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Saúde em Revista 55 MEDICAMENTOS E GRAVIDEZ Medicamentos e Gravidez Drugs and Pregnancy RESUMO A utilização de medicamentos por gestantes deve ser considera- do como um problema de saúde pública. Revisando a literatura, percebe-se que se trata de um comportamento de alto risco terapêutico, pois existem inúmeras lacunas sobre o uso de medicamentos e suas conseqüências ao feto e à gestante. Entretanto, o quadro relatado em diferentes trabalhos é o de medicalização da gestação com uso indiscriminado de medicamentos, muitas vezes de forma empírica e sem respaldo técnico. Nesse sentido, esta revisão pretende trazer subsídios para reflexão, contribuindo para o estabe- lecimento de medidas de intervenção visando o uso racional de medica- mentos. Palavras-chave : GRAVIDEZ USO RACIONAL DE MEDICAMENTOS TERATO- GENICIDADE. ABSTRACT The use of drugs during pregnancy should be understood as a public health problem. Scientific literature shows that this is a highly risky behavior, since there are several gaps on the use of drugs and its consequence to the embryo and the pregnant woman. However, different articles refer to the pregnancy medication with indiscriminate drug use, often in an empirical way and without technical endorsement. Thus, the present paper intends to bring subsidies for reflection, contributing to the establishment of intervention measures aiming at the drug’s rational use. Keywords : PREGNANCY RATIONAL DRUG USE TERATOGENICITY . THAIS ADRIANA DO CARMO* Curso de Farmácia – Faculdade de Ciências da Saúde (UNIMEP/SP) *Correspondências: Rod. do Açúcar, Km156 – FACIS, 13400-911, Piracicaba/SP E-mail: [email protected] Saude_10.book Page 55 Tuesday, March 16, 2004 6:34 PM

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Medicamentos e Gravidez

Drugs and Pregnancy

RESUMO – A utilização de medicamentos por gestantes deve ser considera-do como um problema de saúde pública. Revisando a literatura, percebe-seque se trata de um comportamento de alto risco terapêutico, pois existeminúmeras lacunas sobre o uso de medicamentos e suas conseqüências aofeto e à gestante. Entretanto, o quadro relatado em diferentes trabalhos é ode medicalização da gestação com uso indiscriminado de medicamentos,muitas vezes de forma empírica e sem respaldo técnico. Nesse sentido, estarevisão pretende trazer subsídios para reflexão, contribuindo para o estabe-lecimento de medidas de intervenção visando o uso racional de medica-mentos.Palavras-chave: GRAVIDEZ – USO RACIONAL DE MEDICAMENTOS – TERATO-GENICIDADE.

ABSTRACT –The use of drugs during pregnancy should be understood as apublic health problem. Scientific literature shows that this is a highly riskybehavior, since there are several gaps on the use of drugs and itsconsequence to the embryo and the pregnant woman. However, differentarticles refer to the pregnancy medication with indiscriminate drug use,often in an empirical way and without technical endorsement. Thus, thepresent paper intends to bring subsidies for reflection, contributing to theestablishment of intervention measures aiming at the drug’s rational use.Keywords: PREGNANCY – RATIONAL DRUG USE – TERATOGENICITY.

THAIS ADRIANA DO CARMO*Curso de Farmácia – Faculdade de Ciências da Saúde (UNIMEP/SP)

*Correspondências: Rod. do Açúcar, Km156 – FACIS, 13400-911, Piracicaba/SP

E-mail: [email protected]

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utilização de medicamentos por gestantes eas conseqüências sobre as futuras criançaspassou a ser objeto de grande preocupação

após fatos ocorridos entre o final da década de 50e o início dos anos 60. Segundo a literatura con-sultada (Mellin e Katzenstein,15 PrescrireInternational19) cerca de dez mil crianças recém-nascidas naquele período apresentaram focome-lia (até então, má-formação rara), bem como ou-tras alterações, tais como surdez, paralisiaoculomotora e facial, dano ocular e estenose anal,más-formações cardíacas fatais, além de neuropa-tia e más-formações vaginais e uterinas (identifi-cadas posteriormente).

