscar a gente de carro para
almoçar, sabe... Comemorar o novo emprego dele e tal.
- Tudo bem - comentei, tentando esconder a minha
decepção.
- Mas amanhã eu vou aceitar essa carona com todo o
prazer! - completou a garota, assim que chegamos ao Pátio de
Entrada da Constantine.
- Eu não vou me esquecer disso... - eu disse,
contemplando os dois se afastarem de mim e entrarem em
um carro preto e elegante do outro lado da calçada.
Líon, que não havia perdido a esportiva, abaixou a
janela ao lado do seu banco e gritou na minha direção:
- Hei, eu também não vou me esquecer que vocês dois
iam me deixar voltar para casa a pé!
Ao som de uma breve buzinada de despedida -
provavelmente do pai dos gêmeos - o automóvel negro
acelerou e partiu, me deixando sozinho junto com os outros
estudantes que saiam da Academia e partiam para os seus
destinos.
Ainda rindo sem saber o por quê, dei impulso no meu
skate e segui à toda na direção da Casa-de-Bombeiros. O
trânsito pelas ruas de Ventura aquela hora estava bastante
movimentado, por isso resolvi pegar um atalho. Como
esperado, a passagem subterrânea que cruzava uma das
avenidas principais se encontrava vazia e mal iluminada,
então me dei ao luxo de continuar na mesma velocidade que
estava sem me preocupar em ''atropelar'' alguém.
Porém, antes que eu pudesse chegar ao fim da
pequena via, um vulto alto e forte bloqueou o meu caminho,
seu rosto oculto por um capuz e sua mão direita armada com
uma barra de ferro. Assustado, parei o skate de forma brusca
e tentei me equilibrar sem ver o chão, meus olhos congelados
na figura ameaçadora á minha frente.
Por um minuto, me lembrei do jovem demônio
perseguidor. Mas, assim como naquela manhã, eu estava
completamente equivocado. Com uma destreza particular, o
vulto girou a barra de ferro em sua mão e puxou o capuz do
seu casaco para trás, revelando seus olhos claros cobertos de
rancor.
- Oliver - sussurrei, tentando manter a calma - o que
você está fazendo aqui?
Com um sorriso sem humor algum, o rapaz parou e
me encarou, o bastão metálico ainda girando em sua mão. O
eco seco de passos às minhas costas me mostravam que ele
não viera sozinho. Quando me virei com cautela, vi Antoni e
Thomas se aproximando de mim, o primeiro segurando um
taco de beisebol e o segundo alizando um longo pedaço de
madeira.
- Hei, caras, nós sabemos que não precimos disso tudo
- tentei apaziguar, mas tudo o que eu consegui foi fazer
Oliver acertar a parede ao seu lado com a barra de ferro.
O som correu pela passagem e me encheu de pânico.
É claro que eu já havia brigado - ou melhor, apanhado -
outras vezes com aqueles caras. Porém, das outras vezes,
foram carne contra carne. Eu podia suportar. Só que, alguma
coisa me dizia, daquela vez eles queriam deixar uma
mensagem bastante clara para mim.
- Regis, Regis... - suspirou Oliver, chegando mais
perto de onde estava - cadê toda aquela bravura que você
demonstrou pra gente hoje de manhã? Foi embora com a
garota?
Antoni e Tomas riram atrás de mim. De fato, pela
primeira vez na vida, eu queria mesmo que o ''Adrian
Rebelde'' e sem medo de ser expor estivesse ali para me
controlar. Mas, como ele mesmo disse, parecia que o meu
espirito destemido havia ido embora naquele carro elegante
junto com Líon e Serina.
- Você sabe que seria mais racional se você
simplesmente me dissesse para que, da próxima vez, eu
ficasse fora do seu caminho, não? - perguntei, pegando
cautelosamente o skate dos meus pés e o segurando á minha
frente.
- É claro que eu sei... - respondeu o líder dos
Privilegiados - Mas hoje eu estou afim de tirar um pouco de
sangue dessa sua carinha.
Se não fosse pelos meus dons de Arcano, eu tinha
certeza que teria caído no chão sem pensar duas vezes. Assim
que terminou de falar, Oliver girou o seu bastão tão rápido
na minha direção que tudo o que eu pude fazer foi me
esconder embaixo da prancha do skate. O choque do metal
com a madeira o desequilibrou, mas isto não impediu que
seus amigos viessem ao seu auxílio.
Antes que os dois pudessem me atingir, joguei o meu
skate para trás com toda a força. A prancha os atingiu em
cheio no meio do estômago, e tanto Antoni quanto Tomas
foram arremessados para trás iguais à duas grandes e
horrendas marionetes. Recuperado do choque, Oliver tentou
me acertar mais uma vez, porém eu consegui ser mais rápido.
Aparei a barra de ferro entre as minhas duas mãos e a
entortei, transformando-a em um enorme ponto de
interrogação.
Aterrorizado, o garoto tentou fugir, mas era tarde
demais. A adrenalina tomava conta do meu ser, e tudo o que
eu via na minha frente eram formas escuras e vermelhas.
Sem dar margem para escapatória, peguei o filho do
Diretor Nigro pelo colarinho do uniforme e o joguei na
mesma direção onde seus amigos tentavam se levantar. O
choque fez os três caírem novamente, uma emaranhado
grotesco de braços e pernas se movendo em todas as direções.
- Que tipo de coisa é você? - bradou Oliver, assim que
conseguiu se levantar e limpou o pequeno filete de sangue
que escorria pelo canto de sua boca.
Eu não tive tempo de responder que tipo de coisa eu
era. Após ajudar os amigos a se levantarem, Oliver e seus dois
comparsas correram á toda velocidade na direção contrária
da passagem subterrânea - deixando para trás apenas o taco
de beisebol, o pedaço de madeira e os bastão de ferro
retorcido.
Assim que os três saíram do meu campo de visão, um
poderoso sentimento de culpa me tomou. O que eu havia
feito? Eu usara meus dons de Arcano para machucar outra
pessoa, drasticamente mais fraca e quebrável do que eu.
Respirando rápido, tentei reunir todas as minhas
coisas que haviam se espalhado durante o confronto.
Enquanto jogava tudo o que eu alcançava para dentro da
minha mochila, eu pensava que Oliver poderia estar neste
exato momento contando para todos que conhecíamos o que
eu havia acabado de fazer à ele, Antoni e Thomas.
E foi neste instante que a luz da passagem se ascendeu
e voltou a se apagar. Confuso, olhei para os lados para tentar
ver o que havia acabado de acontecer. Para meu espanto,
parado contra a luz do sol - no lado oposto do vão - se
encontrava a sombra alta e descamisada de um rapaz ruivo e
musculoso. Seus olhos negros como a noite me avaliavam
com atenção, um dos cantos de sua boca levemente repuxado
em uma expressão de contentamento.
Contrariando a lógica normal, me levantei e segui à
passos largos na direção do demônio que perseguia Líon e
que o empurrara da plataforma do Pavilhão de Tortura no
dia anterior. Quando cheguei perto dele, tudo fez sentindo.
Foi ele!
Aquilo tudo, desde de manhã, havia sido armado por
ele! O aprendiz de assassino havia controlado a Oliver e a
mim para que nos confrontássemos, para que eu usasse os
meus dons de Arcano. Por isso a sensação de ser tomado por
uma personalidade que não era minha.
- O que você quer? - cuspi com raiva, tendo que
inclinar a minha cabeça para poder olhar o rosto zombeteiro
à minha frente.
- O que eu quero? - disse ele, com uma voz grave e
divertida - Hum, eu acho que você sabe... Eu quero você fora
do meu caminho!
Eu o admirei, minhas mãos fechadas em punho. Ele
estava pedindo para eu sair de fininho e observar Líon
morrer? Só podia ser brincadeira.
- Acho que isso vai ser meio impossível – respondi,
meus dentes tão cerrados quanto os meus olhos.
- Impossível, é? Então acho que vou ter que preparar
muitas outras brincadeiras para nós dois!
Com um sorriso maligno, o jovem demônio
tremeluziu e desapareceu. Eu ainda girei nos calcanhares, na
vaga esperança de o encontrar atrás de mim, mas tudo o que
eu podia ver era minha mochila, meu skate e a luz do sol que
invadia a pequena passagem - sem dar pistas da aparição que
havia acabado de se materializar ali.
157
159 10. P E S A D E L O
Mesmo sabendo que estava seguro na Casa-de-Bombeiros,
meu coração continuava martelando forte contra o peito.
Durante todo o relato do meu encontro com o
demônio de Líon, meu pai e Angel não trocaram uma só
palavra. Cirus, que continuava usando o seu uniforme da
Brigada de Paramédicos, parecia aturdido ao escutar cada
descrição que eu fazia. Já minha tia olhava para mim em um
estado de choque, sua expressão mudando para a indignação
assim que terminei de contar tudo o que aconteceu.
- Eu não acredito que ele te ameaçou, veja só! Ou ele
não faz a miníma idéia com quem está se metendo, ou ser um
Arcano hoje em dia não deve significar mais nada...
Ainda pensativo, Cirus se levantou da poltrona onde
estava sentado e começou a andar de um lado para outro. Eu
sabia muito bem o que ele estava fazendo, e também sabia
que estava prestes a enfrentar um breve interrogatório.
- Você disse que o demônio controlou você e Oliver?
- perguntou ele junto a mim, os braços cruzados sobre o
peito e seus olhos cinzentos mais frios do que eu já havia
visto até então.
- Bom, foi mais ou menos o que ele deu a entender -
repliquei, não estando tão certo sobre isto quanto antes.
Com um balançar de cabeça, meu pai voltou ao seu
percurso rotativo em meio a sala de estar, enquanto Angel se
ajeitava sobre o braço do sofá em que eu estava sentado.
- Mano, isto não faz o menor sentido! - disse ela, seus
olhos azuis congelados de espanto e dúvida – Demônios
Comuns não podem atuar no campo espiritual... Muito
menos infligir seus poderes à um Arcano.
- Mas é aí que está a questão - respondeu Cirus,
parando novamente de caminhar - Acho que o que ele fez foi
interferir nas emoções presentes no ambiente ao seu redor, e
para isto, nem é preciso atuar no campo espiritual. É como
possuir um corpo: ele vai controlar seu organismo, mas não
sua alma. Poucos seres da classe Comum sabem como fazer
isto, mas pelo jeito, o que nós estamos enfrentando é mais
inteligente do que esperávamos.
Angel pareceu entender muito bem a explicação de
seu irmão, porém, eu continuava perdido e assustado. Agora,
mais do que nunca, Líon corria perigo. E não só isso: todos ao
seu redor, incluindo Serina e quem quer fosse, também.
