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Teresa Robichez de Carvalho A antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo Tribunal Federal Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Direito da PUC-Rio. Orientadora: Nadia de Araujo Rio de Janeiro, março de 2006.

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Teresa Robichez de Carvalho

A antecipação terapêutica de parto na hipótese de

anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes

Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo

Tribunal Federal

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio.

Orientadora: Nadia de Araujo

Rio de Janeiro, março de 2006.

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Teresa Robichez de Carvalho

A antecipação terapêutica de parto na hipótese de

anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes

Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo

Tribunal Federal

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Nadia de Araújo

Orientadora

Departamento de Direito - PUC-Rio

José Ribas Vieira

Departamento de Direito – PUC-Rio

Cláudio Pereira de Souza Neto

Universidade Federal Fluminense

José Pontes Nogueira

Coordenador Setorial do Centro de Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 08 de março de 2006.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Teresa Robichez de Carvalho

Formada em Direito pela Universidade Federal Fluminense; Especialista em Ética Aplicada e Bioética pelo Instituto Fernandes Figueira.

Ficha Catalográfica

Carvalho, Teresa Robichez de

A antecipação terapêutica de parto na hipótese de

anencefalia fetal : estudo de casos do Instituto Fernandes

Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo

Tribunal Federal / Teresa Robichez de Carvalho ;

orientador: Nadia de Araújo. – Rio de Janeiro : PUC,

Departamento de Direito, 2006.

122 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.

Inclui referências bibliográficas.

1. Direito – Teses. 2. Direito Constitucional. 3. Bioética. 4. Anencefalia Fetal. 5. Interpretação Constitucional. I. Silva, José Roberto Gomes da. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

CDD: 340

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Agradecimentos

Agradeço à PUC-Rio, CAPES e FAPERJ, pelos auxílios concedidos, sem os

quais este trabalho não poderia ter sido realizado.

À minha orientadora Nadia de Araujo pelos ensinamentos, estímulo e confiança

que possibilitaram a elaboração deste estudo.

Ao Professor José Ribas Vieira pelo apoio e conhecimento compartilhado

durante todo o curso.

Ao professor Cláudio Pereira de Souza Neto pela participação na Comissão

Examinadora.

E a todos que de forma direta ou indireta me auxiliaram.

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Resumo

Carvalho, Teresa Robichez de. A antecipação terapêutica de parto na hipótese de anencefalia fetal: estudo de casos do Instituto Fernandes Figueira e a interpretação constitucional do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro, 2006. 122p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A interpretação constitucional é objeto freqüente de reflexão da doutrina

jurídica contemporânea, a ocorrência de conflito entre normas vigentes e uma

ampliação do caráter principiológico dos textos constitucionais exigem uma nova

proposta metodológica na interpretação da Carta Magna. A proposta de

permissão legal para antecipação terapêutica de parto em caso de anencefalia

fetal foi formulada como estudo de caso devido a sua repercussão nos diversos

setores da sociedade brasileira. A racionalidade laica utilizada pelos ensinos da

Bioética é essencial para a construção de argumentos legítimos no processo

deliberativo. Os dados empíricos do Instituto Fernandes Figueira comprovam a

especialidade deste tipo de gestação, impondo uma análise interdisciplinar na

qual os conhecimentos jurídicos recebem o complemento teórico da área

médica. Esta interligação dos campos científicos acarreta uma dinâmica no

estudo do Direito, não podendo mais ser este entendido como um sistema

fechado de normas. O conflito de valores fundamentais envolvidos no estudo de

caso e a provocação de uma solução judicial a respeito remetem a um

questionamento sobre a função constitucional do Supremo Tribunal Federal e

seu papel dentro do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave Interpretação Constitucional; Princípios; Bioética; Anencefalia.

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Abstract

Carvalho, Teresa Robichez de. The therapeutical anticipation of childbirth in case of fetal anencephaly: study of cases of the Instituto Fernandes Figueira and the constitucional interpretation of Tribunal de Justiça of Rio de Janeiro and Brazilian Supreme Federal Court. Rio de Janeiro, 2006. 122p. MSc. Dissertation - Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The constitutional interpretation is frequent object of reflection of the legal

doctrine contemporary, the occurrence of conflict between effective norms and a

magnifying of the importance of principles in the texts constitutional demands a

new proposal of methodic in the interpretation of the Constitution. The study of

case formulated, the proposal of legal permission for therapeutical anticipation of

childbirth in case of fetal anencephaly, its repercussion in the diverse sectors of

the Brazilian society. The laical rationality used by educations of Bioethics is

essential for the construction of legitimate arguments in the deliberative process.

The empirical data of the Instituto Fernandes Figueira prove the specialty of this

type of gestation, imposing a new analysis in which the legal knowledge receive

the complement theoretical from the medical area. This interconnection of the

scientific fields causes one dynamic study of the Law, not being able the

understood of the Law as a closed system of norms. The conflict of basic values

in the study of case and the provocation of a judicial solution sends to a

questioning on the constitutional function of the Brazilian Supreme Federal Court

and its paper on the Democratic State of Right.

Keywords Constitutional Interpretation; Principles; Bioethics; Anencephaly.

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SUMÁRIO 7

Sumário

1 INTRODUÇÃO .................................................................... 11

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA.......................... 14

2.1. SURGIMENTO DA BIOÉTICA........................................................................................14

2.2. BIOÉTICA E DIREITO ..................................................................................................19

2.2.1. Documentos Jurídicos Internacionais ...............................................................20

2.2.2. Documentos Jurídicos Nacionais ......................................................................26

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO ........................... 29

3.1. CONCEITUAÇÃO DO TERMO .......................................................................................29

3.2. ELEMENTOS BIOÉTICOS .............................................................................................33

3.3. ELEMENTOS JURÍDICOS..............................................................................................37

3.3.1. Documentos Jurídicos Internacionais ...............................................................38

3.3.2. Documentos Jurídicos Nacionais ......................................................................41

4 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ............................. 45

4.1. TEORIAS SOBRE A INTERPRETAÇÃO ...........................................................................45

4.1.1. O que é interpretar? ..........................................................................................45

4.1.2. Por que interpretar?..........................................................................................47

4.1.3. Como interpretar? .............................................................................................49

4.2. INTERPRETAÇÃO ESPECIFICAMENTE CONSTITUCIONAL .............................................51

4.3. TEORIA DOS PRINCÍPIOS .............................................................................................54

4.4. A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL NOS CASOS DIFÍCEIS. .......................................57

4.5. ASPECTOS DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA DE ROBERT ALEXY..................................64

5 ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO

PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL..................... 69

5.1. APRESENTAÇÃO DO ESTUDO DE CASO .......................................................................69

5.2. APORTE MÉDICO .......................................................................................................72

5.3. APORTE JURÍDICO ......................................................................................................78

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SUMÁRIO 8

5.4. O CASO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO....................................................................81

5.4.1. Coleta de dados empíricos: Instituto Fernandes Figueira ................................81

5.5. O CASO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL................................................................94

5.5.1. O Caso Gabriela Cordeiro ................................................................................94

5.5.2. A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54.....................96

6 CONCLUSÃO INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A

LUZ DO APORTE TEÓRICO ............................................... 104

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................. 115

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Foto de recém nascido anencéfalo .....................................................74

Figura 2. Ultrassonografia de feto anencéfalo....................................................75

Figura 3. Ultrassonografia em três dimensões de feto anencéfalo.....................75

Figura 4. Solicitação judicial para interrupção da gestação................................85

Figura 5. Concessão da autorização judicial ......................................................85

Figura 6. Documentos jurídicos constantes do prontuário médico .....................86

Figura 7. Tempo entre a solicitação e a autorização judicial ..............................91

Figura 8. Vitabilidade fetal..................................................................................92

Figura 9. Tempo de vida fetal ............................................................................92

Figura 10. Confirmação do diagnóstico..............................................................93

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A história ensina que a estirpe que num

povo se conserva melhor é aquela em que

a maioria dos homens tem um vivo senso

da comunidade, em conseqüência da

identidade de seus princípios habituais e

indiscutíveis, ou seja, devido a sua crença

comum.

Nietzsche

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INTRODUÇÃO 11

1 INTRODUÇÃO

A defasagem temporal entre as descobertas científicas e a elaboração de

normas jurídicas reguladoras da sociedade há muito é objeto de análise dos

estudiosos não só do Direito, mas de toda Ciência Social Aplicada.

Uma das respostas fornecidas a este problema é a elaboração de um novo

ramo da ética aplicada denominado de Bioética. Série de correntes de

pensamento, desenvolvida principalmente a partir da segunda metade do século

XX, a bioética lida com questões morais e filosóficas envolvendo as mais

diversas ciências. É um movimento acadêmico de natureza interdisciplinar que

nasce com a busca por respostas a questionamentos pertinentes a valores

tradicionais acerca do nascer, viver, adoecer e morrer no contexto histórico das

sociedades democráticas, pluralistas e secularizadas contemporâneas.

A interligação cada vez mais freqüente entre os conhecimentos

acadêmicos acarreta a necessidade dos agentes jurídicos se familiarizarem com

descobertas de outros ramos científicos, entre eles a medicina. Este

relacionamento é denominado por alguns autores de Biodireito cuja função é

relacionar os estudos bioéticos com as doutrinas jurídicas. Porém, a relação

entre os avanços científicos e as normas de conduta estabelecidas pelos

ordenamentos jurídicos ainda é primária, necessitando de uma discussão

metodológica sobre o tema. O Brasil depara-se com uma dificuldade ainda maior

- a problemática da injustiça e exclusão social. Convivemos com avanços

tecnológicos de ponta ao lado de situações de miséria social e sanitária

medievais. As discussões ainda persistentes juntam-se aos problemas

emergentes, levando a uma necessidade de identidade própria da bioética, e

conseqüentemente, do biodireito brasileiro.

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INTRODUÇÃO 12

A complexidade das organizações humanas contemporâneas acarreta

também outra problemática, qual seja o conflito entre os diversos valores morais

adotados e expressos concomitantemente no ordenamento jurídico vigente.

Diversas teorias buscam uma solução jurídica racional para a resolução destes

conflitos. Dentre elas a teoria da ponderação de princípios e a técnica

argumentativa como legitimadora das decisões judiciais que abrangem princípios

contraditórios quando da aplicação ao caso concreto.

A metodologia adotada utilizará: 1) a revisão bibliográfica sobre aspectos

da bioética relacionados à temática do aborto e sobre interpretação de textos

legais, especialmente constitucional; e 2) estudo de caso: antecipação do parto

em caso de anencefalia fetal, onde serão colhidos dados através da técnica de

aplicação de formulários no Instituto Fernandes Figueira.

O trabalho será dividido em três partes principais.

A primeira lidará com as questões teóricas sobre o tema. O capítulo um

será destinado a tecer algumas considerações sobre a bioética, desde o

surgimento deste ramo científico, passando pelas teorias metodológicas

atualmente utilizadas, até o seu relacionamento com a ciência jurídica. O

segundo capítulo tratará do aborto – considerações sobre a nomenclatura do

termo, aspectos bioéticos e jurídicos, inclusive com os documentos legais

externos e internos. E, por fim, o terceiro capítulo que analisará algumas teorias

sobre interpretação constitucional. O ato de interpretar uma norma jurídica,

especialmente uma Constituição, é uma atividade que tem como finalidade a

compreensão ou aclaração de seu texto objetivando sua aplicação ao caso

concreto. Tal atividade é essencial para que os valores elencados na Carta

Magna sejam concretizados nos casos propostos ao Poder Judiciário, cabendo

ao intérprete a busca de métodos e técnicas interpretativas capazes de

assegurar a observância dos princípios fundamentais ao Estado Democrático de

Direito.

A segunda parte deste trabalho proporá o estudo de caso da antecipação

terapêutica do parto de gestantes de fetos anencéfalos. O estudo proposto

enquadra-se perfeitamente nas problemáticas referidas anteriormente por

envolver valores e conceitos conflitantes, além de ser pauta atual de discussão,

não somente em nosso Tribunal Supremo, como na mídia e nos mais diversos

seguimentos da sociedade. O quarto capítulo buscará suporte teórico na ciência

médica a respeito da anencefalia, sobre o diagnóstico e prognóstico desta

deformidade. E dados empíricos sobre a gestação de fetos anencéfalos no

Instituto Fernandes Figueira. A metodologia adotada na pesquisa será a de

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INTRODUÇÃO 13

análise de prontuários objetivando o recolhimento de dados. A escolha do

Instituto Fernandes Figueira decorreu de sua especialização em gestações de

alto risco, inclusive de fetos anencéfalos, e pela alta qualificação de seus

profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.

As autorizações judiciais relativas aos casos analisados nesta pesquisa empírica

serão analisadas com o intuito de levantar os argumentos que fundamentaram

essas decisões. A seguir, será estudado ainda o histórico da antecipação

terapêutica do parto de anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, iniciado com

um Habeas Corpus e atualmente em pauta com uma Ação de Descumprimento

de Preceito Fundamental.

E a terceira parte, desenvolvida no capítulo quinto, relacionará as duas

anteriores, utilizando os aspectos teóricos para discutir o estudo de caso. A

intenção será demonstrar que a antecipação terapêutica de parto é uma das

hipóteses que demandam do aplicador do direito a busca constante pela

racionalização das decisões jurídicas, devendo estas ser submetidas ao crivo da

legitimidade dos argumentos adotados. A discricionariedade que os

ordenamentos jurídicos atuais fornece aos juízes não deve ser associada a uma

arbitrariedade, onde a decisão é carente de uma verificação objetiva de sua

fundamentação. Ronald Dworkin e Robert Alexy são apenas dois dos juristas

que têm como preocupação a valoração extrema dos princípios sem que haja

uma reflexão teórica sobre a aplicação dos mesmos.

À guisa de conclusão, ressaltada será a importância da interpretação

constitucional nos estados contemporâneos. O texto constitucional, como

paradigma legal dos ordenamentos jurídicos, deve estabelecer normas que

concretizem os valores primordiais da sociedade. Em vista da pluralidade de

princípios norteadores e da complexidade dos casos concretos que demandam

uma resposta judiciária não é mais suficiente uma aplicação do Direito

meramente subsuntiva, na qual cada lide deve ser enquadrada dentro de uma

determinada norma. As técnicas jurídicas não mais se iludem com a

possibilidade do legislador esmiuçar os textos normativos de forma a prever toda

e qualquer hipótese prática de conflito. O Supremo Tribunal Federal como

guardião da Constituição Federal deve atentar para a utilização da ponderação

de princípios e argumentação racional na fundamentação de suas decisões o

que possibilitará um controle participativo do povo e a manutenção de sua

legitimidade perante um processo decisório característico do Estado

Democrático de Direito.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 14

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA

2.1.Surgimento da Bioética

As descobertas científicas trazem consigo conseqüências muitas das

vezes desconhecidas por seu inventor. Sua rapidez na área biomédica torna

difícil o acompanhamento da totalidade de seu impacto na vida humana. A

sociedade contemporânea, por sua complexidade e diversidade, apresenta

novos conflitos e, conseqüentemente, busca novas metodologias científicas para

solucioná-los. Os aspectos negativos oriundos do progresso tecnológico devem

ser questionados e ponderados através de um diálogo interdisciplinar.

Apesar de encontrarmos uma preocupação ética na ciência médica desde

a época de Hipócrates e seu juramento perpetrado até os dias atuais, esta ética

era somente direcionada para a relação médico-paciente. Nas sociedades

tribais, os atos dos “curandeiros” eram regrados por um conjunto de valores. O

Código de Hammurabi (lei de talião): prevê a amputação da mão do médico que

matar ou prejudicar fisicamente um paciente nobre1. E o supra citado Hipócrates,

através de seu juramento, estabelecia três parâmetros principais: os dois

princípios de não maleficência e de beneficência, consoante com a visão do

caráter sagrado da vida humana, e a obrigação do médico de honrar e, se

necessário, sustentar seus mestres.

A junção destas preocupações com outros ramos de conhecimentos foi

proposta pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter que empregou

o neologismo "Bioética" pela primeira vez em um artigo publicado em 1970. E,

posteriormente, em 1971, publicou o seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the

Future. Van Potter, em sua visão global da humanidade, defendia a importância

das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida e se preocupava com a

1 O referido código trata do salários dos médicos juntamente com outros ofícios

como o de veterinário, arquiteto e bateleiro. Rege o seu artigo 218: “Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.”. Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm em 02.01.2006.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 15

sobrevivência do planeta. A proposta de Van Potter era edificar uma ponte entre

elementos aparentemente separados: a ciência e a humanidade. O conceito de

bioética de Van Potter é explicado em seu livro supra citado da seguinte forma:

“Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”2 O Prof. Tristran Engelhardt leciona Ética na Universidade do Texas e diz

que: “A Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um

instrumento para a negociação pacífica das instituições morais.”3

A Enciclopédia de Bioética ensina que: ”Bioética é o estudo sistemático

das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta e

políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma

variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar”4.

A partir daí, o conceito de Bioética foi rapidamente difundido e passou a

integrar também os aspectos médicos, ou seja, como ética aplicada ao campo

da medicina e da biologia.

A posterior consolidação da Bioética coincide com as conquistas referentes

aos direitos humanos. Por tal razão, é retomada a preocupação mundial com

questões éticas, desenvolvendo a eticidade das pesquisas com sujeitos

humanos como um de seus principais focos de atenção.

Inicialmente este termo denotava a preocupação ética com o equilíbrio e a

preservação dos seres humanos com seu ambiente ecológico. Desde então,

diversas correntes de pensamento têm oferecido instrumentos metodológicos no

sentido de sistematizar e totalizar os conhecimentos nesta área. Este talvez seja

o maior problema da bioética contemporânea: a pretensão de reunir toda a

verdade em seu modo de ver, enquanto seria mais útil buscar respostas aos

desafios de cada dia.

A atualidade da temática é explicada se considerarmos que os avanços

médicos obtidos por volta da metade do século XX produziram mudanças

drásticas nos cuidados com a saúde. Hodiernamente nos deparamos com

indagações sobre a moralidade do aborto, da eutanásia, da engenharia genética,

da alocação de recursos no setor da saúde, da venda de órgãos, entre outras.

2 POTTER, V., Bioethics. Bridge to the future, 1971, p. 2. 3 ENGELHARDT JR, H., Manuale di Etica, 1991, p. 19. 4 REICH, W.T. Encyclopedia of Bioethics, 1995.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 16

Três teorias foram propostas objetivando resolver os conflitos bioéticos

surgidos.

A primeira denominada de Bioética dos Limites surge com o Código de

Nüremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964-2000). Esta teoria visa

regulamentar a experimentação em humanos baseada no princípio do

consentimento livre e esclarecido e nos direitos naturais e inalienáveis das

pessoas. Considera que existe uma “periculosidade intrínseca” do saber-fazer

tecnocientífico não só em período de guerra (nazismo), mas também em período

de paz (as pesquisas mencionadas). Tal reflexão origina a criação dos Comitês

de Ética em Pesquisa (1973, US National Commission for the Protection of

Human Subjects and Behavioral Research) e de Relatórios (1974, Belmont

Report).

A segunda pode ser denominada de Bioética dos novos dilemas morais.

Também acarreta a criação de Comissões de Ética como a God Commission

(Seattle, 1962) e a Harvard Ad Hoc Commission on Brain Death (Boston, 1968).

Aborda questões como: quais são os critérios pertinentes de morte para uma

intervenção clínica moralmente legítima? Quais são os critérios de justiça

distributiva que devem ser adotados em situações de recursos finitos e

escassos? Considera que o papel da bioética não consiste em impor limites, mas

sim, em indicar soluções normativas para os problemas que surgem na pesquisa

e na prática clínica, tendo em conta as tradições culturais e o contexto histórico.

E por fim, a Bioética Analítica dos Casos Concretos. Concepção que faz

surgir a bioética com o neologismo bioethics (Potter, 1970), a criação do Institute

of Society, Ethics and the Life Sciences por D. Callahan e W. Gaylin (1969, hoje

conhecido como Hasting Center, a criação da Society for Philosophy and Public

Affairs (1971) e o Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human

Reproduction and Bioethics (1971). Considera a Bioética pertencente ao âmbito

das Éticas Aplicadas, adotando a análise racional e imparcial dos conflitos e

propondo soluções no contexto de sociedades multiculturais.

Diversas metodologias são apresentadas como instrumental para

refletirmos sobre essas questões, como por exemplo: utilitarismo, principialismo,

kantismo ou da obrigação, a ética do caráter, individualismo liberal, da

responsabilidade, comunitarismo e a casuística. Cada teoria abordará as

indagações éticas de uma forma distinta, e, muitas das vezes, apresentará

soluções diferentes ao mesmo dilema.

No âmbito deste trabalho será adotada a corrente principialista,

regulamentada pelo Relatório Belmont. Esta escolha foi influenciada pelo

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 17

reconhecimento de sua importância e eficácia no meio bioético e sua

aproximação com teorias jurídicas.

O Relatório Belmont5 decorreu de uma combinação de fatores, dentre eles

a crescente reflexão ética sobre a pesquisa com seres humanos e a ocorrência

de diversos escândalos envolvendo pesquisadores. Foi então criada a Comissão

Presidencial de Proteção dos Seres Humanos para elaborar um relatório que

tinha como objetivo se tornar um protótipo para outros tantos documentos no

sentido de assegurar que as pesquisas envolvendo seres humanos sejam

conduzidas de maneira ética.

O referido relatório, promulgado em 18 de abril de 1978, estabelece três

princípios como relevantes para as pesquisas com seres humanos, embora não

exclua que em certos casos podem ser aplicados mais princípios.

O primeiro princípio é o da autonomia e do respeito pelas pessoas, o qual

estabelece que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, há a

necessidade do consentimento informado do participante e deve ser protegida a

pessoa que por qualquer razão tenha sua autonomia diminuída.

O segundo princípio é o da beneficiência, segundo o qual os participantes

da pesquisa devem ser beneficiados pela mesma, não bastando sua anuência

ou a não ocorrência de danos.

E o último princípio estipulado neste documento é o da justiça, onde se

prima pela distribuição igualitária dos benefícios da pesquisa, rejeitadas

quaisquer discriminações na utilização dos resultados obtidos.

Beauchamps e Childress sistematizaram a teoria principialista6. Para

estes autores:

“Os princípios (e coisas do gênero) nos orientam para certas formas de comportamento; porém, por si mesmos, eles não resolvem conflitos de princípios. Enquanto a especificação promove um desenvolvimento substantivo da significação e do escopo das normas, a ponderação consiste na deliberação e na formulação de juízos acerca dos pesos relativos das normas.”7

5 O texto atualizado do relatório foi obtido através do endereço eletrônico:

www.fda.gov 6 Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os

princípios propostos encontram aplicação nos diversos conflitos bioéticos enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 18

O modelo pensado por Beauchamps e Childress pauta-se em quatro

princípios basilares, foi acrescentado o da não-maleficiência aos princípios

estabelecidos em Belmont. Segundo esta linha de raciocínio, o princípio da não-

meleficiência seria caracterizado pela máxima: O pesquisador não deve infringir

mal ou dano no desenvolvimento da pesquisa, enquanto que o princípio da

beneficiência adotaria como pilares as noções de impedir que ocorram males ou

danos e sanar os mesmos caso aconteçam8.

Beauchamp & Childress desenvolveram teorias para iluminar a prática

empírica e determinar o que deve ser feito, utilizando a experiência para testar,

corroborar e revisar teorias. Buscam uma estratégia dialética que procura

coerência entre julgamentos particulares e gerais utilizando a ponderação e

priorização de normas através da deliberação e formulação de juízos acerca dos

pesos relativos das normas.

Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os

princípios propostos encontram respaldo em diversos conflitos bioéticos

enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser

analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste

estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão

confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à

permissão legal da antecipação do parto em caso de anencefalia fetal.

Outro princípio que usa a ponderação é o princípio utilitarista9 o qual rege

que a melhor resposta ética é aquela oriunda da ponderação entre a ação e sua

conseqüência. Então: “o ato correto em cada circunstância é aquele que produz

o melhor resultado global, conforme determinado por uma perspectiva impessoal

que confere pesos iguais aos interesses de cada uma das partes afetadas.”10 O

problema deste princípio é sua aplicação pura ou absoluta, pois, tal modelo de

pensamento, adota uma noção de justiça baseada no abstrato conceito da

7 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica, 2002, p. 49. 8 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 212. 9 Nos fundamentos de sua estrutura, o utilitarismo encara um indivíduo como a

expressão da utilidade, da satisfação, do prazer, da felicidade ou do desejo de realização. Alguns representantes desta corrente de pensamento podem ser citados como Jeremy Bentham que sugeriu uma forma de quantificar a utilidade em 7 critérios: Intensidade, Duração, Certeza, Proximidade, Fecundidade, Pureza, Extensão; e John Stuart Mill o qual acredita que as pessoas são motivadas pela promessa de felicidade, através do sucesso ou do dinheiro.

10 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 62 – 63.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 19

maioria. Contudo, conforme ressalta John Rawls, o que é bom para a maioria

das pessoas não o é necessariamente para todos. 11

Diante do exposto, a bioética é um instrumental essencial para o debate de

questões morais levantadas na realidade atual, somente sendo possível o

diálogo racional se entendidos seus princípios e interdisciplinaridade. Essa

última característica nos leva ao próximo ponto – a relação entre a bioética e os

ordenamentos jurídicos.

2.2. Bioética e Direito

A ciência jurídica tem como objetivo regular as relações sociais e

estabelecer regras de conduta para os indivíduos. Assim sendo, clara é sua

importância nesta discussão a respeito dos limites que devem ser propostos aos

avanços científicos. A busca pelo saber muitas das vezes esquece a célebre

frase de Kant que o ser humano não pode ser utilizado como mero instrumento e

sim como fim em si mesmo12.

Tal preocupação ficou patente no século XX onde se assistiu a um

extraordinário processo de expansão e universalização da proteção internacional

dos direitos humanos, que passaram a ser reconhecidos como tema de legítimo

interesse internacional, especialmente após as atrocidades cometidas durante a

Segunda Guerra Mundial.

Juristas e filósofos voltaram seu interesse para a conceituação e

classificação dos direitos humanos. A busca histórica de valores e conceitos é

pertinente ao momento constitucional dos Estados, na visão pós-positivista onde

o direito e sua finalidade – a dignidade humana – não mais podem ser

separados. O professor Ingo Sarlet nos orienta nesse sentido:

“(...) a história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem”.13

11 RAWLS, J. Uma teoria da justiça, 1981. 12 CHAUÍ, M., Convite à filosofia, 1997, p. 346. 13 SARLET, I., A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 1999, p. 36.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 20

Após ter o mundo tomado conhecimento das atrocidades cometidas em

nome da ciência pelos nazistas por ocasião da II Guerra Mundial, os diversos

segmentos sociais reuniram esforços no sentido de elaborar limites a estas

pesquisas e práticas, a fim de assegurar a integridade e dignidade das pessoas,

incluídos os casos de participação em pesquisas biomédicas.

O chamado Biodireito busca relacionar dois campos de conhecimento: o

direito e a bioética. Esta nomenclatura é relativamente nova e ainda muito

criticada principalmente pelos bioticistas que consideram não haver

propriamente um biodireito, mas sim, áreas de intercessão entre essas duas

ciências distintas.14 No âmbito deste estudo o termo biodireito será empregado

significando a preocupação dos operadores do direito, doutrinariamente ou

judicialmente, em delimitar através de documentos normativos a ação de

pesquisadores e demais envolvidos, tendo por fim, evitar abusos que poderão

advir.

2.2.1.Documentos Jurídicos Internacionais

Os documentos jurídicos internacionais relacionados com a bioética

surgem nesse contexto. Esses serão divididos em duas partes. A primeira trará

os documentos jurídicos gerais, compreendendo, sobretudo, os tratados

internacionais. Já a segunda parte elencará alguns documentos jurídicos

pertinentes a países específicos.

Dentre os documentos de maior relevância no âmbito internacional de

bioética estão: o Código de Nüremberg (1947); a Declaração Universal dos

Direitos Humanos (1948); Pacto de São José (1949); a Declaração de Helsinki

(1964)15; O Relatório Belmont (1978); as Diretrizes Internacionais para Revisão

Ética de Estudos Epidemiológicos (1991); Declaração Universal Bioética

(2005).16

O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três

pessoas - vinte das quais, médicos - que foram consideradas criminosas de

guerra, pelos brutais experimentos realizados em seres humanos. Em 19 de

14 O próprio Conselho Federal de Medicina já utiliza este termo realizando,

inclusive, um simpósio com tal tema no ano de 2000. 15 Revisada em Tóquio (1975), Veneza (1983), Hong Kong (1989), Somerset West

(1996) e Edimburgo (2000) 16 Outros documentos internacionais, de cunho principalmente de direitos

Humanos, poderiam ser mencionados, porém no âmbito deste trabalho foram destacados apenas os estritamente relativos à bioética. Para a obtenção de outros sugere-se: www.un.org.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 21

agosto de 1947 divulgou as sentenças, além de um documento que ficou

conhecido como Código de Nuremberg.

O Código estabelecia17: 1) o consentimento voluntário e informado do ser

humano participante de qualquer experiência científica sem qualquer intervenção

de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de

restrição posterior; O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do

consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um

experimento ou se compromete nele; 2) O experimento deve produzir resultados

vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos

de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou

desnecessariamente; 3) O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar

todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais; 4) Não

deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para

acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez,

quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento; 5) O grau de

risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o

pesquisador se propõe a resolver; 6) O experimento deve ser conduzido apenas

por pessoas cientificamente qualificadas; 7) O participante do experimento deve

ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento e 8) O pesquisador deve

estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer

estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do

experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os

participantes.

Sete acusados foram condenados à morte. Este documento tornou-se um

marco, pois, foi o primeiro a estabelecer recomendações internacionais sobre os

aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos.

Em 1948 é aprovada uma das declarações internacionais mais amplas e

relevantes para a luta em prol dos Direitos Humanos: A Declaração Universal

dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Este documento é um dos mais

importantes no plano jurídico internacional devido a sua amplitude de proteção.

A declaração preocupou-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos

individuais, conforme assevera Celso Ribeiro Bastos18. Primeiro os direitos

pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Segundo os

direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, de asilo,

17 Íntegra do texto foi obtida no site:

http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/nuremb1.htm 18 BASTOS, C., Curso de Direito Constitucional, 2000, pg.174-175.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 22

de livre circulação e de residência e de propriedade. Terceiro as liberdades

públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e

religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação. Quarto direitos

econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à

educação.

O pensador italiano Norberto Bobbio19 diz que: "A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre". A Associação Médica Mundial desenvolveu em 1964 a Declaração de

Helsinque como um documento de princípios éticos, para fornecer orientações

aos médicos e outros participantes de pesquisas clínicas envolvendo seres

humanos. Foi revisada nos anos de 1975; 1983; 1989 e 2000. Nos dizeres de

Débora Diniz e Marilena Côrrea a declaração ”representou a tradução e a

incorporação, pelas entidades médicas de todo o mundo, dos preceitos éticos

instituídos pelo Código de Nuremberg, definindo uma base ética mínima

necessária às pesquisas e aos testes médicos com seres humanos (...)”20.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada e aberta à

assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos

em 22 de novembro de 1969, originou o Pacto de São José da Costa Rica21.

Direitos fundamentais são elencados juntamente com garantias processuais para

sua concretização como a proibição de decretar-se a prisão civil do depositário

infiel, duplo grau de jurisdição e a possibilidade de apelação em liberdade.

As Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres

Humanos de 1991 elaboradas em Genebra tratam respectivamente: 1)

Consentimento Informado Individual; 2) Informações Essenciais para os

Possíveis Sujeitos da Pesquisa; 3) Obrigações do pesquisador a respeito do

Consentimento Informado; 4) Indução a participação; 5) Pesquisa envolvendo

crianças; 6) Pesquisa envolvendo pessoas com distúrbios mentais ou

comportamentais; 7) Pesquisa envolvendo prisioneiros; 8) Pesquisa envolvendo

19 BOBBIO, N., A Era dos Direitos, 1992, p. 34. 20 DINIZ, D., CORRÊA, M., Por uma análise crítica da proposta de modificação da

Declaração De Helsinki, 2000, p. 2. 21 Este pacto foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro através do

Decreto nº 678 / 92 e no tocante ao aborto estabelece uma norma importante em seu artigo 4º, qual seja, de que toda a pessoa tem o direito à vida, e que este direito deve ser protegido a partir da concepção.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 23

indivíduos de comunidades subdesenvolvidas; 9) Consentimento informado em

estudos epidemiológicos; 10) Distribuição eqüitativa de riscos e benefícios; 11)

Seleção de gestantes e nutrizes como sujeitos de pesquisa; 12) Salvaguardas à

confidencialidade; 13) Direito dos sujeitos à compensação; 14) Constituição e

responsabilidades dos comitês de revisão ética e 15) Obrigações dos países

patrocinador e anfitrião.

A Declaração Universal Bioética é fruto de uma Reunião Internacional da

qual participaram 90 países, dentre eles o Brasil. A referida declaração já em seu

a artigo primeiro estabelece seu escopo: trata das questões éticas

relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias associadas

quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta suas dimensões

sociais, legais e ambientais. E é dirigida aos Estados. Quando apropriado e

pertinente, ela também oferece orientação para decisões ou práticas de

indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas.

Com o intuito de apenas destacar alguns pontos serão trazidas normas de

diversos países, ora privilegiando a quantidade, ora o qualitativo de tais

documentos jurídicos.

A Inglaterra possui dois documentos relevantes nesta perspectiva. O

primeiro trata da clonagem humana, prevendo expressamente ser um ato para

proibir a colocação em uma mulher de um embrião humano que fosse gerado de

outra maneira que não seja pela fertilização. Já o segundo lida com

experimentos e procedimentos científicos relacionados com embriões e

gametas. Alguns aspectos importam ser salientados como, por exemplo, a

definição expressa de quem é a mãe (a mulher que está carregando ou carregou

uma criança em conseqüência de colocar nela um embrião ou o esperma, e

nenhuma outra mulher, é tratada como a mãe da criança) 22 e quem é o pai (a

outra parte da união será tratado como o pai da criança, a menos que,

demonstre que não consentiu na utilização do embrião ou esperma para

inseminação) 23. Ademais este mesmo ato estabelece alguns casos de

permissão de interrupção da gravidez, são eles: (a) a gravidez não excedeu sua

vigésima quarta semana e que a continuação da gravidez envolveria o risco,

maior do que se a gravidez for terminada, de ferir a saúde física ou mental da

Fonte: http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/decreto/1990-1994/anexo/andec678-92.pdf acesso em 01.02.2006.

22 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 27. Fonte: http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 24

mulher grávida ou de algumas crianças existentes de sua família; (...) (d) que há

um risco substancial que a criança sofreria sérios riscos físicos ou anomalias

mentais. Ressaltamos nestas duas hipóteses a previsão de risco mental da

gestante e a ocorrência de anomalias mentais do feto.

A Itália também elaborou dois documentos: um tratando da coleta de

dados e informação consciente do paciente e o segundo sobre a proteção da

mãe e da criança. Este segundo rege que a interrupção voluntária da gravidez

não pode ser confundida com procedimentos de controle da natalidade,

atribuindo ao Estado e agências locais de saúde o dever de informar as

gestantes sobre seus direitos jurídicos e sociais na área da saúde.

Em Portugal destaca-se a proibição da clonagem e utilização científica de

embriões. O Decreto 135/VII de 1997 proíbe a criação ou utilização de embriões

para fins de investigação ou experimentação científica. No entanto, aceita a

investigação quando esta tenha como único propósito beneficiar o embrião. E, a

segunda norma jurídica é a Lei sobre Técnicas de Procriação Assistida,

promulgada pelo Parlamento em Julho de 1999, proíbe a clonagem reprodutiva e

criminaliza a sua utilização.

A Espanha possui um amplo número de documentos jurídicos bioéticos

regendo: fecundação assistida e material genético24, transplantes25,

medicamentos26, responsabilidade civil e penal dos profissionais de saúde27.

Na Finlândia a investigação médica é regida pela Lei da Investigação

Médica (1999). Segunda a mesma, os embriões excedentes dos tratamentos de

fertilização podem ser utilizados para investigação, desde que os doadores

tenham dado o seu consentimento por escrito. Porém, decorrido o prazo de 15

anos, os óvulos e o têm de ser destruídos.

O ordenamento jurídico alemão promulgou a Lei de Proteção do Embrião

(Embryonenschutzgesetz), que entrou em vigor em Janeiro de 1991, só permite

o diagnóstico ou análise de um embrião para seu próprio benefício e com o

objetivo de implantar este embrião individual no útero da respectiva mãe com

23 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 28. Fonte:

http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005. 24 Lei 35/1988 - Técnicas de reprodução assistida; Lei 42/1988 - Doação e

utilização de embriões e fetos humanos ou de suas células, tecidos ou órgãos; Real Decreto 412/1996 – estabelece protocolos obrigatórios de estudo dos doadores e usuários relacionados com as técnicas de reprodução humana; Real Decreto 415/1997 – Cria a Comissão Nacional de Reprodução Humana Assistida.

25 Lei 30/1979. 26 Circular 24/1997 – Disposições Gerais de Farmácia e Produtos Sanitários. 27 Lei orgânica 10/1995 – Código Penal.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 25

vista à gravidez e parto. Assim, a utilização de embriões na investigação médica

é ilegal na Alemanha.

O Equador possui uma normatização jurídica nesta área interessante.

Citam-se como documentos: lei de gestão ambiental, lei nº 3 sobre

biodiversidade (protege a Amazônia equatoriana e dispõe sobre os experimentos

com caráter medicinal), Código de Ética Médica - acordo nº 14660 – (proíbe a

eutanásia e o aborto sem fins terapêuticos para a mãe) e por fim, a lei de

transplante de órgãos (adota a morte cerebral28 como fator de decisão pra fins

de transplante).

Nas Filipinas ressaltam-se duas normas. A primeira estabelece regras para

as pesquisas e procedimentos genéticos. Neste documento privilegia-se a

informação consciente do paciente, estabelecendo uma série de critérios para a

obtenção do consentimento e até mesmo de desconsideração do mesmo, se não

atendidas as normas previstas. Na segunda norma jurídica denominada de Ato

da Medicina Tradicional e Alternativa de 1997 o qual visa criar o instituto filipino

do cuidado de saúde tradicional e alternativo, e, acelerar o desenvolvimento

deste tipo de tratamento no país.

A Argentina divide sua legislação em três âmbitos: o nacional, o provincial

e o municipal. No tocante à bioética existem diversos documentos jurídicos

argentinos, demonstrando uma abrangente preocupação com esta temática.

Tais documentos versam sobre alguns assuntos específicos, como por exemplo:

meio ambiente29, dados investigativos e privacidade30, direitos à saúde e ética

hospitalar31, direito de autodeterminação do paciente32, discriminação por razões

28 Estabelece, em seu artigo 2º, como critérios determinantes da morte cerebral: a)

coma irreversível; b) Ausência de respiração espontânea;c) Apnéia após dois minutos de parada do respirador; d) pupilas permanentemente midriátricas e arrefléxicas ao estímulo luminoso; e) Ausência de reflexos oculocefálico;f) Ausência oculovestibulares dos reflexos; g) Ausência da reflexão da farínge; e h) inatividade bio-elétrica verificado pelo encefalograma do eletro. A certificação será assinada pelos três membros do grupo médico.

29 Resolução 91/03: Biodiversidade; Decreto 1347/97: diversidade biológica; Pacto Federal Ambiental de 1993; Lei 24051: Resíduos perigosos; Lei 24.375/94: Ratifica o Convênio da Diversidade Biológica; Resolução 693/04: Alimentação e a Agricultura; Lei 25.670/02: proteção ambiental.

30 Decreto 200 / 97: Proíbe experiências de clonagem com seres humanos; Lei 23.236/ 00 e Lei 25.326 / 00: proteção de dados pessoais; Lei 25.457/ 01: direito à identidade; Lei 25.467/ 01: ciência, tecnologia e inovação; Resolução 415/04: Cria o registro de digitais genéticas; Lei 1.226/ 03: sistema de identificação do recém nascido e sua mãe; Lei 25.929 / 04: Direitos dos pais e da pessoa recém nascida.

31 Lei 24.742/ 96: Comitê Hospitalar de Ética; Decreto 426 / 98; Código de Ética / 01; Lei 4861 / 95: Comitês Hospitalares de Ética; Lei n° 3099 / 97: Bioética. Investigação, análises e difusão; Lei n° 6507/ 93: Comitês Hospitalares de Ética.

32 Lei 3076 / 97: Direitos do Paciente. Determinação.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 26

genéticas33, medicamentos34, sexualidade e reprodução35 e transplante de

órgãos36. Mas a postura Argentina em relação aos avanços científicos e éticos

ainda é muito acanhada, prevalecendo a visão tradicional e proibitiva de diversos

procedimentos.

Por fim, destaca-se que em alguns países ainda não há uma proteção

legislativa considerável sobre os problemas surgidos com os estudos bioéticos,

havendo apenas a preocupação com uma temática específica. São exemplos o

Chile (lei geral sobre o meio ambiente), a Colômbia (também possui uma lei

geral sobre meio ambiente), Costa Rica (lei sobre reprodução assistida e

transplante de órgãos), Peru (lei sobre biodiversidade e gestão ambiental),

Uruguai (lei de transplante de órgãos), Nova Zelândia (lei sobre meio ambiente e

biodiversidade), Índia (lei sobre biodiversidade e proteção dos fazendeiros e pela

diversidade na agricultura).

Diversos outros documentos ainda dependem de aprovação. Como é o

caso do projeto de lei francês que versa sobre a autodeterminação do paciente e

seu direito de morrer com dignidade37. Tal documento prevê em seu artigo 1º

que toda pessoa em condições de apreciar as conseqüências de suas escolhas

e os seus atos é único juiz da qualidade e a dignidade da sua vida bem como a

oportunidade de pôr termo à mesma.

2.2.2.Documentos Jurídicos Nacionais

No âmbito interno a temática bioética é de extrema novidade sendo tal fato

notado claramente nas previsões legais vigentes.

Vale salientar, primeiramente, a grande diversidade de normas jurídicas

sobre a temática do meio ambiente e sua proteção. A diversidade de subtemas

é enorme. São mais de 150 normas referentes à proteção ambiental, dentre elas:

Ação Civil Pública (Lei 7.347/ 85), Agrotóxicos (Lei 7.802/ 89), Área de Proteção

Ambiental (Lei 6.902/ 81), Atividades Nucleares (Lei 6.453/ 77), Crimes

33 Lei 421: Proteção contra a discriminação por razões genéticas. 34 Lei 25.649 e Resolução 326 / 02: Promovem a utilização de medicamentos pelo

seu nome genérico; Disposição 3598/ 02: Categorização de Estabelecimentos Assistenciais, Centros de Estudos de Bioequivalência / Biodisponibilidade.

35 Lei 25.673/02, 6433/96 e 418/00: Saúde Reprodutiva e Procriação Responsável. 36 Lei 24-193 / 1993: Transplantes de órgãos e material anatômico. 37 Por iniciativa de Pierre Biarnes esta proposta de lei foi depositada sobre o

escritório do Senado Francês em 26 de Janeiro de 1999 com as assinaturas de 55 outros senadores. Porém até hoje não foi aprovada.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 27

Ambientais (Lei 9.605/ 98), Engenharia Genética (Lei 8.974/ 95), Exploração

Mineral (Lei 7.805/ 89), Fauna Silvestre (Lei 5.197/ 67), Florestas (Lei 4771/ 65),

Gerenciamento Costeiro (Lei 7661/ 88), IBAMA (Lei 7.735/ 89), Parcelamento do

solo urbano (Lei 6.766/ 79), Política Agrícola (Lei 8.171/ 91), Política Nacional do

Meio Ambiente (Lei 6.938/ 81), Recursos Hídricos (Lei 9.433/ 97), Resoluções do

Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), Zoneamento Industrial nas

Áreas Críticas de Poluição (Lei 6.803/ 80). 38

Algumas matérias plúrimas também foram objeto de positivação pelo

ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas: O Decreto nº 914, de 6 de setembro

de 1993 que teve como objetivo instituir a Política Nacional para a Integração da

Pessoa Portadora de Deficiência; a Medida Provisória nº 2.126-11 sobre acesso

à Biodiversidade de 26 de abril de 2001; o Decreto 98.830 tece limitações para a

coleta, por estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil.

A Lei nº 9.787 de 10 de fevereiro de 1999, que embora tenha modificado

uma norma com aspectos gerais sobre vigilância sanitária, estabelece o

medicamento genérico e dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em

produtos farmacêuticos. A referida norma jurídica teve um impacto

impressionante na sociedade brasileira. Apesar das críticas sobre a qualidade

dos produtos propiciou uma maior possibilidade de aquisição de medicamentos

por camadas pobres da população brasileira;

Sobre engenharia genética temos as seguintes normas: Lei nº 8 501, de 30

de novembro de 1992; Lei nº 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei nº 9 434, de

04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos, regulamentos e

resoluções do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina,

inclusive o Código de Ética Médica. Entretanto, com a caracterização dos

direitos relativos ao genoma humano como direitos humanos pela UNESCO, tal

temática deve ser encarada utilizando um novo paradigma, qual seja, qualquer

discussão terá que observar os princípios e os direitos estabelecidos na

Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos.

A doação de órgãos é regulada pela Lei nº 10.211/01, dando nova redação

ao artigo 9º da Lei nº 9.434/97: Art. 9º. É permitido à pessoa juridicamente capaz

dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do corpo vivo para fins

terapêuticos ou transplantes em cônjuges ou parentes consangüíneos até o

quarto grau, (...), ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização

38 Fonte: www.senado.gov.br acesso em 17.10.2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 28

judicial,(...). Tal normatização é criticada, pois segundo alguns abrem caminhos

para a venda de órgãos humanos, falseada no aspecto de doação.

A pesquisa científica e médica envolvendo seres humanos também tem

sido objeto de regulamentação na maior parte das vezes através de resoluções

de órgãos ligados à ciência médica. Dentre elas: Resolução CNS39 196/96

(estabelece diretrizes e normas para pesquisa em seres humanos), Resolução

CNS 251/97 (estipula normas de pesquisa com novos fármacos, medicamentos,

vacinas e testes diagnósticos envolvendo seres humanos), Resolução CNS

303/00 (trata das pesquisas na área de reprodução humana), Resolução CFP40

016/00 (regula a pesquisa em psicologia com seres humanos), Resolução

HCPA41 01/97 (normatiza o uso de informações de prontuários e bases de

dados), Resolução CNS 347/05 (projetos com uso ou armazenamento de

material biológico). Ainda no tocante à pesquisa em 1992 oi editada a lei nº

8.051 que estabelece normas e limites para a utilização de cadáver humano que

não foi reclamado para fins de pesquisa e de ensino.

Por fim, a lei no 11.105 de 24 de março de 2005, conhecida como a Lei

Nacional de Biossegurança. Este dispositivo estabelece normas de segurança e

mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos

geneticamente modificados e seus derivados; cria o Conselho Nacional de

Biossegurança (CNBS) e reestrutura a Comissão Técnica Nacional de

Biossegurança (CTNBio). A referida lei tece inicialmente uma série de

conceituações, dentre elas o de organismo geneticamente modificado, sendo

este: qualquer organismo cujo material genético (ADN ou ARN) tenha sido

modificado por qualquer técnica de engenharia genética. Um dos pontos

fundamentais deste texto normativo é a preocupação com a fiscalização das

pesquisas envolvendo tais organismos e técnicas, prevendo a lei a

obrigatoriedade de aprovação de todo projeto de pesquisa por comitês de ética

em pesquisa. Outra importante previsão é expressa no artigo 5o da lei 11.105 o

qual permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco

embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e

não utilizados no respectivo procedimento.

39 Sigla referente ao Conselho Nacional de Saúde. 40 Sigla referente ao Conselho Federal de Psicologia 41 Sigla referente ao Hospital de clínicas de Porto Alegre o primeiro que adotou

esta medida de confidencialidade e que depois foi adotada em âmbito nacional.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 29

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO

3.1.Conceituação do Termo

A linguagem pode ser entendida como instrumento de comunicação inter-

pessoal. No exercício de comunicação é possível distinguir alguns elementos:

um emissor, um receptor, uma mensagem que se procura transmitir e um código

compartilhado pelos interlocutores. O desafio é justamente que o receptor

perceba a significação da mensagem do emissor. Os problemas e disparidades

causados pelos ruídos ou mesmo a utilização de jogos interpretativos no

emprego da comunicação têm direcionado diversos ramos do conhecimento a

seu estudo.

Guibourg, Ghigliani e Guarinoni definiram linguagem como um conjunto de

signos e símbolos organizados em uma estrutura mais ou menos orgânica com

funções determinadas, de forma que a linguagem constitui um sistema de

símbolos que servem à comunicação. Assim, tendo em vista que toda ciência é

um conjunto de enunciados, sua expressão é constituída através de uma

linguagem pré-fixada42.

A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no

processo de comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e

pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de

forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se

com a construção tecnicamente coerente das frases em determinado idioma. Na

semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos

por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a

pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja,

o contexto em que os termos são empregados. 43

42 GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 19. 43 Ibid., p. 33.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 30

Quanto à semântica é importante destacar a questão da definição. O ato

de definir pode ser entendido como explicar um conceito com outro conceito.

Toda definição demarca um campo de significado. Normativamente algumas

definições são importantes para por fim às dificuldades da doutrina,

uniformizando e continentalizando um quadro semântico ou ainda para reduzir a

instabilidade de termos que estão na linguagem comum. Nesse último caso há o

problema da linguagem técnica usada para suprir a instabilidade de termos

comuns, mas esse uso técnico importa em uma nova dificuldade, qual seja, pode

prejudicar a compreensão e afastar os destinatários finais.

As definições legais geralmente são aclaratórias44. No âmbito jurídico o

estudo dos problemas relacionados à linguagem é prioritário à medida que as

proposições jurídicas que norteiam as condutas de determinada sociedade

devem ser precisas em suas definições e conceitos. Somente obedecemos ou

seguimos as normas inteligíveis. Ou pior, um entendimento errôneo sobre

determinada norma poderá acarretar, inclusive, o seu descumprimento. 45

O aborto é disciplinado pelo sistema jurídico pelos artigos 124 a 128 do

Código Penal, tendo como tutela jurídica o direito à vida do feto. O legislador

penal não definiu o que seria o aborto, relegando esta tarefa aos intérpretes.

Diversos são os entendimentos sobre esta palavra, destacaremos apenas os

propostos pelos doutrinadores jurídicos e a definição dos profissionais da saúde.

Etimologicamente o vernáculo aborto é de origem latina, decompondo-se

em ab (privação) e ortus (nascimento). França Limongi, em sua Enciclopédia de

Direito, diferencia os termos aborto, abortamento e aborticídio. Esse último

segundo o autor é um neologismo empregado por Saraiva significando a morte

da criança dada à luz antes do tempo, independente da causa desta

antecipação. O termo aborto diferencia-se pela finalidade de sacrificar o feto. Já

abortamento seria o ato de abortar, gerando o produto aborto.

Para Ronald Dworkin “aborto significa matar deliberadamente um embrião

humano em formação”. 46

A definição proposta por De Plácido e Silva em seu vocabulário Jurídico é

a seguinte: “Aborto. Expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do

parto.” 47 Já Heleno Fragoso em suas Lições de Direito Penal salienta a origem

44 ALCHOURRÓN, C., BULYGIN, E. Análisis lógico y derecho, 1991, p. 448. 45 Alchourron e Bulygin destacam a diferença crucial entre as definições de caráter

oficial e as meras definições privadas. Ibid., p. 441. 46 DWORKIN, R. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003. p.1. 47 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, 1987, p. 11.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 31

cristã deste termo, in verbis: ”Deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo

o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente,

homicídio”48. Dois são os elementos básicos para a conceituação jurídica

doutrinária do aborto: a retirada prematura do feto do ventre materno, tendo

como conseqüência, sua morte.

A prática de abortamento é punida penalmente por ser considerada uma

espécie de homicídio, sendo excluídas da punibilidade legal apenas duas

hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, quais sejam: o aborto

necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto

emocional ou ético em caso de gravidez resultante de estupro.

No tocante à definição médica de aborto serão utilizadas três nuances: a

idade gestacional, a capacidade sensitiva e a intenção da gestante. Diversas

outras classificações são feitas pela doutrina, tanto jurídica como médica, como

ressaltado na obra da professora Maria Helena Diniz que traz ainda a

classificação quanto ao consentimento (sofrido – sem consenso da gestante,

consentido – realizado com a anuência da gestante e procurado – se a gestante

for o agente principal). 49

A primeira classificação utiliza como parâmetro conhecimentos obstétricos

em razão da formação do embrião. Segundo Antonio Jorge Salomão:

“Considera-se aborto a expulsão ou a extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação.” 50 O autor supra citado fornece ainda alguns critérios de classificação para o

abortamento, são eles: a idade gestacional (a OMS divide os abortos em

precoce – antes da 12ª semana - e tardio – entre a 12ª e a 20ª semana); o peso

fetal (aborto - menor que 500g, imaturo – entre 500g e 999g e prematuro – entre

1000g e 2500g); forma (espontâneo – quando não há nenhum fator precipitante

do quadro) e induzido (quando ocorreu ação deliberada para interromper a

48 FRAGOSO, H. Lições de Direito Penal, 1986, p. 107. 49 DINIZ, M. O estado atual do biodireito, 2002. p. 33. 50 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara

Neme, 1994. p. 363.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 32

gestação) e quadro clínico (ameaça, inevitável, incompleto, completo e retido ou

frustrado). 51

A segunda classificação considera como fator importante o momento que o

feto passa a sentir dor. Segundo Ronald Dworkin é a partir do sétimo mês de

concepção que o feto desenvolve a capacidade reflexiva quando inicia a

atividade elétrica do cérebro no tronco cerebral. E a sensação de dor somente

seria possível após a conexão entre o tálamo e o neocórtex fetal, o que embora

ainda não esteja determinada com precisão, acredita-se não ocorrer antes da

metade do período gestacional.

A terceira classificação dos diversos tipos de abortos é elaborada segundo

o entendimento bioético e pode ser depreendida da seguinte forma: 52

1) Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de aborto

ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se

interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente,

sugere-se o praticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando

mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra

geral, a IEG processa-se contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a

abortar;

2) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos ocorridos em

nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para

salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço científico e

tecnológico ocorrido na medicina, os casos de ITG são cada vez em menor

número, sendo raras as situações terapêuticas que exigem tal procedimento;

3) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de aborto ocorridos

em nome de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação

pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que justificam as

solicitações de ISG são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina,

sendo o exemplo clássico o da anencefalia;

4) Interrupção voluntária da gestação (IVG): referem-se à autonomia

reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a

gestação porque a mulher ou o casal não mais deseja a gravidez, seja ela fruto

51 Ibid., p. 363. 52 A classificação proposta é apresentada no livro editado pelo próprio Conselho

Federal de Medicina e de autoria de Diniz e Almeida. COSTA, S, OSELKA, G, GARRAFA, V. Iniciação à bioética, 1998.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 33

de um estupro ou de uma relação consensual. Muitas vezes, as legislações que

permitem a IVG impõem limites gestacionais à prática.

Note-se que a nomenclatura utilizada é a interrupção da gravidez e não

aborto. Tal fato tem como explicação a forte resistência e a preconceituação que

traz em si o termo. A bioética tem tentado analisar o assunto através do debate

racional livre. No ponto seguinte trataremos de forma mais aprofundada sobre as

questões bioéticas que envolvem o aborto.

3.2.Elementos Bioéticos

A problemática do aborto é considerada atualmente uma questão de saúde

pública. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) metade

das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No

Brasil, estatísticas demonstram que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja,

ocorrem, aproximadamente, 1,44 milhões de abortos espontâneos e inseguros

com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A gravidade da situação do

abortamento também se reflete no SUS. Apenas no ano de 2004, o número de

mulheres internadas para fazer curetagem pós-aborto foi de 243.988.53 Contudo,

o aborto envolve aspectos complexos da natureza humana: vida, sexualidade e

religião.

Diante de tal quadro, a bioética tem um papel importante na discussão das

questões referentes à moralidade do aborto. Há cada vez mais a tentativa de

avaliar racionalmente os argumentos contrários e favoráveis e submetê-los ao

crivo da justificação social.

A primeira dificuldade que surge no tratamento do aborto é a determinação

do início da vida e, a partir de que momento, se é que isso ocorre, o feto é tido

como pessoa54. A primeira possibilidade considera a fecundação como o ponto

inicial, a Igreja Católica e os pensamentos mais conservadores adotam essa

teoria55. O preformismo, doutrina segundo a qual o indivíduo já estaria contido

plenamente no sêmen, também defendia a animação imediata só dependendo

do decurso do tempo para o desenvolvimento pleno do ser humano. Tal tese é

descartada atualmente. A epigênese defende o desenvolvimento biológico

53 Fonte: www.saude.gov.br acesso em 28.10.2005. 54 Sobre a noção jurídica e filosófica de pessoa e o biodireito vide XAVIER, E. A

bioética e o conceito de pessoa:a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa, 2000. 55 Embora São Tomás de Aquino, um dos importantes pensadores da teologia

católica, defendesse a tese de que a animação, ou seja, a junção do corpo com a alma,

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 34

gradual da pessoa. A lei biogenética proposta por Ernst Haeckel também propõe

a animação tardia do organismo humano. Neste sentido se destacam as

observações de Laurente Degos que estabelece algumas etapas importantes do

desenvolvimento fetal:

“1) O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São, portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. 2) Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. 3) Por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 bilhões de neurônios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurônios não têm atividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da atividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez. 4) 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebê a nascer pode viver de modo autônomo e independente.“ 56 57(grifos nosso)

Finalmente, há entendimentos de que o feto não é, em momento algum,

uma pessoa, somente adquirindo tal característica em sua vida extra-uterina.

Este posicionamento, embora radical, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio

que mesmo reconhecendo direitos ao nascituro somente considera pessoa

aquele ser que nasce com vida.

A segunda grande discussão bioética sobre o procedimento médico de

aborto é a relação materno-fetal58. Hodiernamente, com avanços tecnológicos

cada vez mais constantes, técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento intra-

uterino têm se tornado comuns. Há um questionamento sobre a autonomia da

ocorria no 40º dia para os fetos do sexo masculino e no 80º dia para os do sexo feminino.

56 DEGOS, L. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana, 2002, p. 21.

57 Interessante observar que segundo a resolução nº 1601/00 do Conselho Federal de Medicina o médico somente é obrigado a fornecer declaração de óbito de fetos com mais de 20 semanas ou 500 gramas. Antes desse prazo o feto morto é considerado material ou resíduo biológico.

58 Para o aprofundamento do tema vide Conflito materno-fetal? In DINIZ, Débora Diniz, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2004.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 35

gestante e seus direitos de consentir ou não com a realização desses

procedimentos. A relação entre esses dois indivíduos tão ligados também é

discutida no aborto. Posições radicais consideram o feto como mero órgão ou

organismo dentro do corpo da mãe, cabendo total arbítrio materno sobre o

mesmo. Contrariamente, outros consideram o feto como um indivíduo com

interesses e direitos. Sobre a relação entre o feto e a gestante escreve Ronald

Dworkin:

O feto “é dela (da gestante), e é dela mais do que qualquer outra pessoa porque

é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que

se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do

que qualquer outra pessoa tenha feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas

e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela como dizer que não está.” 59

Uma das mais importantes obras sobre o abortamento é a de Maurizio

Mori60. O autor além de considerar polêmica a afirmativa de que o feto é ou não

pessoa e, portanto, com direito à vida, oferece como questionamento se o direito

à vida de uma pessoa implica o direito de fazer uso do corpo da mulher para

continuar a viver. Neste ponto ele destaca a questão da autonomia da mulher

quanto à disposição de seu corpo.

Maurizio Mori também apresenta cinco momentos históricos de reflexão

sobre a permissão ou proibição do aborto.

No primeiro momento, predominava nas sociedades a permissão irrestrita

tendo como justificativa a visão de que o aborto era um ato de caráter

estritamente privado. Durante este período o feto era considerado como parte

integrante do corpo materno ou, como ressaltam alguns autores, parte das

vísceras da gestante.

A seguir, com o advento e propagação dos ideais cristãos, o aborto foi

severamente proibido, e a base doutrinária imposta considerava tal ato

pecaminoso e atentatório contra o matrimônio.

No terceiro momento persiste a proibição, porém a justificação muda.

Diversos ordenamentos jurídicos coíbem o aborto, estipulando-o crime contra a

pessoa, contra a geração, contra a sanidade e a integridade da estirpe, entre

outros.

59 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003, p. 77. 60 MORI, M., A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel da

mulher, 1997, p. 17-26.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 36

No início dos anos 60 a utilização de um medicamento chamado talidomida

acarretou, durante as primeiras fases da gravidez, uma série de anomalias

graves nos fetos. Então, a discussão volta sua atenção para a possibilidade de

legalização do aborto em casos de anomalias fetais severas.

Outro evento ocorre pouco após, em 1973, contribuindo para a legalização

do aborto – a decisão da Suprema Corte Americana no emblemático caso Roe x

Wade. A decisão judicial citada determinou que o feto, ou aquele ainda não

nascido, não pode ser considerado pessoa e, portanto, não seriam sujeitos

protegidos juridicamente e que as leis até então existentes no país proibitivas do

aborto violavam o direito constitucional à privacidade da mulher. Essa noção de

privacidade deve ser entendida no sentido de soberania quanto às decisões

particulares, e não como direito de utilizar livremente seu próprio corpo.

O último momento mencionado por Maurizio Mori diz respeito

principalmente aos países europeus. Segundo o autor atualmente a Europa tem

direcionado o debate no sentido de coibir os abortos clandestinos, encarando o

assunto como problema de saúde pública, e por isso, a legalização da prática

cresceu.

Algumas posições atuais podem ser destacadas quanto ao tema61. A

posição católica que condena qualquer tipo de aborto, inclusive o necessário à

sobrevivência materna. A postura do Movimento pela Vida oponente também à

prática, contudo, admite determinadas exceções. O movimento pela legalização

do aborto para a qual o aborto deve ser regulamento socialmente. E a posição a

favor da liberalização do aborto, segundo a qual este assunto é de âmbito

privado da mulher, e como tal, deve ser decidido exclusivamente pela gestante e

seu médico.