O primeiro caso descrito dessa natureza ocor-reu em 1959 na Alemanha: uma menina nascidasem os membros superiores e inferiores, de umamãe primigesta e sem antecedentes familiares demás-formações congênitas.15Após várias observa-ções semelhantes, considerou-se a hipótese deque fatores externos, talvez um medicamento no-vo, recém lançado, estivesse envolvido com a epi-demia. Em 1961, pesquisadores sugeriram aassociação do uso da talidomida durante a gesta-ção aos casos de focomelia e demais alterações.Tratava-se de um medicamento sedativo, utiliza-do no tratamento de náuseas e vômitos na gravi-dez, colocado no mercado mundial em 1956 econsiderado pela indústria responsável por suaprodução um medicamento pouco tóxico.* Naverdade, foi propagandeado como sendo um me-dicamento ideal, com eficácia e segurança respal-dadas por estudos em animais e testes clínicos.15

Considerado uma catástrofe social, esse even-to teve importante repercussão internacional,constituindo um alerta sobre a questão da segu-rança na utilização de novos fármacos, a impor-tância de normas mais rigorosas em estudosclínicos antes da liberação de medicamentos parao consumo e a necessidade de criação de sistemasde farmacovigilância. Especificamente em relaçãoà gravidez, provocou decisivas mudanças nas ati-tudes e práticas relativas à prescrição, ao levan-tar a hipótese de que outros medicamentoscomercializados, assim como a talidomida, pu-dessem ser teratogênicos sem serem reconheci-dos como tal.5, 8

SEGURANÇA VERSUS RISCOSegundo Mathias e Nobile,13 acreditava-se

que a placenta funcionava como uma barreira,protegendo o feto de qualquer agressão farmaco-lógica. A tragédia da talidomida abalou essa cren-ça, provocando uma maior cautela na prescriçãoe na utilização de medicamentos na gestação.

De fato, encontra-se em Rozenfeld e Pepe20 aafirmação de que, como se dispõe de poucas in-formações sobre o risco de más-formações congê-nitas produzidas pelos medicamentos e sobre aexcreção dos fármacos pelo leite materno, “é es-sencial evitar, na medida do possível, a adminis-tração de fármacos durante a gravidez e alactação”.

Atualmente, sabe-se que a maioria dos fárma-cos contidos nos medicamentos utilizados porgestantes atravessa a placenta e atinge a correntesangüínea do feto. Não se trabalha mais com oconceito de barreira placentária.3 Deve-se consi-derar então, que quando uma grávida ingere ourecebe qualquer medicamento, dois organismosserão afetados, sendo que um deles (o feto) aindanão tem a mesma capacidade de metabolizar assubstâncias que a mãe, pois não possui os siste-mas corporais plenamente desenvolvidos, estan-do, portanto, mais sujeito a efeitos negativos nãoesperados.24

Meadows14 observa que, enquanto há certezado uso, sucesso no tratamento e segurança ao fetode alguns medicamentos na gravidez, na maioriados casos, o conhecimento é limitado, transfor-mando a prescrição de medicamentos nesse perío-do num grande dilema que deve ser bem avaliadoentre o médico e a paciente.

Além das seqüelas da talidomida, o apareci-mento de efeitos adversos** envolvendo medica-mentos considerados seguros (como o ácidoacetil salicílico e o cloranfenicol) também contri-buiu para que o medicamento, de agente terapêu-tico por excelência, passasse a ser visto comoelemento problemático que solicitava estudo.4

Corroborando essa afirmação, pode-se citarZenker et al.25 e Satge et al.21

Zenker et al.25 descrevem um caso de hiper-tensão pulmonar severa com danos irreversíveis

* Estudos em ratos realizados antes da liberação do medicamento mostraram toxicidade aguda muito débil. O Estados Unidos,baseado em perícias realizadas pela Food and Drug Administration (FDA) que demonstraram alterações neurológicas em coelhosadultos, proibiu sua comercialização. A França também não autorizou seu uso. (PRESCRIRE INTERNATIONAL, 1998).

A

**De acordo com STROM (1994), efeitos ou reações adversos são os efeitos incomuns decorrentes da utilização de medicamen-tos, não relacionados à dose, imprevisíveis, potencialmente sérios e que geralmente exigem a cessação da medicação.

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em um recém-nascido decorrente de tratamentoda mãe, durante cinco dias, com diclofenaco (an-tiinflamatório não esteroidal), duas semanas antesdo parto.