- Sei o que está pensando - disse meu pai, parando ao
meu lado e passando seu braço pelo meu ombro – mas
acredite, tudo vai ficar bem. Temos que ficar mais alerta,
sim... Mas nada vai acontecer com seu amigo; lhe dou a
minha Palavra de Arcano.
Por um momento, olhei atônito para Cirus. A Palavra
de Arcano era o maior juramento que alguém como nós
poderia dar. Depois disso, vi que meu pai estava realmente
empenhado em me ajudar nesta missão.
- E agora, o que vamos fazer? - inquiriu Angel,
reunindo rapidamente seus cachos platinados com as mãos e
os prendendo com um elástico no alto da cabeça.
- Para início de conversa - começou Cirus, sua postura
reta e autoritária, em uma posição que eu intimamente
chamava de ''Módulo Arcano em Ação'' - Você e eu iremos
pesquisar qualquer coisa que possa ter acontecido com o
rapaz ou que esteja relacionado à ele... Vamos procurar nos
hospitais, na delegacia, no corpo de bombeiros e até no
cartório. Qualquer informação, por menor que seja, pode ser
valiosa para nós.
Angel meneou a cabeça em concordância, se levantou
do braço do sofá e deixou a sala, como se fosse partir em sua
busca naquele exato instante.
- Quanto a você...
Antes que meu pai me dissesse qual era a minha parte
ativa no plano, eu já estava consciente do que iria fazer. Para
falar a verdade, eu meio que já sabia a minha função desde
que vira o demônio de cabelo cor-de-fogo no Pavilhão de
Tortura da Academia.
Eu seria o guardião secreto de Líon Biel.
A partir daquele instante, eu o seguiria para qualquer
lugar, estaria atento à tudo ao nosso redor e o protegeria da
menor ameaça que surgisse no nosso caminho - igual à um
cão de caça treinado... ou à um Anjo da Guarda, olhando a
situação por um ângulo mais objetivo.
E foi exatamente o que eu fiz nas três semanas
seguintes.
Todos os dias, eu buscava o garoto em casa, o levava
para a escola e o acompanhava em todas as aulas. A volta era
bastante parecida, e eu só me sentia tranquilo quando via que
a porta de entrada da moradia dos Biel estava sendo trancada
à chave. Não que isso pudesse de fato deter qualquer
manifestação sobrenatural, mas a simbologia que a cena
representava me deixava muito mais calmo pelo resto do dia.
Um bônus inesperado que recebi por esta dedicação
foi a presença de Serina. Assim como eu, a garota
acompanhava o irmão na ida e na volta para casa. E, mesmo
tendo que dividir a sua atenção entre as dezenas de
seguidores que conquistara na Constantine, ela sempre
arrumava uma brecha para ficar na nossa companhia por um
tempo. E não era só a amizade com Serina que estava
seguindo um rumo diferente do qual eu previra.
Para minha surpresa, nem Oliver - nem nenhum dos
seus amigos - comentou um detalhe sequer da nossa briga
sob a passagem subterrânea logo no segundo dia de aulas. Na
verdade, depois que o assunto esfriou em minha mente, eu
comecei a suspeitar que admitir que apanhara como nunca
do ''Mestre dos Esquisitos'' não era exatamente algo que o
líder dos Privilegiados estivesse louco para fazer - por mais
que isto pudesse arruinar a minha vida.
Não que o ato não tivesse gerado uma consequência.
Se antes Oliver não me suportava, agora ele me odiava
com todas as suas forças. Estava escrito, desenhado e
estampado na cara dele. Sempre que me virava na sala de
aula, o garoto parecia me encarar, seus olhos claros me
enviando onda atrás de onda de tensão. Como se fosse
possível, a cada dia que passava, a raiva parecia consumir o
filho do diretor aos poucos: Sua pele começou a ganhar um
estranho tom pálido, sua barba estava sempre por fazer, e seu
cabelo – outrora brilhante e dourado – parecia opaco e
apagado.
Se as coisas pareciam estar indo de mal a pior para
Oliver, o mesmo eu não poderia dizer sobre mim. Uma das
grandes vantagens de eu ter, praticamente, começado a
seguir os gêmeos Biel foi que um terço dos estudantes da
Academia Constantine pareciam ter perdido a ''aversão'' que
sentiam por mim. Eles deviam pensar: ''se Serina e o irmão
parecem gostar dele, por que não dar uma chance?''
Às vezes, quando a garota conseguia um tempo e se
sentava com Líon e eu na hora do intervalo, Alice Corvel
trazia todas as suas amigas para conversar conosco, formando
um gigantesco grupo para lá de peculiar. Quando elas não
estavam por perto, Daniel Maltha e seus companheiros da
Equipe de Lutas vinham se encostar ao redor de mim e do
novato, rindo e falando sobre qualquer coisa: desde esportes
até o clima, mangás, filmes, música e... bom, meninas, é
claro.
Era confuso, mas eu me sentia normal pela primeira
vez. Quando eu passava pelo corredor, as pessoas agora me
cumprimentavam. E, como se não bastasse, nessas três
semanas eu não tive um vislumbre sequer do aprendiz de
demônio.
Mas não pense que isto fez com que eu abaixasse a
minha guarda, não mesmo. De vez em quando, eu me pegava
pensando na criatura, no que ela poderia estar tramando para
desaparecer por tanto tempo. Na sexta feira, quando
estávamos na Biblioteca no horário da Rede de Leitura,
Serina me flagrou desenhando distraidamente as feições
nebulosas do perseguidor.
- O que você está fazendo? - perguntou ela, pegando o
meu caderno e encarando o esboço de um par de olhos
negros e famintos.
- Não é nada - respondi rápido, tentando tirar a folha
de suas mãos - é só um desenho-de-treino.
- Nossa, é tão lindo e... assustador ao mesmo tempo -
disse ela, me devolvendo o caderno e colocando o seu queixo
sobre as mãos.
- Ih, se prepara que ela vai te pedir alguma! -
sussurrou Líon ao meu lado, enquanto corria os olhos pela
página do livro que lia.
Com um movimento, a garota jogou o volume que
segurava na cabeça do irmão e se voltou para mim, como se
nada tivesse acontecido.
- Então - continuou ela, deslizando o seus dedos pela
espiral do meu caderno até encontrar a minha mão -
Amanhã, a Equipe do Daniel vai enfrentar o pessoal do
Instituto Delta aqui na escola, à noite. As meninas todas vão
vir, e eu gostaria de saber se você não quer vir comigo?
Em uma batida, meu coração parou. Tentando
compreender o que estava se passando ali, olhei por sobre o
ombro da garota à minha frente e vi suas colegas reunidas
atrás de uma estante, observando nós dois sem pudor algum e
dando altas risadinhas. Já em algumas mesas de distância,
Daniel e os outros garotos da Equipe balançavam os braços
para mim, amostrando pequenos cartazes-de-papel com
dizeres como ''Vai fundo, cara!'' e ''Você é nosso herói!''.
Por um milésimo, me imaginei passeando com Serina,
nós dois de mãos dadas e quem sabe, bem... Mas, assim que
imaginei isto, percebi a presença de Líon ao meu lado e tudo
veio abaixo. Eu não podia deixá-lo sozinho para poder sair
com a irmã dele. As consequências de um erro meu poderiam
ser terríveis, e eu nem queria pensar nelas. Foi então que eu
tive uma idéia brilhante para aproveitar aquela oportunidade
única, não esquecendo dos meus compromissos de Arcano.
- É claro que sim - respondi, abrindo o sorriso que eu
usava quando queria pedir alguma coisa para Cirus - mas eu
tava pensando: Por que não levar o Líon?
- Ah, nem pensar! - arfou o novato, olhando de mim
para irmã de forma carrancuda - É ruim que eu vou sair com
vocês pra ficar de vela!
Mas uma vez, a irmã pegou o livro que segurava e o
bateu na cabeça do irmão.
- Tudo bem, eu entendi! - disse Líon a contragosto,
massageando o ponto em que o livro o acertou - Isso não é
um encontro, é só uma saída de ''amigos''...
Ao falar ''amigos'', o garoto fez questão de formar
aspas no ar com os dedos. Mas aquilo bastou para ela e para
mim. No dia seguinte, lá estava eu, acompanhando os dois
gêmeos pelas ruas de Ventura, na direção do campus da
Constantine.
Já eram seis e meia da noite, e todas as luzes da escola
estavam ligadas. Olhando de relance para a fachada dos
prédios, a Academia mais parecia um castelo do que outra
coisa - suas pequenas luminárias banhando as paredes de
tijolos vermelhos de baixo para cima. Do lado de fora, nós
conseguíamos escutar com nitidez a algazarra que vinha do
Pavilhão de Tortura e enchia o ar crepuscular da rua.
Quando finalmente chegamos ao Ginásio
Poliesportivo, onde aconteceria o Desafio de Lutas, a banda
do Instituto Delta terminava de fazer sua apresentação um
tanto desafinada ao som do clássico ''Hey, Mickey!''. Ao que
parecia, antes dos membros de cada equipe se enfrentarem
na arena, o pessoal das bandas faziam o mesmo - só que com
seus instrumentos, ao invés de braços e pernas.
Assim que encontramos o nosso lugar junto das
colegas de Serina, Daniel e seus companheiros se viraram
para mim e piscaram deliberadamente. Eu tentei fingir não
ver os olhos de Líon rolarem para o céu como se dissesse
''eles pensam que me enganam'', por isso tentei prestar
atenção ao máximo na Equipe da Constantine.
Eu não sabia como Daniel e os outros conseguiam se
sentir tão confortáveis estando naqueles colantes vermelhos.
Eram constrangedores. As Garotas da Conferida estavam
posicionadas estrategicamente logo atrás da área de
concentração do time da Academia, e toda hora elas
apontavam para os rapazes de vermelho e se abanavam.
Depois do Diretor Nigro ir até o centro da Arena e
cumprimentar o administrador do colégio adversário cheio
de pompas desnecessárias, o juiz chamou os capitães das duas
equipes e explicou as regras. Daniel e o outro garoto
pareceram concordar com os termos apresentados, então os
dois tomaram suas posições na área atapetada e o juiz assoou
o apito.
Eu gostaria de dizer como foi a luta, mas não posso. E
quando eu digo não, estou querendo dizer na verdade ''não
sei o que aconteceu''. Pois, logo após que escutei o eco do
apito chegar até mim, eu senti uma dor alucinante rasgar o
meu cérebro e desmaiei.