No ponto seguinte serão abordados os aspectos jurídicos do aborto. Serão

elencadas as principais leis internacionais e como o Brasil tem regulamentado a

questão, seja através de leis já promulgadas, seja por meio de projetos de leis

em tramitação nas Casas Legislativas.

61 Ibid., p. 30 – 31.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 37

3.3.Elementos Jurídicos

O aborto sempre constituiu uma prática comum em diversas sociedades.

Entretanto, o tratamento jurídico dispensado a este ato não encontra uma

uniformidade de regulamentação.

Inicialmente o aborto era visto de duas formas ou era considerado assunto

de cunho exclusivamente familiar, com algumas repercussões somente no direito

privado, ou um ato criminoso e passível de punição penal.

No direito penal hebreu o ato voluntário de abortar constituía um crime,

punível com pena de morte, sendo permitido apenas para resguardar a vida da

genitora. 62

No Oriente Médio e na Grécia Antiga, assim como os romanos,

consideravam o feto como parte das vísceras da mãe, cabendo a esta a decisão

sobre a continuidade da gravidez.

O Código de Hammurabi63, datado do século XXIII, previa em seu Capítulo

XI – Artigos 208 a 214 os crimes de agressão contra as mulheres gestantes que

tinham como conseqüência expelir o fruto de seu seio. As penas estipuladas

eram de indenização e sua quantificação dependia da origem da gestante: se

filha de um homem livre o valor era de 10 siclos de prata pelo fruto de seu seio e

se ocorreu a morte da mulher a pena era a morte da filha do homem que a feriu;

se era filha de um homem vulgar a indenização montava a 5 minas de prata, se

acarretou a morte, mais meia mina de prata; e por fim, se a gestante fosse

escrava o seu senhor receberia dois siclos de prata pela agressão e um terço de

uma mina de prata se o resultado foi o falecimento.

Na Idade Média, com a influência do direito canônico, a punição do aborto

tornou-se mais freqüente. Inicialmente considerado pelo clero um crime contra o

matrimônio, somente há poucas décadas a Igreja passou a considerar o aborto

um crime contra a vida64. Porém, a própria Igreja revelava entendimentos

confusos sobre a matéria. São Tomás de Aquino era contrário ao aborto, mas

admitia que o mesmo fosse feito antes do surgimento da alma o que ocorria em

40 dias após a concepção se homem e 80 dias se mulher. Os Dicastérios

Romanos, embora contrários ao aborto, hesitaram quando perguntados sobre a

62 Livro de Êxodo capítulo 21 versículos 22 e 23. 63 Fonte: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm 64 Conforme destaque de M. José Nunes: “Assim, a punição do aborto, durante os

seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava.” Fonte:

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 38

possibilidade em casos de inviabilidade de vida do nascituro. 65 A argumentação

de que o aborto seria o assassinato de um inocente foi formulada por Pio XI em

1930 através da Encíclica Casti Conubii. Mas é em 1968 que a Igreja demonstra

firmemente sua repugnância não só aos meios abortivos como também aos

meios artificiais de contracepção, através da elaboração da Encíclica Humanae

Vitae66. No mesmo ano foi elaborada a Carta Pastoral dos Bispos nórdicos a qual

dizia:

"Quando uma pessoa, por razões sérias e bem ponderadas não se convence pelos argumentos da encíclica (Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada em um documento não infalível. Que ninguém, pois, seja tido como mau católico pela única razão de discordar... Ninguém, nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência." 67

3.3.1.Documentos Jurídicos Internacionais

A postura proibitiva tem se perpetrado nas sociedades hodiernas. A seguir

serão expostas as previsões jurídicas em diversos países. 68

Em 72 países o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em caso

de risco de vida para a gestante, perfazendo o total de 26,1% da população

mundial, dentre eles: Afeganistão, Andorra, Angola, Antígua e Barbuda,

Bangladesh, Butão, Brunei, República da África-Central, Chile, Colômbia, Congo,

República Democrática do Congo, Dominica, República dominicana, Egito,

Gabão, Guatemala, Guiné-Bissau, Haiti, Honduras, Indonésia, Irã, Iraque,

Irlanda, Quênia, Quiribati, Laos, Lesoto, Líbia (requer notificação e autorização

parental), Madagascar, Malaui (requer autorização do esposo), Mali (permite

também em caso de estupro e incesto), Malta, Ilhas Marshall, Mauritânia,

República das Maurícias, México (também permite em caso de estupro),

Principado de Mônaco, Birmânia, Nicarágua (requer autorização do esposo),

Níger, Nigéria, Omã, Panamá (permite em caso de estupro e anomalia fetal),

http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.

65 Segundo Anjos a resposta do Dicastério foi: ”consultar autores sérios, sejam antigos ou recentes, e agir prudentemente.”

66 A íntegra da Encíclica pode ser obtida através do endereço eletrônico : http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_pvi_enc_25071968_humanae-vitae_po.html

67 Texto retirado do endereço eletrônico: http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 39

Papua Nova Guiné, Paraguai, Filipinas, São Marino, São Tomé e Príncipe,

Senegal, Ilhas Salomão, Somália, Siri Lanka, Sudão (permite em casos de

estupro), Suriname, Síria (requer autorização do genitor), Tanzânia, Togo,

Tonga, Suazilândia, Tuvalu, Uganda, Emikrados Árabes, Venezuela e Iêmen.

Em 35 países, 9,9% da população mundial, o aborto é permitido para

preservar a saúde física da mãe e para preservar sua vida, dentre eles: Brasil

(também permite em caso de estupro), Argentina (também permite em caso de

estupro), Bahamas, Benim (permite em casos de estupro, incesto e anomalia

fetal), Bolívia (permite também em casos de estupro e incesto), Burquina Faso

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Burundi, Camarões

(permite em caso de estupro), Chade (permite em casos de estupro, incesto e

anomalia fetal), Comores, Costa Rica, Djibouti, Equador (permite em casos de

estupro ou se a mulher tem alguma incapacidade mental), Eritréia, Etiópia,

Grenada, Guiné (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Jordânia, Kuwait, Maldivas, Marrocos, Moçambique, Paquistão, Peru, Polônia

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Catar, Ruanda, Arábia

Saudita, Santa Lúcia, Tailândia (permite em casos de estupro), Uruguai (permite

em casos de estupro), Vanuatu e Zimbabué (permite em casos de estupro,

incesto e anomalia fetal).

Países que permitem o aborto também em casos de preservação da saúde

mental: Argélia, Botswana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia

fetal), Gâmbia, Gana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Hongo Kong (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Israel

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Jamaica, Libéria

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Malásia, Namíbia

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Nauru, Nova Zelândia

(permite em casos incesto e anomalia fetal), Irlanda do Norte, Portugal (permite

em casos de estupro e anomalia fetal), são Cristóvão e Nevis, Samoa, Serra

Leoa, Seichelles (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Espanha (permite em casos de estupro e anomalia fetal) e Trindade e Tobago.

Estes países perfazem o total de 20 e representam 2.7% da população mundial.

Apenas 14 países admitem argumentos socioeconômicos para a

realização do aborto, totalizando 20.7% da população mundial: Austrália,

Barbados (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Belize

68 Os dados sobre a legislação internacional sobre o aborto foi em sua grande

maioria obtidos através do site http://www.aborto.com/htm/mapaleyes.htm acesso em 18/10/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 40

(permite também em casos de anomalia fetal), Chipre (permite em casos de

estupro e incesto), Fiji, Finlândia (permite em casos de estupro e incesto), Grã

Bretanha (permite em casos de anomalia fetal), Índia (permite em casos de

estupro e anomalia fetal), Japão (autorização do esposo), Luxemburgo (permite

em casos de estupro e anomalia fetal), São Vicente e Granadinas (permite em

casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Taiwan (permite em casos de

estupro, incesto e anomalia fetal) e Zâmbia (permite em casos de anomalia

fetal).

E por fim, totalizando 40.5% da população mundial, distribuídos em 54

países, estão aqueles ordenamentos onde o aborto é permitido, ressalvadas as

restrições quanto ao tempo de gestação feitas por alguns deles. Dentre eles:

Albânia, Armênia, Áustria (14 semanas), Azerbaijão, Bareine, Belarus, Bélgica

(14 semanas), Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Cambodia (14 semanas), Canadá,

Cabo Verde, China (é proibido expressamente o aborto seletivo de sexo),

Croácia, Cuba, Coréia do Norte, Dinamarca, Estônia, Macedônio, França (14

semanas), Geórgia, Alemanha (14 semanas), Grécia, Guiana (8 semanas),

Hungria, Itália, Cazaquistão, Lituânia, Moldávia, Mongólia, Nepal, Romênia (14

semanas), Rússia, Sérvia e Montenegro, Singapura (24 semanas), Eslováquia,

Eslovênia, África do Sul, Suécia (18 semanas), Suíça, Tajiquistão, Tunísia,

Turquia (10 semanas), Ucrânia, Estados Unidos (de acordo com leis de cada

estado), Usbequistão e Vietnã.

O aborto inseguro tem sido objeto de debates acirrados nas Nações

Unidas. Apesar das pressões conservadoras e das intermináveis negociações, o

resultado final tem sido positivo, com um crescente reconhecimento da

descriminalização do aborto como legítima questão de direitos humanos:

O Programa de Ação da Conferência Internacional de População e

Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu, pela primeira vez

em um documento inter-governamental, o aborto inseguro como grave problema

de saúde pública (parágrafo 8.25)69. No processo de revisão Cairo + 5 (1999), o

69 Parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo: Em nenhuma circunstância o

aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações inter-governamentais e não-governamentais pertinentes, são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser envidados para evitar a necessidade do abortamento. As mulheres que experimentam gestações indesejadas devem ter acesso imediato a informações confiáveis e um aconselhamento compassivo. Quaisquer mudanças ou medidas relacionadas com o abortamento que se introduzam no

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 41

texto aprovado recomenda o treinamento de profissionais para atender às

mulheres nos casos em que o aborto é legal, embora não se tenha conseguido

incluir, no documento final, a recomendação sobre a revisão das leis punitivas.

A Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim), realizada em 1995,

reafirmou o conteúdo do parágrafo 8.25 do Cairo, acrescentando a

recomendação de que os países revisassem as leis que punem mulheres que

se submetem a abortos ilegais (parágrafo 106k). No mesmo ano ocorre a

Conferência de Beijing (Fourth World Conference on Women) direcionada

exclusivamente para os direitos femininos. E, em 2000, o documento final de

Pequim + 5 incorpora na íntegra o texto do parágrafo 106k da Plataforma de

Ação de Pequim, mencionando a necessidade de revisar as leis que punem a

prática do aborto inseguro. 70

3.3.2.Documentos Jurídicos Nacionais

No Brasil o aborto foi regulamentado pela primeira vez pelo Código

Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830 e era enquadrado nos crimes

contra a segurança da pessoa e da vida, nos artigos 199 e 200. Até então não

havia previsão jurídica para este ato e, conseqüentemente não era proibido ou

punido penalmente.

Após, o Código Penal da República, de 1890, no Titulo X, ampliou a

imputabilidade nos crimes de aborto, prevendo a punição para a mulher que

praticasse o auto-aborto, porém atenuou a pena nos casos de estupro ou com a

finalidade de "ocultar a desonra própria". Introduziu, ainda, uma exclusão de

punibilidade para o aborto necessário que visava salvar a vida da gestante.

O tratamento jurídico brasileiro atual no tocante à prática abortiva é de

cunho proibitivo. Diversos são os diplomas legais referentes ao tema.

sistema de saúde, só podem ser determinadas a partir do âmbito nacional e local, e de acordo com o processo legislativo nacional. Nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, o procedimento deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes do aborto. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos. Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.

70 Além de repetir o parágrafo 8.25 acrescenta que: “...Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos”, considerar a revisão das leis que contenham medidas punitivas contra as mulheres que se submeteram a abortamentos ilegais.” Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 42

A Constituição da República embora não trate do tema de forma específica

assegura o direito à vida de forma ampla, incluindo assim, a vida intra-uterina.

Tal previsão é constante do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.

A Lei das Contravenções Penais, de 1941, por sua vez, no capítulo "Das

Contravenções referentes à Pessoa" dispõe em seu artigo 20 que é também

ilícito o anúncio de meio abortivo, seja ele processo, substância ou objeto,

estipulando pena de multa71.

A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, quando trata das férias

anuais do trabalhador estabelece: “Art. 131. Não será considerada falta ao

serviço, para os efeitos do artigo anterior a ausência do empregado: (...) II -

durante o licenciamento compulsório da empregada por motivo de maternidade

ou aborto não criminoso, observados os requisitos para percepção do salário-

maternidade custeado pela Previdência Social;”

Apenas oito constituições estaduais, dos 26 Estados que compõem a

República Federativa do Brasil, referem-se ao aborto legalmente permitido,

visando garantir sua efetiva implementação, a saber: Amazonas, Bahia, Goiás,

Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. 72 O Espírito Santo é

o único Estado a considerar inaceitável o aborto diretamente provocado,

colocando-o ao lado do genocídio, do suicídio, da eutanásia, da tortura e de

outras formas de violência. In verbis: Art. 199. (...) Parágrafo único. São

inaceitáveis, por atentar contra a vida humana, o aborto diretamente provocado,

o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou

moral que venham a atingir a dignidade e a integridade da pessoa humana.

O Código Civil Brasileiro, de 2002, não contém nenhum dispositivo

específico sobre o aborto, mas protege o feto desde sua concepção em seu

artigo 2º.

A legislação penal em vigor é expressa na proibição do aborto nos artigos

124 a 128 do Código Penal de 1940, enquadrando-os no capítulo referente aos

crimes contra a vida.

71 A redação original deste artigo previa também como contravenção o anúncio de

meios contraceptivos, porém foi alterado pela Lei 6.734/1979. 72 Dados obtidos através do site

http://www.cladem.org/portugues/nacionais/brasil/informe_aborto_brasilp.asp acesso em 18/10/2005

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 43

O artigo 124 do referido código trata do auto-aborto e do aborto provocado,

com o consentimento da gestante, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.

O artigo seguinte rege sobre o aborto provocado sem o consentimento da

gestante, pena estabelecida de 3 a 10 anos de reclusão e prevê a pena de 1 a 4

anos se o aborto foi provocado por terceiro, mas com consentimento. No

parágrafo único desse artigo vemos uma causa de aumento da pena se a

gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se

o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

A forma qualificada é prevista no artigo 127, aumentando a pena em um

terço se em conseqüência do aborto a gestante sofre lesão corporal de natureza

grave; e duplicando se lhe sobrevém a morte.

Já o artigo 128 estabelece os casos permissivos de aborto. O inciso I trata

do aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da

gestante, e o inciso II do chamado aborto emocional, no caso de gravidez

resultante de estupro.

A primeira iniciativa de reforma legal aconteceu em 1983, quando um

projeto de lei pela legalização do aborto foi apresentado à Comissão de

Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e rejeitado. Em 1985, no Rio

de Janeiro, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que obrigava o

serviço público de saúde a oferecer o procedimento nos dois casos previstos

pelo Código Penal. O então governador do estado – que num primeiro momento

havia sancionado – vetou o projeto. Mas a proposta de assegurar na rede

pública de saúde o acesso ao aborto nos casos de risco de vida e estupro foi

retomada pela administração municipal de São Paulo, que criou no Hospital do

Jabaquara, em 1990, o primeiro serviço público para atender os casos de aborto

previstos pela lei penal.

Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e

a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão,

presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, a qual propôs a

descriminalização do aborto se comprovada má formação fetal, desde que

ocorra a interrupção até a 24ª semana. Tal proposta até hoje não foi adotada.

Diversos projetos de leis têm tramitado nas Casas Legislativas brasileiras,

tanto no plano nacional como nos planos estaduais e municipais. Mas também

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 44

há projetos no sentido contrário visando retirar da lei os casos em que a

interrupção da gravidez está permitida73.

Tramitam no Congresso Nacional 24 propostas que, direta ou

indiretamente, referem-se ao tema. Há propostas para estender os benefícios da

lei aos casos de mal-formação fetal; outras querem autorizar a interrupção a

partir da decisão da mulher, levando em conta o tempo da gestação; e há

também as que objetivam suprimir do Código Penal o artigo que caracteriza o

aborto como crime.

O Projeto de Lei 1135/91, de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge e

Sandra Starling, visa revogar o artigo 124 do Código Penal. A relatora, deputada

Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou um substitutivo incorporando alguns

pontos de 15 projetos de leis sobre o mesmo tema e acrescentou outros

aspectos no tocante ao tempo de gestação. No fim de setembro de 2005, a

Comissão de Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária

da Gravidez - entregou à Câmara um relatório sobre o assunto, propondo a

descriminalização do aborto no Brasil. De acordo com o texto apresentado pela

relatora, a mulher poderá optar pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem

que haja necessidade de justificação. A interrupção da gravidez poderá ocorrer

até a 20ª semana se resultante de estupro. E, finalmente, segundo o substitutivo,

o aborto poderá ocorrer em qualquer momento se for constatado grave risco à

saúde da gestante e de malformação do feto incompatível com a vida.

A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo

deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP), propondo a realização da consulta no fim

de 2007. Mas também há projetos que retrocedem, retirando da lei os casos em

que a interrupção da gravidez está permitida74.

Apesar de diversas tentativas legislativas a postura brasileira ainda tem

cunho proibitivo marcada em grande parte pela doutrina católica e falta de

justificação racional dos argumentos no seio da sociedade de forma livre.

Somente através da ampla discussão sobre os aspectos bioéticos e

constitucionais envolvidos em tal problemática será possível repensarmos o

tratamento jurídico do nosso país.

73 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL

1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.

74 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL 1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 29

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO

3.1.Conceituação do Termo

A linguagem pode ser entendida como instrumento de comunicação inter-

pessoal. No exercício de comunicação é possível distinguir alguns elementos:

um emissor, um receptor, uma mensagem que se procura transmitir e um código

compartilhado pelos interlocutores. O desafio é justamente que o receptor

perceba a significação da mensagem do emissor. Os problemas e disparidades

causados pelos ruídos ou mesmo a utilização de jogos interpretativos no

emprego da comunicação têm direcionado diversos ramos do conhecimento a

seu estudo.

Guibourg, Ghigliani e Guarinoni definiram linguagem como um conjunto de

signos e símbolos organizados em uma estrutura mais ou menos orgânica com

funções determinadas, de forma que a linguagem constitui um sistema de

símbolos que servem à comunicação. Assim, tendo em vista que toda ciência é

um conjunto de enunciados, sua expressão é constituída através de uma

linguagem pré-fixada42.

A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no

processo de comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e

pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de

forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se

com a construção tecnicamente coerente das frases em determinado idioma. Na

semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos

por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a

pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja,

o contexto em que os termos são empregados. 43

42 GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 19. 43 Ibid., p. 33.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 30

Quanto à semântica é importante destacar a questão da definição. O ato

de definir pode ser entendido como explicar um conceito com outro conceito.

Toda definição demarca um campo de significado. Normativamente algumas

definições são importantes para por fim às dificuldades da doutrina,

uniformizando e continentalizando um quadro semântico ou ainda para reduzir a

instabilidade de termos que estão na linguagem comum. Nesse último caso há o

problema da linguagem técnica usada para suprir a instabilidade de termos

comuns, mas esse uso técnico importa em uma nova dificuldade, qual seja, pode

prejudicar a compreensão e afastar os destinatários finais.

As definições legais geralmente são aclaratórias44. No âmbito jurídico o

estudo dos problemas relacionados à linguagem é prioritário à medida que as

proposições jurídicas que norteiam as condutas de determinada sociedade

devem ser precisas em suas definições e conceitos. Somente obedecemos ou

seguimos as normas inteligíveis. Ou pior, um entendimento errôneo sobre

determinada norma poderá acarretar, inclusive, o seu descumprimento. 45

O aborto é disciplinado pelo sistema jurídico pelos artigos 124 a 128 do

Código Penal, tendo como tutela jurídica o direito à vida do feto. O legislador

penal não definiu o que seria o aborto, relegando esta tarefa aos intérpretes.

Diversos são os entendimentos sobre esta palavra, destacaremos apenas os

propostos pelos doutrinadores jurídicos e a definição dos profissionais da saúde.

Etimologicamente o vernáculo aborto é de origem latina, decompondo-se

em ab (privação) e ortus (nascimento). França Limongi, em sua Enciclopédia de

Direito, diferencia os termos aborto, abortamento e aborticídio. Esse último

segundo o autor é um neologismo empregado por Saraiva significando a morte

da criança dada à luz antes do tempo, independente da causa desta

antecipação. O termo aborto diferencia-se pela finalidade de sacrificar o feto. Já

abortamento seria o ato de abortar, gerando o produto aborto.

Para Ronald Dworkin “aborto significa matar deliberadamente um embrião

humano em formação”. 46

A definição proposta por De Plácido e Silva em seu vocabulário Jurídico é

a seguinte: “Aborto. Expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do

parto.” 47 Já Heleno Fragoso em suas Lições de Direito Penal salienta a origem

44 ALCHOURRÓN, C., BULYGIN, E. Análisis lógico y derecho, 1991, p. 448. 45 Alchourron e Bulygin destacam a diferença crucial entre as definições de caráter

oficial e as meras definições privadas. Ibid., p. 441. 46 DWORKIN, R. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003. p.1. 47 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, 1987, p. 11.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 31

cristã deste termo, in verbis: ”Deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo

o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente,

homicídio”48. Dois são os elementos básicos para a conceituação jurídica

doutrinária do aborto: a retirada prematura do feto do ventre materno, tendo

como conseqüência, sua morte.

A prática de abortamento é punida penalmente por ser considerada uma

espécie de homicídio, sendo excluídas da punibilidade legal apenas duas

hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, quais sejam: o aborto

necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto

emocional ou ético em caso de gravidez resultante de estupro.

No tocante à definição médica de aborto serão utilizadas três nuances: a

idade gestacional, a capacidade sensitiva e a intenção da gestante. Diversas

outras classificações são feitas pela doutrina, tanto jurídica como médica, como

ressaltado na obra da professora Maria Helena Diniz que traz ainda a

classificação quanto ao consentimento (sofrido – sem consenso da gestante,

consentido – realizado com a anuência da gestante e procurado – se a gestante

for o agente principal). 49

A primeira classificação utiliza como parâmetro conhecimentos obstétricos

em razão da formação do embrião. Segundo Antonio Jorge Salomão:

“Considera-se aborto a expulsão ou a extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação.” 50 O autor supra citado fornece ainda alguns critérios de classificação para o

abortamento, são eles: a idade gestacional (a OMS divide os abortos em

precoce – antes da 12ª semana - e tardio – entre a 12ª e a 20ª semana); o peso

fetal (aborto - menor que 500g, imaturo – entre 500g e 999g e prematuro – entre

1000g e 2500g); forma (espontâneo – quando não há nenhum fator precipitante

do quadro) e induzido (quando ocorreu ação deliberada para interromper a

48 FRAGOSO, H. Lições de Direito Penal, 1986, p. 107. 49 DINIZ, M. O estado atual do biodireito, 2002. p. 33. 50 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara

Neme, 1994. p. 363.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 32

gestação) e quadro clínico (ameaça, inevitável, incompleto, completo e retido ou

frustrado). 51

A segunda classificação considera como fator importante o momento que o

feto passa a sentir dor. Segundo Ronald Dworkin é a partir do sétimo mês de

concepção que o feto desenvolve a capacidade reflexiva quando inicia a

atividade elétrica do cérebro no tronco cerebral. E a sensação de dor somente

seria possível após a conexão entre o tálamo e o neocórtex fetal, o que embora

ainda não esteja determinada com precisão, acredita-se não ocorrer antes da

metade do período gestacional.

A terceira classificação dos diversos tipos de abortos é elaborada segundo

o entendimento bioético e pode ser depreendida da seguinte forma: 52

1) Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de aborto

ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se

interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente,

sugere-se o praticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando

mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra

geral, a IEG processa-se contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a

abortar;

2) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos ocorridos em

nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para

salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço científico e

tecnológico ocorrido na medicina, os casos de ITG são cada vez em menor

número, sendo raras as situações terapêuticas que exigem tal procedimento;

3) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de aborto ocorridos

em nome de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação

pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que justificam as

solicitações de ISG são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina,

sendo o exemplo clássico o da anencefalia;

4) Interrupção voluntária da gestação (IVG): referem-se à autonomia

reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a

gestação porque a mulher ou o casal não mais deseja a gravidez, seja ela fruto

51 Ibid., p. 363. 52 A classificação proposta é apresentada no livro editado pelo próprio Conselho

Federal de Medicina e de autoria de Diniz e Almeida. COSTA, S, OSELKA, G, GARRAFA, V. Iniciação à bioética, 1998.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 33

de um estupro ou de uma relação consensual. Muitas vezes, as legislações que

permitem a IVG impõem limites gestacionais à prática.

Note-se que a nomenclatura utilizada é a interrupção da gravidez e não

aborto. Tal fato tem como explicação a forte resistência e a preconceituação que

traz em si o termo. A bioética tem tentado analisar o assunto através do debate

racional livre. No ponto seguinte trataremos de forma mais aprofundada sobre as

questões bioéticas que envolvem o aborto.

3.2.Elementos Bioéticos

A problemática do aborto é considerada atualmente uma questão de saúde

pública. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) metade

das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No

Brasil, estatísticas demonstram que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja,

ocorrem, aproximadamente, 1,44 milhões de abortos espontâneos e inseguros

com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A gravidade da situação do

abortamento também se reflete no SUS. Apenas no ano de 2004, o número de

mulheres internadas para fazer curetagem pós-aborto foi de 243.988.53 Contudo,

o aborto envolve aspectos complexos da natureza humana: vida, sexualidade e

religião.

Diante de tal quadro, a bioética tem um papel importante na discussão das

questões referentes à moralidade do aborto. Há cada vez mais a tentativa de

avaliar racionalmente os argumentos contrários e favoráveis e submetê-los ao

crivo da justificação social.

A primeira dificuldade que surge no tratamento do aborto é a determinação

do início da vida e, a partir de que momento, se é que isso ocorre, o feto é tido

como pessoa54. A primeira possibilidade considera a fecundação como o ponto

inicial, a Igreja Católica e os pensamentos mais conservadores adotam essa

teoria55. O preformismo, doutrina segundo a qual o indivíduo já estaria contido

plenamente no sêmen, também defendia a animação imediata só dependendo

do decurso do tempo para o desenvolvimento pleno do ser humano. Tal tese é

descartada atualmente. A epigênese defende o desenvolvimento biológico

53 Fonte: www.saude.gov.br acesso em 28.10.2005. 54 Sobre a noção jurídica e filosófica de pessoa e o biodireito vide XAVIER, E. A

bioética e o conceito de pessoa:a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa, 2000. 55 Embora São Tomás de Aquino, um dos importantes pensadores da teologia

católica, defendesse a tese de que a animação, ou seja, a junção do corpo com a alma,

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 34

gradual da pessoa. A lei biogenética proposta por Ernst Haeckel também propõe

a animação tardia do organismo humano. Neste sentido se destacam as

observações de Laurente Degos que estabelece algumas etapas importantes do

desenvolvimento fetal:

“1) O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São, portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. 2) Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. 3) Por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 bilhões de neurônios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurônios não têm atividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da atividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez. 4) 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebê a nascer pode viver de modo autônomo e independente.“ 56 57(grifos nosso)

Finalmente, há entendimentos de que o feto não é, em momento algum,

uma pessoa, somente adquirindo tal característica em sua vida extra-uterina.

Este posicionamento, embora radical, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio

que mesmo reconhecendo direitos ao nascituro somente considera pessoa

aquele ser que nasce com vida.

A segunda grande discussão bioética sobre o procedimento médico de

aborto é a relação materno-fetal58. Hodiernamente, com avanços tecnológicos

cada vez mais constantes, técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento intra-

uterino têm se tornado comuns. Há um questionamento sobre a autonomia da

ocorria no 40º dia para os fetos do sexo masculino e no 80º dia para os do sexo feminino.

56 DEGOS, L. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana, 2002, p. 21.

57 Interessante observar que segundo a resolução nº 1601/00 do Conselho Federal de Medicina o médico somente é obrigado a fornecer declaração de óbito de fetos com mais de 20 semanas ou 500 gramas. Antes desse prazo o feto morto é considerado material ou resíduo biológico.

58 Para o aprofundamento do tema vide Conflito materno-fetal? In DINIZ, Débora Diniz, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2004.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 35

gestante e seus direitos de consentir ou não com a realização desses

procedimentos. A relação entre esses dois indivíduos tão ligados também é

discutida no aborto. Posições radicais consideram o feto como mero órgão ou

organismo dentro do corpo da mãe, cabendo total arbítrio materno sobre o

mesmo. Contrariamente, outros consideram o feto como um indivíduo com

interesses e direitos. Sobre a relação entre o feto e a gestante escreve Ronald

Dworkin:

O feto “é dela (da gestante), e é dela mais do que qualquer outra pessoa porque

é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que

se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do

que qualquer outra pessoa tenha feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas

e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela como dizer que não está.” 59

Uma das mais importantes obras sobre o abortamento é a de Maurizio

Mori60. O autor além de considerar polêmica a afirmativa de que o feto é ou não

pessoa e, portanto, com direito à vida, oferece como questionamento se o direito

à vida de uma pessoa implica o direito de fazer uso do corpo da mulher para

continuar a viver. Neste ponto ele destaca a questão da autonomia da mulher

quanto à disposição de seu corpo.

Maurizio Mori também apresenta cinco momentos históricos de reflexão

sobre a permissão ou proibição do aborto.

No primeiro momento, predominava nas sociedades a permissão irrestrita

tendo como justificativa a visão de que o aborto era um ato de caráter

estritamente privado. Durante este período o feto era considerado como parte

integrante do corpo materno ou, como ressaltam alguns autores, parte das

vísceras da gestante.

A seguir, com o advento e propagação dos ideais cristãos, o aborto foi

severamente proibido, e a base doutrinária imposta considerava tal ato

pecaminoso e atentatório contra o matrimônio.

No terceiro momento persiste a proibição, porém a justificação muda.

Diversos ordenamentos jurídicos coíbem o aborto, estipulando-o crime contra a

pessoa, contra a geração, contra a sanidade e a integridade da estirpe, entre

outros.

59 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003, p. 77. 60 MORI, M., A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel da

mulher, 1997, p. 17-26.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 36

No início dos anos 60 a utilização de um medicamento chamado talidomida

acarretou, durante as primeiras fases da gravidez, uma série de anomalias

graves nos fetos. Então, a discussão volta sua atenção para a possibilidade de

legalização do aborto em casos de anomalias fetais severas.

Outro evento ocorre pouco após, em 1973, contribuindo para a legalização

do aborto – a decisão da Suprema Corte Americana no emblemático caso Roe x

Wade. A decisão judicial citada determinou que o feto, ou aquele ainda não

nascido, não pode ser considerado pessoa e, portanto, não seriam sujeitos

protegidos juridicamente e que as leis até então existentes no país proibitivas do

aborto violavam o direito constitucional à privacidade da mulher. Essa noção de

privacidade deve ser entendida no sentido de soberania quanto às decisões

particulares, e não como direito de utilizar livremente seu próprio corpo.

O último momento mencionado por Maurizio Mori diz respeito

principalmente aos países europeus. Segundo o autor atualmente a Europa tem

direcionado o debate no sentido de coibir os abortos clandestinos, encarando o

assunto como problema de saúde pública, e por isso, a legalização da prática

cresceu.

Algumas posições atuais podem ser destacadas quanto ao tema61. A

posição católica que condena qualquer tipo de aborto, inclusive o necessário à

sobrevivência materna. A postura do Movimento pela Vida oponente também à

prática, contudo, admite determinadas exceções. O movimento pela legalização

do aborto para a qual o aborto deve ser regulamento socialmente. E a posição a

favor da liberalização do aborto, segundo a qual este assunto é de âmbito

privado da mulher, e como tal, deve ser decidido exclusivamente pela gestante e

seu médico.

No ponto seguinte serão abordados os aspectos jurídicos do aborto. Serão

elencadas as principais leis internacionais e como o Brasil tem regulamentado a

questão, seja através de leis já promulgadas, seja por meio de projetos de leis

em tramitação nas Casas Legislativas.

61 Ibid., p. 30 – 31.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 37

3.3.Elementos Jurídicos

O aborto sempre constituiu uma prática comum em diversas sociedades.

Entretanto, o tratamento jurídico dispensado a este ato não encontra uma

uniformidade de regulamentação.

Inicialmente o aborto era visto de duas formas ou era considerado assunto

de cunho exclusivamente familiar, com algumas repercussões somente no direito

privado, ou um ato criminoso e passível de punição penal.

No direito penal hebreu o ato voluntário de abortar constituía um crime,

punível com pena de morte, sendo permitido apenas para resguardar a vida da

genitora. 62

No Oriente Médio e na Grécia Antiga, assim como os romanos,

consideravam o feto como parte das vísceras da mãe, cabendo a esta a decisão

sobre a continuidade da gravidez.

O Código de Hammurabi63, datado do século XXIII, previa em seu Capítulo

XI – Artigos 208 a 214 os crimes de agressão contra as mulheres gestantes que

tinham como conseqüência expelir o fruto de seu seio. As penas estipuladas

eram de indenização e sua quantificação dependia da origem da gestante: se

filha de um homem livre o valor era de 10 siclos de prata pelo fruto de seu seio e

se ocorreu a morte da mulher a pena era a morte da filha do homem que a feriu;

se era filha de um homem vulgar a indenização montava a 5 minas de prata, se

acarretou a morte, mais meia mina de prata; e por fim, se a gestante fosse

escrava o seu senhor receberia dois siclos de prata pela agressão e um terço de

uma mina de prata se o resultado foi o falecimento.

Na Idade Média, com a influência do direito canônico, a punição do aborto

tornou-se mais freqüente. Inicialmente considerado pelo clero um crime contra o

matrimônio, somente há poucas décadas a Igreja passou a considerar o aborto

um crime contra a vida64. Porém, a própria Igreja revelava entendimentos

confusos sobre a matéria. São Tomás de Aquino era contrário ao aborto, mas

admitia que o mesmo fosse feito antes do surgimento da alma o que ocorria em

40 dias após a concepção se homem e 80 dias se mulher. Os Dicastérios

Romanos, embora contrários ao aborto, hesitaram quando perguntados sobre a

62 Livro de Êxodo capítulo 21 versículos 22 e 23. 63 Fonte: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm 64 Conforme destaque de M. José Nunes: “Assim, a punição do aborto, durante os

seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava.” Fonte:

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 38

possibilidade em casos de inviabilidade de vida do nascituro. 65 A argumentação

de que o aborto seria o assassinato de um inocente foi formulada por Pio XI em

1930 através da Encíclica Casti Conubii. Mas é em 1968 que a Igreja demonstra

firmemente sua repugnância não só aos meios abortivos como também aos

meios artificiais de contracepção, através da elaboração da Encíclica Humanae

Vitae66. No mesmo ano foi elaborada a Carta Pastoral dos Bispos nórdicos a qual

dizia:

"Quando uma pessoa, por razões sérias e bem ponderadas não se convence pelos argumentos da encíclica (Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada em um documento não infalível. Que ninguém, pois, seja tido como mau católico pela única razão de discordar... Ninguém, nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência." 67

3.3.1.Documentos Jurídicos Internacionais

A postura proibitiva tem se perpetrado nas sociedades hodiernas. A seguir

serão expostas as previsões jurídicas em diversos países. 68

Em 72 países o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em caso

de risco de vida para a gestante, perfazendo o total de 26,1% da população

mundial, dentre eles: Afeganistão, Andorra, Angola, Antígua e Barbuda,

Bangladesh, Butão, Brunei, República da África-Central, Chile, Colômbia, Congo,

República Democrática do Congo, Dominica, República dominicana, Egito,

Gabão, Guatemala, Guiné-Bissau, Haiti, Honduras, Indonésia, Irã, Iraque,

Irlanda, Quênia, Quiribati, Laos, Lesoto, Líbia (requer notificação e autorização

parental), Madagascar, Malaui (requer autorização do esposo), Mali (permite

também em caso de estupro e incesto), Malta, Ilhas Marshall, Mauritânia,

República das Maurícias, México (também permite em caso de estupro),

Principado de Mônaco, Birmânia, Nicarágua (requer autorização do esposo),

Níger, Nigéria, Omã, Panamá (permite em caso de estupro e anomalia fetal),

http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.

65 Segundo Anjos a resposta do Dicastério foi: ”consultar autores sérios, sejam antigos ou recentes, e agir prudentemente.”

66 A íntegra da Encíclica pode ser obtida através do endereço eletrônico : http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_pvi_enc_25071968_humanae-vitae_po.html

67 Texto retirado do endereço eletrônico: http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 39

Papua Nova Guiné, Paraguai, Filipinas, São Marino, São Tomé e Príncipe,

Senegal, Ilhas Salomão, Somália, Siri Lanka, Sudão (permite em casos de

estupro), Suriname, Síria (requer autorização do genitor), Tanzânia, Togo,

Tonga, Suazilândia, Tuvalu, Uganda, Emikrados Árabes, Venezuela e Iêmen.

Em 35 países, 9,9% da população mundial, o aborto é permitido para

preservar a saúde física da mãe e para preservar sua vida, dentre eles: Brasil

(também permite em caso de estupro), Argentina (também permite em caso de

estupro), Bahamas, Benim (permite em casos de estupro, incesto e anomalia

fetal), Bolívia (permite também em casos de estupro e incesto), Burquina Faso

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Burundi, Camarões

(permite em caso de estupro), Chade (permite em casos de estupro, incesto e

anomalia fetal), Comores, Costa Rica, Djibouti, Equador (permite em casos de

estupro ou se a mulher tem alguma incapacidade mental), Eritréia, Etiópia,

Grenada, Guiné (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Jordânia, Kuwait, Maldivas, Marrocos, Moçambique, Paquistão, Peru, Polônia

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Catar, Ruanda, Arábia

Saudita, Santa Lúcia, Tailândia (permite em casos de estupro), Uruguai (permite

em casos de estupro), Vanuatu e Zimbabué (permite em casos de estupro,

incesto e anomalia fetal).

Países que permitem o aborto também em casos de preservação da saúde

mental: Argélia, Botswana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia

fetal), Gâmbia, Gana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Hongo Kong (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Israel

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Jamaica, Libéria

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Malásia, Namíbia

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Nauru, Nova Zelândia

(permite em casos incesto e anomalia fetal), Irlanda do Norte, Portugal (permite

em casos de estupro e anomalia fetal), são Cristóvão e Nevis, Samoa, Serra

Leoa, Seichelles (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Espanha (permite em casos de estupro e anomalia fetal) e Trindade e Tobago.

Estes países perfazem o total de 20 e representam 2.7% da população mundial.

Apenas 14 países admitem argumentos socioeconômicos para a

realização do aborto, totalizando 20.7% da população mundial: Austrália,

Barbados (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Belize

68 Os dados sobre a legislação internacional sobre o aborto foi em sua grande

maioria obtidos através do site http://www.aborto.com/htm/mapaleyes.htm acesso em 18/10/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 40

(permite também em casos de anomalia fetal), Chipre (permite em casos de

estupro e incesto), Fiji, Finlândia (permite em casos de estupro e incesto), Grã

Bretanha (permite em casos de anomalia fetal), Índia (permite em casos de

estupro e anomalia fetal), Japão (autorização do esposo), Luxemburgo (permite

em casos de estupro e anomalia fetal), São Vicente e Granadinas (permite em

casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Taiwan (permite em casos de

estupro, incesto e anomalia fetal) e Zâmbia (permite em casos de anomalia

fetal).

E por fim, totalizando 40.5% da população mundial, distribuídos em 54

países, estão aqueles ordenamentos onde o aborto é permitido, ressalvadas as

restrições quanto ao tempo de gestação feitas por alguns deles. Dentre eles:

Albânia, Armênia, Áustria (14 semanas), Azerbaijão, Bareine, Belarus, Bélgica

(14 semanas), Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Cambodia (14 semanas), Canadá,

Cabo Verde, China (é proibido expressamente o aborto seletivo de sexo),

Croácia, Cuba, Coréia do Norte, Dinamarca, Estônia, Macedônio, França (14

semanas), Geórgia, Alemanha (14 semanas), Grécia, Guiana (8 semanas),

Hungria, Itália, Cazaquistão, Lituânia, Moldávia, Mongólia, Nepal, Romênia (14

semanas), Rússia, Sérvia e Montenegro, Singapura (24 semanas), Eslováquia,

Eslovênia, África do Sul, Suécia (18 semanas), Suíça, Tajiquistão, Tunísia,

Turquia (10 semanas), Ucrânia, Estados Unidos (de acordo com leis de cada

estado), Usbequistão e Vietnã.

O aborto inseguro tem sido objeto de debates acirrados nas Nações

Unidas. Apesar das pressões conservadoras e das intermináveis negociações, o

resultado final tem sido positivo, com um crescente reconhecimento da

descriminalização do aborto como legítima questão de direitos humanos:

O Programa de Ação da Conferência Internacional de População e

Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu, pela primeira vez

em um documento inter-governamental, o aborto inseguro como grave problema

de saúde pública (parágrafo 8.25)69. No processo de revisão Cairo + 5 (1999), o

69 Parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo: Em nenhuma circunstância o

aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações inter-governamentais e não-governamentais pertinentes, são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser envidados para evitar a necessidade do abortamento. As mulheres que experimentam gestações indesejadas devem ter acesso imediato a informações confiáveis e um aconselhamento compassivo. Quaisquer mudanças ou medidas relacionadas com o abortamento que se introduzam no

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 41

texto aprovado recomenda o treinamento de profissionais para atender às

mulheres nos casos em que o aborto é legal, embora não se tenha conseguido

incluir, no documento final, a recomendação sobre a revisão das leis punitivas.

A Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim), realizada em 1995,

reafirmou o conteúdo do parágrafo 8.25 do Cairo, acrescentando a

recomendação de que os países revisassem as leis que punem mulheres que

se submetem a abortos ilegais (parágrafo 106k). No mesmo ano ocorre a

Conferência de Beijing (Fourth World Conference on Women) direcionada

exclusivamente para os direitos femininos. E, em 2000, o documento final de

Pequim + 5 incorpora na íntegra o texto do parágrafo 106k da Plataforma de

Ação de Pequim, mencionando a necessidade de revisar as leis que punem a

prática do aborto inseguro. 70

3.3.2.Documentos Jurídicos Nacionais

No Brasil o aborto foi regulamentado pela primeira vez pelo Código

Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830 e era enquadrado nos crimes

contra a segurança da pessoa e da vida, nos artigos 199 e 200. Até então não

havia previsão jurídica para este ato e, conseqüentemente não era proibido ou

punido penalmente.

Após, o Código Penal da República, de 1890, no Titulo X, ampliou a

imputabilidade nos crimes de aborto, prevendo a punição para a mulher que

praticasse o auto-aborto, porém atenuou a pena nos casos de estupro ou com a

finalidade de "ocultar a desonra própria". Introduziu, ainda, uma exclusão de

punibilidade para o aborto necessário que visava salvar a vida da gestante.

O tratamento jurídico brasileiro atual no tocante à prática abortiva é de

cunho proibitivo. Diversos são os diplomas legais referentes ao tema.

sistema de saúde, só podem ser determinadas a partir do âmbito nacional e local, e de acordo com o processo legislativo nacional. Nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, o procedimento deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes do aborto. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos. Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.

70 Além de repetir o parágrafo 8.25 acrescenta que: “...Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos”, considerar a revisão das leis que contenham medidas punitivas contra as mulheres que se submeteram a abortamentos ilegais.” Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 42

A Constituição da República embora não trate do tema de forma específica

assegura o direito à vida de forma ampla, incluindo assim, a vida intra-uterina.

Tal previsão é constante do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.

A Lei das Contravenções Penais, de 1941, por sua vez, no capítulo "Das

Contravenções referentes à Pessoa" dispõe em seu artigo 20 que é também

ilícito o anúncio de meio abortivo, seja ele processo, substância ou objeto,

estipulando pena de multa71.

A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, quando trata das férias

anuais do trabalhador estabelece: “Art. 131. Não será considerada falta ao

serviço, para os efeitos do artigo anterior a ausência do empregado: (...) II -

durante o licenciamento compulsório da empregada por motivo de maternidade

ou aborto não criminoso, observados os requisitos para percepção do salário-

maternidade custeado pela Previdência Social;”

Apenas oito constituições estaduais, dos 26 Estados que compõem a

República Federativa do Brasil, referem-se ao aborto legalmente permitido,

visando garantir sua efetiva implementação, a saber: Amazonas, Bahia, Goiás,

Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. 72 O Espírito Santo é

o único Estado a considerar inaceitável o aborto diretamente provocado,

colocando-o ao lado do genocídio, do suicídio, da eutanásia, da tortura e de

outras formas de violência. In verbis: Art. 199. (...) Parágrafo único. São

inaceitáveis, por atentar contra a vida humana, o aborto diretamente provocado,

o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou

moral que venham a atingir a dignidade e a integridade da pessoa humana.

O Código Civil Brasileiro, de 2002, não contém nenhum dispositivo

específico sobre o aborto, mas protege o feto desde sua concepção em seu

artigo 2º.

A legislação penal em vigor é expressa na proibição do aborto nos artigos

124 a 128 do Código Penal de 1940, enquadrando-os no capítulo referente aos

crimes contra a vida.

71 A redação original deste artigo previa também como contravenção o anúncio de

meios contraceptivos, porém foi alterado pela Lei 6.734/1979. 72 Dados obtidos através do site

http://www.cladem.org/portugues/nacionais/brasil/informe_aborto_brasilp.asp acesso em 18/10/2005

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 43

O artigo 124 do referido código trata do auto-aborto e do aborto provocado,

com o consentimento da gestante, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.

O artigo seguinte rege sobre o aborto provocado sem o consentimento da

gestante, pena estabelecida de 3 a 10 anos de reclusão e prevê a pena de 1 a 4

anos se o aborto foi provocado por terceiro, mas com consentimento. No

parágrafo único desse artigo vemos uma causa de aumento da pena se a

gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se

o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

A forma qualificada é prevista no artigo 127, aumentando a pena em um

terço se em conseqüência do aborto a gestante sofre lesão corporal de natureza

grave; e duplicando se lhe sobrevém a morte.

Já o artigo 128 estabelece os casos permissivos de aborto. O inciso I trata

do aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da

gestante, e o inciso II do chamado aborto emocional, no caso de gravidez

resultante de estupro.

A primeira iniciativa de reforma legal aconteceu em 1983, quando um

projeto de lei pela legalização do aborto foi apresentado à Comissão de

Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e rejeitado. Em 1985, no Rio

de Janeiro, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que obrigava o

serviço público de saúde a oferecer o procedimento nos dois casos previstos

pelo Código Penal. O então governador do estado – que num primeiro momento

havia sancionado – vetou o projeto. Mas a proposta de assegurar na rede

pública de saúde o acesso ao aborto nos casos de risco de vida e estupro foi

retomada pela administração municipal de São Paulo, que criou no Hospital do

Jabaquara, em 1990, o primeiro serviço público para atender os casos de aborto

previstos pela lei penal.

Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e

a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão,

presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, a qual propôs a

descriminalização do aborto se comprovada má formação fetal, desde que

ocorra a interrupção até a 24ª semana. Tal proposta até hoje não foi adotada.

Diversos projetos de leis têm tramitado nas Casas Legislativas brasileiras,

tanto no plano nacional como nos planos estaduais e municipais. Mas também

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 44

há projetos no sentido contrário visando retirar da lei os casos em que a

interrupção da gravidez está permitida73.

Tramitam no Congresso Nacional 24 propostas que, direta ou

indiretamente, referem-se ao tema. Há propostas para estender os benefícios da

lei aos casos de mal-formação fetal; outras querem autorizar a interrupção a

partir da decisão da mulher, levando em conta o tempo da gestação; e há

também as que objetivam suprimir do Código Penal o artigo que caracteriza o

aborto como crime.

O Projeto de Lei 1135/91, de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge e

Sandra Starling, visa revogar o artigo 124 do Código Penal. A relatora, deputada

Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou um substitutivo incorporando alguns

pontos de 15 projetos de leis sobre o mesmo tema e acrescentou outros

aspectos no tocante ao tempo de gestação. No fim de setembro de 2005, a

Comissão de Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária

da Gravidez - entregou à Câmara um relatório sobre o assunto, propondo a

descriminalização do aborto no Brasil. De acordo com o texto apresentado pela

relatora, a mulher poderá optar pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem

que haja necessidade de justificação. A interrupção da gravidez poderá ocorrer

até a 20ª semana se resultante de estupro. E, finalmente, segundo o substitutivo,

o aborto poderá ocorrer em qualquer momento se for constatado grave risco à

saúde da gestante e de malformação do feto incompatível com a vida.

A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo

deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP), propondo a realização da consulta no fim

de 2007. Mas também há projetos que retrocedem, retirando da lei os casos em

que a interrupção da gravidez está permitida74.

Apesar de diversas tentativas legislativas a postura brasileira ainda tem

cunho proibitivo marcada em grande parte pela doutrina católica e falta de

justificação racional dos argumentos no seio da sociedade de forma livre.

Somente através da ampla discussão sobre os aspectos bioéticos e

constitucionais envolvidos em tal problemática será possível repensarmos o

tratamento jurídico do nosso país.

73 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL

1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.

74 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL 1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 45

4 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

4.1.Teorias sobre a Interpretação

O objetivo deste capítulo é fornecer o aporte teórico de diversos autores

sobre interpretação de um texto normativo, especialmente, constitucional. Esse

suporte será essencial para a posterior discussão das possíveis interpretações

do ordenamento jurídico brasileiro no estudo de caso da permissão de

antecipação do parto na ocorrência de anencefalia fetal. Quando então serão

analisados os argumentos utilizados para defender ou proibir tal hipótese,

levantando as técnicas argumentativas principais de ambos os entendimentos.

Quatro questionamentos são essenciais quando o assunto é

interpretação: O que é interpretar, por que interpretar, como interpretar e quais

as dificuldades do ato interpretativo. As respostas a essas perguntas variam

conforme a época e a metodologia de cada autor.

4.1.1. O que é interpretar?

O ato de interpretar significa fornecer significação às palavras, é

primeiramente a análise semântica de um texto. Por tal razão a semiótica75 é

vital para a interpretação76. A norma legal, como todo texto escrito, necessita da

75 A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no processo de

comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se com a construção tecnicamente corrente das frases em determinado idioma. Na semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja, o contexto em que os termos são empregados. GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 33.

76 Willis Santiago Guerra Filho ressalta a importância desses conhecimentos no campo do Direito. Cita-se: “O aspecto sintático do conhecimento é tradicionalmente trabalhado no âmbito da lógica formal. (...) As funções semântica e pragmática, por sua vez, corresponderiam ao campo da lógica material, que gira em torno de objetos mundanais, cujo principal, para o Direito, é a Justiça.” GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica, 2001, p.104.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 46

interpretação que pode ser considerada como meio termo entre as previsões

legais e a solução do caso concreto.

A interpretação no entender de Ricardo Guastini pode significar tanto a

atividade como o resultado desta atividade. A interpretação de um texto atribui

sentido ou significado a um determinado fragmento da linguagem.77

Carlos Maximiliano, em sua obra recentemente reeditada sobre

Hermenêutica e Aplicação do Direito, diferencia os termos Hermenêutica78 -

entendida como teoria científica da arte de interpretar cujo objeto de estudo e a

sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e alcance

das expressões do Direito - e Interpretação, tida como concretização da primeira.

A interpretação, no entender de Margarida Camargo, deve ser vista como

ação mediadora que busca compreender o real significado do que foi escrito por

outra pessoa. O ato de concretização depende dessa prévia interpretação da

norma e do fato resultando em uma determinada decisão concreta.

O termo Hermenêutica é adotado por Ivo Dantas como ato de interpretar,

como um conjunto de princípio que devem servir como orientação e regulação

para a interpretação das normas jurídicas. Já o termo interpretar é definido como

o descobrimento do sentido real da norma e seu conteúdo ôntico. 79

Umberto Eco demonstra sua preocupação com a questão dos limites da

interpretação. Um texto em si já impõe restrições a seus intérpretes. Os limites

da interpretação são coincidentes de forma obrigatória com os direitos do texto.

Esse autor trata das noções de uso e interpretação.

77 GUASTINI, R., Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003. 78 Margarida Camargo, cuja obra objetiva relacionar as noções de Hermenêutica e

Argumentação78, elabora um breve histórico sobre a significação do termo hermenêutica. Inicia no período da Grécia Antiga Histórico tendo como função levar a mensagem dos deuses aos homens. Significava traduzir algo inteligível para a linguagem dos homens. Em Roma a Hermenêutica desenvolveu-se com a própria prática jurídica. Os pretores e jurisconsultos diziam o direito no caso concreto e essas decisões foram, com o tempo, transformadas em máximas cada vez mais abstratas e obrigatórias. Os glosadores do século XI e XII, após a descoberta do Corpus Iuris Civilis, iniciam um esforço acerca de seu entendimento e compreensão. O desenvolvimento das cidades italianas acarreta a criação de uma corporação própria denominada de Universidade e sua criação teve como resultado a elaboração as glosas especificando palavra por palavra, tal interpretação foi feita pelos próprios professores. O método escolástico foi responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica. A seguir, com o historicismo, a hermenêutica reconhece a necessidade da interpretação das circunstâncias históricas da criação do texto e também as circunstâncias que determinavam sua concretização posterior. Assim, a hermenêutica não se baseava mais unicamente em seu aspecto exegético. Porém é somente com o advento do Iluminismo que a interpretação e a hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica encontra seu status de ciência, na qual são englobadas as técnicas interpretativas.

79 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995. p. 83.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 47

“Defender a interpretação do texto contra o uso dele não significa que os textos não possam ser usados. Mas o livre uso dele nada tem a ver com sua interpretação, visto que a interpretação e uso sempre pressupõem uma referência ao texto-fonte, quando mais não seja, como pretexto.”

4.1.2. Por que interpretar?

A interpretação jurídica tem como finalidade precípua determinar o real

sentido de uma norma legal, qual a sua intenção, o alcance de sua previsão e

como deve ser aplicada a um interesse humano evidenciado através de uma

ação judicial.

O ato de interpretar um texto normativo não é tarefa simples. A

linguagem, além de seus defeitos próprios, admite conceituações de termos que

variam conforme a época de sua escrita e de sua leitura. Os textos legais ainda

carregam outra questão passível de problemas, qual seja os valores e interesses

expressos em uma norma podem não mais coincidir com os atuais80.

De forma sintética ressaltam-se os dizeres de Carlos Maximiliano: “a

palavra é um mau veículo do pensamento” 81 e “não perdura o acordo

estabelecido entre o texto expresso e as realidades objetivas” 82. Essas duas

afirmações sintetizam várias dificuldades enfrentadas pelos intérpretes legais.

A necessidade de interpretar uma norma jurídica admite dois

entendimentos principais. Há aqueles que entendem que qualquer norma jurídica

imprescinde da aclaração de seus termos, e há aqueles que entendem que

somente as normas que possuem certa vaguidade ou imprecisão devem ser

objeto de interpretação.

Ricardo Guastini destaca esses dois posicionamentos sobre interpretação

jurídica83.

80 A obra Hermenêutica e Argumentação propõe essa dificuldade no papel

interpretativo de concretização do direito, qual seja, o distanciamento histórico entre a origem do texto, carregado de intenções de seu autor bem como do espírito da sua época, e o momento atual em que a lei, ou texto, é interpretada e aplicada.80 Por ser a norma jurídica uma decorrência da ação humana, ela carrega em si uma significação, sentido e valor dependentes de um porquê histórico, da mesma forma que o intérprete é um ser historicamente orientado e que faz parte de uma tradição. O intérprete é aquele que busca aplicar a legislação conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente.

81 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 29. 82 Ibid., p. 10. 83 Margarida Camargo também tece algumas considerações históricas a respeito

dos diversos entendimentos jurídicos sobre o papel da interpretação. Começa com a Escola da Exegese a qual propunha que o Poder Judiciário deveria ser restrito ao do apego excessivo às palavras da lei e que qualquer atividade fora deste âmbito representaria um arbítrio. Esta corrente de pensamento representa a pretensão de

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 48

O primeiro adota uma postura restrita de interpretação e atribui uma

possível escolha de significado somente a uma formulação normativa passível

de dúvida ou obscuridade, e, unicamente nesses casos deve ser aplicada a

interpretação. A adoção deste conceito importa na aceitação de que as palavras

têm em si um significado intrínseco ou próprio. Esta concepção origina a teoria

cognitiva da interpretação que considera que interpretar é verificar

empiricamente o significado objetivo dos textos normativos ou a intenção

subjetiva de seus autores. Os enunciados dos intérpretes são enunciados do

discurso descritivo, podem comprovar a veracidade ou não desses enunciados.

Tal teoria entende o sistema jurídico como necessariamente completo (sem

lacunas) e coerente (sem antinomias), não havendo espaço para a

discricionariedade judicial. Toda questão jurídica admite somente uma resposta

justa.

De forma contrária, a postura ampla de interpretação admite uma

atribuição de significado a qualquer formulação jurídica, independentemente de

haver dúvidas ou controvérsias. Tal posicionamento nos leva à conclusão que

todo texto requer uma interpretação, sendo esta um pressuposto necessário à

aplicação da norma a qualquer caso. A própria atribuição de significado a um

texto requer uma valoração, eleição ou decisão. Não há um significado próprio

encontrar na letra da lei a resposta para qualquer conflito apresentado concretamente. Tal posicionamento um tanto extremo recebeu prontamente a crítica de Gény para quem a ocorrência de lacunas não preenchidas pela lei era evidente. Portanto, a mera subsunção do fato à norma geral não é suficiente, devendo a atividade do intérprete se coadunar com as regras e princípios gerais norteadores da ordem jurídica positiva. Já Savigny vê o direito codificado como imposição racional do despotismo, pois não observa os costumes o que acarreta a não efetividade à pura e real vontade popular. A função legislativa ofereceria apenas um mero suporte ao costume para tolir-lhe as incertezas e as indeterminações. O formalismo jurídico alemão também é mencionado por Margarida. Segundo este entendimento a atividade científica seria responsável por estipular conceitos bem definidos cujo objetivo é garantir a segurança das relações jurídicas através da diminuição da ambigüidade e vaguidade dos termos legais. Esse alto grau de racionalidade originou o dogma da subsunção. O positivismo desvincula os fatos de qualquer valoração que lhe pudesse ser inferida, através do processo de generalização e abstração. Embora, esteja presente uma preocupação em relacionar os fatos sociais e o direito, de maneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles. Jhering formula sua crítica ao formalismo. Esse autor vê o direito como processo dinâmico levado pelo espírito prático que chega à realização. Por fim, Margarida Camargo cita Kelsen. Cuja busca pretende isolar o direito de indagações relativas aos criadores da lei ou suas intenções. O fundamento de validade do direito não está nesses fatos, mas na própria norma superior que o prescreve. O ordenamento jurídico positivo encerra-se nele mesmo, prevendo e controlando a sua própria existência como bastante em si mesmo. Na sua teoria não há espaço para a hermenêutica, ou a explicações de termos como compreensão, interpretação e concretização do direito. Basta-lhe a subsunção do fato a norma válida. Atualmente é predominante na doutrina hermenêutica a razão objetiva da lei em detrimento da razão subjetiva ou originária.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 49

das palavras e sim aquele atribuído pelo intérprete. Para este entendimento os

enunciados interpretativos não são verdadeiros ou falsos, fala-se antes em

preferência entre os termos. O ordenamento jurídico não é completo ou coerente

e diante de lacunas os juízes criam um direito novo, e por isso deve ser clara a

demarcação das funções judiciais e legislativas.

Ricardo Guastini apresenta ainda uma teoria intermediária a qual

sustenta que a interpretação pode assumir em certos casos a natureza de

atividade cognitiva e em outros uma atividade de decisão discricionária.

Distingue dois tipos de enunciados interpretativos. Quando o significado

atribuído recai no núcleo essencial resulta então, uma simples verificação do

significado preexistente aceito, mas se o significado atribuído recai sobre uma

área duvidosa, de penumbra, o resultado será uma decisão discricionária. Volta

às noções de casos claros, onde deve ocorrer a aplicação pura do texto e os

casos duvidosos, nos quais o intérprete deve adotar valorações em sua

escolha84.

4.1.3.Como interpretar?

A pergunta acima formulada envolve dois elementos: o intérprete e a

metodologia adotada. O aplicador da norma é quem dirá qual a interpretação

correta do ordenamento jurídico ao caso concreto e a metodologia adotada pelo

mesmo determinará como será o processo interpretativo e qual será o resultado

deste.

Segundo Carlos Maximiliano o intérprete deve possuir três qualidades:

probidade, ilustração e critério. Cabe ao intérprete não só examinar através das

palavras os pensamentos possíveis, mas, principalmente, entre os possíveis o

único apropriado, “o sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor

corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave.”

85

Em seu texto sobre as Teorias da Interpretação Manuel Ortega86 ensina

que a interpretação de normas pode dar lugar a resultados diferentes, cabendo

aos operadores do Direito, na aplicação ao caso concreto, eleger entre as

distintas alternativas para que sua atividade compreenda tanto atos de

conhecimento como de vontade. Segundo ele dois tipos de concepção podem

84 GUASTINI, R. Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003, p. 16-17. 85 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 135. 86 ORTEGA, M. Sobre la interpretación del derecho, 2003.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 50

ser destacados: as teorias prescritivas87 que se dedicam não só a explicar como

se justificam as decisões judiciais, mas também como estas deveriam ser

justificadas para que possam ser consideradas corretas; e as teorias

descritivas88 que partem da experiência jurídica para descobrir quais são os

diferentes elementos que determinam e influenciam no processo decisório.