Satge et al.25 relatam que, ao realizarem umarevisão sistemática da literatura no que diz respei-to a tumores fetais e neonatais, identificaram 89casos (36 malignos e 54 benignos) em criançascujas mães utilizaram vários medicamentos noperíodo pré-natal. Segundo os autores, seis asso-ciações são dignas de nota, entre elas: fenitoína ea ocorrência de neuroblastoma; antibióticos eleucemias; e paracetamol e sarcoma fusocelular.

TERATOGENICIDADECastro4 ressalta que não há como privar ges-

tantes e crianças dos riscos inerentes à terapia me-dicamentosa, já que nenhum medicamento éisento totalmente de riscos, a não ser pela suspen-são total do uso de fármacos, o que seria inade-quado. Até porque, assim como no restante dapopulação, durante a gravidez, a mulher está su-jeita a intercorrências que podem gerar a necessi-dade de intervenção medicamentosa.10

Em Seto et al.,22 encontra-se um exemplo deuma situação extremada. No ano de 1983, o me-dicamento Bendectin® (antihistamínico compos-to de doxilamina e piridoxina) foi retirado domercado devido a um movimento generalizadocontra medicamentos usados durante a gestação.Logo após tal medida, a taxa de hospitalização demulheres por hiperemese gravídica dobrou. Osautores lembram que, numa atitude precipitada,um medicamento seguro foi negado a mulheresque realmente necessitavam dele.

Deve-se considerar, entretanto, que crianças egestantes são grupos de alto risco terapêuticoporque os ensaios clínicos exigidos para a comer-cialização de medicamentos novos geralmentesão feitos em grupos selecionados de pacientes,4,23, 11, 10 e, por razões morais e éticas, não envol-vem gestantes, crianças e idosos. Dessa forma,considera-se que, para a maioria dos fármacos,não existem dados científicos sobre o verdadeirorisco associado ao seu uso durante a gravidez. Ouseja, para a maioria dos medicamentos, o potencialteratogênico é desconhecido. É importante lem-brar que, com exceção dos androgênicos, de al-

guns medicamentos mitóticos, do valproato desódio e da vitamina A e seus derivados, todos osmedicamentos identificados como teratogênicosforam conhecidos depois de utilizados por sereshumanos, e não em estudos pré-clínicos em ani-mais*.16

Castro4 afirma que, em decorrência da reali-dade encontrada, questões relacionadas à seleçãode fármacos, posologia, monitorização terapêuti-ca e cuidados durante o consumo contam comum grande grau de empirismo. Piper et al.18 res-saltam que, na gestação, os medicamentos só de-vem ser utilizados quanto houver um benefíciomuito claro para a mãe e o produto estiver sendocomercializado há um tempo suficiente para serconsiderado seguro em relação ao aparecimentode efeitos adversos na população exposta. Demodo categórico, o Unicef24 recomenda que, naausência de dados sobre a utilização de um medi-camento específico na gravidez, ele não deve serreceitado, de forma alguma, a gestantes.

Existem algumas classificações de medica-mentos conforme o risco associado ao seu usodurante a gravidez. Desde 1975, a Food andDrug Administration (FDA), agência do governonorte-americano responsável pela avaliação, au-torização de comercialização e controle de medi-camentos e alimentos no país, adota umaclassificação de acordo com o risco de um medi-camento causar defeitos congênitos e outros efei-tos na reprodução e na gestação.14 Talclassificação tem o objetivo de auxiliar e orientara prescrição de medicamentos a gestantes.

Segundo a classificação adotada pelo FDA, osmedicamentos podem ser enquadrados em cincocategorias:14, 16, 9

• CATEGORIA A: medicamentos para os quais nãoforam constatados riscos para o feto em ensaiosclínicos cientificamente desenhados e controla-dos;

• CATEGORIA B: medicamentos para os quais osestudos com animais de laboratório não de-monstraram risco fetal (mas não existem estu-dos adequados em humanos) e medicamentoscujos estudos com animais indicaram algum ris-co, mas que não foram comprovados em huma-nos em estudos devidamente controlados;

* Segundo Fuchs & Wannmacher (1998), os estudos pré-clínicos em animais têm papel fundamental no esclarecimento de prin-cípios e mecanismos de teratogênese, fornecendo uma base para triagem de medicamentos quanto ao potencial teratogênico.Entretanto, são limitados na identificação de teratógenos em humanos devido às diferenças genéticas entre as espécies.