Ao acordar, eu não estava mais no ginásio. Na
verdade, nem na Constatine eu deveria estar. Tudo ao meu
redor parecia escuro, e os único ruídos que quebravam o
silêncio era o barulho fraco de um motor e duas vozes
familiares cantarolando despretensiosamente ''Bohemian
Rhapsody'' atrás de mim.
Tentei abrir os olhos, mas minhas pálpebras pareciam
pesadas e lentas. Com um esforço digno de Hécules, consegui
despertar de vez. Em um esgar de espanto, percebi que estava
sentado no banco do carona de um Táxi - o automóvel, cujo
o rádio parecia estar no último volume, percorrendo uma
longa avenida ladeada por grandes eucaliptos. Eu reconheci o
lugar (era a autopista que ligava Ventura à Dumont), só não
sabia por que estava ali.
Ao meu lado, o taxista - um homem alto e jovem, com
grandes costeletas e olhos brilhantes - concentrava toda a sua
atenção na estrada à nossa frente, nem parecendo perceber
que eu havia acabado de acordar. Ainda sentindo a forte dor
de cabeça, me virei na direção das vozes alegres e estridentes
que quebravam o silêncio dentro do carro e tentei ver quem
me acompanhava naquela viagem... mas tudo que eu
consegui foi me olhar no reflexo de um vidro escurecido,
refletindo nas sombras as curvas sinuosas do caminho.
De repente, em sincronia com o clímax da música, um
par de luzes ganhou vida do nada e eu senti o mundo inteiro
perder o eixo. Som de pneus freando e o barulho de um
automóvel capotando cruzou os ares da noite. O Táxi girou
mais três círculos perfeitos de 360°, até que atingiu em cheio
o tronco largo de um eucalipto, fazendo o vidro dianteiro se
estilhaçar em mil pedaços.
Atordoado, tirei o cinto de segurança que me prendia
e corri para ajudar o taxista, que estava desacordado. O
homem tinha uma feia marca roxa na testa, mas graças ao seu
cinto, nada mais tinha sofrido. A barulheira produzida pelos
passageiros atrás de mim havia morrido, porém não me
preocupei - o maior dano estava na frente do Táxi, não atrás.
Respirando fundo, tentei abrir a porta do lado do
carona, mas não consegui. Olhando para os lados, usei minha
força extra e ainda assim a passagem continuava emperrada.
Aquilo era ridículo. Como eu iria ajudar os outros se
nem a mim mesmo eu podia ajudar?
Sentindo um forte arrepio, me virei para frente e o
meu sangue ferveu. Do outro lado da pista, um conversível
negro e elegante se encontrava de cabeça para baixo, seu teto
removível jogado à uns oito metros de distância. Eu não
conseguia ver como o motorista do outro carro estava, e
aquilo estava me deixando aflito.
Fazendo mais força para me libertar, percebi que cada
vez mais as cores ao meu redor pareciam se esvair, e uma
névoa gélida e cortante começou a se espalhar pela via, suas
formas se espiralando e ganhando dimensões estranhas. Um
rasgar cortante e espectral cruzou a autopista, e com o
coração na mão, vi o dono do outro automóvel se arrastar por
debaixo da carroceria - seus braços e suas pernas em ângulos
macabros e impossíveis.
Congelado, vi o motorista se erguer igual à uma
marionete, seus pés trás traçando uma reta na direção do
Táxi abatido. Eu queria gritar, mas minha voz não saía e
todos os meus movimentos pareciam mais lentos. Curvando-
se na minha direção, o homem arrancou a porta do carona e
o jogou para longe, o metal produzindo uma chuva de faíscas
ao tocar o solo asfaltado à mais de quinze metros.
Reunindo toda a minha coragem, encarei o estranho
que se agigantava sobre mim e senti o choque me abater.
Recortado contra lua, o rosto maligno do demônio que seguia
Líon me encarava com prazer, sua cabeleira ruiva
vergastando contra o vento ártico.
- Acho que nos encontramos de novo, não? - disse ele,
seu hálito pesado me atigindo com um soco. Antes que a
criatura fizesse algo mais, consegui me livrar das amarras
invisíveis que vedavam a minha boca e gritei.
E foi o meu grito sufocado que me libertou e me fez
acordar de verdade, estatelado sobre a maca de vinil negro da
Enfermaria da Constantine.
Quando abri os olhos, Serina e Líon estavam ao meu
lado, acompanhados por toda a Equipe de Lutas, mais Alice e
suas amigas. O Prof. Novaz avaliava metodicamente a minha
pressão, até que percebeu que eu havia acordado, e me
encarou com seus olhos imensos e simpáticos.
- Vejam só, o dorminhoco acordou!
A tensão que sustentava o ar se dissipou rapidamente.
Pude perceber cada músculo do maxilar do novato se
descontrair, e com um pequeno suspiro, sua gêmea chegou
mais para perto da minha cama e passou as mãos pelos meus
cabelos úmidos de suor.
Eu sabia que aquele não era um momento apropriado,
mas um terço da ligação que me tomou à três semanas atrás
percorreu com força todo o meu corpo. Por um segundo, eu
queria que nos deixassem sozinho, e que parassem de olhar
para mim daquele jeito assustador.
- Hei, o que foi que aconteceu, cara? - perguntou
Daniel, dando um leve tapinha na minha perna direita -
Você nem viu a nossa escola estraçalhando os babacas do
Delta!
Com um incontrolável bocejo, me levantei da maca e
olhei ao meu redor. Eu não havia desmaiado - na verdade, eu
havia mergulhado no sonho que me atormentava quase todos
os dias, mesmo estando acordado. Algo me fez ficar
inconsciente, e algo havia me revelado a cena inteira do meu
pesadelo.
Até aquele momento, a cena sempre acabava quando
o motorista do outro carro arrancava a porta do carona e a
jogava para trás, suas mãos retorcidas se aproximando de
mim e tentando me pegar. Porém, hoje, eu vira o rosto dele...
e eu não tinha nem palavras para descrever o que estava
sentindo.
Aquilo era ruim. Muito ruim.
- Eu, eu preciso ir para casa - sussurrei, minha voz
engrolada e seca como se eu tivesse acabado de ser resgatado
de um deserto. - Se acalme, jovem Regis - disse o Prof.
Novaz, pegando um estetoscópio e o levando na direção do
meu peito - Seu pai já foi avisado, e ele está vindo aqui para
buscá-lo.
- Mas e Serina, e Líon? Quem vai levá-los para casa?-
perguntei, olhando de um rosto a outro, como se pedisse
ajuda.
- Não se preocupe - disse Líon, passando o braço pela
cintura da irmã - Nossos pais já chegaram, eles vão nos levar.
Só estávamos esperando para ver se você estava melhor.
Sem saída, fechei os meus olhos em concordância e
deixei o socorrista terminar o seu trabalho. Tudo não havia
passado de uma ilusão. Eu nunca seria normal, e nada
poderia mudar essa condição. Esse tempo todo eu estava
tendo sonhos com o demônio assassino, mas só agora eu
descobrira.
Que tipo de Arcano eu era?
Olhando para os rostos preocupados que me
rodeavam, percebi que as coisas haviam mudado, sim. E por
três semanas eu me deixei acreditar que eram para melhor.
Só então eu entendi que tudo fazia parte de uma
estratégia, um plano maligno e cruel.
Pois, olhando para aquelas pessoas, finalmente vi que
o jogo das sombras havia começado. E logo eu, o garoto mais
solitário de Ventura, enfim tinha muito mais coisas a perder
do que antes.
177
179 11. M E N S A G E M
Aquele foi o pior domingo da minha vida.
Deitado na minha cama, repassei mentalmente todos
os acontecimentos do dia anterior: O mergulho para o
inconsciente, a visão do jovem demônio sobre mim, os rostos
de preocupação me rodeando na Enfermaria da Constantine,
a mão de Serina alisando os meus cabelos... Era como andar
em uma Montanha-Russa de emoções.
No meio da manhã, Daniel me ligou, perguntando
como eu estava me sentindo. Ele parecia realmente
preocupado, mas parte do meu cérebro se questionava como
ele havia conseguido o número do meu telefone.
- Foi como o prof. Novaz explicou - disse eu,
agradecendo em silêncio a boa desculpa que o socorrista da
Academia tinha providenciado para mim - Com esse estresse
do último semestre, a pressão para a Faculdade... Sabe como
é, a gente acaba se alimentando mau e... resultou nisto.
Desidratação.
Eu sei, estava contando uma mentira deslavada. Não
estava desidratado. Nunca em minha vida eu havia deixado
de comer por qualquer coisa e muito menos estava
preocupado com a escola. Porém, eu não podia simplesmente
contar para ele o que de fato aconteceu.
- É, eu seu como é - continuou Daniel, sua voz um
tanto paternalista - Mas isso não pode se repetir! E se a
Equipe de Lutas por acaso ficar desfalcada para as Regionais e
precisarmos de um substituto? O que iríamos fazer?
Precisei de meio minuto para entender o que o rapaz
do outro lado da linha estava me falando. E precisei de mais
um minuto para compreender boa parte das três semanas que
haviam passado.
A aproximação repentina de Daniel e dos garotos da
Equipe nada tinha a ver com os irmãos Biel. De alguma
forma, o capitão e os outros rapazes descobriram o meu
pequeno duelo contra Oliver Nigro e dois de seus
cumpinchas mais habilidosos. E agora, para meu espanto,
eles me queriam perto do time - como um verdadeiro reserva
de luxo.
- Eu... eu não sei o que dizer.
- Não se preocupe com nada - disse Daniel – Apenas
se cuide, valeu? Nos vemos amanhã na escola.
Antes que eu me recuperasse da surpresa e
conseguisse recusar o convite de forma gentil, a ligação
acabou.
- Ótimo... agora sim ferrou tudo - murmurei para
mim, recolocando o aparelho no gancho e indo para a
cozinha preparar o almoço.
Como eu esperava, nem Cirus nem Angel estavam em
casa. E, mesmo se estivessem, seria eu mesmo quem iria
preparar a refeição de qualquer forma. Por isso, enquanto
remexia na geladeira da cozinha procurando algo que fosse
rápido e fácil, tudo o que eu fazia era pedir a Deus que
nenhum integrante da Equipe de Lutas da Constantine se
contundisse durante esse último semestre.
Já estava bastante difícil de me concentrar só nas
ações psicóticas de uma criatura das trevas vingativa. Acho
que não precisava também de um processo por Lesões
Corporais Graves para arruinar a minha vida.