Esta divisão é bastante atual já que diferencia as posturas formalista e

pragmática. A primeira lidaria com os métodos tradicionais de interpretação:

literal, o sistemático, o histórico e o teleológico. Este método tem como máxima a

subsunção, ou seja, uma norma (premissa maior) deve ser aplicada ao caso

concreto (premissa menor). A nova metodologia constitucional entende que a

87 As teorias prescritivas têm como pretensão fundamental assinalar como os

sujeitos que aplicam o direito devem interpretar as normas. Buscam condicionar e determinar a atividade do intérprete com a finalidade de influir em seu comportamento. Este comportamento para ser considerado correto deve descobrir certos elementos que se encontram na vontade do legislador, na vontade da lei ou na racionalidade argumentativa dos sujeitos que participam do processo. O intérprete recebe instruções que deve seguir para que sua conduta seja considerada legítima. Manuel Ortega destaca três teorias prescritivas: a direção subjetiva, a direção objetiva e a que concebe a interpretação como argumentação. A direção subjetiva entende que o intérprete busca essencialmente o elemento da vontade do legislador, os desejos e fins que efetivamente operaram na mente do legislador no momento de promulgação da norma. Esta teoria é criticada por seu alto grau de ficção. Diante da complexidade dos sistemas jurídicos atuais não é possível encontrar uma vontade efetiva e homogenia, à medida que, o órgão legislativo é composto pela pluralidade de membros e opiniões muitas das vezes contraditórias. Embora esta corrente de pensamento tenha enfraquecido não desapareceu. A direção objetiva considera que há uma vontade objetiva na própria norma, uma vez criada separa-se de seu autor. O êxito de tal concepção foi fruto da necessidade de adequação dos textos legislativos às novas relações oriundas de mudanças sociais, políticas e econômicas. Esta proporciona uma maior liberdade do intérprete, estabilidade do direito, haja vista que adaptado às novas circunstâncias sem a necessidade de modificação de seu texto e o progresso e evolução das instituições jurídicas. Porém, tal forma de interpretar um texto deve ser adotada de forma criteriosa, pois os limites entre a interpretação e a criação do Direito são tênues e devem ser melhor aclarados. Ortega alerta para a possibilidade de que tal interpretação pode modificar realmente a norma, fazer com que esta estabeleça justamente o contrário da intenção inicial, permitindo a interpretação contra legem. Finalmente, a teoria que concebe a interpretação como argumentação. Neste sentido, os termos legais sempre permitem uma margem decisória, pela necessidade de que seja interpretada pela ocorrência de lacunas, pela seleção e qualificação dos fatos que chegam a juízo. O ponto contrário de tal teoria consiste na alta liberdade conferida ao intérprete que diminui consideravelmente a objetividade e a segurança, podendo conduzir à arbitrariedade. Para corrigir tais distorções Manuel Ortega propõe certos limites ou requisitos cujo cumprimento garante a correção e racionalidade da decisão. Dentre eles a necessidade de justificação, de fundamentação e de comunicação intersubjetiva.

88 As teorias descritivas acreditam que o exame da experiência jurídica revela a presença de elementos irracionais que não podem ser eliminados através do processo de justificação porque a motivação se apresenta como um instrumento insuficiente, pois, não permite controlar a atuação judicial. Os representantes do realismo destacam a importância da personalidade do juiz em seu processo decisório. As decisões não são meras reproduções ou aplicações de regras previamente estabelecidas. Manuel Ortega destaca que estas teorias não se restringem a propor novas metodologias jurídicas, mas

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 51

complexidade dos conflitos atuais não encontra resposta satisfatória na

metodologia tradicional. Os casos concretos, principalmente os que envolvem

normas constitucionais, já não podem mais ser encaixados de forma completa

em uma única norma, havendo casos onde os valores envolvidos colidem e a

mera subsunção torna-se impossível, pois várias premissas maiores podem ser

aplicadas. Por tal razão, os doutrinadores têm voltado a atenção para os casos

em si, buscando novas técnicas interpretativas de solução. 89

4.2. Interpretação Especificamente Constitucional

A Constituição é o texto normativo que expressa os valores jurídicos

essenciais para a sociedade por ela regulada. As sociedades contemporâneas

têm como característica sua pluralidade, e tal é evidenciado também através dos

textos constitucionais, junto com valores sociais e protetivos os valores liberais

permeiam as Cartas Políticas. Outro fator diferencial é a ocorrência de normas

abertas e principiológicas90, o que torna a interpretação da Constituição uma

tarefa mais árdua e que necessita de uma metodologia própria. 91

também têm voltado sua atenção à finalidade política, e por tal razão, resultam mais úteis.

89 Ressalta Marcelo Neves que há uma tendência na Hermenêutica contemporânea, principalmente no Estado Democrático de Direito, de enfatizar a dimensão pragmática do processo interpretativo. Tal processo “caminha de uma primazia da segurança formal, passa pelo predomínio da delimitação ou descoberta do sentido material e chega ao problema da incerteza condicionada pelo pluralismo e o dissenso estrutural da esfera pública.” P.357. No entender de Marcelo Neves a interpretação-aplicação jurídica no Estado Democrático de Direito deve considerar a tensão constante entre a validação interna do próprio ordenamento e a validação externa que advém da esfera pública. Somente através de uma mínima congruência entre essas expectativas será possível à manutenção e reconstrução do sentido do texto constitucional.

90 Cláudio Pereira De Souza Neto diz que: “a grande presença dos princípios nas constituições contemporâneas tem sido apresentada como uma das principais razões para se caracterizar a metodologia constitucional como específica.” SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 209.

91 García Amado em seu texto sobre a interpretação constitucional afirma que a interpretação constitucional será dependente da concepção que se tem sobre o valor normativo do próprio texto constitucional. E destaca três correntes sobre a interpretação constitucional. A primeira denominada pelo autor de lingüística, adota a Constituição como um conjunto de enunciados lingüísticos compilados em um texto, o qual se tem por jurídico e de maior hierarquia dentro dos textos jurídicos. Não se questiona sobre a importância ou o papel constitucional. A interpretação ocorre como em qualquer texto jurídico, através do entendimento dos vocábulos utilizados. A concepção voluntarista vê a Constituição como expressão de uma vontade suprema, individual ou coletiva, cujos desígnios concretos e a capacidade de expressão são limites à prática jurídica no ordenamento. Interpretar seria então averiguar os conteúdos de vontade deste texto. Já a concepção material entende o texto constitucional como sendo uma ordem objetiva de valores que constituem uma prefiguração ideal e permanente dos mundos juridicamente

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 52

O Direito Constitucional, por envolver valores jurídico-sociais92 de uma

determinada organização política, não pode utilizar as mesmas técnicas

interpretativas do Direito Privado. A amplitude dos princípios positivados na

Carta Magna não permite a simples subsunção da norma ao caso proposto. E

qualquer conflito pertinente ao âmbito constitucional parte do entendimento de

que “devem as instituições ser entendidas e postas em função de modo que

correspondam às necessidades políticas, às tendências gerais da nacionalidade,

à coordenação dos anelos elevados e justas aspirações do povo” 93.

Neste sentido de uma nova metodologia constitucional o trabalho de

Friedrich Müller – Métodos de trabalho no Direito Constitucional. A sua metódica

abrange os termos hermenêutica, metodologia e interpretação94. O referido

jurista parte das decisões do Tribunal Constitucional Federal da República

Federal da Alemanha para entender a concretização das normas constitucionais.

O autor questiona a teoria tradicional da interpretação segundo a qual um caso

jurídico prático deve ser subsumido ao preceito normativo. O referido tribunal,

atualmente, considera o texto da norma apenas uma primeira instância

interpretativa e limite das alternativas possíveis, evitando apenas as

interpretações contra legem. As decisões do tribunal foram extraídas da

realidade e não segundo uma valoração tradicional restrita às normas.

Porém, Friedrich Müller não pretende excluir das técnicas interpretativas

a concepção tradicional, apenas demonstra que essa não é completa ou única.

Propõe um enfoque múltiplo da metódica de concretização da constituição,

evoluindo de uma lógica puramente formal a uma concretização direcionado ao

caso em voga. 95

possíveis. Portanto, o intérprete deve buscar conhecer os valores adotados pela ordem constitucional.

92 Noção importante sobre valores constitucionais é enunciada por José Moreso quando inicia seu texto sobre primazia constitucional relembrando a idéia de precompromisso expressa no ideal de democracia constitucional. O precompromisso consiste no fato de ater-se a si mesmo em certas situações e excluir determinadas decisões do futuro, para preservar uma decisão do passado que se valora positivamente. MORESO, J., La indeterminación del derecho y la interpretación de la constitución, 1997, p. 166.

93 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 249. 94 Hermenêutica se refere às condições de princípio da concretização jurídica

normativamente vinculada do direito. Metodologia significa a totalidade das regras técnicas da interpretação no trato com normas jurídicas. E interpretação diz respeito às possibilidades do tratamento jurídico-filosófico do texto, i. é, da interpretação de textos de normas. MÜLLER, F. Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 2.

95 Contudo, este novo método, admite ele, não é imune a críticas. A tendência atual de transformar a metódica em sistemas de valores na concretização jurídica pode acarretar a casuística e a transformação do Estado de Direito em Estado do Judiciário. A crescente discricionariedade dos Magistrados tem espaço com a carência de uma

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 53

A doutrina constitucional no Brasil tem buscado solução para o problema

da efetivação de um texto normativo que prevê uma série de valores96, vê-se a

recorrência de dois temas – a efetivação da norma e os princípios

constitucionais.

No tocante à concretização dos princípios Ivo Dantas considera que

qualquer interpretação, principalmente a da própria Constituição, há de ser feita

levando-se em conta o sentido exposto nos princípios fundamentais

consagrados na Lei Maior. A eficácia da Constituição depende não só de sua

fidelidade aos valores sociais e políticos consagrados pela sociedade, mas

também – e principalmente – de uma correta interpretação daquilo que o texto

prescreve97 e apenas uma interpretação que analise a Constituição como um

sistema de princípios e normas obterá o verdadeiro sentido do texto.

Ainda quanto ao tema Humberto Ávila destaca quatro obstáculos à

efetivação dos direitos fundamentais constitucionais.

O primeiro é denominado conseqüencialismo que impulsiona o magistrado

a utilizar o raciocínio jurídico baseado nas conseqüências de sua decisão e não

nas normas ou princípios vigentes.

O segundo obstáculo é o idealismo no qual a interpretação jurídica parte

de modelos ideais, no mais das vezes antigos ou estrangeiros, relegando a

segundo plano o modelo jurídico positivo nacional.

O terceiro é o construtivismo, onde o intérprete parte da premissa correta

de que a norma não é o texto normativo, e sim o resultado da interpretação de

um texto, para chegar à conclusão de que pode construir qualquer alternativa

interpretativa, desconsiderando, inclusive, os conteúdos mínimos dos

dispositivos constitucionais e legais. O efeito disso é claro: o conteúdo semântico

metodologia como a de raiz positivista. Com o intuito de suprir tal falta Friedrich Müller propõe alguns parâmetros que importarão em uma metódica do direito constitucional. Segundo ele os juristas devem transcender a compreensão e a interpretação, chegando à uma aplicação das normas. Para tanto, o mito de que existe uma única solução correta para cada caso proposto dentro da legislação deve ser abolido. O ato de concretizar não se limita às ações de interpretar, aplicar ou subsumir, diametralmente significa produzir uma solução ao conflito social posto ao Judiciário utilizando como parâmetro e limite não só a norma positivada, mas um quadro da democracia e do Estado de Direito.

96 Luís Roberto Barroso escreve que “O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição; b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de interpretação constitucional.”

97 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995, p. 79.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 54

das regras cede em favor de qualquer conteúdo. E por fim, o quarto obstáculo à

efetivação dos direitos fundamentais é o principialismo que acarreta a

manipulação de princípios sem que o aplicador considere devidamente as regras

imediatamente aplicáveis. 98

A positivação cada vez mais constante de valores através de princípios

normativos acarreta uma mudança na estrutura dos ordenamentos jurídicos

necessitando de uma adequação de toda ciência jurídica. Neste sentido a teoria

dos princípios.

4.3. Teoria dos princípios

A teoria dos princípios tem o intuito de responder sobre a qualificação destas

normas jurídicas, sobre seu modo correto de aplicação a fim de obter a melhor

resposta jurídica possível a uma determinada situação. A teoria dos princípios

tem como preocupação analisar a diferenciação entre as regras e os princípios.

Tal distinção será importante a este trabalho haja vista que o estudo de caso

trata de colisões entre regra e princípio e entre dois princípios constitucionais.

Um panorama sobre a referida diferenciação é fornecido por Humberto

Ávila99. O jurista inicia com as lições de Josef Esser o qual utiliza como critério

distintivo a qualidade entre regras e princípios, estes são normas que

estabelecem fundamentos para encontrar um determinado mandamento. Karl

Larenz considera que os princípios não possuem aplicação imediata como as

regras e, por tal razão, somente indicariam a direção para a obtenção de uma

regra sobre a hipótese. Canaris é citado a seguir e afasta os princípios das

regras por duas características: os princípios têm conteúdo axiológico e sua

aplicação somente ocorre através de um processo dialético de complementação

e limitação. No final de sua consideração Humberto Ávila ressalta a importância

de Ronald Dworkin e Robert Alexy, juristas que serão estudados com o objetivo

de destacar os aspectos de ponderação e argumentação no processo de

interpretação e aplicação das normas jurídicas.

A doutrina nacional tem procurado formular uma teoria dos princípios,

estabelecendo conceitos e critérios de diferenciação diversos, no intuito de

98 ÁVILA, H. Direitos fundamentais dos contribuintes e os obstáculos à sua

efetivação. In PIRES, A., TÔRRES, H., 2006, p. 345-361.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 55

adequar a dogmática jurídica ao texto constitucional vigente, repleto de

princípios. Com mais de 15 anos de vigência o texto constitucional necessita da

devida aplicação de todas as suas normas, regras e princípios, nos conflitos

propostos judicialmente, e por isso, a teoria dos princípios se desenvolveu

também na pragmática jurídica. Os direitos fundamentais têm sido enquadrados

nesta categoria de princípios porque são normas constitucionais de caráter

finalístico e definidoras de direitos e garantias. 100

A definição de princípio é construída primeiramente a partir da concepção

que se faz sobre seu caráter e força normativa. Há estudiosos que consideram

os princípios apenas como diretrizes e não como normas101. Porém, com a

constitucionalização positivada os princípios cada vez mais freqüentes nos

ordenamentos jurídicos, a doutrina majoritária tem entendido os princípios como

integrantes do sistema jurídico conjuntamente com as regras. 102 A seguir, a

conceituação de princípios que atenta para a diferenciação entre esses e as

regras, principalmente no tocante à sua finalidade e âmbito de aplicação.

Humberto Ávila propõe três critérios de diferenciação entre regras e

princípios: 1)Quanto ao modo de prescreverem o comportamento – as regras

são imediatamente descritivas e os princípios imediatamente finalísticos. 2)

Quanto à justificação que exigem – as regras pretender correlacionar a

construção conceitual e da norma e a finalidade que lhe fundamenta. Já os

princípios correlacionam o estado das coisas posto como fim e os efeitos da

conduta a ser tomada. 3)Quanto ao modo como contribuem para a decisão – as

regras são preliminarmente decisivas e abarcantes, pretendem gerar uma

solução específica ao caso concreto, enquanto que os princípios são normas

preliminarmente complementares e parciais, tem como pretensão contribuir para

a tomada de decisão. 103

Duas são as orientações propostas por Ronald Dworkin quanto ao papel dos

princípios no tocante às obrigações jurídicas. Inicialmente, pode-se tratar os

princípios jurídicos da mesma maneira que são tratadas as regras jurídicas e

99 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios

jurídicos, 2003, p. 26. 100 De acordo com o proposto, TAVARES, A.. Elementos para uma teoria geral dos

princípios na perspectiva constitucional. In LEITE, G., 2003, p. 44; 101 Neste sentido José Afonso da Silva que enquadra os princípios na categoria de

normas eficácia limitada, dependendo de atividade legislativa para sua efetividade. SILVA, J. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1999, p. 163.

102 Fazem parte desta doutrina Ronald Dworkin, Robert Alexy, Humberto Ávila, entre outros.

103 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003, p. 119-120.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 56

dizer que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados

em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas.

Ou então, pode-se negar que tais princípios possam ser obrigatórios no mesmo

sentido que algumas regras o são. Assim, os juízes vão além das regras a que

estão obrigados a aplicar e lançam mão de princípios extralegais que eles têm

liberdade de aplicar, se assim o desejar, e somente em casos não englobados

pelas regras, de forma excepcional.

Tais abordagens geram diferentes conseqüências, já que a primeira

alternativa trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que

eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente. A segunda

alternativa trata os princípios como resumo daquilo que os juízes na sua maioria

adotam como princípio de ação, quando forçados a ir além dos padrões aos

quais estão vinculados. Ou seja, as alternativas divergem quanto ao fato de

serem os princípios normas jurídicas ou instrumentos externos ao ordenamento.

Para Ronald Dworkin o diferencial entre princípios e regras é de natureza

lógica104. Os princípios serão aplicados pelas autoridades públicas, inclusive

pelos julgadores, quando forem considerados relevantes, apontando para uma

ou outra direção. Ademais, os princípios possuem uma dimensão de peso ou

importância, e quando colidem o intérprete que vai resolver o conflito deve levar

em conta a força relativa de cada princípio envolvido. Neste ponto a ponderação

e o impacto da aplicação de um princípio será determinante para sua utilização.

Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e a escolha de um

princípio ou uma política particular será diversas vezes objeto de controvérsia.

As regras não possuem essa dimensão valorativa, são funcionalmente

importantes ou desimportantes, podendo haver certa hierarquia entre elas. Se

duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua

importância maior, sendo assim, uma delas não pode ser válida. As regras são

aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, dados os fatos que uma regra estipula, ou

a regra será válida, e neste caso, a resposta por esta fornecida deve ser aceita,

ou não, e neste caso ela nada contribui para a decisão.

Ronald Dworkin entende que os princípios são elementos do sistema

jurídico e, portanto, são normas que devem ser consideradas pelo julgador

quando proferir uma decisão jurídica. Entretanto, ressalta que a utilização dos

104 Ronald Dworkin trabalha esta questão, principalmente, quando expõe os

modelos de regras I e II em seu livro Levando os direitos a sério, nestes capítulos o autor rebate a posição tradicional positivista – exemplificado nas concepções de Hart – e propõe a sua visão sobre o modelo a ser adotado.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 57

princípios não pode ocorrer de forma arbitrária, devendo estes ser aplicados de

preferência em casos onde não há no ordenamento uma norma clara e

completamente aplicável. 105 Ele adota a postura pós-positivista segundo a qual

as pretensões normativas podem e devem ser fundamentadas racionalmente.

Essas hipóteses são consideradas Hard Cases ou casos difíceis como são

conhecidas no Brasil.

4.4.A interpretação constitucional nos casos difíceis.

A interpretação, como visto anteriormente, é útil na concretização de

qualquer texto normativo. Entretanto, existem situações que por sua

complexidade exigem uma hermenêutica mais detalhada e difícil. Neste sentido,

surge a doutrina americana denominada de Hard Cases, os quais não

encontram uma solução tranqüila quando inseridos nos ditames legais, não

sendo possível a simples subsunção de uma regra. No prefácio de Levando os

Direitos à Sério Calsamiglia106 esclarece que um caso poderá ser considerado

difícil se existir uma incerteza quanto à aplicação da norma jurídica ao caso

concreto.

A ocorrência dos chamados casos difíceis torna a Ciência Jurídica passível

de questionamentos e incertezas. O sistema jurídico parece incompleto e falho, a

técnica positivista de aplicação do caso concreto à norma elaborada através da

subsunção não encontra mais respaldo na complexidade da sociedade.

No tocante a este trabalho é importante mencionarmos alguns

posicionamentos sobre o assunto, para tanto será utilizada a doutrina Ronald

Dworkin e posteriormente a crítica feita por Manuel Atienza. Ambos lidam com

a preocupação a respeito do excessivo argumento valorativo nas decisões

105 Cláudio Pereira comentando Dworkin ressalta que “o autor destaca

especialmente que, se o juiz possui o poder de decidir por sua própria vontade as questões que lhe são apresentadas, as noções de autonomia pública, segurança jurídica e separação de poderes ficam prejudicadas. De fato, o juiz que está legislando, se apropriando de uma função do legislador – o que cria problemas sérios de legitimação. (...) Quando o juiz legisla no caso concreto está criando normas retroativas. Ademais, a vontade dos jurisdicionados não terá sido levada em conta no processo de produção normativa. Por essas razões, impõe-se ao pensamento jurídico buscar soluções para a discricionariedade judicial.” p. 223-224.

106 Este prefácio ao livro Levando os Direitos a Sério somente é encontrado na versão espanhola do texto sob a nomenclatura ”Ensayo sobre Dworkin”.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 58

judiciais, tendendo essas ao subjetivismo demasiado. Essa parte do capítulo visa

demonstrar que o estudo de caso não deve ser entendido de forma simplista, no

sentido de mera aplicação de normas vigentes. As problemáticas oriundas de

conflitos bioéticos, como o que será proposto, são exemplos dos chamados

casos difíceis, pois envolvem valores relevantes e muitas das vezes

considerados inconciliáveis. Entretanto tais demandas exigem um

posicionamento jurídico, cabendo aos aplicadores encontrar uma forma racional

de ponderar os interesses envolvidos resultando em uma decisão satisfatória.

Impensável falar na Teoria dos Casos Difíceis sem mencionar os

ensinamentos de Ronald Dworkin. Este jurista tem como preocupação inicial

rebater um dos grandes pensadores do positivismo jurídico – Hart. A relação

entre os dois tem pontos semelhantes e pontos contraditórios.

A semelhança, no âmbito deste trabalho, que desejamos levantar é quanto à

concordância sobre a existência de casos difíceis.

A divergência com Hart envolve dois prismas. Primeiro, Ronald Dworkin

critica o normativismo que considera o direito como sendo um sistema composto

exclusivamente por regras por considerar que tal pensamento acarretará

necessariamente na ocorrência de lacunas no ordenamento vigente à medida

que as normas não acompanham o ritmo das necessidades e mudanças sociais.

E, em segundo, questiona a legitimação do Judiciário quando decide por razões

próprias, ocorrendo na verdade a criação de uma nova norma. No seu entender

há que se buscar critérios limitadores e paradigmáticos para as decisões

judiciais, papel este que deve ser realizado pelos princípios jurídicos.

A teoria de Ronald Dworkin sobre a existência e solução dos casos

considerados difíceis perpassa alguns momentos importantes. Primeiro lidará

com a noção de princípio, considerando estes como elementos do sistema

jurídico. Segundo tratará da questão da integridade como método e forma de

entender este sistema. E por fim, entrará na questão da discricionariedade do

Poder Judiciário.

A teoria dos princípios, já anteriormente estudada, é de fundamental

importância na resolução dos casos difíceis, já que não obtendo uma regra

específica no ordenamento jurídico o julgador deverá buscar nos princípios,

sendo estes entendidos também como normas jurídicas, a solução para o caso

concreto.

A segunda teoria de Ronald Dworkin trata da integridade. O autor a coloca

como terceiro ideal juntamente com a justiça e a eqüidade e destaca dois

princípios de integridade. Um chamado de legislativo que pede aos legisladores

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 59

que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente e o outro denominado

de jurisdicional que demanda que a lei seja vista como coerente. No âmbito

deste trabalho será abordado apenas o segundo princípio, parte fundamental de

sua teoria para o entendimento da discricionariedade do Judiciário e a solução

dos casos difíceis.

O direito como integridade rejeita a questão de que os juízes descobrem ou

inventam o direito, sugere que só se entende o raciocínio jurídico tendo em vista

que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. E afirma que não é

possível ao juiz obter uma resposta exclusivamente certa nos casos difíceis do

direito.

A contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete

é uma questão de aspectos diferentes do mesmo processo. Portanto, há como

encontrar uma comparação entre literatura e direito, denominada pelo autor de

romance em cadeia. Cada romancista escreve seu próprio capítulo de modo a

criar da melhor maneira possível o romance, como se a obra fosse de um único

autor. Duas dimensões devem ser observadas nesta elaboração: adequação e

interpretação que tornará a obra mais significativa ou melhor. Neste sentido, o

intérprete deve analisar, primeiramente, qual interpretação se adapta melhor a

um texto e, após, qual torna o romance substancialmente melhor. Um romancista

em cadeia tem muitas decisões difíceis a tomar e pode-se esperar que diversos

romancistas em cadeia tomem decisões diferentes, porém nenhum deles pode

se afastar do romance.

O juiz Hércules – modelo contrafático de Ronald Dworkin -, criterioso e

metódico, deve julgar o caso seguindo algumas etapas. Começa por selecionar

diversas hipóteses que correspondem à melhor interpretação dos casos

precedentes. Elabora uma interpretação com base em princípios competitivos,

mas contraditórios, como uma lista parcial de interpretações. Verifica cada

hipótese dessa breve lista perguntando-se se uma pessoa poderia ter dado os

veredictos dos casos precedentes se estivesse aplicando esta interpretação.

Compara as razões com suas sólidas convicções políticas sobre o valor relativo

de suas interpretações. E, por fim, descarta as interpretações impossíveis,

chegando à melhor interpretação.

Qualquer juiz desenvolverá ao longo de sua formação uma concepção

funcional individualizada do direito na qual ele se baseará para decidir. Mas os

fatos brutos da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em

suas decisões, as convicções pessoais de um juiz em questões de justiça. Fato

este que nos leva à análise da discricionariedade do juiz.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 60

A postura positivista considera que os juízes quando utilizam os princípios

em suas decisões o fazem como algo fora do direito, valendo-se de seu poder

discricionário de aplicá-los ou não107. Afirmam que um juiz não tem poder

discricionário quando uma regra clara e estabelecida está disponível. Apenas de

forma excepcional devem formar seu próprio juízo ao aplicar padrões jurídicos.

Hart, no entanto, afirma que quando o poder discricionário do juiz está em jogo,

não podemos mais dizer que ele está vinculado a padrões, mas devemos, em

vez disso, falar sobre os padrões que ele tipicamente emprega. O poder

discricionário é, então, o agir de acordo com aquilo que os tribunais têm por

princípios. Mas para esta corrente de pensamento princípios e políticas não são

regras válidas de uma lei acima do direito, porque certamente não são regras.

São padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona de acordo com suas próprias

luzes, no exercício de seu poder discricionário.

Para Ronald Dworkin, o conceito de poder discricionário é relativo,

admitindo-o somente em casos onde há uma série de alternativas previamente

estabelecidas. O poder discricionário pode ser entendido como um espaço vazio,

circundado por diversas restrições. O juiz quando exerce sua função jurisdicional

não se propõe simplesmente a declarar, como dado frio, o que foi primeiramente

estabelecido pelo Legislativo. Em seu entender o julgador realmente possui tal

dever como justificativa para sua própria decisão. Se for assim, a regra social

não pode ser a fonte do dever, como Hart acredita que seja.

Na maioria dos casos difíceis, os juízes assumem uma postura diferente da

descrita por Ronald Dworkin (de que o juiz deve decidir com base na

argumentação que lhe parecer a mais forte), enquadrando sua divergência como

uma divergência acerca dos padrões que eles estão proibidos ou obrigados a

levar em conta, ou acerca do peso relativo que estão obrigados a lhes atribuir.

Na exposição sobre os casos difíceis – aqueles onde aparentemente não há

uma ou somente uma solução para a lide ou conflito - Ronald Dworkin percorre

três etapas principais108.

Inicialmente, resume a postura da Teoria do Positivismo Jurídico para tais

situações ressaltando que quando uma ação judicial específica não pode ser

submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma

107 Para Ronald Dworkin somente faz sentido falar em Poder Discricionário quando

alguém é encarregado de tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade. DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 50.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 61

instituição, o juiz tem o poder discricionário para decidir o caso de uma maneira

ou de outra, parecendo supor que uma ou outra das partes tinha o direito

preexistente de ganhar a causa. Porém, para o autor tal idéia não passa de uma

ficção porque, na verdade, o juiz legisla novos direitos jurídicos, e em seguida os

aplica retroativamente ao caso em questão.

A seguir passa à sua crítica, considerando essa teoria da decisão judicial

totalmente inadequada, pois, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma

das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. Não há um

procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos

casos difíceis.

Por fim, Ronald Dworkin propõe uma alternativa à solução dos mesmos. Diz

que o ideal seria o juiz (Hércules), mesmo nos casos difíceis, descobrir quais são

os direitos das partes, e não inventar novos direitos retroativamente. Isso é o

ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática.

As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas

e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além

disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser

decididos nem mesmo se ampliadas ou reinterpretadas as regras existentes.

Diante desta necessidade prática admite Ronald Dworkin que os juízes às

vezes são levados a criar um novo direito, seja de forma dissimulada ou

explícita. Porém ele coloca três questões que devem ser analisadas.

Primeiro, ao criar um novo direito os juízes devem agir como se fossem

delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os

legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema. Ocorre aqui um

problema de legitimidade haja vista que as leis de uma comunidade devem ser

criadas por pessoas eleitas pelo povo. Como os juízes não são eleitos, o fato de

eles criarem leis parece estar comprometido.

Além disso, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso

diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que

tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.

Esses dois argumentos se combinam para sustentar o ideal tradicional de

que a decisão judicial deve ser o menos original possível.

Outro fator impeditivo de criação de normas pelo julgador é o fato de que as

novas decisões refletem tanto a moralidade política do próprio juiz, como

108 Utilizaremos como referência para esta parte do trabalho o capítulo 4. Casos

Difíceis do livro Levando os Direitos a sério.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 62

também a moralidade que se acha inscrita nas tradições do direito costumeiro, e

tais moralidades podem ser diferentes.

Ronald Dworkin encerra dizendo que se deve confiar nas técnicas de

decisão judicial que, a nosso juízo, possam reduzir o número de erros, com base

em algum juízo a respeito das capacidades relativas dos homens e das mulheres

que podem desempenhar diferentes papéis. E fornece uma orientação aos

juízes: eles podem muito bem errar nos juízos políticos que emitem, e devem,

portanto, decidir os casos difíceis com humildade109.

As considerações de Ronald Dworkin sobre os casos difíceis levam à sua

conclusão de que mesmo nesses, utilizando os princípios como parâmetro,

pode-se obter uma única resposta correta para a lide proposta. Porém,

reconhece que na prática é difícil, por vezes impossível, encontrar tal resposta,

mas mesmo assim isto não invalida sua afirmativa de que ela existe, embora não

encontrada.

Manuel Atienza110, fazendo uma crítica ao pensamento de Ronald Dworkin,

diz que na verdade para este a distinção entre casos fáceis ou difíceis é

relativizada, pois não é necessário um método para cada espécie de caso e, em

última análise, mesmo os casos difíceis somente admitem uma resposta correta,

o que os transformaria para o juiz Hércules em um caso fácil.

Para o referido autor, a distinção de Ronald Dworkin entre regras e princípios

não pode ser aplicada aos princípios bioéticos porque nenhum deles pode ser

interpretado como simples diretrizes. Ademais Manuel Atienza discorda que os

princípios morais podem ser hierarquizados da maneira como propõe Ronald

Dworkin, embora ressalte que alguma espécie de ordenação deva haver no

processo de aplicação.

Manuel Atienza apresenta uma teoria que serviria como método jurídico para

a resolução dos casos difíceis, especialmente os relacionados à bioética. Tal

método importa na observância de dois passos: a construção de uma taxonomia

que permita enquadrar cada caso dentro de uma determinada categoria, o que

constitui o primeiro esforço argumentativo do tribunal; e a elaboração de uma

série de regras de prioridades que não supõe uma hierarquia estanque entre os

princípios.

O próprio jurista reconhece que seu método ainda leva a um conjunto de

soluções abertas e incompletas, mas isso não significa que acarreta decisões

109 DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 203. 110 ATIENZA, M. Los limites de la interpretación constitucional. De nuevo sobre los

casos trágicos, 1997, p. 11.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 63

arbitrárias ou subjetivas, devendo sempre obedecer a critérios de racionalidade e

coerência. Ele utiliza os ensinamentos os quatro princípios kantianos: princípio

da autonomia, princípio da dignidade, princípio da universalidade ou igualdade e

o princípio da informação. Porém, acredita que somente a aplicação destes

princípios não será suficiente para solucionar casos difíceis e bioéticos e elenca

outros. Como: princípio do paternalismo justificado (que considera lícito a

interferência na vida de outro em determinados casos), princípio do utilitarismo

restringido (admite uma ação que não cause benefícios a uma pessoa se produz

um benefício apreciado para outros, se há o consentimento do afetado e se não

é uma medida degradante), princípio do trato diferenciado (há hipóteses lícitas

de tratamento desigual entre as pessoas) e princípio de segredo (permite ocultar

informações sobre a saúde de um indivíduo em determinadas exceções).

A problemática deste modelo é admitida pelo próprio autor quando afirma

que esta série de princípios ajuda na solução de algumas situações, mas não

permite resolver a complexidade de certos casos difíceis. Por tal razão os

princípios precisam ser concretizados na forma de normas. E é nesta

necessidade que reside a dificuldade dos problemas bioéticos. O desafio é

construir a partir dos princípios um conjunto de pautas específicas que resultem

coerentes e permitam resolver os problemas práticos que não apresentam um

consenso. Por fim, Manuel Atienza afirma que a liberdade de consciência e de

livre escolha de decisões pressupõe uma responsabilidade e uma reflexão sobre

qualquer tema objeto de debate. E somente através desse exercício racional

será atingido o ideal de que as leis correspondam às escolhas de cidadãos

conscientes.

A solução, segundo Manuel Atienza, poderia ter origem em duas vias: a

legislativa e a judicial. A legislativa tem como ponto positivo sua legitimação

decorrente de sua composição democrática, mas acarreta o risco de não suscitar

um consenso entre os legisladores e não alcançarem o nível de concretização,

ou serem por demais específicas não comportando a diversidades de situações

fáticas. A segunda via, e mais adequada para os dilemas bioéticos segundo ele

é a judicial. Seja por meio de um julgador comum ou através da criação de um

comitê de âmbito nacional que funcionaria como segunda instância para os

casos bioéticos.

No âmbito deste estudo, a pretensão restringir-se-á à via judicial. A

discussão não adentrará no papel do Poder Legislativo ou na questão da

legitimidade do Tribunal Constitucional. Apenas serão analisadas as hipóteses

interpretativas que reclamam um posicionamento judicial específico. Neste

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 64

sentido a contribuição de Ronald Dworkin será preciosa, vez que, sua teoria,

através da ponderação dos princípios, fornece um instrumental prático para a

concretização do Direito em casos de conflitos entre valores morais importantes.

4.5. Aspectos da Argumentação Jurídica de Robert Alexy

Robert Alexy segue o pensamento de Ronald Dworkin sobre a existência

de normas e princípios dentro do sistema jurídico, porém acrescenta o elemento

procedimento. Pretende ele elaborar uma teoria analítica e descritiva da

argumentação jurídica. Difere de Ronald Dworkin, pois entende que as regras

procedimentais não garantem a obtenção de uma única resposta correta, e sim

que os vários participantes do discurso jurídico cheguem a soluções racionais,

embora às vezes possam ser incompatíveis entre si.

O fenômeno denominado de Colisão de Direitos Fundamentais por

Robert Alexy111 ocorre quando o exercício de um direito fundamental gera

conseqüências negativas sobre direitos fundamentais de outros cidadãos,

acarretando assim, um conflito de direitos.

Os direitos fundamentais ou constitucionais são direitos abstratos, e

positivados na maioria dos textos constitucionais por meio de princípios.

Considera ele que os princípios são mandados de otimização que se

caracterizam por sua aplicação em graus distintos de acordo com o caso

concreto, buscando sempre sua realização na maior medida possível, fática e

juridicamente.

A listagem dos direitos fundamentais pelo ordenamento constitucional é

apenas a primeira fase de sua concretização. Após deve haver a determinação

do peso relativo a cada direito considerado prima facie, ou seja, o

estabelecimento do papel dos direitos dentro da razão jurídica. Segundo Robert

Alexy os princípios devem ser promovidos pela prática jurídica e

institucionalizados pela decisão política, sendo a força obrigatória dos direitos

fundamentais controlada pela Corte Constitucional.

Para Robert Alexy a solução da colisão destes direitos pode ser entendida

segundo dois entendimentos sobre o sistema jurídico: a teoria das regras e a

teoria dos princípios.

111 ALEXY, R. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos

fundamentais no Estado de Direito Democrático, 1999.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 65

A teoria das regras estabelece que pelo menos um dos direitos deve ser

declarado inválido, que uma das normas deve ser declarada não-aplicável ou

que ambas devem ser descartadas. A aplicação desse tipo de norma ocorre com

a subsunção. Contudo, a dificuldade de adoção desta teoria é a de conciliar a

invalidação de um princípio constitucional sem que ocorra uma invalidação do

próprio texto constitucional, ou seja, preterindo um princípio a outro se torna

difícil a vinculação ou obrigatoriedade da constituição.

A teoria adotada pelo autor é a teoria dos princípios, que se baseia na

seguinte premissa: quanto mais intensa é uma intervenção em um direito

fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. O ponto

positivo desta teoria é o fato de conciliar a vinculação que deve ter a regra

constitucional à flexibilização do mesmo texto, possibilitando que um princípio

não seja efetivado em determinado momento sem que isto represente a sua

invalidez. Esta teoria possibilita que dois direitos ou princípios aparentemente

conflitantes permaneçam no mesmo ordenamento sem que ocorra a invalidade

de um deles, pois aplica a ponderação. Pondera-se, com base nos elementos

disponíveis no caso prático, qual direito ou princípio conduz à solução da colisão,

devendo prevalecer o que importa na menor interferência na liberdade ou no

direito fundamental do outro.

A ponderação pode ser conceituada como técnica jurídica de solução de

conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão,

insuperáveis pelas formas de hermenêutica tradicionais. 112

Toda colisão entre princípios pode ser expressa como uma colisão entre

valores. Isto demonstra que o problema de prioridade entre princípios

corresponde a um problema de hierarquia entre valores e que a inclusão de

direitos fundamentais no sistema jurídico conduz à conexão entre Direito e

Moral113. E justamente por envolver valores a resposta correta para a

ponderação entre os princípios conflitantes não é clara, não devendo a teoria do

discurso ser entendida como um instrumental capaz de determinar de forma

exata o peso de cada direito, mas mostra os argumentos racionais possíveis

112 BARCELLOS, A., Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005. p.

23. A autora citada propõe três etapas para a técnica da ponderação: a primeira tem como finalidade a identificação dos enunciados normativos em tensão, a segunda etapa os fatos relevantes o caso concreto e por fim, a terceira lida com a decisão que atribuirá os pesos devidos aos diversos elementos normativos pertinentes ao caso, relacionando fatos e normas.

113 ALEXY, R., Derechos, Razonamiento Jurídico y Discurso Racional, 1993, p. 49

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 66

acerca dos direitos. Para tanto Robert Alexy propõe que a teoria dos princípios

necessita de um complemento através da teoria da argumentação jurídica.

A racionalidade da argumentação jurídica não busca a correta resposta ao

conflito, mas sim se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis

de controle racional. A noção de única resposta correta faz referência a um

consenso o que é pouco provável quando se trata de princípios. A teoria da

argumentação tem como ponto fundamental a rejeição da lógica formal dedutiva

como suficiente para o processo jurídico decisório, engloba a tópica de Viehweg,

a nova retórica de Perelman e a lógica formal de Toulmin114. Este trabalho lidará

de forma mais específica com a teoria argumentativa procedimental de Robert

Alexy.

O processo argumentativo inicia-se de forma semelhante ao processo

subsuntivo. Primeiro o intérprete deve analisar o ordenamento jurídico e verificar

quais as normas jurídicas importantes no caso concreto e após faz a interação

entre os fatos e as normas. Porém, após essa etapa a argumentação propõe um

terceiro passo – a atribuição de peso às normas encontradas e a gradação de

intensidade em que a solução deverá ser aplicada. 115

Nesta etapa importante será o estudo do princípio da proporcionalidade

que é entendido hoje como um dos melhores parâmetros no processo

argumentativo. O princípio da proporcionalidade tem guarida na doutrina jurídica

durante o período de crise do sistema legalista116. O ordenamento jurídico inicia

114 Manuel Atienza elabora uma síntese do pensamentos destes três autores.

Viehweg caracteriza a tópica por três elementos: 1) técnica do pensamento problemático; 2) noção de topos ou lugar-comum; 3) busca e exame de premissas. Os tópicos devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção de plausibilidade ou que, pelo menos, impõem a carga da argumentação a quem os considerada. (p. 49). A idéia do plausível também perpassa os argumentos de Perelman. O raciocínio jurídico em Perelman deve atentar para a conciliação dos valores de eqüidade e segurança jurídica, a procura de uma solução que seja de acordo com a lei, mas também que observe os parâmetros eqüitativos, razoáveis e aceitáveis (p. 77). Toulmin considera a argumentação como atividade total de propor pretenções com o intuito de criar razões que serão criticadas e defendidas (p. 95). ATIENZA, M., As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2003.

115 Neste sentido o ensinamento de Ana Paula de Barcellos que propõe ainda dois critérios gerais para a aplicação da ponderação: a preferência das regras sobre os princípios constitucionais e a preferência das regras que tutelam a dignidade humana e os direitos fundamentais em detrimento das demais. BARCELLOS, A. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 2003. p. 57-58, 70.

116 Pode ser feito um paralelo entre a origem do princípio da proporcionalidade e a Bioética, ambas surgem em um contexto de questionamento da moral vigente e do papel das ciência no comportamento humano. Enquanto o primeiro procura fornecer uma legtimidade para além da legalidade, a segunda busca limites nos valores para as descobertas e experimentos científicos.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 67

um processo evolutivo onde a mera previsão legal de um determinado

comportamento não o torna legítimo. 117

A proporcionalidade traz em si a noção de ponderação entre valores, a

aplicação de um determinado princípio deve ser proporcional à inviabilidade do

outro princípio. Willis Santiago Guerra Filho define o princípio da

proporcionalidade como “mandamento de otimização, do respeito máximo a todo

direito fundamental em situação de conflito com outro(s), na medida do jurídico e

faticamente possível.” 118

Porém, como ensina Humberto Ávila, o princípio da proporcionalidade não

deve ser confundido com a justa proporção, ponderação de bens, concordância

prática, proibição de excessos ou razoabilidade. O princípio da proporcionalidade

atenta para três exames: 1) o da adequação: exige uma relação entre fim e

meio; 2) necessidade: observa se existe algum meio alternativo àquele

escolhido; e 3) proporcionalidade em sentido estrito: comparação entre a

importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos

fundamentais. 119

Na etapa final do processo argumentativo será necessária a utilização

deste princípio. Os valores envolvidos em um caso difícil serão ponderados e

será analisada a medida de aplicação do direito fundamental que no caso em

voga deve prevalecer.

Robert Alexy propõe algumas regras procedimentais para verificar a

racionalidade da argumentação jurídica120. Dentre elas estão as regras

fundamentais, quais sejam: nenhum falante pode contradizer-se; todo falante só

pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita; todo falante que aplique um

predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplica F também a qualquer

117 Larry Kohlberg desenvolveu o modelo de avaliação do desenvolvimento do

julgamento moral apoiado no estruturalismo de Piaget, descrevendo e demonstrando que os indivíduos constroem a consciência moral segundo uma seqüência que se inicia no período pré-convencional e culmina no período pós-convencional No nível pré-convencional a consciência moral é direcionada por noções de punição e hedonismo instrumental relativista. No estágio convencional a consciência moral do indivíduo é orientada para a lei e para a ordem. E por fim, no último estágio, o pós-convencional, a consciência moral supere à noção de normas legais chegando aos princípios universais de consciência, no qual o indivíduo é capaz de desobedecer uma lei por considerá-la injusta, arcando com as conseqüências de seu ato. KOHLBERG, L., Moral stages and moralization: the cognitive developmental approach, 1976.

118 Guerra Filho, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade, 2003. p.245.

119 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003. p. 114-116.

120 ALEXY,R., Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, 2005. p. 283.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 68

objeto igual a A em todos os aspectos relevantes; todo falante só pode afirmar

os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as

situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes, e;

diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes

significados121.

A temática discutida neste trabalho enquadra-se perfeitamente nesta

perspectiva procedimental, à medida que, o aborto, qualquer que seja sua

motivação, desperta argumentos quase inconciliáveis sendo difícil a menção a

qualquer tipo de consenso, ou uma única resposta correta. Porém, a submissão

da legalidade da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia ao

Poder Judiciário requer ao menos uma fundamentação racional da decisão

proferida.

121 A teoria do discurso pretende oferecer um critério, em condições específicas,

capaz de determinar a racionalidade de uma decisão e do processo decisório na Ciência Jurídica. Segundo Robert Alexy não é a produção de segurança o fator característico da racionalidade do Direito, e sim o cumprimento de uma série de condições, critérios ou regras.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 69

5 ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL

5.1.Apresentação do Estudo de Caso

O termo antecipação terapêutica do parto foi proposto pela antropóloga

Débora Diniz em suas diversas obras sobre o tema. Segundo a autora a

substituição do termo aborto pela expressão antecipação terapêutica do parto

retira da gestante o peso de séculos de preconceitos e dogmas religiosos. A

situação vivenciada por tais mulheres é por demais específica para ser

enquadrada juntamente com os outros casos de interrupção da gestação.

Embora esta redefinição seja objeto de críticas, no âmbito deste trabalho, será

adotada esta nomenclatura como opção metodológica visando diferenciar esta

hipótese das demais espécies de procedimentos médicos com fim de

interromper a gravidez.

O Brasil é o quarto país do mundo em ocorrência da anencefalia fetal de

acordo com dados disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde,

estando atrás somente do México, Chile e Paraguai. No total de 10 mil

gestações levadas a termo em nosso país, cerca de nove apresentam essa má-

formação do feto. Essa taxa é mais de cinqüenta vezes maior que a observada

em diversos países europeus. Tal proporção pode ter como fundamento dois

fatores: a carência nutricional, principalmente de vitaminas do complexo B, e a

proibição legal da interrupção da gravidez.

A repercussão do tema na mídia nacional é extrema. Diversos segmentos

sociais expressam opiniões e sentimentos a respeito da interrupção da gestação

nestes casos. A falta de precisão dos termos e a ignorância também são

recorrentes na discussão. Contudo, a evidência de assunto de tamanha

importância nos meios de comunicação é tida como válida e útil, desde que o

conflito de posições seja exposto em um debate racional e aberto a todos. Um

Estado Laico como o Brasil deve preferir a utilização de argumentos não

religiosos, embora na prática tal não ocorra e ainda vemos a influência

preponderante das posições religiosas.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 70

À guisa de ilustração, são trazidas as seguintes reportagens: “O parto da

Justiça” - Revista Época de 13/09/1999; “Autorização para aborto dura até 1

mês” – Folhaonline em 27/02/2005; “Conselho adia debate sobre aborto de

anencéfalo a pedido de Zilda Arns” – Folhaonline em 17/02/2004; “OAB é a

favor de interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal”- Folhaonline

em 17/08/2004; “Saiba mais sobre anencefalia”- Folhaonline em 13/07/2004;

“O direito ao aborto”- GLOBO em 06/03/2004; “Liminar concedida pelo

Supremo Tribunal Federal”- Agência UNB em 23/07/2004; “Entrevista:

Aborto de fetos / bebês anencéfalos”- Notícias Dia-a-Dia em 23/07/2004;

“Brasil é o quarto país em nascimento de fetos com anencefalia, revela

OMS”- AOLNotícias em 19/08/2004; “Juiz de Goiânia autoriza aborto de feto

anencéfalo”- AOLNotícias em 17/11/2004; “Médico Com Causa” – Revista Isto

É, número 183 de 9/02/2005; “Conselho apóia interrupção da gravidez em

casos de anencefalia fetal”- Folhaonline em 10/03/2005; “Mulher consegue

na Justiça aborto de feto anencéfalo” – Agência Estado de 10/05/2005; “O

direito irrefutável ao aborto” – Jornal da Ciência de 28/10/2005;

Representantes de diversas crenças religiosas, algumas delas destacadas

no livro Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade, opinam a

respeito da moralidade da interrupção do parto.

O primeiro credo exposto, e certamente o mais atuante no tocante ao

aborto, é o catolicismo. Segundo Dom Odilo Pedro Scherer122:

“Toda agressão contra a vida humana, ainda mais a vida frágil e inocente, por qualquer motivo, ainda que seja em nome da ciência, ou do conforto de outras pessoas, não faz honra à humanidade e é sinal de decadência da ética e retrocesso na civilização. A CNBB espera que a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL esteja orientada pelo respeito pleno à frágil vida do feto / bebê anencéfalo.”

O Rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita

Paulista, esclarece que123:

“A meu ver, a antecipação do parto em caso de anencefalia deve ser permitida. (...). O que o judaísmo pode oferecer a estas mulheres é apoio humano e moral. Como rabino, eu faria tudo ao meu alcance para que a mulher possa tomar essa decisão sem o mínimo sentimento de culpa. Muito pelo contrário, eu acho que a decisão da mãe tem que ser apoiada.”

122 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 46. 123 Ibid., p. 47.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 71

O Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Silva, destaca a

posição de sua denominação religiosa124:

“A posição da Igreja Universal é sempre a favor da qualidade de vida e do bem-estar das pessoas. Nós entendemos que há casos em que a interrupção da gravidez é a atitude certa a ser tomada. A nossa fé tem que ser conduzida com inteligência, caso contrário cairemos no fanatismo. Temos que preservar a vida da mãe, já que seria inútil dar à luz uma criança que não tem chances de vida.” Lairton de Oxum é representante da Associação Brasileira de Umbanda,

Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios diz que125:

“A minha opinião é de que não deve haver a antecipação do parto porque como espiritualista acredito na reencarnação. (...) Mas a opinião de nossa associação é favorável que o Supremo Tribunal Federal conceda essa liminar126, pois a decisão depende das próprias grávidas. (...) Mas nós damos o conforto espiritual através de orações, de preces, porque essa criança é um espírito, então como espírito nós temos que olhar por este lado.”

Lama Tartchin praticante budista acredita que127: “De acordo com os ensinos budistas tibetanos, para que um ser venha a ter uma completa existência são necessários 3 fatores: espermatozóide, óvulo e mente. Se um corpo veio a se formar sem um órgão, impossibilitando que este venha a ter uma existência independente (não morrer após o parto), é porque houve a falta de um ou mais dos 3 fatores. No budismo não há pecado. Há carma, isto é, lei da causa e efeito. A gestante que será responsável pelo efeito de seus atos e a decisão de seus atos diz respeito apenas a ela.” Por fim, destaca-se a posição da Federação Espírita Brasileira, através de

seu diretor Geraldo Campetti128: “(...) doutrina espírita em relação ao aborto é a de que não somos contra o aborto, mas a favor do não-aborto. Entendemos que o ser humano é, também, espírito. Nesse sentido, não poderíamos ser favoráveis a um aborto provocado, mesmo com a conotação terapêutica no caso da anencefalia. (...). Nossa opinião a respeito da antecipação do parto também é visto como um tipo de aborto, e é um aborto provocado e, no nosso entendimento, não deve se realizado.”

124 Ibid., p. 48. 125 Ibid., p. 49. 126 À época dessa entrevista ainda não tinha sido concedida a liminar pelo Ministro

Marco Aurélio que foi posteriormente revogada pelo plenário. 127 Ibid., p. 50. 128 Ibid., p. 51.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 72

5.2.Aporte Médico

A pretensão deste estudo não é a análise técnica sobre a anencefalia fetal.

Porém, o estudo de caso envolve conceitos e determinações interdisciplinares.

Assim sendo, este capítulo objetiva apresentar, mesmo que de forma breve,

aspectos sobre a definição e o diagnóstico dessa anomalia, objetivando analisar

a certeza científica de tal procedimento.

Durante séculos, em diversas culturas, a arte de curar era considerada

uma prática mágico-religiosa. Os responsáveis pelo tratamento de doenças

eram, em sua grande maioria, pajés e sacerdotes, e o instrumento básico para a

cura era a fé do doente. No início da era cristã a prática da medicina em Roma e

nas grandes cidades da época era feita quase que exclusivamente por médicos

gregos. Adicionalmente eram numerosos os charlatães que prescreviam ervas,

amuletos ou encantamentos. Na Roma Antiga a medicina era considerada uma

profissão indigna para um cidadão romano.

Hipócrates, na Antiga Grécia, inicia uma visão empírica da medicina, em

que algumas doenças passaram a ter origens naturais. Ele, considerado pai da

medicina, foi o primeiro a empregar o termo diagnóstico, que significa

discernimento, formada do prefixo dia - através de e gnosis - conhecimento.

Diagnóstico, portanto, é discernir pelo conhecimento. A instrumentalização da

ciência médica teve início no século XIX com a invenção do estetoscópio por

Laennec em 1816. Porém, somente no final do século passado, a medicina

adquiriu um caráter científico, onde há uma causa para a doença e existe um

meio eficaz de combatê-la. Louis Pauster é considerado o precursor dessa fase

científica da medicina, considerada a primeira revolução dessa área de

conhecimento.

A tecnologia médica se desenvolveu no decorrer do século XX, com o

diagnóstico por imagens, endoscopia, métodos gráficos, exames de laboratório e

provas funcionais. A influência da corrente de pensamento denominada de

positivismo na medicina acarretou a busca maior pela certeza científica através

do aperfeiçoamento do material humano e instrumental envolvidos. O positivismo

defende que só a ciência pode satisfazer a necessidade de conhecimento, visto

que, só ela parte dos fatos e aos fatos se submete para confirmar suas

verdades, tornando possível a obtenção de noções absolutas. Nesse contexto,

surge a chamada Medicina Baseada em Evidência (MBE). De acordo com a

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 73

conceituação proposta por David Sackett129 a MBE é a integração das melhores

evidências de pesquisa com a habilidade clínica e a preferência do paciente e

envolve cinco fatores: desenvolvimento de estratégias para identificar e analisar

as evidências; criação de revisões sistemáticas e sumários concisos dos efeitos

da assistência à saúde; criação de revistas dedicadas à MBE de publicação

secundária; criação de sistemas de informação que nos trazem os avanços em

segundos e identificação e aplicação de estratégias efetivas para o aprendizado

durante toda a vida e para melhora de nosso desempenho clínico.

Hodiernamente, estamos vivendo uma nova revolução representada por

procedimentos como a engenharia genética e o estudo da bioquímica cerebral e

novos métodos de diagnóstico e tratamento.

O diagnóstico pré-natal de anomalias fetais foi um avanço na medicina

propagado a partir da década de 50, mas, difundida no Brasil no final dos anos

70. Nos últimos anos desenvolveu-se uma nova área multidisciplinar de atuação,

denominada Medicina Fetal, que incorporou às técnicas de diagnóstico as

possibilidades da terapêutica intra-uterina.

O fechamento do tubo neural ocorre em 20 a 28 dias após a concepção.

Não ocorrendo, o tecido neural fica exposto e há rupturas secundárias na brida

amniótica. Os denominados defeitos de fechamento do tubo neural ocorrem em

conseqüência de anormalidades de formação fetal em fases precoces da

gestação. As espécies de defeitos de fechamento do tubo neural são:

anencefalia, inincefalia, espinha bífida e encefalocese.

A anencefalia pode ser conceituada como sendo: “Um dos defeitos do tubo neural caracterizado pela ausência completa ou parcial do cérebro, das meninges, do crânio e da pele. Pode ser dividida em holocrania e merocrania. A ausência de toda a calota craniana caracteriza a holocrania. Na merocrania, ocorre a ausência parcial da calota craniana com ectopia do encéfalo. (...) Representa uma má-formação letal.” 130

A anencefalia é considerada a fase final da acrania, em conseqüência da

ruptura do tecido cerebral anormal, não protegido pela calvária.

129 SACKETT, D., Medicina baseada em evidências: prática e ensino, 2003. 130 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003. p. 173.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 74

Figura 1. Foto de recém nascido anencéfalo131

Roger Sanders traz em sua obra a epidemologia da doença. Segundo ele a

incidência da anencefalia é geográfica e depende da população. E a

hereditariedade é multifatorial dependendo de implicações de fatores genéticos e

ambientais. A incidência é variável na dependência da região e outros fatores

como a raça, porém ocorre de 0,1 a 1% dos nascituros.

Antonio Moron estabelece três fases na ocorrência da anencefalia.

Primeiro, há um defeito no fechamento do neuróporo rostral. A seguir, ocorre a

exencefalia, onde há a exteriorização do cérebro desenvolvido para o meio

amniótico, e, finalmente, resulta na destruição do tecido cerebral.

O diagnóstico precoce pode ser realizado através de sonda transvaginal a

partir da 11a semana, período no qual se observa a ausência da calota craniana

com exteriorização de tecido cerebral. A partir da 15a semana os aspectos

característicos da anencefalia são diagnosticados com precisão por meio da

ultra-sonografia. O tecido cerebral é gradualmente eliminado pelo contato com o

líquido amniótico e desaparece totalmente na 17a semana, restando apenas as

veias intracranianas. O exame ultrassonográfico apresenta uma alta precisão

diagnóstica para a detecção de acrania durante o segundo semestre com taxa

diagnóstica de 100%.132

131 Foto obtida no documentário Doutor, Eu não sabia, produzido pela ANIS. 132 Ressalte-se que obviamente tal taxa de precisão depende da qualificação do

profissional que realizará o exame. Por isso, para a determinação da ocorrência desta anomalia os exames são confirmados por outra equipe médica através de novo exame de ultra-sonografia. A referida taxa de precisão é proposta por NYBERG, D., Diagnostyc imaging of fetal anomalies, 2003. p.294.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 75

Figura 2. Ultrassonografia de feto anencéfalo133

Figura 3. Ultrassonografia em três dimensões de feto anencéfalo134

Os autores estudados ressaltam o chamado diagnóstico diferencial. São

exemplos: encefalocele grande – o crânio será visível através de um exame

minucioso, outras malformações estão associadas como a inincefalia e

hidrocefalia; microcefalia – o crânio é pequeno. Essas anomalias não importam

necessariamente inviabilidade fetal e por tal razão diferem do estudo de caso

proposto. 135

133 Ultrassonografia fornecida pelo IFF. 134 Imagem obtida no endereço eletrônico: www.thefethus.org em 02.01.2006 135 Este dado é importante à medida que reportagens, muitas das vezes sem o

devido embasamento científico, afirmam a sobrevivência por meses e até mesmo anos, igualando anomalias diversas.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 76

Pesquisas recentes procuram determinar a sobrevida de fetos anencéfalos.

Em uma revisão de 181 recém-natos portadores dessa anomalia apenas 40%

sobreviveram até 24 horas e 5 % permaneceram vivos por até uma semana.

Outro estudo de 205 infantes anencéfalos, pesando mais de 2,5 quilos mostrou

que apenas 9% tiveram uma sobrevida de uma semana. 136

Diversos estudos buscam demonstrar também a alta periculosidade da

gravidez à vida da gestante. O médico obstetra Thomaz Gollop137 ressalta dois

fatores que agravam os riscos maternos: 1) possibilidade de polidrâmnio, ou

seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero,

possibilidade de atonia após o parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso

do líquido, a possibilidade de deslocamento prematuro de placenta, que é um

acidente obstétrico considerado grave. O segundo fator é que por não terem o

pólo cefálico os fetos anencéfalos, podem iniciar a expulsão antes da dilatação

completa do colo do útero e ter a chamada distócia do ombro, porque nesses

fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um

acidente obstétrico na expulsão do feto. Segundo ele a distócia do ombro

acontece em 5%, o excesso de líquido em 50%138 e a atonia do útero em 10% a

15% dos casos.

O médico Jorge Andalaft139, coordenador da comissão Violência Sexual e

Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de

Ginecologia e Obstetrícia, observa um aumento de 22% no parto de fetos

anencéfalos. Esse acréscimo decorre da própria deformidade que impossibilita o

encaixe adequado do feto devido à ausência da completa formação da caixa

craniana. Os fetos normalmente encontram-se na posição sentada, atravessada

o que acarrete um risco para a vida da gestante no momento do parto e a

demora excessiva desse, entre 14 e 16 horas, enquanto os partos considerados

normais duram aproximadamente 6 horas.

A ANIS editou um documentário chamado Doutor Eu Não Sabia com o

referido médico destacando uma experiência por este vivida onde um de seus

alunos residentes, orgulhosamente, relata que convenceu uma gestante de feto

anencéfalo a não interromper a gravidez. O Dr. Jorge inicia então o relato de

136 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003, p. 296. 137 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 27-

28. 138 A geneticista Dafne Horovitz apresenta uma taxa de 75% de polidramnia e

ainda apresenta outro fator de risco, qual seja, a hipertensão materna aumentada nessas gestações.

139 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 31.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 77

como são os procedimentos de pré-natal e as complicações que podem ocorrer

durante a gestação e durante o parto. O obstetra elenca a ocorrência de

polidrâmnio, hipertensão que pode acarretar desmaios e convulsões, alto

número de contrações que pode levar a uma hemorragia irremediável

denominada de atonia uterina, entre outros contratempos médicos. Além disso, o

documentário atenta para o fato de que nascido o feto, não importando a

duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e

enterrado. Caso a família não possua recursos financeiros para arcar com uma

sepultura privada o caminho a ser percorrido é ainda mais vexatório. O pai ou

algum parente deverá comparecer a uma delegacia de polícia, registrar um

Boletim de Ocorrência solicitando o serviço de verificação de óbito para que o

enterro ocorra através dos serviços públicos. Feito isso, a família acompanhará

obrigatoriamente a retirada do corpo do feto do hospital até o lugar de seu

sepultamento, lembrando que a mãe estará impossibilitada de participar do

enterro, pois ainda estará internada em recuperação pós-natal. A recuperação

dessa mulher é oura fase traumática à medida que ficará na enfermaria junto de

outras mulheres que deram à luz e estão felizes e acompanhadas de seus filhos.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem proferido manifestações sobre

o tema. Seja através de Resoluções ou fornecendo pareceres o órgão expressa

de forma clara a incontroversa quanto à inviabilidade da vida extra-uterina dos

fetos que apresentam anencefalia.

A Resolução nº 1.752/04 do CFM datada de 8 de setembro de 2004 prevê

a autorização ética do uso de órgãos ou tecidos de anencéfalos para a

realização de transplantes. Nas considerações inicias do referido texto é dito

que: os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios

cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas

pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia,

tornando-os inviáveis para transplantes; que para os anencéfalos, por sua

inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e

desnecessários os critérios de morte encefálica; e que a Resolução CFM nº

1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência

de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado

de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade

de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro. O artigo 1º da Resolução

diz que uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 78

realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu

nascimento.