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• CATEGORIA C: medicamentos para os quais osestudos em animais de laboratório revelaramefeitos adversos ao feto, mas não existem estu-dos adequados em humanos, e medicamentospara os quais não existem estudos disponíveis;

• CATEGORIA D: medicamentos para os quais aexperiência de uso durante a gravidez mostrouassociação com o aparecimento de más forma-ções, mas que a relação risco-benefício podeser avaliada;

• CATEGORIA X: medicamentos associados comanormalidades fetais em estudos com animais eem humanos e/ou cuja relação risco-benefíciocontra-indica seu uso na gravidez.

É importante salientar que as categorias lista-das pelo FDA não implicam, necessariamente,uma gradação de risco ou de toxicidade, mas de-vem ser entendidas com uma avaliação de risco-benefício na gestação.14

Os medicamentos podem ser, ainda, classifi-cados quanto à teratogenicidade. Em Castro,4 en-contram-se duas categorias:

• os que são claramente teratogênicos: aquelesque afetam a maioria dos embriões expostos e,portanto, são mais facilmente identificados;

• os que não têm situação teratogênica bem defi-nida: medicamentos que apresentam taxas derisco mais baixas e taxas de exposição variadasou mesmo desconhecidas, representando perigolatente.

Quanto à sua teratogenicidade, um agentepode ser considerado teratogênico quando produzuma alteração, maior ou menor, na morfologia e/ou fisiologia normais do feto ao ser administradodurante o desenvolvimento embriológico ou fetal.

Segundo Niebyl,17 tem-se historicamente en-focado, principalmente, as anomalias morfológi-cas evidentes e graves (maiores), mas a tendênciaé de ampliar o conceito para inclusão das anoma-lias estruturais menores, das latentes (que podemaparecer anos depois do nascimento) e das altera-ções funcionais.

Essas alterações, principalmente as más-for-mações congênitas, têm maior risco de acontecerquando o medicamento com potencial teratogê-nico é utilizado no primeiro trimestre de gravidez(período de diferenciação embriológica). Rozen-feld e Pepe20 ressaltam que, durante a maior par-te desse período, a mulher pode não saber que

está grávida, o que gera um outro problema: agravidez durante o uso de fármacos.

Nos outros períodos da gravidez, podemocorrer danos fetais decorrentes de alterações nafisiologia materna provocadas por medicamen-tos, efeitos farmacológicos sobre o feto e interfe-rência no desenvolvimento fetal. Segundo Fuchse Wannmacher,9 têm-se como exemplos algunsantiinflamatórios não esteroidais (ibuprofeno, na-proxeno e fenoprofeno) que não devem ser utili-zados no terceiro trimestre da gravidez, pois o seuuso nessa fase está associado ao fechamento pre-maturo do canal arterial e a conseqüente hiper-tensão pulmonar no feto ou neonato. EmChetley,6 encontra-se o relato de que o uso doácido acetil salicílico no final da gestação podedeter a contração uterina, levar a complicaçõesdurante o parto e causar hemorragia no recém-nascido.

Embora sejam úteis, os sistemas atuais de clas-sificação de medicamentos e seus efeitos associa-dos à gestação devem ser utilizados com cautela,pois fornecem informações limitadas sobre a maio-ria dos medicamentos. Diferentes autoresconsultados4, 20, 23, 11, 24, 10 ressaltam a inexis-tência de ensaios clínicos controlados em gestan-tes e que a maioria dos dados disponíveis refere-se a relato de caso em que um medicamento foiutilizado coincidentemente com a gravidez.

FARMACOCINÉTICA DOS MEDICAMENTOS NA GRAVIDEZ

Outro aspecto que deve ser observado quan-do se trata da utilização de medicamentos pormulheres grávidas é a provável alteração de ca-racterísticas farmacocinéticas dos medicamentosno período da gestação.9

Boobis e Lewis2 conceituam farmacocinéticacomo o aspecto da farmacologia clínica que en-globa o processo de absorção, distribuição, meta-bolismo e excreção dos medicamentos e tambéma relação desse processo com a resposta terapêuti-ca obtida e o aparecimento de efeitos adversos.