Foi pensando nisso que eu acabei me lembrando de
Líon e Serina. Eu queria ligar para os dois, saber como eles
estavam, mas sabia que seria esquisito se eu o fizesse.
Segundo os últimos acontecimentos, era eu quem
precisava de atenção, não os gêmeos. Perdido neste torpor,
escutei a porta de entrada da Casa-de-Bombeiros ser aberta e
os passos pesados de Cirus se aproximarem da cozinha, seu
estômago roncando ruidosamente.
- Hum, torta de queijo! - exclamou meu pai, pegando
uma garrafa de água e se escorando no mármore da pia, onde
eu preparava o almoço - E aí, garoto, como você está se
sentindo?
- Normal - respondi, olhando diretamente para o
tabuleiro untado de manteiga em minhas mãos.
Cirus me encarou, esperando que eu continuasse a
frase, porém eu não falei nada. Quando o meu pai me pegou
ontem na escola, não comentei sobre o sonho que tive – o
sonho que me fez desmaiar do nada. Entretanto, como
sempre, ele sabia que eu estava escondendo algo dele. E
como sempre, eu me sentia culpado por isso.
- Onde está a Angel? - perguntei, tentando
desesperadamente mudar de assunto.
- Não sei - disse ele, levando mais uma vez a garrafa
de água a boca - Hoje de manhã, quando estávamos na
garagem, ela disse algo sobre ''a peça que estava faltando''...
Sabe como aquela menina é, no mínimo tá aprontando
alguma coisa.
Concordei com a cabeça, mas ainda assim não olhei
para ele diretamente.
Depois de alguns minutos, logo após eu ter colocado a
massa da torta no forno para assar, Cirus se esparramou em
uma cadeira e me avaliou, seus olhos cinzentos tão brilhantes
quanto o flash de uma máquina fotográfica.
- Será que já disse para você que eu te acho o pior
mentiroso do mundo?
Sentindo um arrepio na espinha, me virei para ele e
suspirei, obrigando os meus lábios a falarem tudo o que eu
estava ocultando desde a noite anterior.
- O que aconteceu na escola não foi um desmaio
clínico - disse por fim, o peso que estava sobre as minhas
costas se agravando gradativamente - Algo me fez ficar
inconsciente...
- ... e eu acho que sei quem foi - completou Cirus,
suas feições duras e sérias.
- Pai, como isso é possível? - questionei, lutando para
que minha voz mantivesse o tom calmo - Eu não sei o que
ele está planejando, mas eu sinto como se estivesse
enlouquecendo!
- É esse o seu problema, Adrian - murmurou meu pai,
se colocando ao meu lado em um átimo de segundo, seu
braço esquerdo descansando de forma gentil nos meus
ombros tensos - Você se deixa abalar facilmente. De cara ele
percebeu isto, e está óbvio que o demônio está usando suas
emoções ao favor dele.
Mesmo eu não querendo admitir, Cirus estava coberto
de razão ao meu respeito. Por isso que, depois de servir o
almoço para nós dois (Angel ainda não havia aparecido) e
arrumar a bagunça que tinha ficado na cozinha, fui para o
meu quarto e me obriguei a pensar com clareza.
Eu sabia que meu pai não iria me interromper pelo
resto dia - domingo era o ''Dia de Total Reclusão'' dele -
então não vi necessidade de trancar a porta. Durante a tarde
inteira, e boa parte da noite, vaguei de um lado para o outro -
forçando a mim mesmo a me controlar. Se aquela criatura
estava pensando que iria usar meus próprios medos contra
mim mesmo, ela podeira tirar o seu par de asinhas coráceas
da chuva.
Antes que desse por mim, a escuridão da madrugada
se dissipou e os primeiros tons do alvorecer iluminaram o
vasto céu aquarelado de Ventura. Fiquei um curto tempo
sentado na minha cama, observando a constelação de poeira
matinal atravessar a janela do quarto, até que o relógio digital
soou o seu alarme – ironicamente entoando a melodia
compassada de ''Bohemian Rahpsody'' - e eu me vi
levantando e me arrumando mecanicamente para o novo dia
de escola.
Não procurei por Cirus, muito menos por Angel. Para
falar a verdade, nem tinha a noção se minha tia havia voltado
para casa ontem. Tudo o que eu queria era sair dali e ver se
Serina e Líon estavam bem. Se nada de ruim havia
acontecido com eles enquanto estava longe. Por isso que eu
acho que dá para imaginar de uma forma bastante clara como
eu fiquei surpreso quando abri a porta da Casa-de-
Bombeiros, pronto para partir, e me deparei com os gêmeos
empoleirados na soleira da entrada - os rostos idênticos
franzidos em apreensão.
- Vejam só, o Belo Adormecido finalmente saiu do
castelo! - exclamou Líon, ao mesmo tempo em que Serina me
estendia um grande copo de isopor repleto de chocolate
quente, seu sorriso solar se expandindo pelo rosto.
- Nós estávamos preocupados - disse ela, encolhendo
os ombros delicadamente assim que viu a minha expressão
confusa - Não paramos em casa ontem, mas não fiquei um
minuto tranquila. Você realmente nos assustou no sábado!
De forma inconsciente, a garota ergueu a mão direita
e passou pelo meu braço, como se para ter certeza que era eu
mesmo ali na frente dela. Em resposta ao seu toque, pude
sentir minhas orelhas ficarem quentes, e o velho rubor se
espalhando pelas minhas bochechas.
- Eu... eu estou bem - disse por fim, assim que
consegui tomar o controle das minhas cordas vocais. - Foi só
um ataque de fraqueza. Não precisava se preocupar.
Muita mais poderosa do que da primeira vez, a
sensação da ligação que me tomava sempre que eu
encontrava Serina encheu o ar à nossa volta como uma
tempestade elétrica. Por um segundo, me permiti mergulhar
nos olhos escuros da garota, sua pele castanha
resplandecendo contra a minha, alva e pálida.
- Será que o dois já terminaram de flertar? - retrucou
Líon, esfregando suas mãos uma na outra - O dia está lindo
como sempre, mas aqui fora parece que está caindo neve!
Como se despertasse de um sono profundo, Serina
olhou envergonhada para a mão que continuava a alisar o
meu braço esquerdo. Assim que ela recolheu o seu toque,
minha pele protestou indignada. Fingindo não escutar o
martelar desvairado do meu coração, tranquei a porta às
minhas costas e acompanhei os dois na diração da escola.
- Então Adrian - começou Serina, passando o seu
braço sobre o ombro do irmão, tentando ao máximo disfarçar
o que havia acabado de acontecer - Você soube? Já
começaram a planejar o nosso Baile de Formatura.
Em resposta à novidade, senti os meus ombros se
encolherem e minha garganta se fechar com um ruído fraco.
O Baile de Formatura da Academia Constantine era
mais uma tentativa frustrada e clichê do Diretor Nigro de
induzir cada veterano de sua instituição à se sentir em um
filmeco adolescente feito para a televisão. Como a cerimônia
era o auge do reinado dos Privilegiados, não precisava pensar
muito por que eu não gostava nem um pouco de me imaginar
pisando no salão de festas do Grand Hotel Ventura – onde
sempre aconteciam os eventos de gala da cidade - na noite do
Baile.
Para piorar as coisas (ou refrescar ainda mais a minha
memória), assim que chegamos ao campus da Academia, vi
um grupo de zeladores estendendo na Torre do Relógio uma
enorme faixa vermelha com os dizeres:
16º Baile Anual de Formatura ''UMA NOITE CELESTIAL''
Ingressos na Secretaria
- Urgh, que tipo de tema é esse? - indagou Líon,
olhando tão exasperado para o cartaz quanto eu – ''Uma
Noite Celestial''?! Já posso imaginar as fantasias bizarras que
vão surgir no dia...
Serina pareceu indignada com o comentário do irmão.
Depois de olhar do novato para mim, ela meneou a cabeça
com reprovação e saiu apressada na direção do Pavilhão de
Tortura, não antes de murmurar um ''garotos...'' impiedoso
para nós dois.
- Mas o que foi que eu fiz? - resmunguei admirado, ao
passo que olhava o rastro deixado por Serina enquanto se
afastava de onde estávamos - Eu não disse nada de ruim
sobre esse maldito Baile!
O garoto se virou para mim com uma careta que dizia
claramente ''uma imagem vale mais do que mil palavras'',
mas no fim, ele acabou inspirando fundo e falando com uma
calma bastante fingida:
- Basta comprar os convites, levá-la para esta tal festa
e ela vai se esquecer de tudo... Eu garanto.
Já imaginando o sangue que deveria estar se
concentrando em minha face, encarei Líon sem saber o que
fazer. Revirando os olhos deliberadamente, o rapaz girou nos
próprios calcanhares e me puxou para os vestiários, seus
passos tão apressados que quase me obrigou a correr atrás
dele.
Para nosso espanto, não se via o sinal da Treinadora
Kara em lugar algum da entrada do Pavilhão - o que era
bastante atípico, já que toda as segundas-feiras ela recebia os
alunos do último ano em frente ao portão de folhas duplas do
ginásio.
- Deus, esse lugar está tão escuro! Onde está todo...
Antes que Líon pudesse completar a pergunta, um grito alto
e agudo quebrou o silêncio do Pavilhão e se chocou contra a
parede atrás de nós, de forma fria e cruel. Não pensando em
nada, olhei brevemente para o novato ao meu lado e
corremos o máximo que podíamos - o máximo que eu podia
sem revelar o meu segredo - e irrompemos na área da
piscina, o sangue fervendo em minhas veias.
- Eu não estou enxergando nada! - exclamei, tateando
as cegas pela escuridão, à procura da caixa de força do
Pavilhão de Tortura. Quando encontrei o interruptor certo,
puxei a alavanca para cima e cobri o meu rosto, esperando
que as minhas pupilas se dilatassem até que eu me
acostumasse com a forte luz artificial e pudesse ver alguma
coisa.
Parado á alguns metros na minha frente se encontrava
Líon. O garoto estava meio curvado e meio agachado sobre
uma forma emaranhada e um pouco estendida no chão de
mármore, seu rosto oculto pelas sombras produzidas por seu
cabelo lanzudo. Só pude distinguir os contornos outrora
elegantes e retos de Serina quando me aproximei da cena, o
corpo de seu gêmeo a cobrindo gentilmente - como se a
protegesse de algo que eu ainda não conseguia decifrar.
- O que foi que aconteceu? - sussurrei sem fôlego,
minha voz tomada pelo choque de ver as lágrimas de terror
escorrerem livremente pela face delicada da garota, seu
uniforme desalinhado e amarrotado.