Diversos pareceres foram emitidos pelos Conselhos Regionais quanto ao

tema, dentre eles:

PROCESSO CONSULTA Nº 07/2000 CRM-PB, protocolado em 15/05/2000 ASSUNTO: Solicita parecer sobre a legalidade ética da interrupção de gestação de feto de 30 semanas (em 14/04/2000) por provavelmente apresentar má-formação congênita chamada de anencefalia.

EMENTA: O artigo 128 do Código Penal, em vigor, nos seus incisos I e II, permite a realização de abortamento para salvar a vida da gestante e nos casos de estupro. Em decorrência, o artigo 42 do Código de Ética Médica propugna a sua obediência. Com a evolução do armamentário tecnológico médico é possível, com uma boa margem de acerto, diagnosticar doenças na vida intra-uterina, algumas reconhecidamente incompatíveis com a vida humana. A anencefalia é um exemplo clássico. Independente do aspecto moral, ético ou legal, dois parâmetros são essenciais: termo de consentimento da gestante e/ou do pai e a certeza diagnóstica mediante a confirmação do diagnóstico por pelo menos duas ultra-sonografias. Nestes casos, o médico só deve realizar a interrupção da gestação em estrito cumprimento à determinação judicial.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia

(FERASGO) emitiu parecer favorável a respeito do tema:

“Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, buscando não restringir a autonomia das mulheres, somos favoráveis à livre decisão pela antecipação do parto na anencefalia. Do ponto de vista clínico e obstétrico há evidências muito claras de que a manutenção da gestação pode elevar o risco de morbi-mortalidade materna, justificando-se, deste modo, a livre decisão de médicos e pacientes pela antecipação do parto.” 140

5.3.Aporte Jurídico

No âmbito jurídico, ainda em 1996, segundo pesquisa realizada por Gollop,

foram encontrados cerca de trezentos e cinqüenta alvarás autorizando a

antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, sendo que o primeiro

datado de 1991, da cidade de Rio Verde, no estado de Mato Grosso.

140 Texto disponibilizado no site da FEBRASGO sob o título Anencefalia – Posição

da FEBRASGO, www.febrasgo.org.br acesso em 08/11/2005.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 79

Dois posicionamentos principais podem ser observados no meio jurídico a

respeito do tema: um proibitivo e outro permissivo.

O primeiro, no mais das vezes de caráter positivista, considera a

antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como uma espécie de

aborto, e como tal, por não estar prevista nas hipóteses de exclusão de

punibilidade deve ser encarada como um crime contra a vida, respondendo

penalmente tanto o médico quanto a gestante que consentiu com o

procedimento. Neste sentido, o entendimento de Maria Helena Diniz em sua

obra sobre biodireito na qual a autora afirma que a antecipação não passa de

uma interrupção seletiva da gravidez, igualando o ato à eugenia.

A eugenia é tema recorrente na discussão sobre a interrupção da gravidez

em caso de anencefalia. Diversos escritores comparam as práticas, alertando

sobre o perigo de que a permissão legal do aborto nesse caso seria permitir a

seleção de seres humanos indesejáveis. Estes autores utilizam uma teoria

denominada de Ladeira Escorregadia, segundo a qual, a permissão de um

determinado comportamento cuja importância é pontual pode levar a uma

aceitação de comportamentos cada vez mais amplos. Esta ferramenta utilizada

principalmente no campo da bioética permite chamar a atenção sobre os

possíveis abusos e aconselhar a prudência.

Especificamente sobre o aborto de fetos anencéfalos Hare acredita

possível que a autorização legal de realização de aborto em casos extremos

como a anencefalia abriria margem para o assassinato de fetos nas demais

gestações, principalmente aqueles portadores de deficiências141.

No artigo Eugenia e Bioética: os limites da ciência face à dignidade

humana o autor tece um breve histórico sobre a eugenia e a necessidade de

regulamentação jurídica em relação a algumas práticas médicas, principalmente

no tocante à reprodução humana. Eduardo Leite remonta à origem da prática

aos gregos que matavam as crianças nascidas com alguma deformidade e ainda

na Babilônia onde a rainha Semiramis determinou a castração dos jovens

defeituosos. Porém, o termo eugenia somente é criado em 1883 por Francis

Galton baseado na teoria de hereditariedade e evolução de Darwin.

Galton propagava a visão de que alguns estão predestinados ao sucesso

devido às suas características genéticas dependentes diretamente da

hereditariedade, enquanto os demais, pelo mesmo motivo, estariam fadados ao

141 HARE, R. Essays on Bioethics, 1993. p.180-181.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 80

fracasso. O segundo grande impulsionador das teorias eugênicas foi o

descobrimento da ciência genética através de Mendel. As medidas eugênicas,

dotadas agora de “teor científico”, ganharam força em diversos países,

influenciando também suas legislações.

As leis eugênicas visavam dois fatores: a exclusão de pessoas

indesejadas (seja através da restrição à imigração, a internação dos anormais ou

até mesmo pela eutanásia) e a adoção de medidas de procriação (medida

negativa – esterilização ou positiva – encorajamento dos indivíduos sãos a se

reproduzirem). O preconceito que utiliza como mecanismo a eugenia tem como

ápice o Regime Nazista Alemão. Várias práticas de eliminação dos indivíduos

inferiores tinham como fundamento diversos estudos médicos e genéticos e

como legitimação o ordenamento jurídico. As atrocidades são notórias e levaram

ao questionamento sobre o papel e limites da ciência até os dias atuais.

Adrienne Asch, em seu artigo Diagnóstico pré-natal e aborto seletivo142,

aponta para a problemática da legalização do aborto eugênico sem que haja

uma preocupação com a devida informação sobre deficiências oriundas das

doenças genéticas. A autora, portadora de deficiência física, diz que a sociedade

atual em que vivemos é altamente preconceituosa e desinformada a respeito das

capacidades dos deficientes físicos importando na diminuição da dignidade da

pessoa humana desses indivíduos.

A segunda corrente considera que a situação da anencefalia fetal é sui

generis e, portanto, não deve ser enquadrada na proibição legal. Porém, os

argumentos são variados, atacando os diversos elementos do crime143, dentre

eles: a atipicidade da conduta, a inexigibilidade de conduta diversa e a causa de

exclusão da ilicitude.

O promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro analisa aspectos do crime no

estudo de caso proposto144. Quanto à tipicidade o autor considera que a

antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal afasta a tipicidade

da conduta, pois apenas o feto com capacidade fisiológica de ser pessoa pode

configurar como sujeito passivo do crime de aborto. A seguir apresenta a falta de

nexo de causalidade entre a conduta da gestante e a morte do feto, à medida

142 In Perfil das Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e do seu

atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz Schiavo.(coord) Brasília: Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, 1999.

143 Segundo Bitencourt o conceito clássico de delito envolve: ação, tipicidade, antijuridicidade e cupabilidade. Tratado de direito penal, 2003. pg. 48.

144 RIBEIRO, D., Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil, 2004. p. 93-141.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 81

que, o feto cessa suas atividades biológicas em razão da patologia prévia e não

do ato cirúrgico interventivo da gestação. E por fim, o estado de necessidade é

outro aspecto penal estudado pelo promotor. Segundo Diaulas a continuidade da

gestação torna-se um risco desnecessário à saúde da mulher, pois há de um

lado na gestação anencefálica um aumento dos riscos maternos e a inviabilidade

da vida fetal do outro lado.

Paulo César Busato é um dos autores a considerar a conduta da

antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como atípica. Em seu

artigo Tipicidade material, aborto e anencefalia o doutor em Direito Penal

considera que no caso em voga em razão da inviabilidade de vida extra-uterina

não há o bem jurídico vida tutelado pelo direito e, por tal razão, não há que se

falar em afronta aos dispositivos penais previstos no capítulo dos crimes dolosos

contra a vida. Assim sendo, inexistindo bem jurídico a ser protegido pelo Estado,

a conduta da gestante que interrompe a gestação é atípica, não cabendo

qualquer responsabilidade penal. No mesmo sentido, o entendimento de Adel El

Tasse em seu artigo Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por

atipicidade. 145

Enquanto não ocorrer uma normatização deste caso específico juristas

apresentarão as mais diversas teses interpretativas sobre a licitude da

antecipação terapêutica de parto em caso de fetos anencéfalos.

5.4. O caso no Estado do Rio de Janeiro

5.4.1.Coleta de dados empíricos: Instituto Fernandes Figueira

O Instituto Fernandes Figueira (IFF), estabelecido em 1924, é a unidade

materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Realiza pesquisa, ensino

e assistência no âmbito da saúde da criança, da mulher e do adolescente, sendo

referência em tratamento em diversas doenças de alta complexidade.

Reconhecido nacional e internacionalmente como centro de excelência, o IFF

atua no desenvolvimento tecnológico, extensão, assim como na formação e

capacitação de recursos humanos.

A escolha do instituto decorreu de sua especialização em gestações de

alto risco (inclusive de fetos anencéfalos) e pela alta qualificação de seus

profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.

145 TASSE, A., Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por atipicidade,

2004, p. 101–113.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 82

O IFF também possui um curso de especialização em Bioética e Ética

aplicada direcionado para fornecer uma análise interdisciplinar para profissionais

de diversas áreas de conhecimento sobre aspectos relevantes da Bioética. Clara

a preocupação do instituto em agregar os dados cotidianos com a reflexão

filosófica e teórica sobre aspectos da ciência médica.

Atualmente, devido à constante ocorrência de anomalias incompatíveis

com a vida fetal, o IFF elaborou uma rotina de atendimento às gestantes com

patologias fetais cabíveis de interrupção judicial, dentre elas a anencefalia. Tal

documento prescreve sete fases que deverão ser observadas durante o

tratamento pré-natal. Na primeira fase denominada de triagem a paciente

diagnosticada em outra unidade hospitalar ou mesmo dentro do próprio

Fernandes Figueira é encaminhada para o setor de medicina fetal onde será

feita a confirmação diagnóstica. No caso da anencefalia através de novo exame

ultrassonográfico ou reexame do anteriormente realizado. A seguir, já no setor

de medicina fetal, após a confirmação do diagnóstico, a paciente será orientada

sobre a patologia de seu feto e sobre os procedimentos que serão adotados.

Nesta fase também é feito o esclarecimento sobre a possibilidade de interrupção

da gestação. Na terceira fase inicia-se propriamente o pré-natal, com a abertura

de prontuário. Os procedimentos de praxe do pré-natal são realizados, como por

exemplo: a solicitação de exames dos mais diversos (hematologia, imunologia,

etc), marcação de matrícula, encaminhamento ao setor de genética e consultas

pré-natais. Os exames clínicos obstétricos e avaliação laboratorial são feitos na

fase posterior denominada de matrícula, momento este, onde também será

encaminhada a gestante, caso manifeste seu desejo e obtenha judicialmente o

alvará permissivo, à outra rotina para marcação do processo de interrupção da

gestação. Esta nova rotina tem como objetivo marcar a internação para a

realização de cardiocentese e indução do trabalho de parto, predominantemente

as quintas ou segundas-feiras. A seguir a paciente retorna ao setor de medicina

fetal onde será orientada sobre o procedimento, devendo assinar o

consentimento pós-informado específico para a cardiocentese (feticídio), e

autorização de necropsia, que serão anexados ao prontuário juntamente com a

autorização judicial. Conclusivamente, a fase sétima, chamada de puerpério,

preocupa-se com a confirmação do diagnóstico, através da necropsia do feto.

Ainda no tocante ao procedimento adotado, o IFF, através do setor de

genética, possui um documento padrão cujo objetivo é embasar tecnicamente o

pedido judicial para interrupção da gestação. Tal documento, via de regra, é

encaminhado para a defensoria pública e constam dados sobre a precisão do

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 83

diagnóstico e as demais medidas tomadas no sentido de confirmar a anomalia,

além de uma breve consideração sobre a inviabilidade de vida extra-uterina do

feto. Juntamente com este documento é enviada uma cópia do parecer favorável

do Comitê de Ética do IFF emitido pelo responsável pelo setor de genética do

instituto.

O estudo de caso proposto será realizado através dos dados empíricos

que foram colhidos através da técnica de aplicação de formulário padrão cujo

preenchimento teve como origem prontuários, ou seja, dados clínicos de

pacientes que buscaram assistência pré-natal no próprio instituto. O formulário

elaborado visava as seguintes informações:

DADOS SOBRE A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO:

⇒ Ano de entrada:

⇒ Solicitação da Interrupção : ( ) Sim ( ) Não

⇒ Concessão da autorização: ( ) Sim ( ) Não

⇒ Fundamentação da sentença:

⇒ Tempo entre solicitação e autorização judicial :

⇒ Tempo entre autorização judicial e internação:

⇒ Tempo entre internação e feticídio:

⇒ Tempo entre feticídio e parto:

DADOS DO RECÉM NASCIDO

⇒ Vitabilidade: ( ) Vivo ( ) Nati

⇒ Tempo de vida:

⇒ Confim Diag Neonat. ( ) Sim ( )Não

Algumas considerações são importantes antes da exposição dos

resultados obtidos.

Inicialmente, por ser uma pesquisa envolvendo informações sobre seres

humanos, segundo a Resolução no 196 de 1996 do Conselho Federal de

Medicina, fez-se necessário perpassar um procedimento junto ao Comitê de

Ética do Instituto Fernandes Figueira o qual emitiu o registro de número 052/05

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 84

em 21.11.2005146. Os dados obtidos não importarão em nenhuma forma de

identificação dos pacientes.

O período compreendido foi de 1992 até 2004, sendo a escolha dos

prontuários decorrente do melhor preenchimento dos dados visados. Alguns

prontuários, especialmente os anteriores a 2000, possuem poucas informações

sendo inútil a sua utilização. No total foram analisados 107 (cento e sete)

prontuários.

Os dados obtidos podem ser divididos em duas vertentes. A primeira

refere-se a questões jurídicas da solicitação judicial para a antecipação do parto.

E a segunda quanto à viabilidade fetal e confirmação do diagnóstico após o

parto.

A primeira informação relevante do estudo de caso aponta para a opção da

gestante no tocante ao desejo de interromper a gravidez. Duas experiências

relatadas podem ser tidas como pólos opostos da sensação experimentada pela

gestante quando recebido o diagnóstico da anomalia. A primeira gestante,

embora consciente da brevidade da sobrevida de seu filho, manifesta durante

todo o período gestacional a intenção de levar a gravidez até o seu fim natural,

assegurando inclusive a realização de uma comemoração de nascimento. A

segunda gestante, de forma contrária, emite sua vontade de o quanto antes

realizar o procedimento jurídico e médico para a antecipação do parto, chegando

a mencionar para a equipe médica responsável por seu acompanhamento pré-

natal o seu sofrimento ao se sentir como um “caixão ambulante”.

Os dados a seguir demonstram o equilíbrio na percentagem das mulheres

que optam por solicitar a interrupção da gestação. Apenas dois números

percentuais a mais dos casais, mesmo informados sobre a possibilidade da

obtenção de uma permissão legal, preferem aguardar o final natural da gravidez.

O gráfico a seguir demonstra o que foi supra mencionado.

146 Íntegra do documento m anexo (anexo2).

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 85

Figura 4. Solicitação judicial para interrupção da gestação

Ademais, do total de 55 (cinqüenta e cinco) solicitações de alvarás

judiciais, 9 (nove) desistiram da interrupção em alguma fase do pré-natal,

mesmo após obterem a autorização do Poder Judiciário.

Outro dado obtido com a pesquisa empírica demonstra a posição

majoritária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro quanto ao estudo

de caso proposto. Somente duas solicitações foram negadas, enquanto que 96%

das decisões foram proferidas no sentido de permitir a antecipação terapêutica

do parto.

AUTORIZAÇÃO JUDICIAL

SIM96%

NÃO4%

Figura 5. Concessão da autorização judicial

Solicitação da Interrupção da gestação

não 49% sim

51%

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 86

Esse dado é essencial à medida que representa dois fatores importantes

para o Direito. Primeiramente, que já há um posicionamento jurisprudencial

majoritário a respeito do tema. Embora as fundamentações utilizadas pelos

julgadores não sejam unânimes, quase a totalidade deles considera lícita a

antecipação do parto em caso de anencefalia fetal. E segundo, o tratamento

desigual fornecido a duas gestantes que manifestaram seu desejo de

interromper a gravidez, mas obtiveram uma resposta negativa por parte do

Estado. Tal fato demonstra a insegurança ainda existente decorrente da falta de

normatização a respeito do tema, deixando a critério do julgador a interpretação

dos valores envolvidos.

Outro fator relevante foi a inobservância pelo IFF de um procedimento

interno rígido quanto aos documentos jurídicos anexados aos prontuários. A falta

de um padrão a ser seguido acarreta a inexistência inclusive do próprio alvará

autorizatório do procedimento de antecipação do parto. O gráfico a seguir

demonstra os documentos encontrados nos prontuários.

DOCUMENTOS JURÍDICOS

46%

40%

2%12%

só alvará

alvará e decisão

não há sequer o alvará, somente sendo anotado no prontuárioque a gestante portava a autorização judicial. só acórdão negativo

Figura 6. Documentos jurídicos constantes do prontuário médico

Na grande parte dos casos somente é anexado o alvará judicial. Em 40%

dos casos, relacionados aos dois últimos anos, há além do alvará a decisão

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 87

proferida, tais decisões demonstram a variedade de teses jurídicas utilizadas

pelos juízes para conceder a autorização.

Nas decisões analisadas, 24 (vinte e quatro) no total, alguns argumentos

foram utilizados como base jurídica para a concessão do alvará conforme

enunciado abaixo:

1) Processo nº 2003.206.000364-1 - A evolução tecnológica tornou

possível detectar com absoluta certeza anomalias que tornam

inviáveis a vida extra-uterina. Cita Luiz de Asúa; impossibilidade

absoluta da vida, e por tal razão, a tutela penal não merece ser

exercida. Sacrifícios físicos e psicológicos maternos acarretam

riscos para a saúde da mãe. Interpretação analógica do artigo

128, I Código Penal como fundamento legal para a permissão da

intervenção cirúrgica.

2) Processo nº 2003.067.1128-4 - O Legislador não se ocupou de

regular a hipótese. Não pode no entanto o juízo, sob a alegação

de inexistência de regra específica sobre o tema, negar a

prestação jurisdicional. Há casos nos quais o legislador se

mantém omisso não fazendo qualquer opção, cabe ao intérprete,

após verificar a efetiva existência do conflito, ponderar qual

desses direitos deve prevalecer. No caso em voga de um lado há

o direito à vida do outro o direito à liberdade e à dignidade da

pessoa humana. O direito à vida é fundamental, mas não

absoluto. De fato, ao autorizar o aborto na hipótese de gravidez

resultante de estupro, o legislador sinaliza que a afetividade

entre gestante e feto é prevalecente ao direito à vida. Jamais

poderá a requerente desenvolver qualquer afeto por um ser que

evoluirá necessariamente para êxito letal. No entanto, no caso

dos autos não se cogita nem mesmo colisão de direito

fundamental. Cita a lei 9434/97 - morte encefálica. Logo, não

havendo vida, mas mera proliferação de células, não há que se

cogitar de direito fundamental à vida, tendo a requerente o direito

fundamental à liberdade e à saúde de retirada de corpo estranho

que tanto sofrimento gera.

3) Processo nº 2003.078.00030 - Decisão de segunda instância, 1ª

instância indeferiu. Fundamentos: complicações na gestação;

conduta atípica pois não atinge nenhum bem jurídico penalmente

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 88

tutelado. E por se tratar de liminar ressalta que estão presentes o

fumus boni iuris e periculum in mora.

4) Processo nº 2004.001.008443-1 - Decisão constante do

prontuário muito sucinta. Autorização da interrupção utilizando

como fundamento os elementos de convicção constantes das

provas dos autos, mormente os pareceres médicos e

manifestação favorável da curadoria especial e do Parquet.

5) Processo nº 2004.001.025612-6 – Utiliza tripla fundamentação:

não é figura típica de aborto por impossibilidade de sobrevida do

feto. Conduta não punível. Em segundo, há ausência de ilicitude

por ser aborto necessário pela saúde, vida e seqüelas

psicológicas impostas à gestante. E em terceiro, por

inexigibilidade de conduta diversa. Tal sentença aparece de

forma idêntica em outros dois processos de nº 2003.001.069344-5

e 2002.001.120804-4.

6) Processo nº 2003.029.046333-1 - Embora a situação não

encontre amparo em nossa legislação penal, sendo a conduta

tipificada em tese, a jurisprudência já vem se manifestando pela

possibilidade de se interromper a gravidez em casos extremos

como o dos autos.

7) Processo nº 2003.001.057625-8 - Em que pese a legislação

vigente incriminar o aborto com o consentimento da gestante,

ressalvados os casos de aborto necessário e quando a gravidez

for resultante de estupro, outras hipóteses não contempladas na

lei estão a exigir uma análise mais consentânea com a realidade

descortinada pela medicina e pelo progresso tecnológico. Mais

moral e social a interrupção por inviabilidade de sobrevivência do

feto justifica se tanto ou mais do que o aborto por motivo de

honra, estupro. Sob o aspecto jurídico deve-se questionar se a

destruição do feto, sem qualquer possibilidade de sobreviver

como ser humano, enquadra-se no crime de aborto, que tem por

objeto jurídico a vida humana. Cita julgados precedentes.

Anteprojeto da reforma do Código Penal, no Congresso

Nacional, prevê como excludente de ilicitude o aborto

eugenésico. Nova modalidade de justificação do aborto a ser

introduzida em nossa legislação penal evitará não só o

nascimento de seres infelizes, mas também, fará cessar o

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 89

sofrimento da gestante, não mais obrigada a aguardar em seu

corpo o nascimento de um ser sem condições de sobreviver ou

em condições de sobreviver por algum tempo de forma anormal.

Evita também as funestas conseqüências dos abortos

clandestinos, realizados com enormes riscos para a vida e a

saúde da gestante. Aplica a interpretação extensiva do artigo

128, I do Código Penal. Outro caso analisado utiliza de forma

exata a mesma fundamentação (2003.001.094742-0).

8) Processo nº 2003.038.007520-4 - Utiliza como fundamentação a

Inexigibilidade de conduta diversa por parte da gestante. Esta

fundamentação é utilizada em duas outras decisões judiciais de

forma idêntica (2003.038.010812-0 e 2003.038.007520-4).

9) Processo nº 2003.054.003635-9 - Fundamentos: aparente

conflito com artigo 128 Código Penal, por não ser uma das

hipóteses expressas na permissão legal. Porém, deve o

intérprete utilizar instrumental técnico novo. A comissão de ética

do IFF manifestou-se concorde com a interrupção da gestação

sugerida e já há outros julgados neste sentido. Não há vida a ser

protegida legalmente a mesmo que este feto se mostra inviável.

Falta o objeto da tutela penal. Nos termos vertentes deixa de

constituir crime falecendo os elementos necessários para a

tipificação de aborto.

10) Processo nº 2002.054.021393-0 - Fundamento nos artigos 5º, III

da Constituição Federal e 3º do Código Penal, nos princípios

gerais do direito, nos princípios da jurisdição voluntária, artigos

1104 e seguinte do Código de Processo Civil.

11) Processo nº 2002.001.092453-2 - Diante da comprovação

técnica da inviabilidade da sobrevivência do feto, ponto relevante

para se desconsiderar a ofensa ao bem jurídico penalmente

tutelado no Capítulo I, do Título I, Parte especial do Código Penal

com fulcro no disposto no inciso I, do artigo 128, daquele diploma

legal, defere o pedido.

12) Processo nº 2002.001.118545-7 - Ante a ausência de

perspectiva devida para o nascituro e o altíssimo risco da

gravidez em casos de anencefalia fetal aplica o artigo 128, I

Código Penal analogicamente e em uma interpretação extensiva

fica caracterizado o aborto necessário.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 90

13) Processo nº 99.001.088305-9 - Aborto eugenésico tem

acolhimento na doutrina e jurisprudência. Proteção ao objeto

jurídico preservação da vida não é infringido no caso em

questão. Fulcro: artigos 128, I Código Penal; 4º da Lei de

Introdução do Código Civil e artigos 1103, 1104 e 1109 do

Código de Processo Civil.

14) Processo nº 98.001.03402-0 - Em um dos casos analisados a

fundamentação não adentra no mérito da anencefalia fetal, pois

a gravidez decorreu de estupro.

15) Processo nº 2003.207.007966-6 - Aborto pressupõe que a

gravidez seja normal e não somente patológica. Se o que existe

é produto conceptivo degenerado, lícita é a intervenção. Cita a lei

de doação de órgãos. Vida ligada indissoluvelmente à existência

de cérebro. Iguala à gravidez molar já consagrada na

jurisprudência. Crime impossível pois não há vida.

16) Constam duas breves decisões em alvarás sem a especificação

do número do processo que utilizam como fundamento a

hipótese permissiva contida no artigo 128, II do Código Penal,

analogicamente.

17) Processo nº 2003.001.146495-6 - Questão da tipicidade da

conduta sabendo que o feto não tem perspectiva de vida. Crime

de aborto tem como escopo tutelar a vida humana em formação.

Constatada a falta de perspectiva de vida, inexiste violação ao

bem jurídico tutelado; evolução da medicina e CP de 1940. Se a

legislação não pode acompanhar com a necessária celeridade a

evolução social, constitui função do julgador, sem dúvida, aplicá-

la ao mundo atual.

18) Habeas Corpus nº 5355/2003 - Princípios da dignidade humana

e razoabilidade. Direito de escolha da gestante. Atipicidade do

aborto porque não há lesividade do bem jurídico tutelado.

Este último caso merece uma observação mais apurada, pois pode ser tido

como exemplo típico da insegurança que acarreta a prolação de decisões

judiciais conflituosas. A gestante orientada segundo a rotina anteriormente

mencionada, manifesta sua vontade no sentido de interromper a gestação e

assim é encaminhada pelo setor de medicina fetal para devidas orientações

jurídicas da defensoria pública. Em primeira instância o pedido foi negado sob o

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 91

argumento de que a legislação penal proíbe a prática de aborto, senão nos

casos taxativos previstos no Código Penal. A gestante recorreu da decisão

obtendo em 16 de dezembro de 2003 a permissão legal para a realização da

intervenção médica. Com a devida autorização a paciente foi internada no dia 18

de dezembro do referido ano, sendo neste mesmo dia executado o procedimento

de antecipação do parto. Porém, um terceiro estranho à relação médico-paciente

recorreu da decisão proferida, em Habeas Corpus, pelo Tribunal do Estado do

Rio de Janeiro e em 19 de dezembro de 2003 foi proferida uma decisão pelo

Superior Tribunal de Justiça no processo de nº 32757/ RJ no sentido de deferir a

liminar para que não fosse tomada qualquer procedimento visando a interrupção

antecipada da gravidez. O Instituto Fernandes Figueira encaminhou um ofício ao

STJ informando ao tribunal que o procedimento interventivo já tinha sido

realizado no dia anterior ao da prolação da decisão. Retornando do recesso

forense o STJ, em 04 de março de 2004, o ministro Felix Fischer profere a

decisão no sentido de ter o Writ como prejudicado por perda do objeto vez que já

havia ocorrido a interrupção antecipada da gravidez, em conformidade à decisão

proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Um dos casos negativos da autorização judicial fundamentava-se apenas

na declaração de que a anencefalia não podia ser enquadrada nas hipóteses

legais de permissão para a realização do aborto e o processo recebeu o nº

2003.021.018943-0. O segundo não consta qualquer informação judicial, apenas

sendo anotado no prontuário que a gestante obteve uma decisão negativa.

O tempo entre a solicitação e a autorização judicial também foi objeto de

análise. A decisão proferida de forma mais breve foi proferida em 3 (três) dias e

a mais demorada em 65 (sessenta e cinco) dias. O tempo médio das decisões

analisadas foi em torno de 20 (vinte) dias.

Tempo entre a solicitação e a autorização judicial

0

1

2

3

4

5

6

não c

onsta

3 dia

s

4 dia

s

5 dia

s

6 dia

s

7 dia

s

8 dia

s

9 dia

s

10 di

as

12 di

as

13 di

as

14 di

as

15 di

as

16 di

as

17 di

as

18 di

as

19 di

as

21 di

as

22 di

as

24 di

as

25 di

as

26 di

as

28 di

as

29 di

as

42 di

as

62 di

as

65 di

as

Figura 7. Tempo entre a solicitação e a autorização judicial

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 92

No tocante à viabilidade fetal, dois gráficos serão expostos. O primeiro

compara a ocorrência de natimortos, já falecidos no momento do parto ou da

antecipação terapêutica e os que sobreviveram.

VITABILIDADE FETAL

VIVO42%

NATIMORTO58%

Figura 8. Vitabilidade fetal

E o segundo gráfico demonstra o tempo de vida dos 42% de fetos que

nasceram vivos. O maior tempo foi de 5 (cinco) dias e o menor de 5 (cinco)

minutos e em 6 (seis) casos não consta do prontuário a sobrevida dos fetos.

TEMPO DE VIDA FETAL

0

1

2

3

4

5

6

não c

onsta

5dias

11h4

3min 8h

6h30

min

4h02

min

3h22

min 3h

2h45

min 2h

1h42

min

1h40

min

1h35

min

1h28

min

1h20

min

1h17

min

1h04

min 1h50

min48

min45

min42

min41

min36

min35

min33

min30

min27

min25

min23

min20

min14

min10

min8m

in5m

in

Figura 9. Tempo de vida fetal

E por fim, a confirmação posterior do diagnóstico é quase totalitária,

somente não havendo certeza porque em 4% dos casos não foi feita qualquer

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 93

menção a este respeito no prontuário. Porém, em nenhum caso há a não

confirmação do diagnóstico.

CONFIRMAÇÃO DO DIAGNÓSTICO

SIM96%

IGNORADO4%

Figura 10. Confirmação do diagnóstico

Algumas conclusões podem ser extraídas dos dados obtidos.

Primeiramente, já há no Estado do Rio de Janeiro uma jurisprudência permissiva

da antecipação do aborto em casos de anencefalia fetal e pode ser observada

inclusive certa brevidade na formulação da decisão jurídica (em torno de vinte

dias).

Segundo, os juízes muitas vezes aplicam analogicamente os dispositivos

legais, valendo-se sobretudo da defasagem dos documentos jurídicos e as

descobertas científicas na área médica. Os princípios constitucionais e a

jurisprudência também são parâmetros de interpretação utilizados pelos

julgadores.

Terceiro, somente nos últimos três anos as informações jurídicas têm sido

objeto de preocupação por parte dos institutos médicos, valendo-se atualmente

de uma rotina o IFF visa a padronização dos documentos anexados ao

prontuário, constando desta rotina especificamente a obrigatoriedade de anexar

a autorização judicial ao prontuário. Fato este estranho aos documentos

analisados anteriores a 2001.

E por fim, ficou demonstrada que mesmo com a informação aos genitores

das conseqüências e riscos da gestação apenas a metade deles busca a

interrupção da gestação através da via judicial. Demonstra tal percentagem que

mesmo conscientes de que há uma alternativa para interromper a gravidez em

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 94

quase 50% dos casos a gestante e seu companheiro optam por levar a gravidez

até o final.

5.5.O caso no Supremo Tribunal Federal

5.5.1. O Caso Gabriela Cordeiro147

Gabriela de Oliveira Cordeiro é uma jovem residente na cidade de

Teresópolis no estado Rio de Janeiro que no quarto mês de sua gestação

recebeu o diagnóstico de anencefalia de seu feto. O médico responsável por seu

pré-natal a informou sobre a letalidade da doença e a impossibilidade de

tratamento.

Com o apoio de seu cônjuge Gabriela inicia sua saga na busca da

autorização judicial para realizar a antecipação do parto. A primeira dificuldade

encontrada pelo casal ocorreu antes do início da ação judicial. Somente após

muita espera e constrangimentos a Promotora Soraya Taveira Gaya convenceu-

se da especificidade do caso e encaminhou o caso para a defensora pública

Andréia Teixeira Pacheco que representaria judicialmente o casal.

Em 6 de novembro de 2003 o pedido de autorização para a antecipação do

parto foi impetrado na Comarca de Teresópolis. O juiz Paulo Rudolfo Tostes

negou o pedido fundamentando sua decisão no argumento de que o Código

Penal não admitia a prática de aborto em casos de anencefalia, portanto, tal ato

é considerado crime pelo ordenamento brasileiro.

Houve apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro cuja

relatoria do processo ficou a cargo da Desembargadora Gizelda Leitão Teixera

que concedeu a autorização judicial para o procedimento médico no dia 19 de

novembro de 2003, quando Gabriela já estava no quinto mês de gestação.

Porém, no dia 21 de novembro do mesmo ano os advogados Carlos Brasil

e Paulo Leão Junior ingressaram em juízo com um agravo tendo como

147 As informações sobre o caso foram retiradas das obras:ANIS. Anencefalia. O

pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004 e CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal, 2004 e do site www.Supremo Tribunal Federal.gov.br.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 95

argumento a sacralidade da vida. O juiz José Murta Ribeiro cassou a autorização

anteriormente concedida e ordenou que o processo retornasse à relatora

Gizelda. No mesmo dia 21 o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz de Anápolis,

presidente do movimento Pró-Vida da Igreja Católica, entrou com um Habeas

Corpus em favor do feto de Gabriela no Superior Tribunal de Justiça.

Em 25 de novembro a Desembargadora Gizelda indeferiu o agravo

proposto mantendo a autorização judicial para a antecipação, neste mesmo dia a

Ministra Laurita Vaz do STJ derruba a autorização concedida pelo TJ do Rio de

Janeiro até que o Habeas Corpus fosse decidido meritoriamente pelo STJ. O

Procurador-Geral da República emitiu parecer apoiando a decisão da Ministra

Laurita Vaz, ou seja, contrário à autorização em 10 de dezembro de 2003.

No início do recesso forense Gabriela estava no sexto mês de gestação.

Em 26 de fevereiro de 2004 as organizações ANIS e THEMIS ingressaram

no Supremo Tribunal Federal com um pedido de Habeas Corpus, porém em

favor de Gabriela, a fundamentação da ação foi pautada no direito à saúde, à

liberdade e à dignidade de Gabriela em decidir sobre sua própria vida.

O relator designado foi o Ministro Joaquim Barbosa que reconhecendo a

urgência do pedido colocou em pauta o processo já no dia 4 de março. O

resultado da ação foi a declaração de perda do objeto, já que, foi apresentado ao

Tribunal o atestado de óbito de Maria Vida, filha de Gabriela que sobreviveu

apenas sete minutos. Apesar da perda do objeto três Ministros emitiram seus

pronunciamentos a respeito da lide, lamentando o cerceamento do direito de

Gabriela de ter decidido sobre sua própria vida, ou, pelo menos ter obtido uma

resposta jurídica a seu pedido.

O relator Joaquim Barbosa inicialmente tece alguns comentários a respeito

da admissibilidade do Habeas Corpus e da competência do Supremo em julgar

tal ação já que há alegações de afronta a direitos e princípios constitucionais,

principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Outro aspecto

processual é analisado pelo Ministro Joaquim Barbosa. O relator considera nulo

o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça pela falta de competência

do mesmo em julgar a matéria, qual seja, habeas corpus atacando decisão

monocrática de membro do tribunal. No mérito o ministro elenca dois

argumentos: direito à liberdade individual da gestante e o segundo refere-se aos

diferentes graus de tutela penal da vida humana.

O Ministro Sepúlveda Pertence não adentra no mérito da lide, somente

constando de sua manifestação o cabimento do Habeas Corpus no caso por ser

assunto intimamente relacionado com o direito à vida.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 96

O Ministro Carlos Ayres Britto também pugna pelo não recebimento do

remédio constitucional pela perda do objeto. Porém, acrescenta seu lamento

pela perda da oportunidade do Supremo Tribunal Federal “debater um tema vital

no plano do direito e no da dignidade, seja da pessoa humana, em geral, seja da

condição feminina, em particular. Também havia anotado, aqui, a minha

perplexidade diante de um caso médico que, por antecipação, dizia que algo que

se desenvolvia no útero de uma mulher jamais se transformaria em alguém, ou

seja, t:ínhamos o fenômeno de um casulo, que seria o útero, de uma crisálida

que seria o feto, mas jamais a borboleta alçaria vôo, porque a criança não teria

condições de sobreviver. Mas fica para outra oportunidade o debate desse tema

tão candente.”

Porém, o desejo do ministro Carlos Ayres Britto não tardou em se cumprir.

Em meados de 2004 o Supremo Tribunal Federal foi novamente provocado a

emitir seu entendimento a respeito do caso através de uma Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental.

5.5.2.A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma

ação constitucional prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal de 1988

e regulamentada pela Lei 9.882/99. Esta ação tem como objetivo evitar ou

reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público148.

Alguns requisitos são necessários para a propositura desta ação, dentre eles: o

não cabimento de outro remédio constitucional, a especificação na petição inicial

do preceito fundamental descumprido acrescida da prova de sua violação149. A

argüição é sujeita ao princípio da indisponibilidade e sua decisão é irrecorrível,

não cabendo sequer ação rescisória.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)

ingressou judicialmente, em 17 de junho de 2004, com uma argüição de

descumprimento de preceito fundamental buscando um posicionamento do

Supremo Tribunal Federal no tocante antecipação terapêutica do parto ante a

anencefalia do feto e as conseqüências jurídicas para os profissionais de saúde.

A representação autoral é de responsabilidade do constitucionalista Luís

Roberto Barroso. Já em nota prévia a inicial distingue os termos aborto e

148 Artigo 1º da Lei 9.882/99 149 Artigo 3º da Lei 9.882/99

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 97

antecipação terapêutica do parto. Pretende a sociedade autoral demonstrar que

a antecipação terapêutica de parto em casos de anencefalia fetal situa-se no

âmbito da medicina e do senso comum, diferentemente da interrupção voluntária

da gravidez de concepto viável. Busca com isso o eminente advogado retirar o

debate moral a respeito do tema, através da simplificação da hipótese.

Alguns argumentos sobre a hipótese são levantados: a inviabilidade de

vida do feto, a certeza diagnóstica do exame, o aumento do risco para a saúde

da gestante (baseada em um parecer da FEBRASGO).

Quanto às questões processuais relevantes destaca-se a legitimação

ativa da CNTS, a pertinência temática e o cabimento da via escolhida.

No mérito a ação foi fundamentada nos preceitos constitucionais da

dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autonomia da vontade e a

garantia da saúde da gestante prevista nos artigos 1, 5, 6 e 196 da Constituição

de 1988. Foi utilizado como alegação principal o fato de que a adoção de tais

preceitos constitucionais afastaria a aplicação das sanções legais impostas aos

profissionais de saúde dispostas nos artigos 124, 126 e 128 I e II do Código

Penal nos casos de atestada anencefalia fetal.

O pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade da

interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do código Penal como impeditivos da

antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo,

reconhecendo-se o direito desta gestante de se submeter ao procedimento sem

a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra

forma de permissão específica do Estado. Como pedido alternativo é

apresentado o requerimento de que se julgado o descabimento da ADPF, que o

Supremo Tribunal a receba como ação direta de inconstitucionalidade.

O feito foi distribuído ao Ministro Marco Aurélio para que o mesmo

funcionasse como relator do processo.

A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a Associação Nacional

Pró-vida e Pró-família e a Associação UNIVIDA, entre outras, pleitearam sua

admissão no feito na qualidade de Amicus Curiae. O relator proferiu decisões

indeferindo o pedido da CNBB e demais associações com fundamento no artigo

7, § 2º da lei nº 9.868/99 o qual confere ao Ministro relator a decisão a respeito

da conveniência de intervenções no processo. 150

150 Decisões do relator quanto ao mesmo tema nas petições: PG Nº 69849/04, PG

Nº 75796/04, PG Nº 77365/04, PG Nº 81135/04, PG Nº 84862/04, PG Nº 85934/04,

PG Nº 89467/04, PG N.º 90229/04, PG N.º 93748/04, 95645/2004, PG Nº110483/04.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 98

A Procuradoria Geral da República emitiu seu parecer no sentido de

indeferimento do feito por não ser adequada a interpretação conforme a

Constituição. Elenca também como fundamentação a primazia jurídica do direito

à vida do feto mesmo que por tempo ínfimo. E que a hipótese não encontra

respaldo constitucional ou legal.

O Ministro Marco Aurélio, em sede de liminar no dia 01 de julho de 2004,

acolheu os pedidos formulados, reconhecendo a relevância do pleito e o risco de

manter-se o ambiente de desencontros de pronunciamento judiciais. Decidiu

pelo sobrestamento dos demais processos e decisões não transitadas em

julgado relacionadas a esta problemática, e, pelo reconhecimento do direito

constitucional da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica do parto de

fetos anencéfalos, a partir de laudo médico atestando tal anomalia.

No dia 30 de setembro foi revogada a medida liminar sob a alegação de

que a repercussão do que decidido sob o ângulo precário e efêmero da medida

liminar redundou na emissão de entendimentos diversos. Declarou-se a

importância da realização de uma audiência pública e a admissão no feito como

Amicus Curiae de diversas entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e

Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de

Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de

Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja

Universal, Instituto de Biotecnia, Direitos Humanos e Gênero. E remete ao

plenário para a designação de audiência para apreciar questão de ordem relativa

à admissibilidade da ADPF.

Questão de ordem foi posta em mesa no dia 20 de outubro de 2004 no

sentido de considerar a adequação da ação proposta. O relator, Ministro Marco

Aurélio, profere um relatório inicial sobre o processo e sobre a medida liminar

deferida.

Concede a palavra ao advogado do autor que rebate os argumentos

aviltados pela Procuradoria da República, quais sejam: a ilegitimidade do

Supremo Tribunal Federal como legislador positivo e a inadequação da ADPF.

Sobre a ilegitimidade Luís Roberto Barroso levanta a importância do Supremo

Tribunal Federal e que a interpretação conforme a Constituição não cria norma,

mantendo o texto elaborado pelo legislador. Nos dizeres do advogado referido a

ADPF busca um resultado menor que a declaração de inconstitucionalidade, pois

tem como objetivo reconhecer a afastabilidade de aplicação dos artigos penais

apenas no caso proposto e não erga omnes. Quanto à admissibilidade da ADPF

o representante autoral defende a ocorrência dos três requisitos para a admissão

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 99

da ação: lesão a preceito fundamental, ato do poder público e inexistência de

outro meio eficaz para cessar a lesão. Ele ainda ressalta que tais requisitos são

fundamentais para evitar o acúmulo de ADPF no Supremo, mas assegura a

relevância dessa ação. Ainda oralmente Luís Roberto Barroso reafirma o pedido

alternativo proposto na inicial de recebimentos da ação como ação direta de

inconstitucionalidade e diz que apenas a técnica não é suficiente, embora tenha

se atido às questões processuais o mérito é essencial, elencando de forma

breve os argumentos meritórios da ação. Conclui sua fala afirmando que pior

solução seria dizer à sociedade que o Supremo Tribunal Federal não vai se

pronunciar sobre tema de tamanha importância.

O Procurador Geral da República Cláudio Fontelles inicia seu

pronunciamento lembrando o ensinamento de Rui Medeiros de que a

interpretação conforme a Constituição pode se substituir ao legislador, e que

esta não pode contrariar o texto legal. Diz que de acordo com o princípio da

separação dos poderes é vedado ao juiz à criação de uma nova lei, somente

cabendo a este averiguar se a lei contraria ou não a Lei Maior. Após começa a

análise dos dispositivos penais que tipificam a conduta. O procurador levanta a

impossibilidade de que a interpretação conforme o texto constitucional acarretará

a exclusão da punibilidade, pois as exceções devem ser interpretadas de forma

literal e restritiva, não comportando analogia. Afirma Cláudio Fontelles que o

princípio da ponderação e proporcionalidade privilegia o direito à Vida, sendo

indiferente a duração desta vida. Por fim, salienta que seus argumentos têm

cunho estritamente jurídico e não religioso.

O relator retoma a palavra proferindo seu relatório no sentido de

considerar admissível a ADPF. O Ministro traz como dado a informação de que

uma ação demora aproximadamente 5 anos do tribunal inicial até o julgamento

final do Supremo Tribunal Federal. Segundo ele o processo objetivo de controle

de constitucionalidade exerce de forma precípua a guarda da constituição

afastando decisões conflitantes e numerosas de órgãos inferiores, e uma nova

forma de realizar este controle é através da ADPF. Utiliza ainda como

argumentos a importância dessa decisão para as pessoas de baixa renda que

têm que recorrer ao serviço público de saúde, a mobilização da sociedade civil

em torno da temática, a eliminação do elevado número de Recursos

Extraordinários e a observância da petição inicial dos requisitos legais. À guisa

de conclusão, Marco Aurélio defende que o Supremo Tribunal Federal tem que

se manifestar quer num sentido, quer no outro devido ao seu papel constitucional

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 100

e institucional no Estado Democrático de Direito e pela impiedade da História

com a inércia.

Diante do pedido de vista do Ministro Carlos Britto, interrompeu-se o

julgamento neste tocante.

Ocorre que na mesma sessão o Ministro Eros Grau levanta a hipótese de

revogação da liminar monocraticamente concedida pelo relator. Não houve o

referendo do plenário do Tribunal. E, segundo ele, a liminar ofende a dignidade

do feto tratando-o como coisa e não como pessoa.

O Presidente do Tribunal, Nelson Jobim, esclarece que a liminar continha

dois aspectos: o sobrestamento dos feitos nas instâncias inferiores e o

reconhecimento do direito das gestantes enquadradas no caso de realizar a

interrupção sem a necessidade de autorização judicial específica.

O Ministro Marco Aurélio afirma que no dia 2 de agosto a concessão

monocrática da liminar foi trazida à bancada e por tal razão houve o referendo da

liminar. Defende o julgamento apenas quanto à admissibilidade da ação e não

no tocante à liminar.

O Ministro Eros Grau reafirma que não aconteceu o referendo no que é

acompanhado pelos demais membros. Carlos Britto se manifesta no sentido de

manter a liminar. Há uma nova votação para determinar a concessão da palavra

novamente ao advogado da autora para defender a manutenção da liminar

obtida anteriormente. A decisão defere o uso da tribuna ao representante

autoral.

Luís Roberto Barroso inicia sua segunda fala elencando os requisitos da

concessão de liminar: relevância e perigo na demora. O primeiro estaria

presente na lide nos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade,

autonomia da vontade e direito à saúde. A dignidade humana enquadra-se na

integridade física e psicológica da gestante, no entender do constitucionalista o

registro civil de um natimorto, o óbito, enterro e a falta de recursos financeiros da

mulher seriam equiparáveis à tortura psicológica. A ninguém deve ser imposto

sofrimento evitável. Outro ponto seria a violação do princípio da legalidade se

entendida a interpretação conforme a constituição anteriormente referida. Como

fundamento Luís Roberto Barroso propõe também a atipicidade do fato. Como a

morte para o Direito é a morte cerebral, o feto anencéfalo não pode ser

considerado ser vivo, somente mantendo a vitalidade através de um aparelho

que é o corpo materno. Assim sendo, não há conflito entre bens jurídicos porque

não há vida. O segundo requisito – perigo na demora – é demonstrado nos

diversos pronunciamentos judiciais conflitantes a respeito do tema. Retratar a

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 101

liminar neste momento passará a mensagem de insegurança quanto às decisões

da corte suprema, ferindo a credibilidade do Judiciário. Finaliza sua

apresentação destacando a importância da laicização do Estado e o apoio de

diversas entidades como o Conselho Federal de Medicina, Ordem dos

Advogados do Brasil e organizações feministas.

Após, o Procurador Geral da República solicita o reexame da liminar. Os

argumentos apontados são: o bem maior protegido juridicamente é a vida (não

vê argumentos jurídicos que afastem esse direito) e vida intra-uterina é vida, não

podendo haver a coisificação do feto, a noção de vida é atemporal. Utiliza o

princípio da ponderação considerando que nem todas as gestantes sofrem com

a continuação da gestação, mas todos os fetos morrem.

O ministro Marco Aurélio é o primeiro a proferir seu voto. Inicialmente,

afirma o beneplácito do plenário quanto à liminar já que a mesma perdurou por

mais de quatro meses. Ressalta que em uma ação conjunta com o Ministério

Público, as gestantes já não necessitam ingressar em juízo para obter a

permissão de antecipação, e se o Ministério Público do Distrito Federal pode

autorizar, quanto mais demonstrada a competência do Supremo Tribunal

Federal. A lei 9.882/99 permite que a liminar suspenda as decisões não

transitadas em julgado e a adoção de qualquer outra medida ligada à matéria

discutida. Declara seu voto no sentido de manter a liminar, acreditando que a

suspensão da medida já deferida importaria em insegurança jurídica e o

descrédito da prestação judicial provisória. Apela para a formação ética e

humanística dos julgadores, rechaçando a pressão religiosa.

O Ministro Eros Grau estabelece um raciocínio contrário, para ele a

insegurança jurídica reside na própria liminar e não em sua cassação. Ressalta

que seu voto será exclusivamente técnico e jurídico. Nega referendo à liminar

sob o fundamento de que a mesma atenta contra a vida reconhecida pelo

Código civil e que não pode o julgador estabelecer nova exclusão de

punibilidade ignorada pelo legislador.

O Ministro Joaquim Barbosa, adstrito aos aspectos processuais nega

referendo à liminar por considerar que nesse momento ainda não realizado o

exame de admissibilidade impossível o deferimento de liminar.

O Ministro Carlos Britto inicia seu voto confessando que suas convicções

a respeito do tema encontram-se abaladas. Tece comentários sobre o caráter

machista de nossa sociedade, crê inclusive que se os homens engravidassem o

aborto a muito deixaria de ser crime. A seguir, trata da viabilidade do feto,

questionando se há o direito de viver ou direito de viver para morrer e que o

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 102

anencéfalo será algo que nunca será alguém. Salienta a riqueza do amor

materno e considera que a liminar apenas devolve a questão ao arbítrio a quem

cabe decidir. Encontra indicadores para endossar a medida e, portanto, vota

favoravelmente à liminar.

O Ministro Cezar Peluso ressalta que a liminar somente pode ser

concedida quando há uma alta probabilidade de confirmação ao final do

processo. No caso em questão entende o ministro que a liminar ofende o valor

jurídico da vida protegida juridicamente mesmo ainda no ventre materno. A

história da criminalização do aborto é ponto de destaque em sua manifestação.

O crime de aborto tem sua origem na necessidade de preservar a vida humana,

independente de deformidade. O diagnóstico da anencefalia é novo, porém, a

ocorrência de inviabilidade da vida extra-uterina não. A duração da vida não está

à disposição das pessoas, só coisa é objeto de disposição alheia. Vota no

sentido da cassação da medida.

Após é dada a palavra ao Ministro Gilmar Mendes. Esse inicia sua fala

diferenciando o papel positivo do negativo do julgador, afirmando a construção

diária pelo Supremo Tribunal Federal de interpretações até mesmo de normas

constitucionais. Porém, não vislumbra os requisitos da liminar no caso em voga e

por isso vota no sentido de cassar a decisão monocrática.

A ministra Ellen Gracie considera a liminar satisfativa porque autoriza o

aborto em casos não previstos na legislação. Acompanha os votos da maioria

por considerar incabível tal medida se o Tribunal ainda não se manifestou sobre

a admissibilidade da ação.

Carlos Velloso concorda com a ministra anteriormente referida no tocante

ao caráter satisfativo da liminar e a incerteza quanto ao cabimento do meio

jurídico escolhido, por tais razões vota com o intuito de revogar a liminar.

O Ministro Celso de Mello formula ponderações sobre o papel do juiz

republicano em uma república laica e a neutralidade confessional que deve

pautar suas decisões. Considera a importância da decisão atacada e de seus

fundamentos dentre eles destaca: extensão e titularidade do direito à vida, direito

sexual, direito à saúde, direito reprodutivo, autonomia da vontade e saúde física

e mental da gestante. Destarte, há densidade jurídica na cautelar decidindo pela

manutenção integral da liminar.

O ministro Sepúlveda Pertence concorda com o relator sobre a

protelação do Tribunal no caso e não vê como voltar às decisões controvertidas,

preferindo manter a liminar nos seus termos. Criada uma situação de fato o

Supremo Tribunal Federal assumiu uma política judiciária.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 103

Como resultado, o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da

liminar concedida, no tocante ao sobrestamento dos processos e decisões não

transitadas em julgado, vencido Cezar Peluso. E, também por maioria, foi

revogada a segunda parte da liminar, que reconhecia o direito constitucional da

gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencéfalos,

vencidos: Marco Aurélio, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.

Atualmente, os processos judiciais interpostos e não transitados em julgado

estão suspensos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de

número 54 foi considerada admissível em 27 de abril de 2005, por maioria de

votos, e aguarda julgamento no tocante ao mérito sobre a legalidade do

procedimento médico de antecipar o parto em caso de anencefalia fetal sem a

necessidade de cada hipótese de solicitação ser submetida ao Poder Judiciário

como ocorria até a propositura da ação.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 104

6 CONCLUSÃO INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO

A etapa conclusiva deste trabalho tem como finalidade relacionar o

instrumental teórico elencado nos capítulos sobre a bioética, o aborto e a

interpretação constitucional e o estudo de caso da antecipação terapêutica do

parto em caso de anencefalia fetal proposto no capítulo anterior.

No tocante aos argumentos bioéticos a teoria analítica dos casos

concretos parece a mais adequada, pois tem como parâmetro a utilização de

uma situação prática a fim de indicar soluções normativas para os problemas,

como é o caso do estudo sobre a legalidade do procedimento de antecipação do

parto em casos de anencefalia fetal. A metodologia adotada propõe a

ponderação entre a solução dada ao caso concreto de acordo com quatro

princípios: autonomia, beneficiência, não-maleficiência e justiça. A teoria bioética

dos princípios encontra uma limitação de ordem metodológica, qual seja, a falta

de hierarquização entre as quatro diretrizes orientadoras. Tal ausência ocasiona

uma insuficiência da teoria em hipóteses onde há conflito entre os princípios

elencados. Permite uma subjetividade extrema quanto à valoração dos princípios

não fornecendo uma resposta legitimada racionalmente151.

Por tal razão, essenciais as contribuições jurídicas de Ronald Dworkin e

Robert Alexy. Os referidos juristas lidam com a questão de princípios e a

possível ocorrência de incoerências no sistema jurídico. Cada um deles propõe

uma teoria visando uma mínima racionalidade na escolha do intérprete de certo

princípio em detrimento de outro. Ronald Dworkin rege que o sistema jurídico é

composto de regras e princípios, formando uma integridade coerente e limitadora

da discricionariedade do juiz. Robert Alexy estabelece que os princípios são

mandados de otimização que devem ser aplicados gradativamente ao caso

concreto na busca pela realização dos valores sociais na maior medida possível,

151 Uma crítica formulada por Fermin Schramm e Miguel Kottow é a adoção da

corrente principialista pensada por Beauchamps e Childress como instrumental para os conflitos clínicos de forma inespecífica e sem as devias adaptações para outros conflitos bioéticos que necessitam de uma abordagem específica. In SCHARAMM, F., KOTTOW, M., Princípios bioéticos em salud pública limitaciones y propuestas., 2001. p. 949-956.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 105

fática e juridicamente. E, através da racionalidade da argumentação jurídica,

verifica se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis de controle

racional.

Ronald Dworkin tece alguns comentários especificamente sobre a temática

do aborto. Acredita que o ponto problemático da questão gira em torno da

polarização das visões envolvidas. Os favoráveis à legalização do aborto

acreditam que o feto não deve ser entendido como mais que um aglomerado de

células, um código genético. Contudo os partidários da proibição do aborto

consideram o feto como um sujeito moral. Diante de tal incongruência muitos

consideram impensável o debate racional entre eles.

Nos dizeres de Ronald Dworkin:

“Trata-se de uma questão de convicções inatas, e o máximo que podemos pedir a cada lado não é que compreenda o outro, ou mesmo que o respeite, mas apenas uma pálida civilidade (...). Se a divergência for realmente tão forte, não poderá haver nenhuma transigência baseada em princípios; na melhor das hipóteses, haverá apenas um frágil e melindroso empate, definido pelo puro poder político.” 152

Qualquer discussão a respeito da temática sobre o aborto envolverá

pensamentos quase sempre inconciliáveis. Porém, como ressalta o supra

mencionado jurista a falta de consenso não ocorre somente pela disparidade

entre as opiniões e sim, muito mais inclusive, por um erro de conceituação entre

o que é moral e o que é legal. Embora a grande parte das pessoas acredite que

é intrinsecamente errado pôr fim a uma vida humana há também um forte

entendimento de que a decisão de interromper a gravidez em sua fase inicial é

de foro íntimo da gestante. Explica Ronald Dworkin:

“Essa combinação de pontos de vistas não é apenas coerente; na verdade, mostra-se igualmente de conformidade com uma grande tradição de liberdade de consciência das modernas democracias pluralistas. É bastante comum pensar que não compete ao governo ditar aquilo que seus cidadãos devem pensar sobre valores éticos e espirituais, em especial sobre valores religiosos.” 153

E este é o entendimento defendido neste estudo. A sociedade brasileira

está diante de uma oportunidade de debater sobre as razões levantadas pelos

grupos contrários e favoráveis ao aborto. E somente através de um

152 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003. p. 12. 153 Ibid., p. 18.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 106

procedimento democrático será possível obter um consenso, não sobre a

moralidade do aborto, mas sim sobre o tratamento jurídico adequado a cada

caso específico, propondo normas legais que sirvam de parâmetro e princípios

norteadores aos julgadores em hipóteses ainda não vivenciadas.

Ronald Dworkin, após discorrer sobre os argumentos e objeções quanto ao

aborto conclui sua obra voltando a atenção dos leitores para o princípio da

dignidade humana. O princípio da dignidade humana traz em si a noção de valor

intrínseco da vida.

Giorgio Agamben, porém, inova no tratamento deste termo quando em sua

obra Homo Sacer levanta a origem deste vocábulo. Segundo o autor a

sacralidade da vida envolvia dois termos: a impunidade da matança e a exclusão

do sacrifício. O Homo Sacer seria uma pessoa posta fora do âmbito da jurisdição

humana, mas sem ultrapassar para a vida humana. Giorgio Agamben então

salienta que:

“A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.” 154 A palavra dignidade tem etimologicamente inserida a noção de

merecimento de estima e honra e sempre ligada ao ser humano. Digno confere

então uma importância essencial do Homem. Segundo Hannah Arendt a

dignidade humana refere-se a sua singularidade na alteridade155. O Homem é

singular justamente por sua identificação com todos e ao mesmo tempo sua

particularidade. A pluralidade humana é oriunda da pluralidade de seres

singulares.

A teoria kantiana estabelece a dignidade como um valor. Para ela dois

valores podem ser destacados: o preço e o valor. O primeiro refere-se às coisas

e o segundo às pessoas.

A professora Maria Celina Bodin de Moraes procura estabelecer um

substrato material para o entendimento do princípio, procurando enfatizar sua

importância para o ordenamento jurídico156. A autora enumera quatro postulados

retirados da obra Convite à filosofia de Marilena Chauí: 1) o sujeito moral

reconhece a existência do outro como sujeito igual a ele; 2) merecedores do

154 AGAMBEN, G., Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua, 2002. p. 91. 155 ARENDT, H., A condição humana, 2000. p. 189. 156 MORAES, M., Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos

danos morais, 2003. p. 85.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 107

mesmo respeito à integridade psicofísica; 3) é dotado de vontade livre, de

autodeterminação; e 4) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a

garantia de não vir a ser marginalizado. Maria Celina de Moraes relaciona esses

postulados com os princípios jurídicos da igualdade, a integridade física e moral,

da liberdade e da solidariedade.

Ana Paula de Barcellos, também objetivando fornecer uma efetividade ao

princípio da dignidade humana, relaciona-o com a noção de mínimo existencial,

entendida como um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais

pessoa se encontraria em situação de indignidade.157

Esta também é a intenção dos autores da obra coletiva organizada por

Ingo Sarlet. O próprio título do livro já faz referência à dificuldade do termo, a

escolha da nomenclatura dimensões da dignidade humana visa demonstrar a

complexidade da própria pessoa humana. Ingo Sarlet menciona a problemática

de considerar o termo dignidade humana como universal, e mesmo que fosse

possível não haveria como evitar entendimentos diversos sobre quais atos

seriam ofensivos à dignidade humana158. Béatrice Maurer considera duas

dimensões da dignidade: uma substancial, ligada à noção de igualdade entre as

pessoas e a dignidade denominada de “atuada”, que seria a manifestação, a

realização de atos garantidores da dignidade159. As noções de vida e dignidade

humana estão intimamente relacionadas, não havendo uma conceituação

técnica capaz de separar objetivamente os âmbitos de atuação de cada

princípio. Para Michael Kloepfer estes termos devem ser entendidos como uma

unidade, de forma conjugada, porém isso não significa que representem o

mesmo direito fundamental. Os dois bens jurídicos podem, inclusive, entrar em

conflito entre si e “é preciso que resulte aqui, uma solução ponderada pautada

pelo critério do menor sacrifício possível de direitos fundamentais”160. A falta de

uma clara definição do termo dificulta e por vezes impossibilita sua efetivação. E

por fim, o entendimento de Peter Häberle, para quem a dignidade humana deve

ser fundamento da comunidade estatal, cabendo ao Poder Constituinte e ao

cidadão “acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso,

157 BARCELLOS, A., A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio

da dignidade da pessoa humana, 2002. p. 305. 158 SARLET, I. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma

compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.

159 MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 108

também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de

evolução.” 161

A dignidade humana permeia toda a discussão sobre o aborto. Não só

porque a realização inconseqüente do ato atenta contra a dignidade de uma vida

humana, mesmo que em potencial, como também porque a imposição de

valores à gestante afronta a dignidade dessa, à medida que, restringe sua

liberdade individual. O princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado

como premissa para a proibição do aborto e também como fundamentação para

a permissão da interrupção da gestação no caso proposto haja vista que a

obrigação legal de concluir a gravidez é tida como uma violência injustificada à

integridade psicofísica da mulher.

Neste ponto, destaca-se uma das regras fundamentais de Robert Alexy, já

citada anteriormente, segundo a qual um mesmo termo não pode ser utilizado de

forma distinta pelos falantes em um mesmo processo argumentativo. Assim

sendo, o princípio da dignidade da vida humana não será utilizado como base

argumentativa para nenhum dos entendimentos.

