Termodinamica
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Antonio MacDowell de Figueiredo
TermodinâmicaAplicada
Antonio MacDowell de Figueiredo - - 28/03/11- 21:28:52 1
ConteúdosSímbolos......................................................................................................................................3
Parte I: CONTEXTUALIZAÇÃO.............................................................................................6
1. Introdução..........................................................................................................................7Objeto..........................................................................................................................................7Origem.......................................................................................................................................10Modelos e Representações.......................................................................................................13Escopo.......................................................................................................................................20Entendimento e Explicação.......................................................................................................24A Ciência Moderna....................................................................................................................26A Questão do Método................................................................................................................28Primeiros Passos.......................................................................................................................34
Combustão.....................................................................................................................................35Termometria...................................................................................................................................38
2. Fundamentos...................................................................................................................47Teoria Fenomenológica.............................................................................................................47Espaço, Tempo e Matéria..........................................................................................................51
Espaço............................................................................................................................................52Tempo.............................................................................................................................................55Matéria - Massa..............................................................................................................................57Matéria - Substância.......................................................................................................................59
Objeto Material..........................................................................................................................64Atributos Globais e Atributos Locais...............................................................................................65Condição de um Objeto Material....................................................................................................67Objeto Material Elementar..............................................................................................................69Verificação Empírica – Permanência.............................................................................................72
Grandezas Físicas.....................................................................................................................75Grandezas Primitivas e Grandezas Derivadas..............................................................................77Grandezas Direta e Indiretamente Mensuráveis............................................................................77Grandezas Globais e Grandezas Locais........................................................................................78Grandezas Aditivas........................................................................................................................79Grandezas Específicas - Densidades............................................................................................82Grandezas Intensivas – Campos Termodinâmicos........................................................................89Grandezas Extensivas....................................................................................................................91
Propriedades e Estado..............................................................................................................92Transformação: Processo e Mudança de Estado..........................................................................95
Parte II: FORMULAÇÃO......................................................................................................99
Parte III: APLICAÇÃO........................................................................................................100
Antonio MacDowell de Figueiredo - - 28/03/11- 21:28:52 2
Símbolos
R
Alfabeto latino
Símbolo Significado Unidade Dimensão
A área m2 <L>2
a vetor aceleração m / s2 <L><T>-2
a intensidade da aceleração m / s2 <L><T>-2
ℰ grandeza física extensiva
G grandeza física
grandeza física intensiva
kB constante de Boltzmann
L comprimento m <L>ℓ comprimento característico m <L>M massa kg <M>М massa molar kg / mol <M><N>-1
М massa substantiva <M><N>-1
N quantidade de substância mol <N>n número de objetos ou de partículas
r vetor posição m <L>ℜ constante universal dos gases
T temperatura K , °Ct tempo s <T> ou <t>V volume m3 <L>3
v vetor velocidade m / s <L><T>-1
v velocidade m / s <L><T>-1
Antonio MacDowell de Figueiredo - Símbolos - 28/03/11- 21:28:52 3
Letras gregasSímbolo Significado Unidade Dimensão
λ fator multiplicador
λ comprimento de onda m <L>
∏ propriedade genérica
propriedade extensiva genérica
propriedade específica genérica
propriedade intensiva genérica
Diversos
₡ condição de um objeto
ℂ conjunto de objetos ou de seus atributos
ⵟ espaço euclidiano
Ø objeto material
⊘ objeto material elementar
[...] unidade
{...} valor ou intensidade
<...> dimensão
Subscritos
i índice mudo
j índice mudo
u grandeza unitária
Superscritos
el elementarn dimensão do espaço euclidianoo referência
Antonio MacDowell de Figueiredo - Símbolos - 28/03/11- 21:28:52 4
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Parte I: CONTEXTUALIZAÇÃO
Antonio MacDowell de Figueiredo - Parte I: CONTEXTUALIZAÇÃO - 28/03/11- 21:28:52 6
1. Introdução
Objeto
O que é, de que trata a Termodinâmica1? Não há uma definição única nem uma
delimitação precisa de qual seja o seu objeto temático. Definições formuladas por diversos
autores, selecionados mais ou menos ao acaso, afirmam, os mais simples, diretos e, não
obstante, mais abrangentes, que a Termodinâmica “... correlaciona fenômenos”[13], que ela trata
“dos processos que observamos na natureza”[18] ou “da matéria e da interação entre matéria”[48]; ou
que ela é, “de uma forma genérica, o ramo da ciência que trata dos fenômenos térmicos” [51].
Certamente, tais formulações são muito pouco elucidativas2, não deixando sequer entrever a
complexidade e o alcance de suas implicações3. Mais explicativo seria afirmar que a
Termodinâmica é “a ciência dos fenômenos ligados à temperatura e à influência desta sobre as
propriedades físicas”[12]; vale dizer, que ela “concerne à compreensão e interpretação das
propriedades da matéria na medida em que estas são afetadas por variações de temperatura” [46].
A temperatura e as propriedades da matéria são as noções centrais desses enunciados.
Mas a Termodinâmica é também definida como “o estudo da energia, suas formas e
transformações, e das interações entre energia e matéria”[30]; ela trata “das leis sob as quais
1 Termodinâmica: palavra cunhada por Kelvin, em 1849, com o significado: “...operando ou operado pela transformação de calor em potência motriz“[57]; sua origem é a combinação da palavra grega θερμότητα – transliteração thermotita, da qual decorrem thermós ou thérmē, que significam quente e calor - e da palavra grega δΰναμις - transliteração dýnamis, com significado força ou força em potência.
2 ....thermodynamics correlates phenomena, and that is all![13].3 “Para alguns termodinâmicos assim como para seus inimigos, a Termodinâmica é a ciência do tudo, de modo que para uma
segunda categoria de indivíduos, ela é, por mera lógica, a ciência do nada e, então, ciência nenhuma....”[42]. Fica, portanto, a advertência quanto ao significado científico ou mesmo à relevância pedagógica de formulações tão abrangentes.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 7
transcorrem transformações e transferências de energia em que participam energia interna e
calor”[16]. E, de forma algo mais geral, diz-se também que a Termodinâmica é, “como uma parte da
Física, uma teoria geral da energia”[53]. Nesses enunciados, as noções centrais são a energia e as
interações entre objetos materiais.
Diz-se, ainda, que a Termodinâmica é “a ciência dos estados e das mudanças de
estado de sistemas físicos e das interações entre sistemas que acompanham tais mudanças de
estado”[27]; ela é “a parte da Física Teórica dedicada essencialmente ao estudo das propriedades
gerais dos sistemas físicos em equilíbrio assim como das leis gerais que se manifestam no
processo em que se estabelece o equilíbrio”[37]. Estes últimos enunciados não se referem a
qualquer fenômeno ou propriedade física particular, mas são restritivos em relação à condição do
objeto, sendo-lhes centrais as noções de estado e de equilíbrio.
Formulados para caracterizar e circunscrever o objeto temático da Termodinâmica,
esses enunciados têm variados enfoques, precisão e abrangência, e, de certa forma, prenunciam
o modo como os seus autores constroem suas versões da teoria. A maioria deles tem o notável
traço comum de referir-se a noções e conceitos a serem estabelecidos no curso do próprio
desenvolvimento da teoria - pressupõem, pois, o domínio desta, já que só assim podem ser
inteiramente compreendidos. Ao empregar tais elementos, pertencentes ao próprio âmbito da
Termodinâmica ou que, se já definidos no âmbito de outras estruturas conceituais da Física, nela
eventualmente encontram novos significados, aquelas formulações suscitam outras indagações: O
que são fenômenos térmicos? O que é temperatura? O que se entende por calor? O que se
entende por energia? E por energia interna? Quais são as formas de transformação da energia?
Sabe-se o que é matéria; mas, o que é, como se identifica a interação entre objetos materiais? O
que são sistemas físicos? O que caracteriza um estado ou uma mudança de estado? Quando
sistemas físicos estão em equilíbrio? Como este se estabelece? Assim, sendo necessário definir
significados para tais termos, distintos do entendimento comum que geralmente lhes é associado,
a questão persiste: como precisar o que é ou de que trata a Termodinâmica?
Não há resposta simples e precisa para esta questão; nem uma cuja formulação não
implique em alguma sequência tautológica de significados conceituais, mesmo considerando que
alguns destes são noções a priori4, fundamentais e não definíveis em termos de conceitos físicos
já antes empiricamente estabelecidos. De fato, assim procede o desenvolvimento de qualquer
4 Noções a priori independem da experiência, ao contrário de concepções a posteriori, estabelecidas em decorrência da experiência. Espaço, tempo e matéria são noções a priori. É possível conceber um espaço vazio e um transcorrer temporal sem ocorrência de eventos; é impossível, porém, construir a representação de um fenômeno sem relacioná-lo a um suporte material, num espaço não existente e sem um transcorrer do tempo.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 8
ciência de base experimental: nem sempre é possível descrever fatos experimentais nos termos
específicos de uma teoria mediante uma sequência lógica, não redundante nem tautológica, de
significados conceituais. Por exemplo, o conceito termodinâmico de estado refere-se à
caracterização instantânea de um objeto material em termos dos valores de suas propriedades; a
noção de propriedade, por sua vez, pressupõe a noção de objeto material e a circunstância,
também instantânea, de que ele esteja num certo estado. Implicitamente, o conceito de estado e a
noção de propriedade recorrem às noções fundamentais de espaço, tempo, matéria e, como será
visto, de substância, temperatura e carga elétrica. Em essência, certos fenômenos naturais são
utilizados para estabelecer “definições operacionais” de variáveis representativas daquelas
noções a priori. Cada uma de tais definições é feita em termos de um significado conceitual, uma
expressão matemática e uma regra de medição. Sobre a base assim construída são introduzidos
ou deduzidos novos conceitos, definidas novas variáveis e formulada a teoria.
No âmbito macroscópico, a Termodinâmica assim como, de resto, as demais ciências
de base experimental, investiga transformações constatadas mediante a observação de atributos
diretamente mensuráveis de objetos materiais determinados. No âmbito microscópico, a
investigação termodinâmica recorre a modelos supostamente representativos da constituição mais
elementar da matéria, cujos atributos fundamentais, que também correspondem a noções a priori,
não são acessíveis à observação. Obtém-se a representação macroscópica do âmbito
microscópico mediante procedimentos estatístico-probabilísticos que determinam, como
expectativa média, o efeito macroscopicamente observável de coleções de numerosos eventos
microscópicos.
A teoria da Termodinâmica a ser aqui apresentada é de natureza fenomenológica. Ela
se restringe ao âmbito macroscópico da representação dos fenômenos. O que isto significa? Qual
o propósito de uma tal teoria? Propõe-se ela a descrever e classificar ou também a explicar fatos
da experiência? Qual é a natureza da elaboração analítica que uma teoria fenomenológica
propicia?
Uma teoria fenomenológica propõe um modelo macroscópico de representação de
aspectos da natureza, mais apropriadamente, de uma certa classe de fenômenos que ocorrem na
natureza, vale dizer, que ocorrem com objetos materiais macroscópicos. Assim, ela é formulada
com base na observação reiterada e sistemática de fatos da experiência. Portanto, uma tal teoria
é condicionada pelos dados particulares que constituem a sua base empírica e pelos métodos
utilizados para obtê-los. Sobre esta base, a teoria procede a uma generalização, que não deve se
resumir à mera descrição e à classificação dos fenômenos. Ela deve ter certa capacidade
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 9
analítica. Para tanto, via de regra, o modelo de representação proposto por uma teoria
fenomenológica afirma que objetos materiais têm atributos que nem sempre são diretamente
mensuráveis ou mesmo diretamente observáveis. Não obstante, a teoria deve estabelecer
relações entre tais atributos e outros atributos mensuráveis, mediante as quais ela deve prever
comportamentos e resultados a partir de condições iniciais dadas. O formalismo analítico da teoria
é desenvolvido como uma articulação lógico-dedutiva de noções, conceitos, idealizações,
hipóteses, convenções e relações entre atributos, inferidas ou supostamente existentes. Ao assim
representar um fenômeno, uma teoria fenomenológica o descreve, classifica e, neste âmbito
macroscópico, o explica.
Na próxima seção, é feita uma sucinta referência à origem da Termodinâmica e aos
seus princípios-síntese. Tal é a designação que, neste texto, é dada aos postulados fundamentais
da Termodinâmica. O escopo e os objetivos da versão da Termodinâmica aqui apresentada são
estabelecidos na seção seguinte. No próximo Capítulo, apresenta-se o conjunto de noções e
conceitos elementares que fundamenta a teoria, numa sequência que sugere uma formulação
axiomática de sua estrutura conceitual e formalismo analítico. Com isso, já se obtém alguma
elucidação das questões postas ao início desta Introdução. Na Parte II, esse conjunto de noções e
conceitos é rediscutido e considerado em sua expressão matemática, a partir dos quais
desenvolve-se uma formulação abrangente [desta versão] da teoria. Na Parte III, a teoria é
aplicada a situações específicas de interesse.
Origem
“O fogo transforma a matéria”5, produz luz, gera calor. A luz ilumina, clareia. O calor
aquece, transforma e deforma os materiais; variando-lhes o volume, produz um efeito mecânico. A
observação metódica e sistemática, o entendimento e a descrição analítica deste aparentemente
simples encadear de fenômenos termoquímicos e termofísicos foram, em essência, os objetivos
persistentes do desenvolvimento técnico-científico do qual resultaram os conceitos, princípios e
métodos que constituem o domínio do conhecimento que se denomina Termodinâmica.
5 Ignis mutat res: antiga divisa de um saber sem idade, “... a ciência do fogo...”[47]. Ainda é uma questão bastante controversa e um desafio arqueológico a determinação da época em que os seres humanos passaram a dominar o fogo. Há alguma evidência de que, já há 790 mil anos, hominídeos utilizavam sistematicamente o fogo, sendo muito provável que já soubessem acendê-lo e não apenas dele se aproveitassem quando produzido por causas naturais[23]. Na medida em que os provia com calor e luz, proteção contra predadores e novas fontes de alimentação, o domínio do fogo lhes trouxe significativos benefícios sociais e comportamentais. Evidências descobertas a meio caminho na rota entre a África e a Eurásia podem sugerir que a habilidade para controlar e manter o fogo pode ter sido um fator relevante de estímulo aos movimentos migratórios dos humanos originais, a partir de redondezas circunscritas e familiares na África, para explorar e popular ambientes remotos e desconhecidos [1].
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De que se tem notícia, a primeira descrição sistemática de procedimentos, dispositivos
e artefatos “termodinâmicos” encontra-se na obra Pneumática, de Heron de Alexandria6, escrita
por volta de 60 d.C.. Nesse, por assim dizer, tratado de aplicações termotécnicas há setenta e oito
formas engenhosas de utilização do calor para aquecimento do ar e geração de vapor d'água
visando a obtenção de um efeito mecânico. Remonta, portanto, a tempos muito remotos a origem
de alguns conceitos, noções e explicações de fenômenos que eventualmente são, ainda hoje,
parte da teoria da Termodinâmica. Na forma de uma resenha histórico-descritiva, apresenta-se
adiante um sucinto resumo de como alguns desses conceitos e noções foram estabelecidos.
Em termos historicamente precisos, pode-se afirmar que “...a questão da qual nasceu
a Termodinâmica não concerne à natureza do calor ou da sua ação sobre os corpos, mas à
utilização dessa ação”[47]. Trata-se de saber em que condições o calor produz uma ação
mecânica7, quer dizer, pode deslocar um corpo, acionar um motor.... A partir desta questão, a
Termodinâmica desenvolveu-se como uma estrutura conceitual de ampla validade, fundamentada
em dois princípios-síntese, comumente referidos como Primeira e Segunda Leis. Esses princípios
expressam - e postulam como universais - uma generalização da observação empírica relativa às
transformações termoquímicas e termofísicas que sucedem em objetos materiais em decorrência
de suas interações recíprocas. Eles são formulados sobre fundamentos e em termos estritamente
fenomenológicos.
Transformação e interação são noções essenciais para a formulação dos princípios-
síntese da Termodinâmica. No contexto de uma teoria fenomenológica, os significados destes
termos são algo mais específicos do que aqueles do seu entendimento comum. Diz-se que ocorre
uma transformação num objeto material quando há mudanças em seus atributos observáveis; em
termos quantitativos, quando variam os valores de seus atributos mensuráveis. Diz-se que há uma
interação entre objetos materiais se a transformação que num deles ocorre é origem ou
decorrência da transformação que no outro sucede. A noção de interação entre objetos materiais
implica, como exigência lógica, uma relação de causa-e-efeito8 entre as transformações que neles
6 Heron de Alexandria (10 d.C. - 75 d.C., Alexandria, Egito) – geômetra e engenheiro grego; inventou inúmeros artefatos e dispositivos mecânicos e termomecânicos para movimentar peças e criar efeitos sonoros e luminosos, utilizados como ornamentos em teatros, templos e palácios; inventou a primeira máquina a vapor de que se tem notícia; em diversos tratados, dentre os quais os mais importantes são Pneumática, Automata, Mecânica, Métrica, Dioptra, registrou seu trabalho e compilou o conhecimento técnico existente na época.
7 É curioso observar que, em termos aristotélicos, uma ação mecânica é um artifício ou uma operação contra a ou que burla a natureza[31]. Mecânica – do grego μηχανική, originada de μηχος - contrivance, utilizada na obra Problemas Mecânicos de Archytas de Tarentum (400 a.C. - 350 a.C., Tarentum, Magna Grécia, hoje Itália; filósofo, matemático e cientista grego; usualmente designado o pai da mecânica matemática); esta obra é um pequeno tratado que descreve o funcionamento de mecanismos básicos em termos de alavancas e das propriedades dos círculos: “.... Sempre que for necessário produzir um efeito contra a natureza, ….., é preciso arte (da palavra grega τέχνη – transliteração techne)..... Nós chamamos toda essa classe de problemas mecânica....” .
8 Princípio da causalidade: um evento é sempre um efeito precedido de uma causa; dada a causa, tem-se o efeito. Em termos
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 11
sucedem9.
Há duas importantes considerações referentes à natureza dessas relações causais. A
primeira concerne ao determinismo: uma relação de causa-e-efeito é suscetível de tratamento
científico apenas se as mesmas causas produzirem sempre os mesmos efeitos. Repetidas as
mesmas condições iniciais e circunstâncias de uma interação entre objetos materiais, nesses
objetos ocorrem sempre as mesmas transformações10. A segunda consideração concerne à
irreversibilidade, ou seja, à constatação de que a sucessão dos eventos constituintes de um
fenômeno macroscópico real não é integralmente reversível. Vale dizer, levados em conta todos
os objetos envolvidos, toda interação ou conjunto de interações é inerentemente irreversível; não
é possível inverter o sentido de todas as interações de modo que suas correspondentes
transformações sejam integralmente revertidas. Em outros termos, causa e efeito não são
arbitrariamente permutáveis; elas são entre si discerníveis. Nesse contexto, diz-se que são
assimétricas as relações causais subjacentes a fenômenos macroscópicos reais.
Os princípios-síntese são enunciados com base nestes significados. O primeiro deles,
a Primeira Lei da Termodinâmica, expressa a noção de que interações entre objetos materiais
estão submetidas aos requisitos de uma continuidade qualitativa e de uma permanência
quantitativa de uma certa grandeza, a energia. Interações correspondem a transferências de
energia entre objetos materiais. Vale dizer, considerados todos os objetos envolvidos num dado
conjunto de interações, a quantidade total da energia permanece sempre a mesma.
O segundo princípio-síntese, a Segunda Lei da Termodinâmica, expressa a noção de
que há uma evolução qualitativa subjacente ao decurso daquelas interações: interações operam
transformações definitivas e irreversíveis sobre o conjunto de objetos que delas participam; não é
possível recuperar totalmente o status quo ante. Em termos quantitativos, este princípio afirma
que, considerados todos os objetos envolvidos nas interações, sempre cresce o valor total de uma
grandeza, a entropia.
Essencialmente, a Primeira Lei da Termodinâmica postula a existência da grandeza
energia e o requisito de conservação de sua quantidade total; a Segunda Lei da Termodinâmica
postula a existência da grandeza entropia e a condição de irreversibilidade. O crescimento da
fenomenológicos, todos os eventos que sucedem na natureza decorrem de relações desse tipo.9 Rigorosamente, essa assertiva é tautológica porquanto a própria implicação de uma relação causal entre transformações que
ocorrem em distintos objetos materiais impõe a existência de interação entre os mesmos – para discussão, consultar Hoffman [29].10 Adiante serão tratados dois importantes aspectos concernentes a esta consideração. O primeiro questiona o significado da
repetibilidade: o curso das transformações, em cada objeto, deve ser exatamente o mesmo ou apenas suas respectivas situações inicial e final? O segundo lida com a natureza da repetibilidade: ela é estritamente determinística ou aqui o determinismo é de cunho estatístico-probabilístico?
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 12
entropia é uma consequência deduzida. Na Parte II, Formulação [da teoria da Termodinâmica],
estas e outras considerações relativas aos princípios-síntese serão detalhadamente discutidas.
Modelos e Representações
Há várias versões da Termodinâmica. Cada uma delas adota uma sintaxe particular e
um conjunto próprio de significados conceituais, modelos e métodos, mediante os quais formula
uma representação de fenômenos particulares ou, mais genericamente, uma representação de
classes particulares de fenômenos. Cada representação descreve e explica esses fenômenos e
prevê os seus efeitos; sua formulação é baseada numa certa concepção ou hipótese fundamental,
expressa mediante noções a priori, tais como espaço, tempo, matéria, espaço-tempo ou a
dualidade corpúsculo-onda.
O modelo do continuum e o modelo corpuscular são as representações mais intuitivas
dos fenômenos da natureza. Ambos apoiam-se nas mesmas concepções de tempo e espaço. O
tempo é apreendido como uma sucessão contínua e ordenada de instantes; o espaço, como uma
distribuição contínua de lugares ou locais - instante e lugar são noções independentes,
indefiníveis, dadas a priori. Tempo e espaço são indefinidamente divisíveis. A diferença básica
entre estes modelos é a forma de representação da matéria.
Para o modelo do continuum, a matéria encontra-se continuamente distribuída por
toda a extensão do espaço ocupado por um objeto material. Interações entre objetos materiais
dão-se mediante campos de ação a distância ou campos de ação por contato direto11. O modelo
do continuum é naturalmente apropriado para descrever fenômenos de escalas macroscópicas,
grosso modo entendidos como aqueles sujeitos à percepção sensorial humana, eventualmente
amplificada ou intensificada por meio de instrumentos analógicos12. Por exemplo, microscópios ou
11 Campo é um conceito físico-matemático segundo o qual o valor local de uma grandeza física é uma função indefinidamente divisível da posição e do tempo. No âmbito macroscópico, há dois tipos de campos: de ação a distância e de ação por contato direto. Um objeto material cria um campo de ação a distância no seu entorno espacial, mesmo vazio. Cada objeto material cria, no seu entorno, mesmo vazio, um ou vários campos espaciais contínuos que são os agentes de suas interações a distância com outros objetos. Vale dizer, esses campos prescindem da interposição de um meio material entre os objetos que os geram e aqueles sobre os quais atuam. Este tipo de campo é percebido apenas quando um outro objeto material (um corpo de prova ou um sensor) é posto num dado lugar deste espaço. Neste caso, o campo torna-se o agente da interação entre aqueles objetos materiais. Por exemplo, o campo gravitacional criado pela Terra é o agente da interação desta com um objeto material dado. Já campos de ação por contato direto, tais como o de velocidade, o de pressão ou o de temperatura, não pré-existem no espaço. Para que estes existam, o espaço não pode estar vazio; o campo é consequência de interações por contato entre objetos materiais determinados.
12 Nesses instrumentos, há uma relação biunívoca explícita entre a informação que lhes é fornecida e aquela que fornece ao observador. Vale dizer, a medida de uma grandeza física é obtida explicitamente da medida de uma segunda grandeza que tem,
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 13
telescópios óticos são instrumentos analógicos porquanto suas lentes amplificam efeitos de
fenômenos que, não fora por sua pouca intensidade, já seriam sensorialmente percebidos como
imagens; susceptíveis, portanto, à experiência imediata e à observação direta. Pelo contrário,
imagens produzidas por microscópios eletrônicos resultam de transformações operadas por
modelos físico-matemáticos sobre efeitos que, mesmo se perceptíveis, não o são como imagens.
Distinção semelhante existe entre termômetros e manômetros analógicos e digitais13. Os limites
inferiores típicos das escalas espacial e temporal macroscópicas são comprimentos da ordem de
10-6 metros e intervalos de tempo da ordem de 10-7 segundos; os limites superiores são as
dimensões astronômicas. As teorias termodinâmicas baseadas nesse modelo podem ser
caracterizadas como versões de uma Termodinâmica do Continuum.
Neste âmbito encontram-se a Termodinâmica Clássica, a Termodinâmica das
Misturas, a Termodinâmica Química e a Termodinâmica dos Processos Irreversíveis. Dentre as
versões da primeira, a Termodinâmica da Engenharia ou Termodinâmica Aplicada trata dos
processos técnicos ou tecnológicos que relacionam fenômenos térmicos, mais especificamente,
aqueles que envolvem o que é comumente chamado transferência de calor com a realização de
ações mecânicas, eletrodinâmicas ou eletromagnéticas, genericamente designadas trabalho.
Já a Termodinâmica das Misturas ou dos Meios Heterogêneos trata de fenômenos em
que as transformações preponderantes decorrem de difusão mássica, ou seja, do movimento
relativo das substâncias constituintes dos materiais sem que haja perda de sua identidade
química; enquanto a Termodinâmica Química ou Termodinâmica das Reações Químicas trata
daqueles em que preponderam transformações da identidade química das substâncias
constituintes da matéria. Tais transformações geram alterações nos valores dos atributos
mensuráveis das substâncias. Tais fenômenos podem ser também tratados sob um ponto de vista
microscópico. Nesta perspectiva, transformações da identidade química das substâncias são
alterações moleculares; assim como são movimentos moleculares os processos de difusão
mássica. Moléculas assim, como suas partes constituintes, os átomos, são elementos de uma
representação da matéria que não a trata como um continuum.
Para o modelo corpuscular, a matéria é constituída por partículas ou corpúsculos
discretamente distribuídos no espaço. Objetos materiais macroscópicos são coleções numerosas
de partículas microscópicas. Fenômenos macroscópicos resultam de interações microscópicas
com a primeira, uma relação biunívoca; estas grandezas são representativas de fenômenos descritos por idênticos formalismos físico-matemáticos. Normalmente, a medida de uma grandeza física feita por instrumentos analógicos é indicada por um cursor ou um ponteiro que pode deslocar-se continuamente ao longo de todas as posições de uma escala. Ou seja, o deslocamento é, de fato, a grandeza diretamente medida.
13 Os dispositivos físicos que operam estas transformações são chamados transdutores.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:52 14
entre campos potenciais conservativos gerados pelas partículas constituintes de cada objeto e
entre tais campos e aqueles gerados pelas partículas constituintes de outros objetos. O grande
número de interações simultâneas e recíprocas entre as partículas torna a descrição do seu
comportamento coletivo um problema matemático de extrema complexidade, significativamente
simplificado mediante a aplicação de métodos estatístico-probabilísticos. O comportamento
coletivo das partículas passa, então, a ser descrito em termos de expectativas médias, ou seja,
dos valores esperados de seus atributos e parâmetros globais.
Interações microscópicas não são susceptíveis de observação e medição diretas.
Tipicamente, sua escala espacial corresponde a comprimentos muito pequenos, cerca de 10-13
metros; sua escala temporal corresponde a intervalos de tempo da ordem de até 10-15 segundos14.
Para tornar-se observável, o comportamento esperado do coletivo de partículas deve poder ser
expresso em escalas espaciais da ordem de 10-6 metros e escalas temporais da ordem de 10-7
segundos, ou seja, pelo menos cerca de 108 vezes maiores do que as escalas dos fenômenos
microscópicos. Deste ponto de vista, tais expectativas podem ser consideradas essencialmente
independentes do tempo[10] já que, em termos relativos, variam muito lentamente. Teorias
termodinâmicas baseadas nesse modelo são extensões da Teoria Cinética dos Gases; em termos
gerais, elas podem ser caracterizadas como versões de uma Termodinâmica Estatística.
A Termodinâmica do Continuum e a Termodinâmica Estatística são estruturas teóricas
autônomas, baseadas em concepções de representação da natureza mútua e evidentemente
excludentes. O continuum é indefinidamente divisível, o corpúsculo não o é[59]. Para o modelo do
continuum, interações dão-se entre objetos materiais; transformações, no interior destes. Para o
modelo corpuscular, interações dão-se entre as coleções de partículas que constituem objetos
materiais distintos; transformações são interações que ocorrem entre as partículas constituintes
de um mesmo objeto. Não obstante, submetidos à verificação experimental, há situações em que
sobrepõem-se os domínios de validade desses modelos; ou seja, são essencialmente
coincidentes os resultados obtidos a partir de cada concepção. Tipicamente, esse é o caso da
descrição do comportamento de objetos que encerram pelo menos cerca de 1023 partículas/mol15,
submetidos a efeitos de campos gravitacionais de baixa ou moderada intensidade.
O modelo clássico do continuum falha ao descrever fenômenos cuja velocidade
característica, v, aproxima-se da velocidade da luz, c, e quando é muito intensa a influência de
14 Intervalos de tempo da ordem de 10-15s correspondem ao período do movimento oscilatório dos átomos; comprimentos da ordem de 10-10 a 10-13 m correspondem ao chamado comprimento de onda de Compton [variação máxima do comprimento de onda de um feixe de radiação que se espalha após incidir sobre um material-alvo].
15 Mais especificamente, da ordem do número de Avogrado [NA = 6,022 1023 partículas /mol].
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 15
campos gravitacionais. Entre previsão e medição surgem discrepâncias da ordem de (v/c)2. Para
estas condições, o modelo de representação mais adequado é baseado na concepção de um
continuum espaço-tempo que se deforma à presença da matéria. Tempo e espaço não são
independentes. A velocidade da luz no vácuo é um limite finito e invariante; perturbações e
alterações de campos eletromagnéticos não se propagam instantaneamente; no vácuo, todas elas
propagam-se à mesma velocidade, a da luz. Esse modelo descreve fenômenos que ocorrem em
escalas astronômicas e macrocósmicas16, que chegam até 1010 anos, a “idade” do universo e até
1026 metros, o “horizonte dos eventos”. Tais designações marcam os extremos de tempo e
distância em que se obtém registros de sinais de grandezas físicas. As teorias termodinâmicas
baseadas nesse modelo podem ser caracterizadas como versões de uma Termodinâmica
Relativística.
No outro extremo, o modelo corpuscular estatístico-probabilístico falha quando lida
com fenômenos microscópicos que envolvem quantidades extremamente pequenas de matéria,
de escalas atômicas ou subatômicas. As velocidades características desses fenômenos são,
também, próximas da velocidade da luz. Aqui, porém, preponderam os efeitos quânticos; já não se
lida com a existência estável da matéria, mas com a dualidade corpúsculo-onda. Se, no modelo
corpuscular, o comportamento global do coletivo de partículas é descrito em termos estatístico-
probabilísticos, agora, a natureza dual da matéria - ondas e corpúsculos - implica que esta
também tem, no nível mais fundamental, uma representação probabilística, designada dualidade
probabilística quântica ou determinismo quântico17. As teorias termodinâmicas baseadas nesse
modelo podem ser caracterizadas como versões de uma Termodinâmica Quântica.
Escalas espaciais e temporais independentes e quantidades invariantes de matéria
são próprias de representações que tratam espaço, tempo e matéria em termos absolutos. No
modelo relativístico, espaço e tempo não são independentes nem absolutos. No modelo quântico,
perde sentido a concepção da existência estável da matéria. Em grande medida, porém, o enorme
valor da velocidade da luz oculta a verdadeira natureza do espaço e do tempo; assim como os
minúsculos valores dos comprimentos de onda da matéria ocultam a sua natureza ondulatória.