Com um leve movimento, o garoto ergueu o queixo e
me indicou o que estava assustando sua irmã, seus grandes
olhos escuros denunciando todo o medo que ele estava
sentindo no momento. Um pouco mais adiante, uma mancha
escarlate escorria pelo chão.
Foi o cheiro que denunciou tudo. Antes que eu
chegasse mais perto, o odor metálico e pungente me atingiu
em cheio. Respirando forte, olhei para o piso aos meus pés e
me deparei com uma única palavra escrita no chão, em
grandes letras vermelhas:
C H E Q U E
- Isto... isto é sangue - suspirou Serina com força, as
lágrimas ainda manchando o seu rosto - Isto foi escrito com...
com sangue.
Mas aquilo não era tudo.
Um pouco mais à frente, o corpo de um homem alto e
atlético boiava de bruços na piscina, uma horrenda mancha
carmesim tomando conta da água ao seu redor. Meu
estômago embrulhou na hora, mas nada teve haver com o
sangue espalhado por todo o lugar ou pelo grande buraco
escuro que se abria onde um dia foi um crânio humano... Era
pelo simples fato de eu conhecer quem era o estranho,
mesmo estando de costas para mim.
Ele era o taxista.
O cara que estava ao meu lado todas as vezes em que
sonhava com o demônio que perseguia Líon.
- Temos que sair deste lugar. Agora!
Sem dar chances do novato ou sua irmã protestarem,
guinchei os dois pelos ombros e os levei à passos largos para
fora do Pavilhão de Tortura.
Eu tinha certeza, a mensagem escrita no mármore era
para mim. E, por mais que não parecesse, o seu significado
era bastante simples e claro: a primeira rodada do jogo havia
acabado. E se eu não corresse logo, esta seria apenas a minha
primeira derrota.
193
195 12. A R Q U I V O M O R T O
- Não me mande ficar calmo! - bradou o Diretor Nigro, no
auge do seu descontrole - Um homem foi encontrado morto
na piscina da minha escola! O que esperava que eu fizesse?
- Eu não esperava nada - respondeu o Delegado
Maltha, sua voz baixa e cautelosa - só gostaria que o senhor
mantivesse um pouco de compostura na minha Delegacia, se
é que posso lhe cobrar isto.
Qualquer que fosse a resposta que o Dir. Nigro
esperava, certamente não era aquela. Com um suspiro
forçado, ele encarou por um segundo o homem de olhos
verdes por detrás da mesa atravancada de papéis à sua frente
e começou a caminhar de um lado para o outro no pequeno
escritório - parecendo mais do que nunca um velho leão
sufocado em uma jaula estranha.
Líon, Serina e eu havíamos tido o prazer de presenciar
uma verdadeira Disputa de Poder. E pelo o que eu conseguia
entender, o pai de Daniel tinha acabado de levar a melhor.
Mas, por mais interessante que aquele duelo de egos poderia
parecer, eu não estava nem um pouco interessado.
Nós três já estávamos presos naquele escritório
pequeno e escuro à mais de quatro horas, tive que prestar
depoimento para o escrivão no mínimo umas duas vezes,
meu cérebro latejava forte e sem piedade contra o meu
crânio e tudo o que eu queria era poder ir embora dali o mais
rápido possível.
Não fazia sentido eu ficar parado, esperando, sem
fazer nada.
A polícia simplesmente não tinha meios, nem era
páreo para pegar o verdadeiro culpado. Somente um Arcano
poderia deter o assassino. Somente eu tinha que acabar com
a raça daquele demônio ruivo.
Alheia à confusão que se passava em minha cabeça,
Serina tentava se manter calma respirando com força – sua
cabeça recostada pesadamente no ombro de Líon, enquanto
sua mão direita segurava firme a minha mão esquerda. Se eu
não soubesse o motivo por detrás daquele gesto, eu teria
amado a sensação de sua pele contra a minha, de nossos
braços se tocando levemente...
Mas eu sabia.
Muito mais do que os gêmeos poderiam suspeitar.
E aquilo me matava.
Do outro lado do sofá apertado que dividíamos, o
novato mantinha o seu olhar perdido, as mãos pálidas
acolhendo com energia um volume grosso e elegante de capa
dura, a luva envernizada do livro sem uma única marca de
dedo. Pode parecer maluquice, mas foi só neste momento
específico que percebi que Líon sempre vivia colado com
algum livro, o carregando para cima e para baixo.
- Ótima capa - sussurrei, me agarrando à idéia de uma
conversa furada com todas as minhas fibras - Pelo título
parece ser bom.
Líon ergueu seu olhar abatido para mim e se forçou a
sorrir, seu rosto mais velho do que ele realmente era.
- É fantástico - disse ele de volta, sua voz mais fraca
do que a minha, enquanto acariciava com ternura as
pequenas letras prateadas do título – Este é um dos meus
preferidos.
- Legal - comentei, espiando de relance o caminhar
imperativo do Diretor Nigro - Então, ele fala sobre o quê?
Pela desenho desta fita e tal, eu diria que é um mistério... ou
romance.
Com um riso apagado e baixo, Serina tirou a cabeça
lentamente do ombro do irmão e me encarou, sua mão
pulsando marotamente contra os meus dedos.
- Você vai ser arrepender de ter feito essa pergunta -
cochichou a garota, indicando seu gêmeo com o queixo - Lí é
a maior ''traça-de-biblioteca'' que eu já conheci na vida, pode
confiar em mim.
Antes que ela percebesse, Líon se sacudiu e empurrou
a irmã para o lado, tentando se afastar dela. Em um dia
normal, eu teria certeza que aquela havia sido uma
implicância comum entre os dois, mas hoje não. Era visível o
nosso esforço para parecermos naturais, e eu não os culpava
por isso - eu mesmo me esforçava para parecer o mais natural
possível.
Assim que me recostei novamente no meu canto do
sofá, a porta do escritório foi aberta e um jovem policial se
esgueirou para dentro, desviando-se da marcha metódica do
Dir. Nigro, até se aproximar da mesa onde o Delegado
Maltha estava.
- Senhor, os responsáveis das testemunhas já
chegaram.
- Muito bem - disse o delegado, retirando os olhos da
papelada que examinava e se virando para o sofá onde os
irmãos Biel e eu estávamos encolhidos - Agora já podemos
tomar o depoimento dos gêmeos. Garoto Regis, o senhor está
liberado.
Com um breve aceno de cabeça, me despedi de Líon
e, depois de apertar um pouco mais a mão de Serina,
acompanhei o policial para fora do escritório.
Logo depois de cruzar a porta, um casal se aproximou
de mim e eu tive que parar. Eles não eram pessoas
conhecidas, mas eu sabia muito bem de quem eles eram pais.
O homem, alto e forte, tinha os cabelos cor-de-bronze
cuidadosamente penteados e o rosto quadrado contrastando
de forma simétrica com a serenidade que exibia. Já a mulher
era um pouco mais baixa que ele, com um rosto
perfeitamente redondo e delicado igual à de um anjo, sua
pele da cor do ébano parecendo ser tão macia quanto seda.
- Você deve ser o Adrian Regis, não?
Sem dar tempo para qualquer resposta, a mãe dos
irmãos Biel me puxou para mais perto e me enlaçou em um
longo e profundo abraço. Eu poderia ficar um pouco
embaraçado com a situação, mas só naquele gesto eu
conseguia sentir todo o amor e adoração que a mulher nutria
pelos filhos fluir para mim. Um pouco atrás da esposa, o pai
de Líon e Serina me examinava com inegável respeito, o
agradecimento mudo presente em seu olhar.
Mesmo depois de me separar do casal e observar os
dois entrarem juntos no escritório do Delegado Maltha, a
minha voz ainda não havia voltado. Agora que eu conhecia
pessoalmente os pais dos gêmeos, eu mais do que nunca me
sentia a maior fraude do mundo. Um Arcano completamente
incompetente, que não conseguia nem lidar com um
demônio Comum.
Como eu iria me sentir se aquela família fosse
destruída, por uma falha minha?
O jovem policial que me acompanhava indicou o
caminho para a saída e eu o segui. Do lado de fora, Cirus e
Angel me esperavam, meu pai ainda vestindo o uniforme da
Brigada de Paramédicos. No início eu achei ótimo ter os dois
ali, assim eu falaria logo tudo o que tinha para contar, mas
depois de ver as expressões sérias tomando o rosto de cada
um, não sabia mais se aquela era uma boa ideia.
- Adrian, precisamos conversar.
Eu não disse!
Só por essa frase do Cirus eu sabia que vinha mais
bomba na minha direção. E foi com esse peso no estômago
que eu segui meu pai e minha tia até o estacionamento
deserto e entrei relutânte no nosso Mustang vermelho.
- Legal, podem acabar comigo de uma vez! - comecei,
meu sangue correndo à mil por hora nas minhas veias – Mas
eu só gostaria de lembrar que esta é a minha primeira
Missão, logo eu...
Não me dando chances de continuar a minha defesa,
Cirus virou-se para mim do banco do motorista e jogou no
meu colo uma pesada pilha de jornais e recortes velhos. Por
um segundo, a única coisa que eu consegui fazer foi ficar
olhando para o bloco de papel àspero em minhas mãos, me
perguntando aonde o meu pai queria chegar. Era certo que
eu esperava o maior sermão que alguém já temera receber na
vida, mas aquilo com certeza não se enquadrava em
categoria alguma de punição.
- O que significa tudo isto?!
- Apenas leia as notícias, está bem?
Era isso, só ler as notícias. O que só podia significar
que a situação estava ficando pior do que eu imaginava.
- Será que você pode fazer isto um pouquinho mais
rápido? - disse Angel, remexendo-se com impaciência no seu
banco.
- Tá bom, tá bom. Não precisa ficar irritadinha! -
respondi com acidez, ao mesmo tempo que pegava o
primeiro jornal da pilha.
Antes mesmo de eu desdobrar a primeira página, o
choque me atropelou feito um trem desgovernado.
Encabeçando uma notícia de destaque, a foto de um rapaz
ruivo e bonito, com profundos olhos negros, me encarava
sorridente e meio debochado - como se soubesse o salto
vertiginoso que o meu coração dera ao vê-lo ali.
- Mas... mas... é ele! É o demônio que está tentando
matar o Líon!
- Sim, foi o que Angel e eu supomos – comentou
Cirus, seus olhos cinzentos indo do papel nas minhas mãos
até o meu rosto - Agora vá até a página seis e leia a matéria
completa.