Desta feita, passa-se à análise dos argumentos defendidos no estudo de

caso. Os argumentos mais relevantes são: a sacralidade da vida e o direito à

integridade psicofísica que estaria sendo afrontado na obrigatoriedade legal da

mulher concluir seu período gestacional na hipótese de anencefalia de seu feto.

Segundo Ronald Dworkin existem duas objeções ao aborto. A primeira

denominada de derivativa considera que o feto desde sua concepção já possui

interesses próprios, dentre eles o de permanecer vivo, tendo o Estado que

garantir a proteção de seus interesses básicos. A segunda objeção é

denominada de independente e reconhece à vida humana um valor intrínseco e

inato, em seus dizeres “o caráter sagrado da vida humana começa quando sua vida

biológica se inicia, ainda antes de que a criatura à qual essa vida é intrínseca tenha

movimento, sensação, interesses ou direitos próprios.” 162

Qualquer concepção que se tenha sobre ordenamento jurídico,

especialmente a concepção ocidental contemporânea, terá como objeto

primordial de proteção o ser humano. As normas legais, embora variáveis em

160 KLOEPFER, M., Vida e dignidade da pessoa humana. In Dimensões da

dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005. p. 157. 161 HÄBERLE, P., A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal.

In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005, p. 150.

162 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003. p. 13.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 109

seu conteúdo e forma, trazem em seus textos o princípio do respeito à vida

humana. Tal fato tem desdobramentos diversos conforme os valores e tradições

de cada população. O principal destes é a proibição de retirar a vida de um ser

humano em seus diferentes graus: homicídio, infanticídio, pena de morte, e,

finalmente, aborto.

Desta proibição preliminar à organização social humana decorre o conceito

de sacralidade da vida. Este termo é por muitos criticado por sua evidente

origem em valores religiosos, porém destaca-se que há muito tempo este

vocábulo tem sido desassociado dos referidos padrões meramente espirituais

para obter um embasamento moral laico. E será este fundamento do princípio da

sacralidade da vida que tratar-se-á neste estudo, relegando os aspectos

meramente religiosos quanto à origem e soberania divina sobre a vida humana.

No ordenamento jurídico brasileiro podem ser destacadas duas previsões

legais fundamentais sobre o tema. O artigo 124 do Código Penal Brasileiro de

1940 proíbe expressamente a prática do aborto, destacando o referido diploma

legal em seu artigo 128 os casos de exceção, nos quais, a prática do

abortamento é permitida por lei.

Como visto no capítulo sobre interpretação, segundo as técnicas

tradicionais de hermenêutica, prima-se pela interpretação literal do texto vigente.

De acordo com este entendimento os dispositivos legais expostos são claros

quanto à ilegalidade de qualquer interrupção voluntária da gravidez fora dos

parâmetros legais permissivos. Assim, a norma não merece qualquer

interpretação extensiva a outros casos, sendo clara que a antecipação do parto

em casos de anencefalia é crime, sendo qualquer outra interpretação contra

legem, não podendo ser aplicada.

A valorização máxima da vida humana enquadra-se de forma completa no

princípio bioético da não-maleficiência. Isto significa que a alegação de um

suposto direito da gestante não pode ser aceito, pois afrontaria diretamente o

princípio supra mencionado. A conduta da mulher acarretaria o dano irreversível

da morte de outro ser humano. Portanto, o argumento da sacralidade da vida

encontra um respaldo considerável na teoria bioética principialista.

Ademais, vimos na parte teórica que uma das grandes preocupações dos

estudiosos da bioética é a repetição das barbáries da eugenia nazista. Temem

eles que a permissão do aborto em casos de anomalias incompatíveis com a

vida acarrete a tolerância social e jurídica ao aborto em casos de deficiência

física ou mental. A teoria denominada no Brasil de ladeira escorregadia visa

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justamente chamar a atenção para tal possibilidade, evitando a classificação de

indivíduos como subumanos, indignos de proteção estatal.

Este argumento nos leva à principal objeção à interrupção da gestação

devido à anencefalia, qual seja não há como valorar diferentemente a vida

humana, estabelecendo graus diversos de qualificação de um indivíduo. Esta

argumentação encontra objeção no próprio ordenamento jurídico brasileiro

quando o legislador estabelece punições diferenciadas às diversas afrontas ao

direito à vida: homicídio, infanticídio e aborto. Porém, como a ciência ainda não

foi capaz de determinar com precisão o momento de início da vida humana,

então, utilizando o princípio da precaução163, qualquer organismo humano em

desenvolvimento deve ser protegido juridicamente. Não se pode determinar a

vida humana pela sua duração ou por suas capacidades. Não é menos humano

um feto por viver apenas alguns minutos ou horas e, enquanto perdurar suas

atividades fisiológicas, tem este direito à vida.

Na via contrária, há uma forte tendência bioética em valorizar outro

aspecto da vida humana – a qualidade. Atualmente a noção de sacralidade da

vida não é bastante, a manutenção de uma vida humana não é suficiente,

devendo os organismos estatais primar por elementos essenciais como a

autonomia, a saúde e o bem-estar do indivíduo. Dentro desta perspectiva serão

analisadas as razões que priorizam o direito à integridade psicofísica164 da

mulher.

Os vários argumentos que embasam este direito adotam as teorias

interpretativas mais modernas. Segundo as quais o texto constitucional deve ser

interpretado de forma mais ampla, por envolver valores e princípios abstratos,

conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente através de

referenciais ligados à noção de ponderação e argumentação.

O direito de escolha da gestante encontra suporte no princípio da

autonomia. Segundo este, a pessoa deve ser autônoma para determinar

163 O princípio da precaução é utilizado de forma corrente pelos doutrinadores do

Direito Ambiental e consiste em adotar uma postura defensiva em relação à procedimentos ou aos cuja conseqüência é ignorada.

164 Maria Celina Bodin de Moraes tece alguns comentários sobre a evolução deste princípio, ressaltando que inicialmente a integridade psicofísica era relacionada apenas à noções de tortura e tratamentos penais. Contudo, abrange diversos direitos da personalidade, como por exemplo: vida, nome, honra, identidade pessoal, corpo, entre outros. Hoje institui um amplo direito à saúde, ou como diz a autora, um completo bem-estar psicofísico e social, e contém ainda o direito à existência digna. MORAES, M. Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003. p. 94.

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aspectos relevantes de sua vida, entre eles o direito reprodutivo. Esse

argumento é defendido de forma genérica para o aborto, mas no caso de

anencefalia seria reforçado, pois com a inviabilidade da vida fetal não há outro

sujeito a ser prejudicado. Além disso, o sofrimento gerado pela gravidez de um

feto anencéfalo sem viabilidade de vida extra-uterina e as possíveis

complicações de uma gestação também podem ser englobados no princípio da

beneficiência, já que a interrupção da gestação causaria um bem à saúde física

e, principalmente, à saúde psicológica da gestante.

Este princípio permite uma interpretação extensiva do artigo 128 do Código

Penal Brasileiro que permite a prática abortiva em casos de perigo à vida da

gestante. Alguns estudos têm sido propostos sobre o aumento do risco materno

nesses casos de gravidez, porém não há ainda um consenso médico a respeito

do tema para afirmar categoricamente que, pelo menos na parte física, há um

risco justificador da interrupção da gravidez.

Já no tocante aos danos psicológicos, há um forte entendimento de que a

obrigação legal a que é submetida a mulher ao levar a cabo a gestação de um

feto inviável é comparável à tortura. Os desconfortos e limitações impostos por

qualquer gestação seriam agravados pelo fato da consciência da gestora de que

seu feto não terá um desenvolvimento normal.

Nos dizeres da antropóloga Débora Diniz: “O fato é que o diagnóstico de má-formação fetal, em especial daquelas incompatíveis com a vida extra-uterina, não compõe o rol de expectativas das mulheres grávidas. O diagnóstico da má-formação fetal é, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais angustiantes que uma mulher grávida pode experimentar. E parte importante desta angústia decorre exatamente da precisão diagnóstica possibilitada pelas técnicas: há uma limitação técnica da medicina fetal, pois, não há possibilidades terapêuticas para a grande maioria dos diagnósticos de má-formação fetal e, acrescido a isto, há uma limitação legal que restringe as decisões reprodutivas da mulher grávida, dificultando ou mesmo proibindo o aborto seletivo.“ 165 Os dados obtidos na parte empírica deste estudo embasam alguns

argumentos favoráveis à permissão do aborto.

Primeiro, a certeza científica de inviabilidade fetal e a confirmação total dos

diagnósticos realizados, não havendo um só caso onde a doença fora

descartada no exame pós-morte.

165 DINIZ, D. Quem autoriza o aborto? médicos, promotores e juízes em cena,

2003, p. 2.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 112

A ocorrência de diversos julgados permitindo a prática, o que evidencia

uma tendência jurisprudencial que acarreta uma insegurança jurídica se

modificada sem que haja uma fundamentação para tanto. É certo que somente o

Supremo Tribunal Federal pode emitir uma decisão jurídica obrigatória aos

demais ramos judiciários, porém, a reiteração de decisões em um determinado

sentido faz supor ao cidadão que aquele é o entendimento jurídico a respeito do

assunto. Ademais, a ínfima minoria que tem a solicitação negada não recebe um

tratamento jurídico igualitário, vez que, não lhe é dado o direito de escolha

concedido às demais solicitações, sendo que se encontra na mesma situação

que estas.

Os julgados estudados fundamentam outro ponto jurídico favorável à

permissão da interrupção que é a atipicidade da conduta. Tal formulação

jurídica, como visto em capítulo anterior, utiliza a legislação vigente sobre o

transplante de órgãos que estabelece a morte cerebral como determinante da

morte natural de uma pessoa. O feto anencéfalo caracteriza-se pela ausência de

cérebro, e silogisticamente, já deveria ser considerado morto para o

ordenamento jurídico. Então, quando a mãe antecipa o parto não acarreta

diretamente a morte do feto, a qual tem uma causa biológica natural, sendo

atípica a conduta da gestante ou do médico para o Direito.

Neste sentido, destaca-se o argumento principal que especifica o caso da

anencefalia – a inviabilidade de vida extra-uterina do feto. Neste contexto, não

há conflito de princípios por ausência de possibilidade de vida fetal. Assim

sendo, não há afronta voluntária à vida humana e sim uma inviabilidade natural.

Este entendimento se coaduna com a premissa de Robert Alexy de que

quanto maior a interferência em um princípio mais importante tem que ser a

realização de outro princípio. O direito fundamental da integridade psicofísica da

gestante não deve ser afastado haja vista que não será conservado o direito à

vida do feto. Assim sendo, não há uma justificação racional para restringir o

direito da mulher.

Conclusivamente, destacam-se as considerações de Hannah Arendt: “As perguntas específicas devem receber respostas específicas; e se a série de crises que temos vivido desde o início do século pode ensinar alguma coisa é, penso, o simples fato de que não há padrões gerais a determinar infalivelmente os nossos julgamentos, nem regras gerais a que subordinar os casos específicos com algum grau de certeza.” 166

166 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, 2004. p. 7.

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A antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia deve ser

analisada de acordo com as peculiares características da hipótese. A atividade

legislativa brasileira não acompanhou as inovações técnicas da ciência médica,

não há uma previsão legal específica sobre o caso, o que permite tamanha

celeuma sobre a correta interpretação constitucional a respeito do tema. A

interpretação constitucional dos valores envolvidos não deve ser remetida à

legalidade ou não da prática abortiva, tema este muito mais amplo e complexo.

O que se pretende no estudo de caso é demonstrar que as descobertas

científicas das últimas décadas possibilitaram o conhecimento de um fator

determinante na gestação, a inviabilidade de vida extra-uterina.

O Supremo Tribunal Federal depara-se com uma situação jurídica sui

generis e, portanto, deve utilizar as técnicas interpretativas de forma a proferir

uma decisão com base em argumentos jurídicos racionais condizentes com os

valores expressos na Carta Magna de 1988. As normas constitucionais antes de

1988 tinham como problemática garantir a continuidade de sua vigência, diante

de tantos golpes a permanência de uma Constituição era hipóteses rara. Após a

promulgação da Constituição de 1988, e a estabilidade da democracia brasileira,

a preocupação passa a ser com a efetivação do texto constitucional167 e o

Supremo Tribunal Federal adquire um papel relevante neste sentido.

O debate deliberativo que se levantou a respeito do tema, por si só, já

representa um avanço para a democracia brasileira. A menção de que o relator

pretende convocar uma Audiência Pública para ouvir representantes de diversos

setores sociais alude a uma preocupação do Tribunal em observar parâmetros

democráticos em sua solução. A deliberação que precede o processo decisório é

indispensável à democracia. 168

A função outorgada pelos constituintes à Corte Suprema deve ser

conservada no sentido deste determinar qual a interpretação constitucional mais

adequada à lide em voga. A decisão a ser prolatada deve atentar para um

167 De acordo com este entendimento: “A legalidade constitucional, a despeito da

compulsão com que se emenda a Constituição, vive um momento de elevação: quinze anos sem ruptura, um verdadeiro recorde em um país de golpes e contra-golpes. (...) E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. BARROSO, L, BARCELLOS, A. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, p. 329.

168 Neste sentido, SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 295.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 114

procedimento decisório racional e laico, através da argumentação e ponderação

dos valores constitucionais da integridade e da vida humana a fim de obter uma

legitimação democrática perante a sociedade plúrima. Segundo palavras do

Ministro Marco Aurélio, quer num sentido quer em outro, o Supremo Tribunal

Federal tem que emitir um posicionamento sobre a permissão legal de

antecipação de parto em caso de anencefalia fetal, pois a inércia institucional é

impiedosa à democracia169. Este trabalho não pretende determinar qual a única

resposta jurídica correta. Porém, “devemos insistir em que apresentem os melhores

argumentos possíveis, e, em seguida, perguntar a nós mesmos se seus argumentos são

suficientemente bons”. 170

169 Como dito anteriormente não é tratada, neste trabalho, a questão de separação

dos Poderes quanto à edição e aplicação de normas. Entretanto, vale citar Cláudio Pereira de Souza Neto: “Assim, um dos argumentos centrais para a restrição do ativismo judicial nessa área é justamente o da legitimação democrática. (...) O estabelecimento de finalidades se situa no campo do dissenso político e deve ser resolvido através do princípio majoritário. Como sublinhamos, as teorias democrático-deliberativas levam a uma restrição da atividade judicial ao campo da neutralidade política, que caracteriza o consenso procedimental, deixando em aberto à deliberação majoritária o dissenso conteudístico. O que não pode ocorrer é o estado violar os direitos fundamentais ou deixar de implementa-los – hipótese em que estará agindo ilegitimamente, ficando justificada a ação judicial.” SOUZA NETO, C. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003.

170 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003, p. 203

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INTRODUÇÃO 11

1 INTRODUÇÃO

A defasagem temporal entre as descobertas científicas e a elaboração de

normas jurídicas reguladoras da sociedade há muito é objeto de análise dos

estudiosos não só do Direito, mas de toda Ciência Social Aplicada.

Uma das respostas fornecidas a este problema é a elaboração de um novo

ramo da ética aplicada denominado de Bioética. Série de correntes de

pensamento, desenvolvida principalmente a partir da segunda metade do século

XX, a bioética lida com questões morais e filosóficas envolvendo as mais

diversas ciências. É um movimento acadêmico de natureza interdisciplinar que

nasce com a busca por respostas a questionamentos pertinentes a valores

tradicionais acerca do nascer, viver, adoecer e morrer no contexto histórico das

sociedades democráticas, pluralistas e secularizadas contemporâneas.

A interligação cada vez mais freqüente entre os conhecimentos

acadêmicos acarreta a necessidade dos agentes jurídicos se familiarizarem com

descobertas de outros ramos científicos, entre eles a medicina. Este

relacionamento é denominado por alguns autores de Biodireito cuja função é

relacionar os estudos bioéticos com as doutrinas jurídicas. Porém, a relação

entre os avanços científicos e as normas de conduta estabelecidas pelos

ordenamentos jurídicos ainda é primária, necessitando de uma discussão

metodológica sobre o tema. O Brasil depara-se com uma dificuldade ainda maior

- a problemática da injustiça e exclusão social. Convivemos com avanços

tecnológicos de ponta ao lado de situações de miséria social e sanitária

medievais. As discussões ainda persistentes juntam-se aos problemas

emergentes, levando a uma necessidade de identidade própria da bioética, e

conseqüentemente, do biodireito brasileiro.

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INTRODUÇÃO 12

A complexidade das organizações humanas contemporâneas acarreta

também outra problemática, qual seja o conflito entre os diversos valores morais

adotados e expressos concomitantemente no ordenamento jurídico vigente.

Diversas teorias buscam uma solução jurídica racional para a resolução destes

conflitos. Dentre elas a teoria da ponderação de princípios e a técnica

argumentativa como legitimadora das decisões judiciais que abrangem princípios

contraditórios quando da aplicação ao caso concreto.

A metodologia adotada utilizará: 1) a revisão bibliográfica sobre aspectos

da bioética relacionados à temática do aborto e sobre interpretação de textos

legais, especialmente constitucional; e 2) estudo de caso: antecipação do parto

em caso de anencefalia fetal, onde serão colhidos dados através da técnica de

aplicação de formulários no Instituto Fernandes Figueira.

O trabalho será dividido em três partes principais.

A primeira lidará com as questões teóricas sobre o tema. O capítulo um

será destinado a tecer algumas considerações sobre a bioética, desde o

surgimento deste ramo científico, passando pelas teorias metodológicas

atualmente utilizadas, até o seu relacionamento com a ciência jurídica. O

segundo capítulo tratará do aborto – considerações sobre a nomenclatura do

termo, aspectos bioéticos e jurídicos, inclusive com os documentos legais

externos e internos. E, por fim, o terceiro capítulo que analisará algumas teorias

sobre interpretação constitucional. O ato de interpretar uma norma jurídica,

especialmente uma Constituição, é uma atividade que tem como finalidade a

compreensão ou aclaração de seu texto objetivando sua aplicação ao caso

concreto. Tal atividade é essencial para que os valores elencados na Carta

Magna sejam concretizados nos casos propostos ao Poder Judiciário, cabendo

ao intérprete a busca de métodos e técnicas interpretativas capazes de

assegurar a observância dos princípios fundamentais ao Estado Democrático de

Direito.

A segunda parte deste trabalho proporá o estudo de caso da antecipação

terapêutica do parto de gestantes de fetos anencéfalos. O estudo proposto

enquadra-se perfeitamente nas problemáticas referidas anteriormente por

envolver valores e conceitos conflitantes, além de ser pauta atual de discussão,

não somente em nosso Tribunal Supremo, como na mídia e nos mais diversos

seguimentos da sociedade. O quarto capítulo buscará suporte teórico na ciência

médica a respeito da anencefalia, sobre o diagnóstico e prognóstico desta

deformidade. E dados empíricos sobre a gestação de fetos anencéfalos no

Instituto Fernandes Figueira. A metodologia adotada na pesquisa será a de

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INTRODUÇÃO 13

análise de prontuários objetivando o recolhimento de dados. A escolha do

Instituto Fernandes Figueira decorreu de sua especialização em gestações de

alto risco, inclusive de fetos anencéfalos, e pela alta qualificação de seus

profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.

As autorizações judiciais relativas aos casos analisados nesta pesquisa empírica

serão analisadas com o intuito de levantar os argumentos que fundamentaram

essas decisões. A seguir, será estudado ainda o histórico da antecipação

terapêutica do parto de anencéfalos no Supremo Tribunal Federal, iniciado com

um Habeas Corpus e atualmente em pauta com uma Ação de Descumprimento

de Preceito Fundamental.

E a terceira parte, desenvolvida no capítulo quinto, relacionará as duas

anteriores, utilizando os aspectos teóricos para discutir o estudo de caso. A

intenção será demonstrar que a antecipação terapêutica de parto é uma das

hipóteses que demandam do aplicador do direito a busca constante pela

racionalização das decisões jurídicas, devendo estas ser submetidas ao crivo da

legitimidade dos argumentos adotados. A discricionariedade que os

ordenamentos jurídicos atuais fornece aos juízes não deve ser associada a uma

arbitrariedade, onde a decisão é carente de uma verificação objetiva de sua

fundamentação. Ronald Dworkin e Robert Alexy são apenas dois dos juristas

que têm como preocupação a valoração extrema dos princípios sem que haja

uma reflexão teórica sobre a aplicação dos mesmos.

À guisa de conclusão, ressaltada será a importância da interpretação

constitucional nos estados contemporâneos. O texto constitucional, como

paradigma legal dos ordenamentos jurídicos, deve estabelecer normas que

concretizem os valores primordiais da sociedade. Em vista da pluralidade de

princípios norteadores e da complexidade dos casos concretos que demandam

uma resposta judiciária não é mais suficiente uma aplicação do Direito

meramente subsuntiva, na qual cada lide deve ser enquadrada dentro de uma

determinada norma. As técnicas jurídicas não mais se iludem com a

possibilidade do legislador esmiuçar os textos normativos de forma a prever toda

e qualquer hipótese prática de conflito. O Supremo Tribunal Federal como

guardião da Constituição Federal deve atentar para a utilização da ponderação

de princípios e argumentação racional na fundamentação de suas decisões o

que possibilitará um controle participativo do povo e a manutenção de sua

legitimidade perante um processo decisório característico do Estado

Democrático de Direito.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 14

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA

2.1.Surgimento da Bioética

As descobertas científicas trazem consigo conseqüências muitas das

vezes desconhecidas por seu inventor. Sua rapidez na área biomédica torna

difícil o acompanhamento da totalidade de seu impacto na vida humana. A

sociedade contemporânea, por sua complexidade e diversidade, apresenta

novos conflitos e, conseqüentemente, busca novas metodologias científicas para

solucioná-los. Os aspectos negativos oriundos do progresso tecnológico devem

ser questionados e ponderados através de um diálogo interdisciplinar.

Apesar de encontrarmos uma preocupação ética na ciência médica desde

a época de Hipócrates e seu juramento perpetrado até os dias atuais, esta ética

era somente direcionada para a relação médico-paciente. Nas sociedades

tribais, os atos dos “curandeiros” eram regrados por um conjunto de valores. O

Código de Hammurabi (lei de talião): prevê a amputação da mão do médico que

matar ou prejudicar fisicamente um paciente nobre1. E o supra citado Hipócrates,

através de seu juramento, estabelecia três parâmetros principais: os dois

princípios de não maleficência e de beneficência, consoante com a visão do

caráter sagrado da vida humana, e a obrigação do médico de honrar e, se

necessário, sustentar seus mestres.

A junção destas preocupações com outros ramos de conhecimentos foi

proposta pelo oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter que empregou

o neologismo "Bioética" pela primeira vez em um artigo publicado em 1970. E,

posteriormente, em 1971, publicou o seu livro intitulado Bioethics: Bridge to the

Future. Van Potter, em sua visão global da humanidade, defendia a importância

das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida e se preocupava com a

1 O referido código trata do salários dos médicos juntamente com outros ofícios

como o de veterinário, arquiteto e bateleiro. Rege o seu artigo 218: “Se um médico trata alguém de uma grave ferida com a lanceta de bronze e o mata ou lhe abre uma incisão com a lanceta de bronze e o olho fica perdido, se lhe deverão cortar as mãos.”. Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm em 02.01.2006.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 15

sobrevivência do planeta. A proposta de Van Potter era edificar uma ponte entre

elementos aparentemente separados: a ciência e a humanidade. O conceito de

bioética de Van Potter é explicado em seu livro supra citado da seguinte forma:

“Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.”2 O Prof. Tristran Engelhardt leciona Ética na Universidade do Texas e diz

que: “A Bioética funciona como uma lógica do pluralismo, como um

instrumento para a negociação pacífica das instituições morais.”3

A Enciclopédia de Bioética ensina que: ”Bioética é o estudo sistemático

das dimensões morais - incluindo visão moral, decisões, conduta e

políticas - das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma

variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar”4.

A partir daí, o conceito de Bioética foi rapidamente difundido e passou a

integrar também os aspectos médicos, ou seja, como ética aplicada ao campo

da medicina e da biologia.

A posterior consolidação da Bioética coincide com as conquistas referentes

aos direitos humanos. Por tal razão, é retomada a preocupação mundial com

questões éticas, desenvolvendo a eticidade das pesquisas com sujeitos

humanos como um de seus principais focos de atenção.

Inicialmente este termo denotava a preocupação ética com o equilíbrio e a

preservação dos seres humanos com seu ambiente ecológico. Desde então,

diversas correntes de pensamento têm oferecido instrumentos metodológicos no

sentido de sistematizar e totalizar os conhecimentos nesta área. Este talvez seja

o maior problema da bioética contemporânea: a pretensão de reunir toda a

verdade em seu modo de ver, enquanto seria mais útil buscar respostas aos

desafios de cada dia.

A atualidade da temática é explicada se considerarmos que os avanços

médicos obtidos por volta da metade do século XX produziram mudanças

drásticas nos cuidados com a saúde. Hodiernamente nos deparamos com

indagações sobre a moralidade do aborto, da eutanásia, da engenharia genética,

da alocação de recursos no setor da saúde, da venda de órgãos, entre outras.

2 POTTER, V., Bioethics. Bridge to the future, 1971, p. 2. 3 ENGELHARDT JR, H., Manuale di Etica, 1991, p. 19. 4 REICH, W.T. Encyclopedia of Bioethics, 1995.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 16

Três teorias foram propostas objetivando resolver os conflitos bioéticos

surgidos.

A primeira denominada de Bioética dos Limites surge com o Código de

Nüremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964-2000). Esta teoria visa

regulamentar a experimentação em humanos baseada no princípio do

consentimento livre e esclarecido e nos direitos naturais e inalienáveis das

pessoas. Considera que existe uma “periculosidade intrínseca” do saber-fazer

tecnocientífico não só em período de guerra (nazismo), mas também em período

de paz (as pesquisas mencionadas). Tal reflexão origina a criação dos Comitês

de Ética em Pesquisa (1973, US National Commission for the Protection of

Human Subjects and Behavioral Research) e de Relatórios (1974, Belmont

Report).

A segunda pode ser denominada de Bioética dos novos dilemas morais.

Também acarreta a criação de Comissões de Ética como a God Commission

(Seattle, 1962) e a Harvard Ad Hoc Commission on Brain Death (Boston, 1968).

Aborda questões como: quais são os critérios pertinentes de morte para uma

intervenção clínica moralmente legítima? Quais são os critérios de justiça

distributiva que devem ser adotados em situações de recursos finitos e

escassos? Considera que o papel da bioética não consiste em impor limites, mas

sim, em indicar soluções normativas para os problemas que surgem na pesquisa

e na prática clínica, tendo em conta as tradições culturais e o contexto histórico.

E por fim, a Bioética Analítica dos Casos Concretos. Concepção que faz

surgir a bioética com o neologismo bioethics (Potter, 1970), a criação do Institute

of Society, Ethics and the Life Sciences por D. Callahan e W. Gaylin (1969, hoje

conhecido como Hasting Center, a criação da Society for Philosophy and Public

Affairs (1971) e o Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human

Reproduction and Bioethics (1971). Considera a Bioética pertencente ao âmbito

das Éticas Aplicadas, adotando a análise racional e imparcial dos conflitos e

propondo soluções no contexto de sociedades multiculturais.

Diversas metodologias são apresentadas como instrumental para

refletirmos sobre essas questões, como por exemplo: utilitarismo, principialismo,

kantismo ou da obrigação, a ética do caráter, individualismo liberal, da

responsabilidade, comunitarismo e a casuística. Cada teoria abordará as

indagações éticas de uma forma distinta, e, muitas das vezes, apresentará

soluções diferentes ao mesmo dilema.

No âmbito deste trabalho será adotada a corrente principialista,

regulamentada pelo Relatório Belmont. Esta escolha foi influenciada pelo

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 17

reconhecimento de sua importância e eficácia no meio bioético e sua

aproximação com teorias jurídicas.

O Relatório Belmont5 decorreu de uma combinação de fatores, dentre eles

a crescente reflexão ética sobre a pesquisa com seres humanos e a ocorrência

de diversos escândalos envolvendo pesquisadores. Foi então criada a Comissão

Presidencial de Proteção dos Seres Humanos para elaborar um relatório que

tinha como objetivo se tornar um protótipo para outros tantos documentos no

sentido de assegurar que as pesquisas envolvendo seres humanos sejam

conduzidas de maneira ética.

O referido relatório, promulgado em 18 de abril de 1978, estabelece três

princípios como relevantes para as pesquisas com seres humanos, embora não

exclua que em certos casos podem ser aplicados mais princípios.

O primeiro princípio é o da autonomia e do respeito pelas pessoas, o qual

estabelece que os indivíduos devem ser tratados como agentes autônomos, há a

necessidade do consentimento informado do participante e deve ser protegida a

pessoa que por qualquer razão tenha sua autonomia diminuída.

O segundo princípio é o da beneficiência, segundo o qual os participantes

da pesquisa devem ser beneficiados pela mesma, não bastando sua anuência

ou a não ocorrência de danos.

E o último princípio estipulado neste documento é o da justiça, onde se

prima pela distribuição igualitária dos benefícios da pesquisa, rejeitadas

quaisquer discriminações na utilização dos resultados obtidos.

Beauchamps e Childress sistematizaram a teoria principialista6. Para

estes autores:

“Os princípios (e coisas do gênero) nos orientam para certas formas de comportamento; porém, por si mesmos, eles não resolvem conflitos de princípios. Enquanto a especificação promove um desenvolvimento substantivo da significação e do escopo das normas, a ponderação consiste na deliberação e na formulação de juízos acerca dos pesos relativos das normas.”7

5 O texto atualizado do relatório foi obtido através do endereço eletrônico:

www.fda.gov 6 Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os

princípios propostos encontram aplicação nos diversos conflitos bioéticos enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 18

O modelo pensado por Beauchamps e Childress pauta-se em quatro

princípios basilares, foi acrescentado o da não-maleficiência aos princípios

estabelecidos em Belmont. Segundo esta linha de raciocínio, o princípio da não-

meleficiência seria caracterizado pela máxima: O pesquisador não deve infringir

mal ou dano no desenvolvimento da pesquisa, enquanto que o princípio da

beneficiência adotaria como pilares as noções de impedir que ocorram males ou

danos e sanar os mesmos caso aconteçam8.

Beauchamp & Childress desenvolveram teorias para iluminar a prática

empírica e determinar o que deve ser feito, utilizando a experiência para testar,

corroborar e revisar teorias. Buscam uma estratégia dialética que procura

coerência entre julgamentos particulares e gerais utilizando a ponderação e

priorização de normas através da deliberação e formulação de juízos acerca dos

pesos relativos das normas.

Embora estes autores estejam muito direcionados à pesquisa médica, os

princípios propostos encontram respaldo em diversos conflitos bioéticos

enfrentados atualmente. A observância destas diretrizes gerais deve ser

analisada de forma específica em cada problemática. O capítulo final deste

estudo terá como objetivo justamente tal aplicação. Os quatro princípios serão

confrontados com os argumentos defendidos de forma favorável e contrária à

permissão legal da antecipação do parto em caso de anencefalia fetal.

Outro princípio que usa a ponderação é o princípio utilitarista9 o qual rege

que a melhor resposta ética é aquela oriunda da ponderação entre a ação e sua

conseqüência. Então: “o ato correto em cada circunstância é aquele que produz

o melhor resultado global, conforme determinado por uma perspectiva impessoal

que confere pesos iguais aos interesses de cada uma das partes afetadas.”10 O

problema deste princípio é sua aplicação pura ou absoluta, pois, tal modelo de

pensamento, adota uma noção de justiça baseada no abstrato conceito da

7 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J. Princípios de ética biomédica, 2002, p. 49. 8 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 212. 9 Nos fundamentos de sua estrutura, o utilitarismo encara um indivíduo como a

expressão da utilidade, da satisfação, do prazer, da felicidade ou do desejo de realização. Alguns representantes desta corrente de pensamento podem ser citados como Jeremy Bentham que sugeriu uma forma de quantificar a utilidade em 7 critérios: Intensidade, Duração, Certeza, Proximidade, Fecundidade, Pureza, Extensão; e John Stuart Mill o qual acredita que as pessoas são motivadas pela promessa de felicidade, através do sucesso ou do dinheiro.

10 BEAUCHAMPS, T., CHILDRESS, J., Princípios de ética biomédica, 2002. p. 62 – 63.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 19

maioria. Contudo, conforme ressalta John Rawls, o que é bom para a maioria

das pessoas não o é necessariamente para todos. 11

Diante do exposto, a bioética é um instrumental essencial para o debate de

questões morais levantadas na realidade atual, somente sendo possível o

diálogo racional se entendidos seus princípios e interdisciplinaridade. Essa

última característica nos leva ao próximo ponto – a relação entre a bioética e os

ordenamentos jurídicos.

2.2. Bioética e Direito

A ciência jurídica tem como objetivo regular as relações sociais e

estabelecer regras de conduta para os indivíduos. Assim sendo, clara é sua

importância nesta discussão a respeito dos limites que devem ser propostos aos

avanços científicos. A busca pelo saber muitas das vezes esquece a célebre

frase de Kant que o ser humano não pode ser utilizado como mero instrumento e

sim como fim em si mesmo12.

Tal preocupação ficou patente no século XX onde se assistiu a um

extraordinário processo de expansão e universalização da proteção internacional

dos direitos humanos, que passaram a ser reconhecidos como tema de legítimo

interesse internacional, especialmente após as atrocidades cometidas durante a

Segunda Guerra Mundial.

Juristas e filósofos voltaram seu interesse para a conceituação e

classificação dos direitos humanos. A busca histórica de valores e conceitos é

pertinente ao momento constitucional dos Estados, na visão pós-positivista onde

o direito e sua finalidade – a dignidade humana – não mais podem ser

separados. O professor Ingo Sarlet nos orienta nesse sentido:

“(...) a história dos direitos fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem”.13

11 RAWLS, J. Uma teoria da justiça, 1981. 12 CHAUÍ, M., Convite à filosofia, 1997, p. 346. 13 SARLET, I., A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 1999, p. 36.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 20

Após ter o mundo tomado conhecimento das atrocidades cometidas em

nome da ciência pelos nazistas por ocasião da II Guerra Mundial, os diversos

segmentos sociais reuniram esforços no sentido de elaborar limites a estas

pesquisas e práticas, a fim de assegurar a integridade e dignidade das pessoas,

incluídos os casos de participação em pesquisas biomédicas.

O chamado Biodireito busca relacionar dois campos de conhecimento: o

direito e a bioética. Esta nomenclatura é relativamente nova e ainda muito

criticada principalmente pelos bioticistas que consideram não haver

propriamente um biodireito, mas sim, áreas de intercessão entre essas duas

ciências distintas.14 No âmbito deste estudo o termo biodireito será empregado

significando a preocupação dos operadores do direito, doutrinariamente ou

judicialmente, em delimitar através de documentos normativos a ação de

pesquisadores e demais envolvidos, tendo por fim, evitar abusos que poderão

advir.

2.2.1.Documentos Jurídicos Internacionais

Os documentos jurídicos internacionais relacionados com a bioética

surgem nesse contexto. Esses serão divididos em duas partes. A primeira trará

os documentos jurídicos gerais, compreendendo, sobretudo, os tratados

internacionais. Já a segunda parte elencará alguns documentos jurídicos

pertinentes a países específicos.

Dentre os documentos de maior relevância no âmbito internacional de

bioética estão: o Código de Nüremberg (1947); a Declaração Universal dos

Direitos Humanos (1948); Pacto de São José (1949); a Declaração de Helsinki

(1964)15; O Relatório Belmont (1978); as Diretrizes Internacionais para Revisão

Ética de Estudos Epidemiológicos (1991); Declaração Universal Bioética

(2005).16

O Tribunal de Nuremberg, em 9 de dezembro de 1946, julgou vinte e três

pessoas - vinte das quais, médicos - que foram consideradas criminosas de

guerra, pelos brutais experimentos realizados em seres humanos. Em 19 de

14 O próprio Conselho Federal de Medicina já utiliza este termo realizando,

inclusive, um simpósio com tal tema no ano de 2000. 15 Revisada em Tóquio (1975), Veneza (1983), Hong Kong (1989), Somerset West

(1996) e Edimburgo (2000) 16 Outros documentos internacionais, de cunho principalmente de direitos

Humanos, poderiam ser mencionados, porém no âmbito deste trabalho foram destacados apenas os estritamente relativos à bioética. Para a obtenção de outros sugere-se: www.un.org.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 21

agosto de 1947 divulgou as sentenças, além de um documento que ficou

conhecido como Código de Nuremberg.

O Código estabelecia17: 1) o consentimento voluntário e informado do ser

humano participante de qualquer experiência científica sem qualquer intervenção

de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de

restrição posterior; O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade do

consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um

experimento ou se compromete nele; 2) O experimento deve produzir resultados

vantajosos para a sociedade, que não possam ser buscados por outros métodos

de estudo, mas não podem ser feitos de maneira casuística ou

desnecessariamente; 3) O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar

todo sofrimento e danos desnecessários, quer físicos, quer materiais; 4) Não

deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para

acreditar que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez,

quando o próprio médico pesquisador se submeter ao experimento; 5) O grau de

risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o

pesquisador se propõe a resolver; 6) O experimento deve ser conduzido apenas

por pessoas cientificamente qualificadas; 7) O participante do experimento deve

ter a liberdade de se retirar no decorrer do experimento e 8) O pesquisador deve

estar preparado para suspender os procedimentos experimentais em qualquer

estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação do

experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os

participantes.

Sete acusados foram condenados à morte. Este documento tornou-se um

marco, pois, foi o primeiro a estabelecer recomendações internacionais sobre os

aspectos éticos envolvidos na pesquisa em seres humanos.

Em 1948 é aprovada uma das declarações internacionais mais amplas e

relevantes para a luta em prol dos Direitos Humanos: A Declaração Universal

dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Este documento é um dos mais

importantes no plano jurídico internacional devido a sua amplitude de proteção.

A declaração preocupou-se, fundamentalmente, com quatro ordens de direitos

individuais, conforme assevera Celso Ribeiro Bastos18. Primeiro os direitos

pessoais do indivíduo: direito à vida, à liberdade e à segurança. Segundo os

direitos do indivíduo em face das coletividades: direito à nacionalidade, de asilo,

17 Íntegra do texto foi obtida no site:

http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/nuremb1.htm 18 BASTOS, C., Curso de Direito Constitucional, 2000, pg.174-175.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 22

de livre circulação e de residência e de propriedade. Terceiro as liberdades

públicas e os direitos públicos: liberdade de pensamento, de consciência e

religião, de opinião e de expressão, de reunião e de associação. Quarto direitos

econômicos e sociais: direito ao trabalho, à sindicalização, ao repouso e à

educação.

O pensador italiano Norberto Bobbio19 diz que: "A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre". A Associação Médica Mundial desenvolveu em 1964 a Declaração de

Helsinque como um documento de princípios éticos, para fornecer orientações

aos médicos e outros participantes de pesquisas clínicas envolvendo seres

humanos. Foi revisada nos anos de 1975; 1983; 1989 e 2000. Nos dizeres de

Débora Diniz e Marilena Côrrea a declaração ”representou a tradução e a

incorporação, pelas entidades médicas de todo o mundo, dos preceitos éticos

instituídos pelo Código de Nuremberg, definindo uma base ética mínima

necessária às pesquisas e aos testes médicos com seres humanos (...)”20.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, adotada e aberta à

assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos

em 22 de novembro de 1969, originou o Pacto de São José da Costa Rica21.

Direitos fundamentais são elencados juntamente com garantias processuais para

sua concretização como a proibição de decretar-se a prisão civil do depositário

infiel, duplo grau de jurisdição e a possibilidade de apelação em liberdade.

As Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres

Humanos de 1991 elaboradas em Genebra tratam respectivamente: 1)

Consentimento Informado Individual; 2) Informações Essenciais para os

Possíveis Sujeitos da Pesquisa; 3) Obrigações do pesquisador a respeito do

Consentimento Informado; 4) Indução a participação; 5) Pesquisa envolvendo

crianças; 6) Pesquisa envolvendo pessoas com distúrbios mentais ou

comportamentais; 7) Pesquisa envolvendo prisioneiros; 8) Pesquisa envolvendo

19 BOBBIO, N., A Era dos Direitos, 1992, p. 34. 20 DINIZ, D., CORRÊA, M., Por uma análise crítica da proposta de modificação da

Declaração De Helsinki, 2000, p. 2. 21 Este pacto foi recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro através do

Decreto nº 678 / 92 e no tocante ao aborto estabelece uma norma importante em seu artigo 4º, qual seja, de que toda a pessoa tem o direito à vida, e que este direito deve ser protegido a partir da concepção.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 23

indivíduos de comunidades subdesenvolvidas; 9) Consentimento informado em

estudos epidemiológicos; 10) Distribuição eqüitativa de riscos e benefícios; 11)

Seleção de gestantes e nutrizes como sujeitos de pesquisa; 12) Salvaguardas à

confidencialidade; 13) Direito dos sujeitos à compensação; 14) Constituição e

responsabilidades dos comitês de revisão ética e 15) Obrigações dos países

patrocinador e anfitrião.

A Declaração Universal Bioética é fruto de uma Reunião Internacional da

qual participaram 90 países, dentre eles o Brasil. A referida declaração já em seu

a artigo primeiro estabelece seu escopo: trata das questões éticas

relacionadas à medicina, às ciências da vida e às tecnologias associadas

quando aplicadas aos seres humanos, levando em conta suas dimensões

sociais, legais e ambientais. E é dirigida aos Estados. Quando apropriado e

pertinente, ela também oferece orientação para decisões ou práticas de

indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas públicas e privadas.

Com o intuito de apenas destacar alguns pontos serão trazidas normas de

diversos países, ora privilegiando a quantidade, ora o qualitativo de tais

documentos jurídicos.

A Inglaterra possui dois documentos relevantes nesta perspectiva. O

primeiro trata da clonagem humana, prevendo expressamente ser um ato para

proibir a colocação em uma mulher de um embrião humano que fosse gerado de

outra maneira que não seja pela fertilização. Já o segundo lida com

experimentos e procedimentos científicos relacionados com embriões e

gametas. Alguns aspectos importam ser salientados como, por exemplo, a

definição expressa de quem é a mãe (a mulher que está carregando ou carregou

uma criança em conseqüência de colocar nela um embrião ou o esperma, e

nenhuma outra mulher, é tratada como a mãe da criança) 22 e quem é o pai (a

outra parte da união será tratado como o pai da criança, a menos que,

demonstre que não consentiu na utilização do embrião ou esperma para

inseminação) 23. Ademais este mesmo ato estabelece alguns casos de

permissão de interrupção da gravidez, são eles: (a) a gravidez não excedeu sua

vigésima quarta semana e que a continuação da gravidez envolveria o risco,

maior do que se a gravidez for terminada, de ferir a saúde física ou mental da

Fonte: http://www.presidencia.gov.br/CCIVIL/decreto/1990-1994/anexo/andec678-92.pdf acesso em 01.02.2006.

22 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 27. Fonte: http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 24

mulher grávida ou de algumas crianças existentes de sua família; (...) (d) que há

um risco substancial que a criança sofreria sérios riscos físicos ou anomalias

mentais. Ressaltamos nestas duas hipóteses a previsão de risco mental da

gestante e a ocorrência de anomalias mentais do feto.

A Itália também elaborou dois documentos: um tratando da coleta de

dados e informação consciente do paciente e o segundo sobre a proteção da

mãe e da criança. Este segundo rege que a interrupção voluntária da gravidez

não pode ser confundida com procedimentos de controle da natalidade,

atribuindo ao Estado e agências locais de saúde o dever de informar as

gestantes sobre seus direitos jurídicos e sociais na área da saúde.

Em Portugal destaca-se a proibição da clonagem e utilização científica de

embriões. O Decreto 135/VII de 1997 proíbe a criação ou utilização de embriões

para fins de investigação ou experimentação científica. No entanto, aceita a

investigação quando esta tenha como único propósito beneficiar o embrião. E, a

segunda norma jurídica é a Lei sobre Técnicas de Procriação Assistida,

promulgada pelo Parlamento em Julho de 1999, proíbe a clonagem reprodutiva e

criminaliza a sua utilização.

A Espanha possui um amplo número de documentos jurídicos bioéticos

regendo: fecundação assistida e material genético24, transplantes25,

medicamentos26, responsabilidade civil e penal dos profissionais de saúde27.

Na Finlândia a investigação médica é regida pela Lei da Investigação

Médica (1999). Segunda a mesma, os embriões excedentes dos tratamentos de

fertilização podem ser utilizados para investigação, desde que os doadores

tenham dado o seu consentimento por escrito. Porém, decorrido o prazo de 15

anos, os óvulos e o têm de ser destruídos.

O ordenamento jurídico alemão promulgou a Lei de Proteção do Embrião

(Embryonenschutzgesetz), que entrou em vigor em Janeiro de 1991, só permite

o diagnóstico ou análise de um embrião para seu próprio benefício e com o

objetivo de implantar este embrião individual no útero da respectiva mãe com

23 Human Fertilisation and Embryology Act 1990, art. 28. Fonte:

http://www.bioetica.org/ukfert.htm acesso em 09/06/2005. 24 Lei 35/1988 - Técnicas de reprodução assistida; Lei 42/1988 - Doação e

utilização de embriões e fetos humanos ou de suas células, tecidos ou órgãos; Real Decreto 412/1996 – estabelece protocolos obrigatórios de estudo dos doadores e usuários relacionados com as técnicas de reprodução humana; Real Decreto 415/1997 – Cria a Comissão Nacional de Reprodução Humana Assistida.

25 Lei 30/1979. 26 Circular 24/1997 – Disposições Gerais de Farmácia e Produtos Sanitários. 27 Lei orgânica 10/1995 – Código Penal.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 25

vista à gravidez e parto. Assim, a utilização de embriões na investigação médica

é ilegal na Alemanha.

O Equador possui uma normatização jurídica nesta área interessante.

Citam-se como documentos: lei de gestão ambiental, lei nº 3 sobre

biodiversidade (protege a Amazônia equatoriana e dispõe sobre os experimentos

com caráter medicinal), Código de Ética Médica - acordo nº 14660 – (proíbe a

eutanásia e o aborto sem fins terapêuticos para a mãe) e por fim, a lei de

transplante de órgãos (adota a morte cerebral28 como fator de decisão pra fins

de transplante).

Nas Filipinas ressaltam-se duas normas. A primeira estabelece regras para

as pesquisas e procedimentos genéticos. Neste documento privilegia-se a

informação consciente do paciente, estabelecendo uma série de critérios para a

obtenção do consentimento e até mesmo de desconsideração do mesmo, se não

atendidas as normas previstas. Na segunda norma jurídica denominada de Ato

da Medicina Tradicional e Alternativa de 1997 o qual visa criar o instituto filipino

do cuidado de saúde tradicional e alternativo, e, acelerar o desenvolvimento

deste tipo de tratamento no país.

A Argentina divide sua legislação em três âmbitos: o nacional, o provincial

e o municipal. No tocante à bioética existem diversos documentos jurídicos

argentinos, demonstrando uma abrangente preocupação com esta temática.

Tais documentos versam sobre alguns assuntos específicos, como por exemplo:

meio ambiente29, dados investigativos e privacidade30, direitos à saúde e ética

hospitalar31, direito de autodeterminação do paciente32, discriminação por razões

28 Estabelece, em seu artigo 2º, como critérios determinantes da morte cerebral: a)

coma irreversível; b) Ausência de respiração espontânea;c) Apnéia após dois minutos de parada do respirador; d) pupilas permanentemente midriátricas e arrefléxicas ao estímulo luminoso; e) Ausência de reflexos oculocefálico;f) Ausência oculovestibulares dos reflexos; g) Ausência da reflexão da farínge; e h) inatividade bio-elétrica verificado pelo encefalograma do eletro. A certificação será assinada pelos três membros do grupo médico.

29 Resolução 91/03: Biodiversidade; Decreto 1347/97: diversidade biológica; Pacto Federal Ambiental de 1993; Lei 24051: Resíduos perigosos; Lei 24.375/94: Ratifica o Convênio da Diversidade Biológica; Resolução 693/04: Alimentação e a Agricultura; Lei 25.670/02: proteção ambiental.

30 Decreto 200 / 97: Proíbe experiências de clonagem com seres humanos; Lei 23.236/ 00 e Lei 25.326 / 00: proteção de dados pessoais; Lei 25.457/ 01: direito à identidade; Lei 25.467/ 01: ciência, tecnologia e inovação; Resolução 415/04: Cria o registro de digitais genéticas; Lei 1.226/ 03: sistema de identificação do recém nascido e sua mãe; Lei 25.929 / 04: Direitos dos pais e da pessoa recém nascida.

31 Lei 24.742/ 96: Comitê Hospitalar de Ética; Decreto 426 / 98; Código de Ética / 01; Lei 4861 / 95: Comitês Hospitalares de Ética; Lei n° 3099 / 97: Bioética. Investigação, análises e difusão; Lei n° 6507/ 93: Comitês Hospitalares de Ética.

32 Lei 3076 / 97: Direitos do Paciente. Determinação.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 26

genéticas33, medicamentos34, sexualidade e reprodução35 e transplante de

órgãos36. Mas a postura Argentina em relação aos avanços científicos e éticos

ainda é muito acanhada, prevalecendo a visão tradicional e proibitiva de diversos

procedimentos.

Por fim, destaca-se que em alguns países ainda não há uma proteção

legislativa considerável sobre os problemas surgidos com os estudos bioéticos,

havendo apenas a preocupação com uma temática específica. São exemplos o

Chile (lei geral sobre o meio ambiente), a Colômbia (também possui uma lei

geral sobre meio ambiente), Costa Rica (lei sobre reprodução assistida e

transplante de órgãos), Peru (lei sobre biodiversidade e gestão ambiental),

Uruguai (lei de transplante de órgãos), Nova Zelândia (lei sobre meio ambiente e

biodiversidade), Índia (lei sobre biodiversidade e proteção dos fazendeiros e pela

diversidade na agricultura).

Diversos outros documentos ainda dependem de aprovação. Como é o

caso do projeto de lei francês que versa sobre a autodeterminação do paciente e

seu direito de morrer com dignidade37. Tal documento prevê em seu artigo 1º

que toda pessoa em condições de apreciar as conseqüências de suas escolhas

e os seus atos é único juiz da qualidade e a dignidade da sua vida bem como a

oportunidade de pôr termo à mesma.

2.2.2.Documentos Jurídicos Nacionais

No âmbito interno a temática bioética é de extrema novidade sendo tal fato

notado claramente nas previsões legais vigentes.

Vale salientar, primeiramente, a grande diversidade de normas jurídicas

sobre a temática do meio ambiente e sua proteção. A diversidade de subtemas

é enorme. São mais de 150 normas referentes à proteção ambiental, dentre elas:

Ação Civil Pública (Lei 7.347/ 85), Agrotóxicos (Lei 7.802/ 89), Área de Proteção

Ambiental (Lei 6.902/ 81), Atividades Nucleares (Lei 6.453/ 77), Crimes

33 Lei 421: Proteção contra a discriminação por razões genéticas. 34 Lei 25.649 e Resolução 326 / 02: Promovem a utilização de medicamentos pelo

seu nome genérico; Disposição 3598/ 02: Categorização de Estabelecimentos Assistenciais, Centros de Estudos de Bioequivalência / Biodisponibilidade.

35 Lei 25.673/02, 6433/96 e 418/00: Saúde Reprodutiva e Procriação Responsável. 36 Lei 24-193 / 1993: Transplantes de órgãos e material anatômico. 37 Por iniciativa de Pierre Biarnes esta proposta de lei foi depositada sobre o

escritório do Senado Francês em 26 de Janeiro de 1999 com as assinaturas de 55 outros senadores. Porém até hoje não foi aprovada.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 27

Ambientais (Lei 9.605/ 98), Engenharia Genética (Lei 8.974/ 95), Exploração

Mineral (Lei 7.805/ 89), Fauna Silvestre (Lei 5.197/ 67), Florestas (Lei 4771/ 65),

Gerenciamento Costeiro (Lei 7661/ 88), IBAMA (Lei 7.735/ 89), Parcelamento do

solo urbano (Lei 6.766/ 79), Política Agrícola (Lei 8.171/ 91), Política Nacional do

Meio Ambiente (Lei 6.938/ 81), Recursos Hídricos (Lei 9.433/ 97), Resoluções do

Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), Zoneamento Industrial nas

Áreas Críticas de Poluição (Lei 6.803/ 80). 38

Algumas matérias plúrimas também foram objeto de positivação pelo

ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas: O Decreto nº 914, de 6 de setembro

de 1993 que teve como objetivo instituir a Política Nacional para a Integração da

Pessoa Portadora de Deficiência; a Medida Provisória nº 2.126-11 sobre acesso

à Biodiversidade de 26 de abril de 2001; o Decreto 98.830 tece limitações para a

coleta, por estrangeiros, de dados e materiais científicos no Brasil.

A Lei nº 9.787 de 10 de fevereiro de 1999, que embora tenha modificado

uma norma com aspectos gerais sobre vigilância sanitária, estabelece o

medicamento genérico e dispõe sobre a utilização de nomes genéricos em

produtos farmacêuticos. A referida norma jurídica teve um impacto

impressionante na sociedade brasileira. Apesar das críticas sobre a qualidade

dos produtos propiciou uma maior possibilidade de aquisição de medicamentos

por camadas pobres da população brasileira;

Sobre engenharia genética temos as seguintes normas: Lei nº 8 501, de 30

de novembro de 1992; Lei nº 8 974, de 05 de janeiro de 1995 e Lei nº 9 434, de

04 de fevereiro de 1997, complementadas por decretos, regulamentos e

resoluções do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho Federal de Medicina,

inclusive o Código de Ética Médica. Entretanto, com a caracterização dos

direitos relativos ao genoma humano como direitos humanos pela UNESCO, tal

temática deve ser encarada utilizando um novo paradigma, qual seja, qualquer

discussão terá que observar os princípios e os direitos estabelecidos na

Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos.

A doação de órgãos é regulada pela Lei nº 10.211/01, dando nova redação

ao artigo 9º da Lei nº 9.434/97: Art. 9º. É permitido à pessoa juridicamente capaz

dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do corpo vivo para fins

terapêuticos ou transplantes em cônjuges ou parentes consangüíneos até o

quarto grau, (...), ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização

38 Fonte: www.senado.gov.br acesso em 17.10.2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOÉTICA 28

judicial,(...). Tal normatização é criticada, pois segundo alguns abrem caminhos

para a venda de órgãos humanos, falseada no aspecto de doação.

A pesquisa científica e médica envolvendo seres humanos também tem

sido objeto de regulamentação na maior parte das vezes através de resoluções

de órgãos ligados à ciência médica. Dentre elas: Resolução CNS39 196/96

(estabelece diretrizes e normas para pesquisa em seres humanos), Resolução

CNS 251/97 (estipula normas de pesquisa com novos fármacos, medicamentos,

vacinas e testes diagnósticos envolvendo seres humanos), Resolução CNS

303/00 (trata das pesquisas na área de reprodução humana), Resolução CFP40

016/00 (regula a pesquisa em psicologia com seres humanos), Resolução

HCPA41 01/97 (normatiza o uso de informações de prontuários e bases de

dados), Resolução CNS 347/05 (projetos com uso ou armazenamento de

material biológico). Ainda no tocante à pesquisa em 1992 oi editada a lei nº

8.051 que estabelece normas e limites para a utilização de cadáver humano que

não foi reclamado para fins de pesquisa e de ensino.

Por fim, a lei no 11.105 de 24 de março de 2005, conhecida como a Lei

Nacional de Biossegurança. Este dispositivo estabelece normas de segurança e

mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos

geneticamente modificados e seus derivados; cria o Conselho Nacional de

Biossegurança (CNBS) e reestrutura a Comissão Técnica Nacional de

Biossegurança (CTNBio). A referida lei tece inicialmente uma série de

conceituações, dentre elas o de organismo geneticamente modificado, sendo

este: qualquer organismo cujo material genético (ADN ou ARN) tenha sido

modificado por qualquer técnica de engenharia genética. Um dos pontos

fundamentais deste texto normativo é a preocupação com a fiscalização das

pesquisas envolvendo tais organismos e técnicas, prevendo a lei a

obrigatoriedade de aprovação de todo projeto de pesquisa por comitês de ética

em pesquisa. Outra importante previsão é expressa no artigo 5o da lei 11.105 o

qual permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco

embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e

não utilizados no respectivo procedimento.

39 Sigla referente ao Conselho Nacional de Saúde. 40 Sigla referente ao Conselho Federal de Psicologia 41 Sigla referente ao Hospital de clínicas de Porto Alegre o primeiro que adotou

esta medida de confidencialidade e que depois foi adotada em âmbito nacional.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 29

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO

3.1.Conceituação do Termo

A linguagem pode ser entendida como instrumento de comunicação inter-

pessoal. No exercício de comunicação é possível distinguir alguns elementos:

um emissor, um receptor, uma mensagem que se procura transmitir e um código

compartilhado pelos interlocutores. O desafio é justamente que o receptor

perceba a significação da mensagem do emissor. Os problemas e disparidades

causados pelos ruídos ou mesmo a utilização de jogos interpretativos no

emprego da comunicação têm direcionado diversos ramos do conhecimento a

seu estudo.

Guibourg, Ghigliani e Guarinoni definiram linguagem como um conjunto de

signos e símbolos organizados em uma estrutura mais ou menos orgânica com

funções determinadas, de forma que a linguagem constitui um sistema de

símbolos que servem à comunicação. Assim, tendo em vista que toda ciência é

um conjunto de enunciados, sua expressão é constituída através de uma

linguagem pré-fixada42.

A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no

processo de comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e

pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de

forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se

com a construção tecnicamente coerente das frases em determinado idioma. Na

semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos

por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a

pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja,

o contexto em que os termos são empregados. 43

42 GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 19. 43 Ibid., p. 33.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 30

Quanto à semântica é importante destacar a questão da definição. O ato

de definir pode ser entendido como explicar um conceito com outro conceito.

Toda definição demarca um campo de significado. Normativamente algumas

definições são importantes para por fim às dificuldades da doutrina,

uniformizando e continentalizando um quadro semântico ou ainda para reduzir a

instabilidade de termos que estão na linguagem comum. Nesse último caso há o

problema da linguagem técnica usada para suprir a instabilidade de termos

comuns, mas esse uso técnico importa em uma nova dificuldade, qual seja, pode

prejudicar a compreensão e afastar os destinatários finais.

As definições legais geralmente são aclaratórias44. No âmbito jurídico o

estudo dos problemas relacionados à linguagem é prioritário à medida que as

proposições jurídicas que norteiam as condutas de determinada sociedade

devem ser precisas em suas definições e conceitos. Somente obedecemos ou

seguimos as normas inteligíveis. Ou pior, um entendimento errôneo sobre

determinada norma poderá acarretar, inclusive, o seu descumprimento. 45

O aborto é disciplinado pelo sistema jurídico pelos artigos 124 a 128 do

Código Penal, tendo como tutela jurídica o direito à vida do feto. O legislador

penal não definiu o que seria o aborto, relegando esta tarefa aos intérpretes.

Diversos são os entendimentos sobre esta palavra, destacaremos apenas os

propostos pelos doutrinadores jurídicos e a definição dos profissionais da saúde.

Etimologicamente o vernáculo aborto é de origem latina, decompondo-se

em ab (privação) e ortus (nascimento). França Limongi, em sua Enciclopédia de

Direito, diferencia os termos aborto, abortamento e aborticídio. Esse último

segundo o autor é um neologismo empregado por Saraiva significando a morte

da criança dada à luz antes do tempo, independente da causa desta

antecipação. O termo aborto diferencia-se pela finalidade de sacrificar o feto. Já

abortamento seria o ato de abortar, gerando o produto aborto.

Para Ronald Dworkin “aborto significa matar deliberadamente um embrião

humano em formação”. 46

A definição proposta por De Plácido e Silva em seu vocabulário Jurídico é

a seguinte: “Aborto. Expulsão prematura do feto, ou embrião, antes do tempo do

parto.” 47 Já Heleno Fragoso em suas Lições de Direito Penal salienta a origem

44 ALCHOURRÓN, C., BULYGIN, E. Análisis lógico y derecho, 1991, p. 448. 45 Alchourron e Bulygin destacam a diferença crucial entre as definições de caráter

oficial e as meras definições privadas. Ibid., p. 441. 46 DWORKIN, R. Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003. p.1. 47 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, 1987, p. 11.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 31

cristã deste termo, in verbis: ”Deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo

o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente,

homicídio”48. Dois são os elementos básicos para a conceituação jurídica

doutrinária do aborto: a retirada prematura do feto do ventre materno, tendo

como conseqüência, sua morte.

A prática de abortamento é punida penalmente por ser considerada uma

espécie de homicídio, sendo excluídas da punibilidade legal apenas duas

hipóteses previstas no artigo 128 do Código Penal, quais sejam: o aborto

necessário (se não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto

emocional ou ético em caso de gravidez resultante de estupro.

No tocante à definição médica de aborto serão utilizadas três nuances: a

idade gestacional, a capacidade sensitiva e a intenção da gestante. Diversas

outras classificações são feitas pela doutrina, tanto jurídica como médica, como

ressaltado na obra da professora Maria Helena Diniz que traz ainda a

classificação quanto ao consentimento (sofrido – sem consenso da gestante,

consentido – realizado com a anuência da gestante e procurado – se a gestante

for o agente principal). 49

A primeira classificação utiliza como parâmetro conhecimentos obstétricos

em razão da formação do embrião. Segundo Antonio Jorge Salomão:

“Considera-se aborto a expulsão ou a extração de feto ou embrião que pese menos de 500 gramas (idade gestacional de aproximadamente 20-22 semanas completas ou de 140-154 dias completos) ou de qualquer outro produto da gestação de qualquer peso e especificamente designado, independentemente da idade gestacional, tenha ou não sinal de vida e seja ou não espontâneo ou induzido. Abortamento espontâneo é a interrupção natural da gravidez antes da 20ª semana de gestação.” 50 O autor supra citado fornece ainda alguns critérios de classificação para o

abortamento, são eles: a idade gestacional (a OMS divide os abortos em

precoce – antes da 12ª semana - e tardio – entre a 12ª e a 20ª semana); o peso

fetal (aborto - menor que 500g, imaturo – entre 500g e 999g e prematuro – entre

1000g e 2500g); forma (espontâneo – quando não há nenhum fator precipitante

do quadro) e induzido (quando ocorreu ação deliberada para interromper a

48 FRAGOSO, H. Lições de Direito Penal, 1986, p. 107. 49 DINIZ, M. O estado atual do biodireito, 2002. p. 33. 50 SALOMÃO, A. Abortamento espontâneo. In Obstetrícia Básica. Bussâmara

Neme, 1994. p. 363.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 32

gestação) e quadro clínico (ameaça, inevitável, incompleto, completo e retido ou

frustrado). 51

A segunda classificação considera como fator importante o momento que o

feto passa a sentir dor. Segundo Ronald Dworkin é a partir do sétimo mês de

concepção que o feto desenvolve a capacidade reflexiva quando inicia a

atividade elétrica do cérebro no tronco cerebral. E a sensação de dor somente

seria possível após a conexão entre o tálamo e o neocórtex fetal, o que embora

ainda não esteja determinada com precisão, acredita-se não ocorrer antes da

metade do período gestacional.