Esta é a razão pela qual, para a maioria dos fenômenos com que se lida no cotidiano, os modelos
relativístico e quântico preveem efeitos essencialmente coincidentes com aqueles previstos por
16 “...nas estrelas, galáxias, aglomerados de galáxias, até além da imensa extensão total do cosmo” [7]; o domínio característico deste modelo seria mais apropriadamente expresso em termos de alguma escala representativa da deformação do continuum espaço-tempo.
17 A representação determinística clássica, dita laplaciana, traduz uma concepção segundo a qual é possível conhecer o estado de um sistema numa situação arbitrária, do futuro ou do passado, se conhecido o seu estado numa situação particular. A situação pode referir-se a uma posição espacial instantânea ou a uma posição no continuum espaço-tempo. O determinismo quântico refere-se a estados quânticos, isto é, à probabilidade de ocorrência de um dado estado num campo quântico. Nos termos desta concepção, é possível determinar a probabilidade da ocorrência de um dado futuro, mas não qual o futuro que ocorrerá.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 16
representações macroscópicas e microscópicas mais simples.
O modelo do continuum espaço-tempo e o modelo quântico são concepções
conflitantes e mutuamente excludentes de representação da natureza18. Não obstante, alguns
fenômenos são apropriadamente explicados por um, certos fenômenos pelo outro modelo. Por
exemplo, é um efeito relativístico que a atração gravitacional gerada por enormes quantidades de
matéria a encerre em espaços extremamente pequenos; por outro lado, são efeitos quânticos o
intenso aquecimento então resultante e a respectiva emissão de radiação. Tal é a situação limite
da intensa contração de estrelas e nebulosas a espaços relativamente diminutos e sua
subsequente explosão, quando a radiação emitida é dissipada irreversivelmente no espaço vazio
em expansão.
Pode-se indagar: que interesse tem esta menção a fenômenos tão fundamentais no
contexto da apresentação de uma teoria macroscópica, de cunho fenomenológico, cujo objetivo é
essencialmente prático e trata da utilização do calor para gerar movimento em escalas sujeitas à
percepção sensorial humana? Embora o tratamento especializado desses fenômenos
fundamentais esteja bem além dos temas de interesse direto deste texto, há algumas boas razões
para mencioná-los. Uma delas é que as representações correntes de tais fenômenos envolvem
conceitos e variáveis termodinâmicas, tais como energia e entropia, originalmente formulados
para representação de fenômenos macroscópicos mais convencionais.
Outra razão é que os princípios-síntese, originalmente estabelecidos sobre bases
macroscópicas e fenomenológicas, mantêm-se ainda válidos, de alguma forma, nos modelos de
fenômenos fundamentais de escalas macrocósmicas, microscópicas e ultramicroscópicas. Esses
princípios expressam sempre as mesmas noções: de permanência e continuidade e de
irreversibilidade e evolução. As duas primeiras noções são a essência dos princípios de
conservação da quantidade de matéria e de conservação da quantidade de energia, tratados
independentemente pelas Termodinâmica do Continuum e Termodinâmica Estatística e de forma
unificada nas Termodinâmica Relativística e Termodinâmica Quântica. As duas últimas noções
dão significado ao princípio do aumento da entropia, que condiciona o decurso temporal das
transformações e a direção das interações: dentre todas as cogitáveis, são impossíveis as que
implicam o restabelecimento integral do status quo ante. Em outros termos, não é possível
18 Segundo o modelo relativístico, na situação limite de ausência de matéria, o continuum espaço-tempo é plano, liso e uniforme. Nos termos do modelo quântico, o vácuo não é um vazio absoluto; persistem flutuações quânticas com sistemática criação e destruição de matéria. Efeitos relativísticos e efeitos quânticos têm importância equivalente em fenômenos que ocorrem em escalas espaciais ultramicroscópicas, da ordem de 10-35 metros, cerca de 10-20 vezes o tamanho do núcleo atômico. Esta é a ordem de grandeza do chamado comprimento de Plank, cujo valor é dado por ( ћ G / c3 )1/2, onde c e G representam, respectivamente, a velocidade da luz e a constante gravitacional, características da relatividade geral, e ћ a constante de Planck, característica da mecânica quântica.
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estabelecer processos que evoluam para o passado19. Esta é a noção de irreversibilidade. Mas ela
é também uma noção de evolução porque, num certo sentido, dentre as possíveis transformações
estão aquelas das quais resulta a eventual emergência de organizações e estruturas materiais
cada vez mais complexas, tal como sucede em processos bioquímicos e biofísicos. Num outro
sentido, porém, esta noção é de perda porque implica uma tendência à extinção inexorável da
capacidade de transformação, posto que, a cada uma, reduz-se o potencial-motriz necessário
para transformações ulteriores. Assim sucede nos sistemas fechados e isolados de interações
com seu exterior.
A partir da perspectiva macroscópica, a irreversibilidade é uma condição real e
inevitável da ocorrência dos fenômenos. Sempre, em tais fenômenos, podem ser diferenciadas
situações “anteriores” de situações “posteriores”; o decurso do tempo é assimétrico, transcorre
sempre do passado para o futuro. Não obstante, mediante a escolha apropriada de alguns
parâmetros, dentre os quais as dimensões da porção do espaço sob observação, o período de
observação e a precisão e acuidade da medição, é possível deixar de apreender aspectos
irreversíveis de um fenômeno e tê-lo como reversível[8]. Por exemplo, são distintos os valores dos
parâmetros que detectam a irreversibilidade de processos geológicos, do movimento de um
pêndulo em oscilação livre ou dos processos termoquímicos que ocorrem no interior de motores
de combustão interna. Mas, é bastante evidente a irreversibilidade de fenômenos tais como, por
exemplo, o do aquecimento de uma resistência através da qual flui uma corrente elétrica20; do
arraste provocado pelo escoamento laminar de um fluido viscoso ao longo de uma superfície; da
condução de calor através de um objeto material, da sua parte mais quente para a menos quente;
da difusão de uma substância através de um meio material, da região de maior para a região de
menor concentração21; da cristalização de um líquido sub-resfriado22. Esses fenômenos não são
passíveis de representação mediante modelos macroscópicos cujas formulações analíticas sejam
simétricas em relação a uma inversão do tempo, isto é, à transformação t → - t, onde t é o tempo.
Pode-se dizer que, nessas representações, o tempo corresponde a um parâmetro de marcação,
19 Significado análogo pode ser dado ao postulado da teoria da relatividade de que a velocidade da luz do vácuo é a máxima possível. Pois, se houvesse velocidade maior, os sinais de luz poderiam ser ultrapassados e se procederia na direção do passado. Há, porém, uma distinção importante: no caso da termodinâmica, o postulado refere-se à impossibilidade de uma evolução para o passado; no caso da relatividade, o postulado é o da impossibilidade de sua observação.
20 No caso de uma resistência linear, que segue a lei de Ohm, a potência dissipada como calor é representada pelo lei de Joule. 21 Esses fenômenos são representados pela lei de Newton da viscosidade, lei de Fourier da condução e lei de Fick da difusão
quando, respectivamente, a intensidade do arraste, da condução de calor e de difusão mássica são diretamente proporcionais aos gradientes locais de velocidade, de temperatura e de concentração.
22 Um líquido sub-resfriado é aquele que encontra-se numa temperatura inferior à temperatura de saturação correspondente à pressão a que está submetido. Temperatura de saturação é aquela em que, numa dada pressão, diferentes fases coexistem em equilíbrio. A cristalização é um processo progressivo e irreversível de solidificação de um líquido sub-resfriado; a partir de um “núcleo” que desencadeia a solidificação, átomos do meio líquido são depositados sobre a interface sólido-líquido, que avança irreversivelmente.
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que identifica cada situação de uma sucessão dinâmica das situações pelas quais passa o
sistema.
Questiona-se se a irreversibilidade não seria apenas uma limitação circunstancial da
representação macroscópica de fenômenos microscópicos complexos23. Mais especificamente,
indaga-se se ela seria o efeito macroscópico aparente de uma complexa multi-ocorrência de um
grande número de interações microscópicas de campos conservativos. Ora, sob a ação de
campos conservativos, todo sistema deve poder retornar a uma situação arbitrariamente próxima
de sua situação inicial - mesmo que este retorno seja improvável ou demande intervalos temporais
muito longos. Neste caso, as interações microscópicas seriam necessariamente reversíveis,
simétricas em relação a uma inversão do tempo. Quais seriam, então, os fenômenos cujo efeito
macroscópico é irreversível? De onde surgiria a irreversibilidade?
Na verdade, é impossível obter-se uma representação de efeitos macroscópicos
irreversíveis apenas como consequência matematicamente deduzida da aplicação de operadores
estatístico-probabilísticos sobre campos conservativos24. Sendo assim, para que tais modelos
corpusculares possam representar ocorrências reais, a irreversibilidade lhes deve ser incorporada
como um postulado justificado pela observação[42]. O que acaba por dar-lhes, pelo menos em
parte, um caráter fenomenológico, com a particularidade de reduzir o princípio do aumento da
entropia a um postulado ad hoc. O que pode ser de grande importância prática mas, em termos
mais fundamentais, tem pouco valor descritivo ou explicativo[47]. Tome-se, para ilustrar, a perda de
estabilidade no escoamento laminar de um fluido, da qual decorre a transição para um
escoamento turbulento. O efeito macroscópico da turbulência é geralmente equivalente a uma
intensificação do efeito provocado pela viscosidade do fluido. Por esta razão, este fenômeno da
turbulência é convencionalmente representado mediante uma “viscosidade aparente”. Agora,
como se sabe, o efeito da viscosidade é irreversível. Então, mesmo que a representação da
turbulência seja de natureza estatístico-probabilística e baseada em modelos corpusculares
[reversíveis], ela deve ser macroscopicamente configurada de forma a que o seu efeito resulte
irreversível.
Uma última razão para a referência àqueles fenômenos fundamentais é que a
conservação da energia é um princípio geral não suscetível de demonstração, quer no âmbito
23 Questiona-se até se a irreversibilidade não seria consequência da condição assumida por um observador macroscópico. Neste caso, perante a assertiva “...irreversibilidades e assimetrias temporais são impostas pelo observador, não sendo criadas pelo sistema!”[49], pode-se contrapor “...nós não podemos causar a reversão de sistemas macroscópicos por nossa própria escolha. A decisão, digamos, de 'olhar ou não olhar' para Sirius, não pode afetar qualquer processo irreversível naquela estrela” [20].
24 “A conclusão é que não pode haver nenhuma rigorosa dedução estatístico-matemática das equações macroscópicas irreversíveis a partir das equações microscópicas reversíveis da dinâmica”[20].
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 19
fenomenológico quer no contexto de representações baseadas em modelos mais fundamentais,
enquanto o crescimento da entropia é um princípio geral também não demonstrável no âmbito
fenomenológico, mas cuja explicação mais fundamental cogita-se encontrar no contexto de uma
unificação das representações macrocósmicas e ultramicroscópicas25. A partir da segunda metade
do Século XX, o desafio de encontrá-la tornou-se um dos mais instigantes temas de investigação
da Física Teórica, particularmente no contexto de uma representação de efeitos relativísticos e
quânticos nos termos de uma única teoria.
A Parte II deste texto apresenta uma teoria fenomenológica da Termodinâmica
baseada no postulado do continuum. Como tal, ela é restrita à consideração de fenômenos
macroscópicos, excluídas cogitações sobre existência, natureza e comportamento de corpúsculos
como elementos constituintes da matéria assim como considerações sobre efeitos relativísticos e
quânticos. Não obstante, no curso da apresentação poderá ser feita referência a modelos
corpusculares sempre que, suplementarmente, eles auxiliem a descrição ou explicação de algum
aspecto da ocorrência dos fenômenos considerados. Quando este for o caso, deve-se ter em
conta este seu caráter suplementar, em nenhuma circunstância integrante da ou necessário à
formulação da teoria fenomenológica. A versão da teoria a ser desenvolvida é mais
convencionalmente designada uma Termodinâmica Aplicada ou Termodinâmica da Engenharia,
utilizada para desenvolver métodos de análise e simulação de processos que, sem considerar
reações químicas e difusão mássica, tratam da utilização do calor associada à realização de
alguma ação trabalho.
Escopo
A maioria das ciências da natureza opera conceitos termodinâmicos. Certamente,
dentre as principais razões do amplo emprego desses conceitos encontram-se o papel unificador
desempenhado pelo postulado de conservação da energia e, menos explícito, o papel ordenador
25 Como ilustração: na formulação do modelo da chamada assimetria-mestre [master assymmetry][20], são utilizadas observações independentes dos âmbitos da Termodinâmica e da Astrofísica para identificar relações causais entre fenômenos irreversíveis de qualquer escala, entre si aparentemente dissociados mas indiretamente relacionados à assimetria temporal única e fundamental de um universo não-estático, mas em expansão em relação a um espaço dito não-saturado. A constatação fenomenológica deste processo permite ordenar temporalmente séries de eventos de escala macrocósmica, com o que é possível identificar duas outras assimetrias temporais, entre si independentes: a decrescente densidade de matéria e radiação e o fluxo de radiação na direção do espaço não-saturado. Não há observação ou modelo que indique ser qualquer dessas últimas a causa da expansão; pelo contrário, são efeitos desta. Por esta razão, a expansão temporal é denominada assimetria-mestre. Através da gravitação, estrelas e nebulosas contraem-se e aquecem; emitem, então, radiação que, por sua vez é dissipada irreversivelmente no espaço frio e não-saturado. De modo que, nos termos deste modelo, a gravitação e o espaço não-saturado são as causas indiretas e últimas da irreversibilidade.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 20
e restritivo relativamente ao decurso possível das transformações, desempenhado pela requisito
do crescimento global da entropia. Numa circunscrição algo arbitrária das atribuições temáticas de
domínios do saber correlatos à Termodinâmica, o fenômeno da transformação da matéria por
meio da combustão é objeto temático da Termoquímica; os fenômenos físicos dos quais resultam
luz e calor são estudados na Termofísica; os fenômenos da transferência de energia como calor
concernem à Transferência de Calor26. Da utilização da combustão e do calor para produção de
efeitos mecânicos tratam as áreas temáticas Motores de Combustão e Máquinas Térmicas. Há
muito de comum nos modelos de representação e métodos analíticos empregados por esses
domínios temáticos, baseados, em última instância, em conceitos e princípios da Termodinâmica.
Estes são ainda utilizados para tratar interações e transformações em sistemas macroscópicos e
em sistemas microscópicos assim como em macro-sistemas e em micro-sistemas27 em domínios
temáticos particulares das Física, Cosmologia e Astrofísica, das Química e Físico-química e das
Biociências. Significados conceituais de alguns destes domínios são correlacionados mediante a
Termodinâmica, tal como ocorre, por exemplo, entre a Física Quântica e a Física Relativística28.
A Termodinâmica é, ainda, elemento essencial do desenvolvimento de diversas
ciências aplicadas e áreas de conhecimento tecnológico. Por exemplo, no âmbito da oceanografia,
da geologia e das ciências ambientais, dentre as quais meteorologia, climatologia e ecologia, a
Termodinâmica é elemento essencial da formulação de modelos modelos descritivos, explicativos
e preditivos de fenômenos naturais relacionados ao comportamento da atmosfera e dos oceanos
assim como de outros fenômenos relacionados ao clima. Nas várias engenharias - mecânica,
química, nuclear, naval, elétrica, eletrônica, de materiais, de petróleo etc...- e na bioengenharia,
praticamente não há equipamento, dispositivo, processo ou sistema tecnológico que não utilize
noções e conceitos termodinâmicos em seus modelos descritivos e suas rotinas de projeto. Esses
modelos são utilizados, dentre vários exemplos, para projeto de sistemas de termo-geração de
potência elétrica e propulsão [utilizando combustíveis fósseis, fusão ou fissão nuclear, energia
solar, geotérmica ou outras fontes primárias]; de refrigeração e condicionamento térmico-
ambiental; de processos termoquímicos [combustão, destilação, liquefação, reações químicas
etc..]. São termodinâmicos também os elementos básicos do projeto de motores de combustão,
turbinas de propulsão, foguetes, células-combustível e de outros sistemas termo-fluido-dinâmicos,
26 Essa denominação é inapropriada, mantendo-se em uso por tradição e ausência de designação alternativa de ampla aceitação. Como será visto, o calor não se transfere; calor apenas designa a forma macroscopicamente perceptível assumida por fenômenos de transferência de energia entre objetos materiais quando são desiguais os valores de suas temperaturas.
27 A noção de sistema termodinâmico e uma classificação mais detalhada dos tipos de sistemas serão discutidas mais adiante. Em termos gerais, os sistemas são ditos macroscópicos ou microscópicos em função de suas dimensões físicas; e são ditos macro-sistemas ou micro-sistemas em função do número de seus elementos individuais constituintes.
28 Aqui, referência é feita à teoria da emissão de radiação pelos chamados buracos negros, cuja elaboração recente reúne elementos da teoria da relatividade e da mecânica quântica para oferecer uma explicação “fundamental” da irreversibilidade, consequentemente, do princípio do aumento da entropia.
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tais como sistemas de lubrificação, de proteção contra superaquecimento de semicondutores e
circuitos eletrônicos e de segurança termo-hidráulica de reatores nucleares.
Frequentemente, conceitos e métodos termodinâmicos são aspecto necessário da
formulação e da solução de problemas de amplo interesse sócio-econômico, atuando como
elementos auxiliares de processos decisórios relacionados à concepção e implementação de
políticas de utilização de energia, quer sob aspectos técnico-econômicos quer daqueles
concernentes ao incremento da qualidade de vida e preservação do meio ambiente. Na termo-
economia, por exemplo, tais conceitos e métodos são combinados aos das ciências econômicas
para análise dos processos de formação, avaliação e otimização de custos em sistemas de
conversão de energia. Dentre outras, a análise termodinâmica é determinante para a viabilidade
do desenvolvimento de tecnologias para aproveitamento das chamadas fontes alternativas de
energia29.
No âmbito mais geral, indicadores termodinâmicos relacionados aos padrões gerais de
utilização de energia e à eficiência dos processos de transformação auxiliam o planejamento e a
forma mais adequada de exploração dos insumos energéticos disponíveis; e de medidas que
objetivam controlar as consequências dessa utilização sobre a qualidade da vida e do meio
ambiente30. A contribuição da Termodinâmica é imprescindível para determinação de parâmetros
limitadores de emissão de material poluente e de rejeitos térmicos e químicos, subprodutos de
processos industriais ou veiculares de combustão e de outras aplicações que requeiram uso
intensivo de energia termoquímica. A limitação da emissão desses subprodutos é crescentemente
necessária tendo em vista seus efeitos sobre biosfera, em especial a degradação ambiental e as
mudanças climáticas de âmbito global, para o que concorrem os danos causados à camada de
29 Embora disponível sob diversas formas, a energia utilizável por atividades humanas provém essencialmente de apenas duas fontes primárias. Uma delas, o sol, provê energia continuamente, parte da qual, transformada, pode ser aproveitada imediatamente ou em curto prazo sob formas ditas renováveis [solar, eólica, das marés, biomassa etc.]. A outra fonte é a Terra, que armazena formas de energia ditas não renováveis, em materiais de origem fóssil orgânica [carvão, petróleo, gás natural etc.] e de origem mineral não orgânica [nuclear, água etc.]. No início do século XXI, cerca de 80% da energia consumida de fontes primárias provem de materiais fósseis.
30 Todas as atividades humanas impõem, de algum modo, alterações irreversíveis aos eco-sistemas naturais. A partir da segunda metade do Século XX, tornou-se evidente que tais alterações podem tornar-se efetivamente danosas e ameaçadoras à qualidade e até à possibilidade de vida na Terra. Tal constatação impulsionou um novo tipo de consideração sobre os modelos vigentes de desenvolvimento econômico-social, particularmente em relação à utilização de tecnologias que requerem uso intensivo de fontes não renováveis de energia ou que afetam danosamente o conjunto complexo de eco-sistemas que compõem a biosfera. A utilização do conhecimento tecnocientífico passa, então, a submeter-se mais diretamente a considerações de nova ordem, além daquelas de natureza estritamente técnica ou econômica.
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ozônio31, a intensificação da chuva ácida32 e o efeito estufa33.
Tal é o escopo da Termodinâmica, sucintamente apresentado tanto no âmbito de sua
formulação teórica quanto da importância e abrangência de suas aplicações. Nesse amplo
contexto, o objetivo da presente apresentação da Termodinâmica é desenvolver uma formulação
conceitualmente rigorosa e operacionalmente útil:
➢ dos princípios e leis gerais a que estão submetidos os processos de transferência de energia
entre sistemas e de transformação entre formas de energia no interior destes sistemas;
➢ das relações gerais entre propriedades de sistemas submetidos a processos de transferência
ou de transformação de energia;
➢ das relações específicas decorrentes da aplicação dos princípios, leis e relações gerais a
sistemas e processos tecnológicos particulares; e
➢ dos principais métodos da análise termodinâmica para sistemas de transformação de energia.
31 A camada de ozônio protege a superfície terrestre da incidência de radiação solar ultravioleta e, com isso, das suas consequências danosas aos seres vivos. A redução da camada de ozônio é fortemente influenciada pela ação de compostos químicos artificiais do tipo clorofluorcarbono (CFC) e hidroclorofluorcarbono (HCFC). Embora sob rigorosa regulação internacional, estabelecida em sucessivos acordos a partir do Protocolo de Montreal, de 1987, os CFC continuam a ser utilizados para produção de solventes, aerossóis, espumas e fluidos refrigerantes, entre outros itens. Dado o seu longo ciclo de vida, é provável que apenas em meados do século XXI seja atingida, aos níveis já acordados, a redução da concentração de CFC na estratosfera. Como ocorre a ação destes compostos? Na estratosfera, entre 15 e 39 km acima da superfície da Terra, ozônio (O3) é criado pela ação da radiação solar ultravioleta incidente sobre moléculas de oxigênio (O2). Cerca de 75% desse ozônio é destruído naturalmente pela ação do óxido nítrico (NO). Permanece, porém, uma quantidade suficiente para reduzir a incidência de radiação ultravioleta sobre a superfície terrestre. Compostos do tipo clorofluorcarbono (CFC) e hidroclorofluorcarbono (HCFC) sobem até a estratosfera, onde suas moléculas são rompidas também pela ação da radiação solar ultravioleta. O cloro (Cl) então liberado reage com o ozônio, formando monóxido de cloro (ClO) e oxigênio. Em seguida, o cloro e o oxigênio do ClO separam-se, ambos reagindo com ozônio para formar, novamente, monóxido de cloro e oxigênio, desencadeando uma reação em cadeia de destruição de ozônio. Cada átomo de cloro chega a destruir 105 moléculas de ozônio antes que o processo seja interrompido pela reação do cloro com o metano (CH4) para formar ácido clorídrico (HCl) que se precipita como chuva.
32 A chuva ácida é produzida pela conversão do dióxido de enxofre (SO2) e de óxidos de nitrogênio (NOx) em ácido sulfúrico (H2SO4) e ácido nítrico (HNO3). Sua precipitação sobre mares e cursos d'água provoca um crescimento descontrolado de algas, reduzindo o oxigênio necessário à sobrevivência de espécies animais; sobre florestas e terras cultivadas, afeta o crescimento de árvores e contamina alimentos. A maior fonte de emissão de enxofre e dos óxidos de nitrogênio é a combustão de materiais fósseis. Os efeitos da chuva ácida podem ser apenas mitigados com aperfeiçoamento das tecnologias de combustão; uma redução significativa de seus efeitos será obtida apenas mediante intensa redução do uso de combustíveis fósseis.
33 A densidade média do fluxo de energia solar incidente sobre a Terra, sob a forma de luz e radiação térmica, é da ordem de 343 W/m2. Desta, um terço é refletida de volta ao espaço e dois terços atingem o solo, de onde é reemitida como radiação infravermelha de grande comprimento de onda. Uma fração da radiação reemitida é bloqueada pelos gases do efeito estufa – GEE, desta forma aquecendo a atmosfera. O efeito estufa natural eleva a temperatura da Terra em cerca de 33 oC, tornando-a habitável. Qualquer fator que altere significativamente o equilíbrio natural desses fluxos de energia pode influenciar drasticamente as condições climáticas globais. Os principais GEE de ocorrência natural são vapor d'água (H2O), dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O). As emissões destes três últimos têm também origem antrópica, ou seja, decorrem de atividades humanas (por exemplo, queima de combustíveis fósseis, desmatamento, atividades agropecuárias). A liberação na atmosfera dos compostos artificiais de clorofluorcarbono (CFCs) e hidroclorofluorcarbonos (HCFC) também contribuem para aumentar o efeito estufa. A maior parte das emissões de CO2 decorre de fenômenos naturais ligados ao ciclo global do carbono; por outro lado, apenas cerca de 30% das emissões de CH4 provêm de processos naturais. No Protocolo de Kioto, de 1997, 155 países comprometeram-se a reduzir a emissão global dos GEE, até o ano 2012, de 5% dos níveis de 1990.
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Há diversas formas mediante as quais pode-se atingir cada um destes objetivos. Há,
portanto, várias versões da Termodinâmica, cada uma das quais formulada com significados
conceituais e metodologias apropriados para sua aplicação a classes específicas de interações e
transformações.
Neste texto, a teoria será inicialmente formulada em termos bastante abrangentes,
com um nível razoavelmente elevado de abstração. Em seguida, esta formulação será aplicada
para tratamento de processos técnicos ou tecnológicos que envolvam a transferência de energia
sob forma de calor e trabalho. Em geral, o trabalho estará relacionado à realização de uma ação
mecânica. Este objetivo caracteriza o âmbito da chamada Termodinâmica da Engenharia ou
Termodinâmica Aplicada.
Entendimento e Explicação
O desenvolvimento de uma ciência ou de uma disciplina técnico-científica não se dá
apenas a partir de si mesma, não é determinação desinteressada nem decorrência do acaso - por
que indagar sobre a luz e o calor e sobre a sua relação com o trabalho? Em cada época, o
desenvolvimento da ciência e da tecnologia é simultaneamente estimulado e condicionado pelos
sistemas dominantes de pensamento – inclusive valores sócio-culturais, crenças e preconceitos -
e, sempre, por interesses de natureza política ou econômica.
Numa perspectiva histórica de curto prazo, o que determina os fenômenos a estudar e,
de resto, impulsiona o progresso das ciências da natureza e da tecnologia são as demandas
práticas da sociedade34. Sob outra perspectiva, de longo prazo, o progresso do conhecimento
científico decorre também de motivações menos pragmáticas, impulsionado por alguma
necessidade humana de descrever, entender e explicar a natureza. Em sentido amplo, esse
esforço de entendimento e explicação dá-se no bojo de grandes sistemas teóricos. Cada um
destes sistemas expressa uma certa concepção fundamental relativamente à apreensão da
natureza, postula princípios, adota conceitos, estabelece métodos e deduz resultados que guiam o
progresso científico e tecnológico no curto prazo. Desse esforço não decorre apenas uma
sequência de êxitos; há erros e fracassos que, muitas vezes, atuam como elementos-guia.
Eventualmente, esse próprio desenvolvimento pode evidenciar restrições ou inadequações da
34 Em termos gerais, a satisfação dessas necessidades práticas são evidentemente contraditórias. Como se constata no curso da história, elas implicam simultaneamente a melhora das condições propícias à vida e o aumento da capacidade de extingui-la.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 24
concepção que o propiciou ou, no limite, conduzir ao esgotamento do potencial de entendimento e
explicação desta concepção35.
No curso do desenvolvimento de qualquer ciência, não é rara a ocorrência de eventos
científicos extraordinários. Alguns eventos são extraordinários porque elaboram grandes sínteses
de conhecimentos adquiridos autonomamente no âmbito de várias disciplinas e que, dispersos,
apresentam-se sob formulações e terminologias distintas para expressar essencialmente o
mesmo conjunto de noções e conceitos. Outros desses eventos marcam reinterpretações
conceituais inovadoras, ainda no contexto de referenciais teóricos preexistentes;
retrospectivamente, poder-se-á até verificar que algumas dessas reinterpretações já
prenunciavam, quando de seu enunciado, concepções teóricas inovadoras, apenas ulteriormente
evidenciadas. Há eventos, enfim, que são extraordinários porque marcam o início de uma nova
disciplina - ou de uma nova ciência, quando se impõem rupturas radicais relativamente aos
referenciais teóricos vigentes. Isto se dá, constata-se, quando teorias baseadas nesses
referenciais já tolhem o progresso do conhecimento, frequentemente por estarem em franco
desacordo com a observação empírica. Em geral, nessas situações, instaura-se uma crise cuja
superação requer a adoção de novos referenciais teóricos baseados noutras concepções
fundamentais.
No interregno de eventos extraordinários, as ciências da natureza e a tecnologia
parecem desenvolver-se como uma progressão bem ordenada de proposições e verificações de
hipóteses e de descobertas e invenções. Na verdade, mesmo no âmbito de uma mesma
concepção fundamental, esse progresso é tão tortuoso como “...o movimento de uma multidão,
em que a direção do todo decorre, de alguma maneira, dos impulsos independentes dos
indivíduos; ... alguns avançando, outros recuando...”[36]; quase tantos numa direção, que se torna
dominante, quanto seguindo, em aparente confusão, direções diversas. Quando acumulam-se
evidências empíricas de desajustes na concepção fundamental vigente, já não se vislumbra uma
direção dominante. Esse acúmulo de desajustes precede e como que acusa a iminência de
eventos extraordinários. Então, mesmo uma descoberta fortuita ou o resultado de um processo
rotineiro de verificação de hipóteses pode ser suficiente para determinar a refutação, total ou
parcial, de uma teoria científica estabelecida, em decorrência do que surge a crise da qual
eventualmente emerge uma nova concepção fundamental.
Assim, recorrentemente, desencadeiam-se ciclos de entendimento e explicação que,
35 Segundo um poeta: “...O mundo é absolutamente incompreensível. Então inventamos uma série de compreensões e vivemos dentro desta cadeia de explicações. Uma cadeia lógica que tem a ver com a realidade, que não é gratuita ou absurda, mas que não esgota a realidade. Quando esse tecido conceitual se rompe, você vê que nem tudo está explicado....” [25]
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 25
sempre, desdobram-se sob aquelas perspectivas de curto e longo prazos, sendo delimitados por
eventos científicos extraordinários. A genealogia dos sistemas conceituais e de suas decorrentes
teorias científicas é baseada, portanto, em precedentes. Os seus conceitos, leis e princípios não
correspondem a formulações sequenciais logicamente ordenadas; pelo contrário, eles formam um
conjunto de formulações intrincadamente interdependentes. Eis porque, da apresentação de uma
teoria científica segundo a cronologia de seu desenvolvimento, não resulta uma construção
necessariamente lógica, consistente e ordenada de sua estrutura. As apresentações de teorias
científicas como estruturas conceituais hierarquicamente ordenadas correspondem, de fato, a
reconstruções de seus reais processos de desenvolvimento36. À medida em que são formuladas,
tais reconstruções passam a afetar a forma como prossegue o desenvolvimento das teorias,
condicionando também a forma mediante a qual novo conhecimento é justificado e passa a ser
considerado saber estabelecido.
No caso da Termodinâmica, auxilia entender e explicar essa reconstrução, além de ser
instrutivo e instigante, conhecer algo sobre a progressão do conhecimento da qual resultaram
seus principais conceitos, noções e métodos. Sem pretender constituir uma elaboração
epistemológica ou uma descrição sistemática e completa do seu desenvolvimento teórico, este é o
objetivo da sucinta resenha histórico-descritiva apresentada nas próximas seções37.