Obedecendo à meu pai com um profundo temor, corri
as folhas do jornal rapidamente e encontrei a notícia
relacionada à manchete, meu dedos tremendo tanto que eu
mal conseguia distinguir os parágrafos de forma correta:
O CORREIO DE VENTURAPOLÍCIA DE DUMONT ENCERRA INQUÉRITO SOBRE ACIDENTE
Depois de três semanas de intensa investigação, o 12ª Departamento de Polícia dos
Três Estados finalmente concluiu o inquérito sobre o trágico acidente ocorrido na
rodovia que liga as cidades de Ventura e Dumont, envolvendo dois adolescentes e
um jovem universitário.
''Não foi um caso exatamente complicado'', declarou um dos detetives
responsáveis por conduzir o caso, ''mas haviam uma dúzia de fatores que
precisavam ser concluídos, antes que déssemos fim aos trabalhos e reuníssemos os
arquivos''.
Segundo o relatório oficial, o incidente ocorreu na noite de Sexta Feira
(21), pouco antes da meia-noite. De acordo com a perícia, o taxista Xavier Goldin
– de 29 anos - realizava sua última viagem acompanhando os irmãos Líon e Serina
Biel – ambos com 17 anos - , quando os três foram surpreendidos pelo estudante
de medicina Alexander Morton – de 24 anos - , que dirigia o seu conversível
importado na contra-mão e acima do limite de velocidade.
''O exames laboratoriais confirmaram que Alexander ingeriu uma grande
quantidade de álcool e drogas ilícitas antes de pegar o volante, o que contribuiu
para o acidente e, obviamente, o rápido falecimento do mesmo'', afirma o detetive,
salientando os fatores que causaram o óbito do universitário antes mesmo da
chegada da primeira ambulância no local do acidente.
Apesar de terem sofrido apenas ferimentos leves, fontes ligadas aos dois
passageiros e ao motorista do táxi informaram que os sobreviventes estão
constantemente recebendo consultoria psicológica de uma junta médica do
Hospital Geral de Dumont. Procurados pela nossa equipe de reportagem, nenhum
dos envolvidos no incidente quiseram prestar uma declaração sobre o
encerramento do inquérito.
Mesmo tendo terminado de ler a notícia, por um bom
tempo eu encarei apenas o jornal na minha frente. Naqueles
poucos segundos de silêncio, o meu sonho se materializou
diante de mim e eu pude visualizar perfeitamente Xavier
Goldin ao meu lado, concentrado na estrada com todas as
suas fibras. No banco de trás, as risadas altas e alegres de Líon
e Serina eram liberadas aos borbotões, os dois nem
imaginando o que iria acontecer a seguir.
- Adrian, você está bem?
Angel me observava com cautela, seus grandes olhos
azuis me escaneando da cabeça aos pés.
Eu gostaria de dizer à ela que estava bem - que aquilo
me dera forças para continuar a minha missão - mas eu
saberia que era uma mentira. A verdade era que, a cada dia
que passava, as coisas pioravam mais. Descobrir que uma
parte do meu sonho fora real, que esse tempo todo eu ''via''
os irmãos Biel no meu subconsciente, só me deixou mais
arrasado ainda.
- Alexander Morton... então, esse é o nome do
demônio.
Nem Cirus nem Angel falaram nada sobre o assunto.
Só menearam a cabeça em concordância, todo o peso do
mundo pairando sobre os dois. Eles nem precisavam se dar ao
trabalho de esboçar qualquer reação ao meu comentário, eu
estava cem por cento certo quanto a isto.
Com um lampejo, me lembrei do meu primeiro dia de
aula e de meu pai lendo o jornal na nossa cozinha, falando
sobre a conclusão das investigações de um acidente em
Dumont envolvendo jovens. Depois, a imagem do Dir. Nigro,
engolindo todo o seu autoritarismo e tratando Líon da forma
mais afável que podia me encheu a mente - só para ser
substituída depois pelo próprio novato, sozinho na
enfermaria e me confidenciando os problemas pelo qual a
sua família vinha passando nos últimos tempos.
- Como pude ser tão imbecil? Como pude ser tão
obtuso com relação aos sinais que me rodeavam?
Mais uma vez, nenhuma resposta oral.
Agora eu percebia que o demônio, Alexander Morton,
não estava perseguindo só o Líon - mas também Serina e o
taxista, Xavier. Alexander Morton queria vingar a sua morte.
Se vingar das três pessoas que haviam sobrevivido ao seu
acidente fatal, que ele mesmo provocara.
Fora por isso que a família Biel resolveu se mudar
para Ventura. Eles estavam tentando reconstruir suas vidas
novamente, bem longe das lembranças daquele terrível dia.
Só que eles não contavam que a lembrança principal não
estava nem um pouco disposta a ser esquecida.
- Angel - comecei, me lembrando de algo que minha
tia dissera assim que chegou na Casa-de-Bombeiros – eram
eles, não eram? A família que você estava tentando ajudar em
Dumont, mas que foram embora antes de você poder fazer
qualquer coisa.
- Sim - confirmou ela, simplesmente - mas eu não
fazia idéia que eram eles quem você estava protegendo. Só
fiz a ligação dos fatos ontem de manhã, quando encontrei o
jornal na garagem. Infelizmente, ao que parece, foi tarde
demais.
- Não seja ridícula - a cortei, mais ríspido do que o
necessário.
- Como não? Eu não sabia da existência do taxista,
nem imaginava que houvesse um acidente na história! Para
mim, Alexander só estava perseguindo a família Biel por uma
obsessão doentia... O pai dos garotos era tutor dele na
Faculdade.
- O quê?! - golejei, a confusão mais uma vez
fervilhando em minha mente.
- Você pode não saber, Adrian, mas Marcus Biel é um
renomado médico-cirurgião - enquanto falava, Cirus se
inclinou sobre mim e pegou a instável pilha de jornais em
meu colo - Há um mês ele pediu transferência para o
Hospital daqui da cidade, e só agora me dei conta do por quê
- depois de uma rápida conferida, meu pai estendeu sua mão
e colocou um pequeno recorte sobre a notícia que eu acabara
de ler - Essa matéria aqui fala justamente da grande ironia
causada pelo acidente: Um dos estagiários mais brilhantes
que o Dr. Biel monitorava no Hospital Geral de Dumont
quase causou a morte prematura de seus dois únicos filhos.
Eu olhei para a fotografia séria do pai dos gêmeos e
me lembrei do nosso pequeno encontro na Delegacia, à
poucos minutos atrás. Será que ele suspeitava que seu ex-
protegido ainda estava tentando destruir a vida de sua
família?
- Eu não sei o que pensar - disse por fim, jogando tudo
que eu segurava no chão do Mustang - Parece que estou
mergulhando em queda livre para dentro de um grande filme
de terror.
- Então acho melhor você se preparar por mais -
recomeçou Angel, sua voz cantada e cristalina repinicando
misteriosamente - Ontem à tarde, enquanto procurava mais
informações sobre o Morton, acabei descobrindo algo que
pode nos ajudar.
Abrindo o porta-luvas do carro, a garota puxou duas
fotocópias amassadas e as passou rapidamente para Cirus e
para mim. Depois de uma rápida conferida na folha, percebi
que o papel era a reprodução de um documento hospitalar,
mais precisamente uma ficha de internação, no nome de
''Suzana N. Leniscky''.
- Quem é Suzana N. Leniscky?
- Ah, eu sabia que vocês iriam perguntar – Angel
recostou-se em sua poltrona, e um tímido sorriso de triunfo
brincou em seus lábios - Suzana N. Leniscky nada mais é do
que a ''namorada-viúva'' de Alexander Morton.
Cirus e eu nos encaramos por um breve momento.
- Hum, claro - pigarreou meu pai, analisando mais um
vez a ficha com afinco - Mas aqui não diz por que ela foi
internada recentemente em uma ''Casa de Repouso''.
Desta vez, eu consegui ligar os pontos mais rápido do
que Cirus.
Afinal, o que um responsável ''normal'' faria se sua
filha chegasse em casa e falasse que estava tendo encontros
esporádicos com o namorado morto?
- Angel, acho que nós precisamos urgentemente
conversar com Suzana N. Leniscky.
210
211 E P Í L O G O
O caos da cena era delicioso. Criava a quantidade perfeita de
desordem para que ele pudesse ficar completamente invisível
em meio à confusão.
Entretanto, todo este cuidado não era necessário. O
aprendiz de Arcano estava bem longe, protegendo de forma
inconveniente as suas presas, e só haviam humanos ao redor.
Mas era assim que Alexander Morton gostava de operar.
Exatamente indetectável.
Apesar da caçada ser a força motora principal que o
fazia continuar naquele jogo, secretamente, era este o seu
prazer culposo. Observar a sua obra – o resultado de um
assassinato – exposto ao mundo. Como deveria ser.
Afinal de contas, foi um despejo na água... Em uma
piscina de colégio. Alguém acabaria encontrando, mais cedo
ou mais tarde. A única surpresa, foi a rapidez com que a
mensagem foi entregue aos verdadeiros destinatários.
Mas estava tudo bem. Era este o objetivo. E, mais uma
vez, o seu objetivo fora alcançado.
Perfeito.
Equipes de polícia e bombeiros trabalhavam em
conjunto para preservar a cena enquanto vasculhavam as
águas e varriam as margens em busca de provas. Algo
deliciosamente inútil.
Observou enquanto curiosos e estudantes se
empurravam e puxavam uns aos outros, tentando enxergar
melhor o que havia acontecido. Gostava da energia que
irradiavam, dos desejos insaciáveis pelos detalhes mais
sórdidos, não importando quão repulsivos ou perturbadores
pudessem ser.
E, agora, estavam vorazes.
Ele ficou mais próximo, ouvindo, deliciando-se com
aquele circo sinistro. Falavam sobre a sua obra, sobre o que
ele fizera, sem nem perceberem que o autor estava entre o
grupo.
Aquilo o animava. Sentia-se poderoso. Vivo.
Com isto, as chamas em seu peito se abrandaram, e ele
decidiu que já tinha visto tudo o que precisava para manter-
se bem.
Hoje tinha sido um bom dia, e o demônio estava
satisfeito. Por enquanto.
FIM DO LIVRO UM.
213
215 A G R A D E C I M E N T O S
Escrever um livro não é fácil. Começar uma série, então, é algo que
não tenho palavras para descrever. Por isto gostaria de agradecer uma
turma que me apoiou ao longo de todo este tempo, me dando forças
para continuar com este projeto e não me deixaram desistir, mesmo
ele sendo um pouco ambicioso demais para que um escritor em
treinamento bancasse praticamente sozinho.