A terceira classificação dos diversos tipos de abortos é elaborada segundo

o entendimento bioético e pode ser depreendida da seguinte forma: 52

1) Interrupção eugênica da gestação (IEG): são os casos de aborto

ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se

interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, etc. Comumente,

sugere-se o praticado pela medicina nazista como exemplo de IEG quando

mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras. Regra

geral, a IEG processa-se contra a vontade da gestante, sendo esta obrigada a

abortar;

2) Interrupção terapêutica da gestação (ITG): são os casos ocorridos em

nome da saúde materna, isto é, situações em que se interrompe a gestação para

salvar a vida da gestante. Hoje em dia, em face do avanço científico e

tecnológico ocorrido na medicina, os casos de ITG são cada vez em menor

número, sendo raras as situações terapêuticas que exigem tal procedimento;

3) Interrupção seletiva da gestação (ISG): são os casos de aborto ocorridos

em nome de anomalias fetais, isto é, situações em que se interrompe a gestação

pela constatação de lesões fetais. Em geral, os casos que justificam as

solicitações de ISG são de patologias incompatíveis com a vida extra-uterina,

sendo o exemplo clássico o da anencefalia;

4) Interrupção voluntária da gestação (IVG): referem-se à autonomia

reprodutiva da gestante ou do casal, isto é, situações em que se interrompe a

gestação porque a mulher ou o casal não mais deseja a gravidez, seja ela fruto

51 Ibid., p. 363. 52 A classificação proposta é apresentada no livro editado pelo próprio Conselho

Federal de Medicina e de autoria de Diniz e Almeida. COSTA, S, OSELKA, G, GARRAFA, V. Iniciação à bioética, 1998.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 33

de um estupro ou de uma relação consensual. Muitas vezes, as legislações que

permitem a IVG impõem limites gestacionais à prática.

Note-se que a nomenclatura utilizada é a interrupção da gravidez e não

aborto. Tal fato tem como explicação a forte resistência e a preconceituação que

traz em si o termo. A bioética tem tentado analisar o assunto através do debate

racional livre. No ponto seguinte trataremos de forma mais aprofundada sobre as

questões bioéticas que envolvem o aborto.

3.2.Elementos Bioéticos

A problemática do aborto é considerada atualmente uma questão de saúde

pública. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) metade

das gestações é indesejada e uma a cada nove mulheres recorre ao aborto. No

Brasil, estatísticas demonstram que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja,

ocorrem, aproximadamente, 1,44 milhões de abortos espontâneos e inseguros

com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A gravidade da situação do

abortamento também se reflete no SUS. Apenas no ano de 2004, o número de

mulheres internadas para fazer curetagem pós-aborto foi de 243.988.53 Contudo,

o aborto envolve aspectos complexos da natureza humana: vida, sexualidade e

religião.

Diante de tal quadro, a bioética tem um papel importante na discussão das

questões referentes à moralidade do aborto. Há cada vez mais a tentativa de

avaliar racionalmente os argumentos contrários e favoráveis e submetê-los ao

crivo da justificação social.

A primeira dificuldade que surge no tratamento do aborto é a determinação

do início da vida e, a partir de que momento, se é que isso ocorre, o feto é tido

como pessoa54. A primeira possibilidade considera a fecundação como o ponto

inicial, a Igreja Católica e os pensamentos mais conservadores adotam essa

teoria55. O preformismo, doutrina segundo a qual o indivíduo já estaria contido

plenamente no sêmen, também defendia a animação imediata só dependendo

do decurso do tempo para o desenvolvimento pleno do ser humano. Tal tese é

descartada atualmente. A epigênese defende o desenvolvimento biológico

53 Fonte: www.saude.gov.br acesso em 28.10.2005. 54 Sobre a noção jurídica e filosófica de pessoa e o biodireito vide XAVIER, E. A

bioética e o conceito de pessoa:a re-significação jurídica do ser enquanto pessoa, 2000. 55 Embora São Tomás de Aquino, um dos importantes pensadores da teologia

católica, defendesse a tese de que a animação, ou seja, a junção do corpo com a alma,

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 34

gradual da pessoa. A lei biogenética proposta por Ernst Haeckel também propõe

a animação tardia do organismo humano. Neste sentido se destacam as

observações de Laurente Degos que estabelece algumas etapas importantes do

desenvolvimento fetal:

“1) O estádio de 8 células marca um início de individualidade. Antes deste estádio, cada uma das células do embrião pode dar origem a um ser completo, incluindo o desenvolvimento da placenta. São, portanto intercambiáveis. Após este estádio, as células diferenciam-se entre as do exterior e as do interior. 2) Por volta do 10º dia, o embrião implanta-se no útero. O ser potencialmente humano começa a sua vida relacional. Neste estádio, o embrião está envolvido por uma cápsula, que ele parte com empurrões a fim de se implantar no tecido uterino. 3) Por volta da 10ª-14ª semana, sobressai de maneira significativa. Corresponde à que é arbitrariamente atribuída à passagem do embrião a feto. "Feto" é uma palavra reservada à vida embrionária do homem, que começa ao fim de 3 meses de gravidez. A silhueta do embrião toma forma humana. É no decurso do período da 10ª-12ª semana que se inicia a migração dos 80 bilhões de neurônios para a sua localização definitiva, terminando no 6º mês (24ª semana) de gravidez. Antes da 10ª-12ª semana, os neurônios não têm atividade. Se o fim da vida é determinado pelo fim da atividade cerebral, pode admitir-se que o início da vida corresponde ao início da rede cerebral, e portanto da coordenação do organismo por um futuro cérebro. Este período (10ª-14ª semana) é também o que, na maioria dos países, é considerado como o limite da autorização da interrupção voluntária da gravidez. 4) 6º mês, é uma etapa decisiva na vida do feto. O sistema nervoso está no lugar. O bebê a nascer pode viver de modo autônomo e independente.“ 56 57(grifos nosso)

Finalmente, há entendimentos de que o feto não é, em momento algum,

uma pessoa, somente adquirindo tal característica em sua vida extra-uterina.

Este posicionamento, embora radical, é adotado pelo ordenamento jurídico pátrio

que mesmo reconhecendo direitos ao nascituro somente considera pessoa

aquele ser que nasce com vida.

A segunda grande discussão bioética sobre o procedimento médico de

aborto é a relação materno-fetal58. Hodiernamente, com avanços tecnológicos

cada vez mais constantes, técnicas invasivas de diagnóstico e tratamento intra-

uterino têm se tornado comuns. Há um questionamento sobre a autonomia da

ocorria no 40º dia para os fetos do sexo masculino e no 80º dia para os do sexo feminino.

56 DEGOS, L. Os critérios biológicos da presença de uma pessoa humana, 2002, p. 21.

57 Interessante observar que segundo a resolução nº 1601/00 do Conselho Federal de Medicina o médico somente é obrigado a fornecer declaração de óbito de fetos com mais de 20 semanas ou 500 gramas. Antes desse prazo o feto morto é considerado material ou resíduo biológico.

58 Para o aprofundamento do tema vide Conflito materno-fetal? In DINIZ, Débora Diniz, COSTA, Sérgio. Bioética: ensaios. Brasília: Letras Livres, 2004.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 35

gestante e seus direitos de consentir ou não com a realização desses

procedimentos. A relação entre esses dois indivíduos tão ligados também é

discutida no aborto. Posições radicais consideram o feto como mero órgão ou

organismo dentro do corpo da mãe, cabendo total arbítrio materno sobre o

mesmo. Contrariamente, outros consideram o feto como um indivíduo com

interesses e direitos. Sobre a relação entre o feto e a gestante escreve Ronald

Dworkin:

O feto “é dela (da gestante), e é dela mais do que qualquer outra pessoa porque

é, acima de tudo, sua criação e sua responsabilidade; está vivo porque ela fez com que

se tornasse vivo. Ela já fez um intenso investimento físico e emocional nele, diferente do

que qualquer outra pessoa tenha feito, inclusive o pai; por causa dessas ligações físicas

e emocionais, é tão errado dizer que o feto está separado dela como dizer que não está.” 59

Uma das mais importantes obras sobre o abortamento é a de Maurizio

Mori60. O autor além de considerar polêmica a afirmativa de que o feto é ou não

pessoa e, portanto, com direito à vida, oferece como questionamento se o direito

à vida de uma pessoa implica o direito de fazer uso do corpo da mulher para

continuar a viver. Neste ponto ele destaca a questão da autonomia da mulher

quanto à disposição de seu corpo.

Maurizio Mori também apresenta cinco momentos históricos de reflexão

sobre a permissão ou proibição do aborto.

No primeiro momento, predominava nas sociedades a permissão irrestrita

tendo como justificativa a visão de que o aborto era um ato de caráter

estritamente privado. Durante este período o feto era considerado como parte

integrante do corpo materno ou, como ressaltam alguns autores, parte das

vísceras da gestante.

A seguir, com o advento e propagação dos ideais cristãos, o aborto foi

severamente proibido, e a base doutrinária imposta considerava tal ato

pecaminoso e atentatório contra o matrimônio.

No terceiro momento persiste a proibição, porém a justificação muda.

Diversos ordenamentos jurídicos coíbem o aborto, estipulando-o crime contra a

pessoa, contra a geração, contra a sanidade e a integridade da estirpe, entre

outros.

59 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003, p. 77. 60 MORI, M., A moralidade do aborto. Sacralidade da vida e o novo papel da

mulher, 1997, p. 17-26.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 36

No início dos anos 60 a utilização de um medicamento chamado talidomida

acarretou, durante as primeiras fases da gravidez, uma série de anomalias

graves nos fetos. Então, a discussão volta sua atenção para a possibilidade de

legalização do aborto em casos de anomalias fetais severas.

Outro evento ocorre pouco após, em 1973, contribuindo para a legalização

do aborto – a decisão da Suprema Corte Americana no emblemático caso Roe x

Wade. A decisão judicial citada determinou que o feto, ou aquele ainda não

nascido, não pode ser considerado pessoa e, portanto, não seriam sujeitos

protegidos juridicamente e que as leis até então existentes no país proibitivas do

aborto violavam o direito constitucional à privacidade da mulher. Essa noção de

privacidade deve ser entendida no sentido de soberania quanto às decisões

particulares, e não como direito de utilizar livremente seu próprio corpo.

O último momento mencionado por Maurizio Mori diz respeito

principalmente aos países europeus. Segundo o autor atualmente a Europa tem

direcionado o debate no sentido de coibir os abortos clandestinos, encarando o

assunto como problema de saúde pública, e por isso, a legalização da prática

cresceu.

Algumas posições atuais podem ser destacadas quanto ao tema61. A

posição católica que condena qualquer tipo de aborto, inclusive o necessário à

sobrevivência materna. A postura do Movimento pela Vida oponente também à

prática, contudo, admite determinadas exceções. O movimento pela legalização

do aborto para a qual o aborto deve ser regulamento socialmente. E a posição a

favor da liberalização do aborto, segundo a qual este assunto é de âmbito

privado da mulher, e como tal, deve ser decidido exclusivamente pela gestante e

seu médico.

No ponto seguinte serão abordados os aspectos jurídicos do aborto. Serão

elencadas as principais leis internacionais e como o Brasil tem regulamentado a

questão, seja através de leis já promulgadas, seja por meio de projetos de leis

em tramitação nas Casas Legislativas.

61 Ibid., p. 30 – 31.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 37

3.3.Elementos Jurídicos

O aborto sempre constituiu uma prática comum em diversas sociedades.

Entretanto, o tratamento jurídico dispensado a este ato não encontra uma

uniformidade de regulamentação.

Inicialmente o aborto era visto de duas formas ou era considerado assunto

de cunho exclusivamente familiar, com algumas repercussões somente no direito

privado, ou um ato criminoso e passível de punição penal.

No direito penal hebreu o ato voluntário de abortar constituía um crime,

punível com pena de morte, sendo permitido apenas para resguardar a vida da

genitora. 62

No Oriente Médio e na Grécia Antiga, assim como os romanos,

consideravam o feto como parte das vísceras da mãe, cabendo a esta a decisão

sobre a continuidade da gravidez.

O Código de Hammurabi63, datado do século XXIII, previa em seu Capítulo

XI – Artigos 208 a 214 os crimes de agressão contra as mulheres gestantes que

tinham como conseqüência expelir o fruto de seu seio. As penas estipuladas

eram de indenização e sua quantificação dependia da origem da gestante: se

filha de um homem livre o valor era de 10 siclos de prata pelo fruto de seu seio e

se ocorreu a morte da mulher a pena era a morte da filha do homem que a feriu;

se era filha de um homem vulgar a indenização montava a 5 minas de prata, se

acarretou a morte, mais meia mina de prata; e por fim, se a gestante fosse

escrava o seu senhor receberia dois siclos de prata pela agressão e um terço de

uma mina de prata se o resultado foi o falecimento.

Na Idade Média, com a influência do direito canônico, a punição do aborto

tornou-se mais freqüente. Inicialmente considerado pelo clero um crime contra o

matrimônio, somente há poucas décadas a Igreja passou a considerar o aborto

um crime contra a vida64. Porém, a própria Igreja revelava entendimentos

confusos sobre a matéria. São Tomás de Aquino era contrário ao aborto, mas

admitia que o mesmo fosse feito antes do surgimento da alma o que ocorria em

40 dias após a concepção se homem e 80 dias se mulher. Os Dicastérios

Romanos, embora contrários ao aborto, hesitaram quando perguntados sobre a

62 Livro de Êxodo capítulo 21 versículos 22 e 23. 63 Fonte: www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm 64 Conforme destaque de M. José Nunes: “Assim, a punição do aborto, durante os

seis primeiros séculos do cristianismo, não era referida, em primeiro lugar, ao feto cuja vida seria tirada, mas ao adultério que o aborto revelava.” Fonte:

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 38

possibilidade em casos de inviabilidade de vida do nascituro. 65 A argumentação

de que o aborto seria o assassinato de um inocente foi formulada por Pio XI em

1930 através da Encíclica Casti Conubii. Mas é em 1968 que a Igreja demonstra

firmemente sua repugnância não só aos meios abortivos como também aos

meios artificiais de contracepção, através da elaboração da Encíclica Humanae

Vitae66. No mesmo ano foi elaborada a Carta Pastoral dos Bispos nórdicos a qual

dizia:

"Quando uma pessoa, por razões sérias e bem ponderadas não se convence pelos argumentos da encíclica (Humanae Vitae), tem o direito de adotar uma opinião distinta daquela apresentada em um documento não infalível. Que ninguém, pois, seja tido como mau católico pela única razão de discordar... Ninguém, nem mesmo a Igreja, pode dispensar do dever de seguir a própria consciência." 67

3.3.1.Documentos Jurídicos Internacionais

A postura proibitiva tem se perpetrado nas sociedades hodiernas. A seguir

serão expostas as previsões jurídicas em diversos países. 68

Em 72 países o aborto é totalmente proibido ou permitido apenas em caso

de risco de vida para a gestante, perfazendo o total de 26,1% da população

mundial, dentre eles: Afeganistão, Andorra, Angola, Antígua e Barbuda,

Bangladesh, Butão, Brunei, República da África-Central, Chile, Colômbia, Congo,

República Democrática do Congo, Dominica, República dominicana, Egito,

Gabão, Guatemala, Guiné-Bissau, Haiti, Honduras, Indonésia, Irã, Iraque,

Irlanda, Quênia, Quiribati, Laos, Lesoto, Líbia (requer notificação e autorização

parental), Madagascar, Malaui (requer autorização do esposo), Mali (permite

também em caso de estupro e incesto), Malta, Ilhas Marshall, Mauritânia,

República das Maurícias, México (também permite em caso de estupro),

Principado de Mônaco, Birmânia, Nicarágua (requer autorização do esposo),

Níger, Nigéria, Omã, Panamá (permite em caso de estupro e anomalia fetal),

http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.

65 Segundo Anjos a resposta do Dicastério foi: ”consultar autores sérios, sejam antigos ou recentes, e agir prudentemente.”

66 A íntegra da Encíclica pode ser obtida através do endereço eletrônico : http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_pvi_enc_25071968_humanae-vitae_po.html

67 Texto retirado do endereço eletrônico: http://www.catolicasporelderechoadecidir.org/aborto8.shtm acesso em 28 de outubro de 2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 39

Papua Nova Guiné, Paraguai, Filipinas, São Marino, São Tomé e Príncipe,

Senegal, Ilhas Salomão, Somália, Siri Lanka, Sudão (permite em casos de

estupro), Suriname, Síria (requer autorização do genitor), Tanzânia, Togo,

Tonga, Suazilândia, Tuvalu, Uganda, Emikrados Árabes, Venezuela e Iêmen.

Em 35 países, 9,9% da população mundial, o aborto é permitido para

preservar a saúde física da mãe e para preservar sua vida, dentre eles: Brasil

(também permite em caso de estupro), Argentina (também permite em caso de

estupro), Bahamas, Benim (permite em casos de estupro, incesto e anomalia

fetal), Bolívia (permite também em casos de estupro e incesto), Burquina Faso

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Burundi, Camarões

(permite em caso de estupro), Chade (permite em casos de estupro, incesto e

anomalia fetal), Comores, Costa Rica, Djibouti, Equador (permite em casos de

estupro ou se a mulher tem alguma incapacidade mental), Eritréia, Etiópia,

Grenada, Guiné (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Jordânia, Kuwait, Maldivas, Marrocos, Moçambique, Paquistão, Peru, Polônia

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Catar, Ruanda, Arábia

Saudita, Santa Lúcia, Tailândia (permite em casos de estupro), Uruguai (permite

em casos de estupro), Vanuatu e Zimbabué (permite em casos de estupro,

incesto e anomalia fetal).

Países que permitem o aborto também em casos de preservação da saúde

mental: Argélia, Botswana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia

fetal), Gâmbia, Gana (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Hongo Kong (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Israel

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Jamaica, Libéria

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Malásia, Namíbia

(permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Nauru, Nova Zelândia

(permite em casos incesto e anomalia fetal), Irlanda do Norte, Portugal (permite

em casos de estupro e anomalia fetal), são Cristóvão e Nevis, Samoa, Serra

Leoa, Seichelles (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal),

Espanha (permite em casos de estupro e anomalia fetal) e Trindade e Tobago.

Estes países perfazem o total de 20 e representam 2.7% da população mundial.

Apenas 14 países admitem argumentos socioeconômicos para a

realização do aborto, totalizando 20.7% da população mundial: Austrália,

Barbados (permite em casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Belize

68 Os dados sobre a legislação internacional sobre o aborto foi em sua grande

maioria obtidos através do site http://www.aborto.com/htm/mapaleyes.htm acesso em 18/10/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 40

(permite também em casos de anomalia fetal), Chipre (permite em casos de

estupro e incesto), Fiji, Finlândia (permite em casos de estupro e incesto), Grã

Bretanha (permite em casos de anomalia fetal), Índia (permite em casos de

estupro e anomalia fetal), Japão (autorização do esposo), Luxemburgo (permite

em casos de estupro e anomalia fetal), São Vicente e Granadinas (permite em

casos de estupro, incesto e anomalia fetal), Taiwan (permite em casos de

estupro, incesto e anomalia fetal) e Zâmbia (permite em casos de anomalia

fetal).

E por fim, totalizando 40.5% da população mundial, distribuídos em 54

países, estão aqueles ordenamentos onde o aborto é permitido, ressalvadas as

restrições quanto ao tempo de gestação feitas por alguns deles. Dentre eles:

Albânia, Armênia, Áustria (14 semanas), Azerbaijão, Bareine, Belarus, Bélgica

(14 semanas), Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Cambodia (14 semanas), Canadá,

Cabo Verde, China (é proibido expressamente o aborto seletivo de sexo),

Croácia, Cuba, Coréia do Norte, Dinamarca, Estônia, Macedônio, França (14

semanas), Geórgia, Alemanha (14 semanas), Grécia, Guiana (8 semanas),

Hungria, Itália, Cazaquistão, Lituânia, Moldávia, Mongólia, Nepal, Romênia (14

semanas), Rússia, Sérvia e Montenegro, Singapura (24 semanas), Eslováquia,

Eslovênia, África do Sul, Suécia (18 semanas), Suíça, Tajiquistão, Tunísia,

Turquia (10 semanas), Ucrânia, Estados Unidos (de acordo com leis de cada

estado), Usbequistão e Vietnã.

O aborto inseguro tem sido objeto de debates acirrados nas Nações

Unidas. Apesar das pressões conservadoras e das intermináveis negociações, o

resultado final tem sido positivo, com um crescente reconhecimento da

descriminalização do aborto como legítima questão de direitos humanos:

O Programa de Ação da Conferência Internacional de População e

Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu, pela primeira vez

em um documento inter-governamental, o aborto inseguro como grave problema

de saúde pública (parágrafo 8.25)69. No processo de revisão Cairo + 5 (1999), o

69 Parágrafo 8.25 do Programa de Ação do Cairo: Em nenhuma circunstância o

aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. Todos os governos e todas as organizações inter-governamentais e não-governamentais pertinentes, são instadas a reforçar seus compromissos com a saúde das mulheres, a considerar os efeitos do aborto inseguro sobre a saúde como um problema crucial de saúde pública e a reduzir o recurso ao aborto, mediante ampliação e melhoria dos serviços de planejamento familiar. Deve ser atribuída prioridade máxima às ações de prevenção da gravidez indesejada e todos os esforços devem ser envidados para evitar a necessidade do abortamento. As mulheres que experimentam gestações indesejadas devem ter acesso imediato a informações confiáveis e um aconselhamento compassivo. Quaisquer mudanças ou medidas relacionadas com o abortamento que se introduzam no

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 41

texto aprovado recomenda o treinamento de profissionais para atender às

mulheres nos casos em que o aborto é legal, embora não se tenha conseguido

incluir, no documento final, a recomendação sobre a revisão das leis punitivas.

A Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim), realizada em 1995,

reafirmou o conteúdo do parágrafo 8.25 do Cairo, acrescentando a

recomendação de que os países revisassem as leis que punem mulheres que

se submetem a abortos ilegais (parágrafo 106k). No mesmo ano ocorre a

Conferência de Beijing (Fourth World Conference on Women) direcionada

exclusivamente para os direitos femininos. E, em 2000, o documento final de

Pequim + 5 incorpora na íntegra o texto do parágrafo 106k da Plataforma de

Ação de Pequim, mencionando a necessidade de revisar as leis que punem a

prática do aborto inseguro. 70

3.3.2.Documentos Jurídicos Nacionais

No Brasil o aborto foi regulamentado pela primeira vez pelo Código

Criminal do Império de 16 de dezembro de 1830 e era enquadrado nos crimes

contra a segurança da pessoa e da vida, nos artigos 199 e 200. Até então não

havia previsão jurídica para este ato e, conseqüentemente não era proibido ou

punido penalmente.

Após, o Código Penal da República, de 1890, no Titulo X, ampliou a

imputabilidade nos crimes de aborto, prevendo a punição para a mulher que

praticasse o auto-aborto, porém atenuou a pena nos casos de estupro ou com a

finalidade de "ocultar a desonra própria". Introduziu, ainda, uma exclusão de

punibilidade para o aborto necessário que visava salvar a vida da gestante.

O tratamento jurídico brasileiro atual no tocante à prática abortiva é de

cunho proibitivo. Diversos são os diplomas legais referentes ao tema.

sistema de saúde, só podem ser determinadas a partir do âmbito nacional e local, e de acordo com o processo legislativo nacional. Nas circunstâncias em que o aborto não contraria a lei, o procedimento deve ser seguro. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes do aborto. Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos. Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.

70 Além de repetir o parágrafo 8.25 acrescenta que: “...Os serviços de orientação pós-aborto, de educação e de planejamento familiar devem ser prontamente disponibilizados, o que ajudará também a evitar abortos repetidos”, considerar a revisão das leis que contenham medidas punitivas contra as mulheres que se submeteram a abortamentos ilegais.” Fonte: http://www.redesaude.org.br acesso em 18/10/2005.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 42

A Constituição da República embora não trate do tema de forma específica

assegura o direito à vida de forma ampla, incluindo assim, a vida intra-uterina.

Tal previsão é constante do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à

segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)”.

A Lei das Contravenções Penais, de 1941, por sua vez, no capítulo "Das

Contravenções referentes à Pessoa" dispõe em seu artigo 20 que é também

ilícito o anúncio de meio abortivo, seja ele processo, substância ou objeto,

estipulando pena de multa71.

A Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, quando trata das férias

anuais do trabalhador estabelece: “Art. 131. Não será considerada falta ao

serviço, para os efeitos do artigo anterior a ausência do empregado: (...) II -

durante o licenciamento compulsório da empregada por motivo de maternidade

ou aborto não criminoso, observados os requisitos para percepção do salário-

maternidade custeado pela Previdência Social;”

Apenas oito constituições estaduais, dos 26 Estados que compõem a

República Federativa do Brasil, referem-se ao aborto legalmente permitido,

visando garantir sua efetiva implementação, a saber: Amazonas, Bahia, Goiás,

Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Tocantins. 72 O Espírito Santo é

o único Estado a considerar inaceitável o aborto diretamente provocado,

colocando-o ao lado do genocídio, do suicídio, da eutanásia, da tortura e de

outras formas de violência. In verbis: Art. 199. (...) Parágrafo único. São

inaceitáveis, por atentar contra a vida humana, o aborto diretamente provocado,

o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou

moral que venham a atingir a dignidade e a integridade da pessoa humana.

O Código Civil Brasileiro, de 2002, não contém nenhum dispositivo

específico sobre o aborto, mas protege o feto desde sua concepção em seu

artigo 2º.

A legislação penal em vigor é expressa na proibição do aborto nos artigos

124 a 128 do Código Penal de 1940, enquadrando-os no capítulo referente aos

crimes contra a vida.

71 A redação original deste artigo previa também como contravenção o anúncio de

meios contraceptivos, porém foi alterado pela Lei 6.734/1979. 72 Dados obtidos através do site

http://www.cladem.org/portugues/nacionais/brasil/informe_aborto_brasilp.asp acesso em 18/10/2005

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 43

O artigo 124 do referido código trata do auto-aborto e do aborto provocado,

com o consentimento da gestante, prevendo pena de detenção de 1 a 3 anos.

O artigo seguinte rege sobre o aborto provocado sem o consentimento da

gestante, pena estabelecida de 3 a 10 anos de reclusão e prevê a pena de 1 a 4

anos se o aborto foi provocado por terceiro, mas com consentimento. No

parágrafo único desse artigo vemos uma causa de aumento da pena se a

gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se

o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

A forma qualificada é prevista no artigo 127, aumentando a pena em um

terço se em conseqüência do aborto a gestante sofre lesão corporal de natureza

grave; e duplicando se lhe sobrevém a morte.

Já o artigo 128 estabelece os casos permissivos de aborto. O inciso I trata

do aborto necessário, ou seja, quando não há outro meio de salvar a vida da

gestante, e o inciso II do chamado aborto emocional, no caso de gravidez

resultante de estupro.

A primeira iniciativa de reforma legal aconteceu em 1983, quando um

projeto de lei pela legalização do aborto foi apresentado à Comissão de

Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e rejeitado. Em 1985, no Rio

de Janeiro, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que obrigava o

serviço público de saúde a oferecer o procedimento nos dois casos previstos

pelo Código Penal. O então governador do estado – que num primeiro momento

havia sancionado – vetou o projeto. Mas a proposta de assegurar na rede

pública de saúde o acesso ao aborto nos casos de risco de vida e estupro foi

retomada pela administração municipal de São Paulo, que criou no Hospital do

Jabaquara, em 1990, o primeiro serviço público para atender os casos de aborto

previstos pela lei penal.

Em 1992 foi criada uma Comissão para Reformulação do Código Penal, e

a parte específica dos crimes contra a vida foi orientada por uma subcomissão,

presidida pelo desembargador Dr. Alberto Franco, a qual propôs a

descriminalização do aborto se comprovada má formação fetal, desde que

ocorra a interrupção até a 24ª semana. Tal proposta até hoje não foi adotada.

Diversos projetos de leis têm tramitado nas Casas Legislativas brasileiras,

tanto no plano nacional como nos planos estaduais e municipais. Mas também

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O ABORTO 44

há projetos no sentido contrário visando retirar da lei os casos em que a

interrupção da gravidez está permitida73.

Tramitam no Congresso Nacional 24 propostas que, direta ou

indiretamente, referem-se ao tema. Há propostas para estender os benefícios da

lei aos casos de mal-formação fetal; outras querem autorizar a interrupção a

partir da decisão da mulher, levando em conta o tempo da gestação; e há

também as que objetivam suprimir do Código Penal o artigo que caracteriza o

aborto como crime.

O Projeto de Lei 1135/91, de autoria dos ex-deputados Eduardo Jorge e

Sandra Starling, visa revogar o artigo 124 do Código Penal. A relatora, deputada

Jandira Feghali (PCdoB-RJ), apresentou um substitutivo incorporando alguns

pontos de 15 projetos de leis sobre o mesmo tema e acrescentou outros

aspectos no tocante ao tempo de gestação. No fim de setembro de 2005, a

Comissão de Revisão da Legislação Punitiva que Trata da Interrupção Voluntária

da Gravidez - entregou à Câmara um relatório sobre o assunto, propondo a

descriminalização do aborto no Brasil. De acordo com o texto apresentado pela

relatora, a mulher poderá optar pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem

que haja necessidade de justificação. A interrupção da gravidez poderá ocorrer

até a 20ª semana se resultante de estupro. E, finalmente, segundo o substitutivo,

o aborto poderá ocorrer em qualquer momento se for constatado grave risco à

saúde da gestante e de malformação do feto incompatível com a vida.

A proposta de um plebiscito sobre a legalização do aborto foi feita pelo

deputado Salvador Zimbaldi (PSB-SP), propondo a realização da consulta no fim

de 2007. Mas também há projetos que retrocedem, retirando da lei os casos em

que a interrupção da gravidez está permitida74.

Apesar de diversas tentativas legislativas a postura brasileira ainda tem

cunho proibitivo marcada em grande parte pela doutrina católica e falta de

justificação racional dos argumentos no seio da sociedade de forma livre.

Somente através da ampla discussão sobre os aspectos bioéticos e

constitucionais envolvidos em tal problemática será possível repensarmos o

tratamento jurídico do nosso país.

73 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL

1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.

74 São exemplos: Projeto de Lei (PL) 5058/05, PL 5364/05, PL 7235/02 e PL 1459/03. Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/agencia/materias acesso em 28 de outubro de 2005.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 45

4 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

4.1.Teorias sobre a Interpretação

O objetivo deste capítulo é fornecer o aporte teórico de diversos autores

sobre interpretação de um texto normativo, especialmente, constitucional. Esse

suporte será essencial para a posterior discussão das possíveis interpretações

do ordenamento jurídico brasileiro no estudo de caso da permissão de

antecipação do parto na ocorrência de anencefalia fetal. Quando então serão

analisados os argumentos utilizados para defender ou proibir tal hipótese,

levantando as técnicas argumentativas principais de ambos os entendimentos.

Quatro questionamentos são essenciais quando o assunto é

interpretação: O que é interpretar, por que interpretar, como interpretar e quais

as dificuldades do ato interpretativo. As respostas a essas perguntas variam

conforme a época e a metodologia de cada autor.

4.1.1. O que é interpretar?

O ato de interpretar significa fornecer significação às palavras, é

primeiramente a análise semântica de um texto. Por tal razão a semiótica75 é

vital para a interpretação76. A norma legal, como todo texto escrito, necessita da

75 A semiótica - disciplina que estuda os elementos representativos no processo de

comunicação - pode ser divida em três partes: sintaxe, semântica e pragmática. De modo geral, é possível afirmar que a sintaxe estuda os signos de forma pura, independente de seu significado, em outras palavras, preocupa-se com a construção tecnicamente corrente das frases em determinado idioma. Na semântica, a análise debruça-se sobre os signos em sua relação com os objetos por eles designados, isto é, sobre o problema dos significados. Por fim, a pragmática cuida da relação entre os signos e as pessoas que as usam, ou seja, o contexto em que os termos são empregados. GUIBOURG, R., GHIGLIANI, A., GUARINONI, R. Lenguaje, 2000, p. 33.

76 Willis Santiago Guerra Filho ressalta a importância desses conhecimentos no campo do Direito. Cita-se: “O aspecto sintático do conhecimento é tradicionalmente trabalhado no âmbito da lógica formal. (...) As funções semântica e pragmática, por sua vez, corresponderiam ao campo da lógica material, que gira em torno de objetos mundanais, cujo principal, para o Direito, é a Justiça.” GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria da ciência jurídica, 2001, p.104.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 46

interpretação que pode ser considerada como meio termo entre as previsões

legais e a solução do caso concreto.

A interpretação no entender de Ricardo Guastini pode significar tanto a

atividade como o resultado desta atividade. A interpretação de um texto atribui

sentido ou significado a um determinado fragmento da linguagem.77

Carlos Maximiliano, em sua obra recentemente reeditada sobre

Hermenêutica e Aplicação do Direito, diferencia os termos Hermenêutica78 -

entendida como teoria científica da arte de interpretar cujo objeto de estudo e a

sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e alcance

das expressões do Direito - e Interpretação, tida como concretização da primeira.

A interpretação, no entender de Margarida Camargo, deve ser vista como

ação mediadora que busca compreender o real significado do que foi escrito por

outra pessoa. O ato de concretização depende dessa prévia interpretação da

norma e do fato resultando em uma determinada decisão concreta.

O termo Hermenêutica é adotado por Ivo Dantas como ato de interpretar,

como um conjunto de princípio que devem servir como orientação e regulação

para a interpretação das normas jurídicas. Já o termo interpretar é definido como

o descobrimento do sentido real da norma e seu conteúdo ôntico. 79

Umberto Eco demonstra sua preocupação com a questão dos limites da

interpretação. Um texto em si já impõe restrições a seus intérpretes. Os limites

da interpretação são coincidentes de forma obrigatória com os direitos do texto.

Esse autor trata das noções de uso e interpretação.

77 GUASTINI, R., Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003. 78 Margarida Camargo, cuja obra objetiva relacionar as noções de Hermenêutica e

Argumentação78, elabora um breve histórico sobre a significação do termo hermenêutica. Inicia no período da Grécia Antiga Histórico tendo como função levar a mensagem dos deuses aos homens. Significava traduzir algo inteligível para a linguagem dos homens. Em Roma a Hermenêutica desenvolveu-se com a própria prática jurídica. Os pretores e jurisconsultos diziam o direito no caso concreto e essas decisões foram, com o tempo, transformadas em máximas cada vez mais abstratas e obrigatórias. Os glosadores do século XI e XII, após a descoberta do Corpus Iuris Civilis, iniciam um esforço acerca de seu entendimento e compreensão. O desenvolvimento das cidades italianas acarreta a criação de uma corporação própria denominada de Universidade e sua criação teve como resultado a elaboração as glosas especificando palavra por palavra, tal interpretação foi feita pelos próprios professores. O método escolástico foi responsável pelo aparecimento da dogmática jurídica. A seguir, com o historicismo, a hermenêutica reconhece a necessidade da interpretação das circunstâncias históricas da criação do texto e também as circunstâncias que determinavam sua concretização posterior. Assim, a hermenêutica não se baseava mais unicamente em seu aspecto exegético. Porém é somente com o advento do Iluminismo que a interpretação e a hermenêutica deixam de significar a mesma coisa. A hermenêutica encontra seu status de ciência, na qual são englobadas as técnicas interpretativas.

79 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995. p. 83.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 47

“Defender a interpretação do texto contra o uso dele não significa que os textos não possam ser usados. Mas o livre uso dele nada tem a ver com sua interpretação, visto que a interpretação e uso sempre pressupõem uma referência ao texto-fonte, quando mais não seja, como pretexto.”

4.1.2. Por que interpretar?

A interpretação jurídica tem como finalidade precípua determinar o real

sentido de uma norma legal, qual a sua intenção, o alcance de sua previsão e

como deve ser aplicada a um interesse humano evidenciado através de uma

ação judicial.

O ato de interpretar um texto normativo não é tarefa simples. A

linguagem, além de seus defeitos próprios, admite conceituações de termos que

variam conforme a época de sua escrita e de sua leitura. Os textos legais ainda

carregam outra questão passível de problemas, qual seja os valores e interesses

expressos em uma norma podem não mais coincidir com os atuais80.

De forma sintética ressaltam-se os dizeres de Carlos Maximiliano: “a

palavra é um mau veículo do pensamento” 81 e “não perdura o acordo

estabelecido entre o texto expresso e as realidades objetivas” 82. Essas duas

afirmações sintetizam várias dificuldades enfrentadas pelos intérpretes legais.

A necessidade de interpretar uma norma jurídica admite dois

entendimentos principais. Há aqueles que entendem que qualquer norma jurídica

imprescinde da aclaração de seus termos, e há aqueles que entendem que

somente as normas que possuem certa vaguidade ou imprecisão devem ser

objeto de interpretação.

Ricardo Guastini destaca esses dois posicionamentos sobre interpretação

jurídica83.

80 A obra Hermenêutica e Argumentação propõe essa dificuldade no papel

interpretativo de concretização do direito, qual seja, o distanciamento histórico entre a origem do texto, carregado de intenções de seu autor bem como do espírito da sua época, e o momento atual em que a lei, ou texto, é interpretada e aplicada.80 Por ser a norma jurídica uma decorrência da ação humana, ela carrega em si uma significação, sentido e valor dependentes de um porquê histórico, da mesma forma que o intérprete é um ser historicamente orientado e que faz parte de uma tradição. O intérprete é aquele que busca aplicar a legislação conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente.

81 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 29. 82 Ibid., p. 10. 83 Margarida Camargo também tece algumas considerações históricas a respeito

dos diversos entendimentos jurídicos sobre o papel da interpretação. Começa com a Escola da Exegese a qual propunha que o Poder Judiciário deveria ser restrito ao do apego excessivo às palavras da lei e que qualquer atividade fora deste âmbito representaria um arbítrio. Esta corrente de pensamento representa a pretensão de

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 48

O primeiro adota uma postura restrita de interpretação e atribui uma

possível escolha de significado somente a uma formulação normativa passível

de dúvida ou obscuridade, e, unicamente nesses casos deve ser aplicada a

interpretação. A adoção deste conceito importa na aceitação de que as palavras

têm em si um significado intrínseco ou próprio. Esta concepção origina a teoria

cognitiva da interpretação que considera que interpretar é verificar

empiricamente o significado objetivo dos textos normativos ou a intenção

subjetiva de seus autores. Os enunciados dos intérpretes são enunciados do

discurso descritivo, podem comprovar a veracidade ou não desses enunciados.

Tal teoria entende o sistema jurídico como necessariamente completo (sem

lacunas) e coerente (sem antinomias), não havendo espaço para a

discricionariedade judicial. Toda questão jurídica admite somente uma resposta

justa.

De forma contrária, a postura ampla de interpretação admite uma

atribuição de significado a qualquer formulação jurídica, independentemente de

haver dúvidas ou controvérsias. Tal posicionamento nos leva à conclusão que

todo texto requer uma interpretação, sendo esta um pressuposto necessário à

aplicação da norma a qualquer caso. A própria atribuição de significado a um

texto requer uma valoração, eleição ou decisão. Não há um significado próprio

encontrar na letra da lei a resposta para qualquer conflito apresentado concretamente. Tal posicionamento um tanto extremo recebeu prontamente a crítica de Gény para quem a ocorrência de lacunas não preenchidas pela lei era evidente. Portanto, a mera subsunção do fato à norma geral não é suficiente, devendo a atividade do intérprete se coadunar com as regras e princípios gerais norteadores da ordem jurídica positiva. Já Savigny vê o direito codificado como imposição racional do despotismo, pois não observa os costumes o que acarreta a não efetividade à pura e real vontade popular. A função legislativa ofereceria apenas um mero suporte ao costume para tolir-lhe as incertezas e as indeterminações. O formalismo jurídico alemão também é mencionado por Margarida. Segundo este entendimento a atividade científica seria responsável por estipular conceitos bem definidos cujo objetivo é garantir a segurança das relações jurídicas através da diminuição da ambigüidade e vaguidade dos termos legais. Esse alto grau de racionalidade originou o dogma da subsunção. O positivismo desvincula os fatos de qualquer valoração que lhe pudesse ser inferida, através do processo de generalização e abstração. Embora, esteja presente uma preocupação em relacionar os fatos sociais e o direito, de maneira que a legislação seja o mais fiel possível àqueles. Jhering formula sua crítica ao formalismo. Esse autor vê o direito como processo dinâmico levado pelo espírito prático que chega à realização. Por fim, Margarida Camargo cita Kelsen. Cuja busca pretende isolar o direito de indagações relativas aos criadores da lei ou suas intenções. O fundamento de validade do direito não está nesses fatos, mas na própria norma superior que o prescreve. O ordenamento jurídico positivo encerra-se nele mesmo, prevendo e controlando a sua própria existência como bastante em si mesmo. Na sua teoria não há espaço para a hermenêutica, ou a explicações de termos como compreensão, interpretação e concretização do direito. Basta-lhe a subsunção do fato a norma válida. Atualmente é predominante na doutrina hermenêutica a razão objetiva da lei em detrimento da razão subjetiva ou originária.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 49

das palavras e sim aquele atribuído pelo intérprete. Para este entendimento os

enunciados interpretativos não são verdadeiros ou falsos, fala-se antes em

preferência entre os termos. O ordenamento jurídico não é completo ou coerente

e diante de lacunas os juízes criam um direito novo, e por isso deve ser clara a

demarcação das funções judiciais e legislativas.

Ricardo Guastini apresenta ainda uma teoria intermediária a qual

sustenta que a interpretação pode assumir em certos casos a natureza de

atividade cognitiva e em outros uma atividade de decisão discricionária.

Distingue dois tipos de enunciados interpretativos. Quando o significado

atribuído recai no núcleo essencial resulta então, uma simples verificação do

significado preexistente aceito, mas se o significado atribuído recai sobre uma

área duvidosa, de penumbra, o resultado será uma decisão discricionária. Volta

às noções de casos claros, onde deve ocorrer a aplicação pura do texto e os

casos duvidosos, nos quais o intérprete deve adotar valorações em sua

escolha84.

4.1.3.Como interpretar?

A pergunta acima formulada envolve dois elementos: o intérprete e a

metodologia adotada. O aplicador da norma é quem dirá qual a interpretação

correta do ordenamento jurídico ao caso concreto e a metodologia adotada pelo

mesmo determinará como será o processo interpretativo e qual será o resultado

deste.

Segundo Carlos Maximiliano o intérprete deve possuir três qualidades:

probidade, ilustração e critério. Cabe ao intérprete não só examinar através das

palavras os pensamentos possíveis, mas, principalmente, entre os possíveis o

único apropriado, “o sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor

corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave.”

85

Em seu texto sobre as Teorias da Interpretação Manuel Ortega86 ensina

que a interpretação de normas pode dar lugar a resultados diferentes, cabendo

aos operadores do Direito, na aplicação ao caso concreto, eleger entre as

distintas alternativas para que sua atividade compreenda tanto atos de

conhecimento como de vontade. Segundo ele dois tipos de concepção podem

84 GUASTINI, R. Estudios sobre la interpretación jurídica, 2003, p. 16-17. 85 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 135. 86 ORTEGA, M. Sobre la interpretación del derecho, 2003.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 50

ser destacados: as teorias prescritivas87 que se dedicam não só a explicar como

se justificam as decisões judiciais, mas também como estas deveriam ser

justificadas para que possam ser consideradas corretas; e as teorias

descritivas88 que partem da experiência jurídica para descobrir quais são os

diferentes elementos que determinam e influenciam no processo decisório.

Esta divisão é bastante atual já que diferencia as posturas formalista e

pragmática. A primeira lidaria com os métodos tradicionais de interpretação:

literal, o sistemático, o histórico e o teleológico. Este método tem como máxima a

subsunção, ou seja, uma norma (premissa maior) deve ser aplicada ao caso

concreto (premissa menor). A nova metodologia constitucional entende que a

87 As teorias prescritivas têm como pretensão fundamental assinalar como os

sujeitos que aplicam o direito devem interpretar as normas. Buscam condicionar e determinar a atividade do intérprete com a finalidade de influir em seu comportamento. Este comportamento para ser considerado correto deve descobrir certos elementos que se encontram na vontade do legislador, na vontade da lei ou na racionalidade argumentativa dos sujeitos que participam do processo. O intérprete recebe instruções que deve seguir para que sua conduta seja considerada legítima. Manuel Ortega destaca três teorias prescritivas: a direção subjetiva, a direção objetiva e a que concebe a interpretação como argumentação. A direção subjetiva entende que o intérprete busca essencialmente o elemento da vontade do legislador, os desejos e fins que efetivamente operaram na mente do legislador no momento de promulgação da norma. Esta teoria é criticada por seu alto grau de ficção. Diante da complexidade dos sistemas jurídicos atuais não é possível encontrar uma vontade efetiva e homogenia, à medida que, o órgão legislativo é composto pela pluralidade de membros e opiniões muitas das vezes contraditórias. Embora esta corrente de pensamento tenha enfraquecido não desapareceu. A direção objetiva considera que há uma vontade objetiva na própria norma, uma vez criada separa-se de seu autor. O êxito de tal concepção foi fruto da necessidade de adequação dos textos legislativos às novas relações oriundas de mudanças sociais, políticas e econômicas. Esta proporciona uma maior liberdade do intérprete, estabilidade do direito, haja vista que adaptado às novas circunstâncias sem a necessidade de modificação de seu texto e o progresso e evolução das instituições jurídicas. Porém, tal forma de interpretar um texto deve ser adotada de forma criteriosa, pois os limites entre a interpretação e a criação do Direito são tênues e devem ser melhor aclarados. Ortega alerta para a possibilidade de que tal interpretação pode modificar realmente a norma, fazer com que esta estabeleça justamente o contrário da intenção inicial, permitindo a interpretação contra legem. Finalmente, a teoria que concebe a interpretação como argumentação. Neste sentido, os termos legais sempre permitem uma margem decisória, pela necessidade de que seja interpretada pela ocorrência de lacunas, pela seleção e qualificação dos fatos que chegam a juízo. O ponto contrário de tal teoria consiste na alta liberdade conferida ao intérprete que diminui consideravelmente a objetividade e a segurança, podendo conduzir à arbitrariedade. Para corrigir tais distorções Manuel Ortega propõe certos limites ou requisitos cujo cumprimento garante a correção e racionalidade da decisão. Dentre eles a necessidade de justificação, de fundamentação e de comunicação intersubjetiva.

88 As teorias descritivas acreditam que o exame da experiência jurídica revela a presença de elementos irracionais que não podem ser eliminados através do processo de justificação porque a motivação se apresenta como um instrumento insuficiente, pois, não permite controlar a atuação judicial. Os representantes do realismo destacam a importância da personalidade do juiz em seu processo decisório. As decisões não são meras reproduções ou aplicações de regras previamente estabelecidas. Manuel Ortega destaca que estas teorias não se restringem a propor novas metodologias jurídicas, mas

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 51

complexidade dos conflitos atuais não encontra resposta satisfatória na

metodologia tradicional. Os casos concretos, principalmente os que envolvem

normas constitucionais, já não podem mais ser encaixados de forma completa

em uma única norma, havendo casos onde os valores envolvidos colidem e a

mera subsunção torna-se impossível, pois várias premissas maiores podem ser

aplicadas. Por tal razão, os doutrinadores têm voltado a atenção para os casos

em si, buscando novas técnicas interpretativas de solução. 89

4.2. Interpretação Especificamente Constitucional

A Constituição é o texto normativo que expressa os valores jurídicos

essenciais para a sociedade por ela regulada. As sociedades contemporâneas

têm como característica sua pluralidade, e tal é evidenciado também através dos

textos constitucionais, junto com valores sociais e protetivos os valores liberais

permeiam as Cartas Políticas. Outro fator diferencial é a ocorrência de normas

abertas e principiológicas90, o que torna a interpretação da Constituição uma

tarefa mais árdua e que necessita de uma metodologia própria. 91

também têm voltado sua atenção à finalidade política, e por tal razão, resultam mais úteis.

89 Ressalta Marcelo Neves que há uma tendência na Hermenêutica contemporânea, principalmente no Estado Democrático de Direito, de enfatizar a dimensão pragmática do processo interpretativo. Tal processo “caminha de uma primazia da segurança formal, passa pelo predomínio da delimitação ou descoberta do sentido material e chega ao problema da incerteza condicionada pelo pluralismo e o dissenso estrutural da esfera pública.” P.357. No entender de Marcelo Neves a interpretação-aplicação jurídica no Estado Democrático de Direito deve considerar a tensão constante entre a validação interna do próprio ordenamento e a validação externa que advém da esfera pública. Somente através de uma mínima congruência entre essas expectativas será possível à manutenção e reconstrução do sentido do texto constitucional.

90 Cláudio Pereira De Souza Neto diz que: “a grande presença dos princípios nas constituições contemporâneas tem sido apresentada como uma das principais razões para se caracterizar a metodologia constitucional como específica.” SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 209.

91 García Amado em seu texto sobre a interpretação constitucional afirma que a interpretação constitucional será dependente da concepção que se tem sobre o valor normativo do próprio texto constitucional. E destaca três correntes sobre a interpretação constitucional. A primeira denominada pelo autor de lingüística, adota a Constituição como um conjunto de enunciados lingüísticos compilados em um texto, o qual se tem por jurídico e de maior hierarquia dentro dos textos jurídicos. Não se questiona sobre a importância ou o papel constitucional. A interpretação ocorre como em qualquer texto jurídico, através do entendimento dos vocábulos utilizados. A concepção voluntarista vê a Constituição como expressão de uma vontade suprema, individual ou coletiva, cujos desígnios concretos e a capacidade de expressão são limites à prática jurídica no ordenamento. Interpretar seria então averiguar os conteúdos de vontade deste texto. Já a concepção material entende o texto constitucional como sendo uma ordem objetiva de valores que constituem uma prefiguração ideal e permanente dos mundos juridicamente

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 52

O Direito Constitucional, por envolver valores jurídico-sociais92 de uma

determinada organização política, não pode utilizar as mesmas técnicas

interpretativas do Direito Privado. A amplitude dos princípios positivados na

Carta Magna não permite a simples subsunção da norma ao caso proposto. E

qualquer conflito pertinente ao âmbito constitucional parte do entendimento de

que “devem as instituições ser entendidas e postas em função de modo que

correspondam às necessidades políticas, às tendências gerais da nacionalidade,

à coordenação dos anelos elevados e justas aspirações do povo” 93.

Neste sentido de uma nova metodologia constitucional o trabalho de

Friedrich Müller – Métodos de trabalho no Direito Constitucional. A sua metódica

abrange os termos hermenêutica, metodologia e interpretação94. O referido

jurista parte das decisões do Tribunal Constitucional Federal da República

Federal da Alemanha para entender a concretização das normas constitucionais.

O autor questiona a teoria tradicional da interpretação segundo a qual um caso

jurídico prático deve ser subsumido ao preceito normativo. O referido tribunal,

atualmente, considera o texto da norma apenas uma primeira instância

interpretativa e limite das alternativas possíveis, evitando apenas as

interpretações contra legem. As decisões do tribunal foram extraídas da

realidade e não segundo uma valoração tradicional restrita às normas.

Porém, Friedrich Müller não pretende excluir das técnicas interpretativas

a concepção tradicional, apenas demonstra que essa não é completa ou única.

Propõe um enfoque múltiplo da metódica de concretização da constituição,

evoluindo de uma lógica puramente formal a uma concretização direcionado ao

caso em voga. 95

possíveis. Portanto, o intérprete deve buscar conhecer os valores adotados pela ordem constitucional.

92 Noção importante sobre valores constitucionais é enunciada por José Moreso quando inicia seu texto sobre primazia constitucional relembrando a idéia de precompromisso expressa no ideal de democracia constitucional. O precompromisso consiste no fato de ater-se a si mesmo em certas situações e excluir determinadas decisões do futuro, para preservar uma decisão do passado que se valora positivamente. MORESO, J., La indeterminación del derecho y la interpretación de la constitución, 1997, p. 166.

93 MAXIMILIANO, C., Hermenêutica e aplicação do direito, 2005, p. 249. 94 Hermenêutica se refere às condições de princípio da concretização jurídica

normativamente vinculada do direito. Metodologia significa a totalidade das regras técnicas da interpretação no trato com normas jurídicas. E interpretação diz respeito às possibilidades do tratamento jurídico-filosófico do texto, i. é, da interpretação de textos de normas. MÜLLER, F. Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 2.

95 Contudo, este novo método, admite ele, não é imune a críticas. A tendência atual de transformar a metódica em sistemas de valores na concretização jurídica pode acarretar a casuística e a transformação do Estado de Direito em Estado do Judiciário. A crescente discricionariedade dos Magistrados tem espaço com a carência de uma

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 53

A doutrina constitucional no Brasil tem buscado solução para o problema

da efetivação de um texto normativo que prevê uma série de valores96, vê-se a

recorrência de dois temas – a efetivação da norma e os princípios

constitucionais.

No tocante à concretização dos princípios Ivo Dantas considera que

qualquer interpretação, principalmente a da própria Constituição, há de ser feita

levando-se em conta o sentido exposto nos princípios fundamentais

consagrados na Lei Maior. A eficácia da Constituição depende não só de sua

fidelidade aos valores sociais e políticos consagrados pela sociedade, mas

também – e principalmente – de uma correta interpretação daquilo que o texto

prescreve97 e apenas uma interpretação que analise a Constituição como um

sistema de princípios e normas obterá o verdadeiro sentido do texto.

Ainda quanto ao tema Humberto Ávila destaca quatro obstáculos à

efetivação dos direitos fundamentais constitucionais.

O primeiro é denominado conseqüencialismo que impulsiona o magistrado

a utilizar o raciocínio jurídico baseado nas conseqüências de sua decisão e não

nas normas ou princípios vigentes.

O segundo obstáculo é o idealismo no qual a interpretação jurídica parte

de modelos ideais, no mais das vezes antigos ou estrangeiros, relegando a

segundo plano o modelo jurídico positivo nacional.

O terceiro é o construtivismo, onde o intérprete parte da premissa correta

de que a norma não é o texto normativo, e sim o resultado da interpretação de

um texto, para chegar à conclusão de que pode construir qualquer alternativa

interpretativa, desconsiderando, inclusive, os conteúdos mínimos dos

dispositivos constitucionais e legais. O efeito disso é claro: o conteúdo semântico

metodologia como a de raiz positivista. Com o intuito de suprir tal falta Friedrich Müller propõe alguns parâmetros que importarão em uma metódica do direito constitucional. Segundo ele os juristas devem transcender a compreensão e a interpretação, chegando à uma aplicação das normas. Para tanto, o mito de que existe uma única solução correta para cada caso proposto dentro da legislação deve ser abolido. O ato de concretizar não se limita às ações de interpretar, aplicar ou subsumir, diametralmente significa produzir uma solução ao conflito social posto ao Judiciário utilizando como parâmetro e limite não só a norma positivada, mas um quadro da democracia e do Estado de Direito.

96 Luís Roberto Barroso escreve que “O novo direito constitucional brasileiro, cujo desenvolvimento coincide com o processo de redemocratização e reconstitucionalização do país, foi fruto de duas mudanças de paradigma: a) a busca da efetividade das normas constitucionais, fundada na premissa da força normativa da Constituição; b) o desenvolvimento de uma dogmática da interpretação constitucional, baseada em novos métodos hermenêuticos e na sistematização de princípios específicos de interpretação constitucional.”

97 DANTAS, I., Princípios constitucionais e interpretação constitucional, 1995, p. 79.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 54

das regras cede em favor de qualquer conteúdo. E por fim, o quarto obstáculo à

efetivação dos direitos fundamentais é o principialismo que acarreta a

manipulação de princípios sem que o aplicador considere devidamente as regras

imediatamente aplicáveis. 98

A positivação cada vez mais constante de valores através de princípios

normativos acarreta uma mudança na estrutura dos ordenamentos jurídicos

necessitando de uma adequação de toda ciência jurídica. Neste sentido a teoria

dos princípios.

4.3. Teoria dos princípios

A teoria dos princípios tem o intuito de responder sobre a qualificação destas

normas jurídicas, sobre seu modo correto de aplicação a fim de obter a melhor

resposta jurídica possível a uma determinada situação. A teoria dos princípios

tem como preocupação analisar a diferenciação entre as regras e os princípios.

Tal distinção será importante a este trabalho haja vista que o estudo de caso

trata de colisões entre regra e princípio e entre dois princípios constitucionais.

Um panorama sobre a referida diferenciação é fornecido por Humberto

Ávila99. O jurista inicia com as lições de Josef Esser o qual utiliza como critério

distintivo a qualidade entre regras e princípios, estes são normas que

estabelecem fundamentos para encontrar um determinado mandamento. Karl

Larenz considera que os princípios não possuem aplicação imediata como as

regras e, por tal razão, somente indicariam a direção para a obtenção de uma

regra sobre a hipótese. Canaris é citado a seguir e afasta os princípios das

regras por duas características: os princípios têm conteúdo axiológico e sua

aplicação somente ocorre através de um processo dialético de complementação

e limitação. No final de sua consideração Humberto Ávila ressalta a importância

de Ronald Dworkin e Robert Alexy, juristas que serão estudados com o objetivo

de destacar os aspectos de ponderação e argumentação no processo de

interpretação e aplicação das normas jurídicas.

A doutrina nacional tem procurado formular uma teoria dos princípios,

estabelecendo conceitos e critérios de diferenciação diversos, no intuito de

98 ÁVILA, H. Direitos fundamentais dos contribuintes e os obstáculos à sua

efetivação. In PIRES, A., TÔRRES, H., 2006, p. 345-361.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 55

adequar a dogmática jurídica ao texto constitucional vigente, repleto de

princípios. Com mais de 15 anos de vigência o texto constitucional necessita da

devida aplicação de todas as suas normas, regras e princípios, nos conflitos

propostos judicialmente, e por isso, a teoria dos princípios se desenvolveu

também na pragmática jurídica. Os direitos fundamentais têm sido enquadrados

nesta categoria de princípios porque são normas constitucionais de caráter

finalístico e definidoras de direitos e garantias. 100

A definição de princípio é construída primeiramente a partir da concepção

que se faz sobre seu caráter e força normativa. Há estudiosos que consideram

os princípios apenas como diretrizes e não como normas101. Porém, com a

constitucionalização positivada os princípios cada vez mais freqüentes nos

ordenamentos jurídicos, a doutrina majoritária tem entendido os princípios como

integrantes do sistema jurídico conjuntamente com as regras. 102 A seguir, a

conceituação de princípios que atenta para a diferenciação entre esses e as

regras, principalmente no tocante à sua finalidade e âmbito de aplicação.

Humberto Ávila propõe três critérios de diferenciação entre regras e

princípios: 1)Quanto ao modo de prescreverem o comportamento – as regras

são imediatamente descritivas e os princípios imediatamente finalísticos. 2)

Quanto à justificação que exigem – as regras pretender correlacionar a

construção conceitual e da norma e a finalidade que lhe fundamenta. Já os

princípios correlacionam o estado das coisas posto como fim e os efeitos da

conduta a ser tomada. 3)Quanto ao modo como contribuem para a decisão – as

regras são preliminarmente decisivas e abarcantes, pretendem gerar uma

solução específica ao caso concreto, enquanto que os princípios são normas

preliminarmente complementares e parciais, tem como pretensão contribuir para

a tomada de decisão. 103

Duas são as orientações propostas por Ronald Dworkin quanto ao papel dos

princípios no tocante às obrigações jurídicas. Inicialmente, pode-se tratar os

princípios jurídicos da mesma maneira que são tratadas as regras jurídicas e

99 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios

jurídicos, 2003, p. 26. 100 De acordo com o proposto, TAVARES, A.. Elementos para uma teoria geral dos

princípios na perspectiva constitucional. In LEITE, G., 2003, p. 44; 101 Neste sentido José Afonso da Silva que enquadra os princípios na categoria de

normas eficácia limitada, dependendo de atividade legislativa para sua efetividade. SILVA, J. Aplicabilidade das normas constitucionais, 1999, p. 163.

102 Fazem parte desta doutrina Ronald Dworkin, Robert Alexy, Humberto Ávila, entre outros.

103 ÁVILA, H., Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003, p. 119-120.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 56

dizer que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei e devem ser levados

em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas.

Ou então, pode-se negar que tais princípios possam ser obrigatórios no mesmo

sentido que algumas regras o são. Assim, os juízes vão além das regras a que

estão obrigados a aplicar e lançam mão de princípios extralegais que eles têm

liberdade de aplicar, se assim o desejar, e somente em casos não englobados

pelas regras, de forma excepcional.

Tais abordagens geram diferentes conseqüências, já que a primeira

alternativa trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que

eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente. A segunda

alternativa trata os princípios como resumo daquilo que os juízes na sua maioria

adotam como princípio de ação, quando forçados a ir além dos padrões aos

quais estão vinculados. Ou seja, as alternativas divergem quanto ao fato de

serem os princípios normas jurídicas ou instrumentos externos ao ordenamento.

Para Ronald Dworkin o diferencial entre princípios e regras é de natureza

lógica104. Os princípios serão aplicados pelas autoridades públicas, inclusive

pelos julgadores, quando forem considerados relevantes, apontando para uma

ou outra direção. Ademais, os princípios possuem uma dimensão de peso ou

importância, e quando colidem o intérprete que vai resolver o conflito deve levar

em conta a força relativa de cada princípio envolvido. Neste ponto a ponderação

e o impacto da aplicação de um princípio será determinante para sua utilização.

Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e a escolha de um

princípio ou uma política particular será diversas vezes objeto de controvérsia.

As regras não possuem essa dimensão valorativa, são funcionalmente

importantes ou desimportantes, podendo haver certa hierarquia entre elas. Se

duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua

importância maior, sendo assim, uma delas não pode ser válida. As regras são

aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, dados os fatos que uma regra estipula, ou

a regra será válida, e neste caso, a resposta por esta fornecida deve ser aceita,

ou não, e neste caso ela nada contribui para a decisão.

Ronald Dworkin entende que os princípios são elementos do sistema

jurídico e, portanto, são normas que devem ser consideradas pelo julgador

quando proferir uma decisão jurídica. Entretanto, ressalta que a utilização dos

104 Ronald Dworkin trabalha esta questão, principalmente, quando expõe os

modelos de regras I e II em seu livro Levando os direitos a sério, nestes capítulos o autor rebate a posição tradicional positivista – exemplificado nas concepções de Hart – e propõe a sua visão sobre o modelo a ser adotado.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 57

princípios não pode ocorrer de forma arbitrária, devendo estes ser aplicados de

preferência em casos onde não há no ordenamento uma norma clara e

completamente aplicável. 105 Ele adota a postura pós-positivista segundo a qual

as pretensões normativas podem e devem ser fundamentadas racionalmente.

Essas hipóteses são consideradas Hard Cases ou casos difíceis como são

conhecidas no Brasil.

4.4.A interpretação constitucional nos casos difíceis.

A interpretação, como visto anteriormente, é útil na concretização de

qualquer texto normativo. Entretanto, existem situações que por sua

complexidade exigem uma hermenêutica mais detalhada e difícil. Neste sentido,

surge a doutrina americana denominada de Hard Cases, os quais não

encontram uma solução tranqüila quando inseridos nos ditames legais, não

sendo possível a simples subsunção de uma regra. No prefácio de Levando os

Direitos à Sério Calsamiglia106 esclarece que um caso poderá ser considerado

difícil se existir uma incerteza quanto à aplicação da norma jurídica ao caso

concreto.

A ocorrência dos chamados casos difíceis torna a Ciência Jurídica passível

de questionamentos e incertezas. O sistema jurídico parece incompleto e falho, a

técnica positivista de aplicação do caso concreto à norma elaborada através da

subsunção não encontra mais respaldo na complexidade da sociedade.

No tocante a este trabalho é importante mencionarmos alguns

posicionamentos sobre o assunto, para tanto será utilizada a doutrina Ronald

Dworkin e posteriormente a crítica feita por Manuel Atienza. Ambos lidam com

a preocupação a respeito do excessivo argumento valorativo nas decisões

105 Cláudio Pereira comentando Dworkin ressalta que “o autor destaca

especialmente que, se o juiz possui o poder de decidir por sua própria vontade as questões que lhe são apresentadas, as noções de autonomia pública, segurança jurídica e separação de poderes ficam prejudicadas. De fato, o juiz que está legislando, se apropriando de uma função do legislador – o que cria problemas sérios de legitimação. (...) Quando o juiz legisla no caso concreto está criando normas retroativas. Ademais, a vontade dos jurisdicionados não terá sido levada em conta no processo de produção normativa. Por essas razões, impõe-se ao pensamento jurídico buscar soluções para a discricionariedade judicial.” p. 223-224.

106 Este prefácio ao livro Levando os Direitos a Sério somente é encontrado na versão espanhola do texto sob a nomenclatura ”Ensayo sobre Dworkin”.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 58

judiciais, tendendo essas ao subjetivismo demasiado. Essa parte do capítulo visa

demonstrar que o estudo de caso não deve ser entendido de forma simplista, no

sentido de mera aplicação de normas vigentes. As problemáticas oriundas de

conflitos bioéticos, como o que será proposto, são exemplos dos chamados

casos difíceis, pois envolvem valores relevantes e muitas das vezes

considerados inconciliáveis. Entretanto tais demandas exigem um

posicionamento jurídico, cabendo aos aplicadores encontrar uma forma racional

de ponderar os interesses envolvidos resultando em uma decisão satisfatória.

Impensável falar na Teoria dos Casos Difíceis sem mencionar os

ensinamentos de Ronald Dworkin. Este jurista tem como preocupação inicial

rebater um dos grandes pensadores do positivismo jurídico – Hart. A relação

entre os dois tem pontos semelhantes e pontos contraditórios.

A semelhança, no âmbito deste trabalho, que desejamos levantar é quanto à

concordância sobre a existência de casos difíceis.

A divergência com Hart envolve dois prismas. Primeiro, Ronald Dworkin

critica o normativismo que considera o direito como sendo um sistema composto

exclusivamente por regras por considerar que tal pensamento acarretará

necessariamente na ocorrência de lacunas no ordenamento vigente à medida

que as normas não acompanham o ritmo das necessidades e mudanças sociais.

E, em segundo, questiona a legitimação do Judiciário quando decide por razões

próprias, ocorrendo na verdade a criação de uma nova norma. No seu entender

há que se buscar critérios limitadores e paradigmáticos para as decisões

judiciais, papel este que deve ser realizado pelos princípios jurídicos.

A teoria de Ronald Dworkin sobre a existência e solução dos casos

considerados difíceis perpassa alguns momentos importantes. Primeiro lidará

com a noção de princípio, considerando estes como elementos do sistema

jurídico. Segundo tratará da questão da integridade como método e forma de

entender este sistema. E por fim, entrará na questão da discricionariedade do

Poder Judiciário.

A teoria dos princípios, já anteriormente estudada, é de fundamental

importância na resolução dos casos difíceis, já que não obtendo uma regra

específica no ordenamento jurídico o julgador deverá buscar nos princípios,

sendo estes entendidos também como normas jurídicas, a solução para o caso

concreto.

A segunda teoria de Ronald Dworkin trata da integridade. O autor a coloca

como terceiro ideal juntamente com a justiça e a eqüidade e destaca dois

princípios de integridade. Um chamado de legislativo que pede aos legisladores

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 59

que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente e o outro denominado

de jurisdicional que demanda que a lei seja vista como coerente. No âmbito

deste trabalho será abordado apenas o segundo princípio, parte fundamental de

sua teoria para o entendimento da discricionariedade do Judiciário e a solução

dos casos difíceis.

O direito como integridade rejeita a questão de que os juízes descobrem ou

inventam o direito, sugere que só se entende o raciocínio jurídico tendo em vista

que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. E afirma que não é

possível ao juiz obter uma resposta exclusivamente certa nos casos difíceis do

direito.

A contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete

é uma questão de aspectos diferentes do mesmo processo. Portanto, há como

encontrar uma comparação entre literatura e direito, denominada pelo autor de

romance em cadeia. Cada romancista escreve seu próprio capítulo de modo a

criar da melhor maneira possível o romance, como se a obra fosse de um único

autor. Duas dimensões devem ser observadas nesta elaboração: adequação e

interpretação que tornará a obra mais significativa ou melhor. Neste sentido, o

intérprete deve analisar, primeiramente, qual interpretação se adapta melhor a

um texto e, após, qual torna o romance substancialmente melhor. Um romancista

em cadeia tem muitas decisões difíceis a tomar e pode-se esperar que diversos

romancistas em cadeia tomem decisões diferentes, porém nenhum deles pode

se afastar do romance.

O juiz Hércules – modelo contrafático de Ronald Dworkin -, criterioso e

metódico, deve julgar o caso seguindo algumas etapas. Começa por selecionar

diversas hipóteses que correspondem à melhor interpretação dos casos

precedentes. Elabora uma interpretação com base em princípios competitivos,

mas contraditórios, como uma lista parcial de interpretações. Verifica cada

hipótese dessa breve lista perguntando-se se uma pessoa poderia ter dado os

veredictos dos casos precedentes se estivesse aplicando esta interpretação.

Compara as razões com suas sólidas convicções políticas sobre o valor relativo

de suas interpretações. E, por fim, descarta as interpretações impossíveis,

chegando à melhor interpretação.

Qualquer juiz desenvolverá ao longo de sua formação uma concepção

funcional individualizada do direito na qual ele se baseará para decidir. Mas os

fatos brutos da história jurídica limitarão o papel que podem desempenhar, em

suas decisões, as convicções pessoais de um juiz em questões de justiça. Fato

este que nos leva à análise da discricionariedade do juiz.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 60

A postura positivista considera que os juízes quando utilizam os princípios

em suas decisões o fazem como algo fora do direito, valendo-se de seu poder

discricionário de aplicá-los ou não107. Afirmam que um juiz não tem poder

discricionário quando uma regra clara e estabelecida está disponível. Apenas de

forma excepcional devem formar seu próprio juízo ao aplicar padrões jurídicos.

Hart, no entanto, afirma que quando o poder discricionário do juiz está em jogo,

não podemos mais dizer que ele está vinculado a padrões, mas devemos, em

vez disso, falar sobre os padrões que ele tipicamente emprega. O poder

discricionário é, então, o agir de acordo com aquilo que os tribunais têm por

princípios. Mas para esta corrente de pensamento princípios e políticas não são

regras válidas de uma lei acima do direito, porque certamente não são regras.

São padrões extrajurídicos que cada juiz seleciona de acordo com suas próprias

luzes, no exercício de seu poder discricionário.

Para Ronald Dworkin, o conceito de poder discricionário é relativo,

admitindo-o somente em casos onde há uma série de alternativas previamente

estabelecidas. O poder discricionário pode ser entendido como um espaço vazio,

circundado por diversas restrições. O juiz quando exerce sua função jurisdicional

não se propõe simplesmente a declarar, como dado frio, o que foi primeiramente

estabelecido pelo Legislativo. Em seu entender o julgador realmente possui tal

dever como justificativa para sua própria decisão. Se for assim, a regra social

não pode ser a fonte do dever, como Hart acredita que seja.

Na maioria dos casos difíceis, os juízes assumem uma postura diferente da

descrita por Ronald Dworkin (de que o juiz deve decidir com base na

argumentação que lhe parecer a mais forte), enquadrando sua divergência como

uma divergência acerca dos padrões que eles estão proibidos ou obrigados a

levar em conta, ou acerca do peso relativo que estão obrigados a lhes atribuir.

Na exposição sobre os casos difíceis – aqueles onde aparentemente não há

uma ou somente uma solução para a lide ou conflito - Ronald Dworkin percorre

três etapas principais108.

Inicialmente, resume a postura da Teoria do Positivismo Jurídico para tais

situações ressaltando que quando uma ação judicial específica não pode ser

submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma

107 Para Ronald Dworkin somente faz sentido falar em Poder Discricionário quando

alguém é encarregado de tomar decisões de acordo com padrões estabelecidos por uma determinada autoridade. DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 50.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 61

instituição, o juiz tem o poder discricionário para decidir o caso de uma maneira

ou de outra, parecendo supor que uma ou outra das partes tinha o direito

preexistente de ganhar a causa. Porém, para o autor tal idéia não passa de uma

ficção porque, na verdade, o juiz legisla novos direitos jurídicos, e em seguida os

aplica retroativamente ao caso em questão.

A seguir passa à sua crítica, considerando essa teoria da decisão judicial

totalmente inadequada, pois, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma

das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. Não há um

procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos

casos difíceis.

Por fim, Ronald Dworkin propõe uma alternativa à solução dos mesmos. Diz

que o ideal seria o juiz (Hércules), mesmo nos casos difíceis, descobrir quais são

os direitos das partes, e não inventar novos direitos retroativamente. Isso é o

ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática.

As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas

e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além

disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser

decididos nem mesmo se ampliadas ou reinterpretadas as regras existentes.

Diante desta necessidade prática admite Ronald Dworkin que os juízes às

vezes são levados a criar um novo direito, seja de forma dissimulada ou

explícita. Porém ele coloca três questões que devem ser analisadas.

Primeiro, ao criar um novo direito os juízes devem agir como se fossem

delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os

legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema. Ocorre aqui um

problema de legitimidade haja vista que as leis de uma comunidade devem ser

criadas por pessoas eleitas pelo povo. Como os juízes não são eleitos, o fato de

eles criarem leis parece estar comprometido.

Além disso, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso

diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que

tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.

Esses dois argumentos se combinam para sustentar o ideal tradicional de

que a decisão judicial deve ser o menos original possível.

Outro fator impeditivo de criação de normas pelo julgador é o fato de que as

novas decisões refletem tanto a moralidade política do próprio juiz, como

108 Utilizaremos como referência para esta parte do trabalho o capítulo 4. Casos

Difíceis do livro Levando os Direitos a sério.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 62

também a moralidade que se acha inscrita nas tradições do direito costumeiro, e

tais moralidades podem ser diferentes.

Ronald Dworkin encerra dizendo que se deve confiar nas técnicas de

decisão judicial que, a nosso juízo, possam reduzir o número de erros, com base

em algum juízo a respeito das capacidades relativas dos homens e das mulheres

que podem desempenhar diferentes papéis. E fornece uma orientação aos

juízes: eles podem muito bem errar nos juízos políticos que emitem, e devem,

portanto, decidir os casos difíceis com humildade109.

As considerações de Ronald Dworkin sobre os casos difíceis levam à sua

conclusão de que mesmo nesses, utilizando os princípios como parâmetro,

pode-se obter uma única resposta correta para a lide proposta. Porém,

reconhece que na prática é difícil, por vezes impossível, encontrar tal resposta,

mas mesmo assim isto não invalida sua afirmativa de que ela existe, embora não

encontrada.

Manuel Atienza110, fazendo uma crítica ao pensamento de Ronald Dworkin,

diz que na verdade para este a distinção entre casos fáceis ou difíceis é

relativizada, pois não é necessário um método para cada espécie de caso e, em

última análise, mesmo os casos difíceis somente admitem uma resposta correta,

o que os transformaria para o juiz Hércules em um caso fácil.

Para o referido autor, a distinção de Ronald Dworkin entre regras e princípios

não pode ser aplicada aos princípios bioéticos porque nenhum deles pode ser

interpretado como simples diretrizes. Ademais Manuel Atienza discorda que os

princípios morais podem ser hierarquizados da maneira como propõe Ronald

Dworkin, embora ressalte que alguma espécie de ordenação deva haver no

processo de aplicação.

Manuel Atienza apresenta uma teoria que serviria como método jurídico para

a resolução dos casos difíceis, especialmente os relacionados à bioética. Tal

método importa na observância de dois passos: a construção de uma taxonomia

que permita enquadrar cada caso dentro de uma determinada categoria, o que

constitui o primeiro esforço argumentativo do tribunal; e a elaboração de uma

série de regras de prioridades que não supõe uma hierarquia estanque entre os

princípios.

O próprio jurista reconhece que seu método ainda leva a um conjunto de

soluções abertas e incompletas, mas isso não significa que acarreta decisões

109 DWORKIN, R., Levando os direitos a sério, 2002, p. 203. 110 ATIENZA, M. Los limites de la interpretación constitucional. De nuevo sobre los

casos trágicos, 1997, p. 11.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 63

arbitrárias ou subjetivas, devendo sempre obedecer a critérios de racionalidade e

coerência. Ele utiliza os ensinamentos os quatro princípios kantianos: princípio

da autonomia, princípio da dignidade, princípio da universalidade ou igualdade e

o princípio da informação. Porém, acredita que somente a aplicação destes

princípios não será suficiente para solucionar casos difíceis e bioéticos e elenca

outros. Como: princípio do paternalismo justificado (que considera lícito a

interferência na vida de outro em determinados casos), princípio do utilitarismo

restringido (admite uma ação que não cause benefícios a uma pessoa se produz

um benefício apreciado para outros, se há o consentimento do afetado e se não

é uma medida degradante), princípio do trato diferenciado (há hipóteses lícitas

de tratamento desigual entre as pessoas) e princípio de segredo (permite ocultar

informações sobre a saúde de um indivíduo em determinadas exceções).

A problemática deste modelo é admitida pelo próprio autor quando afirma

que esta série de princípios ajuda na solução de algumas situações, mas não

permite resolver a complexidade de certos casos difíceis. Por tal razão os

princípios precisam ser concretizados na forma de normas. E é nesta

necessidade que reside a dificuldade dos problemas bioéticos. O desafio é

construir a partir dos princípios um conjunto de pautas específicas que resultem

coerentes e permitam resolver os problemas práticos que não apresentam um

consenso. Por fim, Manuel Atienza afirma que a liberdade de consciência e de

livre escolha de decisões pressupõe uma responsabilidade e uma reflexão sobre

qualquer tema objeto de debate. E somente através desse exercício racional

será atingido o ideal de que as leis correspondam às escolhas de cidadãos

conscientes.

A solução, segundo Manuel Atienza, poderia ter origem em duas vias: a

legislativa e a judicial. A legislativa tem como ponto positivo sua legitimação

decorrente de sua composição democrática, mas acarreta o risco de não suscitar

um consenso entre os legisladores e não alcançarem o nível de concretização,

ou serem por demais específicas não comportando a diversidades de situações

fáticas. A segunda via, e mais adequada para os dilemas bioéticos segundo ele

é a judicial. Seja por meio de um julgador comum ou através da criação de um

comitê de âmbito nacional que funcionaria como segunda instância para os

casos bioéticos.

No âmbito deste estudo, a pretensão restringir-se-á à via judicial. A

discussão não adentrará no papel do Poder Legislativo ou na questão da

legitimidade do Tribunal Constitucional. Apenas serão analisadas as hipóteses

interpretativas que reclamam um posicionamento judicial específico. Neste

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 64

sentido a contribuição de Ronald Dworkin será preciosa, vez que, sua teoria,

através da ponderação dos princípios, fornece um instrumental prático para a

concretização do Direito em casos de conflitos entre valores morais importantes.

4.5. Aspectos da Argumentação Jurídica de Robert Alexy

Robert Alexy segue o pensamento de Ronald Dworkin sobre a existência

de normas e princípios dentro do sistema jurídico, porém acrescenta o elemento

procedimento. Pretende ele elaborar uma teoria analítica e descritiva da

argumentação jurídica. Difere de Ronald Dworkin, pois entende que as regras

procedimentais não garantem a obtenção de uma única resposta correta, e sim

que os vários participantes do discurso jurídico cheguem a soluções racionais,

embora às vezes possam ser incompatíveis entre si.

O fenômeno denominado de Colisão de Direitos Fundamentais por

Robert Alexy111 ocorre quando o exercício de um direito fundamental gera

conseqüências negativas sobre direitos fundamentais de outros cidadãos,

acarretando assim, um conflito de direitos.

Os direitos fundamentais ou constitucionais são direitos abstratos, e

positivados na maioria dos textos constitucionais por meio de princípios.

Considera ele que os princípios são mandados de otimização que se

caracterizam por sua aplicação em graus distintos de acordo com o caso

concreto, buscando sempre sua realização na maior medida possível, fática e

juridicamente.

A listagem dos direitos fundamentais pelo ordenamento constitucional é

apenas a primeira fase de sua concretização. Após deve haver a determinação

do peso relativo a cada direito considerado prima facie, ou seja, o

estabelecimento do papel dos direitos dentro da razão jurídica. Segundo Robert

Alexy os princípios devem ser promovidos pela prática jurídica e

institucionalizados pela decisão política, sendo a força obrigatória dos direitos

fundamentais controlada pela Corte Constitucional.

Para Robert Alexy a solução da colisão destes direitos pode ser entendida

segundo dois entendimentos sobre o sistema jurídico: a teoria das regras e a

teoria dos princípios.

111 ALEXY, R. Colisão de Direitos Fundamentais e Realização de Direitos

fundamentais no Estado de Direito Democrático, 1999.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 65

A teoria das regras estabelece que pelo menos um dos direitos deve ser

declarado inválido, que uma das normas deve ser declarada não-aplicável ou

que ambas devem ser descartadas. A aplicação desse tipo de norma ocorre com

a subsunção. Contudo, a dificuldade de adoção desta teoria é a de conciliar a

invalidação de um princípio constitucional sem que ocorra uma invalidação do

próprio texto constitucional, ou seja, preterindo um princípio a outro se torna

difícil a vinculação ou obrigatoriedade da constituição.

A teoria adotada pelo autor é a teoria dos princípios, que se baseia na

seguinte premissa: quanto mais intensa é uma intervenção em um direito

fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. O ponto

positivo desta teoria é o fato de conciliar a vinculação que deve ter a regra

constitucional à flexibilização do mesmo texto, possibilitando que um princípio

não seja efetivado em determinado momento sem que isto represente a sua

invalidez. Esta teoria possibilita que dois direitos ou princípios aparentemente

conflitantes permaneçam no mesmo ordenamento sem que ocorra a invalidade

de um deles, pois aplica a ponderação. Pondera-se, com base nos elementos

disponíveis no caso prático, qual direito ou princípio conduz à solução da colisão,

devendo prevalecer o que importa na menor interferência na liberdade ou no

direito fundamental do outro.

A ponderação pode ser conceituada como técnica jurídica de solução de

conflitos normativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão,

insuperáveis pelas formas de hermenêutica tradicionais. 112

Toda colisão entre princípios pode ser expressa como uma colisão entre

valores. Isto demonstra que o problema de prioridade entre princípios

corresponde a um problema de hierarquia entre valores e que a inclusão de

direitos fundamentais no sistema jurídico conduz à conexão entre Direito e

Moral113. E justamente por envolver valores a resposta correta para a

ponderação entre os princípios conflitantes não é clara, não devendo a teoria do

discurso ser entendida como um instrumental capaz de determinar de forma

exata o peso de cada direito, mas mostra os argumentos racionais possíveis

112 BARCELLOS, A., Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005. p.

23. A autora citada propõe três etapas para a técnica da ponderação: a primeira tem como finalidade a identificação dos enunciados normativos em tensão, a segunda etapa os fatos relevantes o caso concreto e por fim, a terceira lida com a decisão que atribuirá os pesos devidos aos diversos elementos normativos pertinentes ao caso, relacionando fatos e normas.

113 ALEXY, R., Derechos, Razonamiento Jurídico y Discurso Racional, 1993, p. 49

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 66

acerca dos direitos. Para tanto Robert Alexy propõe que a teoria dos princípios

necessita de um complemento através da teoria da argumentação jurídica.

A racionalidade da argumentação jurídica não busca a correta resposta ao

conflito, mas sim se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis

de controle racional. A noção de única resposta correta faz referência a um

consenso o que é pouco provável quando se trata de princípios. A teoria da

argumentação tem como ponto fundamental a rejeição da lógica formal dedutiva

como suficiente para o processo jurídico decisório, engloba a tópica de Viehweg,

a nova retórica de Perelman e a lógica formal de Toulmin114. Este trabalho lidará

de forma mais específica com a teoria argumentativa procedimental de Robert

Alexy.

O processo argumentativo inicia-se de forma semelhante ao processo

subsuntivo. Primeiro o intérprete deve analisar o ordenamento jurídico e verificar

quais as normas jurídicas importantes no caso concreto e após faz a interação

entre os fatos e as normas. Porém, após essa etapa a argumentação propõe um

terceiro passo – a atribuição de peso às normas encontradas e a gradação de

intensidade em que a solução deverá ser aplicada. 115

Nesta etapa importante será o estudo do princípio da proporcionalidade

que é entendido hoje como um dos melhores parâmetros no processo

argumentativo. O princípio da proporcionalidade tem guarida na doutrina jurídica

durante o período de crise do sistema legalista116. O ordenamento jurídico inicia

114 Manuel Atienza elabora uma síntese do pensamentos destes três autores.

Viehweg caracteriza a tópica por três elementos: 1) técnica do pensamento problemático; 2) noção de topos ou lugar-comum; 3) busca e exame de premissas. Os tópicos devem ser vistos como premissas compartilhadas que têm uma presunção de plausibilidade ou que, pelo menos, impõem a carga da argumentação a quem os considerada. (p. 49). A idéia do plausível também perpassa os argumentos de Perelman. O raciocínio jurídico em Perelman deve atentar para a conciliação dos valores de eqüidade e segurança jurídica, a procura de uma solução que seja de acordo com a lei, mas também que observe os parâmetros eqüitativos, razoáveis e aceitáveis (p. 77). Toulmin considera a argumentação como atividade total de propor pretenções com o intuito de criar razões que serão criticadas e defendidas (p. 95). ATIENZA, M., As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2003.

115 Neste sentido o ensinamento de Ana Paula de Barcellos que propõe ainda dois critérios gerais para a aplicação da ponderação: a preferência das regras sobre os princípios constitucionais e a preferência das regras que tutelam a dignidade humana e os direitos fundamentais em detrimento das demais. BARCELLOS, A. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional, 2003. p. 57-58, 70.

116 Pode ser feito um paralelo entre a origem do princípio da proporcionalidade e a Bioética, ambas surgem em um contexto de questionamento da moral vigente e do papel das ciência no comportamento humano. Enquanto o primeiro procura fornecer uma legtimidade para além da legalidade, a segunda busca limites nos valores para as descobertas e experimentos científicos.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 67

um processo evolutivo onde a mera previsão legal de um determinado

comportamento não o torna legítimo. 117

A proporcionalidade traz em si a noção de ponderação entre valores, a

aplicação de um determinado princípio deve ser proporcional à inviabilidade do

outro princípio. Willis Santiago Guerra Filho define o princípio da

proporcionalidade como “mandamento de otimização, do respeito máximo a todo

direito fundamental em situação de conflito com outro(s), na medida do jurídico e

faticamente possível.” 118

Porém, como ensina Humberto Ávila, o princípio da proporcionalidade não

deve ser confundido com a justa proporção, ponderação de bens, concordância

prática, proibição de excessos ou razoabilidade. O princípio da proporcionalidade

atenta para três exames: 1) o da adequação: exige uma relação entre fim e

meio; 2) necessidade: observa se existe algum meio alternativo àquele

escolhido; e 3) proporcionalidade em sentido estrito: comparação entre a

importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos

fundamentais. 119

Na etapa final do processo argumentativo será necessária a utilização

deste princípio. Os valores envolvidos em um caso difícil serão ponderados e

será analisada a medida de aplicação do direito fundamental que no caso em

voga deve prevalecer.

Robert Alexy propõe algumas regras procedimentais para verificar a

racionalidade da argumentação jurídica120. Dentre elas estão as regras

fundamentais, quais sejam: nenhum falante pode contradizer-se; todo falante só

pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita; todo falante que aplique um

predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplica F também a qualquer

117 Larry Kohlberg desenvolveu o modelo de avaliação do desenvolvimento do

julgamento moral apoiado no estruturalismo de Piaget, descrevendo e demonstrando que os indivíduos constroem a consciência moral segundo uma seqüência que se inicia no período pré-convencional e culmina no período pós-convencional No nível pré-convencional a consciência moral é direcionada por noções de punição e hedonismo instrumental relativista. No estágio convencional a consciência moral do indivíduo é orientada para a lei e para a ordem. E por fim, no último estágio, o pós-convencional, a consciência moral supere à noção de normas legais chegando aos princípios universais de consciência, no qual o indivíduo é capaz de desobedecer uma lei por considerá-la injusta, arcando com as conseqüências de seu ato. KOHLBERG, L., Moral stages and moralization: the cognitive developmental approach, 1976.

118 Guerra Filho, Willis Santiago. Sobre o princípio da proporcionalidade, 2003. p.245.

119 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2003. p. 114-116.

120 ALEXY,R., Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica, 2005. p. 283.

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INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 68

objeto igual a A em todos os aspectos relevantes; todo falante só pode afirmar

os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as

situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes, e;

diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes

significados121.

A temática discutida neste trabalho enquadra-se perfeitamente nesta

perspectiva procedimental, à medida que, o aborto, qualquer que seja sua

motivação, desperta argumentos quase inconciliáveis sendo difícil a menção a

qualquer tipo de consenso, ou uma única resposta correta. Porém, a submissão

da legalidade da antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia ao

Poder Judiciário requer ao menos uma fundamentação racional da decisão

proferida.

121 A teoria do discurso pretende oferecer um critério, em condições específicas,

capaz de determinar a racionalidade de uma decisão e do processo decisório na Ciência Jurídica. Segundo Robert Alexy não é a produção de segurança o fator característico da racionalidade do Direito, e sim o cumprimento de uma série de condições, critérios ou regras.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 69

5 ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL

5.1.Apresentação do Estudo de Caso

O termo antecipação terapêutica do parto foi proposto pela antropóloga

Débora Diniz em suas diversas obras sobre o tema. Segundo a autora a

substituição do termo aborto pela expressão antecipação terapêutica do parto

retira da gestante o peso de séculos de preconceitos e dogmas religiosos. A

situação vivenciada por tais mulheres é por demais específica para ser

enquadrada juntamente com os outros casos de interrupção da gestação.

Embora esta redefinição seja objeto de críticas, no âmbito deste trabalho, será

adotada esta nomenclatura como opção metodológica visando diferenciar esta

hipótese das demais espécies de procedimentos médicos com fim de

interromper a gravidez.

O Brasil é o quarto país do mundo em ocorrência da anencefalia fetal de

acordo com dados disponibilizados pela Organização Mundial de Saúde,

estando atrás somente do México, Chile e Paraguai. No total de 10 mil

gestações levadas a termo em nosso país, cerca de nove apresentam essa má-

formação do feto. Essa taxa é mais de cinqüenta vezes maior que a observada

em diversos países europeus. Tal proporção pode ter como fundamento dois

fatores: a carência nutricional, principalmente de vitaminas do complexo B, e a

proibição legal da interrupção da gravidez.

A repercussão do tema na mídia nacional é extrema. Diversos segmentos

sociais expressam opiniões e sentimentos a respeito da interrupção da gestação

nestes casos. A falta de precisão dos termos e a ignorância também são

recorrentes na discussão. Contudo, a evidência de assunto de tamanha

importância nos meios de comunicação é tida como válida e útil, desde que o

conflito de posições seja exposto em um debate racional e aberto a todos. Um

Estado Laico como o Brasil deve preferir a utilização de argumentos não

religiosos, embora na prática tal não ocorra e ainda vemos a influência

preponderante das posições religiosas.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 70

À guisa de ilustração, são trazidas as seguintes reportagens: “O parto da

Justiça” - Revista Época de 13/09/1999; “Autorização para aborto dura até 1

mês” – Folhaonline em 27/02/2005; “Conselho adia debate sobre aborto de

anencéfalo a pedido de Zilda Arns” – Folhaonline em 17/02/2004; “OAB é a

favor de interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal”- Folhaonline

em 17/08/2004; “Saiba mais sobre anencefalia”- Folhaonline em 13/07/2004;

“O direito ao aborto”- GLOBO em 06/03/2004; “Liminar concedida pelo

Supremo Tribunal Federal”- Agência UNB em 23/07/2004; “Entrevista:

Aborto de fetos / bebês anencéfalos”- Notícias Dia-a-Dia em 23/07/2004;

“Brasil é o quarto país em nascimento de fetos com anencefalia, revela

OMS”- AOLNotícias em 19/08/2004; “Juiz de Goiânia autoriza aborto de feto

anencéfalo”- AOLNotícias em 17/11/2004; “Médico Com Causa” – Revista Isto

É, número 183 de 9/02/2005; “Conselho apóia interrupção da gravidez em

casos de anencefalia fetal”- Folhaonline em 10/03/2005; “Mulher consegue

na Justiça aborto de feto anencéfalo” – Agência Estado de 10/05/2005; “O

direito irrefutável ao aborto” – Jornal da Ciência de 28/10/2005;

Representantes de diversas crenças religiosas, algumas delas destacadas

no livro Anencefalia: o pensamento brasileiro em sua pluralidade, opinam a

respeito da moralidade da interrupção do parto.

O primeiro credo exposto, e certamente o mais atuante no tocante ao

aborto, é o catolicismo. Segundo Dom Odilo Pedro Scherer122:

“Toda agressão contra a vida humana, ainda mais a vida frágil e inocente, por qualquer motivo, ainda que seja em nome da ciência, ou do conforto de outras pessoas, não faz honra à humanidade e é sinal de decadência da ética e retrocesso na civilização. A CNBB espera que a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL esteja orientada pelo respeito pleno à frágil vida do feto / bebê anencéfalo.”

O Rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita

Paulista, esclarece que123:

“A meu ver, a antecipação do parto em caso de anencefalia deve ser permitida. (...). O que o judaísmo pode oferecer a estas mulheres é apoio humano e moral. Como rabino, eu faria tudo ao meu alcance para que a mulher possa tomar essa decisão sem o mínimo sentimento de culpa. Muito pelo contrário, eu acho que a decisão da mãe tem que ser apoiada.”

122 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 46. 123 Ibid., p. 47.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 71

O Bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Silva, destaca a

posição de sua denominação religiosa124:

“A posição da Igreja Universal é sempre a favor da qualidade de vida e do bem-estar das pessoas. Nós entendemos que há casos em que a interrupção da gravidez é a atitude certa a ser tomada. A nossa fé tem que ser conduzida com inteligência, caso contrário cairemos no fanatismo. Temos que preservar a vida da mãe, já que seria inútil dar à luz uma criança que não tem chances de vida.” Lairton de Oxum é representante da Associação Brasileira de Umbanda,

Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios diz que125:

“A minha opinião é de que não deve haver a antecipação do parto porque como espiritualista acredito na reencarnação. (...) Mas a opinião de nossa associação é favorável que o Supremo Tribunal Federal conceda essa liminar126, pois a decisão depende das próprias grávidas. (...) Mas nós damos o conforto espiritual através de orações, de preces, porque essa criança é um espírito, então como espírito nós temos que olhar por este lado.”

Lama Tartchin praticante budista acredita que127: “De acordo com os ensinos budistas tibetanos, para que um ser venha a ter uma completa existência são necessários 3 fatores: espermatozóide, óvulo e mente. Se um corpo veio a se formar sem um órgão, impossibilitando que este venha a ter uma existência independente (não morrer após o parto), é porque houve a falta de um ou mais dos 3 fatores. No budismo não há pecado. Há carma, isto é, lei da causa e efeito. A gestante que será responsável pelo efeito de seus atos e a decisão de seus atos diz respeito apenas a ela.” Por fim, destaca-se a posição da Federação Espírita Brasileira, através de

seu diretor Geraldo Campetti128: “(...) doutrina espírita em relação ao aborto é a de que não somos contra o aborto, mas a favor do não-aborto. Entendemos que o ser humano é, também, espírito. Nesse sentido, não poderíamos ser favoráveis a um aborto provocado, mesmo com a conotação terapêutica no caso da anencefalia. (...). Nossa opinião a respeito da antecipação do parto também é visto como um tipo de aborto, e é um aborto provocado e, no nosso entendimento, não deve se realizado.”

124 Ibid., p. 48. 125 Ibid., p. 49. 126 À época dessa entrevista ainda não tinha sido concedida a liminar pelo Ministro

Marco Aurélio que foi posteriormente revogada pelo plenário. 127 Ibid., p. 50. 128 Ibid., p. 51.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 72

5.2.Aporte Médico

A pretensão deste estudo não é a análise técnica sobre a anencefalia fetal.

Porém, o estudo de caso envolve conceitos e determinações interdisciplinares.

Assim sendo, este capítulo objetiva apresentar, mesmo que de forma breve,

aspectos sobre a definição e o diagnóstico dessa anomalia, objetivando analisar

a certeza científica de tal procedimento.

Durante séculos, em diversas culturas, a arte de curar era considerada

uma prática mágico-religiosa. Os responsáveis pelo tratamento de doenças

eram, em sua grande maioria, pajés e sacerdotes, e o instrumento básico para a

cura era a fé do doente. No início da era cristã a prática da medicina em Roma e

nas grandes cidades da época era feita quase que exclusivamente por médicos

gregos. Adicionalmente eram numerosos os charlatães que prescreviam ervas,

amuletos ou encantamentos. Na Roma Antiga a medicina era considerada uma

profissão indigna para um cidadão romano.

Hipócrates, na Antiga Grécia, inicia uma visão empírica da medicina, em

que algumas doenças passaram a ter origens naturais. Ele, considerado pai da

medicina, foi o primeiro a empregar o termo diagnóstico, que significa

discernimento, formada do prefixo dia - através de e gnosis - conhecimento.

Diagnóstico, portanto, é discernir pelo conhecimento. A instrumentalização da

ciência médica teve início no século XIX com a invenção do estetoscópio por

Laennec em 1816. Porém, somente no final do século passado, a medicina

adquiriu um caráter científico, onde há uma causa para a doença e existe um

meio eficaz de combatê-la. Louis Pauster é considerado o precursor dessa fase

científica da medicina, considerada a primeira revolução dessa área de

conhecimento.

A tecnologia médica se desenvolveu no decorrer do século XX, com o

diagnóstico por imagens, endoscopia, métodos gráficos, exames de laboratório e

provas funcionais. A influência da corrente de pensamento denominada de

positivismo na medicina acarretou a busca maior pela certeza científica através

do aperfeiçoamento do material humano e instrumental envolvidos. O positivismo

defende que só a ciência pode satisfazer a necessidade de conhecimento, visto

que, só ela parte dos fatos e aos fatos se submete para confirmar suas

verdades, tornando possível a obtenção de noções absolutas. Nesse contexto,

surge a chamada Medicina Baseada em Evidência (MBE). De acordo com a

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conceituação proposta por David Sackett129 a MBE é a integração das melhores

evidências de pesquisa com a habilidade clínica e a preferência do paciente e

envolve cinco fatores: desenvolvimento de estratégias para identificar e analisar

as evidências; criação de revisões sistemáticas e sumários concisos dos efeitos

da assistência à saúde; criação de revistas dedicadas à MBE de publicação

secundária; criação de sistemas de informação que nos trazem os avanços em

segundos e identificação e aplicação de estratégias efetivas para o aprendizado

durante toda a vida e para melhora de nosso desempenho clínico.

Hodiernamente, estamos vivendo uma nova revolução representada por

procedimentos como a engenharia genética e o estudo da bioquímica cerebral e

novos métodos de diagnóstico e tratamento.

O diagnóstico pré-natal de anomalias fetais foi um avanço na medicina

propagado a partir da década de 50, mas, difundida no Brasil no final dos anos

70. Nos últimos anos desenvolveu-se uma nova área multidisciplinar de atuação,

denominada Medicina Fetal, que incorporou às técnicas de diagnóstico as

possibilidades da terapêutica intra-uterina.

O fechamento do tubo neural ocorre em 20 a 28 dias após a concepção.

Não ocorrendo, o tecido neural fica exposto e há rupturas secundárias na brida

amniótica. Os denominados defeitos de fechamento do tubo neural ocorrem em

conseqüência de anormalidades de formação fetal em fases precoces da

gestação. As espécies de defeitos de fechamento do tubo neural são:

anencefalia, inincefalia, espinha bífida e encefalocese.

A anencefalia pode ser conceituada como sendo: “Um dos defeitos do tubo neural caracterizado pela ausência completa ou parcial do cérebro, das meninges, do crânio e da pele. Pode ser dividida em holocrania e merocrania. A ausência de toda a calota craniana caracteriza a holocrania. Na merocrania, ocorre a ausência parcial da calota craniana com ectopia do encéfalo. (...) Representa uma má-formação letal.” 130

A anencefalia é considerada a fase final da acrania, em conseqüência da

ruptura do tecido cerebral anormal, não protegido pela calvária.

129 SACKETT, D., Medicina baseada em evidências: prática e ensino, 2003. 130 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003. p. 173.

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Figura 1. Foto de recém nascido anencéfalo131

Roger Sanders traz em sua obra a epidemologia da doença. Segundo ele a

incidência da anencefalia é geográfica e depende da população. E a

hereditariedade é multifatorial dependendo de implicações de fatores genéticos e

ambientais. A incidência é variável na dependência da região e outros fatores

como a raça, porém ocorre de 0,1 a 1% dos nascituros.

Antonio Moron estabelece três fases na ocorrência da anencefalia.

Primeiro, há um defeito no fechamento do neuróporo rostral. A seguir, ocorre a

exencefalia, onde há a exteriorização do cérebro desenvolvido para o meio

amniótico, e, finalmente, resulta na destruição do tecido cerebral.

O diagnóstico precoce pode ser realizado através de sonda transvaginal a

partir da 11a semana, período no qual se observa a ausência da calota craniana

com exteriorização de tecido cerebral. A partir da 15a semana os aspectos

característicos da anencefalia são diagnosticados com precisão por meio da

ultra-sonografia. O tecido cerebral é gradualmente eliminado pelo contato com o

líquido amniótico e desaparece totalmente na 17a semana, restando apenas as

veias intracranianas. O exame ultrassonográfico apresenta uma alta precisão

diagnóstica para a detecção de acrania durante o segundo semestre com taxa

diagnóstica de 100%.132

131 Foto obtida no documentário Doutor, Eu não sabia, produzido pela ANIS. 132 Ressalte-se que obviamente tal taxa de precisão depende da qualificação do

profissional que realizará o exame. Por isso, para a determinação da ocorrência desta anomalia os exames são confirmados por outra equipe médica através de novo exame de ultra-sonografia. A referida taxa de precisão é proposta por NYBERG, D., Diagnostyc imaging of fetal anomalies, 2003. p.294.

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Figura 2. Ultrassonografia de feto anencéfalo133

Figura 3. Ultrassonografia em três dimensões de feto anencéfalo134

Os autores estudados ressaltam o chamado diagnóstico diferencial. São

exemplos: encefalocele grande – o crânio será visível através de um exame

minucioso, outras malformações estão associadas como a inincefalia e

hidrocefalia; microcefalia – o crânio é pequeno. Essas anomalias não importam

necessariamente inviabilidade fetal e por tal razão diferem do estudo de caso

proposto. 135

133 Ultrassonografia fornecida pelo IFF. 134 Imagem obtida no endereço eletrônico: www.thefethus.org em 02.01.2006 135 Este dado é importante à medida que reportagens, muitas das vezes sem o

devido embasamento científico, afirmam a sobrevivência por meses e até mesmo anos, igualando anomalias diversas.

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Pesquisas recentes procuram determinar a sobrevida de fetos anencéfalos.

Em uma revisão de 181 recém-natos portadores dessa anomalia apenas 40%

sobreviveram até 24 horas e 5 % permaneceram vivos por até uma semana.

Outro estudo de 205 infantes anencéfalos, pesando mais de 2,5 quilos mostrou

que apenas 9% tiveram uma sobrevida de uma semana. 136

Diversos estudos buscam demonstrar também a alta periculosidade da

gravidez à vida da gestante. O médico obstetra Thomaz Gollop137 ressalta dois

fatores que agravam os riscos maternos: 1) possibilidade de polidrâmnio, ou

seja, excesso de líquido amniótico que causa maior distensão do útero,

possibilidade de atonia após o parto, hemorragia e, no esvaziamento do excesso

do líquido, a possibilidade de deslocamento prematuro de placenta, que é um

acidente obstétrico considerado grave. O segundo fator é que por não terem o

pólo cefálico os fetos anencéfalos, podem iniciar a expulsão antes da dilatação

completa do colo do útero e ter a chamada distócia do ombro, porque nesses

fetos, com freqüência, o ombro é grande ou maior que a média e pode haver um

acidente obstétrico na expulsão do feto. Segundo ele a distócia do ombro

acontece em 5%, o excesso de líquido em 50%138 e a atonia do útero em 10% a

15% dos casos.

O médico Jorge Andalaft139, coordenador da comissão Violência Sexual e

Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de

Ginecologia e Obstetrícia, observa um aumento de 22% no parto de fetos

anencéfalos. Esse acréscimo decorre da própria deformidade que impossibilita o

encaixe adequado do feto devido à ausência da completa formação da caixa

craniana. Os fetos normalmente encontram-se na posição sentada, atravessada

o que acarrete um risco para a vida da gestante no momento do parto e a

demora excessiva desse, entre 14 e 16 horas, enquanto os partos considerados

normais duram aproximadamente 6 horas.

A ANIS editou um documentário chamado Doutor Eu Não Sabia com o

referido médico destacando uma experiência por este vivida onde um de seus

alunos residentes, orgulhosamente, relata que convenceu uma gestante de feto

anencéfalo a não interromper a gravidez. O Dr. Jorge inicia então o relato de

136 MORON, A., Medicina fetal na prática obstétrica, 2003, p. 296. 137 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 27-

28. 138 A geneticista Dafne Horovitz apresenta uma taxa de 75% de polidramnia e

ainda apresenta outro fator de risco, qual seja, a hipertensão materna aumentada nessas gestações.

139 ANIS. Anencefalia. O pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004. p. 31.

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como são os procedimentos de pré-natal e as complicações que podem ocorrer

durante a gestação e durante o parto. O obstetra elenca a ocorrência de

polidrâmnio, hipertensão que pode acarretar desmaios e convulsões, alto

número de contrações que pode levar a uma hemorragia irremediável

denominada de atonia uterina, entre outros contratempos médicos. Além disso, o

documentário atenta para o fato de que nascido o feto, não importando a

duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e

enterrado. Caso a família não possua recursos financeiros para arcar com uma

sepultura privada o caminho a ser percorrido é ainda mais vexatório. O pai ou

algum parente deverá comparecer a uma delegacia de polícia, registrar um

Boletim de Ocorrência solicitando o serviço de verificação de óbito para que o

enterro ocorra através dos serviços públicos. Feito isso, a família acompanhará

obrigatoriamente a retirada do corpo do feto do hospital até o lugar de seu

sepultamento, lembrando que a mãe estará impossibilitada de participar do

enterro, pois ainda estará internada em recuperação pós-natal. A recuperação

dessa mulher é oura fase traumática à medida que ficará na enfermaria junto de

outras mulheres que deram à luz e estão felizes e acompanhadas de seus filhos.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem proferido manifestações sobre

o tema. Seja através de Resoluções ou fornecendo pareceres o órgão expressa

de forma clara a incontroversa quanto à inviabilidade da vida extra-uterina dos

fetos que apresentam anencefalia.

A Resolução nº 1.752/04 do CFM datada de 8 de setembro de 2004 prevê

a autorização ética do uso de órgãos ou tecidos de anencéfalos para a

realização de transplantes. Nas considerações inicias do referido texto é dito

que: os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios

cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas

pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia,

tornando-os inviáveis para transplantes; que para os anencéfalos, por sua

inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e

desnecessários os critérios de morte encefálica; e que a Resolução CFM nº

1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência

de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado

de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade

de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro. O artigo 1º da Resolução

diz que uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá

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realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu

nascimento.

Diversos pareceres foram emitidos pelos Conselhos Regionais quanto ao

tema, dentre eles:

PROCESSO CONSULTA Nº 07/2000 CRM-PB, protocolado em 15/05/2000 ASSUNTO: Solicita parecer sobre a legalidade ética da interrupção de gestação de feto de 30 semanas (em 14/04/2000) por provavelmente apresentar má-formação congênita chamada de anencefalia.

EMENTA: O artigo 128 do Código Penal, em vigor, nos seus incisos I e II, permite a realização de abortamento para salvar a vida da gestante e nos casos de estupro. Em decorrência, o artigo 42 do Código de Ética Médica propugna a sua obediência. Com a evolução do armamentário tecnológico médico é possível, com uma boa margem de acerto, diagnosticar doenças na vida intra-uterina, algumas reconhecidamente incompatíveis com a vida humana. A anencefalia é um exemplo clássico. Independente do aspecto moral, ético ou legal, dois parâmetros são essenciais: termo de consentimento da gestante e/ou do pai e a certeza diagnóstica mediante a confirmação do diagnóstico por pelo menos duas ultra-sonografias. Nestes casos, o médico só deve realizar a interrupção da gestação em estrito cumprimento à determinação judicial.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia

(FERASGO) emitiu parecer favorável a respeito do tema:

“Do ponto de vista dos direitos sexuais e reprodutivos, buscando não restringir a autonomia das mulheres, somos favoráveis à livre decisão pela antecipação do parto na anencefalia. Do ponto de vista clínico e obstétrico há evidências muito claras de que a manutenção da gestação pode elevar o risco de morbi-mortalidade materna, justificando-se, deste modo, a livre decisão de médicos e pacientes pela antecipação do parto.” 140

5.3.Aporte Jurídico

No âmbito jurídico, ainda em 1996, segundo pesquisa realizada por Gollop,

foram encontrados cerca de trezentos e cinqüenta alvarás autorizando a

antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos, sendo que o primeiro

datado de 1991, da cidade de Rio Verde, no estado de Mato Grosso.

140 Texto disponibilizado no site da FEBRASGO sob o título Anencefalia – Posição

da FEBRASGO, www.febrasgo.org.br acesso em 08/11/2005.

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Dois posicionamentos principais podem ser observados no meio jurídico a

respeito do tema: um proibitivo e outro permissivo.

O primeiro, no mais das vezes de caráter positivista, considera a

antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como uma espécie de

aborto, e como tal, por não estar prevista nas hipóteses de exclusão de

punibilidade deve ser encarada como um crime contra a vida, respondendo

penalmente tanto o médico quanto a gestante que consentiu com o

procedimento. Neste sentido, o entendimento de Maria Helena Diniz em sua

obra sobre biodireito na qual a autora afirma que a antecipação não passa de

uma interrupção seletiva da gravidez, igualando o ato à eugenia.

A eugenia é tema recorrente na discussão sobre a interrupção da gravidez

em caso de anencefalia. Diversos escritores comparam as práticas, alertando

sobre o perigo de que a permissão legal do aborto nesse caso seria permitir a

seleção de seres humanos indesejáveis. Estes autores utilizam uma teoria

denominada de Ladeira Escorregadia, segundo a qual, a permissão de um

determinado comportamento cuja importância é pontual pode levar a uma

aceitação de comportamentos cada vez mais amplos. Esta ferramenta utilizada

principalmente no campo da bioética permite chamar a atenção sobre os

possíveis abusos e aconselhar a prudência.

Especificamente sobre o aborto de fetos anencéfalos Hare acredita

possível que a autorização legal de realização de aborto em casos extremos

como a anencefalia abriria margem para o assassinato de fetos nas demais

gestações, principalmente aqueles portadores de deficiências141.

No artigo Eugenia e Bioética: os limites da ciência face à dignidade

humana o autor tece um breve histórico sobre a eugenia e a necessidade de

regulamentação jurídica em relação a algumas práticas médicas, principalmente

no tocante à reprodução humana. Eduardo Leite remonta à origem da prática

aos gregos que matavam as crianças nascidas com alguma deformidade e ainda

na Babilônia onde a rainha Semiramis determinou a castração dos jovens

defeituosos. Porém, o termo eugenia somente é criado em 1883 por Francis

Galton baseado na teoria de hereditariedade e evolução de Darwin.

Galton propagava a visão de que alguns estão predestinados ao sucesso

devido às suas características genéticas dependentes diretamente da

hereditariedade, enquanto os demais, pelo mesmo motivo, estariam fadados ao

141 HARE, R. Essays on Bioethics, 1993. p.180-181.

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fracasso. O segundo grande impulsionador das teorias eugênicas foi o

descobrimento da ciência genética através de Mendel. As medidas eugênicas,

dotadas agora de “teor científico”, ganharam força em diversos países,

influenciando também suas legislações.

As leis eugênicas visavam dois fatores: a exclusão de pessoas

indesejadas (seja através da restrição à imigração, a internação dos anormais ou

até mesmo pela eutanásia) e a adoção de medidas de procriação (medida

negativa – esterilização ou positiva – encorajamento dos indivíduos sãos a se

reproduzirem). O preconceito que utiliza como mecanismo a eugenia tem como

ápice o Regime Nazista Alemão. Várias práticas de eliminação dos indivíduos

inferiores tinham como fundamento diversos estudos médicos e genéticos e

como legitimação o ordenamento jurídico. As atrocidades são notórias e levaram

ao questionamento sobre o papel e limites da ciência até os dias atuais.

Adrienne Asch, em seu artigo Diagnóstico pré-natal e aborto seletivo142,

aponta para a problemática da legalização do aborto eugênico sem que haja

uma preocupação com a devida informação sobre deficiências oriundas das

doenças genéticas. A autora, portadora de deficiência física, diz que a sociedade

atual em que vivemos é altamente preconceituosa e desinformada a respeito das

capacidades dos deficientes físicos importando na diminuição da dignidade da

pessoa humana desses indivíduos.

A segunda corrente considera que a situação da anencefalia fetal é sui

generis e, portanto, não deve ser enquadrada na proibição legal. Porém, os

argumentos são variados, atacando os diversos elementos do crime143, dentre

eles: a atipicidade da conduta, a inexigibilidade de conduta diversa e a causa de

exclusão da ilicitude.

O promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro analisa aspectos do crime no

estudo de caso proposto144. Quanto à tipicidade o autor considera que a

antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal afasta a tipicidade

da conduta, pois apenas o feto com capacidade fisiológica de ser pessoa pode

configurar como sujeito passivo do crime de aborto. A seguir apresenta a falta de

nexo de causalidade entre a conduta da gestante e a morte do feto, à medida

142 In Perfil das Percepções sobre as Pessoas com Síndrome de Down e do seu

atendimento: Aspectos Qualitativos e Quantitativos. Márcio Ruiz Schiavo.(coord) Brasília: Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, 1999.

143 Segundo Bitencourt o conceito clássico de delito envolve: ação, tipicidade, antijuridicidade e cupabilidade. Tratado de direito penal, 2003. pg. 48.

144 RIBEIRO, D., Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal do aborto por anomalia fetal no Brasil, 2004. p. 93-141.

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que, o feto cessa suas atividades biológicas em razão da patologia prévia e não

do ato cirúrgico interventivo da gestação. E por fim, o estado de necessidade é

outro aspecto penal estudado pelo promotor. Segundo Diaulas a continuidade da

gestação torna-se um risco desnecessário à saúde da mulher, pois há de um

lado na gestação anencefálica um aumento dos riscos maternos e a inviabilidade

da vida fetal do outro lado.

Paulo César Busato é um dos autores a considerar a conduta da

antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia como atípica. Em seu

artigo Tipicidade material, aborto e anencefalia o doutor em Direito Penal

considera que no caso em voga em razão da inviabilidade de vida extra-uterina

não há o bem jurídico vida tutelado pelo direito e, por tal razão, não há que se

falar em afronta aos dispositivos penais previstos no capítulo dos crimes dolosos

contra a vida. Assim sendo, inexistindo bem jurídico a ser protegido pelo Estado,

a conduta da gestante que interrompe a gestação é atípica, não cabendo

qualquer responsabilidade penal. No mesmo sentido, o entendimento de Adel El

Tasse em seu artigo Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por

atipicidade. 145

Enquanto não ocorrer uma normatização deste caso específico juristas

apresentarão as mais diversas teses interpretativas sobre a licitude da

antecipação terapêutica de parto em caso de fetos anencéfalos.

5.4. O caso no Estado do Rio de Janeiro

5.4.1.Coleta de dados empíricos: Instituto Fernandes Figueira

O Instituto Fernandes Figueira (IFF), estabelecido em 1924, é a unidade

materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Realiza pesquisa, ensino

e assistência no âmbito da saúde da criança, da mulher e do adolescente, sendo

referência em tratamento em diversas doenças de alta complexidade.

Reconhecido nacional e internacionalmente como centro de excelência, o IFF

atua no desenvolvimento tecnológico, extensão, assim como na formação e

capacitação de recursos humanos.

A escolha do instituto decorreu de sua especialização em gestações de

alto risco (inclusive de fetos anencéfalos) e pela alta qualificação de seus

profissionais, sendo este um hospital de referência no Estado do Rio de Janeiro.

145 TASSE, A., Aborto de feto com anencefalia: ausência de crime por atipicidade,

2004, p. 101–113.

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O IFF também possui um curso de especialização em Bioética e Ética

aplicada direcionado para fornecer uma análise interdisciplinar para profissionais

de diversas áreas de conhecimento sobre aspectos relevantes da Bioética. Clara

a preocupação do instituto em agregar os dados cotidianos com a reflexão

filosófica e teórica sobre aspectos da ciência médica.

Atualmente, devido à constante ocorrência de anomalias incompatíveis

com a vida fetal, o IFF elaborou uma rotina de atendimento às gestantes com

patologias fetais cabíveis de interrupção judicial, dentre elas a anencefalia. Tal

documento prescreve sete fases que deverão ser observadas durante o

tratamento pré-natal. Na primeira fase denominada de triagem a paciente

diagnosticada em outra unidade hospitalar ou mesmo dentro do próprio

Fernandes Figueira é encaminhada para o setor de medicina fetal onde será

feita a confirmação diagnóstica. No caso da anencefalia através de novo exame

ultrassonográfico ou reexame do anteriormente realizado. A seguir, já no setor

de medicina fetal, após a confirmação do diagnóstico, a paciente será orientada

sobre a patologia de seu feto e sobre os procedimentos que serão adotados.

Nesta fase também é feito o esclarecimento sobre a possibilidade de interrupção

da gestação. Na terceira fase inicia-se propriamente o pré-natal, com a abertura

de prontuário. Os procedimentos de praxe do pré-natal são realizados, como por

exemplo: a solicitação de exames dos mais diversos (hematologia, imunologia,

etc), marcação de matrícula, encaminhamento ao setor de genética e consultas

pré-natais. Os exames clínicos obstétricos e avaliação laboratorial são feitos na

fase posterior denominada de matrícula, momento este, onde também será

encaminhada a gestante, caso manifeste seu desejo e obtenha judicialmente o

alvará permissivo, à outra rotina para marcação do processo de interrupção da

gestação. Esta nova rotina tem como objetivo marcar a internação para a

realização de cardiocentese e indução do trabalho de parto, predominantemente

as quintas ou segundas-feiras. A seguir a paciente retorna ao setor de medicina

fetal onde será orientada sobre o procedimento, devendo assinar o

consentimento pós-informado específico para a cardiocentese (feticídio), e

autorização de necropsia, que serão anexados ao prontuário juntamente com a

autorização judicial. Conclusivamente, a fase sétima, chamada de puerpério,

preocupa-se com a confirmação do diagnóstico, através da necropsia do feto.

Ainda no tocante ao procedimento adotado, o IFF, através do setor de

genética, possui um documento padrão cujo objetivo é embasar tecnicamente o

pedido judicial para interrupção da gestação. Tal documento, via de regra, é

encaminhado para a defensoria pública e constam dados sobre a precisão do

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 83

diagnóstico e as demais medidas tomadas no sentido de confirmar a anomalia,

além de uma breve consideração sobre a inviabilidade de vida extra-uterina do

feto. Juntamente com este documento é enviada uma cópia do parecer favorável

do Comitê de Ética do IFF emitido pelo responsável pelo setor de genética do

instituto.

O estudo de caso proposto será realizado através dos dados empíricos

que foram colhidos através da técnica de aplicação de formulário padrão cujo

preenchimento teve como origem prontuários, ou seja, dados clínicos de

pacientes que buscaram assistência pré-natal no próprio instituto. O formulário

elaborado visava as seguintes informações:

DADOS SOBRE A INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO:

⇒ Ano de entrada:

⇒ Solicitação da Interrupção : ( ) Sim ( ) Não

⇒ Concessão da autorização: ( ) Sim ( ) Não

⇒ Fundamentação da sentença:

⇒ Tempo entre solicitação e autorização judicial :

⇒ Tempo entre autorização judicial e internação:

⇒ Tempo entre internação e feticídio:

⇒ Tempo entre feticídio e parto:

DADOS DO RECÉM NASCIDO

⇒ Vitabilidade: ( ) Vivo ( ) Nati

⇒ Tempo de vida:

⇒ Confim Diag Neonat. ( ) Sim ( )Não

Algumas considerações são importantes antes da exposição dos

resultados obtidos.

Inicialmente, por ser uma pesquisa envolvendo informações sobre seres

humanos, segundo a Resolução no 196 de 1996 do Conselho Federal de

Medicina, fez-se necessário perpassar um procedimento junto ao Comitê de

Ética do Instituto Fernandes Figueira o qual emitiu o registro de número 052/05

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 84

em 21.11.2005146. Os dados obtidos não importarão em nenhuma forma de

identificação dos pacientes.

O período compreendido foi de 1992 até 2004, sendo a escolha dos

prontuários decorrente do melhor preenchimento dos dados visados. Alguns

prontuários, especialmente os anteriores a 2000, possuem poucas informações

sendo inútil a sua utilização. No total foram analisados 107 (cento e sete)

prontuários.

Os dados obtidos podem ser divididos em duas vertentes. A primeira

refere-se a questões jurídicas da solicitação judicial para a antecipação do parto.

E a segunda quanto à viabilidade fetal e confirmação do diagnóstico após o

parto.

A primeira informação relevante do estudo de caso aponta para a opção da

gestante no tocante ao desejo de interromper a gravidez. Duas experiências

relatadas podem ser tidas como pólos opostos da sensação experimentada pela

gestante quando recebido o diagnóstico da anomalia. A primeira gestante,

embora consciente da brevidade da sobrevida de seu filho, manifesta durante

todo o período gestacional a intenção de levar a gravidez até o seu fim natural,

assegurando inclusive a realização de uma comemoração de nascimento. A

segunda gestante, de forma contrária, emite sua vontade de o quanto antes

realizar o procedimento jurídico e médico para a antecipação do parto, chegando

a mencionar para a equipe médica responsável por seu acompanhamento pré-

natal o seu sofrimento ao se sentir como um “caixão ambulante”.

Os dados a seguir demonstram o equilíbrio na percentagem das mulheres

que optam por solicitar a interrupção da gestação. Apenas dois números

percentuais a mais dos casais, mesmo informados sobre a possibilidade da

obtenção de uma permissão legal, preferem aguardar o final natural da gravidez.

O gráfico a seguir demonstra o que foi supra mencionado.

146 Íntegra do documento m anexo (anexo2).

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 85

Figura 4. Solicitação judicial para interrupção da gestação

Ademais, do total de 55 (cinqüenta e cinco) solicitações de alvarás

judiciais, 9 (nove) desistiram da interrupção em alguma fase do pré-natal,

mesmo após obterem a autorização do Poder Judiciário.

Outro dado obtido com a pesquisa empírica demonstra a posição

majoritária do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro quanto ao estudo

de caso proposto. Somente duas solicitações foram negadas, enquanto que 96%

das decisões foram proferidas no sentido de permitir a antecipação terapêutica

do parto.