A Ciência Moderna
Por onde e quando começar? No Ocidente, o desenvolvimento e a sistematização do
saber como ciência pouco progrediram durante os cerca de mil anos da Idade Média38,[33],
limitados pela controvérsia teológica entre a fé e a razão - a persistente discussão sobre a
36 “A estrutura e a organização do conhecimento científico é uma das questões fundamentais das ciências cognitivas e da educação assim como da filosofia da ciência. As concepções sobre a estrutura do conhecimento científico afeta profundamente também o modo como esse conhecimento é ensinado, tendo, assim, consequências educacionais de ordem prática...”[34]
37 Não mais que uma síntese, esta resenha é descritiva, esquemática e seletiva. Descritiva na medida em que não é feita uma apreciação crítica de cada desenvolvimento; e, a menos de situações particulares, a primazia de autoria atribuída à proposição de uma teoria, à explicação de um processo ou fenômeno ou à invenção de determinado método ou instrumento dá-se apenas para efeitos de contextualização histórica, como registro cronológico possivelmente incompleto. Ela é esquemática por apresentar essa cronologia como um encadeamento lógico. E é seletiva na medida em que não é isenta de interpretação, no caso, a do autor.
38 Convenciona-se situar o início da Idade Média no período entre o incêndio de grande parte do acervo da Biblioteca de Alexandria, ateado pelos cristãos no ano 390, e sua quase completa destruição pelos muçulmanos, no ano 642. A partir de então, no curso de sua expansão territorial e política, os árabes tornaram-se “curadores” do conhecimento científico herdado do pensamento clássico greco-romano, preservado mediante traduções, comentários e tratados. Nestas obras, registraram também várias de suas próprias realizações técnico-científicas, particularmente na matemática, química, ótica, astronomia, medicina e engenharia. É desta forma que o aristotelismo e muitas daquelas realizações chegam ao ocidente. Neste, eventos isolados e atividades restritas a monastérios mantiveram vivo o conhecimento que, mais tarde, seria a base para a formulação de um pensamento original.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 26
inteligibilidade das leis da natureza e a autonomia da razão perante a fé. No início do Século XII,
já desenvolvera-se o entendimento de ser a natureza regida por um sistema coerente de leis que
poderiam ser explicadas pela razão. A partir de meados do Século XIV, dá-se uma sucessão de
grandes acontecimentos que, radical, progressiva e inexoravelmente, transforma a vida social,
religiosa, política e econômica do ocidente39. A demarcação entre os âmbitos da fé e da razão,
então vigente, torna-se mais e mais questionada. Nem certas questões teológicas, como então
formuladas, podiam ser apropriadamente abordadas pelo pensamento racional e lógico que se
desenvolvia, nem a perspectiva da fé parecia convincente ou suficiente para explicar os
fenômenos da natureza. As explicações no âmbito da razão, porém, ainda persistiam baseadas
em verdades aparentes e princípios auto-evidentes40. No mais das vezes, o interesse genuíno
pelo que poderia constituir um saber científico resvalava para a magia, a alquimia e a astrologia.
De modo que, ainda até os finais do Século XV, o pensamento científico ocidental baseava-se
quase exclusivamente na herança greco-romana clássica, sobretudo na especulação filosófica
aristotélica41.
Dessa crise no âmbito da fé assim como em decorrência de necessidades práticas de
nova ordem42 resultaram um questionamento sistemático e crítico do saber estabelecido e o
estímulo a um exercício intelectual racional e pragmático relativamente à compreensão dos
fenômenos da natureza. Progressivamente, a atividade científica, como ulteriormente viria a ser
designada, entra numa fase de grande efervescência: já não são suficientes a justificação
39 Dentre estes acontecimentos, a Peste Negra, entre os anos 1347 e 1400, reduz em cerca de um terço a população europeia e abala a certeza do poder da fé, em razão do que crescem o misticismo e a superstição; a queda de Constantinopla, em 1453, marca o fim do domínio ocidental sobre o oriente próximo; o desenvolvimento de novas técnicas de impressão, entre os anos 1450 e 1460, possibilita a publicação de várias obras escritas na antiguidade e a disseminação do pensamento clássico, em larga escala e sem controle ou censura; a descoberta do Novo Mundo, no ano 1492, praticamente destrói os fundamentos das teorias clássicas da geografia, meteorologia e astronomia.
40 Na 3ª cena da peça A Vida de Galileu Galilei, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), Galileu insiste com sábios da corte de Florença para que observem o céu através do telescópio e constatem a existência dos satélites de Júpiter. Os sábios recusam-se a olhar; um deles argumenta: “Não seria o caso de dizer que é duvidoso um telescópio no qual se vê o que não pode existir?”.
41 O sistema filosófico aristotélico foi a base do pensamento escolástico do cristianismo medieval e do islamismo, fortemente influenciando o desenvolvimento intelectual do ocidente até fins do Século XVII. De toda a extensa obra de Aristóteles (384 a.C., Estagira, Macedônia - 322 a.C., Cálcide, Grécia), é aqui particularmente interessante assinalar alguns aspectos de sua filosofia da natureza. No âmbito terreno, quatro qualidades fundamentais eram postuladas - o calor, o frio, o seco e o úmido; elas atuariam sobre a prima materia (matéria original) para constituir os elementos fundamentais - terra, água, ar e fogo; da ação do calor sobre o úmido originar-se-ia o ar; do calor sobre o seco, o fogo; do frio sobre o seco, a terra; e do frio sobre o úmido, a água. As qualidades fundamentais seriam corruptíveis e mutáveis. Por exemplo, o aquecimento da água, fria e úmida, a transformaria em ar, quente e úmido. O âmbito celestial seria constituído por um quinto elemento fundamental, uma quinta-essência incorruptível e imutável chamada éter. Os elementos fundamentais da estática seriam a matéria e a forma, os da dinâmica, a ação e a potência. O movimento dos astros seria causado pelo vento etéreo impelido pelo Primum Mobile, uma entidade superior todo-poderosa.
42 Para ter-se uma ideia de quais eram estas necessidades e qual era o conhecimento requerido para atendê-las, tomem-se exemplos das novas tecnologias que, nos finais do Século XV e por todo o Século XVI, contribuíram para viabilizar a navegação oceânica de longo curso: na cartografia e na construção de embarcações, a invenção de novas técnicas de representação do espaço e de projeção de objetos tridimensionais sobre o plano; também na construção, a sistematização de conhecimentos de resistência dos materiais e o cálculo estrutural; para marcação mais prática e precisa do curso do tempo, a invenção do relógio mecânico; para orientação, a invenção da bússola e um conhecimento mais preciso da mecânica celeste.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 27
metafísica, a descrição qualitativa e a classificação dos fenômenos naturais. A predição e, mais
decisiva, a sua verificação passam a ser elementos necessários da explicação. Em particular, nos
domínios do conhecimento que viriam a constituir a Física, os principais procedimentos
metodológicos passam a ser a experimentação, a expressão matemática e a conjetura baseada
na observação43. A indagação científica deixa de buscar o por que e o que é, nos termos de
razões fundamentais de ordem metafísica[19], e passa a ser como ocorrem os fenômenos naturais.
Surge a ciência moderna.
A Questão do Método
É provável que Leonardo da Vinci44 tenha sido dos primeiros a considerar, cerca de
1490, que a elaboração científica deveria basear-se na observação, expressar-se em termos
matemáticos e submeter-se à verificação experimental45. A primeira extensa, complexa e decisiva
aplicação da matemática à explicação e previsão de fenômenos físicos é feita por Copérnico46,
entre os anos 1510 e 1514. Valendo-se mais do cálculo do que da observação direta dos astros,
ele concebe uma nova descrição dos movimentos celestes e desenvolve um modelo matemático
representativo que substitui a concepção geocêntrica e geostática de Ptolomeu por uma
concepção heliocêntrica e heliostática47. Com a hipótese do duplo movimento da Terra, Copérnico
43 Na verdade, no Egito, Índia, China e Babilônia, a observação e experiência já eram práticas correntes desde a antiguidade; sua interpretação, porém, era impregnada de ideias preconcebidas e princípios gerais; entendiam-se os fenômenos naturais como manifestação de propósitos metafísicos e a expressão matemática como um ideal de perfeição, não como um requisito de rigor e certeza.
44 Leonardo da Vinci (1452, Vinci, Itália - 1519, Cloux, França) – pintor, desenhista, escultor, anatomista, arquiteto, engenheiro e cientista italiano; escreveu e desenhou cadernos sobre quatro temas principais: pintura, arquitetura, elementos de mecânica e anatomia humana; não submetendo sua interpretação a princípios de como as coisas devem ser, mas a como elas de fato são, antecipou, como conjeturas, várias explicações que seriam ulteriormente confirmadas, dentre outras: o princípio da impossibilidade do movimento perpétuo; os princípios do equilíbrio mecânico e do movimento dos fluidos; que uma força não é necessária para manter o movimento, mas para alterá-lo; que a luz é um fenômeno ondulatório; que a combustão de uma vela e a respiração são essencialmente o mesmo fenômeno.
45 Cerca de.1490, Leonardo da Vinci escreveu[44] ,“...é minha intenção, primeiro, descrever a experiência; depois, demonstrar porque esta experiência deve suceder da maneira como sucede. Esta é a regra que deve ser seguida por quem especula sobre os efeitos naturais...”; adverte que “...a experiência não engana nunca; só erram vossos julgamentos, que prometem a si mesmos resultados estranhos à vossa experimentação pessoal...”; e, num manuscrito de 1515, reitera: “... não há certeza se não se pode aplicar a matemática ou um conhecimento baseado na matemática”.
46 Nicolaus Copernicus, Mikolaj Kopernik (1473, Toruń, Polônia - 1543, Frauenberg, Prússia) – astrônomo polonês; insatisfeito com a concepção geocêntrica e geostática do universo, passou anos desenvolvendo uma teoria segundo a qual a Terra e outros planetas realizam movimentos circulares em relação a um ponto no espaço próximo ao Sol; ca. 1510, apresentou a primeira descrição deste sistema “heliocêntrico” num sumário manuscrito, De Hypothesibus Motuum Caelestium a se Constitutis Commentariolus (Pequeno Comentário sobre Hipóteses acerca dos Movimentos Celestes), quase desprovido de deduções e cálculos; a versão final da teoria, apresentada em 1540 no livro De Revolutionibus Orbium Caelestimum (Sobre a Revolução das Esferas Celestes), é uma obra quase totalmente matemática.
47 A teoria heliocêntrica impunha duas drásticas implicações relativamente às concepções vigentes na época. No contexto de uma concepção geo-estática, não havia dificuldade em explicar a ocorrência de estrelas fixas; elas estavam, de fato, imóveis. Para um modelo em que a Terra encontra-se em movimento, a explicação passa a ser a de que aquelas estrelas estão tão distantes que é
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 28
introduz o chamado princípio da relatividade ótica do movimento, definindo três situações
possíveis na relação entre o observador e o objeto observado: o movimento pode ser produzido
pelo observador, pelo próprio objeto observado ou por ambos. No entanto, Copérnico não
formulou uma teoria física sobre os movimentos celestes nem demonstrou experimentalmente que
a Terra se move. De modo que, para muitos, o seu modelo parecia matematicamente acertado
mas fisicamente absurdo; faltava-lhe algo como “a aparência de verdade”[41].
Não obstante, impôs-se a questão: se um modelo matemático de representação da
natureza pode revelar relações não evidentes de um fenômeno natural, como conciliá-las com
relações aparentes entre observáveis deste mesmo fenômeno? Em outros termos, como
quantificar tais observáveis e incluir suas relações num sistema de cálculo? Ou, inversamente,
como submeter resultados da racionalização matemática abstrata à verificação experimental? Sob
qual critério? Pois, mesmo que a observação direta já não seja critério de certeza ou completeza,
é necessário tê-la em conta, reproduzi-la, prevê-la, explicá-la. Essencialmente, estas são as
questões que dão origem ao desenvolvimento do método científico.
A experimentação sistemática é a base do “novo método” para a ciência, que é
proposto por Bacon48 em 1620. Esse método opera por indução e consiste de um processo de
observação, que se desenvolve em duas etapas, seguido de um processo de exclusão. A
observação exige uma precisa descrição do fenômeno, o que salienta a qualidade dos
instrumentos de medição e coleta de dados; depois, procede à classificação dos resultados
obtidos. A exclusão objetiva eliminar da informação experimental o que seja apenas contingente
ou influência acidental. Assim depurados, os resultados podem induzir a revelação de correlações
essenciais entre as variáveis observadas. Para Bacon, a aplicação recorrente desse procedimento
deveria induzir, gradual e progressivamente, a revelação de correlações cada vez mais
abrangentes sobre um fenômeno ou uma classe de fenômenos. Há, porém, um problema: para
um mesmo fenômeno, é possível estabelecer correlações distintas e até conflitantes se a
observação basear-se em distintos conjuntos de variáveis – cuja escolha, por suposto,
corresponde à adoção de distintas premissas explicativas. Dito de outra forma, para um mesmo
imperceptível o seu movimento relativo à Terra. A primeira implicação, portanto, é que a dimensão do universo seria muito maior do que até então estimada. A segunda implicação concerne à explicação aristotélica sobre a causa da queda dos corpos; no contexto de uma concepção geocêntrica, ela decorreria da tendência da matéria de buscar o seu “lugar natural” no centro da Terra, que seria também do universo. Mas, o que sucede se a Terra não ocupar posição tão singular? A resposta a esta questão seria dada por Newton, na teoria da gravitação.
48 Francis Bacon (1561– 1626, Londres, Inglaterra) – jurista, filósofo, ensaísta e político inglês; ao planejar sua obra Magna Instauratio (Grande Instauração), propôs-se elaborar uma reorganização de todo o conhecimento, da lógica e epistemologia à ciência aplicada; na Parte II, intitulada Novum Organum (Novo Instrumento), publicada em 1620, propôs um método nos termos do qual a interpretação dos fenômenos naturais deveria basear-se na observação sistemática dos fatos e expressar-se mediante correlações essenciais que não cogitassem sobre suas causas finais ou propósitos; o título dado a esta Parte II indica sua intenção de que o novo método substituísse aquele estabelecido no Organum, a compilação medieval dos ensinamentos de Aristóteles.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 29
fenômeno é possível estabelecer correlações distintas compatíveis com leis mutuamente
incompatíveis, todas estabelecidas exatamente com base na mesma evidência indutiva[50]. Para
resolver este problema, Bacon propôs o experimentum crucis – experimento crucial ou
experimento crítico, ao qual uma teoria deveria submeter-se para ser considerada saber científico
estabelecido49. Na filosofia da ciência, a noção, mais exatamente, a exequibilidade de um
experimentum crucis tornou-se e mantém-se um tema controverso[54], sob o duplo argumento de
que via de regra a própria concepção do arranjo experimental subentende a validade das
correlações a serem verificadas; e que não é possível assegurar que a tabulação de um dado
conjunto de variáveis diretamente observáveis de um fenômeno ou de uma classe de fenômenos
seja suficiente para estabelecer sua explicação, excluídas quaisquer outras. Esse último
argumento evidencia outro problema: a de que não pode haver evidência indutiva que não esteja
baseada na observação imediata50. Em suma, a indução operada sobre relações específicas,
menos gerais, não é suficiente para a revelação de leis mais gerais.
Já a intuição racional e a dedução são a base do método proposto por Descartes51, em
1637. O conhecimento científico deveria desenvolver-se como uma hierarquia de proposições
referentes a aspectos estritamente quantificáveis dos fenômenos e deduzidas de princípios gerais.
O primeiro elemento metodológico do sua proposição estabelece que não se deve aceitar como
verdade aquilo que não é auto-evidente; o segundo elemento especifica que deve-se dividir um
todo em suas partes constituintes e operar a análise em cada uma destas; o terceiro elemento
opera no sentido inverso, realizando a síntese que recompõe o todo, mediante encadeamento das
partes analisadas, arbitrariamente ordenadas das simples para as complexas sob o critério de
facilidade de compreensão; o quarto elemento, a enumeração, deve dar conta de que, na
consideração do fenômeno, nada, nenhum aspecto, foi omitido. A aplicação do primeiro elemento,
contudo, resulta em princípios que pouco mais são que conjeturas ou racionalizações intuitivas;
49 Um experimentum crucis ou instantia crucis (instância ou exemplo crucial) deve decidir entre teorias ou hipóteses conflitantes, e se uma dada proposição é correta ou não; tipicamente, a experiência crucial deveria produzir um resultado previsto por uma teoria ou hipótese, mas não por alguma outra já estabelecida. Tais episódios são muito raros no desenvolvimento da ciência. Exemplos famosos são a separação das cores através do prisma, feita por Newton; o desvio da trajetória da luz provocado pela atração gravitacional do sol, realizada por Eddington, para confirmar a existência das lentes gravitacionais previstas pela teoria da relatividade geral, de Einstein; e a explicação dada pela hipótese quântica ao espectro observado da radiação do corpo negro.
50 Por exemplo, qual evidência indutiva afirma a existência de ondas sonoras? As sensações auditivas são as mesmas quer existam quer não existam tais ondas. Nenhuma evidência indutiva pode estabelecer que uma dessas hipóteses deve prevalecer sobre a outra.
51 René Descartes (1596, La Haye, França – 1650, Stockholm, Suécia) – matemático, cientista e filósofo francês; considerado um dos precursores da filosofia moderna; questionou a autoridade e os sentidos como elementos determinantes do conhecimento; insiste em que, além do raciocínio, também a intuição desempenha papel preponderante, o que é expresso na assertiva cogito ergo sum (penso, logo existo); em 1637, publicou sua mais famosa obra, Discours de la Méthode (Discurso sobre o Método), na qual estabelece as regras do ulteriormente denominado método cartesiano, acompanhada de três ensaios, la Dioptrique (A Dióptrica), uma teoria da refração, les Météors (Os Meteoros), onde estuda meteoros, fenômenos astronômicos e atmosféricos e explica o arco íris, e la Géométrie (a Geometria), em que apresenta os fundamentos da geometria analítica e da aplicação da álgebra à geometria, e introduz a notação algébrica até hoje utilizada.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 30
deles são deduzidas generalizações também intuitivamente evidentes, de limitada utilidade como
conhecimento, pois não consideram o curso real de fenômenos específicos. Para superar tal
limitação, pode-se recorrer a hipóteses que, embora sugeridas pela observação e pela
experiência, devem, antes, ser consistentes com os princípios gerais e permitir a retomada da
sequência de deduções. Assim, a hipótese é, neste método, um elemento metodológico inovador,
embora seja mais apropriado considerar as hipóteses descarteanas como analogias de
experiências do quotidiano52. Finalmente, na aplicação do quarto elemento, como saber se algum
aspecto foi omitido? O critério é o da evidência, guiada pela intuição. Em suma, tanto nos
requisitos que condicionam a proposição de hipóteses quanto neste critério de inclusão, a intuição
apriorística prevalece sobre o objetivamente observado. O que impõe sérias restrições ao valor
científico dos resultados da aplicação deste método.
Entre 1634 e 1638, Galileo53 adota a hipótese científica54 como mais um elemento
metodológico e, ao elaborar uma completa descrição quali-quantitativa do movimento dos corpos,
sistematiza o novo método da ciência. A sua teoria do movimento integra os processos dedutivo,
baseado na hipótese, e indutivo, baseado na observação e na medição. Nela, a abstração e a
idealização são elementos metodológicos que estendem o alcance das técnicas de indução. Por
exemplo, as noções de “queda livre no vácuo” e de “pêndulo ideal” são mais que generalizações
de observações; representam extrapolações destas para situações-limite não encontradas na
realidade, mas concebidas pela mente. Assim, a idealização e a hipótese, o uso inédito da
dedução matemática - essencialmente, a dedução geométrica -, a identificação de elementos
mensuráveis nos fenômenos naturais e a busca por relações entre medidas destes elementos
tornam-se a essência de “um conceito novo de experiência e de teoria científicas”, com os quais
Galileu “instaura um modelo sem precedente de saber racional”[32].
52 Por exemplo, para Descartes, no coração há geração espontânea de calor, que vaporiza o sangue venoso; a expansão deste o impele ao sistema arterial; esta descrição contradiz fatos já conhecidos na época. Outro exemplo: a reflexão da luz explica-se por analogia ao rebote de bolas quando chocam-se contra superfícies duras. O movimento dos planetas compara-se ao de rolhas que flutuam no turbilhão de um fluido em escoamento.
53 Galileo Galilei (1564, Pisa, Itália - 1642, Arcetri, Itália) - matemático, astrônomo e físico italiano; considerado o iniciador da física experimental; a sua obra, Discorsi e Dimostrazioni Mathematiche Intorno à Due Nuove Scienze Attenenti alla Meccanica & i Movimenti Locali (Discursos e Demonstrações Matemáticas concernentes a Duas Novas Ciências Atinentes à Mecânica e aos Movimentos Locais), de 1634, formula uma unificação do saber científico da época, sendo o marco fundador das disciplinas da Resistência dos Materiais e da Mecânica Clássica e de sua constituição como ciências. Nesta obra, entre outros temas, desenvolve o conceito de similitude e a teoria da semelhança física; descreve matematicamente a natureza parabólica da trajetória dos projéteis e as leis que regem o movimento do pêndulo simples; demonstra que a aceleração gravitacional terrestre é a mesma para qualquer corpo; concebe e formula o conceito de referencial.
54 Uma hipótese científica é uma suposição ou uma conjetura sobre uma relação real ou sobre as causas de relações reais, através da qual fatos ou fenômenos reais podem ser explicados[63]. Assim concebida, uma hipótese é uma formulação matemática baseada na observação e deve preceder e guiar a experiência, que é feita para verificá-la; isto é, o experimento deve ser organizado de forma a reproduzir as condições afirmadas na conjetura.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 31
As hipóteses formuladas e a teoria desenvolvida por Galileu concernem à
Cinemática55, ou seja, à caracterização físico-matemática do movimento; cogitam do seu
transcorrer e não das suas causas. Para tratar destas, outro elemento metodológico adquire
significado científico preciso: o princípio da causalidade, ou seja, a noção de causa-e-efeito56.
Implicitamente, Galileu a menciona quando discorre sobre o que poderia causar variação no
movimento de um corpo57. Coube a Newton58 a formulação adequada e definitiva de uma teoria
sobre as causas do movimento - a Dinâmica.
Em 1687, com a gravitação universal, Newton apresentou uma teoria unificada da
Mecânica mediante a qual todos os fenômenos da dinâmica e da astronomia puderam ser
explicados. O método adotado na elaboração da chamada síntese newtoniana é axiomático; nele,
novos e já conhecidos elementos metodológicos são combinados no que é considerada uma
aplicação perfeita do método científico. O método axiomático newtoniano desenvolve-se em três
estágios[38]. Inicialmente, são formuladas proposições, os axiomas, que estendem-se, como
princípios, além da evidência indutiva original. Dos axiomas são deduzidas consequências, os
teoremas. Ao contrário destes, os axiomas não podem ser deduzidos de outras proposições.
Ambos, axiomas e teoremas, apoiam-se em noções fundamentais não demonstráveis, enunciadas
como definições. O conjunto dedutivamente organizado de axiomas, teoremas e definições
constitui um sistema axiomático. Em seguida, devem ser especificadas correlações entre
teoremas e observáveis dos fenômenos. As correlações e suas consequências são, então,
55 Termo cunhado por André-Marie Ampère, em 1834[4]: “... j'ai donné le nom de cinématique, de κίνημα, mouvement¨...”. 56 Segundo o princípio da causalidade, um evento, qualquer evento, é um efeito precedido de uma causa. Dada a causa, tem-se o
efeito. Todos os eventos ou, nos termos aqui utilizados, todas as transformações que sucedem na natureza decorrem de relações desse tipo. Para o pensamento aristotélico, há quatro causas ou princípios de explicação: a causa materialis ou causa material – a substância da qual o objeto é feito; a causa formalis ou causa formal - a maneira como a transformação sucede no objeto ou a forma do processo; a causa efficiens ou causa eficiente – o potencial motriz que impulsiona a interação; e a causa finalis ou causa final – o propósito último da transformação. Para Aristóteles, a causa final tem primazia; para a ciência moderna, a causa eficiente é geralmente considerada a explicação do evento ou da transformação. Por exemplo, à pergunta “por que ocorre a coisa A?”, a resposta em termos aristotélicos seria: “porque é da natureza de A ocorrer como ocorre”; para a ciência moderna, a resposta parece óbvia: “porque, antes, ocorreu tal coisa B”.
57 “...qualquer velocidade, uma vez impressa a um corpo em movimento, permanecerá de forma indestrutível desde que sejam removidas as causas externas de aceleração ou retardamento...”[22]. Na sequência, Galileu refere-se às aceleração e desaceleração que ocorrem, respectivamente, em movimentos descendentes (“movimento natural”) e ascendentes (“movimento forçado”) em relação a um plano horizontal. Dessa constatação teria emergido o conceito de que o movimento contínuo e uniforme apenas poderia ocorrer se o corpo mantivesse uma distância constante ao centro da Terra. Por não ter procedido na forma preconizada pelo seu próprio método, é incerto e controverso se Galileu faz, nesta formulação, uma referência cientificamente consistente, ainda que imprecisa ou incompleta, ao conceito de força e ao princípio da inércia[55],[15]. A controvérsia está na conjetura sobre o conceito ao qual Galileu recorre, se a um princípio de inércia (o de uma “inércia circular”, como alguns a denotam) ou a um conceito de conservação da velocidade. Observe-se que não era nova a ideia de que o movimento tende a persistir na ausência de uma ação externa. No ano 100 d.C., Plutarco escrevera: “...tudo é carregado pelo movimento que lhe é natural, se não for defletido por alguma outra coisa...”; em 1490, Leonardo declarara: “...todo corpo tem peso na direção na qual se move...”.
58 Isaac Newton (1642, Woolsthorpe, Inglaterra – 1727, Londres, Inglaterra) – físico e matemático inglês; a sua obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), publicada em 1687, é o ponto culminante do processo que estabeleceu os fundamentos da ciência moderna. Nela, introduz conceitos de novas grandezas físicas e novos termos - quantidade de massa , quantidade de movimento; redefine antigos significados - força, tempo, espaço; cria uma nova linguagem matemática – o cálculo diferencial e o cálculo integral; formula a lei da gravitação universal, as leis do movimento - o princípio da inércia e a relação entre força e aceleração - e a lei da ação-e-reação.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 32
submetidas à confirmação experimental. Desta, origina-se a evidência indutiva que eventualmente
sugere e lastreia novas proposições.
Como se sabe, os axiomas da Mecânica são as três leis do movimento. A formulação
da primeira lei - “Todo corpo continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme numa
linha reta a menos que seja compelido a mudar aquele estado por forças que sobre ele atuem” -
apoia-se sobre mais um elemento metodológico, o sistema ideal isolado. Um sistema [...um
corpo...] é isolado de um universo do qual faz parte, o que significa que a descrição do seu
comportamento [...continua em seu estado de repouso ou de movimento uniforme...] faz referência
ao restante das coisas com as quais o sistema pode ou poderia relacionar-se [...forças que sobre
ele atuem...]. Assim, a concepção de um sistema isolado não pressupõe que ele seja
independente do restante das coisas, mas que ele esteja livre de uma dependência causal e
contingente em relação a interações específicas com o resto do universo. Mais ainda, se o
sistema é ideal, essa liberdade é requerida apenas em relação a certas características abstratas
atribuídas ao sistema isolado ou ao seu comportamento [...movimento uniforme numa linha reta...]
e não em relação ao sistema real e concretamente considerado. O conceito de sistema ideal
isolado é essencial para o desenvolvimento de várias teorias científicas, dentre as quais a
Termodinâmica.
O método axiomático newtoniano orientou o desenvolvimento da atividade científica
pelo menos até os primeiros anos do Século XX, particularmente na Astronomia, na Física e na
Engenharia. Por esta época, indagações sobre o significado da observação ou do fato
experimental e novos desafios práticos e conceituais resultaram na formulação da Teoria da
Relatividade e da Mecânica Quântica e, mais recentemente, da Teoria dos Buracos Negros e da
Teoria das Cordas. Em síntese, foram suscitadas novas e importantes questões metodológicas
relativas ao papel da observação e da realização de experiências para definição do fenômeno a
investigar e para a formulação de teorias científicas59. Para a filosofia e a epistemologia, por todo
o período desde o Século XVII até, pelo menos, finais do Século XX, a questão do método
59 Heisenberg[28] cita, de Einstein, a seguinte reflexão: “...É errado tentar fundamentar uma teoria apenas em grandezas observáveis. Na realidade, ocorre justamente o contrário. É a teoria que decide o que podemos observar.... O fenômeno sob observação produz certos eventos em nosso aparelho de medição. Como resultado, ocorrem outros eventos no aparelho que, eventualmente e por caminhos complicados, produzem impressões sensoriais e nos ajudam a fixar os efeitos em nossa consciência. Ao longo de todo este caminho – do fenômeno à fixação em nossa consciência -, nós devemos ser capazes de dizer como a natureza funciona, devemos conhecer as leis da natureza pelo menos em termos práticos, antes de podermos afirmar que observamos alguma coisa. Só a teoria, isto é, o conhecimento das leis naturais, nos habilita a perceber o fenômeno subjacente a partir de nossas impressões sensoriais. Quando afirmamos que observamos algo novo, nós deveríamos de fato dizer que, embora estejamos prestes a formular novas leis da natureza que não estão em concordância com as antigas, nós não obstante supomos que as leis existentes – por todo o caminho do fenômeno à nossa consciência – funcionam de tal maneira que podemos nelas confiar e, consequentemente, falar de 'observação' ”.
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científico manteve-se aberta e controversa60. Não obstante, para as finalidades desta resenha e
para o escopo da teoria da Termodinâmica a ser desenvolvida adiante, é suficiente a noção dos
elementos metodológicos até aqui apresentados.
Primeiros Passos
Como visto, a concepção newtoniana da Mecânica constrói um completo e abrangente
sistema de representação e explicação dos fenômenos da natureza inanimada. Três de suas
noções fundamentais, formuladas como definições, são fundamentais também para a
Termodinâmica. As duas primeiras concernem ao tempo e ao espaço absolutos. O tempo é um
continuum, constituído por uma sucessão ordenada de instantes e independente de qualquer
referencial, ou seja, de qualquer instante se progride indefinidamente para o passado assim como
para o futuro. O espaço é, também, um continuum, mas uniforme, sem ordenação, e imutável,
sendo constituído de lugares e independente da matéria61. A terceira noção é que a matéria é um
atributo mensurável de um objeto e que a massa designa a quantidade de matéria nele contida.
Um objeto material ocupa, em cada instante, apenas um lugar no espaço; o volume é a medida
deste lugar.
Na época da formulação da concepção newtoniana, as explicações dominantes dos
fenômenos termofísicos e termoquímicos persistiam feitas em termos essencialmente qualitativos.
Em parte, essa situação decorria da inexistência de séries precisas de observações quantitativas,
posto que decorrentes de medições realizadas com instrumentos rudimentares. Sem submeter-se
aos métodos quantitativos que já caracterizavam a representação dos fenômenos mecânicos, tais
observações pouco bastavam para inferir comportamentos sistemáticos e fundamentar a
proposição de uma estrutura conceitual abrangente e consistente, a partir da qual fenômenos
termofísicos e termoquímicos pudessem ser apropriadamente entendidos e explicados. Assim,
não obstante sua evidente inadequação e o erro de suas predições, a maioria das explicações
baseava-se ainda na concepção aristotélica da natureza; na alquimia; ou, herança de certo
60 Neste âmbito, são várias as questões controversas. Por exemplo, a observação dependente da teoria? (ver nota anterior) Dado que, mediante a introdução de hipóteses ad hoc apropriadas, uma teoria poderia ser sempre compatibilizada com qualquer observação empírica, poder-se-ia determinar a correção de uma teoria por sua submissão à prova empírica? Qual é o critério de demarcação entre o que é e o que não é ciência ou conhecimento científico?