Em primeiro lugar, não poderia falar de outra pessoa, se não a
minha super-incrível mãe, que me ensinou à ter paixão pelos livros e
que é tão incomparável que eu simplesmente não consegui criar uma
representante à altura de sua magnitude e personalidade para inserir
nesta história. Valeu, Dona Tininha!
Além da my fair lady, eu também tenho a obrigação de dar os
meus '' muito origado'' ao Senhor Carlos Henrique, que ainda pode
não ter um Mustang 64 vermelho irado (nem uma motocicleta), mas é
um pai tão ''garotão'', corajoso e irritante para mim quanto o Cirus é
para o Adrian.
Ainda na família, é lógico que eu tenho que agradecer à
minha irmã gêmea do mal, que mesmo não sabendo, foi a responsável
por uma das personagens mais importantes da trama. Viviane, você
pode negar à vontade, mas todos sabemos que a senhora foi o Sonho
Adolescente de mais ou menos 95% dos meus amigos na adolescência.
Fora a minha turma de casa, eu preciso cumprimentar
também a todos os meus amigos, que sempre me fazem sentir como se
eu fosse alguém importante só por quê escrevo histórias - em especial
à...
Natália, valeu pelas nossas milhares de horas de ''papos
cabeças'', pelo Drumondzinho e por sempre ver o lado profundo de
tudo – mesmo até quando nem eu vejo! Patrícia, muito obrigado por
todas as vezes que você puxava a minha orelha para saber se os
manuscritos já estavam prontos (viu, agora estão!). Symathon, eu
nunca posso me esquecer da primeira pessoa que apostou em mim.
Yes, man, we can!
Também tenho que dividir este espaço com toda a galera do
blog ''Terra das Sombras'' e da comunidade ''Os Segredos de Uma
Noite'', que acompanharam (desde o comecinho) o nascimento de
uma fic que – com muita energia positiva – se transformou em um
livro. Peeps, palmas e reverências para vocês!
Muito, muito, muito obrigado ao pessoal que lota as paredes
do meu quarto de sonhos, aventuras e descobertas e obrigado à Deus
por ter colocado tanta gente do bem na minha vida.
216
A SAGA DAS SOMBRAS CONTINUA COM
Terra das SombrasLIVRO DOIS: O INIMIGO
SAIBA O QUE VEM DEPOIS...
1. O D E S P E R T A R
Era noite, e o bosque estava escuro como breu. O topo dos
grandes eucaliptos se escondiam no infinito negro à minha
cabeça, e uma névoa fina e rastejante impregnava-se no
musgo aos meus pés, formando um imenso oceano verde e
branco.
Eu sabia que estava na Reserva Florestal de Ventura.
Tudo naquele lugar, desde as árvores até o formato
das elevações do terreno mais à frente, me eram familiar. O
que não sabia, na verdade, era o que eu estava fazendo ali,
parado no meio do nada.
- Achei que nunca chegaria... - sussurrou uma voz
feminina, clara e musical, bem atrás de mim.
Sobressaltado, virei-me com pressa, preparado para
atacar o que estivesse à espreita. Só não contava encontrar
com Serina, sentada tranquila sobre as raízes de um
imponente eucalipto, os cabelos cor-de-chocolate ondulando
ao seu redor. Mesmo nas sombras, sua pele morena irradiava
um brilho dourado e quente, intensificado pelo belo vestido
marfim que usava.
- Eu...eu... eu não esperava lhe encontrar aqui -
respondi, mal disfarçando minha surpresa.
Sem se deixar abalar pelo meu mau jeito, a garota se
levantou da base da árvore com tal leveza que me pareceu
que ela nem havia feito algum esforço. Antes que eu pudesse
pensar em alguma coisa, Serina já estava diante de mim, seu
rosto angelical apenas à centímetros de distância do meu.
- Você é bonito - disse ela simplesmente, erguendo a
mão direita com delicadeza e acariciando minha face.
Não posso descrever com palavras tudo o que senti
naquele momento. Para falar a verdade, acho até que não
tenho coragem de contar algumas coisas que pensei quando
ela me tocou. O que eu posso dizer é que meu corpo reagiu
das maneiras mais estranhas... Meu coração disparou como
cavalos em uma corrida, meu sangue ferveu como se eu
ardesse em febre e minha garganta se fechou - me obrigando
a respirar por um breve e lento arquejo.
- Me desculpe - murmurei, enquanto ela continuava a
explorar o meu rosto com as mãos. Para meu espanto, Serina
aproximou-se mais um passo de mim e encostou a sua bela
cabeça em meus ombros.
Foi aí que entrei em parafuso.
Quase que tomado por uma força sobrenatural, apertei
a garota firmemente entre os meus braços e mergulhei o meu
nariz na base suave e perfeita de seu pescoço. Com um
profundo suspiro, inspirei todo o perfume adocicado que sua
pele castanha exalava, correndo os meus dedos com cuidado
pelos seus cabelos e por suas costas.
E assim ficamos os dois, por um tempo que me
pareceu uma eternidade... até que toda a cena mudou em um
piscar.
A névoa, que antes era alva e rasteira, começou a se
elevar perigosamente - ganhando um mórbido tom de
chumbo. Um vento frio e úmido vergastou os nossos cabelos,
ao passo que a estranha sensação que eu havia sentido à um
mês na piscina da Constantine começou a tomar conta do
meu corpo novamente.
Rápido como um relâmpago, coloquei Serina sob a
proteção de minhas costas e me agachei, me preparando para
o ataque que estava por vir. Mesmo sem poder vê-la, eu sabia
que a garota deveria estar congelada no lugar - suas mãos,
apoiadas em meus braços, estavam gélidas e escorregadias.
- Não se preocupe, vai ficar tudo bem... - disse em um
tom baixo, mesmo sem ter plena convicção do mesmo.
Vasculhei a floresta à minha frente, procurando por
qualquer sinal da coisa que se aproximava. Mesmo forçando
os meus olhos ao máximo, eu não enxergava nada a não ser
as árvores e a neblina. Aquilo não me tranquilizou. Mesmo
não o vendo, eu sentia que havia algo por ali, espreitando a
mim e a garota - só esperando o momento certo para
aparecer.
E ele apareceu... mais cedo do que eu esperava, e
muito mais rápido do que eu julgava ser capaz.
Surgindo em meio a neblina, Alexander Morton
emergiu do espesso mar branco-pérola, caminhando
lentamente na direção da campina em que eu e Serina
estávamos. O rapaz trajava apenas uma velha calça de brim
preta e seus cabelos ruivos ricocheteavam no alto de sua
cabeça como violentas chamas vivas. Os seus olhos, negros e
com as pupilas dilatas iguais à de uma fera em caça,
transmitiam uma frieza perversa que destoava por completo
do rosto bondoso; um verdadeiro lobo na pele de cordeiro.
Muito mais fatal e cruel.
- Quem é ele? - perguntou Serina, sua voz cantada
tomada de pânico.
- Não tenha medo... Tudo vai se resolver.
Ao escutar nosso pequeno diálogo, o demônio parou e
inclinou a cabeça para o lado. Seu rosto estava impassível,
livre de qualquer expressão. A esta altura, eu já podia
imaginar o que estava para acontecer. Com um último
impulso, me afastei brevemente de Serina, colocando-me
mais à frente - dando uma chance, por menor que fosse, para
a garota escapar.
Por um minuto, ficamos parados - apenas nos
encarando. Eu sabia que o momento do ataque estava para
chegar. E também sabia que ele seria letal. Assim, quando o
ser se agachou, pronto para dar o bote, eu respirei fundo. Era
o meu fim, e não via como poderia terminar de outra
maneira. Sem pestanejar, Morton lançou-me um último
sorriso e saltou - tão alto quanto um gato e tão rápido quanto
uma pantera.
Não pensando em nada, fechei os meus olhos, me
preparando para a dor que viria me atingir... E ela veio.
Menos penosa do que eu podia supor, e muito mais gelada.
Despertei enroscado no meu cobertor e estatelado de
cara no chão. Minha cabeça martelava devido ao impacto da
queda e os meu tórax ardia com a falta de ar. Com os dentes
cerrados, inspirei profundamente e tentei me recompor. Sem
paciência alguma, puxei o lençol que me enrolava com força
e o joguei em cima da cama. O quarto ainda estava escuro, e
a rua lá fora não emitia um barulho sequer.
Acordado na madrugada de novo. Quanta novidade.
Ainda sentindo o meu corpo, me apoiei
desengonçadamente na janela e me pus a observar a cidade.
Diferente das outras noite, o céu estava nublado, coberto por
nuvens macabras de cores esverdeadas. Os velhos edifícios
pontiagudos do centro recortavam a paisagem de um jeito
nem um pouco acolhedor. E ao fundo, os imensos eucaliptos
nas encostas das colinas agitavam-se furiosamente contra o
rotineiro vento ártico.
Sem pensar em nada, fechei a janela contra a friagem
que invadia o meu quarto e me virei na direção da cama.
Mesmo tendo uma visão apurada no escuro, não consegui
evitar o encontrão que dei na escrivaninha. Com o solavanco
inesperado, todas as coisas que estavam sobre a mesa se
esparramaram no piso do quarto, me obrigando a me abaixar
e arrumar tudo.
Bufando de contrariedade, peguei a maioria dos
papéis, meu player de mp3 e a luminária desligada e
empurrei tudo de uma vez só para o tampo do móvel.
Quando me preparei para guardar as folhas novamente
dentro da pasta onde deveriam ficar, me deparei com o
desenho de Serina que eu havia feito assim que as aulas
começaram.
Ao olhar para o rosto no papel em minhas mãos, senti
o meu estômago despencar. Desde a segunda feira retrasada,
quando o corpo de Xavier Goldin foi encontrado boiando no
meio da piscina olímpica do Pavilhão de Torturas, eu não
tive mais notícias dos gêmeos.
Confesso que no começo achei que esta havia sido a
melhor forma dos dois lidarem com os acontecimentos -
afinal, não se falava em outra coisa nos corredores da escola
(pelo visto, eu era o único em toda a cidade que não sabia dos
motivos da mudança de Líon e Serina para Ventura), e vez
ou outra eu reconhecia um repórter-sensacionalista
rondando a porta de entrada do Dr. Biel e sua família atrás de
um furo jornalístico.
Mas depois de uma semana, quando a poeira - e as
fofoquinhas maldosas - finalmente começaram a baixar, vi
que a auto-reclusão obrigatória planejada pelos dois não era
nem um pouco temporária.
- Eles estão bem, Adrian - falava a mãe dos garotos,
toda vez que eu ligava para a casa dos irmãos em busca de
algum sinal de vida - Só precisam de um pouco de descanso...
