Terceira. — De quê ? . Primeira. — Não sei. Porque o havia ...ntese AI, N… · —Não sei....

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Terceira. De quê ? . Primeira. — Não sei. Porque o havia eu de saber? (uma pausa) Segunda. —Todo este paiz é muito triste . . Aquelle onde eu vivi outr'ora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada á minha janella. A janella dava para o mar e ás vezes havia uma ilha ao longe. . . Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esque- cia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquillo que talvez eu nunca fosse. Primeira. — Fora de aqui, nunca vi o mar. Alli, d'aquella janella, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco !. . . O mar de outras terras é bello? Segunda. — Só o mar das outras terras é que é bello. Aquelle que nós vemos dá-nos sempre saudades d'aquelle que não veremos nunca. . . (uma pausa) Primeira. —Não diziamos nós que iamos contar o nosso passado ? Segunda. Não, não diziamos. Terceira. Porque não haverá relógio neste quarto ? Segunda. —Não sei. . . Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e mysterioso. A noite pertence mais a si-propria.. . Quem sabe se nós poderiamos fallar assim se soubéssemos a hora que é ? Primeira. Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo dezembros na alma. . . Estcu procurando não olhar para a janella. . . Sei que de lá se vêem, ao longe, montes. . . fui feliz para alem de montes, outr'ora. . . Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não m'as tirassem . . Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar... Eoi longe d'aqui que isto pôde ser... Quando virá o dia ?. .. Terceira. Que importa? Elie vem sempre da mesma maneira... sempre, sempre, sempre... Segunda. Contemos contos uma ás outras. . . Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz m a l . . . viver é que faz mal. .. Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho. .. Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado porque não falíamos nós d'elle? Primeira. Decidimos não o fazer. . . Breve raiará o dia e arrepender-nos-hemos... Com a luz os sonhos adormecem. . . O passado não é senão um sonho. . • De resto, nem sei o que não é sonho... Se olho para o presente com muita attenção, pareoe-me que elle já passou... O que é qualquer cousa? Como é que ella passa? Como é por dentro o modo como ella passa?... Ah, fallemos, minhas irmãs, fallemos alto, fallemos todas juntas... O silencio começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o envolver-me como uma névoa. .. Ah, fallae, fallae I. .. Segunda. —Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me que entre .nós se augmentaram abysmos... Tenho que cançar a idéa de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos.. . Este ar quente é frio por dentro, naquella parte que toca na alma... Eu devia agora sentir mãos impossíveis passarem-me pelos cabellos. .. As mãos pelos cabellos — é o gesto com que faliam das sereias... (Cruza as mãos sobre os joelhos, Baum.) Ainda ha pouco,- quando eu não pensava em nada, estava pensando no meu passado . . Primeira. — E u também devia estar a pensar no meu... Terceira. — Eu já não sei em que pensava.. . No passado dos outros talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de minha mãe corria um riacho... Porque é que correria, e porque ó que não correria mais longe, ou mais perto?... Ha alguma razão para qualquer cousa ser o que é? lia para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?...

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T e r c e i r a . — D e quê ? . Primeira . — Não sei. P o r q u e o hav ia eu de s a b e r ?

(uma pausa)

Segunda. — T o d o este paiz é mui to t r i s t e . . Aquel le onde eu vivi ou t r ' o ra era menos t r i s t e . Ao en ta rdece r eu fiava, s en t ada á minha j ane l l a . A jane l l a dava p a r a o mar e ás vezes h a v i a u m a ilha ao longe . . . Mui tas vezes eu n ã o fiava; o lhava p a r a o m a r e esque-cia-me de viver . N ã o sei se era feliz. Já não tornare i a ser aquil lo que ta lvez eu n u n c a fosse .

Primeira . — Fora de aqui , n u n c a vi o mar . Alli, d 'aquel la janel la , que é a ún ica de onde o mar se vê, vê-se t ão pouco !. . . O m a r de o u t r a s t e r ras é be l lo?

Segunda . — Só o m a r das o u t r a s t e r r a s é que é bel lo . Aquel le que nós vemos dá-nos sempre s audades d 'aquel le que não veremos n u n c a . . .