61 Nas palavras de Newton[43]: “o tempo absoluto, verdadeiro, matemático, em si próprio e por sua própria natureza, flui uniformemente sem relação a qualquer coisa externa ...”; “o espaço absoluto, em sua própria natureza, sem relação a qualquer coisa externa, permanece sempre similar e imóvel...”; “...a ordem das partes do tempo é imutável, também assim é a ordem das partes do espaço...”; “...todas as coisas são postas no tempo numa ordem de sucessão; e, no espaço, numa ordem de situação...”.
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obscurantismo medieval, em influências e simpatias62, crenças e superstições.
Combustão
A concepção mais remota e primitiva do fogo é metafísica: o fogo seria o principio
básico do universo; a chama, a manifestação de um algo imaterial encerrado nos materiais. Para
Heráclito e os filósofos pitagóricos do Século V a.C., a ação do fogo reduziria a matéria à sua
forma mais elementar, ou seja, transformaria uma estrutura complexa noutra, de constituição mais
simples. Seguiu-se, então, a noção de que os materiais combustíveis encerrariam um princípio
inflamável que escaparia, quando da queima. Concepções posteriores cogitaram-lhe uma
natureza material, algo que se desprende do material que queima. No entanto, já no Século III
a.C. Philon de Bizantium63 constata que a queima de um material não se mantém se feita no
interior de um recipiente fechado; ele propõe que o ar atmosférico, inicialmente contido no
recipiente, seria “consumido” durante a combustão. Na China do Século VIII d.C.[52], a combustão
era explicada como uma combinação de certos materiais com uma parte do ar atmosférico. Tal
“parte do ar” seria expressão de um dos princípios opostos da natureza, o yang, sendo a “outra
parte” o yin64. Essas explicações metafísicas do fenômeno da combustão anteciparam, por vários
séculos, a concepção científica que, semelhante, posteriormente viria a prevalecer.
Em 1669, Becher65 sugeriu a existência de uma terra combustível, presente em todos
os materiais e liberada durante a combustão. Em 1703, Stahl66 elaborou uma síntese das ideias
em circulação e postulou que os materiais combustíveis conteriam um elemento fugaz, sutil e
62 No seu significado original, na idade média, influências denotam ações atribuídas aos astros sobre os seres animados e inanimados e que determinam o seu destino; simpatias denotam correspondências que se supõe existir entre as qualidades de certos corpos.
63 Philon de Bizantium [Filón de Bizâncio] [290 a.C., Bizâncio (Turquia) – 220 a.C., ?] - engenheiro grego; escreveu um amplo tratado sobre mecânica do qual perduraram fragmentos sobre pneumática, balística, mecanismos e aplicações bélicas dos princípios da tensão e torção de corpos elásticos; descobriu a expansividade do ar mediante aquecimento, utilizando-a para bombeamento d'água e para construção do termoscópio, um instrumento rudimentar que indicava variações da pressão e temperatura ambientes.
64 A oposição yin-yang é associada à ideia de cinco agentes ou elementos fundamentais da natureza - madeira, fogo, terra, metal e água; yang representa a criação, a luz, o calor, o ativo, o dominante; yin representa a contemplação, o escuro, o frio, o passivo, o submisso.
65 Johann Joachim Becher (1635, Speyer, Alemanha - 1682, Londres, Inglaterra) - alquimista, químico, médico e negociante alemão, provavelmente o primeiro a elaborar uma teoria da química; em 1667, publicou a obra Physica subterraneae (Física Subterrânea) em que expôs a idéia de que os corpos naturais seriam compostos por princípios próximos, como a água e a terra; nesta última, distinguia três elementos, terra lapida, vitrea ou fundente, terra mercurial ou fluida e terra pinguis ou fértil, inflamável.
66 Georg Ernst Stahl (1660, Ansbach, Francônia - 1734, Berlin, Prússia) - alemão, professor de química e medicina na Universidade de Halle; elaborou a primeira quantificação sistemática das transformações químicas, embora ainda sem os conceitos de átomo e de elementos químicos.
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indestrutível, o flogístico67. Liberado durante a queima, a chama seria a sua forma visível; um
material cuja combustão não deixasse restos seria constituído de puro flogístico; e, dadas as
condições apropriadas, fosse este restituído aos restos queimados da combustão, reconstituir-se-
ia o material combustível original. A Teoria do Flogístico contribuiu para a formulação de vários
conceitos e métodos fundamentais da Química, mediante os quais foram feitas importantes
descobertas.
No início do Século XVII, Helmont68 descobriu que o ar atmosférico é composto por
diversos gases; descobriu, também, a existência de um certo produto gasoso da combustão. Em
1774, Black69 denominou-o ar fixo, após demonstrar que esse gás inibe a combustão. No curso de
experiências realizadas na década 1750-60, Lomonosov70 verificou que os restos de um processo
de combustão, inclusive cinzas, fumaça e os gases produzidos, pesam mais do que os materiais
antes de sua realização. Sugeriu, então, que a combustão seria uma combinação química violenta
de uma substância com uma parte do ar. Esta “parte do ar”, chamada ar perfeito, ar de fogo ou ar
vital, foi descoberta por Scheele71, em 1772. Neste mesmo ano, Rutherford72 descobriu um
componente do ar atmosférico que não participa do processo de combustão; denominou-o ar
flogisticado. Alguns anos antes, em 1766, Cavendish73 supôs ter isolado o flogístico, ao descobrir
um gás explosivo produzido pela combinação de metais e ácidos; denominou-o ar inflamável. Em
67 Flogístico: da palavra grega phlogistós, “inflamado”; sucedâneo da terra inflamável, concebido como um elemento imaterial e não como uma substância, o flogístico circularia entre os materiais, inexaurível, dando-lhes combustibilidade; no curso da combustão, o ar atuaria como mero transmissor do flogístico liberado; com o progresso das técnicas de medição, o flogístico passou a ser considerado uma substância real à qual atribuía-se a variação de peso dos materiais envolvidos num processo de combustão.
68 Joannes Baptista van Helmont (1580, Bruxelas, Bélgica – 1644, Vilvoorde, Bélgica) – químico, físico e fisiologista belga; considerado um dos precursores da bioquímica; considera-se que fez a “ponte” entre a alquimia e a química; inventou a palavra “gás”; descobriu que o spiritus sylvestre (espírito silvestre, hoje dióxido de carbono) é a mesma substância produzida durante a fermentação e a combustão.
69 Joseph Black (1728, Bordeaux, França - 1799, Edinburgh, Escócia) - químico e físico britânico; professor na Universidade de Glasgow, Escócia; reconheceu o papel do dióxido de carbono no processo de combustão, introduziu os conceitos de calor específico e calor latente; estabeleceu os fundamentos do que veio a denominar-se Teoria do Calórico e as bases quantitativas da disciplina Transferência de Calor.
70 Mikhail Vasilyevich Lomonosov (1711, Kholmogorov, Rússia - 1765, S. Petesburgo, Rússia) - poeta, cientista e gramático russo; na sua obra Meditationes de Solido et Fluido (1760), propôs o que é provavelmente a primeira formulação de uma lei de conservação da matéria e energia, designada “lei universal da natureza”, que expressava suas concepções teóricas sobre a unidade dos fenômenos naturais e sobre a natureza corpuscular da estrutura da matéria; rejeitava a Teoria do Flogístico.
71 Karl Wilhelm Scheele [1742, Stralsund, Pomerânia (Alemanha) – 1786, Köping, Suécia] – químico e farmacêutico sueco; descobridor de várias substâncias químicas, dentre as quais o oxigênio, esta em 1772; a primazia de tal descoberta lhe é raramente reconhecida, em virtude de atrasos da publicação de seus resultados experimentais no livro Abhandlung von der Luft und dem Feuer (Tratado sobre o Ar e o Fogo), de 1777.
72 Daniel Rutherford (1749 - 1819, Edinburgh, Escócia) – botânico, químico e médico escocês; por ter sido o primeiro a publicar seus resultados, é-lhe atribuída a descoberta do nitrogênio, ainda como estudante de medicina, em Edinburgh, embora haja dúvidas quanto à real precedência relativamente às descobertas similares de Scheele, Priestley e Cavendish.
73 Henry Cavendish (1731, Nice, França – 1810, Londres, Inglaterra) – físico e químico inglês; descobriu o hidrogênio, ao qual denominou ar inflamável ou puro flogístico; foi um dos descobridores da composição do ar, da composição da água e da natureza e propriedades do hidrogênio; realizou medições pioneiras do calor específico de várias substâncias e de várias propriedades da eletricidade; num experimento famoso, determinou a massa e a densidade da Terra.
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1774, Priestley74 o isolou, chamando-o ar deflogisticado. Já em 1766, em eventos independentes,
Warltire75 e Macquer76 observaram que a combustão do ar inflamável produz água. A água seria,
então, a combinação do ar deflogisticado com o flogístico. As denominações dadas a essas e a
outras substâncias descobertas naquele período demonstram que a Teoria do Flogístico oferecia
uma explicação unificadora das transformações que ocorrem nos materiais durante o fenômeno
da combustão. Submetida a ajustes77 que procuravam explicar evidências empíricas disponíveis, e
não se prestando a verificações quantitativas, a Teoria do Flogístico persistiria aceita nos meios
científicos por quase todo o Século XVIII.
Entre os anos 1770 e 1789, Lavoisier78 realizou uma série de experimentos relativos
ao papel desempenhado pelo ar atmosférico no processo de combustão, utilizando a balança
como principal instrumento de medida. Lavoisier propôs que, durante a queima, ar deflogisticado,
que denominou oxigênio, combina-se com a substância combustível, sendo absorvido nos
produtos da combustão. Dentre estes, encontra-se o ar fixo, depois chamado dióxido de carbono.
Ao invés da liberação de flogístico, ter-se-ia absorção de oxigênio, o que explica o aumento do
peso dos produtos da combustão. A parte do ar que não participa do processo de combustão, o ar
flogisticado, foi chamada azoto, ulteriormente, nitrogênio. A combustão consiste, então, de uma
rápida combinação de matéria orgânica com o oxigênio do ar, usualmente incandescente, em que
são produzidos dióxido de carbono e calor. Lavoisier demonstrou, ainda, que a respiração dos
seres vivos é um processo essencialmente similar ao da combustão, embora muito mais lento; e
mostrou que, no processo de calcinação de metais, do qual não resulta dióxido de carbono, o ar
desempenha essencialmente o mesmo papel que no processo de combustão. Em 1783, baseado
em resultados experimentais, Lavoisier estabeleceu que a água é um produto da combinação de
74 Joseph Priestley (1733, Birstal Fieldhead, Inglaterra – 1804, Northumberland, Pa., EUA) – clérigo, cientista político e físico inglês; descobridor de várias substâncias químicas, dentre as quais a amônia, o ácido clorídrico, o óxido nítrico e o oxigênio, esta em 1774, independentemente de Scheele; a primazia de tal descoberta lhe é freqüentemente atribuída; relatou regularmente suas experiências com gases na série Experiments and Observations on Different Kinds of Air (Experimentos e Observações sobre Diferentes Tipos de Ar), com seis volumes, publicada entre 1774 e 1786; manteve-se sempre fiel à idéia do flogístico.
75 John Warltire (?) - químico inglês, citado nas publicações de Priestley e Cavendish com relação a experiências de produção de água a partir da combustão do ar inflamável ou flogístico no ar atmosférico.
76 Pierre Joseph Macquer (1718 - 1784, Paris, França) - médico e químico francês, administrador da fábrica de porcelana de Sèvres; foi o primeiro a desenvolver a idéia da química como uma disciplina sistemática e quantitativa; em 1749 e 1751, respectivamente, publicou os dois volumes do tratado Élemens de Chymie Théorique et Pratique (Elementos de Química Teórica e Prática); em 1766, publicou anonimamente o primeiro dicionário de Química Geral Dictionnaire de chymie, contenant la théorie & pratique de cette science (Dicionário de Química, contendo a teoria e a prática desta ciência).
77 Exemplos de tais ajustes: associando a evidência do aumento do peso total dos produtos da combustão à observação de que a chama ascende verticalmente, atribui-se um peso negativo ao flogístico; num ambiente fechado, a combustão deixa de ser possível quando o ar torna-se saturado de flogístico.
78 Antoine-Laurent Lavoisier (1743 - 1794, Paris, França) - cientista francês e administrador público; em 1786, publicou um contundente ataque à Teoria do Flogístico; baseado em suas descobertas e teorias, um grupo de químicos franceses publicou, em 1787, a obra Méthode de Nomenclature Quimique (Método de Nomenclatura Química), no qual são classificados e renomeados os elementos e compostos químicos conhecidos; a sua obra, Traité Élémentaire de Chimie (Tratado Elementar de Química), publicado em 1789, é o marco fundador da Química Moderna, em que são introduzidos o conceito de elemento químico e o princípio de conservação da massa durante as reações químicas; esta obra estabelece o abandono da Teoria do Flogístico.
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oxigênio com ar inflamável, renomeado hidrogênio79. As formulações teóricas, elaboradas
principalmente por Lavoisier, e a explicação sistemática das evidências empíricas finalmente
implicaram no abandono da Teoria do Flogístico, substituída pelos conceitos, princípios, métodos
e procedimentos que vieram a constituir as disciplinas Química Analítica e Termodinâmica
Química.
Termometria
As sensações fisiológicas de quente e frio são inerentemente subjetivas. Evidencia
essa subjetividade a situação em que, num mesmo ambiente, alguns têm a sensação de quente,
outros, de frio; ou as sensações de quente ou de frio que se tem ao contato com objetos feitos de
materiais diferentes, tais como madeira e metal. Tais sensações são de fato relativas, posto que
manifestam-se como um “mais quente” ou “menos frio” e um “menos quente” ou “mais frio” em
relação a uma sensação de referência intrínseca e individualmente adotada. Cerca de 170 d.C.,
Galeno80 prescreveu o mais antigo método de que se tem registro para qualificação do quente e
do frio; subjetivo e de utilidade muito limitada, o seu método era baseado na sensação cutânea
causada por drogas medicinais81,[21],[14].
A observação de materiais submetidos a processos que os tornam mais quentes ou
mais frios constata a ocorrência de variações em alguns de seus atributos físicos diretamente
observáveis. Facilmente perceptível é, por exemplo, o aumento do volume de um sólido ou de um
líquido que, à proximidade do fogo, torna-se mais quente; ou o aumento da pressão de um fluído
encerrado num recipiente rígido quando submetido ao mesmo processo. Comportamento inverso
ocorre à proximidade do gelo82, os materiais tornam-se mais frios, a pressão assim como,
geralmente, o volume diminuem. Há outros processos que podem provocar estes mesmos efeitos.
79 Após o abandono da Teoria do Flogístico, mudaram as denominações de vários dos gases então conhecidos. Em 1777, Lavoisier cunhou os nomes oxigênio (do grego, produtor de ácido) para denominar o ar deflogisticado ou ar perfeito; hidrogênio (do grego, produtor de água) para denominar o flogístico ou ar inflamável; e azoto (do grego zōē, que não mantém vida), em 1790 substituído por nitrogênio (do grego, produtor de nitro), para denominar o ar flogisticado.
80 Claudius Galenus [Galeno, Galenos, Galen] [ca. 129 d.C., Pergamum, Mysia (atual. Turquia) – 199 d.C., Roma, Itália] – médico grego; fundador da fisiologia experimental e precursor da moderna farmacologia; entendia a medicina como um saber global, científico, filosófico e literário; por cerca de 1400 anos, o seu pensamento teve forte influência na medicina; afirmava que a matéria apresenta quatro temperamentos fundamentais - quente, frio, úmido e seco, combináveis em diferentes graus; o perfeito equilíbrio corresponde ao temperamento moderado (temperamento temperato), todas as outras situações são ditas de temperamentos imoderados (temperamenti intemperati).
81 O método de Galeno estabelecia quatro graus quentes (calor sem desconforto; calor com desconforto; calor com dor; calor com grave alteração cutânea), quatro graus frios (ligeiramente refrescante; evidentemente refrescante; intensamente refrescante; perda de sensibilidade) e um grau neutro, temperado, que corresponde à sensação causada por uma mistura de quantidades iguais de água fervendo e gelo.
82 As referências à proximidade do fogo e à proximidade do gelo são feitas para caracterizar situações extremas que, para a sensação fisiológica comum, são respectiva e indiscutivelmente quentes ou frias.
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Um gás torna-se mais quente quando submetido a um processo de intensa compressão e, no
sentido inverso, mais frio se submetido à expansão. Atributos físicos de materiais cujos valores
variam quando estes tornam-se mais quentes ou frios são chamados propriedades termoscópicas.
Cerca de 250 a.C., Philon inventou o termoscópio, reinventado na Itália83, em 1592.
Esse aparelho rudimentar consiste de um recipiente fechado contendo água e ar; sua parte
inferior é conectada ao segmento mais curto de um tubo em forma de J. O segmento mais longo
deste J é vertical e aberto à atmosfera, ver Figura 2.1[a]. À proximidade do fogo, o ar interior do
termoscópio torna-se mais quente e expande; à proximidade do gelo, torna-se mais frio e contrai.
A variação do volume do ar move a água, através do tubo J, para fora ou para dentro do
recipiente. Desta maneira, o sentido do movimento da linha d'água no segmento mais longo do
tubo é uma indicação qualitativa de que o ar torna-se mais quente ou mais frio, não havendo,
porém, qualquer quantificação deste efeito, por mais precisa que seja a medida da variação do
volume da água no seu interior.
Objetivamente, sem valer-se da sensação fisiológica, como determinar o quanto um
material está quente ou frio? Para responder esta questão com base na observação empírica, são
feitas as seguintes proposições: [a] há um atributo físico do material, sua temperatura, cujo valor é
a expressão objetiva da sua condição de estar quente ou estar frio, independentemente do
processo mediante o qual essa condição é estabelecida; [b] a medida desse atributo, ou seja, o
valor da temperatura, é um número arbitrariamente estipulado para cada conjunto de valores das
propriedades termoscópicas mensuráveis do material que, então, passam a ser designadas
propriedades termométricas.
Agora, o que significa medir a temperatura de um corpo ou de um ambiente? A
resposta a esta questão envolve três noções empíricas, fundamentais para a Termodinâmica,
duas das quais já implicitamente consideradas na proposição do conceito de temperatura. A
primeira é que, postos em contato, corpos desigualmente quentes ou desigualmente frios
geralmente estão sujeitos a influências recíprocas, a uma interação. Para inferir a ocorrência de
interação, recorre-se à seguinte relação causal: há interação se, ao contato, variarem os valores
de alguns dos atributos físicos dos corpos; não há interação se não ocorrem tais variações. A
constatação empírica é que, se há interação, quanto maior for aquela desigualdade, mais variam
os valores desses atributos84. A desigualdade, portanto, atua como potencial-motriz da chamada
83 O termoscópio de Philon de Bizantium foi aperfeiçoado por Heron de Alexandria, que o descreveu em sua obra Pneumática, traduzida do grego para o latim, em 1575; há controvérsia sobre quem, ca. de 1592, reinventou o termoscópio, se Galileo - o mais frequentemente citado, Sanctorius ou Sagredo.
84 De fato, mesmo havendo a desigualdade, a interação pode não ocorrer devido a uma propriedade particular da interface entre os corpos. Tal propriedade é dita adiatérmica ou adiabática. Por simplificação, essa condição não é aqui considerada. Pressupõe-
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interação térmica.
A segunda noção corresponde ao que pode ser caracterizado como um princípio de
tendência ao equilíbrio, segundo o qual corpos que estejam desigualmente quentes ou frios,
quando postos em interação mútua e exclusiva, tendem a tornar-se igualmente quentes ou
igualmente frios. Ou seja, há uma tendência à extinção do potencial-motriz da interação; extinto
este potencial, cessa a interação. Essa condição final caracteriza o que se denomina equilíbrio
térmico entre os corpos85.
A terceira noção diz respeito à propriedade de transitividade do equilíbrio térmico.
Quando um corpo atinge uma condição de equilíbrio térmico com dois outros, cessam suas
interações térmicas com quaisquer destes. Nesta condição, se estes outros são postos em
contato, também entre eles não há interação térmica. Vale dizer, eles também encontram-se em
equilíbrio térmico.
Medir a temperatura de um corpo ou de um ambiente implica, portanto, determinar a
temperatura de um objeto de medição apropriado, um instrumento denominado Termômetro86.
Para tanto, deve-se medir os valores das propriedades termométricas do seu material constituinte,
que é chamado substância termométrica. Em termos práticos, controla-se os valores de todos
menos uma dessas propriedades, de modo que o valor da temperatura passa a ser função de
apenas uma propriedade termométrica. Valores arbitrários da temperatura são então associados
aos valores da propriedade termométrica independente, constituindo-se uma escala
termométrica87. Como se percebe, termômetros são termoscópios equipados com escalas
termométricas. A construção desta escala requer interações sucessivas do termômetro com um
terceiro corpo ou ambiente, tomado como referência, quando este encontra-se sob condições
determinadas às quais são associados valores arbitrários da temperatura. Os métodos e
instrumentos de medição da temperatura são objeto da disciplina Termometria.
A primeira escala termométrica foi proposta por Sanctorius88, em 1612. Aplicada ao
se, ainda, a ausência de interações que não sejam aquelas causadas pelo fato dos corpos estarem desigualmente quentes ou frios. E não se cogita sobre o tempo necessário à ocorrência da interação.
85 Essa é uma expressão particular de um princípio geral de tendência ao equilíbrio: no curso de interações mútuas e exclusivas entre corpos, reduzem-se seus respectivos potenciais-motrizes, terminando por extinguirem-se, quando cessam as interações. Estabelece-se, então, uma situação particular de equilíbrio, ou seja, equilíbrio relativamente àquele tipo de interação.
86 Termômetro: das palavras gregas thermós, “quente”, ou thérmē, “calor”, e latina metrum, “medir”.87 Os métodos gerais empregados para atribuir valores numéricos à temperatura não diferem, em essência, dos utilizados para
atribuir valores a outras grandezas físicas fundamentais, tais como comprimento, massa e tempo. A adoção de padrões e de métodos de comparação e interpolação é procedimento comum a todas essas grandezas, não havendo nada de especial em relação à temperatura.
88 Santoro Sanctorius [1561, Koper (Capodistria), Istria (atual. Croácia) – 1636, Veneza, Itália] – médico italiano, pioneiro no emprego de instrumentos de precisão na prática médica; sua escala termométrica foi concebida para utilização nos estudos sobre
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termoscópio, essa escala tinha intervalos iguais entre o valor zero, arbitrado como a temperatura
da neve ao derreter, e o valor 110, atribuído à temperatura da chama de uma vela. Logo em
seguida, Sagredo89, discípulo de Galileo, adotou uma escala com 360 divisões iguais, como num
círculo, razão pela qual cada uma destas passou a chamar-se grau. Sendo o termoscópio aberto à
atmosfera, variações da pressão do ambiente externo podem impor variações no volume do ar no
interior do recipiente e deslocar a água no tubo, consequentemente afetando a medida da
temperatura. Os instrumentos que assim operam seriam mais apropriadamente denominados
baro-termômetros.
A influência da variação da pressão atmosférica sobre a medida da temperatura foi
eliminada nos termômetros que passaram a ser produzidos em Florença entre 1641 e 164490.
Para tanto, foi adotada uma variante da técnica muito simples e engenhosa, então desenvolvida
por Torricelli91 e aplicada na invenção do barômetro. Em 1644, ele descreveu essa técnica;
utilizando-a, mediu a pressão atmosférica e demonstrou a existência do vácuo. Um tubo longo é
cheio com mercúrio e posto verticalmente num vaso também com mercúrio, mas aberto à
atmosfera. A extremidade superior do tubo é fechada; a inferior, aberta – ver Figura 2.1[b]. Nesta
situação, a coluna de mercúrio no interior do tubo não ocupa toda a extensão deste; junto à sua
extremidade superior forma-se um espaço vazio, um vácuo, onde não há matéria e a pressão é
zero. A pressão atmosférica sobre a superfície do mercúrio no vaso é definida como o peso de
uma “coluna virtual” de ar que se estende vertical e ilimitadamente a partir da superfície do
mercúrio no vaso, por unidade de área desta superfície. Esta pressão é equilibrada pela pressão
causada pelo peso da coluna de mercúrio cuja altura é medida a partir da superfície do mercúrio
no vaso, por unidade de área da seção transversal do tubo. Tem-se, em conclusão92:
o metabolismo basal; a sua obra Commentaria in artem medicinalem Galeni (Comentários sobre as artes medicinais Galenas), de 1612, contém a primeira menção escrita do termômetro de ar; inventou um higrômetro para medir umidade, um pêndulo para medir o ritmo do pulso, uma seringa para extração de pedras renais e vários outros instrumentos; na sua obra De Medicina Statica Aphorismi (Aforismos sobre a Medicina Estática), de 1614, descreveu uma série de experiências sobre o peso do corpo humano, descobrindo que a maior parte dos alimentos ingeridos são perdidos através do que chamou perspiratio insensibilis (perspiração insensível).
89 Giovan Francesco Sagredo (1571, Veneza, Itália – 1620, Veneza, Itália) – administrador público e diplomata veneziano; cientista amador e discípulo de Galileo; construtor de termômetros; realizou estudos sobre magnetismo, ótica, mecânica.
90 O desenvolvimento de termômetros insensíveis à pressão barométrica foi patrocinado por Ferdinando II de Medici, Grão Duque da Toscana (1610 – 1670, Florença, Itália), assim com também o desenvolvimento do higrômetro de condensação. Em 1657, Ferdinando II e Leopoldo de Medici fundaram a Accademia del Cimento (Academia de Investigação) de Florença, com o projeto de verificar e testar experimentalmente princípios da filosofia natural aristotélica. A Academia funcionou descontinuadamente por dez anos, concluindo o seu projeto em 1667, com a publicação do volume Saggi di Naturali Esperienze (Ensaios de Experiências Naturais) em que são divulgados seus principais resultados. A investigação desenvolvida na Academia, baseada nos trabalhos de Galileo, marca o início da física experimental moderna.
91 Evangelista Torricelli (1608, Faenza, Itália – 1647, Florença, Itália) – físico e matemático italiano; inventou o barômetro, com o qual demonstrou experimentalmente a existência do vácuo e determinou o peso do ar atmosférico. Em 1643, formulou o teorema de Torricelli, segundo o qual a velocidade de um fluxo de líquido em queda livre é dada por (2 g z)½, onde g é a aceleração da gravidade e z a distância vertical percorrida.
92 O barômetro é um instrumento utilizado para medir a pressão atmosférica, também chamada pressão barométrica, definida como a força por unidade de área exercida sobre uma superfície pelo peso da massa de ar acima dela.
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patm = Hg g ℓ Hg ,
onde patm denota a pressão atmosférica, ρHg a massa específica do mercúrio, g a aceleração da
gravidade e ℓHg a altura da coluna de mercúrio contada a partir da superfície do mercúrio no vaso.
Em termos estritos, o valor da pressão atmosférica assim calculado é apenas aproximadamente
correto, posto que a quantidade de ar, consequentemente, o seu peso, depende da temperatura
deste. Na variante florentina da técnica de Torricelli, a extremidade inferior do tubo não é aberta à
atmosfera mas conectada a um bulbo fechado contendo álcool diluído em água. A escala dos
termômetros assim construídos tinha 50 graus.
Cerca de 1654, também em Florença, os termômetros passaram a ser calibrados com
utilização de dois pontos fixos, também chamados pontos fiduciais93. Em 1664, Hooke construiu
um termômetro utilizando álcool como substância termométrica e demonstrou a possibilidade de
adoção de uma escala-padrão, baseada num único ponto fixo, passível de utilização por
instrumentos de diferentes tamanhos. Na sua escala, o ponto fixo é o ponto de congelamento da
água e cada grau representa um incremento do volume da coluna da ordem de 1/500 do volume
de todo o líquido contido no termômetro. Em 1665, Huygens propôs a utilização de dois pontos
fiduciais, os pontos de ebulição e de congelamento da água.
A inexistência de prescrições e padrões consensuais para definição de pontos fixos e
substâncias termométricas fez com que, ao final do Século XVII, cerca de 35 escalas estivessem
em uso, sendo virtualmente impossível comparar medições de temperatura feitas com distintos
instrumentos. Para alguns, tornou-se evidente a necessidade de alguma padronização. Duas
concepções básicas de termômetros foram então utilizadas para proposição das escalas
termométricas que terminaram por prevalecer. A primeira utiliza a pressão de um gás como a
propriedade termométrica de um termômetro que opera a volume constante. A segunda utiliza o
volume de um líquido como propriedade termométrica de um termômetro que opera a pressão
constante. Esses instrumentos são variantes construtivas do termoscópio de Philon ou do
barômetro de Torricelli, ver Figura 2.1[a-d].
93 Pontos fiduciais ou fiduciários de uma escala termométrica são valores arbitrados da temperatura a serem atribuídos a situações físicas bem definidas, estáveis e de fácil reprodução (por exemplo, situações em que coexistem água líquida e gelo; água líquida e vapor d'água; gelo, água líquida e vapor d'água).
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 42
[a] Termoscópio de Philon – 250 a.C. [b] Barômetro de Torricelli - 1644
[c] Termômetro de Amontons - 1702 [d] Termômetro de Fahrenheit - 1724
Figura 2.1: Concepções originais de Termoscópios, Barômetros e Termômetros.
Em 1702, Amontons94 sugeriu a definição de uma escala termométrica baseada num
termômetro que utiliza o ar como substância e a pressão como propriedade termométricas [3]. A
94 Guillaume Amontons (1663 – 1705, Paris, França) – físico francês, inventor de diversos instrumentos científicos; descobriu o atrito estático, isto é, a resistência oposta para mover um corpos a partir do repouso; concebeu um método para medir uma variação de temperatura em termos de uma variação correspondente da pressão de uma massa constante de ar, mantida a volume também constante; o seu método está na base do conceito do zero absoluto de temperatura, ulteriormente desenvolvido.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 43
arar
ℓHg
ar
ℓHg
Hg
vácuo
ar
águaHg
AratmHg
vácuo
ℓHg
concepção construtiva desse termômetro é semelhante a do termoscópio de Philon, já descrito,
mas utiliza mercúrio ao invés de água, ver Figura 2.1[c]. Quando a temperatura do ar varia, a sua
tendência à variação do volume é contida pela imposição de uma contrapressão na abertura
inferior, imposta pelo peso da coluna de mercúrio somada àquela do ar atmosférico. A altura desta
coluna deve ser tal que o volume do ar é mantido constante e igual ao volume do recipiente que o
encerra. Nesta condição, o valor da pressão do ar no interior do recipiente, p = par , é calculado por
p = par = p atm Hg g ℓ Hg ,
onde a pressão atmosférica, patm, pode ser medida, por exemplo, pelo barômetro de Torricelli.
Então, com base nos resultados das experiências de Mariotte sobre o comportamento dos gases,
Amontons sugeriu que a temperatura fosse determinada através de uma relação linear com a
pressão, definida a partir de uma temperatura arbitrada para o ponto de ebulição da água, embora
não lhe tenha sugerido um valor. A escala termométrica de um termômetro de gás a volume
constante seria, então, dada pela relação:
= refp
pref,
onde θref é o valor arbitrado para a temperatura da situação de referência cuja pressão é pref .