AUTORIZAÇÃO JUDICIAL

SIM96%

NÃO4%

Figura 5. Concessão da autorização judicial

Solicitação da Interrupção da gestação

não 49% sim

51%

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 86

Esse dado é essencial à medida que representa dois fatores importantes

para o Direito. Primeiramente, que já há um posicionamento jurisprudencial

majoritário a respeito do tema. Embora as fundamentações utilizadas pelos

julgadores não sejam unânimes, quase a totalidade deles considera lícita a

antecipação do parto em caso de anencefalia fetal. E segundo, o tratamento

desigual fornecido a duas gestantes que manifestaram seu desejo de

interromper a gravidez, mas obtiveram uma resposta negativa por parte do

Estado. Tal fato demonstra a insegurança ainda existente decorrente da falta de

normatização a respeito do tema, deixando a critério do julgador a interpretação

dos valores envolvidos.

Outro fator relevante foi a inobservância pelo IFF de um procedimento

interno rígido quanto aos documentos jurídicos anexados aos prontuários. A falta

de um padrão a ser seguido acarreta a inexistência inclusive do próprio alvará

autorizatório do procedimento de antecipação do parto. O gráfico a seguir

demonstra os documentos encontrados nos prontuários.

DOCUMENTOS JURÍDICOS

46%

40%

2%12%

só alvará

alvará e decisão

não há sequer o alvará, somente sendo anotado no prontuárioque a gestante portava a autorização judicial. só acórdão negativo

Figura 6. Documentos jurídicos constantes do prontuário médico

Na grande parte dos casos somente é anexado o alvará judicial. Em 40%

dos casos, relacionados aos dois últimos anos, há além do alvará a decisão

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 87

proferida, tais decisões demonstram a variedade de teses jurídicas utilizadas

pelos juízes para conceder a autorização.

Nas decisões analisadas, 24 (vinte e quatro) no total, alguns argumentos

foram utilizados como base jurídica para a concessão do alvará conforme

enunciado abaixo:

1) Processo nº 2003.206.000364-1 - A evolução tecnológica tornou

possível detectar com absoluta certeza anomalias que tornam

inviáveis a vida extra-uterina. Cita Luiz de Asúa; impossibilidade

absoluta da vida, e por tal razão, a tutela penal não merece ser

exercida. Sacrifícios físicos e psicológicos maternos acarretam

riscos para a saúde da mãe. Interpretação analógica do artigo

128, I Código Penal como fundamento legal para a permissão da

intervenção cirúrgica.

2) Processo nº 2003.067.1128-4 - O Legislador não se ocupou de

regular a hipótese. Não pode no entanto o juízo, sob a alegação

de inexistência de regra específica sobre o tema, negar a

prestação jurisdicional. Há casos nos quais o legislador se

mantém omisso não fazendo qualquer opção, cabe ao intérprete,

após verificar a efetiva existência do conflito, ponderar qual

desses direitos deve prevalecer. No caso em voga de um lado há

o direito à vida do outro o direito à liberdade e à dignidade da

pessoa humana. O direito à vida é fundamental, mas não

absoluto. De fato, ao autorizar o aborto na hipótese de gravidez

resultante de estupro, o legislador sinaliza que a afetividade

entre gestante e feto é prevalecente ao direito à vida. Jamais

poderá a requerente desenvolver qualquer afeto por um ser que

evoluirá necessariamente para êxito letal. No entanto, no caso

dos autos não se cogita nem mesmo colisão de direito

fundamental. Cita a lei 9434/97 - morte encefálica. Logo, não

havendo vida, mas mera proliferação de células, não há que se

cogitar de direito fundamental à vida, tendo a requerente o direito

fundamental à liberdade e à saúde de retirada de corpo estranho

que tanto sofrimento gera.

3) Processo nº 2003.078.00030 - Decisão de segunda instância, 1ª

instância indeferiu. Fundamentos: complicações na gestação;

conduta atípica pois não atinge nenhum bem jurídico penalmente

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 88

tutelado. E por se tratar de liminar ressalta que estão presentes o

fumus boni iuris e periculum in mora.

4) Processo nº 2004.001.008443-1 - Decisão constante do

prontuário muito sucinta. Autorização da interrupção utilizando

como fundamento os elementos de convicção constantes das

provas dos autos, mormente os pareceres médicos e

manifestação favorável da curadoria especial e do Parquet.

5) Processo nº 2004.001.025612-6 – Utiliza tripla fundamentação:

não é figura típica de aborto por impossibilidade de sobrevida do

feto. Conduta não punível. Em segundo, há ausência de ilicitude

por ser aborto necessário pela saúde, vida e seqüelas

psicológicas impostas à gestante. E em terceiro, por

inexigibilidade de conduta diversa. Tal sentença aparece de

forma idêntica em outros dois processos de nº 2003.001.069344-5

e 2002.001.120804-4.

6) Processo nº 2003.029.046333-1 - Embora a situação não

encontre amparo em nossa legislação penal, sendo a conduta

tipificada em tese, a jurisprudência já vem se manifestando pela

possibilidade de se interromper a gravidez em casos extremos

como o dos autos.

7) Processo nº 2003.001.057625-8 - Em que pese a legislação

vigente incriminar o aborto com o consentimento da gestante,

ressalvados os casos de aborto necessário e quando a gravidez

for resultante de estupro, outras hipóteses não contempladas na

lei estão a exigir uma análise mais consentânea com a realidade

descortinada pela medicina e pelo progresso tecnológico. Mais

moral e social a interrupção por inviabilidade de sobrevivência do

feto justifica se tanto ou mais do que o aborto por motivo de

honra, estupro. Sob o aspecto jurídico deve-se questionar se a

destruição do feto, sem qualquer possibilidade de sobreviver

como ser humano, enquadra-se no crime de aborto, que tem por

objeto jurídico a vida humana. Cita julgados precedentes.

Anteprojeto da reforma do Código Penal, no Congresso

Nacional, prevê como excludente de ilicitude o aborto

eugenésico. Nova modalidade de justificação do aborto a ser

introduzida em nossa legislação penal evitará não só o

nascimento de seres infelizes, mas também, fará cessar o

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 89

sofrimento da gestante, não mais obrigada a aguardar em seu

corpo o nascimento de um ser sem condições de sobreviver ou

em condições de sobreviver por algum tempo de forma anormal.

Evita também as funestas conseqüências dos abortos

clandestinos, realizados com enormes riscos para a vida e a

saúde da gestante. Aplica a interpretação extensiva do artigo

128, I do Código Penal. Outro caso analisado utiliza de forma

exata a mesma fundamentação (2003.001.094742-0).

8) Processo nº 2003.038.007520-4 - Utiliza como fundamentação a

Inexigibilidade de conduta diversa por parte da gestante. Esta

fundamentação é utilizada em duas outras decisões judiciais de

forma idêntica (2003.038.010812-0 e 2003.038.007520-4).

9) Processo nº 2003.054.003635-9 - Fundamentos: aparente

conflito com artigo 128 Código Penal, por não ser uma das

hipóteses expressas na permissão legal. Porém, deve o

intérprete utilizar instrumental técnico novo. A comissão de ética

do IFF manifestou-se concorde com a interrupção da gestação

sugerida e já há outros julgados neste sentido. Não há vida a ser

protegida legalmente a mesmo que este feto se mostra inviável.

Falta o objeto da tutela penal. Nos termos vertentes deixa de

constituir crime falecendo os elementos necessários para a

tipificação de aborto.

10) Processo nº 2002.054.021393-0 - Fundamento nos artigos 5º, III

da Constituição Federal e 3º do Código Penal, nos princípios

gerais do direito, nos princípios da jurisdição voluntária, artigos

1104 e seguinte do Código de Processo Civil.

11) Processo nº 2002.001.092453-2 - Diante da comprovação

técnica da inviabilidade da sobrevivência do feto, ponto relevante

para se desconsiderar a ofensa ao bem jurídico penalmente

tutelado no Capítulo I, do Título I, Parte especial do Código Penal

com fulcro no disposto no inciso I, do artigo 128, daquele diploma

legal, defere o pedido.

12) Processo nº 2002.001.118545-7 - Ante a ausência de

perspectiva devida para o nascituro e o altíssimo risco da

gravidez em casos de anencefalia fetal aplica o artigo 128, I

Código Penal analogicamente e em uma interpretação extensiva

fica caracterizado o aborto necessário.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 90

13) Processo nº 99.001.088305-9 - Aborto eugenésico tem

acolhimento na doutrina e jurisprudência. Proteção ao objeto

jurídico preservação da vida não é infringido no caso em

questão. Fulcro: artigos 128, I Código Penal; 4º da Lei de

Introdução do Código Civil e artigos 1103, 1104 e 1109 do

Código de Processo Civil.

14) Processo nº 98.001.03402-0 - Em um dos casos analisados a

fundamentação não adentra no mérito da anencefalia fetal, pois

a gravidez decorreu de estupro.

15) Processo nº 2003.207.007966-6 - Aborto pressupõe que a

gravidez seja normal e não somente patológica. Se o que existe

é produto conceptivo degenerado, lícita é a intervenção. Cita a lei

de doação de órgãos. Vida ligada indissoluvelmente à existência

de cérebro. Iguala à gravidez molar já consagrada na

jurisprudência. Crime impossível pois não há vida.

16) Constam duas breves decisões em alvarás sem a especificação

do número do processo que utilizam como fundamento a

hipótese permissiva contida no artigo 128, II do Código Penal,

analogicamente.

17) Processo nº 2003.001.146495-6 - Questão da tipicidade da

conduta sabendo que o feto não tem perspectiva de vida. Crime

de aborto tem como escopo tutelar a vida humana em formação.

Constatada a falta de perspectiva de vida, inexiste violação ao

bem jurídico tutelado; evolução da medicina e CP de 1940. Se a

legislação não pode acompanhar com a necessária celeridade a

evolução social, constitui função do julgador, sem dúvida, aplicá-

la ao mundo atual.

18) Habeas Corpus nº 5355/2003 - Princípios da dignidade humana

e razoabilidade. Direito de escolha da gestante. Atipicidade do

aborto porque não há lesividade do bem jurídico tutelado.

Este último caso merece uma observação mais apurada, pois pode ser tido

como exemplo típico da insegurança que acarreta a prolação de decisões

judiciais conflituosas. A gestante orientada segundo a rotina anteriormente

mencionada, manifesta sua vontade no sentido de interromper a gestação e

assim é encaminhada pelo setor de medicina fetal para devidas orientações

jurídicas da defensoria pública. Em primeira instância o pedido foi negado sob o

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 91

argumento de que a legislação penal proíbe a prática de aborto, senão nos

casos taxativos previstos no Código Penal. A gestante recorreu da decisão

obtendo em 16 de dezembro de 2003 a permissão legal para a realização da

intervenção médica. Com a devida autorização a paciente foi internada no dia 18

de dezembro do referido ano, sendo neste mesmo dia executado o procedimento

de antecipação do parto. Porém, um terceiro estranho à relação médico-paciente

recorreu da decisão proferida, em Habeas Corpus, pelo Tribunal do Estado do

Rio de Janeiro e em 19 de dezembro de 2003 foi proferida uma decisão pelo

Superior Tribunal de Justiça no processo de nº 32757/ RJ no sentido de deferir a

liminar para que não fosse tomada qualquer procedimento visando a interrupção

antecipada da gravidez. O Instituto Fernandes Figueira encaminhou um ofício ao

STJ informando ao tribunal que o procedimento interventivo já tinha sido

realizado no dia anterior ao da prolação da decisão. Retornando do recesso

forense o STJ, em 04 de março de 2004, o ministro Felix Fischer profere a

decisão no sentido de ter o Writ como prejudicado por perda do objeto vez que já

havia ocorrido a interrupção antecipada da gravidez, em conformidade à decisão

proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Um dos casos negativos da autorização judicial fundamentava-se apenas

na declaração de que a anencefalia não podia ser enquadrada nas hipóteses

legais de permissão para a realização do aborto e o processo recebeu o nº

2003.021.018943-0. O segundo não consta qualquer informação judicial, apenas

sendo anotado no prontuário que a gestante obteve uma decisão negativa.

O tempo entre a solicitação e a autorização judicial também foi objeto de

análise. A decisão proferida de forma mais breve foi proferida em 3 (três) dias e

a mais demorada em 65 (sessenta e cinco) dias. O tempo médio das decisões

analisadas foi em torno de 20 (vinte) dias.

Tempo entre a solicitação e a autorização judicial

0

1

2

3

4

5

6

não c

onsta

3 dia

s

4 dia

s

5 dia

s

6 dia

s

7 dia

s

8 dia

s

9 dia

s

10 di

as

12 di

as

13 di

as

14 di

as

15 di

as

16 di

as

17 di

as

18 di

as

19 di

as

21 di

as

22 di

as

24 di

as

25 di

as

26 di

as

28 di

as

29 di

as

42 di

as

62 di

as

65 di

as

Figura 7. Tempo entre a solicitação e a autorização judicial

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 92

No tocante à viabilidade fetal, dois gráficos serão expostos. O primeiro

compara a ocorrência de natimortos, já falecidos no momento do parto ou da

antecipação terapêutica e os que sobreviveram.

VITABILIDADE FETAL

VIVO42%

NATIMORTO58%

Figura 8. Vitabilidade fetal

E o segundo gráfico demonstra o tempo de vida dos 42% de fetos que

nasceram vivos. O maior tempo foi de 5 (cinco) dias e o menor de 5 (cinco)

minutos e em 6 (seis) casos não consta do prontuário a sobrevida dos fetos.

TEMPO DE VIDA FETAL

0

1

2

3

4

5

6

não c

onsta

5dias

11h4

3min 8h

6h30

min

4h02

min

3h22

min 3h

2h45

min 2h

1h42

min

1h40

min

1h35

min

1h28

min

1h20

min

1h17

min

1h04

min 1h50

min48

min45

min42

min41

min36

min35

min33

min30

min27

min25

min23

min20

min14

min10

min8m

in5m

in

Figura 9. Tempo de vida fetal

E por fim, a confirmação posterior do diagnóstico é quase totalitária,

somente não havendo certeza porque em 4% dos casos não foi feita qualquer

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 93

menção a este respeito no prontuário. Porém, em nenhum caso há a não

confirmação do diagnóstico.

CONFIRMAÇÃO DO DIAGNÓSTICO

SIM96%

IGNORADO4%

Figura 10. Confirmação do diagnóstico

Algumas conclusões podem ser extraídas dos dados obtidos.

Primeiramente, já há no Estado do Rio de Janeiro uma jurisprudência permissiva

da antecipação do aborto em casos de anencefalia fetal e pode ser observada

inclusive certa brevidade na formulação da decisão jurídica (em torno de vinte

dias).

Segundo, os juízes muitas vezes aplicam analogicamente os dispositivos

legais, valendo-se sobretudo da defasagem dos documentos jurídicos e as

descobertas científicas na área médica. Os princípios constitucionais e a

jurisprudência também são parâmetros de interpretação utilizados pelos

julgadores.

Terceiro, somente nos últimos três anos as informações jurídicas têm sido

objeto de preocupação por parte dos institutos médicos, valendo-se atualmente

de uma rotina o IFF visa a padronização dos documentos anexados ao

prontuário, constando desta rotina especificamente a obrigatoriedade de anexar

a autorização judicial ao prontuário. Fato este estranho aos documentos

analisados anteriores a 2001.

E por fim, ficou demonstrada que mesmo com a informação aos genitores

das conseqüências e riscos da gestação apenas a metade deles busca a

interrupção da gestação através da via judicial. Demonstra tal percentagem que

mesmo conscientes de que há uma alternativa para interromper a gravidez em

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 94

quase 50% dos casos a gestante e seu companheiro optam por levar a gravidez

até o final.

5.5.O caso no Supremo Tribunal Federal

5.5.1. O Caso Gabriela Cordeiro147

Gabriela de Oliveira Cordeiro é uma jovem residente na cidade de

Teresópolis no estado Rio de Janeiro que no quarto mês de sua gestação

recebeu o diagnóstico de anencefalia de seu feto. O médico responsável por seu

pré-natal a informou sobre a letalidade da doença e a impossibilidade de

tratamento.

Com o apoio de seu cônjuge Gabriela inicia sua saga na busca da

autorização judicial para realizar a antecipação do parto. A primeira dificuldade

encontrada pelo casal ocorreu antes do início da ação judicial. Somente após

muita espera e constrangimentos a Promotora Soraya Taveira Gaya convenceu-

se da especificidade do caso e encaminhou o caso para a defensora pública

Andréia Teixeira Pacheco que representaria judicialmente o casal.

Em 6 de novembro de 2003 o pedido de autorização para a antecipação do

parto foi impetrado na Comarca de Teresópolis. O juiz Paulo Rudolfo Tostes

negou o pedido fundamentando sua decisão no argumento de que o Código

Penal não admitia a prática de aborto em casos de anencefalia, portanto, tal ato

é considerado crime pelo ordenamento brasileiro.

Houve apelação ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro cuja

relatoria do processo ficou a cargo da Desembargadora Gizelda Leitão Teixera

que concedeu a autorização judicial para o procedimento médico no dia 19 de

novembro de 2003, quando Gabriela já estava no quinto mês de gestação.

Porém, no dia 21 de novembro do mesmo ano os advogados Carlos Brasil

e Paulo Leão Junior ingressaram em juízo com um agravo tendo como

147 As informações sobre o caso foram retiradas das obras:ANIS. Anencefalia. O

pensamento brasileiro em sua pluralidade, 2004 e CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal, 2004 e do site www.Supremo Tribunal Federal.gov.br.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 95

argumento a sacralidade da vida. O juiz José Murta Ribeiro cassou a autorização

anteriormente concedida e ordenou que o processo retornasse à relatora

Gizelda. No mesmo dia 21 o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz de Anápolis,

presidente do movimento Pró-Vida da Igreja Católica, entrou com um Habeas

Corpus em favor do feto de Gabriela no Superior Tribunal de Justiça.

Em 25 de novembro a Desembargadora Gizelda indeferiu o agravo

proposto mantendo a autorização judicial para a antecipação, neste mesmo dia a

Ministra Laurita Vaz do STJ derruba a autorização concedida pelo TJ do Rio de

Janeiro até que o Habeas Corpus fosse decidido meritoriamente pelo STJ. O

Procurador-Geral da República emitiu parecer apoiando a decisão da Ministra

Laurita Vaz, ou seja, contrário à autorização em 10 de dezembro de 2003.

No início do recesso forense Gabriela estava no sexto mês de gestação.

Em 26 de fevereiro de 2004 as organizações ANIS e THEMIS ingressaram

no Supremo Tribunal Federal com um pedido de Habeas Corpus, porém em

favor de Gabriela, a fundamentação da ação foi pautada no direito à saúde, à

liberdade e à dignidade de Gabriela em decidir sobre sua própria vida.

O relator designado foi o Ministro Joaquim Barbosa que reconhecendo a

urgência do pedido colocou em pauta o processo já no dia 4 de março. O

resultado da ação foi a declaração de perda do objeto, já que, foi apresentado ao

Tribunal o atestado de óbito de Maria Vida, filha de Gabriela que sobreviveu

apenas sete minutos. Apesar da perda do objeto três Ministros emitiram seus

pronunciamentos a respeito da lide, lamentando o cerceamento do direito de

Gabriela de ter decidido sobre sua própria vida, ou, pelo menos ter obtido uma

resposta jurídica a seu pedido.

O relator Joaquim Barbosa inicialmente tece alguns comentários a respeito

da admissibilidade do Habeas Corpus e da competência do Supremo em julgar

tal ação já que há alegações de afronta a direitos e princípios constitucionais,

principalmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Outro aspecto

processual é analisado pelo Ministro Joaquim Barbosa. O relator considera nulo

o acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça pela falta de competência

do mesmo em julgar a matéria, qual seja, habeas corpus atacando decisão

monocrática de membro do tribunal. No mérito o ministro elenca dois

argumentos: direito à liberdade individual da gestante e o segundo refere-se aos

diferentes graus de tutela penal da vida humana.

O Ministro Sepúlveda Pertence não adentra no mérito da lide, somente

constando de sua manifestação o cabimento do Habeas Corpus no caso por ser

assunto intimamente relacionado com o direito à vida.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 96

O Ministro Carlos Ayres Britto também pugna pelo não recebimento do

remédio constitucional pela perda do objeto. Porém, acrescenta seu lamento

pela perda da oportunidade do Supremo Tribunal Federal “debater um tema vital

no plano do direito e no da dignidade, seja da pessoa humana, em geral, seja da

condição feminina, em particular. Também havia anotado, aqui, a minha

perplexidade diante de um caso médico que, por antecipação, dizia que algo que

se desenvolvia no útero de uma mulher jamais se transformaria em alguém, ou

seja, t:ínhamos o fenômeno de um casulo, que seria o útero, de uma crisálida

que seria o feto, mas jamais a borboleta alçaria vôo, porque a criança não teria

condições de sobreviver. Mas fica para outra oportunidade o debate desse tema

tão candente.”

Porém, o desejo do ministro Carlos Ayres Britto não tardou em se cumprir.

Em meados de 2004 o Supremo Tribunal Federal foi novamente provocado a

emitir seu entendimento a respeito do caso através de uma Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental.

5.5.2.A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº 54

A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é uma

ação constitucional prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal de 1988

e regulamentada pela Lei 9.882/99. Esta ação tem como objetivo evitar ou

reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público148.

Alguns requisitos são necessários para a propositura desta ação, dentre eles: o

não cabimento de outro remédio constitucional, a especificação na petição inicial

do preceito fundamental descumprido acrescida da prova de sua violação149. A

argüição é sujeita ao princípio da indisponibilidade e sua decisão é irrecorrível,

não cabendo sequer ação rescisória.

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)

ingressou judicialmente, em 17 de junho de 2004, com uma argüição de

descumprimento de preceito fundamental buscando um posicionamento do

Supremo Tribunal Federal no tocante antecipação terapêutica do parto ante a

anencefalia do feto e as conseqüências jurídicas para os profissionais de saúde.

A representação autoral é de responsabilidade do constitucionalista Luís

Roberto Barroso. Já em nota prévia a inicial distingue os termos aborto e

148 Artigo 1º da Lei 9.882/99 149 Artigo 3º da Lei 9.882/99

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 97

antecipação terapêutica do parto. Pretende a sociedade autoral demonstrar que

a antecipação terapêutica de parto em casos de anencefalia fetal situa-se no

âmbito da medicina e do senso comum, diferentemente da interrupção voluntária

da gravidez de concepto viável. Busca com isso o eminente advogado retirar o

debate moral a respeito do tema, através da simplificação da hipótese.

Alguns argumentos sobre a hipótese são levantados: a inviabilidade de

vida do feto, a certeza diagnóstica do exame, o aumento do risco para a saúde

da gestante (baseada em um parecer da FEBRASGO).

Quanto às questões processuais relevantes destaca-se a legitimação

ativa da CNTS, a pertinência temática e o cabimento da via escolhida.

No mérito a ação foi fundamentada nos preceitos constitucionais da

dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autonomia da vontade e a

garantia da saúde da gestante prevista nos artigos 1, 5, 6 e 196 da Constituição

de 1988. Foi utilizado como alegação principal o fato de que a adoção de tais

preceitos constitucionais afastaria a aplicação das sanções legais impostas aos

profissionais de saúde dispostas nos artigos 124, 126 e 128 I e II do Código

Penal nos casos de atestada anencefalia fetal.

O pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade da

interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do código Penal como impeditivos da

antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo,

reconhecendo-se o direito desta gestante de se submeter ao procedimento sem

a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra

forma de permissão específica do Estado. Como pedido alternativo é

apresentado o requerimento de que se julgado o descabimento da ADPF, que o

Supremo Tribunal a receba como ação direta de inconstitucionalidade.

O feito foi distribuído ao Ministro Marco Aurélio para que o mesmo

funcionasse como relator do processo.

A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a Associação Nacional

Pró-vida e Pró-família e a Associação UNIVIDA, entre outras, pleitearam sua

admissão no feito na qualidade de Amicus Curiae. O relator proferiu decisões

indeferindo o pedido da CNBB e demais associações com fundamento no artigo

7, § 2º da lei nº 9.868/99 o qual confere ao Ministro relator a decisão a respeito

da conveniência de intervenções no processo. 150

150 Decisões do relator quanto ao mesmo tema nas petições: PG Nº 69849/04, PG

Nº 75796/04, PG Nº 77365/04, PG Nº 81135/04, PG Nº 84862/04, PG Nº 85934/04,

PG Nº 89467/04, PG N.º 90229/04, PG N.º 93748/04, 95645/2004, PG Nº110483/04.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 98

A Procuradoria Geral da República emitiu seu parecer no sentido de

indeferimento do feito por não ser adequada a interpretação conforme a

Constituição. Elenca também como fundamentação a primazia jurídica do direito

à vida do feto mesmo que por tempo ínfimo. E que a hipótese não encontra

respaldo constitucional ou legal.

O Ministro Marco Aurélio, em sede de liminar no dia 01 de julho de 2004,

acolheu os pedidos formulados, reconhecendo a relevância do pleito e o risco de

manter-se o ambiente de desencontros de pronunciamento judiciais. Decidiu

pelo sobrestamento dos demais processos e decisões não transitadas em

julgado relacionadas a esta problemática, e, pelo reconhecimento do direito

constitucional da gestante de submeter-se à antecipação terapêutica do parto de

fetos anencéfalos, a partir de laudo médico atestando tal anomalia.

No dia 30 de setembro foi revogada a medida liminar sob a alegação de

que a repercussão do que decidido sob o ângulo precário e efêmero da medida

liminar redundou na emissão de entendimentos diversos. Declarou-se a

importância da realização de uma audiência pública e a admissão no feito como

Amicus Curiae de diversas entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e

Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de

Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de

Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja

Universal, Instituto de Biotecnia, Direitos Humanos e Gênero. E remete ao

plenário para a designação de audiência para apreciar questão de ordem relativa

à admissibilidade da ADPF.

Questão de ordem foi posta em mesa no dia 20 de outubro de 2004 no

sentido de considerar a adequação da ação proposta. O relator, Ministro Marco

Aurélio, profere um relatório inicial sobre o processo e sobre a medida liminar

deferida.

Concede a palavra ao advogado do autor que rebate os argumentos

aviltados pela Procuradoria da República, quais sejam: a ilegitimidade do

Supremo Tribunal Federal como legislador positivo e a inadequação da ADPF.

Sobre a ilegitimidade Luís Roberto Barroso levanta a importância do Supremo

Tribunal Federal e que a interpretação conforme a Constituição não cria norma,

mantendo o texto elaborado pelo legislador. Nos dizeres do advogado referido a

ADPF busca um resultado menor que a declaração de inconstitucionalidade, pois

tem como objetivo reconhecer a afastabilidade de aplicação dos artigos penais

apenas no caso proposto e não erga omnes. Quanto à admissibilidade da ADPF

o representante autoral defende a ocorrência dos três requisitos para a admissão

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 99

da ação: lesão a preceito fundamental, ato do poder público e inexistência de

outro meio eficaz para cessar a lesão. Ele ainda ressalta que tais requisitos são

fundamentais para evitar o acúmulo de ADPF no Supremo, mas assegura a

relevância dessa ação. Ainda oralmente Luís Roberto Barroso reafirma o pedido

alternativo proposto na inicial de recebimentos da ação como ação direta de

inconstitucionalidade e diz que apenas a técnica não é suficiente, embora tenha

se atido às questões processuais o mérito é essencial, elencando de forma

breve os argumentos meritórios da ação. Conclui sua fala afirmando que pior

solução seria dizer à sociedade que o Supremo Tribunal Federal não vai se

pronunciar sobre tema de tamanha importância.

O Procurador Geral da República Cláudio Fontelles inicia seu

pronunciamento lembrando o ensinamento de Rui Medeiros de que a

interpretação conforme a Constituição pode se substituir ao legislador, e que

esta não pode contrariar o texto legal. Diz que de acordo com o princípio da

separação dos poderes é vedado ao juiz à criação de uma nova lei, somente

cabendo a este averiguar se a lei contraria ou não a Lei Maior. Após começa a

análise dos dispositivos penais que tipificam a conduta. O procurador levanta a

impossibilidade de que a interpretação conforme o texto constitucional acarretará

a exclusão da punibilidade, pois as exceções devem ser interpretadas de forma

literal e restritiva, não comportando analogia. Afirma Cláudio Fontelles que o

princípio da ponderação e proporcionalidade privilegia o direito à Vida, sendo

indiferente a duração desta vida. Por fim, salienta que seus argumentos têm

cunho estritamente jurídico e não religioso.

O relator retoma a palavra proferindo seu relatório no sentido de

considerar admissível a ADPF. O Ministro traz como dado a informação de que

uma ação demora aproximadamente 5 anos do tribunal inicial até o julgamento

final do Supremo Tribunal Federal. Segundo ele o processo objetivo de controle

de constitucionalidade exerce de forma precípua a guarda da constituição

afastando decisões conflitantes e numerosas de órgãos inferiores, e uma nova

forma de realizar este controle é através da ADPF. Utiliza ainda como

argumentos a importância dessa decisão para as pessoas de baixa renda que

têm que recorrer ao serviço público de saúde, a mobilização da sociedade civil

em torno da temática, a eliminação do elevado número de Recursos

Extraordinários e a observância da petição inicial dos requisitos legais. À guisa

de conclusão, Marco Aurélio defende que o Supremo Tribunal Federal tem que

se manifestar quer num sentido, quer no outro devido ao seu papel constitucional

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 100

e institucional no Estado Democrático de Direito e pela impiedade da História

com a inércia.

Diante do pedido de vista do Ministro Carlos Britto, interrompeu-se o

julgamento neste tocante.

Ocorre que na mesma sessão o Ministro Eros Grau levanta a hipótese de

revogação da liminar monocraticamente concedida pelo relator. Não houve o

referendo do plenário do Tribunal. E, segundo ele, a liminar ofende a dignidade

do feto tratando-o como coisa e não como pessoa.

O Presidente do Tribunal, Nelson Jobim, esclarece que a liminar continha

dois aspectos: o sobrestamento dos feitos nas instâncias inferiores e o

reconhecimento do direito das gestantes enquadradas no caso de realizar a

interrupção sem a necessidade de autorização judicial específica.

O Ministro Marco Aurélio afirma que no dia 2 de agosto a concessão

monocrática da liminar foi trazida à bancada e por tal razão houve o referendo da

liminar. Defende o julgamento apenas quanto à admissibilidade da ação e não

no tocante à liminar.

O Ministro Eros Grau reafirma que não aconteceu o referendo no que é

acompanhado pelos demais membros. Carlos Britto se manifesta no sentido de

manter a liminar. Há uma nova votação para determinar a concessão da palavra

novamente ao advogado da autora para defender a manutenção da liminar

obtida anteriormente. A decisão defere o uso da tribuna ao representante

autoral.

Luís Roberto Barroso inicia sua segunda fala elencando os requisitos da

concessão de liminar: relevância e perigo na demora. O primeiro estaria

presente na lide nos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade,

autonomia da vontade e direito à saúde. A dignidade humana enquadra-se na

integridade física e psicológica da gestante, no entender do constitucionalista o

registro civil de um natimorto, o óbito, enterro e a falta de recursos financeiros da

mulher seriam equiparáveis à tortura psicológica. A ninguém deve ser imposto

sofrimento evitável. Outro ponto seria a violação do princípio da legalidade se

entendida a interpretação conforme a constituição anteriormente referida. Como

fundamento Luís Roberto Barroso propõe também a atipicidade do fato. Como a

morte para o Direito é a morte cerebral, o feto anencéfalo não pode ser

considerado ser vivo, somente mantendo a vitalidade através de um aparelho

que é o corpo materno. Assim sendo, não há conflito entre bens jurídicos porque

não há vida. O segundo requisito – perigo na demora – é demonstrado nos

diversos pronunciamentos judiciais conflitantes a respeito do tema. Retratar a

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 101

liminar neste momento passará a mensagem de insegurança quanto às decisões

da corte suprema, ferindo a credibilidade do Judiciário. Finaliza sua

apresentação destacando a importância da laicização do Estado e o apoio de

diversas entidades como o Conselho Federal de Medicina, Ordem dos

Advogados do Brasil e organizações feministas.

Após, o Procurador Geral da República solicita o reexame da liminar. Os

argumentos apontados são: o bem maior protegido juridicamente é a vida (não

vê argumentos jurídicos que afastem esse direito) e vida intra-uterina é vida, não

podendo haver a coisificação do feto, a noção de vida é atemporal. Utiliza o

princípio da ponderação considerando que nem todas as gestantes sofrem com

a continuação da gestação, mas todos os fetos morrem.

O ministro Marco Aurélio é o primeiro a proferir seu voto. Inicialmente,

afirma o beneplácito do plenário quanto à liminar já que a mesma perdurou por

mais de quatro meses. Ressalta que em uma ação conjunta com o Ministério

Público, as gestantes já não necessitam ingressar em juízo para obter a

permissão de antecipação, e se o Ministério Público do Distrito Federal pode

autorizar, quanto mais demonstrada a competência do Supremo Tribunal

Federal. A lei 9.882/99 permite que a liminar suspenda as decisões não

transitadas em julgado e a adoção de qualquer outra medida ligada à matéria

discutida. Declara seu voto no sentido de manter a liminar, acreditando que a

suspensão da medida já deferida importaria em insegurança jurídica e o

descrédito da prestação judicial provisória. Apela para a formação ética e

humanística dos julgadores, rechaçando a pressão religiosa.

O Ministro Eros Grau estabelece um raciocínio contrário, para ele a

insegurança jurídica reside na própria liminar e não em sua cassação. Ressalta

que seu voto será exclusivamente técnico e jurídico. Nega referendo à liminar

sob o fundamento de que a mesma atenta contra a vida reconhecida pelo

Código civil e que não pode o julgador estabelecer nova exclusão de

punibilidade ignorada pelo legislador.

O Ministro Joaquim Barbosa, adstrito aos aspectos processuais nega

referendo à liminar por considerar que nesse momento ainda não realizado o

exame de admissibilidade impossível o deferimento de liminar.

O Ministro Carlos Britto inicia seu voto confessando que suas convicções

a respeito do tema encontram-se abaladas. Tece comentários sobre o caráter

machista de nossa sociedade, crê inclusive que se os homens engravidassem o

aborto a muito deixaria de ser crime. A seguir, trata da viabilidade do feto,

questionando se há o direito de viver ou direito de viver para morrer e que o

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 102

anencéfalo será algo que nunca será alguém. Salienta a riqueza do amor

materno e considera que a liminar apenas devolve a questão ao arbítrio a quem

cabe decidir. Encontra indicadores para endossar a medida e, portanto, vota

favoravelmente à liminar.

O Ministro Cezar Peluso ressalta que a liminar somente pode ser

concedida quando há uma alta probabilidade de confirmação ao final do

processo. No caso em questão entende o ministro que a liminar ofende o valor

jurídico da vida protegida juridicamente mesmo ainda no ventre materno. A

história da criminalização do aborto é ponto de destaque em sua manifestação.

O crime de aborto tem sua origem na necessidade de preservar a vida humana,

independente de deformidade. O diagnóstico da anencefalia é novo, porém, a

ocorrência de inviabilidade da vida extra-uterina não. A duração da vida não está

à disposição das pessoas, só coisa é objeto de disposição alheia. Vota no

sentido da cassação da medida.

Após é dada a palavra ao Ministro Gilmar Mendes. Esse inicia sua fala

diferenciando o papel positivo do negativo do julgador, afirmando a construção

diária pelo Supremo Tribunal Federal de interpretações até mesmo de normas

constitucionais. Porém, não vislumbra os requisitos da liminar no caso em voga e

por isso vota no sentido de cassar a decisão monocrática.

A ministra Ellen Gracie considera a liminar satisfativa porque autoriza o

aborto em casos não previstos na legislação. Acompanha os votos da maioria

por considerar incabível tal medida se o Tribunal ainda não se manifestou sobre

a admissibilidade da ação.

Carlos Velloso concorda com a ministra anteriormente referida no tocante

ao caráter satisfativo da liminar e a incerteza quanto ao cabimento do meio

jurídico escolhido, por tais razões vota com o intuito de revogar a liminar.

O Ministro Celso de Mello formula ponderações sobre o papel do juiz

republicano em uma república laica e a neutralidade confessional que deve

pautar suas decisões. Considera a importância da decisão atacada e de seus

fundamentos dentre eles destaca: extensão e titularidade do direito à vida, direito

sexual, direito à saúde, direito reprodutivo, autonomia da vontade e saúde física

e mental da gestante. Destarte, há densidade jurídica na cautelar decidindo pela

manutenção integral da liminar.

O ministro Sepúlveda Pertence concorda com o relator sobre a

protelação do Tribunal no caso e não vê como voltar às decisões controvertidas,

preferindo manter a liminar nos seus termos. Criada uma situação de fato o

Supremo Tribunal Federal assumiu uma política judiciária.

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ESTUDO DE CASO: ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO EM CASO DE ANENCEFALIA FETAL 103

Como resultado, o Tribunal, por maioria, referendou a primeira parte da

liminar concedida, no tocante ao sobrestamento dos processos e decisões não

transitadas em julgado, vencido Cezar Peluso. E, também por maioria, foi

revogada a segunda parte da liminar, que reconhecia o direito constitucional da

gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencéfalos,

vencidos: Marco Aurélio, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.

Atualmente, os processos judiciais interpostos e não transitados em julgado

estão suspensos. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental de

número 54 foi considerada admissível em 27 de abril de 2005, por maioria de

votos, e aguarda julgamento no tocante ao mérito sobre a legalidade do

procedimento médico de antecipar o parto em caso de anencefalia fetal sem a

necessidade de cada hipótese de solicitação ser submetida ao Poder Judiciário

como ocorria até a propositura da ação.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 104

6 CONCLUSÃO INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO

A etapa conclusiva deste trabalho tem como finalidade relacionar o

instrumental teórico elencado nos capítulos sobre a bioética, o aborto e a

interpretação constitucional e o estudo de caso da antecipação terapêutica do

parto em caso de anencefalia fetal proposto no capítulo anterior.

No tocante aos argumentos bioéticos a teoria analítica dos casos

concretos parece a mais adequada, pois tem como parâmetro a utilização de

uma situação prática a fim de indicar soluções normativas para os problemas,

como é o caso do estudo sobre a legalidade do procedimento de antecipação do

parto em casos de anencefalia fetal. A metodologia adotada propõe a

ponderação entre a solução dada ao caso concreto de acordo com quatro

princípios: autonomia, beneficiência, não-maleficiência e justiça. A teoria bioética

dos princípios encontra uma limitação de ordem metodológica, qual seja, a falta

de hierarquização entre as quatro diretrizes orientadoras. Tal ausência ocasiona

uma insuficiência da teoria em hipóteses onde há conflito entre os princípios

elencados. Permite uma subjetividade extrema quanto à valoração dos princípios

não fornecendo uma resposta legitimada racionalmente151.

Por tal razão, essenciais as contribuições jurídicas de Ronald Dworkin e

Robert Alexy. Os referidos juristas lidam com a questão de princípios e a

possível ocorrência de incoerências no sistema jurídico. Cada um deles propõe

uma teoria visando uma mínima racionalidade na escolha do intérprete de certo

princípio em detrimento de outro. Ronald Dworkin rege que o sistema jurídico é

composto de regras e princípios, formando uma integridade coerente e limitadora

da discricionariedade do juiz. Robert Alexy estabelece que os princípios são

mandados de otimização que devem ser aplicados gradativamente ao caso

concreto na busca pela realização dos valores sociais na maior medida possível,

151 Uma crítica formulada por Fermin Schramm e Miguel Kottow é a adoção da

corrente principialista pensada por Beauchamps e Childress como instrumental para os conflitos clínicos de forma inespecífica e sem as devias adaptações para outros conflitos bioéticos que necessitam de uma abordagem específica. In SCHARAMM, F., KOTTOW, M., Princípios bioéticos em salud pública limitaciones y propuestas., 2001. p. 949-956.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 105

fática e juridicamente. E, através da racionalidade da argumentação jurídica,

verifica se os valores utilizados como fundamentação são suscetíveis de controle

racional.

Ronald Dworkin tece alguns comentários especificamente sobre a temática

do aborto. Acredita que o ponto problemático da questão gira em torno da

polarização das visões envolvidas. Os favoráveis à legalização do aborto

acreditam que o feto não deve ser entendido como mais que um aglomerado de

células, um código genético. Contudo os partidários da proibição do aborto

consideram o feto como um sujeito moral. Diante de tal incongruência muitos

consideram impensável o debate racional entre eles.

Nos dizeres de Ronald Dworkin:

“Trata-se de uma questão de convicções inatas, e o máximo que podemos pedir a cada lado não é que compreenda o outro, ou mesmo que o respeite, mas apenas uma pálida civilidade (...). Se a divergência for realmente tão forte, não poderá haver nenhuma transigência baseada em princípios; na melhor das hipóteses, haverá apenas um frágil e melindroso empate, definido pelo puro poder político.” 152

Qualquer discussão a respeito da temática sobre o aborto envolverá

pensamentos quase sempre inconciliáveis. Porém, como ressalta o supra

mencionado jurista a falta de consenso não ocorre somente pela disparidade

entre as opiniões e sim, muito mais inclusive, por um erro de conceituação entre

o que é moral e o que é legal. Embora a grande parte das pessoas acredite que

é intrinsecamente errado pôr fim a uma vida humana há também um forte

entendimento de que a decisão de interromper a gravidez em sua fase inicial é

de foro íntimo da gestante. Explica Ronald Dworkin:

“Essa combinação de pontos de vistas não é apenas coerente; na verdade, mostra-se igualmente de conformidade com uma grande tradição de liberdade de consciência das modernas democracias pluralistas. É bastante comum pensar que não compete ao governo ditar aquilo que seus cidadãos devem pensar sobre valores éticos e espirituais, em especial sobre valores religiosos.” 153

E este é o entendimento defendido neste estudo. A sociedade brasileira

está diante de uma oportunidade de debater sobre as razões levantadas pelos

grupos contrários e favoráveis ao aborto. E somente através de um

152 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais,

2003. p. 12. 153 Ibid., p. 18.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 106

procedimento democrático será possível obter um consenso, não sobre a

moralidade do aborto, mas sim sobre o tratamento jurídico adequado a cada

caso específico, propondo normas legais que sirvam de parâmetro e princípios

norteadores aos julgadores em hipóteses ainda não vivenciadas.

Ronald Dworkin, após discorrer sobre os argumentos e objeções quanto ao

aborto conclui sua obra voltando a atenção dos leitores para o princípio da

dignidade humana. O princípio da dignidade humana traz em si a noção de valor

intrínseco da vida.

Giorgio Agamben, porém, inova no tratamento deste termo quando em sua

obra Homo Sacer levanta a origem deste vocábulo. Segundo o autor a

sacralidade da vida envolvia dois termos: a impunidade da matança e a exclusão

do sacrifício. O Homo Sacer seria uma pessoa posta fora do âmbito da jurisdição

humana, mas sem ultrapassar para a vida humana. Giorgio Agamben então

salienta que:

“A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental, exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono.” 154 A palavra dignidade tem etimologicamente inserida a noção de

merecimento de estima e honra e sempre ligada ao ser humano. Digno confere

então uma importância essencial do Homem. Segundo Hannah Arendt a

dignidade humana refere-se a sua singularidade na alteridade155. O Homem é

singular justamente por sua identificação com todos e ao mesmo tempo sua

particularidade. A pluralidade humana é oriunda da pluralidade de seres

singulares.

A teoria kantiana estabelece a dignidade como um valor. Para ela dois

valores podem ser destacados: o preço e o valor. O primeiro refere-se às coisas

e o segundo às pessoas.

A professora Maria Celina Bodin de Moraes procura estabelecer um

substrato material para o entendimento do princípio, procurando enfatizar sua

importância para o ordenamento jurídico156. A autora enumera quatro postulados

retirados da obra Convite à filosofia de Marilena Chauí: 1) o sujeito moral

reconhece a existência do outro como sujeito igual a ele; 2) merecedores do

154 AGAMBEN, G., Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua, 2002. p. 91. 155 ARENDT, H., A condição humana, 2000. p. 189. 156 MORAES, M., Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos

danos morais, 2003. p. 85.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 107

mesmo respeito à integridade psicofísica; 3) é dotado de vontade livre, de

autodeterminação; e 4) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a

garantia de não vir a ser marginalizado. Maria Celina de Moraes relaciona esses

postulados com os princípios jurídicos da igualdade, a integridade física e moral,

da liberdade e da solidariedade.

Ana Paula de Barcellos, também objetivando fornecer uma efetividade ao

princípio da dignidade humana, relaciona-o com a noção de mínimo existencial,

entendida como um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais

pessoa se encontraria em situação de indignidade.157

Esta também é a intenção dos autores da obra coletiva organizada por

Ingo Sarlet. O próprio título do livro já faz referência à dificuldade do termo, a

escolha da nomenclatura dimensões da dignidade humana visa demonstrar a

complexidade da própria pessoa humana. Ingo Sarlet menciona a problemática

de considerar o termo dignidade humana como universal, e mesmo que fosse

possível não haveria como evitar entendimentos diversos sobre quais atos

seriam ofensivos à dignidade humana158. Béatrice Maurer considera duas

dimensões da dignidade: uma substancial, ligada à noção de igualdade entre as

pessoas e a dignidade denominada de “atuada”, que seria a manifestação, a

realização de atos garantidores da dignidade159. As noções de vida e dignidade

humana estão intimamente relacionadas, não havendo uma conceituação

técnica capaz de separar objetivamente os âmbitos de atuação de cada

princípio. Para Michael Kloepfer estes termos devem ser entendidos como uma

unidade, de forma conjugada, porém isso não significa que representem o

mesmo direito fundamental. Os dois bens jurídicos podem, inclusive, entrar em

conflito entre si e “é preciso que resulte aqui, uma solução ponderada pautada

pelo critério do menor sacrifício possível de direitos fundamentais”160. A falta de

uma clara definição do termo dificulta e por vezes impossibilita sua efetivação. E

por fim, o entendimento de Peter Häberle, para quem a dignidade humana deve

ser fundamento da comunidade estatal, cabendo ao Poder Constituinte e ao

cidadão “acompanhar e seguir as fases do crescimento cultural e, com isso,

157 BARCELLOS, A., A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio

da dignidade da pessoa humana, 2002. p. 305. 158 SARLET, I. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma

compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.

159 MAURER, B. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 108

também as dimensões da dignidade humana em permanente processo de

evolução.” 161

A dignidade humana permeia toda a discussão sobre o aborto. Não só

porque a realização inconseqüente do ato atenta contra a dignidade de uma vida

humana, mesmo que em potencial, como também porque a imposição de

valores à gestante afronta a dignidade dessa, à medida que, restringe sua

liberdade individual. O princípio da dignidade da pessoa humana é utilizado

como premissa para a proibição do aborto e também como fundamentação para

a permissão da interrupção da gestação no caso proposto haja vista que a

obrigação legal de concluir a gravidez é tida como uma violência injustificada à

integridade psicofísica da mulher.

Neste ponto, destaca-se uma das regras fundamentais de Robert Alexy, já

citada anteriormente, segundo a qual um mesmo termo não pode ser utilizado de

forma distinta pelos falantes em um mesmo processo argumentativo. Assim

sendo, o princípio da dignidade da vida humana não será utilizado como base

argumentativa para nenhum dos entendimentos.

Desta feita, passa-se à análise dos argumentos defendidos no estudo de

caso. Os argumentos mais relevantes são: a sacralidade da vida e o direito à

integridade psicofísica que estaria sendo afrontado na obrigatoriedade legal da

mulher concluir seu período gestacional na hipótese de anencefalia de seu feto.

Segundo Ronald Dworkin existem duas objeções ao aborto. A primeira

denominada de derivativa considera que o feto desde sua concepção já possui

interesses próprios, dentre eles o de permanecer vivo, tendo o Estado que

garantir a proteção de seus interesses básicos. A segunda objeção é

denominada de independente e reconhece à vida humana um valor intrínseco e

inato, em seus dizeres “o caráter sagrado da vida humana começa quando sua vida

biológica se inicia, ainda antes de que a criatura à qual essa vida é intrínseca tenha

movimento, sensação, interesses ou direitos próprios.” 162

Qualquer concepção que se tenha sobre ordenamento jurídico,

especialmente a concepção ocidental contemporânea, terá como objeto

primordial de proteção o ser humano. As normas legais, embora variáveis em

160 KLOEPFER, M., Vida e dignidade da pessoa humana. In Dimensões da

dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005. p. 157. 161 HÄBERLE, P., A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal.

In Dimensões da dignidade. Ensaios de filosofia do direito e direito constitucional, 2005, p. 150.

162 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003. p. 13.

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seu conteúdo e forma, trazem em seus textos o princípio do respeito à vida

humana. Tal fato tem desdobramentos diversos conforme os valores e tradições

de cada população. O principal destes é a proibição de retirar a vida de um ser

humano em seus diferentes graus: homicídio, infanticídio, pena de morte, e,

finalmente, aborto.

Desta proibição preliminar à organização social humana decorre o conceito

de sacralidade da vida. Este termo é por muitos criticado por sua evidente

origem em valores religiosos, porém destaca-se que há muito tempo este

vocábulo tem sido desassociado dos referidos padrões meramente espirituais

para obter um embasamento moral laico. E será este fundamento do princípio da

sacralidade da vida que tratar-se-á neste estudo, relegando os aspectos

meramente religiosos quanto à origem e soberania divina sobre a vida humana.

No ordenamento jurídico brasileiro podem ser destacadas duas previsões

legais fundamentais sobre o tema. O artigo 124 do Código Penal Brasileiro de

1940 proíbe expressamente a prática do aborto, destacando o referido diploma

legal em seu artigo 128 os casos de exceção, nos quais, a prática do

abortamento é permitida por lei.

Como visto no capítulo sobre interpretação, segundo as técnicas

tradicionais de hermenêutica, prima-se pela interpretação literal do texto vigente.

De acordo com este entendimento os dispositivos legais expostos são claros

quanto à ilegalidade de qualquer interrupção voluntária da gravidez fora dos

parâmetros legais permissivos. Assim, a norma não merece qualquer

interpretação extensiva a outros casos, sendo clara que a antecipação do parto

em casos de anencefalia é crime, sendo qualquer outra interpretação contra

legem, não podendo ser aplicada.

A valorização máxima da vida humana enquadra-se de forma completa no

princípio bioético da não-maleficiência. Isto significa que a alegação de um

suposto direito da gestante não pode ser aceito, pois afrontaria diretamente o

princípio supra mencionado. A conduta da mulher acarretaria o dano irreversível

da morte de outro ser humano. Portanto, o argumento da sacralidade da vida

encontra um respaldo considerável na teoria bioética principialista.

Ademais, vimos na parte teórica que uma das grandes preocupações dos

estudiosos da bioética é a repetição das barbáries da eugenia nazista. Temem

eles que a permissão do aborto em casos de anomalias incompatíveis com a

vida acarrete a tolerância social e jurídica ao aborto em casos de deficiência

física ou mental. A teoria denominada no Brasil de ladeira escorregadia visa

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 110

justamente chamar a atenção para tal possibilidade, evitando a classificação de

indivíduos como subumanos, indignos de proteção estatal.

Este argumento nos leva à principal objeção à interrupção da gestação

devido à anencefalia, qual seja não há como valorar diferentemente a vida

humana, estabelecendo graus diversos de qualificação de um indivíduo. Esta

argumentação encontra objeção no próprio ordenamento jurídico brasileiro

quando o legislador estabelece punições diferenciadas às diversas afrontas ao

direito à vida: homicídio, infanticídio e aborto. Porém, como a ciência ainda não

foi capaz de determinar com precisão o momento de início da vida humana,

então, utilizando o princípio da precaução163, qualquer organismo humano em

desenvolvimento deve ser protegido juridicamente. Não se pode determinar a

vida humana pela sua duração ou por suas capacidades. Não é menos humano

um feto por viver apenas alguns minutos ou horas e, enquanto perdurar suas

atividades fisiológicas, tem este direito à vida.

Na via contrária, há uma forte tendência bioética em valorizar outro

aspecto da vida humana – a qualidade. Atualmente a noção de sacralidade da

vida não é bastante, a manutenção de uma vida humana não é suficiente,

devendo os organismos estatais primar por elementos essenciais como a

autonomia, a saúde e o bem-estar do indivíduo. Dentro desta perspectiva serão

analisadas as razões que priorizam o direito à integridade psicofísica164 da

mulher.

Os vários argumentos que embasam este direito adotam as teorias

interpretativas mais modernas. Segundo as quais o texto constitucional deve ser

interpretado de forma mais ampla, por envolver valores e princípios abstratos,

conferindo-lhe a melhor adequação ao momento presente através de

referenciais ligados à noção de ponderação e argumentação.

O direito de escolha da gestante encontra suporte no princípio da

autonomia. Segundo este, a pessoa deve ser autônoma para determinar

163 O princípio da precaução é utilizado de forma corrente pelos doutrinadores do

Direito Ambiental e consiste em adotar uma postura defensiva em relação à procedimentos ou aos cuja conseqüência é ignorada.

164 Maria Celina Bodin de Moraes tece alguns comentários sobre a evolução deste princípio, ressaltando que inicialmente a integridade psicofísica era relacionada apenas à noções de tortura e tratamentos penais. Contudo, abrange diversos direitos da personalidade, como por exemplo: vida, nome, honra, identidade pessoal, corpo, entre outros. Hoje institui um amplo direito à saúde, ou como diz a autora, um completo bem-estar psicofísico e social, e contém ainda o direito à existência digna. MORAES, M. Danos à pessoa humana. Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003. p. 94.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 111

aspectos relevantes de sua vida, entre eles o direito reprodutivo. Esse

argumento é defendido de forma genérica para o aborto, mas no caso de

anencefalia seria reforçado, pois com a inviabilidade da vida fetal não há outro

sujeito a ser prejudicado. Além disso, o sofrimento gerado pela gravidez de um

feto anencéfalo sem viabilidade de vida extra-uterina e as possíveis

complicações de uma gestação também podem ser englobados no princípio da

beneficiência, já que a interrupção da gestação causaria um bem à saúde física

e, principalmente, à saúde psicológica da gestante.

Este princípio permite uma interpretação extensiva do artigo 128 do Código

Penal Brasileiro que permite a prática abortiva em casos de perigo à vida da

gestante. Alguns estudos têm sido propostos sobre o aumento do risco materno

nesses casos de gravidez, porém não há ainda um consenso médico a respeito

do tema para afirmar categoricamente que, pelo menos na parte física, há um

risco justificador da interrupção da gravidez.

Já no tocante aos danos psicológicos, há um forte entendimento de que a

obrigação legal a que é submetida a mulher ao levar a cabo a gestação de um

feto inviável é comparável à tortura. Os desconfortos e limitações impostos por

qualquer gestação seriam agravados pelo fato da consciência da gestora de que

seu feto não terá um desenvolvimento normal.

Nos dizeres da antropóloga Débora Diniz: “O fato é que o diagnóstico de má-formação fetal, em especial daquelas incompatíveis com a vida extra-uterina, não compõe o rol de expectativas das mulheres grávidas. O diagnóstico da má-formação fetal é, sem sombra de dúvida, uma das experiências mais angustiantes que uma mulher grávida pode experimentar. E parte importante desta angústia decorre exatamente da precisão diagnóstica possibilitada pelas técnicas: há uma limitação técnica da medicina fetal, pois, não há possibilidades terapêuticas para a grande maioria dos diagnósticos de má-formação fetal e, acrescido a isto, há uma limitação legal que restringe as decisões reprodutivas da mulher grávida, dificultando ou mesmo proibindo o aborto seletivo.“ 165 Os dados obtidos na parte empírica deste estudo embasam alguns

argumentos favoráveis à permissão do aborto.

Primeiro, a certeza científica de inviabilidade fetal e a confirmação total dos

diagnósticos realizados, não havendo um só caso onde a doença fora

descartada no exame pós-morte.

165 DINIZ, D. Quem autoriza o aborto? médicos, promotores e juízes em cena,

2003, p. 2.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 112

A ocorrência de diversos julgados permitindo a prática, o que evidencia

uma tendência jurisprudencial que acarreta uma insegurança jurídica se

modificada sem que haja uma fundamentação para tanto. É certo que somente o

Supremo Tribunal Federal pode emitir uma decisão jurídica obrigatória aos

demais ramos judiciários, porém, a reiteração de decisões em um determinado

sentido faz supor ao cidadão que aquele é o entendimento jurídico a respeito do

assunto. Ademais, a ínfima minoria que tem a solicitação negada não recebe um

tratamento jurídico igualitário, vez que, não lhe é dado o direito de escolha

concedido às demais solicitações, sendo que se encontra na mesma situação

que estas.

Os julgados estudados fundamentam outro ponto jurídico favorável à

permissão da interrupção que é a atipicidade da conduta. Tal formulação

jurídica, como visto em capítulo anterior, utiliza a legislação vigente sobre o

transplante de órgãos que estabelece a morte cerebral como determinante da

morte natural de uma pessoa. O feto anencéfalo caracteriza-se pela ausência de

cérebro, e silogisticamente, já deveria ser considerado morto para o

ordenamento jurídico. Então, quando a mãe antecipa o parto não acarreta

diretamente a morte do feto, a qual tem uma causa biológica natural, sendo

atípica a conduta da gestante ou do médico para o Direito.

Neste sentido, destaca-se o argumento principal que especifica o caso da

anencefalia – a inviabilidade de vida extra-uterina do feto. Neste contexto, não

há conflito de princípios por ausência de possibilidade de vida fetal. Assim

sendo, não há afronta voluntária à vida humana e sim uma inviabilidade natural.

Este entendimento se coaduna com a premissa de Robert Alexy de que

quanto maior a interferência em um princípio mais importante tem que ser a

realização de outro princípio. O direito fundamental da integridade psicofísica da

gestante não deve ser afastado haja vista que não será conservado o direito à

vida do feto. Assim sendo, não há uma justificação racional para restringir o

direito da mulher.

Conclusivamente, destacam-se as considerações de Hannah Arendt: “As perguntas específicas devem receber respostas específicas; e se a série de crises que temos vivido desde o início do século pode ensinar alguma coisa é, penso, o simples fato de que não há padrões gerais a determinar infalivelmente os nossos julgamentos, nem regras gerais a que subordinar os casos específicos com algum grau de certeza.” 166

166 ARENDT, H., Responsabilidade e julgamento, 2004. p. 7.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 113

A antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia deve ser

analisada de acordo com as peculiares características da hipótese. A atividade

legislativa brasileira não acompanhou as inovações técnicas da ciência médica,

não há uma previsão legal específica sobre o caso, o que permite tamanha

celeuma sobre a correta interpretação constitucional a respeito do tema. A

interpretação constitucional dos valores envolvidos não deve ser remetida à

legalidade ou não da prática abortiva, tema este muito mais amplo e complexo.

O que se pretende no estudo de caso é demonstrar que as descobertas

científicas das últimas décadas possibilitaram o conhecimento de um fator

determinante na gestação, a inviabilidade de vida extra-uterina.

O Supremo Tribunal Federal depara-se com uma situação jurídica sui

generis e, portanto, deve utilizar as técnicas interpretativas de forma a proferir

uma decisão com base em argumentos jurídicos racionais condizentes com os

valores expressos na Carta Magna de 1988. As normas constitucionais antes de

1988 tinham como problemática garantir a continuidade de sua vigência, diante

de tantos golpes a permanência de uma Constituição era hipóteses rara. Após a

promulgação da Constituição de 1988, e a estabilidade da democracia brasileira,

a preocupação passa a ser com a efetivação do texto constitucional167 e o

Supremo Tribunal Federal adquire um papel relevante neste sentido.

O debate deliberativo que se levantou a respeito do tema, por si só, já

representa um avanço para a democracia brasileira. A menção de que o relator

pretende convocar uma Audiência Pública para ouvir representantes de diversos

setores sociais alude a uma preocupação do Tribunal em observar parâmetros

democráticos em sua solução. A deliberação que precede o processo decisório é

indispensável à democracia. 168

A função outorgada pelos constituintes à Corte Suprema deve ser

conservada no sentido deste determinar qual a interpretação constitucional mais

adequada à lide em voga. A decisão a ser prolatada deve atentar para um

167 De acordo com este entendimento: “A legalidade constitucional, a despeito da

compulsão com que se emenda a Constituição, vive um momento de elevação: quinze anos sem ruptura, um verdadeiro recorde em um país de golpes e contra-golpes. (...) E a efetividade da Constituição, rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira, tornou-se uma idéia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. BARROSO, L, BARCELLOS, A. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003, p. 329.

168 Neste sentido, SOUZA NETO, C. Teoria constitucional e democracia deliberativa. Um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática, 2006, p. 295.

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INTERPRETAÇÃO DO ESTUDO DE CASO A LUZ DO APORTE TEÓRICO 114

procedimento decisório racional e laico, através da argumentação e ponderação

dos valores constitucionais da integridade e da vida humana a fim de obter uma

legitimação democrática perante a sociedade plúrima. Segundo palavras do

Ministro Marco Aurélio, quer num sentido quer em outro, o Supremo Tribunal

Federal tem que emitir um posicionamento sobre a permissão legal de

antecipação de parto em caso de anencefalia fetal, pois a inércia institucional é

impiedosa à democracia169. Este trabalho não pretende determinar qual a única

resposta jurídica correta. Porém, “devemos insistir em que apresentem os melhores

argumentos possíveis, e, em seguida, perguntar a nós mesmos se seus argumentos são

suficientemente bons”. 170

169 Como dito anteriormente não é tratada, neste trabalho, a questão de separação

dos Poderes quanto à edição e aplicação de normas. Entretanto, vale citar Cláudio Pereira de Souza Neto: “Assim, um dos argumentos centrais para a restrição do ativismo judicial nessa área é justamente o da legitimação democrática. (...) O estabelecimento de finalidades se situa no campo do dissenso político e deve ser resolvido através do princípio majoritário. Como sublinhamos, as teorias democrático-deliberativas levam a uma restrição da atividade judicial ao campo da neutralidade política, que caracteriza o consenso procedimental, deixando em aberto à deliberação majoritária o dissenso conteudístico. O que não pode ocorrer é o estado violar os direitos fundamentais ou deixar de implementa-los – hipótese em que estará agindo ilegitimamente, ficando justificada a ação judicial.” SOUZA NETO, C. Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático. In BARROSO, L. A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas, 2003.

170 DWORKIN, R., Domínio da vida. Aborto, eutanásia e liberdades individuais, 2003, p. 203

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