(uma pausa)

Primeira . — N ã o diz iamos nós que i amos con ta r o nosso p a s s a d o ? Segunda . — Não , não d iz iamos . T e r c e i r a . — P o r q u e não h a v e r á re lógio nes t e q u a r t o ? Segunda . — N ã o sei . . . Mas ass im, sem o relógio, t udo é mais a fas tado e m y s t e r i o s o .

A no i te pe r t ence mais a s i - p r o p r i a . . . Quem sabe se nós poder i amos fallar ass im se soubéssemos a hora que é ?

Primeira . — Minha i rmã, em mim t u d o é t r i s t e . P a s s o dezembros na a lma . . . E s t c u p r o c u r a n d o n ã o olhar p a r a a j ane l l a . . . Sei que de lá se vêem, ao longe, m o n t e s . . . Bà fui feliz pa ra alem de m o n t e s , o u t r ' o r a . . . E u era pequen ina . Colhia flores todo o dia e an tes de adormecer pedia que não m 'as t i r a s sem . . Não sei o que i s to t em de i r reparáve l que me dá v o n t a d e de c h o r a r . . . Eoi longe d 'aqui que is to pôde s e r . . . Quando v i rá o dia ? . . .

T e r c e i r a . — Que i m p o r t a ? El ie vem sempre da m e s m a m a n e i r a . . . s empre , sempre , s e m p r e . . .

Segunda . — Con temos contos u m a ás o u t r a s . . . E u não sei contos n e n h u n s , m a s isso não faz m a l . . . Só v ive r é que faz m a l . . . Não rocemos pela v ida n e m a orla das nos sa s v e s t e s . . . Não , não vos l evan te i s . I s so ser ia um ges to , e cada ges to i n t e r rompe um s o n h o . . . Nes te momen to eu não t inha sonho n e n h u m , m a s é-me suave p e n s a r que o pod ia e s t a r t e n d o . . . Mas o pas sado — p o r q u e não fal íamos nós d 'e l le?

Primeira . — Decid imos não o fazer . . . Breve r a i a r á o dia e a r r e p e n d e r - n o s - h e m o s . . . Com a luz os sonhos a d o r m e c e m . . . O pas sado não é senão u m s o n h o . . • De r e s to , nem sei o que n ã o é s o n h o . . . Se olho para o p r e sen t e com mui t a a t t enção , pareoe-me que elle j á p a s s o u . . . O que é qua lquer c o u s a ? Como é que ella p a s s a ? Como é p o r den t ro o modo como ella p a s s a ? . . . Ah , fal lemos, m i n h a s i rmãs , fallemos al to , fallemos t odas j u n t a s . . . O si lencio começa a t omar corpo, começa a ser c o u s a . . . Sinto-o envolver -me como u m a n é v o a . . . Ah , fallae, fallae I. . .

S e g u n d a . — P a r a q u ê ? . . . F i to -vos a a m b a s e n ã o vos vejo l o g o . . . Pa rece-me que en t re .nós se a u g m e n t a r a m a b y s m o s . . . T e n h o que cançar a idéa de que vos posso ve r p a r a poder chegar a v e r - v o s . . . E s t e ar quen te é frio p o r den t ro , naque l l a p a r t e que toca n a a l m a . . . E u devia agora sent i r mãos imposs íveis pa s sa rem-me pelos cabe l los . . . A s mãos pelos cabellos — é o ges to com que faliam das s e r e i a s . . . (Cruza as mãos sobre os

joelhos, Baum.) A i n d a ha pouco,- quando eu não pensava em n a d a , e s t ava p e n s a n d o no meu passado . .

Primeira. — E u t a m b é m devia e s t a r a p e n s a r no m e u . . . T e r c e i r a . — E u já n ã o sei em que p e n s a v a . . . No p a s s a d o dos out ros t a l v e z . . . , no

p a s s a d o de gen t e ma rav i l hosa que nunca e x i s t i u . . . A o pé da casa de m i n h a m ã e corr ia u m r i a c h o . . . P o r q u e é que correr ia , e p o r q u e ó que não correr ia mais longe , ou mais p e r t o ? . . . H a a lguma r a z ã o p a r a qua lquer cousa ser o que é ? l i a pa ra isso qua lque r r a z ã o ve rdade i ra e real como as minhas m ã o s ? . . .