Cerca de 1724, Fahrenheit95 adotou o mercúrio como a substância termométrica de
um termômetro que opera a pressão constante. A concepção do seu termômetro é semelhante a
do barômetro de Torricelli, porém, com o recipiente de mercúrio fechado à atmosfera, ver Figura
2.1[d]. Comparado ao álcool, então muito utilizado como substância termométrica, o mercúrio
líquido apresenta uma grande expansão volumétrica para as variações mais comuns das
condições térmicas ambientais; sua opacidade facilita a visualização. A propriedade termométrica
é, pois, o volume ocupado pelo mercúrio no interior de um tubo reto de vidro com extremidades
seladas. No espaço vazio na parte superior do tubo, acima da superfície do mercúrio, a pressão é
aproximadamente zero, de modo que o mercúrio expande isobaricamente. Os pontos fiduciais são
o valor zero atribuído à temperatura de uma mistura de água, gelo, sal de amoníaco e sal marinho
– o frio mais intenso que Fahrenheit pode registrar -, e o valor 96, atribuído à temperatura “que é
obtida se o termômetro é posto na boca, de modo a adquirir o calor de um homem sadio”, como
descreve, ou “o limite do calor que é encontrado no sangue de um homem sadio”[17] - inicialmente,
95 Daniel Gabriel Fahrenheit (1686, Danzig, Polônia – 1736, Haia, Holanda) – negociante e físico alemão, construtor de instrumentos meteorológicos de precisão; considerou inicialmente o álcool, depois, o mercúrio como substância termométrica e concebeu a escala termométrica que tem o seu nome; descobriu que a água pode permanecer líquida numa temperatura abaixo daquela do seu ponto de congelamento e que a temperatura de ebulição dos líquidos varia com a pressão atmosférica.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 44
este valor teria sido 24, o número de horas do dia solar, mas foi, por razões práticas, multiplicado
por quatro. Essas situações físicas de referência, porém, não são precisamente definidas nem
podem ser reproduzidas sem incertezas. Em 1742, essencialmente seguindo a concepção de
Fahrenheit, Celsius96 propôs uma escala termométrica definida em bases científicas consistentes.
Como referência para os pontos fixos, ele adotou duas situações físicas bem definidas que, em
princípio, podem ser facilmente configuradas e controladas: os pontos de congelamento e de
ebulição da água na pressão atmosférica, aos quais atribuiu os valores 100 e 0 graus de
temperatura, respectivamente. Posteriormente, esses valores foram permutados relativamente às
situações físicas de referência.
Embora várias outras escalas tenham sido propostas e eventual e circunstancialmente
utilizadas, a facilidade de construção e calibração de termômetros e a conveniência de uso
assegurou a permanência das posteriormente denominadas escala Fahrenheit e escala Celsius
de temperatura. Ulteriormente, as mesmas situações físicas foram adotadas como referências
padrão dos pontos fiduciais destas escalas. Por convenção, adotou-se:
ponto de congelamento da água na pressão atmosférica padrão97,
θ = 32 oF = 0 oC,
e ponto de ebulição da água na pressão atmosférica padrão,
θ = 212 oF = 100 oC.
Aqui, os símbolos oF e oC denotam a temperatura θ, respectivamente, em graus
Fahrenheit e em graus Celsius98. Nessas escalas, a relação funcional entre o valor da temperatura
96 Anders Celsius (1701 - 1744, Uppsala, Suécia) – astrônomo sueco, foi um dos primeiros no seu artigo Observações sobre dois graus persistentes num termômetro, apresentado em 1742 à Real Academia Sueca de Ciências, relata experiências em que conclui que o ponto de congelamento da água é independente da latitude e da pressão atmosférica, e que o ponto de ebulição depende desta; cria uma regra para determinar esta ponto em função do desvio da pressão em relação a uma certa pressão atmosférica padrão; e utiliza esses resultados para propor a escala de temperatura que tem o seu nome. A escala proposta tinha valores ascendentes da temperatura a partir do ponto de ebulição e no sentido do ponto de congelamento; assim, evitava-se operar com temperaturas de valor negativo, embora já fosse corrente a utilização de escalas de temperatura como sentido inverso. Há incerteza sobre quem promoveu a inversão do sentido da escala proposta mas, já em 1749, o próprio Celsius a mencionava.
97 Rigorosamente, essa convenção é apenas aproximadamente correta, posto que depende da definição da pressão atmosférica padrão que, por sua vez, depende da definição de temperatura. Em 1954, na 10e Conferénce générale des poids et mesures (Conferência Geral de Pesos e Medidas), foram estabelecidas as seguintes definições: a temperatura do ponto triplo da água é 0,01 oC; o intervalo de 1 oC vale 1/273,16 da diferença entre a temperatura do ponto triplo da água e o zero absoluto [o zero absoluto é um conceito termodinâmico a ser tratado adiante; equivale a -273,15 oC]; a pressão atmosférica padrão, 1 atm, é aquela da qual resulta uma coluna de 760 mm de Hg num ambiente na temperatura de 0 oC e aceleração gravitacional de 9,80665 m/s2; 1 atm = 101,325 kPa = 1,01325 bar.
98 A denominação grau Celsius foi definida pela 9e Conferénce générale des poids et mesures (Conferência Geral de Pesos e
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 45
e o valor do volume é, por definição, linear. De modo que, suas respectivas equações
termométricas relacionam o valor da temperatura θ e do volume V do mercúrio mediante:
[ Fo ] = 32 180V − V g
Vv− Vg
e
[ Co ] = 0 100V − Vg
V v− V g,
onde Vg e Vv indicam o volume ocupado pelo mercúrio nos pontos, respectivamente, de
congelamento e de ebulição da água. Se o tubo é cilíndrico com seção transversal constante, as
equações termométricas passam a relacionar o valor da temperatura θ e a extensão ℓ do tubo de
ocupada pelo mercúrio, mediante:
[ Fo ] = 32 180ℓ − ℓg
ℓv− ℓg
e
[ Co ] = 0 100ℓ − ℓg
ℓv− ℓg,
onde ℓg e ℓv denotam as extensões do tubo ocupadas pelo mercúrio nos pontos de congelamento e
de ebulição da água, respectivamente. Finalmente, cabe observar que também a pressão p do
termômetro de gás a volume constante, semelhante ao proposto por Amontons, poderia ser
utilizada numa equação termométrica análoga àquelas que utilizam o volume ou o comprimento
para definição das escalas Fahrenheit e Celsius.
Medidas), em 1948. A denominação grau centígrado é considerada imprópria e não deve ser usada.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 1. Introdução - 28/03/11- 21:28:53 46
2. Fundamentos
Teoria Fenomenológica
Nas ciências da natureza, uma teoria fenomenológica é um modelo analítico-descritivo
representativo de um ou de uma classe de fenômenos macroscópicos. Fenômeno macroscópico é
a designação genérica dada a qualquer mudança direta ou indiretamente observada num ou em
relação a um algo macroscópico identificável - um objeto material1. A observação, vale dizer, a
experiência imediata2 é, portanto, o insumo primário da construção de uma teoria fenomenológica,
com base na qual são inferidas, deduzidas ou postuladas relações entre atributos macroscópicos
quantificáveis de objetos materiais. Tais relações são supostamente representativas tanto das
interações mútuas entre estes objetos quanto das transformações que, em decorrência dessas,
são operadas em cada um deles.
Uma teoria fenomenológica não cogita desvendar a natureza nem as causas
fundamentais destas interações e transformações, não explica porque uma relação tem uma dada
forma nem porque alguns daqueles atributos assumem valores que dependem da constituição
material específica de cada objeto.
Considere-se um objeto material submetido a uma diferença de potencial elétrico, isto é, a uma
interação específica com o seu exterior. Como se sabe, dependendo da natureza de seu
1 Um objeto material é um algo extenso e tangível; uma atividade material é aquela observada num objeto material. Uma observação é um ato perceptivo de um sentido; ou seja, é um ato mediante o qual um sentido percebe ou representa um objeto material ou uma atividade material[56].
2 “Para a ciência, fatos são os dados do mundo, aquilo que percebemos por meio de nossos sentidos ou de aparelhos que ampliam esses sentidos. Já as teorias são ideias que tentam explicar e interpretar os fatos, são modelos de como o mundo funciona. Teorias são as estruturas mais importantes da ciência, enquanto os fatos só se tornam importantes quando vistos dentro de um corpo teórico. São elas que dão sentido ao que vemos e nos permitem fazer observações objetivas sobre fenômenos naturais. Sem as teorias, não conseguimos fazer perguntas em ciência, nem planejar experimentos ou interpretar os resultados obtidos.” [2]
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:53 47
material constituinte, uma corrente elétrica pode, então, percorrer o objeto. À passagem dessa,
o material aquece. Em outros termos, o objeto experimenta uma transformação; a intensidade
do aquecimento depende da intensidade da corrente elétrica.
O valor da resistência elétrica de um dado objeto material é definido como a razão entre a
diferença de potencial elétrico e a intensidade da corrente elétrica que o percorre. Se o material
do objeto é um metal cuja temperatura é mantida constante, o valor dessa razão geralmente
também permanece constante; ou seja, há uma relação linear entre a diferença de potencial e
a intensidade da corrente elétrica. Este resultado, conhecido como Lei de Ohm, é uma relação
fenomenológica descritiva da interação entre o objeto material e o seu exterior. Para materiais
não metálicos, tais como termistores e gases, a relação entre diferença de potencial e corrente
elétrica não é linear. Apenas com base em evidências fenomenológicas, não há como explicar
esses distintos comportamentos.
Enquanto a resistência elétrica é um parâmetro representativo do objeto, isto é, de sua forma e
do seu material constituinte, a natureza deste é representada por um seu atributo a que se
denomina resistividade elétrica3. Para um dado valor da corrente elétrica, é possível
estabelecer uma relação entre os valores da resistividade e da temperatura do material.
Apenas a evidência fenomenológica não explica a origem dessa relação nem a forma por ela
assumida.
A completa representação de determinado fenômeno macroscópico compreenderia a
representação, sem restrições, de todas as transformações que ocorressem em todos os objetos
materiais envolvidos num certo conjunto de interações recíprocas. Como levá-las, porém, todas
em conta, se a realidade de um fenômeno macroscópico raramente é, a qualquer observador,
absoluta e completamente acessível?4 Quase sempre, a representação de um fenômeno real é
expressa em termos das relações supostamente mais relevantes associadas à sua ocorrência.
Para determinar tal relevância, o observador deveria ser capaz de apreender todas as relações
constituintes do fenômeno e discriminar, sob algum critério, a sua importância relativa. Mas, se
assim fosse, este conjunto de relações já comporia a representação completa do fenômeno. Pelo
que, a menos de razões práticas, não mais seria necessário representá-lo ideal e parcialmente.
Na verdade, não há como reconhecer se um observador tem essa capacidade, pois não há como
determinar se um dado conjunto já compreende todas aquelas relações.
3 Mais exatamente, enquanto a resistividade é uma característica do material, a resistência é uma característica de determinado objeto constituído por este material. Para um dado objeto, a razão entre a resistividade e a resistência é igual à razão entre a área da seção transversal à direção da corrente elétrica e o comprimento correspondente à distância por esta percorrida.
4 Na verdade, qual é a realidade de um fenômeno? “...Nem [tudo] está explicado, a realidade é maior que qualquer explicação, mesmo porque a realidade muda. ..... Vivo uma coisa extraordinária que quero contar para as pessoas. .... Então eu conto aquilo. O pior é que é impossível contar. Como traduzir perfume em palavras? O poema não é a tradução do perfume em palavras, mas a criação de um artefato que pretende transmitir para o outro a experiência que senti ali. Trata-se de uma grande confusão. A verdade da poesia é o que comove, não o que se comprova..”.[25]
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:53 48
Como lidar com essa questão? Como já dito, além de descritiva, a representação de
um fenômeno macroscópico deve ter uma capacidade analítica. Por conseguinte, a determinação
de relevância não se dá mediante discriminação dentre todas as relações possíveis, mas na
medida em que uma representação parcial tenha, em comparação com outra, mais consistência e
rigor formal, maior generalidade e abrangência, melhor aproximação relativamente à observação
mensurável. Ainda assim, esta representação pode ser bastante complexa se levadas em conta
as transformações que ocorrem em todos os objetos materiais, sem restrições, envolvidos num
dado conjunto de interações mútuas. Metodologicamente, é possível restringi-la ao que ocorre
num objeto material ou num conjunto restrito de objetos materiais - num sistema - que esteja em
interação com um exterior arbitrariamente especificado que, mesmo sendo parte, não é objeto da
análise. Em outros termos, a esta análise não concerne o que eventualmente sucede nesse
exterior. Uma tal representação analítico-descritiva é, portanto, uma aproximação parcial e
idealizada da realidade de um fenômeno macroscópico porquanto não apenas seleciona quais
relações são levadas em conta mas também estabelece quais objetos integram o sistema e quais
fazem parte do seu exterior.
No contexto de uma teoria fenomenológica, uma idealização é uma representação
abstrata e esquemática de um objeto material, das transformações que nele ocorrem e das suas
interações com o exterior. Essa representação ideal refere-se a condições-limite da constituição
do objeto ou a comportamentos-limite das suas transformações e interações, geralmente não
realizáveis nem passíveis de verificação. Exemplos de representações ideais de objetos reais são,
dentre outros, o corpo rígido absoluto - indeformável; o corpo negro irradiador perfeito - não
transparente nem refletor; o gás ideal - modelo de comportamento de um gás a baixas pressões; o
sistema absolutamente isolado - não suscetível de qualquer interação com seu exterior. Uma
idealização particularmente importante, como será visto adiante, é a consideração de uma
transformação como uma sucessão de estados, ou seja, como sucessão de situações tão bem
caracterizadas pelo conjunto de valores das propriedades do objeto quanto a sua situação ou
estado inicial. Essa representação de uma transformação é denominada processo ideal.
Além das idealizações, outros elementos constitutivos da representação abstrata de
um fenômeno são as hipóteses, os conceitos básicos, postulados, princípios, axiomas e teoremas
e as convenções. Cada conjunto coerente desses elementos configura um modelo: do objeto ou
do sistema, do exterior, das transformações e de cada tipo de interação. O modelo completo de
um fenômeno pode ainda ser visto como uma articulação de modelos de aspectos particulares5
5 Os modelos particulares referem-se a representações qualitativamente diversas do fenômeno que se objetiva descrever e explicar. Poder-se-ia classificá-los como modelos estruturais, representativos da constituição do objeto; modelos comportamentais, representativos das relações entre as propriedades deste; e modelos funcionais, representativos das interações entre o objeto e o exterior. Esses modelos particulares são a base da representação analítico-dedutiva constituinte do modelo-síntese a que se denomina teoria.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:53 49
deste mesmo fenômeno. Tal modelo constitui uma teoria se é uma representação generalizada e
abrangente do fenômeno ou dos fenômenos de sua classe.
Uma hipótese é uma conjetura descritiva ou explicativa de uma relação real entre propriedades,
que se toma por válida mesmo que não se disponha de suficiente informação para comprová-
la[35],[62]. Frequentemente, idealizações são elementos constituintes da construção de hipóteses.
O modelo do continuum, por exemplo, é uma idealização porquanto a continuidade de
distribuição da matéria no espaço já não é uma conjetura de uma possibilidade real. Já um
determinado modelo corpuscular adota a hipótese de que existem tais ou quais partículas e
idealiza aspectos do seu comportamento; por exemplo, a de que ele é consequência de
choques perfeitamente elásticos entre corpúsculos perfeitamente rígidos.
Conceitos fundamentais são noções de uso universal ou, eventualmente, expressões do senso
comum, aceitas sem a necessidade de definição formal[55], mediante os quais é expressa a
ideia fundamental de uma hipótese6. Postulados são proposições a priori que expressam uma
certa concepção relativamente à apreensão da natureza, a partir da qual constrói-se uma
representação7. Axiomas são proposições tomadas como verdadeiras, não demonstráveis no
âmbito da representação da qual são elementos constituintes. Princípios expressam fatos
fundamentais da experiência[13]; eles assumem a forma de leis cuja validade delimita o âmbito
de uma representação8. Teoremas são assertivas logicamente deduzidas de axiomas.
Convenções são aspectos da linguagem própria em que é expressa uma representação,
servindo particularmente à quantificação e ao estabelecimento de sistemas de medição[35].
Nas ciências da natureza, básicas ou aplicadas, cada teoria fenomenológica configura
um modelo matemático de algum fenômeno[58] ou de alguma classe de fenômenos. Não obstante
ser uma abstração conceitual não inteiramente realizável ou suscetível de verificação, o modelo
constituinte de uma teoria fenomenológica deve ser suficientemente geral para descrever relações
permanentes e comuns ao fenômeno ou à classe de fenômenos que representa, e
suficientemente detalhado para tratar cada ocorrência particular destes[35]; ainda, deve ser
suficientemente simples para ser matematicamente tratável e suficientemente próximo da
realidade para ser útil[13]. A satisfação desses requisitos é essencial para que uma teoria possa
cumprir suas finalidades principais: possibilitar a dedução de relações quantificáveis entre
atributos representativos da condição do objeto e destes com atributos representativos da
condição do exterior, a elaboração de previsões quantitativas verificáveis ou comprováveis e a
6 No contexto de uma representação macroscópica de fenômenos físicos, massa elementar e volume elementar ou, respectivamente, elemento infinitesimal de massa e de volume são exemplos de conceitos fundamentais.
7 Exemplos de postulados: a distribuição da matéria como um continuum; a matéria como uma coleção de corpúsculos; o continnum espaço-tempo; a dualidade matéria-onda.
8 Por exemplo, a proposição da existência da grandeza física energia é um axioma; a proposição de sua conservação é um princípio. A independência dos princípios de conservação da massa e de conservação da energia é restrita à representação de fenômenos em que efeitos quânticos e relativísticos não são considerados.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 50
interpretação desses resultados à luz daquelas relações9. Complementarmente, assinale-se que a
previsão e a reprodução desses resultados são expressões, respectivamente, do pressuposto e
da confirmação da existência de certas relações causais nas interações entre o objeto e o seu
exterior.
Espaço, Tempo e Matéria
A representação analítica dos fenômenos físicos que ocorrem num ou em relação a
um objeto material é formulada em termos de grandezas físicas definidas e especificadas com
base, em última instância, na quantificação das noções de espaço, tempo e matéria. Estas são
noções a priori, são conceitos fundamentais não definíveis em termos de outras noções já antes
empiricamente estabelecidas.
Designa-se, por espaço, a noção de um continuum extenso, inerte e intangível, do
qual um local ou uma posição é uma singularidade, única e individual; por tempo, a noção de um
continuum corrente, progressivo e intangível, do qual um instante ou um momento é, similarmente,
uma singularidade única e individual; e, por matéria, a noção de um continuum extenso e ativo,
que assume uma forma tangível, da qual um objeto material elementar é uma singularidade, única
e individual, ou assume uma forma intangível, um campo físico criado por este objeto em cada
local ou posição de seu espaço circundante10. Pode-se conceber um espaço vazio e um
transcorrer temporal sem eventos; pode-se, também, conceber um continuum material com o qual
ou em relação ao qual nada ocorre. É impossível, porém, conceber um continuum material num
espaço não existente e sem um transcorrer temporal, assim como é impossível conceber um
evento, uma ocorrência ou a sua representação sem um suporte material. Qualquer evento ocorre
sempre num ou em relação a um objeto material. As noções de espaço e de tempo precedem,
portanto, a noção de matéria e, em especial, a noção de objeto material. Esta, por sua vez,
precede a noção de evento. Por suposto, um evento precede a possibilidade de sua observação e
consequente representação.
9 No entanto, deduções ou transformações operadas sobre o modelo matemático constitutivo de uma teoria fenomenológica não podem acrescer ou eliminar significados implícita ou explicitamente considerados nas idealizações, hipóteses, conceitos fundamentais, postulados, axiomas e princípios dos quais resulta.
10 Algumas representações são formuladas em termos da noção de ponto material ao invés de objeto material elementar. Cada um destes, assim como cada local e cada instante, é único e individual. Daí serem singulares. Um campo material pode ser entendido como um espaço físico de estrutura complexa, criado por um objeto material elementar e atuante no seu entorno, superposto ao espaço geométrico inerte. Por exemplo, o campo gravitacional e o campo elétrico são criados, respectivamente, por uma massa elementar e por uma carga elétrica elementar, e atuam no seus espaços circundantes. Uma teoria fenomenológica não cogita sobre a natureza nem sobre a estrutura desse espaço físico.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 51
Não obstante ser impossível definir espaço, tempo e matéria exclusivamente mediante
determinações quantificáveis, é possível estabelecer relações matemáticas entre locais para
quantificar distâncias espaciais11,[5]; estabelecer relações matemáticas entre percursos espaciais e
sucessões de instantes - a noção de movimento, para quantificar decursos temporais; estabelecer
relações matemáticas entre o movimento de objetos materiais em mútua interação para identificar
um determinado atributo de sua matéria constituinte – a sua massa; e, por fim, estabelecer a
quantidade da substância contida neste objeto, com base na constatação empírica da
individualidade de seu material constituinte. Assim consideradas, as noções de espaço, tempo e
matéria são a base da definição das grandezas físicas comprimento, tempo, massa e quantidade
de substância, cujas expressões matemáticas são as variáveis primárias da representação
analítica dos fenômenos macroscópicos12.
Espaço
O fundamento empírico que conduz à formulação de uma expressão matemática que
quantifica a noção de espaço é a experiência cognitiva que permite identificar locais num
continuum espacial e a possibilidade de estabelecer, entre locais, relações não causais puramente
geométricas13. Sobre tal fundamento, postula-se um espaço euclidiano14 ⵟn, 0 < n ≤ 3, homogêneo
e isotrópico. Por homogêneo entende-se que não há particularidade individual que diferencie cada
local além da evidência empírica de que cada um é uma singularidade distinta naquele continuum
espacial; por isotrópico, que não há particularidade individual que diferencie cada percurso
espacial além da evidência empírica de que cada um corresponde a uma certa concatenação de
locais.
Um local ou uma posição é um ponto no espaço. Um ponto não tem dimensão; sua
11 Estritamente, estas relações matemáticas não são definições de grandezas ou conceitos físicos, ainda que sejam eventualmente denominadas “definições operacionais”. De fato, tais relações são prescrições procedurais que objetivam, mediante medição ou cálculo, a quantificação de noções a priori, indefiníveis por natureza. As variáveis decorrentes desta matematização são chamadas primárias quando introduzidas “em primeiro lugar”, sem o pressuposto de outras variáveis; são chamadas secundárias quando suas prescrições operacionais são construídas como relações entre variáveis primárias [40].
12 Até este ponto, os termos espaço, tempo e matéria foram usados para designar noções a priori; aqui, passam a designar e ser consideradas como variáveis primárias de qualquer representação. Não fosse assim, uma representação compreenderia apenas variáveis cujos significados conceituais seriam exclusivos de si mesma ou comuns a outras representações também isentas daquelas variáveis primárias. Neste caso, ter-se-ia tão somente um sistema tautológico de conceitos e relações, que não constituiria, de fato, uma representação, pois não haveria possibilidade de estabelecer sua conexão com os fenômenos reais alegadamente representados nem haveria a consequente possibilidade de sua verificação empírica.
13 Locais de um continuum espacial apenas podem ser identificados relativamente a um sistema de referência. “Fisicamente, um sistema de referência é um conjunto de objetos cujas distâncias mútuas pouco variam no tempo, em termos comparativos, tais como as paredes de um laboratório ou as estrelas fixas.....“[60].
14 Neste texto, em que não são considerados efeitos relativísticos ou quânticos, a descrição e a representação do espaço são feitas mediante a geometria euclidiana. Esta geometria é uma construção lógico-matemática de caráter axiomático, fundada sobre conceitos abstratos e intangíveis - ponto, linha, reta, ângulo, plano etc. - que não têm significado físico direto. A singularidade espacial de cada local e as relações entre locais são caracterizadas geometricamente apenas por estes elementos.
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extensão é nula. Uma linha é um espaço unidimensional ⵟ1. Entre dois pontos, há uma infinidade
de segmentos de linha com formas e extensões arbitrárias. Um comprimento L é a medida da
extensão do segmento de linha delimitado por dois pontos; ou seja, é uma medida da quantidade
de espaço unidimensional contido neste segmento. Por definição, a distância entre dois pontos é o
segmento de linha de menor comprimento. No espaço euclidiano, este segmento é o de uma linha
reta.
A medida ou a quantificação de uma distância pode ser determinada com uma régua.
Uma régua é um objeto material com marcações ao longo de uma linha reta riscada sobre sua
extensão. As marcações contíguas são equidistantes; a distância entre duas dessas marcações
define a unidade de medida de comprimento Lu de uma certa escala [L], ou seja, Lu 1 [L≙ ]. A
medição de um comprimento consiste na verificação do número {L} de unidades de comprimento
existente entre os dois pontos. A especificação de um comprimento L tem a forma:
[2.1] L = {L} [L] .
Em outros termos, o comprimento é um atributo quantificável de uma linha, que pode
ser considerada como um conjunto de segmentos lineares elementares, configurados de tal forma
que a extensão da linha equivale à adição das extensões destes seus segmentos elementares
constituintes. Se estes segmentos são finitos, tem-se
[2.2] L =∑i=1
m
Li ,
onde Li denota o comprimento do i-ésimo de m segmentos elementares unidimensionais. Se os
segmentos elementares são infinitesimais, tem-se
[2.3] L =∫0
L
dL .
Uma superfície é um espaço bidimensional ⵟ2. A área A é a medida da extensão da
região de uma superfície delimitada por uma linha fechada; ou seja, é uma medida da quantidade
de espaço bidimensional contido nesta região. A medição de uma área consiste na verificação do
número {A} de áreas unitárias contidas numa dada região superficial. Este número é função da
unidade arbitrada. Por definição, a unidade de área Au de uma certa escala [A] é a extensão do
recorte delimitado, numa superfície plana, por um quadrado cujos lados são segmentos de reta de
comprimentos iguais à unidade de comprimento Lu, ou seja, Au = 1 [A] ≙ Lu Lu = 1 [L]2. A
especificação de uma área A tem a forma:
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 53
[2.4] A = {A} [A] = {A} [L]2 .
Em outros termos, a área é um atributo quantificável de uma superfície, que pode ser
considerada como um conjunto de superfícies elementares, configuradas de tal forma que a área
da superfície equivale à adição das extensões destas superfícies elementares constituintes. Se
estas superfícies são finitas, tem-se
[2.5] A =∑i=1
m
A i ,
onde Ai denota a área da i-ésima de m superfícies elementares bidimensionais. Se as superfícies
elementares são infinitesimais, tem-se
[2.6] A =∫0
A
dA .
O volume V é a medida da extensão de uma região tridimensional ⵟ3, delimitada por
uma superfície fechada; ou seja, é uma medida da quantidade de espaço tridimensional contido
nesta região. Essencialmente, a medição de um volume consiste em contar o número {V} de
volumes unitários contidos numa dada região espacial. Este número é função da unidade
arbitrada. Por definição, a unidade de volume Vu de uma certa escala [V] é a extensão da região
espacial delimitada por um cubo de faces planas, cujas arestas são segmentos de reta de
comprimentos iguais à unidade de comprimento Lu, ou seja, Vu = 1 [V] ≙ Lu Lu Lu = 1 [L]3. A
especificação de um volume V tem a forma:
[2.7] V = {V} [V] = {V} [L]3 .
Em outros termos, o volume é um atributo quantificável de uma região espacial que
pode ser considerada como um conjunto de regiões espaciais elementares, configuradas de tal
forma que o volume da região equivale à adição das extensões destas regiões elementares
constituintes. Se estas regiões são finitas, tem-se
[2.8] V =∑i=1
m
V i ,
onde Vi denota o volume da i-ésima de m regiões elementares tridimensionais. Se as regiões
elementares são infinitesimais, tem-se
[2.9] V =∫0
V
dV .
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De forma equivalente, pode-se identificar o limite inferior de integração nas equações
[2.3], [2.6] e [2.9] com um ponto, que é um espaço de dimensão nula, ou como um espaço,
respectivamente, uni-, bi- e tridimensional que tem, por definição, extensão nula.
Tempo
O fundamento empírico que conduz à formulação de uma expressão matemática que
quantifica a noção de tempo é a experiência cognitiva que permite identificar instantes num
continuum temporal e a possibilidade de ordenar uma sequência de instantes mediante uma
relação causal, segundo a qual para cada agora há um imediato antes e um imediato depois15. A
cronometria - a medida do tempo - baseia-se na idealização de um movimento isocinético e
isomórfico de um objeto material num espaço tridimensional[45]. Por isocinético designa-se o
movimento no curso do qual o objeto percorre iguais distâncias em intervalos de tempo de igual
duração; por isomórfico, aquele em que as posições ocupadas pelo objeto se repetem em
intervalos temporais também de igual duração.
Como saber se, ao cabo de intervalos temporais de mesma duração, as distâncias
percorridas são iguais e os mesmos locais se repetem, se esta duração é justamente aquela que
deve ser medida? Em termos operacionais, a questão é resolvida mediante a observação de
eventos naturais que se perceba, ainda que aproximadamente, como associados à ocorrência de
movimentos isocinéticos e isomórficos16. Instrumentos podem ser construídos e regulados para
que nestes se repitam, sempre, o mesmo número de iguais configurações espaciais entre
ocorrências sucessivas daquele fenômeno natural – tais como oscilações de um pêndulo,
repetições de marcações associadas a uma sequência de números num relógio, inversões da
posição de uma ampulheta etc.
A separação temporal entre dois instantes é um intervalo; a quantidade de tempo
desse intervalo é uma duração. Numa certa escala [t], um intervalo de tempo de duração unitária,
tu 1 [≙ t], é operacionalmente definido como aquele que corresponde a uma repetição de uma
condição espacial característica de um instrumento tomado para cronômetro. A escala é
construída mediante a adoção arbitrária de uma condição de referência - um ponto-zero - e de
marcações que se sucedem ao cabo de intervalos de duração unitária17. A medição da duração t
15 Pode-se distinguir o antes do depois mediante o princípio da causalidade. A causa ocorre antes; o efeito, depois. 16 As estações do ano, a alternância noite-dia, o surgimento do planeta Vênus (estrela matutina, estrela d'alva) ao amanhecer e o
movimento estelar são fenômenos naturais em que tais condições são aproximadamente verificadas.
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de um intervalo temporal18 consiste, então, em contar o número {t} de intervalos de duração
unitária existentes entre dadas ocorrências de um fenômeno. Este número é função da unidade
arbitrada. A especificação da duração t de um intervalo de tempo tem a forma19:
[2.10] t = {t} [t] .
Em outros termos, um intervalo de tempo pode ser considerado como um conjunto de
intervalos temporais elementares, configurados de tal forma que a duração do intervalo equivale à
adição das durações destes seus intervalos elementares constituintes. Se estes intervalos são
finitos, tem-se
[2.11] t =∑i=1
m
t i ,
onde ti denota a duração do i-ésimo de m intervalos temporais elementares. Se os intervalos
elementares são infinitesimais, tem-se
[2.12] t =∫0
t
dt .
Ao contrário das equações [2.3], [2.6] e [2.9], o limite inferior de integração na equação
[2.12] não é necessariamente um valor-limite logicamente decorrente do fundamento empírico da
medida do decorrer do tempo. O instante-zero da medida de um intervalo temporal é sempre
arbitrariamente convencionado.
A cronometria fundamenta-se numa relação específica entre uma distância percorrida
e o intervalo transcorrido – a relação que caracteriza um movimento isocinético e isomórfico.
Implicitamente, em termos operacionais, a quantificação da extensão de intervalos temporais
baseia-se no conceito de velocidade20.
18 A rigor, o símbolo representativo de um intervalo temporal e de uma duração deveria ser t; t deveria denotar um instante ou um momento. Dado que a medição do tempo é sempre expressa por uma escala de intervalo, que não se refere a um ponto-zero “natural” mas a um ponto-zero convencionado, e para simplificar a notação, sempre que não houver margem para ambiguidade, denota-se igualmente por t um intervalo de tempo, uma duração e um instante. O significado específico de cada situação é dado pelo contexto.
19 A adoção do símbolo t para representação da variável tempo pode causar alguma confusão com os símbolos usualmente utilizados para representação da variável temperatura - T, t ou θ. Quando estes símbolos estiverem presentes numa mesma equação, os seus significados específicos são dados pelo contexto.