Não precisa se preocupar.
''Tarde demais'', eu resmungava, assim que recolocava
o aparelho no gancho. A questão na verdade era que eu,
enfim, havia despertado - e a cada dia que passava, via com
mais clareza o perigo real que Alexander Morton
representava.
Contrariando todas as expectativas, ele tinha plena
consciência dos poderes que estava ao seu dispor; aparecera
para um ser humano comum, quebrando todos os protocolos
e paradigmas; dera cabo de um homem, da forma mais cruel
possível - e ao que parecia, não iria sossegar (ou deixar ser
apanhado por um Arcano em Treinamento) enquanto não
superasse a sua morte...
... Enquanto não se vingasse de Líon e Serina.
Com a cabeça cheia de temores e preocupações, meu
humor na semana seguinte decididamente foi para o buraco.
Mesmo depois de descobrir um homem morto dentro do
campus restrito e vigiado da Constantine, as pessoas
(principalmente os alunos) não pareciam mais se perturbar
tanto com o assunto.
Se antes o tom da conversa girava em torno de
perguntas do tipo ''quem será que colocou o taxista aqui na
Constantine, e por quê?'', agora o burburinho era sobre
futilidades como ''que tipo de fantasia eu devo usar na festa
de Formatura?'', ou ''Será que a minha mina vai deixar eu ir
para a faculdade virgem?''.
Acreditem, não inventei nenhuma das pérolas citadas.
O ápice da minha impaciência ocorreu na sexta-feira,
pouco antes das aulas acabarem. Daniel e eu guardávamos o
nosso material na mochila (o capitão da equipe de Lutas
ocupava o lugar que rotineiramente era de Líon), quando
Oliver Nigro se aproximou de nós, mais magro e pálido do
que nunca.
- Ora, vejam só - resmungou o rapaz ao meu lado,
assim que percebeu a presença do filho do Dir. Nigro - a que
devemos a honra de receber a visita do Rei da Academia
Constantine?
Por um segundo, pensei que Oliver fosse responder à
Daniel com a sua grosseria costumeira - mas, para minha
surpresa, tudo o que ele fez foi esboçar um sorriso apático
para o capitão e levantar as duas mãos, em sinal de rendição.
- Calma aí, amigão... Vim em missão de paz!
''Missão de Paz''? Esse cara só podia estar querendo
tirar um sarro da minha cara...
Antes que eu desse por mim, uma risada sarcástica e
grotesca escapou da minha boca, paralisando no lugar o
restante da turma que ainda se retirava da sala de aula.
Impassível, Oliver me encarou demoradamente, seu rosto
congelado em uma expressão tão propriamente divertida que
(não sei por que motivo) me fez tremer por dentro.
- Como eu estava dizendo - continuou o rapaz, sem
tirar aquele olhar estranho de cima de mim - vocês devem
saber que o Baile de Formatura está se aproximando, não?
Eu me controlei para não responder. É claro que nós
sabíamos disso - se a pessoa fosse surda o suficiente para não
escutar o burburinho pelos corredores, bastava olhar para as
dezenas de flâmulas e cartazes coloridos espalhados
estrategicamente pela escola.
- Sim... E o que nós dois temos a ver com isso? -
perguntou Daniel, tirando as palavras da minha boca.
Sem pestanejar, Oliver abriu o seu paletó e tirou de
um bolso interno dois folders impressos em papel vermelho,
do mesmo tom usado nos materias de circulação interna da
Academia.
- É que, para alguns, existe um evento muito mais
esperado do que o Baile organizado pela escola - o filho do
diretor Nigro olhou para os lados e diminui o seu tom em
duas oitavas - e, cai entre nós, não estou falando do última
dia de aula!
Por um breve momento, o capitão da Equipe de Lutas
e eu trocamos uma significativa mirada. Só a ideia de estar
tendo uma conversa ''conspiratória'' com Oliver me causava
arrepios... Ainda mais agora, quando o rapaz decididamente
resolvera explorar o seu lado mais sombrio.
- Você ficou maluco?! - esbravejou Daniel, picotando
rapidamente o folder em sua mão e pegando a mim e ao líder
dos Privilegiados de surpresa - Se o seu pai te pega com isso,
eu nem quero estar perto para saber o que vai acontecer!
- O que Arthur Nigro não sabe, não precisa saber -
retrucou Oliver, deixando transparecer em sua voz uma
ligeira ponta de amargura - Além do mais, a festa vai
acontecer fora do campus da Constantine...
- Hei, do que vocês estão falando? - interrompi, me
sentindo mais perdido do que um cego em um tiroteio - E
que história é essa de festa?
Com um movimento rápido, Daniel puxou o encarte
remanescente da minha mão e o elevou na altura do meu
rosto. Depois de um minuto de leitura, meu estado de
espirito estava tão alterado quanto o do garoto ao meu lado.
- Vocês estão planejando uma ''Festa dos Veteranos''? -
perguntei, não acreditando no que estava escrito no papel.
Em resposta à minha exaltação, tudo o que Oliver fez
foi se virar novamente para mim e me lançar aquele olhar
estranho.
Oras, como ele esperava que eu reagisse?
A Festa dos Veteranos nada mais era que uma espécie
de preparação para o Baile de Formatura não supervisionada,
onde os estudantes tinham a oportunidade de se esbaldarem
até o dia raiar, entornando litros e mais litros de álcool e
fazendo coisas que não fariam nem em sonhos na frente do
pais.
Acho que nem preciso me dar ao trabalho de dizer que
este evento era terminantemente abominado pela Junta de
Pais e Mestres da Academia Constantine - com direito a
suspensão registrada na ficha escolar em todo aquele que
ousasse pensar em realizar a festa.
Mas é claro que para Oliver e todos os seus seguidores
Privilegiados, esta regra não passava de uma lenda.
- Só queria deixar claro que eu informei pessoalmente
todos os alunos do último ano sobre essa nossa ''reunião'' -
dessa vez, toda a simpatia e humor que Oliver havia usado
até então foi substituída rapidamente pela sua usual ameaça
jovial - Então, se alguém der com a língua nos dentes, eu e
meus amigos saberemos exatamente quem foi.
Aquilo foi a gota d'água.
Se já não bastasse ter que me preocupar todos os dias
com os planos malignos de um jovem demônio perseguidor,
agora tinha que também ter o cuidado de não estragar a
bacanal proibida dos alunos do último ano... Quem eles
pensavam que eu era?
- Acho que você se esqueceu da nossa última
''conversa''! - explodi, o sangue pulsando em minhas orelhas.
- Não me esqueci não - o filho do Diretor Nigro se
aproximou de mim de forma ameaçadora, nós dois separados
apenas pelo espaço ocupado por Daniel Maltha - E é
justamente por isso que estou lhe avisando...
Antes que eu pudesse pular em seu pescoço, Oliver
girou sobre os calcanhares e deixou a sala de aula, seu cabelo
louro ressecado fustigando à brisa do início da tarde e seus
ombros caídos, como se carregasse sobre si todo o peso do
mundo.
Era engraçado, mas mesmo eu estando ali no meu
quarto, um dia inteiro depois desse nosso encontro, aquela
vontade louca de esganar meu ''arqui-inimigo de colegial''
ainda não havia passado - e dessa vez eu nem podia colocar a
culpa em Alexander Morton por isso.
- Problemas para dormir?
Depois de quase dar um mortal de costas pelo susto,
me virei rapidamente na direção da porta e vi tia Angelina
parada na soleira do meu quarto, vestindo um leve robe de
seda rosa sobre seu pijama de mesma cor, os cabelos
prateados firmemente presos em um rabo de cavalo.
- Escutei um barulho - disse ela, apoiando-se na
parede com seu jeito displicente - vim ver o que era.
- Não... não foi nada - me apressei a dizer, guardando
o desenho de Serina em minha pasta - só ''coisas da escola'',
sabe como é...
- Sim, acho que sei - num piscar de olhos, Angel
moveu-se da entrada do meu quarto e foi até a beirada da
minha cama, onde o folder vermelho da Festa dos Veteranos
jazia incólume - E aí, preparado para amanhã?
Sinceramente, não sabia o que responder.
Desde de segunda feira, quando por fim eu abri os
olhos e descobri toda a verdade sobre a história por detrás da
vinda dos irmãos Biel à Ventura, a coisa que eu mais queria
fazer era me encontrar com Suzana N. Leniscky e interrogá-
la de todas as formas possíveis para poder saber como
Aexander Morton apareceu para ela, e o que ele poderia estar
tramando. Porém, agora que faltava poucas horas para a
nossa visita à Casa de Repouso, eu não sabia muito bem o que
fazer por lá.
- Será que esta é uma boa ideia? - perguntei, uma
estranha sensação de vazio se apoderando da boca do meu
estômago.
- Esta é uma ótima ideia - respondeu Angel com
simplicidade - Além do mais, você quer que algo de ruim
aconteça com o seu amigo? Quer que este tal de Morton
consiga aprontar alguma coisa com a Serina?
- É claro que não! - exclamei, minha voz mais feroz do
que o necessário.
- Então está esperando o quê para ir dormir?!
Aceitando o conselho com determinação, guardei
minha pasta de desenhos na gaveta da minha escrivaninha,
puxei os lençóis que estavam espalhados pelo chão e me
esgueirei para cima da cama, as molas do colchão
protestando ruidosamente sob o peso do meu corpo. Minha
tia estava certa; eu estava em uma missão... Uma missão cujo
o prêmio nada mais era do que a salvação de duas pessoas que
haviam deixado o meu mundo de cabeça para baixo. Não
havia tempo para eu ter um ataque de ''dilemas
adolescentes''.
- Angel - sussurrei, me dando conta de um detalhe
somente quando me encolhi debaixo da proteção e do calor
dos meus cobertores - Por que você deu dois pesos diferentes
para a situação do Líon e da Serina?
- Bom, acho que todos nós sabemos muito bem o por
quê... - foi tudo o que ela disse quando apagou a luz do
corredor e se retirou de forma elegante e graciosa do meu
quarto, um sorriso conspiratório lhe tomando a face.
H E N R I B. N E T O
Nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1989, assim como os
seus personagens. Apaixonado por livros desde pequeno,
é um ''escapista''de carteirinha, e tem como grande
paixão a Literatura de Fantasia e Sobrenatural.
Atualmente, ele divide o seu tempo entre a
Faculdade de Pedagogia, seu blog sobre romances para
o público Jovem-Adulto e na produção dos
novos volumes da ''Saga das Sombras''.