20 A noção de velocidade precede, em muitos séculos, o estabelecimento da expressão matemática que a define como propriedade derivada das grandezas elementares comprimento (espaço unidimensional) e tempo. Nos jogos olímpicos da antiguidade, por exemplo, a especificação da velocidade era feita em termos de rápido ou lento; os comprimentos, em termos de pés e braças. Percorrer uma dada distância em mais ou menos tempo era consequência do ser rápido ou do ser lento. O tempo aparece, então, como grandeza derivada das grandezas fundamentais comprimento e velocidade. Observa-se, aqui, alguma analogia com a noção da grandeza temperatura, cuja especificação, na antiguidade, era feita em termos dos qualificativos quente, temperado ou frio. Esta gradação é comparativa e, por certo, subjetiva.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 56
Em cada instante t, a posição de um objeto material em movimento é dada pelo seu vetor
posição r. A velocidade linear v é a medida da distância r percorrida pelo objeto durante um
intervalo temporal t. Este é o significado conceitual da grandeza velocidade. A expressão
matemática de tal significado representa a velocidade linear como o valor limite da distância r
percorrida durante um intervalo temporal indefinidamente pequeno, t → 0, ou seja, v lim≙ t 0
r/t. O valor da velocidade é expresso em função das unidades arbitradas para as medidas
da distância e do tempo, v = {v} [v] = {v} [L] [t]-1, onde {v} é o módulo do vetor velocidade.
Como se observa, a possibilidade objetiva de medição de distâncias espaciais e de
intervalos temporais está condicionada à utilização de objetos materiais, os instrumentos de
medição. Na verdade, as prescrições da geometria e da cronometria seriam não mais que apenas
procedimentos abstratos se estes não pudessem ser referidos a fenômenos reais, vale dizer,
referidos a ocorrências repetitivas com e em objetos materiais dados. É nesse sentido, repete-se,
que as representações matemáticas das noções de espaço e tempo adquirem o caráter de
grandezas físicas e tornam-se as variáveis primárias da representação analítica de fenômenos
empíricos.
Matéria - Massa
A matéria é uma noção a priori, indefinível em termos de variáveis já antes definidas. A
expressão matemática da qual resulta a quantificação desta noção não pode ser deduzida nem
inferida de fatos da experiência. Sendo, porém, impossível conceber a matéria num espaço não
existente e sem um transcorrer temporal, tal expressão deve conter, em última instância, uma
relação específica entre as variáveis primárias espaço e tempo.
Se a matéria assume a forma tangível de um objeto material, o fundamento empírico
que conduz à formulação daquela expressão matemática é a experiência cognitiva que permite
constatar que as interações recíprocas que imprimem movimento a um par de objetos materiais21
ou que alteram a condição corrente de seus movimentos impõem-lhes acelerações colineares e
de sentidos opostos22. Em outros termos, tal formulação resulta de uma elaboração teórica que
tem como fundamento empírico a possibilidade de correlacioná-la às consequências cinemáticas
das interações mútuas entre objetos materiais.
21 O conceito de objeto material será tratado na próxima seção. O conceito de interação será tratado mais adiante.22 Aqui, não se cogita sobre a natureza dessas interações recíprocas, se de origem mecânica, elétrica ou magnética. Nem sobre
como representá-las. Exemplos de tais interações recíprocas são as que ocorrem entre dois objetos que se chocam, entre um foguete e o gás que expele, entre um canhão e o projétil que dispara, entre uma estrela e seus planetas, entre um planeta e seus satélites, entre objetos eletricamente carregados e entre objetos magnetizados.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 57
Em relação a um referencial para o qual são nulas as componentes dos vetores-
aceleração, a e ao, nas direções normais à linha reta que une os objetos, cada componente não
nula, a(r, t) e ao(r, t), representa a intensidade local e instantânea da aceleração de cada objeto.
As acelerações têm sentidos opostos, de modo que o valor numérico da razão ao / a é negativo.
Por outro lado, como os objetos pré-existem às interações, a eles podem ser associados atributos
quantificáveis cujos valores lhes são próprios, inerentes aos materiais23 de que são constituídos e
invariantes em relação a eventual ocorrência das interações. Mach[39] definiu a razão entre os
valores de um desses atributos, em cada objeto material, como o valor negativo do inverso da
razão entre as intensidades locais e instantâneas das acelerações que lhes são respectivamente
impressas em decorrência de suas interações mútuas, ou seja:
[2.13] MMo = −
ao
a .
M e Mo são os valores deste atributo quantificável, denominado massa do objeto e representativo
dos materiais de que são constituídos os objetos. Como a razão entre os valores das massas dos
objetos é invariante, a razão entre as intensidades das acelerações deve ser também invariante
mesmo na circunstância em que as interações variem espacial ou temporalmente. Em conclusão,
para que essa razão seja independente das posições e dos movimentos dos objetos, suas
respectivas acelerações devem ser medidas em relação a um referencial inercial24.
Em termos newtonianos, a massa é definida como a quantidade de matéria contida num objeto;
o seu valor é dado pelo produto do volume pela densidade. Esta definição é redundante, pois a
densidade é, e só pode ser, definida com a quantidade de massa por unidade de volume.
Portanto, na segunda lei de Newton, a definição da grandeza força baseia-se numa grandeza
essencialmente não definida, a massa. Agora, expressa na forma M a = Mo ao, a equação [2.13]
representa uma combinação das segunda e terceira leis de Newton [31], não sendo requerida,
para sua proposição, a introdução da grandeza força. As acelerações a e aº devem ser
medidas em relação a um referencial inercial. Nesse referencial, porém, um objeto material
move-se em movimento retilíneo uniforme, ou seja, sem aceleração, a = 0, quando livre de
interações com terceiros objetos que sejam também representadas pela equação [2.13]. Recai-
se, então, numa redundância: a validade da proposição exige a satisfação de uma condição
cujo critério de verificação pressupõe a sua própria aplicação.
Não menos redundante é a definição proposta por Weil[61] que, implicitamente, pressupõe o
23 Por enquanto, é bastante reconhecer que a constituição material específica de um objeto pode ser empiricamente inferida quando comparada à constituição material de um outro. Compare-se, por exemplo, dois objetos de mesmo volume, constituídos, porém, um de uma certa madeira, outro de um dado metal.
24 Seja um segundo referencial, com aceleração aR em relação ao primeiro inicialmente adotado. Neste outro referencial, a razão entre as acelerações dos objetos seria dada por ( ao – aR ) / ( a – aR ) ≠ ao / a, se aR ≠ 0. Segue que o requisito de invariância exige que segundo referencial não seja acelerado em relação ao primeiro.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 58
princípio de conservação da quantidade de movimento: se dois objetos materiais que se
movem com velocidades colineares, de sentidos opostos e de igual intensidade, medidas em
relação a um referencial inercial, colidem inelasticamente e coalescem num único objeto de tal
modo que a velocidade deste é nula, então são iguais os valores das massas dos objetos.
Similarmente ao caso anterior, a redundância consiste no requisito de um referencial inercial,
cuja verificação pressupõe a noção de massa. A integração da equação [2.13], na forma M a =
Mo ao, resulta em M ∆v = Mo ∆vo, sendo v e vo os vetores velocidade dos objetos materiais e v e
vo suas respectivas intensidades. Considerados os requisitos da definição, chega-se a:
[2.14]MMo =− vo
v .
Se v = - vo, tem-se M = Mo. Desta forma, também de forma similar procedimento anterior,
medidas exclusivamente cinemáticas permitem, pelo menos em princípio, o cálculo da razão
entre os valores das massas dos objetos.
Em estrito sentido lógico-matemático, as equações [2.13] e [2.14] não são definições,
posto que apenas estabelecem, para um par de objetos, serem numericamente iguais as razões
entre os valores de duas grandezas cujos significados conceituais são inteiramente distintos[9].
Estas relações são designadas definições operacionais porquanto tão somente estabelecem uma
prescrição procedural mediante a qual, pelo menos em princípio, pode ser determinada a razão
entre os valores das massas dos objetos. A especificação da grandeza massa tem a forma:
[2.15] M = {M} [M] .
Para efeito de quantificação, pode-se arbitrar uma certa escala [M], na qual a massa Mo de um
objeto material adotado como referência tenha o valor unitário {M} = 1, ou seja, Mo = Mu 1 [M≙ ].
Nessa escala, o valor da massa M do outro objeto será, então, dado pela razão {M} = - ao / a. Se
as acelerações tiverem iguais intensidades, o valor da massa é o mesmo para o par de objetos.
Matéria - Substância
Objetos materiais macroscópicos podem ser empiricamente identificados e entre si
distinguidos em função da natureza específica de sua matéria constituinte. A distinção entre o
ferro e o cobre, entre o álcool e a água, por exemplo, é uma evidência empírica. Por substância
designa-se a noção a priori, indefinível, do constituinte específico de um dado objeto material.
Como antes, discute-se como expressar matematicamente esta noção, em termos de um atributo
quantificável e inerente a esta substância.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 59
Seja um par de objetos materiais, constituídos por substâncias distintas, cujas massas
têm igual valor, M = Mo, mantido constante. Estes objetos são postos sob condições ambientais
invariantes; ou seja, no qual nada varia, no tempo ou no espaço. É uma constatação empírica
que, sob tais condições, em geral são distintos os valores de seus respectivos volumes, V ≠ Vo.
Cogita-se, então, que à substância constituinte de cada objeto deve ser próprio e inerente um
certo atributo quantificável - a sua quantidade de substância -, cujo valor guarda certa correlação
com o valor do respectivo volume. A forma desta correlação não é deduzida nem inferida de fatos
da experiência; ela é estabelecida mediante uma elaboração teórica cujo fundamento empírico é a
possibilidade de medir ou calcular os valores dos volumes de objetos materiais. Postula-se definir
a razão entre os valores N e No desse atributo, em cada objeto material, como sendo igual à razão
entre os valores V e Vo dos respectivos volumes, ou seja:
[2.16]NNo =
VVo .
Se os objetos são constituídos pela mesma substância e se os valores dos volumes forem iguais,
V = Vo, a equação [2.16] torna-se uma identidade, N ≡ No; os objetos contêm, então, a mesma
quantidade de substância.
Em estrito sentido lógico-matemático, tal como antes, a equação [2.16] não é uma
definição, posto que apenas estabelece, para um par de objetos, serem numericamente iguais as
razões entre os valores de duas grandezas cujos significados conceituais são inteiramente
distintos. Designada uma definição operacional, ela tão somente estabelece uma prescrição
procedural mediante a qual, pelo menos em princípio, pode ser determinada a razão entre os
valores das quantidades de substância dos objetos.
Posto que a massa e a quantidade de substância são atributos da substância de que é
constituído um objeto material, a sua razão é também um atributo da mesma. Define-se, então, a
massa por unidade de quantidade de substância, M, dada por
[2.17] M ≙ MN
,
cujo valor é próprio e característico da constituição específica de cada substância. Esse atributo é
também chamado massa substantiva do constituinte específico de um objeto material. Levando
em conta que M = Mo, da combinação das equações [2.16] e [2.17] resulta que a razão entre as
massas substantivas dos constituintes específicos de dois objetos é dada por
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 60
[2.18]MM o =
Vo
V .
A especificação da grandeza quantidade de substância, N, tem a forma
[2.19] N = {N} [N] ,
onde {N} é o valor ou intensidade de N, expresso na unidade [N] de uma certa escala. Para efeito
de quantificação, pode-se arbitrar uma substância de referência para constituição de um dos
objetos e adotar como unitário o valor de sua quantidade de substância, quando expresso numa
certa escala [N], ou seja, nesta escala {N} 1 e N≙ o = Nu 1 [N≙ ]. Se este objeto tem uma massa
Mo = {Mo} [M], da equação [2.17] resulta {Mo} = {Mo}. Vale dizer, expressos nesta escala, são
iguais os valores numéricos da massa e da massa substantiva do objeto. Da equação [2.16]
segue que o valor da quantidade de substância N do outro objeto é dado pela relação {N} = V / Vo
= {V} / {Vo} .
Em princípio, portanto, para qualquer substância podem ser determinados os valores
da quantidade de substância, N, e da massa substantiva, M, em função de valores medidos ou
calculados dos volumes V e Vo, mantidas invariantes as condições ambientais e sob a condição
de igualdade de suas massas. A base deste procedimento é puramente fenomenológica. Sua
efetivação requer apenas a adoção, por convenção, da substância e das condições ambientais de
referência.
É possível valer-se do modelo corpuscular de representação da matéria (tangível) para propor
um procedimento para determinação da massa substantiva. Neste modelo, objetos materiais
macroscópicos, de quaisquer substâncias, são representados como formados por idênticos
corpúsculos elementares. Não se cogita sobre a natureza destes corpúsculos25. Como unidade
de contagem, pode-se arbitrar que, ao invés do número de corpúsculos, é contado o número de
conjuntos destes, cada um dos quais composto por uma certa quantidade de corpúsculos, por
exemplo, uma dezena, uma dúzia, uma centena, um milhar... Cada objeto contém, então, um
certo número mínimo de conjuntos, aquele que corresponde ao requisito de caracterização
macroscópica da substância que o constitui. Assim, objetos de mesmo volume constituídos por
substâncias distintas compreendem quantidades distintas de conjuntos de corpúsculos
elementares. De modo que os valores das massas desses objetos são também distintos.
Aspectos desse modelo corpuscular são úteis, embora não essenciais, à formulação da teoria
fenomenológica desenvolvida neste texto. Por esta razão, eles são aqui discutidos com algum
25 Sob a concepção do continuum, objetos elementares são, em termos matemáticos, elementos diferenciais. Já sob a concepção corpuscular, lida-se com elementos discretos, genericamente denominados partículas ou corpúsculos. A Teoria Cinética dos Gases adota o termo moléculas sem que haja referência estrita e direta ao seu significado químico.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:54 61
detalhe.
Seja um par de objetos materiais com massas M e Mo, constituído por substâncias distintas.
Cada objeto compõe-se de um certo número de conjuntos de corpúsculos elementares. Se M⊘
e Mo⊘ são as massas das quantidades mínimas de conjuntos que caracterizam cada
substância, em cada objeto há n e no desses conjuntos, respectivamente, em que
[2.20a] n = MM⊘
,
[2.20b] no = Mo
M⊘o .
O valor calculado pela equação [2.20] é, então, necessariamente um múltiplo inteiro (≥ 1) do
número mínimo de conjuntos de corpúsculos necessários à caracterização macroscópica da
substância constituinte de cada objeto. Como cada conjunto contém uma quantidade arbitrada
de corpúsculos, o número de corpúsculos elementares contidos em cada objeto é obtido pela
produto, respectivamente, de n e no por aquela quantidade arbitrada.
Da combinação das equações [2.20a] e [2.20b] com a equação [2.17], resulta que, em cada
objeto, o número de conjuntos de corpúsculos por unidade de quantidade de substância é
[2.21a]nN=
MM⊘= 1
N⊘ ,
[2.21b] no
No =M o
M⊘o =
1N⊘
o ,
onde N⊘ e No⊘ denotam as quantidades de substância nos conjuntos de contagem dos
corpúsculos elementares. Mas, os corpúsculos elementares são idênticos e independem da
natureza da substância. Segue, então, N⊘ = No⊘ , de modo que
[2.22] nN= no
No .
A conclusão, portanto, é que o número de corpúsculos elementares por unidade de quantidade
de substância é o mesmo para todas as substâncias.
Agora, levando em conta as equações [2.21a] e [2.21b], resulta
[2.23]MM o =
M⊘
M⊘o .
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Em princípio, portanto, arbitrada uma substância de referência, isto é, definidos Mo⊘ e Mo, o
valor da massa substantiva, M, de uma outra substância pode ser determinado em função do
valor da massa da quantidade mínima de conjunto que a caracterizam26. Embora as equações
[2.18] e [2.23] traduzam concepções incompatíveis de representação da matéria, elas são a
base de procedimentos operacionais que conduzem ao mesmo resultado.
Finalmente, combinando o resultado dado pela equação [2.22] com o postulado inicialmente
estabelecido, equação [2.16], chega-se a
[2.24] nV= no
Vo .
Vale dizer, objetos materiais compostos de substâncias distintas, porém, de mesma massa,
contêm o mesmo número de corpúsculos por unidade de volume. Este resultado é uma
generalização da hipótese de Avogrado27, segundo a qual, sob iguais condições de
temperatura e pressão, o número de moléculas por unidade de volume é o mesmo para todos
os gases28.
Para um gás, a relação funcional entre os valores da quantidade de substância, N, do volume,
V, da pressão, p, e da temperatura, T, pode ser determinada experimentalmente. Quando
extrapolada para a condição-limite N / V 0 ou p 0, a tendência do comportamento inferido
pode ser representada pela relação
[2.25] p V = N ℜ T ,
onde designa a constante universal dos gases, cujo valor pode ser determinado com base
em dados experimentais. A equação [2.25] é representativa do chamado modelo do gás ideal.
Por outro lado, mediante a Teoria Cinética dos Gases29, deduz-se que, para um gás ideal, o
26 No âmbito microscópico, utilizam-se espectrógrafos para medir, com grande precisão, valores de pesos atômicos e massas moleculares das substâncias.
27 Lorenzo Romano Amedeo Carlo Avogrado di Quaregna e di Cerreto (1776 – 1856, Turin, Itália) – químico italiano, considerado o fundador da teoria atômico-molecular ou da físico-química, como veio a ser denominada; concebeu o modelo segundo o qual gases são constituídos por moléculas e estas, por átomos, a que denominava moléculas elementares; estabeleceu a fórmula da água como H2O, ao invés de HO e mostro que gases podem ser formados por moléculas que contêm mais de um átomo, como H2, O2, Cl2; em 1811, propôs a chamada hipótese de Avogrado; em 1858, Stanislao Cannizzaro, desenvolveu um sistema de determinação de pesos atômicos e moleculares com base naquela hipótese, tendo-o apresentado em 1860, no Primeiro Congresso Internacional de Química, em Karlsruhe, Alemanha; a hipótese de Avogrado, que não fora aceita inicialmente, teve, então, sua validade reconhecida; experimentos posteriores provaram sua validade para gases mantidos a pressões suficientemente baixas e temperaturas suficientemente altas.
28 Sem perda de rigor ou continuidade da formulação aqui desenvolvida, embora as grandezas pressão e temperatura ainda não estejam definidas, é suficiente recorrer aos conhecimentos de Física Geral que, pressupõe-se, são de domínio do leitor.
29 No âmbito da Teoria Cinética dos Gases, o modelo do gás ideal é formulado a partir de uma descrição idealizada do movimento aleatório e das interações recíprocas dos objetos elementares constituintes de um gás. Nos termos aqui empregados, são adotadas as seguintes hipóteses: (1) um gás é um objeto material macroscópico contido pela parede de seu vaso continente; (2) este objeto macroscópico compõe-se de um grande número de objetos materiais elementares, idênticos entre si, com massas de igual valor; (3) o volume próprio do conjunto de objetos elementares é desprezível em comparação com o volume do vaso continente; (4) a distância entre os objetos materiais elementares é muito maior do que a dimensão linear característica do seu movimento; (5) o movimento destes objetos é aleatório, de modo que constantemente eles colidem entre si e com a parede do
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número de corpúsculos, n, e os valores do volume, V, da pressão, p, e da temperatura, T,
mantêm a relação dada por
[2.26] p V = n kB T ,
onde kB denota a constante de Boltzmann. As equações [2.25] e [2.26] são similares. Enquanto
a primeira é de base empírica, formulada sobre o pressuposto do modelo do continuum, a
segunda é de base estatística, cujo pressuposto é o modelo corpuscular. Da combinação
dessas equações, resulta
[2.27]nN= ℜ
kB.
O significado deste resultado é que o número de corpúsculos por unidade de quantidade de
substância independe do gás e depende apenas da unidade adotada para expressar o valor da
quantidade de substância, [N].
Objeto Material
Por objeto material designa-se um algo macroscópico extenso e tangível, distinguível e
passível de representação mediante seus atributos. Por atributo entende-se um predicado ou uma
característica macroscópica própria de um objeto material. Por certo, estes enunciados são
tautológicos: a noção de objeto material recorre à noção de atributo; esta, pressupõe a noção de
objeto material. Não há como evitá-lo, pois estas noções não são definíveis em termos de outras
noções ou de conceitos já antes empiricamente estabelecidos.
As especificações dos atributos de um objeto material distinguem-no em relação a
seus similares. Há atributos cujas especificações são apenas qualitativas; outros atributos têm
especificações quantitativas. Constituição e conformação são atributos cujas especificações são
qualitativas - por exemplo, o material e a forma do objeto30. A extensão espacial é um atributo de
especificação quantitativa. O valor do volume ou a área superficial do objeto, por exemplo, são
medidas de sua extensão espacial.
Um objeto material pode ser representado de forma meramente descritiva ou de forma
vaso continente; (6) são desprezíveis as interações entre os objetos e entre estes e a parede, exceto quando há colisões; (7) estas colisões são perfeitamente elásticas; (8) o movimento dos objetos materiais elementares é newtoniano, a energia cinética e a quantidade de movimento se conservam; (9) efeitos relativísticos e efeitos quânticos não são considerados.
30 As especificações qualitativas de certos atributos podem ser quantificadas mediante a utilização de escalas ordinárias [ver item Escalas de Medição, adiante].
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analítica. A representação descritiva é feita apenas mediante atributos observáveis do objeto, ou
seja, através daqueles cujas especificações são diretamente acessíveis à observação – em última
instância, aos sentidos ou à percepção. A representação analítica é feita por meio de atributos que
expressam conceitos próprios de uma teoria; suas especificações decorrem de inferência ou de
cálculo, e também da observação, se tal teoria tem base empírica. Exemplo: a experiência
sensorial permite verificar a forma de um objeto material; também se este torna-se mais frio ou
mais quente; ou se ele expande ou contrai. Ou seja, a observação permite uma descrição do seu
comportamento. É, porém, uma inferência determinar, mediante medição, o valor do seu volume e
da variação de sua temperatura; e resulta de cálculo determinar o valor da variação de sua
energia. Neste caso, estabelecidos os conceitos dos atributos volume, temperatura e energia, é
necessário definir procedimentos operacionais mediante os quais são feitas suas especificações.
Em princípio, a representação completa de um objeto material macroscópico requer a
especificação de todos os seus atributos. Dado que cada objeto tem um número indeterminado de
atributos, uma tal representação é praticamente irrealizável ou é muito complexa, extensa e pouco
útil. De fato, ela é desnecessária pois, de cada vez, é suficiente identificar os atributos relevantes
à representação de um fenômeno ou de alguma classe de fenômenos macroscópicos.
Pressupondo que, no âmbito fenomenológico, tais atributos sejam identificáveis pelo menos em
princípio, a observação empírica - sistemática, metódica e reiterada - é o critério objetivo de
inferência de relevância. Para a análise termodinâmica de fenômenos termofísicos, por exemplo,
geralmente cor, odor e forma não são atributos relevantes. Não obstante, a cor é um atributo
relevante quando puder ser biunivocamente associada à temperatura do objeto. Analogamente,
quando uma massa de gás é forçada a escoar através de um bocal, a forma deste dispositivo -
especificamente, o estreitamento na seção transversal à direção do fluxo - é um atributo relevante
pois, dependendo da redução de pressão que impõe ao gás, lhe induz uma certa variação de
temperatura31. A relevância de um atributo refere-se, portanto, restritivamente a determinada
representação de um objeto ou de uma classe de objetos materiais no contexto da representação
de um fenômeno ou de uma classe de fenômenos. Em conclusão, cada representação analítica
viável é sempre parcial e orientada.
Atributos Globais e Atributos Locais
Alguns atributos expressam noções intrinsecamente relacionadas à totalidade espacial
31 Aqui, referência é feita ao chamado efeito Joule-Thomson, a ser tratado adiante, que associa a variação da temperatura à variação da pressão de um gás em escoamento num canal que tenha uma contração intensa e localizada de sua seção transversal. A temperatura do gás poderá aumentar ou diminuir em função da condição inicial e da queda de pressão imposta. Em termos teóricos, este escoamento é dito isoentálpico. Na terminologia técnica da Termodinâmica Aplicada, o procedimento descrito é denominado processo de estrangulamento.
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de um objeto material32, sendo designados atributos globais. Outros atributos têm significados
intrinsecamente locais. Suas especificações podem variar de local a local sobre a extensão do
objeto. A distribuição das especificações espaço-temporais de cada atributo local configura o que
se designa um perfil ou um campo. A forma, o volume e a massa, por exemplo, são atributos
globais já que se referem à totalidade de um objeto; já a tonalidade cromática, a velocidade linear,
a temperatura e a pressão são atributos locais, sendo comum a menção a um campo de pressão,
a um perfil de temperatura e a um perfil de velocidade linear.
A especificação de um atributo de um objeto material é sempre instantânea e pode
variar no decurso do tempo. A Figura 2.1 mostra um objeto material em dois instantes, t e t + Δt. A
variação da especificação de um atributo global típico é simbolicamente representada pela
variação da forma ou da área total do objeto, enquanto a variação da especificação de um atributo
local típico é simbolicamente representada pela gradação do sombreamento, do negro ao cinza
claro. Num dado instante, t ou t + Δt, a especificação deste atributo local pode variar de local a
local sobre a extensão do objeto; para uma mesma posição (+), assinalada na figura, a tonalidade
no instante t pode ser distinta daquela no instante t + Δt.
É uma constatação empírica que, sob certas circunstâncias, as especificações dos
atributos locais eventualmente tendem a tornar-se uniformes ao longo da extensão espacial de um
objeto material. Exemplos: com o passar do tempo, tendem a anular-se as diferenças de pressão,
de temperatura e de concentração mássica inicialmente existentes num objeto material sem
32 Por intrínseco denota-se um atributo de um objeto - ou uma característica de um atributo - que lhe é essencial e inerente, sendo ainda completamente independente de quaisquer outros objetos ou atributos ou, ainda, de circunstâncias ou contextos condicionantes destes. Um atributo de um objeto - ou uma característica de um atributo - que não é essencial ou inerente é dito extrínseco. Por exemplo, a massa é um atributo intrínseco de um objeto material, mas o peso é um atributo extrínseco porquanto seu valor depende da intensidade local do campo gravitacional.
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Figura 2.1. Variação da especificação de atributos globais (forma e área) e de atributos locais [sombreamento na posição (+)] .
t
t + Δt
interação com outros objetos. Por vezes, esta uniformidade é suposta, de fato sendo uma
aproximação idealizada da situação real. Exemplo: no objeto material da Figura 2.2.a, a gradação
do sombreamento representa simbolicamente variações espaciais e temporais da especificação
de um atributo local típico. Perceptível no instante t, a especificação é localmente variável, mas
esvanece até que, no instante t + Δ , - t torna se uniforme. Outro exemplo: distintas fases de uma
substância podem coexistir estavelmente quando são iguais os valores de suas respectivas
temperaturas e pressões, ainda que sejam distintos os valores de suas densidades mássicas. Na
Figura 2.2.b, esta dupla condição de uniformidade espacial é simbolicamente representada pela
gradação da tonalidade. À esquerda, ela é uniforme e igual nas duas regiões, tal como os valores
da pressão e da temperatura das fases. À direita, ela é uniforme em cada região, mas são
distintas entre as regiões, tal como os valores das densidades mássicas das fases.
Rigorosamente, a densidade mássica e a pressão em cada fase são uniformes apenas na
ausência da ação gravitacional e, para a última, se é plana a interface das fases, como aquela
mostrada na figura.
Mais adiante, serão tratadas as circunstâncias sob as quais as especificações de
atributos locais tendem à uniformidade e assim se mantêm. É suficiente, por ora, ter em conta
que, sob tais circunstâncias, as especificações de atributos locais passam a ser uniformes sobre a
extensão do objeto. De modo que, tal como as especificações de atributos globais, elas passam a
referir-se à totalidade do objeto material.
Condição de um Objeto Material
A condição de um objeto material é aquela definida pelas especificações de todos os
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[a] [b]
Figura 2.2. Uniformização da especificação de atributos locais: [a] objeto de constituição material homogênea; [b] objeto de constituição material heterogênea.
t
t + Δt
seus atributos relevantes. Segue que um objeto material encontra-se numa condição apenas se
as especificações desses atributos referirem-se à sua totalidade. As especificações dos atributos
globais do objeto satisfazem sempre este requisito. Para atendê-lo, porém, as especificações dos
atributos locais devem ser uniformes sobre a extensão do objeto. Portanto, a condição de um
objeto material é determinada ou determinável apenas num instante ou numa sucessão de
instantes em que é atendido este requisito de uniformidade.
É uma constatação empírica que, encontrando-se um objeto material numa dada
condição, as especificações de seus atributos não são todas independentes entre si. Vale dizer,
as especificações de alguns atributos podem ser determinadas em função das especificações de
outros. Como exemplos: é impossível arbitrar simultaneamente valores para o volume, a pressão
e a temperatura de uma dada massa de gás; são interdependentes os valores da pressão e da
temperatura de uma massa de certa substância na situação em que duas ou três fases coexistem
estavelmente. Se um objeto é esférico e tem um dado diâmetro, o seu volume não pode ser fixado
arbitrariamente; também não é arbitrário o comprimento da aresta de um objeto cúbico de certo
volume. No entanto, a especificação do comprimento característico ou do volume não determina a
forma do objeto, se ela é esférica ou cúbica. A forma, que é um atributo de especificação
qualitativa, é, neste contexto, um atributo independente.
Desta forma, cada representação de um objeto material pode ser formulada mediante
um certo conjunto de atributos independentes. Para um conjunto de atributos independentes, a
especificação de um deles não determina a especificação de qualquer outro deste conjunto; as
especificações de todos eles determinam as especificações dos demais atributos relevantes do
objeto material. Os atributos independentes são também chamados atributos primitivos; o seu
conjunto é chamado base da representação.
Segue que, numa representação formulada em termos de m atributos relevantes, a
condição ₡Ø de um objeto material Ø é, de fato, perfeitamente determinada ou determinável pelo
conjunto [...ℂ ] das especificações de seus n (n < m) atributos independentes - pressupondo-se
satisfeito o requisito de uniformidade das especificações dos atributos locais. Posto que as
especificações podem variar no decurso do tempo, tal condição é instantânea. Tem-se, então,
genérica e simbolicamente,
[2.28] ₡Ø = ₡Ø (t) = ₡ (Ø, t) ≙ [..., ℂ Ai (Ø, t), ...] , i = 1, n; n < m ,
onde Ai denota a especificação instantânea do i-ésimo atributo independente da representação. A
determinação das especificações dos atributos dependentes decorre de m-n relações funcionais,
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genérica e simbolicamente expressas por33
[2.29] Aj (Ø, t) = Aj [..., Ai (Ø, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m.
Aqui, Aj denota a especificação instantânea do j-ésimo atributo dependente da representação.
Assim, à condição instantânea ₡Ø (t) do objeto material Ø corresponde o conjunto inequívoco das
especificações instantâneas Ai (Ø, t), i = 1, m, de todos seus atributos relevantes, tanto globais
como locais, sejam eles de natureza qualitativa ou quantitativa.
Objeto Material Elementar
Um objeto material elementar é uma “porção tangível”[58] da matéria constituinte de um
objeto material, cujas dimensões espaciais são muito reduzidas em relação às dimensões
espaciais deste objeto. Não se cogita sobre a natureza ou sobre a estrutura de sua matéria
constituinte em termos de componentes ainda mais elementares. Por definição, portanto, objetos
materiais elementares são indivisíveis. Sua divisão implicaria considerar componentes estruturais
tão mais elementares que, tomados individualmente, já não caracterizariam macroscopicamente a
matéria constituinte do objeto34.
Postula-se que um objeto material elementar é homogêneo e isotrópico e que, sobre
sua extensão, são uniformes as especificações dos atributos locais. Tal uniformidade é postulada
para cada objeto material elementar, mas não para o conjunto dos objetos materiais elementares
que eventualmente constituem o objeto material macroscópico. Ou seja, a uniformidade não é
exigida para toda a extensão deste objeto. Na Figura 2.3, a gradação do sombreamento
representa, em termos simbólicos, a variação da especificação de algum atributo local sobre a
extensão do objeto material Ø. No objeto material elementar ⊘, ela é uniforme. Por exemplo, num
objeto material elementar há um único valor da velocidade linear, da densidade mássica, da
temperatura e da pressão. O conceito de objeto material elementar é um importante instrumento
metodológico a ser sistematicamente utilizado na formulação da teoria da Termodinâmica
apresentada neste texto. Este conceito adequa-se tanto à representação de um objeto material
macroscópico como sendo constituído por um número finito destes objetos, discretos e
33 As equações [2.28] e [2.29] representam apenas relações lógicas, assim expressas para esquematização sintética dos conceitos introduzidos. Alguns dos atributos A sequer são quantificáveis e nem denotam grandezas físicas. Este simbolismo, portanto, não representa relações matemáticas, no sentido de prestarem-se a quantificações e a operações de cálculo.
34 Apenas gera confusão formulações do tipo: “...uma região elementar suficientemente grande para conter muitas moléculas … mas ainda suficientemente pequena para que seja considerada um ponto no espaço … ou para ser usada como elemento de integração...”. Formulações como estas têm pouco sentido. De um lado, no âmbito do continuum não se cogita sobre moléculas; de outro lado, variáveis macroscópicas, tais como pressão e temperatura, não são definíveis no âmbito das dimensões microscópicas nem utilizadas para descrição do comportamento molecular.
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indivisíveis, quanto à sua representação como um continuum material indefinidamente divisível.
Em termos matemáticos, a idealização de um objeto material elementar permite
considerar que, em cada instante t, um objeto material elementar ⊘ encontra-se num local
associado a um vetor posição r⊘. Neste local, em cada instante, há apenas um objeto material
elementar. Há, portanto, uma correspondência biunívoca entre um objeto material elementar e o
local do espaço por ele ocupado, em cada instante. Valem as relações de reciprocidade:
[2.30a] r⊘ = r (⊘, t) e
[2.30b] ⊘ = ⊘ (r⊘, t) .
As especificações dos atributos de um objeto material elementar são instantâneas,
referidas a um instante .t Tendo em conta a equação [2.30], as especificações desses atributos
são também locais, referidas ao local de vetor posição r. Assim,
[2.31] ∏i = ∏i (⊘, t) = ∏i (r⊘, t) , i = 1, m ,
representa a especificação local e instantânea de ∏i, qual seja, do i-ésimo dentre os m atributos
relevantes do objeto material elementar ⊘. Desta forma, também aos atributos globais de um
objeto material elementar é possível fazer-se referência a especificações locais.
Deve ser bem entendido o significado conceitual da idealização que designa por local e
instantânea a especificação dos atributos de objetos materiais elementares. Esta idealização
consiste em extrapolar, para dimensões arbitrariamente pequenas, o conceito e a especificação
de atributos que são definidos exclusivamente tendo em conta objetos materiais de dimensão
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Figura 2.3. Objeto material e objeto material elementar.
Ø⊘
finita. Vale dizer, o objeto material elementar não se põe como uma realidade natural, mas
como um artifício conceitual utilizado na construção de uma teoria matemática [6] destinada a
representar o comportamento de objetos macroscópicos reais.
Em termos físicos, a noção de local não deve ser entendida no estrito sentido geométrico de
um ponto espacial sem dimensão, mas da posição onde se encontra um objeto elementar cuja
dimensão espacial característica é muito pequena relativamente àquela do objeto material do
qual é parte constituinte. Por extensão, a variação espacial da especificação de um atributo não
é entendida como uma variação de ponto para ponto, naqueles termos geométricos, mas de
objeto elementar para objeto elementar.
Em termos analíticos, por outro lado, o conceito de objeto material elementar estende-se até o
limite de uma região espacial de extensão nula. Vale dizer, um objeto material elementar ⊘ é
um elemento infinitesimal do objeto material Ø, de volume indefinidamente pequeno até o limite
V 0, solidariamente com L 0 e A 0, sendo L um comprimento característico e A a área
de sua superfície35. Nestes termos, são efetivamente locais as especificações dos atributos de
um objeto material elementar; e, se referidas a um intervalo de tempo indefinidamente
pequeno, no limite em que t 0, também são efetivamente instantâneas. Reciprocamente, a
noção de que os volumes dos objetos materiais elementares reduzem-se até o limite de uma
extensão nula é coerente com a noção de que um conjunto de objetos materiais elementares
constrói o continuum constituinte do objeto material macroscópico; e que as especificações de
cada um de seus atributos distribuem-se continuamente sobre a extensão deste.
Segue que, sempre e intrinsecamente, um objeto material elementar ⊘ encontra-se
numa condição local e instantânea ₡⊘ perfeitamente determinada ou determinável pelo conjunto
[...ℂ ] das especificações locais e instantâneas de seus n atributos independentes. Tem-se, então,
genérica e simbolicamente,
[2.32] ₡⊘ = ₡⊘ (t) = ₡ (⊘, t) = ₡ (r⊘, t) = [..., ℂ Ai (r⊘, t), ...] , i = 1, n ,
onde ∏i denota a especificação instantânea do i-ésimo atributo independente da representação.
Complementarmente, as especificações dos atributos dependentes são dadas por m-n relações
funcionais, simbólica e genericamente representadas por36
[2.33] Aj (r⊘, t) = Aj [..., Ai (r⊘, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m,
35 Este conceito exclui os casos em que o limite V 0 corresponde aos limites L 0 e A valor finito. Exemplo: não constitui um objeto material elementar a película de espessura infinitesimal e área superficial finita que encerra uma massa de líquido, antes contida num volume finito (uma gota, digamos), agora esparramada sobre uma superfície sólida.
36 Sobre a natureza das relações expressas pelas equações [2.31], [2.32] e [2.33], aplicam-se as mesmas restrições relacionadas às equações [2.28] e [2.29].
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onde Aj denota a especificação instantânea do j-ésimo atributo dependente. À condição local e
instantânea (₡ ⊘, t) = ₡ (r⊘, t) de um objeto material elementar ⊘ corresponde, portanto, um
conjunto inequívoco das especificações locais e instantâneas de seus atributos relevantes, sejam
estes de natureza qualitativa ou quantitativa.
As especificações dos atributos locais de um objeto material podem sofrer descontinuidades na
superfície envolvente da região espacial por ele ocupada e em superfícies singulares que
eventualmente a atravessam. Tais superfícies são designadas fronteiras ou interfaces. Por
exemplo, porções coexistentes de água líquida e de vapor d'água podem ser tratadas como
objetos materiais vizinhos ou como partes distintas de um mesmo objeto material. O que
caracteriza cada uma destas porções são as especificações de alguns de seus atributos
[tipicamente, os valores da densidade mássica]. Fisicamente, alguma fração de material líquido
passa continuamente a ser vapor e vice-versa. Na região em que isso ocorre, os atributos
dessa fração deixam gradativamente de ter especificações típicas de líquido e passam a ter
aquelas típicas do vapor - e vice-versa. Pode-se, no entanto, extrapolar para o interior desta
região as especificações típicas de cada porção e estabelecer que estas são válidas até uma
superfície arbitrariamente definida como a interface dos meios. Então, de um lado desta
interface as especificações serão típicas da água líquida; do outro, típicas do vapor d'água. Na
interface, haverá descontinuidade.
Verificação Empírica – Permanência
Por definição, as especificações instantâneas dos atributos de objetos materiais
elementares referem-se à sua totalidade espacial. No caso de atributos locais, tais especificações
devem ser uniformes sobre toda a extensão do objeto elementar. Para efeitos de verificação
empírica, indaga-se sobre os tamanhos do objeto dito elementar e do intervalo temporal além dos
quais tornam-se sem sentido os requisitos de totalidade e de uniformidade e a consideração de
uma observação como instantânea; e sobre aqueles aquém dos quais perde sentido as noções de
continuum e de atributo macroscópico. Tais requisitos de mensurabilidade impõem, portanto, a
necessidade de alguns critérios de permanência, como são chamados, que determinem limites às
dimensões espaciais do objeto material elementar e ao tempo de observação. Estes limites devem
assegurar alguma permanência espacial e alguma permanência temporal para as especificações
dos atributos nos termos dos quais se representa a condição local e instantânea do objeto tomado
como elementar.
Considere-se que estes requisitos de permanência são atendidos na situação limite de
um volume elementar V⊘, submetido à observação no decurso de um intervalo temporal elementar
t⊘. A condição é local, então, quando um objeto material elementar tem volume V V⊘ ou,
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solidariamente, área A A ⊘ e comprimento L L ⊘. A condição é instantânea se observada no
decurso de um intervalo temporal t t⊘. Efetivamente, os valores das dimensões características
V⊘, A⊘ e L⊘ e do tempo característico t⊘ dependem, conjunta e restritivamente, não só do objeto
material do qual o objeto material elementar é constituinte, mas também das circunstâncias da
ocorrência do fenômeno considerado.
Em termos práticos, também a capacidade de apreensão do observador, ou seja, a
resolução do instrumento de medida é circunstância determinante da possibilidade de caracterizar
como local e instantânea a observação mensurável de atributos de objetos materiais. Portanto, as
dimensões espaciais de um objeto material elementar e o tempo característico de observação de
um fenômeno são determinações ad hoc, restritivamente definidas de modo a que as
especificações dos atributos que os descrevem possam ser consideradas locais e instantâneas.
Como ilustração, considere-se um objeto material granular, sendo ℓ o tamanho médio dos
grãos. O objeto encontra-se em movimento retilíneo e é submetido a um procedimento que
consiste em impor-lhe uma perturbação de frequência ƒ. Constata-se que a posição z = z(t) do
objeto pode ser representada por uma relação da forma:
[2.34] z = a + b t + c t2 ,
onde t é o tempo e são constantes os coeficientes a, b e c. Quais são os requisitos para que se
possa tratar o coletivo de grãos como um continuum e utilizar o procedimento de medição para
estabelecer a condição local e instantânea do objeto?
Os parâmetros característicos do procedimento de medição são o comprimento de onda λ e a
velocidade λ ƒ da pertubação que se propaga no objeto granular. O tempo médio necessário
para que a pertubação atravesse cada grão é ℓ / (λ ƒ). Sem perda de generalidade, supõem-se
iguais a distância média entre grãos e o tamanho médio destes e iguais o tempo médio de
deslocamento da pertubação através de um grão e deste ao seu vizinho.
Para que o material granular possa ser tratado como um continuum é necessário que o
comprimento de onda λ exceda o comprimento médio conjunto de um grão e da distância deste
ao seu vizinho, 2ℓ, e que o tempo de resolução37 do instrumento de medição, Δt, exceda o
tempo requerido para que a pertubação atravesse este comprimento conjunto, 2ℓ / (λ ƒ).
Devem, assim, ser satisfeitos um requisito espacial um requisito temporal, respectivamente:
[2.35a]2 ℓ≫ 1 ,
37 Tempo de resolução é o intervalo temporal mínimo necessário para efetivação de uma medida de tempo, sendo utilizado como um critério de qualidade dessa medida.
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[2.35b] λ ƒ Δt2 ℓ
≫ 1 .
Pelo contrário, se λ / (2 ℓ) ~1 ou ( λ ƒ Δ t ) / (2 ℓ) ~1, a individualidade dos grãos influencia a
medição. Neste caso, procedimentos e resultados baseados no modelo do continuum não têm
precisão ou mesmo significado.
Com relação à condição local e instantânea do objeto, considere-se o instante (t + Δt) e a
posição (z + Δz). Da equação [2.34], resulta:
[2.36] Δz = (b + 2c t) Δ t + c (Δt)2 .
A velocidade é definida como v Δz / Δ≙ t. Segue, então, que a velocidade do objeto é:
[2.37] v = b + 2c t + c Δ t .
Para que esta equação forneça o valor instantâneo da velocidade, o seu último termo deve ser
um infinitésimo de ordem superior, desprezível em relação ao primeiro termo. Tem-se, portanto,
[2.38] c Δ t b + 2c ≪ t .
Levando em conta esta condição, a equação [2.36] é reduzida a
[2.39] Δz ≈ ( b + 2c t ) Δ t .
Para que esta equação represente uma condição local, Δt deve atender ao requisito dado pela
equação [2.38] e Δz deve ser interpretado como a dimensão linear característica de um objeto
material elementar típico do objeto granular.
Combinando as equações [2.35b] e [2.38], chega-se aos valores-limite do intervalo de tempo
requerido para que o objeto seja tratado como um continuum e a sua condição seja
considerada instantânea:
[2.40] 2 ℓλ ƒ≪ Δt ≪ 1
cb 2 c t .
Combinando as equações [2.39] e [2.40], chega-se aos valores-limite da distância Δz para que
o objeto granular seja tratado como um continuum e que a sua condição seja considerada local:
[2.41] 2 ℓλ ƒb 2 c t ≪ Δz ≪ 1
cb 2 c t 2 .
Se t = 0, com c > 0, os valores-limite indicados nas equações [2.40] e [2.41] são invariantes no
tempo. Sendo, então, Δz interpretado como a dimensão linear L⊘ característica de um objeto
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material elementar representativo do objeto granular, e Δt o tempo t⊘ característico do
processo de medição, resulta:
[2.42a] 2 ℓλ ƒ≪ t⊘ ≪
bc ,
[2.42b] 2 ℓ bλ ƒ
≪ L⊘ ≪b2
c .
A ordem de grandeza dos parâmetros t⊘ e L⊘ pode ser estimada num exemplo numérico. Para
tanto, sejam a = 10 mm, b = 20 mm/s e c = 5 mm/s2 os valores dos coeficientes da equação
[2.34], ℓ = 4 mm o tamanho médio dos grãos, ƒ = 40 kHz a frequência da pertubação e λ ƒ =
800 m/s a velocidade desta no objeto granular. Resulta, então, λ / (2 ℓ) = 5, que atende ao
requisito da equação [2.35a]; o tempo de resolução deve situar-se entre os limites 10 -5 s ≪ t⊘
4 s e a dimensão característica de um objeto material elementar, ≪ 2 10-3 mm L≪ ⊘ 80 mm,≪
por exemplo, t⊘ ≈ 10-2 s e L⊘ ≈ 10-1 mm.
Grandezas Físicas
Grandezas físicas são atributos qualitativamente distinguíveis e quantitativamente
determináveis de objetos materiais, dos materiais constituintes destes objetos ou das interações
entre objetos materiais. Em outros termos, uma grandeza física é qualquer atributo de um objeto,
de uma substância e de uma interação entre objetos materiais que possa ser percebido e medido
sem mudança de sua identidade. Por exemplo, as grandezas físicas volume, massa e força são
atributos representativos, respectivamente, de um objeto, de seu material constituinte e de uma
interação entre objetos materiais.
Nem sempre é fácil determinar se um atributo de um objeto material é uma grandeza física.
Alguns atributos são considerados como se fossem, embora de fato não sejam grandezas
físicas. Nestes casos, o que se considera uma grandeza física representa, de fato, a percepção
subjetiva de um observador, que se manifesta através da reação de seus órgãos sensoriais ao
estímulo que provém de algum efeito externo. Isto ocorre, por exemplo, com a sensação de
quente ou frio ou com a cor de um objeto: a variabilidade das percepções individuais evidencia
tal subjetividade. Tais percepções não podem ser medidas, mas apenas comparadas38.
38 A utilização de escalas numéricas para expressar quantitativamente a percepção ou a intensidade de certos atributos estimula o equívoco de tratá-los como grandezas físicas. Como será visto adiante, tais escalas não são propriamente expressões de medição, no sentido da quantificação de grandezas físicas, mas a tentativa de quantificar a percepção de um evento físico específico mediante uma gradação convencionada e compartilhada por um conjunto de observadores.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 75
Para um dado observador, a percepção de um certo espectro de absorção da luz pode sempre
corresponder a uma mesma cor; mas há distintos espectros que podem ser percebidos como
de uma mesma cor. A distintos observadores, uma amostra de uma solução de permanganato
de potássio pode parecer rósea, negra ou um dentre vários tons púrpura. Tal variação é função
não só da concentração da solução, do comprimento de onda da luz que a atravessa e da
posição dos máximos no seu espectro de absorção, como também da percepção subjetiva de
cada um deles. Ou seja, a relação entre um espectro de absorção e uma cor não é biunívoca.
A cor da solução não é, portanto, uma grandeza física.
A definição de uma grandeza física compreende três declarações. A primeira é de
natureza qualitativa e estabelece o seu significado conceitual. A segunda é a expressão
matemática de tal significado39. Conceitualmente, uma grandeza física implica a noção – uma
apreensão, seguida de uma representação - de uma qualidade de um objeto, de seu material
constituinte ou de um fenômeno que ocorre na natureza. Esta noção é primária se não é expressa
em termos de outras que a precedem; ou é uma relação entre noções precedentemente
estabelecidas. Sua expressão matemática a representa mediante uma variável primária ou
mediante uma relação entre variáveis primárias; tal expressão define a dimensão da grandeza40. A
terceira declaração é de natureza quantitativa e estabelece a sua validade empírica. Ela trata de
aspectos operacionais da definição e consiste da especificação da grandeza, expressa por um
número vinculado a uma unidade. Este número é determinado por uma operação de cálculo ou de
medição; ele representa uma intensidade ou um valor referido a uma escala, cuja unidade é
adotada por convenção.
A especificação de uma grandeza física G é expressa na forma
[2.43] G = {G } [G ] .
Aqui, {G } denota a intensidade ou o valor numérico da grandeza G, expressa numa unidade [G ]41.
O valor numérico de uma grandeza física é sempre um múltiplo ou um submúltiplo de seu valor
unitário, {Gu } = 1, ou seja,
[2.44a] Gu 1 [≙ G ] ,
39 Frequentemente, em exposições sobre a teoria da Termodinâmica, são confundidos os significados conceituais de grandezas físicas e as suas expressões matemáticas representativas. Quando isto ocorre, os termos mediante os quais se procura definir o significado conceitual da uma grandeza apenas traduzem, em outras palavras, a sua expressão matemática. Dessa confusão decorre uma apreensão insuficiente dos conceitos e uma aplicação automática e irrefletida do formalismo matemático que os representa.
40 A representação das unidades das grandezas físicas em termos das dimensões fundamentais espaço, tempo e massa segue uma proposição original de J. Fourier, em 1822.
41 A descrição de uma grandeza física como o produto entre um valor numérico e uma unidade de medida segue uma proposição original de J.C. Maxwell, em 1873.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 76
[2.44b] G = {G } Gu .
Este valor é sempre um número real, que tem significado físico apenas se estiver associado a
uma unidade e a uma condição de referência. O símbolo <G > denota a dimensão da grandeza
física, não sendo associada a qualquer unidade particular.
Grandezas Primitivas e Grandezas Derivadas
Como assinalado, no âmbito de uma dada representação fenomenológica, a descrição
de um objeto material requer a especificação de um certo conjunto de atributos independentes.
Por grandezas físicas primitivas são designados os atributos quantificáveis de um objeto material,
entre si independentes, necessários a construção de determinada representação analítica de um
ou de certa classe de fenômenos macroscópicos. Alguns autores[27],[11] adotam uma definição mais
restritiva: grandezas físicas primitivas são atributos quantificáveis cujos valores idealmente
correspondem ao resultado instantâneo de uma medição. Volume, pressão e temperatura são
exemplos destas grandezas. Por contraste, são designadas derivadas as grandezas físicas das
quais apenas se determinam valores de suas variações, calculados em função de medições de
grandezas primitivas, realizadas em distintos instantes. Por suposto, tais medições pressupõem
uma transformação na condição do objeto considerado. Energia e entropia são grandezas físicas
das quais apenas valores de suas variações podem ser determinados.
Grandezas Direta e Indiretamente Mensuráveis
O valor de uma grandeza física diretamente mensurável, num objeto material, pode
ser determinado mediante comparação direta com o valor desta mesma grandeza num outro
objeto assumido como padrão ou como instrumento de medida. Por exemplo, os valores do
comprimento e da massa são diretamente medidos, respectivamente, por uma fita métrica e por
uma balança de braços iguais; o valor da temperatura de um material incandescente ou de uma
chama pode ser medido por um termômetro ótico mediante comparação de cores. Idealmente, a
operação de medição não deve afetar a situação ou condição do objeto sobre o qual é efetuada,
no curso da qual este deve manter-se inerte ou passivo. Neste caso, o valor instantâneo da
grandeza independe do procedimento de medição empregado e do seu valor em qualquer outro
instante.
Tal requisito não é sempre satisfeito. Há grandezas cujos valores são determinados
mediante uma efetiva interação entre um objeto e o objeto tido como instrumento de medida. Tais
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grandezas são indiretamente mensuráveis. Em geral, os seus valores são determinados mediante
uma expressão matemática representativa de alguma relação-modelo entre esta grandeza e uma
grandeza diretamente mensurável do instrumento de medição. Eventualmente, esses valores são
determinados analogicamente pelo próprio instrumento, no curso mesmo da medição. Numa
balança de mola, por exemplo, a lei de Hooke é a relação-modelo entre a força-peso, cujo valor se
quer determinar, e a deformação lienar-elástica da mola; o deslocamento de um sensor
fotoelétrico ou a carga sobre um transdutor de pressão são utilizados por uma balança eletrônica
para determinar o valor do peso de um objeto material; medições da temperatura com um
termômetro de mercúrio são analógicas, pressupondo determinada relação-modelo entre a
temperatura e o volume e a pressão do mercúrio. A distinção entre grandezas direta e
indiretamente mensuráveis é relevante em termos práticos, não sendo essencial para a
construção da teoria.
Grandezas Globais e Grandezas Locais
Por grandezas globais são designadas as grandezas físicas cujos valores referem-se
à totalidade espacial do objeto material. Os valores dessas grandezas podem variar no decurso do
tempo, de modo que eles têm sempre uma referência material e uma referência temporal,
[2.45] G = G (Ø, t) .
Sem perda de generalidade, para um objeto material elementar ⊘ a referência material dos
valores de uma grandeza física assume a forma
[2.46a] G = G (⊘, t) .
Considerando a equação [2.30], tem-se
[2.46b] G = G (r⊘, t) ,
em que r⊘ denota o vetor posição que localiza o objeto material elementar e t o tempo.
Por grandezas locais são designadas as grandezas físicas cujos valores podem variar
de local a local sobre uma dada extensão espacial e, também, no decurso do tempo,
[2.47] G = G (r, t) .
A distribuição espacial dos valores locais das grandezas locais configura o que se designa um
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 78
perfil ou um campo. Quando estes valores referem-se a locais sobre a extensão de um objeto
material, são equivalentes as equações [2.46b] e [2.47]. O conceito de objeto material elementar
permite expressar os valores de grandezas físicas globais ou locais em termos de uma variável
espacial e de uma variável temporal.
O valor local e instantâneo de uma grandeza física é único. Essa unicidade decorre da
definição da grandeza física como atributo distinguível e quantificável de um objeto material ou de
seu material constituinte. A unicidade temporal implica que, num local de vetor posição r, valores
distintos de uma grandeza física referem-se necessariamente a distintos instantes:
[2.48] se G (r, t1) ≠ G (r, t2), então, t1 ≠ t2 .
A unicidade espacial implica que valores distintos, instantâneos e simultâneos, de uma grandeza
física referem-se necessariamente a distintos locais:
[2.49] se G (r1, t) ≠ G (r2, t), então, r1 ≠ r2 .
Há quatro caracterizações gerais, típicas do comportamento temporal e espacial dos
valores de uma grandeza física. Uma grandeza física é dita transiente ou dinâmica os seus
valores locais variam no decurso do tempo,
[2.50] G = G (r, t);
ou permanente ou estática se os valores locais são temporalmente invariantes,
[2.51] G = G (r, t) = G (r);
ela é dita uniforme se os seus valores são espacialmente invariantes,
[2.52] G = G (r, t) = G (t);
e homogênea se os seus valores são temporal e espacialmente invariantes,
[2.53] G = G (r, t) = constante.
Grandezas Aditivas
A extensão é um atributo global e quantificável de uma região espacial, representada
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 79
pela grandeza física comprimento L, área A ou volume V se esta região é, no espaço euclidiano
ⵟn, uni-, bi- ou tridimensional, respectivamente. Uma região espacial pode ser considerada como
um conjunto de regiões espaciais elementares, configuradas de tal forma que a extensão total da
região espacial equivale à adição das extensões destas suas regiões elementares constituintes.
Por esta razão, o comprimento, a área e o volume são grandezas físicas ditas aditivas.
Se as regiões espaciais elementares são finitas, tem-se
[2.54a] L =∑i=1
m
Li ,
[2.54b] A =∑i=1
m
A i ou
[2.54c] V =∑i=1
m
V i ,
onde Li, Ai e Vi denotam o comprimento, a área e o volume da i-ésima de m regiões elementares,
respectivamente, uni-, bi- e tridimensionais. Se as regiões elementares são infinitesimais, tem-se
[2.55a] L =∫0
L
dL ,
[2.55b] A =∫0
A
dA ou
[2.55c] V =∫0
V
dV .
O conceito de aditividade é, agora, generalizado: uma grandeza física G = ℰ é dita
aditiva quando o seu valor, numa dada região espacial, resulta da adição dos valores que lhe
corresponde nas regiões elementares constituintes daquela região. Tem-se
[2.56] ℰ =∑i=1
m
ℰi .
Aqui, ℰi denota o valor instantâneo da grandeza na i-ésima região elementar, que é uma fração
finita da região espacial considerada. Se a região elementar é infinitesimal, o valor instantâneo da
grandeza é um infinitésimo, dℰ. Neste caso, o valor da grandeza aditiva, naquela região espacial,
corresponde a
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[2.57] ℰ =∫0
ℰ
dℰ .
O valor dado pela equação [2.56] ou [2.57] é global e instantâneo, sendo sempre um
número real, 0 ≤ {ℰ} < + ∞, função da extensão da região espacial considerada. Em particular, se
a extensão da região espacial reduz-se a zero, reduz-se também a zero o valor da grandeza. Se a
região é espacialmente tridimensional, o valor da grandeza é função do seu volume. Ele é função
do comprimento ou da área superficial de uma região apenas se for possível conformá-la, ainda
que idealmente, como um espaço uni- ou bidimensional. Portanto, são entre si excludentes as
relações ℰ = ℰ(L, t), ℰ = ℰ(A, t) e ℰ = ℰ(V, t). Por exemplo: uma certa quantidade de líquido
esparramada sobre um plano conforma-se como uma película de grande superfície e pequena
espessura; embora o valor do volume não mude, a área superficial varia significativamente em
função da forma assumida. Películas, assim como interfaces, placas, faixas e fitas têm muito
pequenas áreas seccionais em relação às suas áreas superficiais, Asec << A, e são, em várias
situações, idealmente representadas como objetos espacialmente bidimensionais. Já as
espessuras de arames, filamentos, fios, cabos e hastes são muito pequenas em relação aos
respectivos comprimentos, ℓ << L. Em várias situações, estes objetos são representados
idealmente como espacialmente unidimensionais.
Sem perda de generalidade, na região espacial ocupada por um objeto material pode-
se fazer coincidir cada região espacial elementar com um objeto material elementar. A massa e a
quantidade de substância são atributos globais desses objetos materiais, representados pelas
grandezas físicas aditivas ℰ = M e ℰ = N, respectivamente. Se cada objeto material elementar é
uma fração finita do objeto material, a equação [2.56] assume, então, a forma:
[2.58a] M =∑i=1
m
M i ou
[2.58b] N =∑i=1
m
Ni .
Se cada objeto material elementar é uma fração infinitesimal do objeto material, a equação [2.57]
assume a forma
[2.59a] M = ∫0
M
d M ou
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[2.59b] N =∫0
N
d N .
Por vezes, caracteriza-se como aditiva a grandeza física cujo valor é proporcional à
quantidade de massa ou de substância de um objeto material. Vale dizer, o somatório indicado na
equação [2.56] e a integração indicada na equação [2.57] são equivalentemente processados
sobre a extensão espacial de uma região e sobre a extensão material de um objeto. Se a região é
tridimensional, resultam
[2.60a] ℰ = ℰ(V,..., t) ≡ ℰ(M,..., t) e
[2.60b] ℰ = ℰ(V,…, t) ≡ ℰ(N,..., t) .
Além de ser eventualmente dependente de algumas outras variáveis e do tempo, o valor global e
instantâneo da grandeza aditiva ℰ é expresso em função do volume e, equivalentemente, em
função da massa ou da quantidade de substância. O conceito de aditividade aqui adotado não
pressupõe tal equivalência nem ela lhe é necessariamente decorrente. Por exemplo, considere-se
uma fonte de energia radiante. A quantidade total de energia que, num dado instante, encontra-se
contida no espaço circundante desta fonte é equivalentemente proporcional ao volume deste
espaço e à quantidade de um gás ali encerrado, mantidas invariantes as demais condições. Mas
não há tal equivalência se, no dado espaço, produz-se vácuo.
Grandezas Específicas - Densidades
Uma grandeza física dita específica é definida como uma densidade espacial ou como
uma densidade material de uma grandeza aditiva. As densidades espaciais são geralmente
definidas em termos volumétricos; em certos casos, porém, em termos superficiais ou lineares. As
densidades materiais são definidas em termos mássicos ou em termos molares.
A densidade volumétrica ρvℰ de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre
os valores desta grandeza e do volume da região tridimensional elementar que a contém42. Para
que o seu valor seja local, deve-se ter
[2.61] vℰ ≙ lim
V 0
ℰV= ∂ ℰ
∂ V= ∂ ℰ
∂ V∣ ... .
42 Considera-se que a distinção entre regiões espaciais elementares finitas ou infinitesimais já está suficientemente esclarecida. Idem em relação a objetos materiais elementares finitos ou infinitesimais. Na sequência, exceto ocasionalmente, o formalismo será desenvolvido apenas com base em elementos infinitesimais.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 82
No processo de limite V 0, se ℰ = ℰ(V,....), exceto o volume V, os valores das demais variáveis
(…) são mantidos constantes.
A densidade superficial ρAℰ de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre
os valores da grandeza e da área da região bidimensional elementar que a contém. O seu valor
local é dado por
[2.62] ρAℰ ≙ lim
A → 0
ℰA
= ∂ℰ∂ A
∣ (...)
Analogamente à equação [2.61], no processo de limite A 0, se ℰ = ℰ(A,....), exceto a área A, os
valores das demais variáveis (…) são mantidos constantes.
A densidade linear ρLℰ de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre os
valores da grandeza e do comprimento da região unidimensional elementar que a contém. O seu
valor local é dado por
[2.63] Lℰ ≙ lim
L 0
ℰL= ∂ ℰ
∂ L∣ ... .
Também aqui, no processo de limite L 0, se ℰ = ℰ(L, ....), exceto o comprimento L, os valores
das demais variáveis (…) são mantidos constantes.
Dado que os valores da grandeza aditiva ℰ assim como, respectivamente, os valores
do volume V, da superfície A e do comprimento L são instantâneos, resulta que os valores das
densidades, definidos pelas equações [2.61], [2.62] e [2.63], são locais e instantâneos, ou seja,
ρvℰ(r, t), ρA
ℰ(r, t) e ρLℰ(r, t).
As densidades volumétricas são mais comumente utilizadas. Em geral, densidades superficiais
são usadas quando objetos físicos são representados como bidimensionais; por exemplo,
placas, películas e superfícies interfaciais. Já as densidades lineares são usadas quando
aqueles objetos são representados como unidimensionais, como no caso de cabos, filamentos
e barras delgadas. Como generalização, considere-se uma região espacial, geometricamente
representada em termos de uma superfície característica de área A e, na sua direção
perpendicular, de um comprimento característico de extensão ℓ. Esta região pode ser
idealizada como bidimensional se ℓ2 / A <<< 1; e como unidimensional, se ℓ2 / A >>> 1.
Se a grandeza aditiva é a massa, ℰ = M, resulta, da equação [2.61], a densidade
volumétrica de massa, usualmente chamada massa específica,
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 83
[2.64] VM = V =
∂ M∂ V∣ ... .
Para a quantidade de substância, ℰ = N, resulta da equação [2.61] a densidade volumétrica de
quantidade de substância, também chamada densidade volumétrica molar,
[2.65] ρVN = ρ̄V =
∂ N∂ V
∣ ( ...) .
De modo análogo às equações [2.64] e [2.65], tem-se a densidade superficial de massa,
[2.66] AM = A =
∂ M∂ A∣ ...
e a densidade superficial de quantidade de substância ou densidade superficial molar,
[2.67] AN = A =
∂ N∂ A∣ ... .
Também de forma análoga às equações [2.64] e [2.65], a densidade linear de massa é dada por
[2.68] LM = L =
∂ M∂ L∣ ...
e a densidade linear de quantidade de substância ou densidade linear molar é
[2.69] LN = L =
∂ N∂ L∣ ... .
Os valores locais e instantâneos das densidades espaciais - ρVℰ, ρA
ℰ e ρLℰ - são, no
caso geral, transientes ou dinâmicos, ρℰ = ρℰ(r, t). Nos termos das equações [2.51] a [2.53], estes
valores podem ser permanentes ou estáticos, ρℰ = ρℰ(r); uniformes, ρℰ = ρℰ(t); ou homogêneos,
ρℰ = cte. O valor de uma densidade espacial refere-se globalmente a uma extensão espacial
apenas se ele for uniforme ou homogêneo sobre tal extensão. Sendo esta região ocupada por um
objeto material Ø, este é o valor da densidade no objeto. Não obstante, frequentemente as
densidades espaciais de uma grandeza aditiva são definidas como a razão entre o valor globalℰ
da grandeza e o valor da extensão da região espacial que a contém - um volume, uma área ou um
comprimento. Por exemplo, é comum definir a densidade volumétrica de uma grandeza aditiva ℰ
como ρVℰ = /V. Este é, de fato, um valor médio, coincidente com os valores locais apenas sob aℰ
condição, explícita ou implícita, de que seja satisfeito o requisito de uniformidade ou de
homogeneidade.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 84
A densidade mássica de uma grandeza aditiva ℰ é definida como a razão entre os
valores desta grandeza e da massa do objeto que a contém. De forma análoga à equação [2.61],
tem-se
[2.70] εℰ = limM 0
ℰM= ∂ ℰ
∂ M∣ ... .
No processo de limite M 0, se ℰ = ℰ(M,....), exceto a massa M, os valores das demais variáveis
(…) são mantidos constantes. Similarmente, a densidade molar é definida com a razão entre o
valor da grandeza e o valor da quantidade de substância do objeto que a contém, ou seja,
[2.71] εℰ = limN 0
ℰN= ∂ℰ
∂ N∣ ... .
No processo de limite N 0, se ℰ = ℰ(N,....), exceto a quantidade de substância N, os valores
das demais variáveis (…) são mantidos constantes.
No entanto, os valores de ∂ /ℰ ∂M e ∂ /ℰ ∂N não são necessariamente locais, posto que
os respectivos processos de limite podem ocorrer num volume finito. Exemplo: no processo de
evacuação de um gás encerrado num recipiente de volume finito e invariante, os limites ℰ/M
quando M 0 e ℰ/N quando N 0 não são valores locais, mas valores globais associados ao
volume do recipiente. Os valores das densidades mássicas são, porém, necessariamente locais
se forem definidos em termos de razões entre os valores locais de densidades espaciais. Assim,
referida ao volume, para ter um valor local, a densidade mássica εℰ43 da grandeza ℰ deve ser
definida como
[2.72] εℰ ≙Vℰ
VM .
Pois, sendo locais e instantâneos os valores das densidades volumétricas ρVℰ e ρV
M , a sua razão é
também local e instantânea, ou seja, εℰ = εℰ(r, t). Similarmente, a densidade molar, usualmente
designada grandeza específica molar, se referida ao volume do objeto material elementar, é dada
pela razão
[2.73] εℰ ≙Vℰ
VN .
43 Usualmente, as grandezas específicas são representadas pelas letras minúsculas correspondentes às letras maiúsculas que representam as respectivas grandezas aditivas. Em alguns casos, essa regra não é observada em favor de outros símbolos consagrados pelo uso. O símbolo de uma variável molar traz uma barra sobre o símbolo da correspondente variável mássica.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 85
Assim definida, o valor da densidade molar é, também, local e instantâneo. Para fenômenos
físicos cuja representação é feita mediante objetos materiais bidimensionais, as densidades
mássicas e molares são referidas à área desses objetos, respectivamente,
[2.74] εℰ ≙Aℰ
AM e
[2.75] εℰ ≙Aℰ
AN .
Já para fenômenos cuja representação é feita mediante objetos materiais unidimensionais, as
densidades mássicas e molares são referidas ao comprimento destes, respectivamente,
[2.76] εℰ ≙Lℰ
LM e
[2.77] εℰ ≙Lℰ
LN
.
Independentemente da representação espacial dos objetos materiais, das equações [2.72], [2.74]
e [2.76] resultam valores da grandeza ℰ por unidade de massa; das equações [2.65], [2.75] e
[2.77], resultam valores da grandeza ℰ por unidade de quantidade de substância. De forma
análoga às densidades espaciais, os valores locais e instantâneos das densidades materiais são,
no caso geral, transientes ou dinâmicos. Para as densidades mássicas tem-se, por exemplo, εℰ =
εℰ(r, t). Alternativamente, eles podem ser permanentes ou estáticos, εℰ = εℰ(r); uniformes, εℰ =
εℰ(t); ou homogêneos, εℰ = cte. Apenas quando os valores das densidades materiais forem
uniformes ou homogêneos sobre a extensão do objeto material considerado, as equações [2.76] e
[2.77] têm os mesmos significados físicos, respectivamente, das equações [2.70] e [2.71] pois,
neste caso, estas últimas equações indicam, de fato, valores médios sobre a extensão espacial do
objeto material considerado.
Quando a grandeza aditiva é o volume, ℰ = V, da equação [2.72] resulta o valor local e
instantâneo da densidade mássica de volume ou volume específico,
[2.78] εV = = 1V
M =1V
.
Da equação [2.77] resulta o valor local e instantâneo da densidade molar de volume ou volume
específico molar,
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 86
[2.79] εV = = 1V
N =1V
.
De forma análoga, quando a grandeza aditiva é a área, ℰ = A, da equação [2.74] resulta o valor
local e instantâneo da densidade mássica de área ou área específica,
[2.80] εA = = 1A
M =1A
.
Da equação [2.75] resulta, agora, o valor local e instantâneo da densidade molar de área ou área
específica molar,
[2.81] εA = = 1A
N =1A
.
Finalmente, quando a grandeza aditiva é o comprimento, ℰ = L, da equação [2.76] resulta o valor
local e instantâneo da densidade mássica de comprimento ou comprimento específico,
[2.82] εL = = 1ρL
M = 1ρL
.
Da equação [2.77] resulta, agora, o valor local e instantâneo da densidade molar de comprimento
ou comprimento específico molar,
[2.83] ε̄L = ̄ =1ρL
N =1ρ̄L
.
O conjunto de designações e símbolos das grandezas específicas é apresentado na
Tabela 2.1.. Como indicado, algumas delas recebem também outras designações, consagradas
pelo uso. Nesta tabela, constam as dimensões dessas grandezas e suas unidades no Sistema
Internacional.
Tabela 2.1. Grandezas específicas. Densidades. Unidades SI.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 87
Grandezas EspecíficasDensidades espaciais Símbolo Dimensão Unidades SI
densidade volumétrica
da grandeza extensiva ℰ ρ
Vℰ
ℰ
L -3
[
ℰ] / m3
de massa*) ρ
VM
M L -3
k
g / m3
de substância ρ
VN
N L -3
k
mol / m3
densidade superficial
da grandeza extensiva ℰ ρ
Aℰ
ℰ
L -2
[
ℰ] / m2
de massa ρ
AM
M L -2
k
g / m2
de substância ρ
AN
N L -3
k
mol / m2
densidade linear
da grandeza extensiva ℰ ρ
Lℰ
ℰ
L -1
[
ℰ] / m
de massa ρ
LM
M L -1
k
g / m
de substância ρ
LN
N L -1
k
mol / m
Densidades materiais Símbolo Dimensão Unidades SIdensidade mássica
da grandeza extensiva ℰ εℰ
ℰ
M -1
[
]ℰ / kg
de volume**)
L
3 M -1
m3 / kg
de superfície L
2 M -1
m2 / kg
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de comprimento
L M -1
m
/ kg
densidade molar
da grandeza extensiva ℰ ℰ
N -1
[
ℰ] / kmol
de volume***) L3 N-1
m3 / kmol
de superfície L2 N-1
m2 / kmol
de comprimento L N-1
m
/ kmol Uso mais comum: *) massa específica; **) volume específico mássico; ***) volume específico molar.
Grandezas Intensivas – Campos Termodinâmicos
Uma grandeza física, G = , é dita intensiva se os seus valores forem intrinsecamente
locais e instantâneos,
[2.84] = ( r, t) .
Uma grandeza intensiva pode ser de natureza escalar, vetorial ou tensorial. Os seus valores
definem um campo; a distribuição espaço-temporal desses valores é o perfil do campo; o seu
valor local e instantâneo, a intensidade de campo, pode ser qualquer número real, - ∞ < { } < + ∞.
Há campos cuja ação vai além da extensão do objeto material que o origina, estando
presente também em locais de seu espaço circundante44. Tal são os casos, por exemplo, de um
campo elétrico e de um campo gravitacional. A Fig. (2.4) mostra o intensidade local do campo
gravitacional, = g(r), criado por uma esfera de raio R com massa homogeneamente distribuída.
44 Pode-se dizer que um campo representa a modificação causada por um objeto material no espaço que ocupa e naquele que o circunda. O espaço não é, portanto, uma vazio geométrico inerte, mas um objeto físico de estrutura complexa. No âmbito de uma teoria macroscópica da Termodinâmica, de caráter fenomenológico, não se cogita sobre a natureza deste objeto.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 89
Figura 2.4. Intensidade do campo gravitacional no interior e no exterior de uma esfera homogênea de raio R.
Algumas grandezas intensivas têm significado físico apenas sobre a extensão de um
objeto material. A velocidade, a temperatura e a pressão são exemplos deste tipo de grandeza.
Os seus valores existem apenas em locais sobre a extensão de um objeto material Ø, vale dizer,
cada valor local está sempre associado a um objeto material elementar ,⊘
[2.85] = ( r, t) = ( r⊘, t) = ( ⊘, t) , ⊘ ∈ Ø.
O campo de atuação de uma grandeza intensiva é, no caso geral, transiente ou
dinâmico, = ( r, t). Alternativamente, o campo pode ser permanente ou estático, = ( r);
uniforme, = ( t); ou homogêneo, = cte. É possível associar a um objeto material Ø um único
valor de uma grandeza intensiva apenas se o respectivo campo de atuação for uniforme, caso em
que = ( Ø, t), ou se ele for homogêneo, quando, então, = ( Ø).
Dado que tanto as grandezas intensivas quanto as grandezas específicas têm valores
locais e instantâneos, em que os seus respectivos conceitos as diferencia? Em certa medida, é
arbitrária a caracterização de determinadas grandezas como intensivas, pois elas poderiam ser
também caracterizadas como grandezas específicas. Por exemplo, usualmente considerada uma
grandeza intensiva, a velocidade pode ser considerada uma densidade mássica de quantidade de
movimento. Similarmente, a segunda potência da velocidade pode ser considerada a densidade
mássica de energia cinética. Como será visto mais adiante, há uma clara distinção conceitual se
consideradas as situações em que distintos objetos materiais encontrem-se em mútuo equilíbrio.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 90
0
g(r)
R r
Tal como na situação de coexistência de fases distintas de uma dada substância. Essa situação
de equilíbrio é caracterizada pela igualdade dos valores das grandezas intensivas [temperatura e
pressão, no exemplo] entre os objetos, embora possam ser desiguais os valores das grandezas
específicas[24] [no exemplo: volume específico, massa específica, energia interna específica].
Grandezas Extensivas
Uma grandeza física G = λℰ é dita extensiva se uma função λ(r, t) que multiplica o
valor de uma grandeza aditiva ℰ em cada região elementar de uma região espacial, igualmente
multiplica o valor da grandeza referente à totalidade desta região de uma região espacial. Assim,
se cada região elementar é uma fração infinitesimal desta região, tem-se
[2.86] ∫0
ℰ
λ dℰ = λ ∫0
ℰ
dℰ = λ ℰ .
Esse requisito de extensividade é satisfeito apenas quando a função λ é espacialmente invariante,
ainda que possa variar em relação ao tempo, λ = λ(t). Vale dizer, a função λ deve ser uniforme
sobre a extensão espacial considerada. Tipicamente, a função λ(r, t) representa uma grandeza
intensiva ou uma grandeza específica. Em particular, quando λ = 1, a equação [2.86] redunda a
equação [2.57].
Satisfeito o requisito de extensividade, o produto λ ℰ expressa também uma grandeza
global aditiva. De acordo com as definições adotadas, não são equivalentes os conceitos de
extensividade e de aditividade45, pois uma grandeza física aditiva é extensiva apenas sob a
circunstância particular da uniformidade da função λ(r, t), enquanto toda grandeza física extensiva
é aditiva.
Por vezes, caracteriza-se como extensiva a grandeza física cujos valores são iguais
frações do seu valor global para iguais frações do volume ou da massa do objeto material. Como
visto, porém, este critério de divisibilidade aplica-se apenas sob condições de uniformidade da
densidade volumétrica ou da densidade mássica da grandeza considerada. Quando, então, ele é
equivalente ao requisito de extensividade. Obviamente, tal equivalência não é sempre satisfeita.
Bastante mais adiante, neste texto, serão introduzidas as grandezas entalpia, energia livre de
Gibbs e energia livre de Helmholtz, aqui genericamente representadas por , ℰ definidas sob a
forma geral
45 Outros autores[27] adotam conceitos diversos para a aditividade e a extensividade.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:55 91
[2.87] ℰ = ℰA + λ ℰB ,
onde ℰA e ℰB representam distintas grandezas aditivas e λ representa uma grandeza de
campo. A grandeza λ ℰB e, por consequência, a grandeza serão ℰ aditivas e, neste caso,
também extensivas apenas se for satisfeito o requisito de extensividade. Por exemplo, para
uma região espacial ocupada por um objeto material, se ℰA = U representa o valor global e
instantâneo da energia interna, ℰB = V o valor global e instantâneo do volume e λ = p o valor
local e instantâneo da pressão, apenas se este valor for uniforme sobre a extensão do objeto a
expressão U + p V representa o valor global e instantâneo de sua entalpia H.
Propriedades e Estado
Uma grandeza física que seja atributo de um objeto material é designada propriedade
desse objeto ou de seu material constituinte, G = ∏, se o seu valor refere-se à totalidade de sua
extensão espacial ou de sua extensão material46. O comportamento de uma propriedade é dito
permanente ou estático se este valor é temporalmente invariante; e transiente ou dinâmico se,
pelo contrário, ele varia no decurso do tempo.
Nestas circunstâncias, uma grandeza local (intensiva ou específica) é caracterizada
como uma propriedade apenas quando o seu valor for uniforme sobre a extensão do objeto.
Temperatura, pressão e massa específica, por exemplo, são ditas propriedades de um objeto
material apenas se tal requisito for satisfeito. Pelo contrário, uma grandeza global (aditiva ou
extensiva) é, sempre, propriedade do objeto, pois o seu valor refere-se, por definição, à totalidade
de sua extensão. Por exemplo, o volume é uma propriedade do objeto; a massa é propriedade de
sua matéria constituinte; existe um valor da entalpia (energia interna mais o produto do volume
pela pressão) apenas se o valor da pressão for uniforme sobre a extensão do objeto material.
O valor de uma propriedade, obtido por medição, deve ser referido ao instante desta e deve ser
independente de medidas realizadas em outros instantes, assim como do instrumento de
medida e de outros objetos presentes no seu ambiente circundante[26]. Por exemplo, a
velocidade média de translação de um objeto material, definida como a razão entre o seu
deslocamento entre duas posições espaciais e o intervalo de tempo transcorrido, não é uma
propriedade do objeto, pois o seu valor depende de medições realizadas em instantes distintos.
No entanto, se o intervalo temporal é infinitesimal, o valor limite da razão entre os valores do
deslocamento e do intervalo de tempo, quando este tende a anular-se, é local e instantâneo. A
46 Propriedade: aquilo que é próprio, particular. Fosse admitida a possibilidade de variação do valor de uma propriedade sobre a extensão do objeto material, tal denominação seria semanticamente inconsistente.
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velocidade instantânea de translação é uma propriedade do objeto.
Por estado designa-se a condição de um objeto material definida pelo conjunto dos
valores instantâneos de todas as suas propriedades. O estado ⵟ de um objeto material é, pois,
determinado ou determinável apenas num instante ou numa sucessão de instantes em que sejam
uniformes os valores das grandezas locais utilizadas para sua descrição; quando, então, estas
grandezas são propriedades do objeto. Dois ou mais estados de um objeto material são idênticos
se determinados por conjuntos idênticos dos valores instantâneos de todas as suas propriedades.
Formulada em termos de suas propriedades, a descrição de um objeto material é
menos abrangente do que aquela em que são especificados também atributos gerais do objeto,
ou seja, do que aquela que também compreende atributos não quantificáveis e que sequer são
grandezas físicas. O estado de um objeto material é, portanto, uma representação parcial e
quantificável de sua condição geral; que pode ser expressa em termos matemáticos.
No contexto de tal representação, prescrever arbitrariamente valores para algumas
das propriedades implica estabelecer os valores das demais. Vale dizer, a prescrição dos valores
destas propriedades define o estado do objeto. Por esta razão, elas são chamadas propriedades
independentes da representação, também designadas grandezas de estado, variáveis de estado
ou parâmetros de estado. O conjunto de propriedades independentes define o que também se
designa um sistema (termodinâmico) de coordenadas – ou a base de um dada representação
termodinâmica.
Um dado conjunto de grandezas físicas é composto pelas propriedades independentes de certa
representação de um objeto material se a prescrição de um valor para qualquer delas não
implica estabelecer o valor de qualquer outra propriedade deste conjunto; e se a prescrição de
valores de todas elas implica necessariamente estabelecer os valores das demais propriedades
do objeto.
Agora, a equação [2.28] aplica-se à representação de um objeto material Ø formulada
em termos de m atributos relevantes. Se tais atributos são propriedades do objeto, o seu estado
ⵟØ é perfeitamente determinado ou determinável pelo conjunto [...ℂ ] dos valores das n (n < m)
propriedades independentes da representação. Dado que estes valores podem variar no decurso
do tempo, tal estado é instantâneo. Genérica e simbolicamente, tem-se
[2.88] ⵟ Ø = ⵟ Ø (t) = ⵟ (Ø, t) ≙ [..., ℂ ∏i (Ø, t), ...] , i = 1, n; n < m ,
em que ∏i denota o valor instantâneo da i-ésima propriedade independente da representação. De
forma similar à equação [2.29], para os valores das propriedades dependentes há m-n relações
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 93
funcionais, genérica e simbolicamente expressas por
[2.89] ∏j (Ø, t) = ∏j [..., ∏i (Ø, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m.
Aqui, ∏j denota o valor instantâneo da j-ésima propriedade dependente da representação. Estas
relações são chamadas equações de estado ou funções de estado. Deve-se ter em conta que, na
equação [2.89], pode-se permutar as variáveis, de modo que qualquer propriedade dependente
pode passar a ser independente e vice-versa.
Por exemplo, num objeto material monofásico constituído por uma massa M de um gás sujeito
a interações termomecânicas, a evidência experimental sugere que são propriedades
independentes duas dentre as propriedades: volume, V, pressão, p, e temperatura, T. Segue,
da equação [2.89], que a terceira é propriedade dependente, determinada mediante uma
equação de estado, ou seja, T = T [M, V, p], p = p [M, V, T] ou V = V [M, p, T]. Como será visto
adiante, a forma desta relação é estabelecida empiricamente, com base em resultados de
medição, ou como resultado deduzido da adoção de modelos ad hoc. O modelo do gás ideal é
um destes.
Objetos materiais elementares encontram-se, sempre e intrinsecamente, num certo
estado, local e instantâneo. Pois, por definição, os valores instantâneos de todas as grandezas
físicas locais que são atributos destes objetos referem-se a sua totalidade espacial ou material.
Ou seja, todas estas grandezas são também propriedades do objeto material elementar.
Assim, numa representação formulada em termos de m propriedades relevantes, o
estado local e instantâneo ⵟ⊘ de um objeto material elementar ⊘ é perfeitamente determinado ou
determinável pelo conjunto [...ℂ ] dos valores locais e instantâneos de suas n (n < m) propriedades
independentes. Genérica e simbolicamente, tem-se
[2.90] ⵟ⊘ = ⵟ⊘ (t) = ⵟ (⊘, t) = ⵟ (r⊘, t) = [..., ℂ ∏i (r⊘, t), ...] , i = 1, n ,
em que ∏i denota o valor local e instantâneo da i-ésima propriedade independente do objeto
material elementar. Complementarmente, os valores das propriedades dependentes são dadas
por m-n relações funcionais, genérica e simbolicamente representadas por
[2.91] ∏j (r⊘, t) = ∏j [..., ∏i (r⊘, t), …] , i = 1, n; j = n+1, m,
onde ∏j denota o valor local e instantâneo da j-ésima propriedade dependente. Ao estado local e
instantâneo ⵟ(⊘, t) = ⵟ(r⊘, t) de um objeto material elementar ⊘ corresponde um conjunto
inequívoco dos valores locais e instantâneos das propriedades relevantes da representação.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 94
No âmbito fenomenológico, as funções de estado são geralmente construídas sobre
base empírica, a partir de dados experimentais, ou mediante modelos ad hoc que idealizam
representações parciais e simplificadas do comportamento do objeto ou do seu material
constituinte. Mediante uma função de estado o valor de uma dada propriedade dependente, num
dado instante, pode ser determinado a partir do valores das propriedades independentes, neste
mesmo instante. Não importa, então, quais foram os processos que trouxeram o objeto ao estado
em que se encontra num dado instante. Não obstante, para os chamados materiais com memória
a função de estado requer também informação sobre estados assumidos em instantes anteriores
ao atual. Na formulação aqui desenvolvida, não se cogita das transformações que ocorrem em
tais materiais.
Transformação: Processo e Mudança de Estado
Ocorre uma transformação num objeto material quando há alteração de sua condição
corrente. Vale dizer, uma transformação ocorre se há variação na especificação de atributos do
objeto. Uma transformação resulta numa mudança de estado quando há variação dos valores de
grandezas físicas dentre aquelas que definem o estado do objeto, ou seja, dentre aquelas que são
suas propriedades. Vale dizer, uma mudança de estado é o resultado de uma transformação
entre condições bem definidas, caracterizáveis como estados do objeto.
Processo é a designação dada ao curso de uma transformação que leva um objeto
material de determinado estado inicial a um certo estado final. No curso de uma transformação, os
valores instantâneos das propriedades aditivas do objeto permanecem sempre determinados ou
determináveis. Não se mantém, porém, sobre a extensão do objeto, a uniformidade dos valores de
grandezas intensivas ou específicas. Por exemplo, numa transformação no curso da qual varia o
volume de um gás, o valor deste pode ser medido a cada instante; ao longo da extensão espacial
ocupada pelo gás, porém, o valor da pressão deixa de ser uniforme e o valor da massa específica
pode deixar de sê-lo, de modo que, sem que haja valores únicos que lhes possam ser associados,
estas grandezas não são, nestas circunstâncias, caracterizáveis como propriedades do objeto.
Não se aplica, portanto, a equação [2.88] nem é válida a equação [2.89]. Também não se aplica o
conceito de grandeza extensiva pois, se a função λ(r, t) representa uma destas grandezas,
também não é válida a equação [2.86]. Nestes termos, como construir a representação analítica
de um processo?
Referido a um objeto material elementar constituinte do objeto, o processo é a
sucessão de estados que tal objeto assume no curso de uma transformação que o leva do estado
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 95
inicial, comum a todos os demais objetos materiais elementares, até o estado final, também
comum a todos. Os processos percorridos pelos objetos elementares são, porém, em geral
distintos entre si. Como conclusão, a implicação é que a variação dos valores das propriedades
dependentes não é afetada pelo curso do processo ao qual cada objeto material elementar esteve
de fato submetido.
Para ilustração, estende-se o exemplo acima, no qual uma dada massa de gás é conduzida de
um estado inicial, com volume Vi e pressão pi , a um estado final, com volume Vf e pressão pf .
Nestes estados, a massa do gás está homogeneamente distribuída sobre os respectivos
volumes e, de acordo com a equação de estado, T = T [M, V, p], os respectivos valores da
temperatura estão também determinados.
Considere-se, então, que o gás está submetido a uma ação de compressão num conjunto
cilindro-pistão – ver Figura 2.5. O pistão é impelido na direção do fundo do cilindro, de modo
que a distância entre a superfície interna deste e a superfície do fundo do cilindro é uma função
do tempo, ou seja, ℓ = ℓ(t). Para cada instante, a multiplicação da distância ℓ pela área A
daquelas superfícies equivale ao volume V, ocupado pelo gás no instante considerado, V = V(t)
= ℓ . A. No curso desta ação, medidas da pressão, feitas simultaneamente por instrumentos
com suficiente resolução em distintos locais ao longo de uma reta perpendicular àquelas
superfícies, indicam valores decrescentes da pressão, da face interna do pistão ao fundo do
cilindro. Na figura, estes valores são representados, de forma simbólica, para diferentes
instantes entre aquele que corresponde ao estado inicial i da massa de gás e aquele em que o
estado final f então se estabelece. Em cada instante, não há um único valor da pressão que
possa ser associado à massa de gás. Ou seja, para a totalidade da massa do gás é impossível
descrever analiticamente o curso do processo.
Imagine-se, então, objetos materiais elementares de mesma massa e, em cada estado inicial
ou final, de mesmo volume – uma mesma fração da massa do gás e uma mesma fração do
volume ocupado pelo gás, Vi e Vf, respectivamente. Segue que, de acordo com a equação de
estado, T = T [M, V, p], os respectivos valores da temperatura estão também determinados. No
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i0 V
p
i
f
f
curso da ação de compressão, cada objeto material elementar está submetido a um processo
bem definido, ou seja, cada processo corresponde a uma sequência bem definida de valores
da pressão e do volume. A circunstância notável é que, para o conjunto de objetos materiais
elementares, são entre si idênticos os seus estados iniciais e os seus estados finais, embora
sejam entre si distintos os processos a que tais objetos foram submetidos. A conclusão é,
então, que a variação dos valores das propriedades dos objetos materiais elementares, entre o
estado inicial e o estado final, é independente do curso específico do processo a que cada um
destes foi submetido. Esta variação corresponde àquela do objeto material macroscópico.
Considerando, então, da diferenciação da equação [2.89] ou [2.91], resulta a variação
infinitesimal do valor da j-ésima propriedade dependente,
[2.92] dΠj =∑i=1
n ∂Πj
∂Πi∣ (...) dΠi , j = n+1, m ,
em que, nas derivadas parciais, exceto para a propriedade ∏i, mantêm-se constantes os valores
das demais propriedades independentes, (…). Agora, como esta variação independe do curso da
transformação, a diferencial d∏j é exata. Caso em que, para uma transformação que conduza o
objeto material de um estado ⵟ1 a um estado ⵟ2, a variação do valor da propriedade ∏j é dada por
[2.93] ∫1
2
d Πj = Πj ,2 −Π j ,1 = ΔΠj , j = n+1, m .
Matematicamente, a condição necessária e suficiente para que d∏j seja uma diferencial exata é a
igualdade das derivadas parciais mistas – teorema de Schwarz. Ou seja,
[2.94]∂2 Π j
∂Πk ∂Π i=
∂2 Π j
∂Πi ∂Πk, i = 1, n; k = 1, n; k ≠ i; j = n+1, m.
Recorde-se que quaisquer n propriedades dentre as m que compõem a representação podem ser
tomadas como variáveis independentes. De modo que as equações [2.92] a [2.94] são gerais,
válidas qualquer propriedade. Na equação [2.94], é indiferente a ordem de diferenciação.
Como será tratado adiante, de especial interesse é a representação do estado e da
mudança de estado de um objeto material feita mediante m propriedades, sendo duas das quais
independentes. A equação [2.91] assume a forma:
[2.95] ∏j = ∏j [ ∏1, ∏2 ] , j = 3, m ,
enquanto, da equação [2.94], segue
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 97
[2.96]∂2 Π j
∂Π2 ∂Π1=
∂2 Πj
∂Π1 ∂Π2, j = 3, m.
Neste caso, demonstra-se que, entre as derivadas parciais, é válida a relação
[2.97] (∂ Π j∂Π 1
) Π2(
∂ Π1∂Π 2
) Π j(
∂ Π2∂Π j
) Π1= − 1 , j = 3, m.
Antonio MacDowell de Figueiredo - 2. Fundamentos - 28/03/11- 21:28:56 98
Parte II: FORMULAÇÃO
Antonio MacDowell de Figueiredo - Parte II: FORMULAÇÃO - 28/03/11- 21:28:56 99
Parte III: APLICAÇÃO
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Antonio MacDowell de Figueiredo - Parte III: APLICAÇÃO - 28/03/11- 21:28:56 100
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Índice RemissivoAmontons, G..................................43Ar........................................................
Ar deflogisticado, oxigênio............37Ar fixo, dióxido de carbono.........36p.Ar flogisticado, azoto, nitrogênio 36p.Ar inflamável, hidrogênio..............38Ar perfeito, ar de fogo, ar vital.......36
Becher, J.J.......................................35Black, J...........................................36Cavendish, H..................................36Combustão..........................................
Explicações metafísicas......................Terra combustível............................35yin - yang.........................................35
Flogístico...........................................Conceito...........................................36Teoria...............................................37
Descartes, R....................................30Energia................................................
Conservação.......................................Princípio..........................................12
Entropia..............................................Crescimento.......................................
Princípio..........................................12Espaço.........................................51p.
Área................................................53Comprimento.................................53Volume...........................................54
Fahrenheit, D.G..............................44Galeno, C........................................38Galileo Galilei..........................31, 41
Grandezas físicas............................75Dimensão.......................................76Especificação.................................76Grandezas de estado.......................93
Helmont, J.B. van...........................36Interações............................................
Relação causal................................11Kelvin, Lord.....................................7Lavoisier, A.-L...............................37Leonardo da Vinci..........................28Lomonosov, M.V...........................36Macquer, P.J...................................37Massa substantiva...........................60Matéria............................................51
Massa.............................................58Massa substantiva...........................60Quantidade de substância...............60
Metodologia........................................Causa-e-efeito................................32Experimentum crucis......................30Hipótese científica..........................31Sistema ideal isolado......................33
Newton, I........................................32Objeto Material...............................64
Atributos........................................64Atributos relevantes.........................65
Objeto Material Elementar.............69Condição local e instantânea...........71
Philon..............................................39Philon de Bizantium.......................35
Pressão................................................Barômetro......................................41
Priestley, J......................................37Rutherford, D..................................36Sagredo, G.F...................................41Santoro Sanctorius..........................40Scheele, K.W..................................36Sistema...............................................
Ideal...............................................33Isolado............................................33
Stahl, G.E.......................................35Temperatura........................................
Conceito.........................................39Sensação de quente ou frio.............38Termometria.............................38, 40Termômetro........................................
Escala Fahrenheit............................45Escala termométrica........................40Pontos fiduciais...............................42Pontos fixos.....................................42Propriedades termométricas............39Substâncias termométricas..............42
Termoscópio..............................39pp.Tempo.......................................51, 55
Cronometria...................................55Duração...........................................55Intervalo...........................................55
Termodinâmica...................................Escopo............................................23Objeto...............................................8
Torricelli, E....................................41Warltire, J.......................................37
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