Segundo dados da literatura,2, 14 muito pou-co se sabe sobre as mudanças farmacocinéticas nagravidez e, de acordo com Meadows,14 ainda sãonecessários muitos estudos para preencher as lacu-nas existentes sobre as mudanças fisiológicas queocorrem na gestação e suas conseqüências sobre afarmacocinética dos medicamentos.

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De uma forma geral, considera-se que, devidoao esvaziamento gástrico mais lento e à diminui-ção da motilidade intestinal na gravidez, a absor-ção dos fármacos contidos nos medicamentosingeridos por via oral pode ser retardada.2, 12, 14

Durante a gestação, ocorre também uma expan-são do plasma (e o conseqüente aumento do vo-lume sangüíneo) e a diminuição da concentraçãodas proteínas plasmáticas, o que pode interferirna distribuição de algumas substâncias medica-mentosas, principalmente daquelas que se ligamfortemente às proteínas plasmáticas. O metabolis-mo e a excreção dos medicamentos também po-dem sofrer alterações, devido à aceleração dereações metabólicas (em função do elevado nívelde progesterona encontrado) e ao aumento da fil-tração glomerular (decorrente, principalmente,do aumento do volume sangüíneo).

Acredita-se que essas alterações possam interfe-rir na resposta dose-dependente e na toxicidade,mas inexistem dados suficientes na literatura cien-tífica para determinar, para a maioria dos medica-mentos, a dose segura e necessária na gravidez.

MEDICALIZAÇÃO DA GRAVIDEZApesar de todos os riscos descritos, o quadro

que se apresenta atualmente é o da medicaliza-ção* da gestante.

Piper et al.,18 em estudo retrospectivo realiza-do em 18.886 mulheres entre 15 e 44 anos, debaixo poder aquisitivo e residentes em zonas ur-banas, usuárias do serviço de saúde Medicaid, deMichigan, no período de 1981 a 1983, observa-ram que, apesar de o consumo de medicamentoster caído durante a gravidez, quando comparadocom o período pré-gravidez (três meses antes),cerca de 80% das mulheres receberam pelo me-nos um medicamento durante o pré-natal (exclu-indo-se desse percentual aquelas que sóreceberam vitaminas). Segundo os autores, osmedicamentos mais utilizados foram vitaminas,antiinfecciosos, para pele e mucosas e analgési-cos, em uma média de 3,9 medicamentos/mulher(sendo que, quanto maior a idade, maior o núme-ro de medicamentos utilizados). Entre os resulta-dos encontrados, o que mais preocupou os

autores foi a constatação de que houve consumode medicamentos conhecidamente contra-indica-dos para gestantes, como tetraciclina e contracep-tivos orais.

Em estudo multicêntrico iniciado em 1987sob patrocínio da OMS Européia pelo Collaborati-ve Group on Drug Use in Pregnancy,5 envolvendo22 países dos quatro continentes e um total de14.778 mulheres no pós-parto, encontrou-setambém um índice de medicalização bastante al-to. Apesar das inúmeras diferenças entre as popu-lações estudadas, cerca de 86% das mulheresconsumiram pelo menos um medicamento nodecorrer da gestação, com uma média de 2,9 me-dicamentos/mulher. Dessas, 85% receberam pres-crição média, 6% se automedicaram e 1%recebeu indicação de farmacêutico. Medicamen-tos a base de ferro (50,5%) e suplementos vitamí-nicos (46,3%), sozinhos ou combinados, foramos mais prescritos, seguidos pelos antiinfecciosos(cerca de 17%) e pelos analgésicos e antiinflama-tórios (aproximadamente 15%). Entre os medica-mentos usados por automedicação, foramobservados principalmente antiinflamatórios,analgésicos e antipiréticos (41%), suplementosnutricionais/hematológicos (33%) e gastrintesti-nais (12%).

Forfar e Nelson,8 em estudo realizado retros-pectivamente em 911 mulheres de Edimburgo,encontraram uma prevalência de 65% de auto-medicação e 83,1% de consumo de medicamen-tos com prescrição médica. As classes maisprescritas foram suplementos de ferro, vitaminas,sedativos, antidepressivos, tranqüilizantes e esti-mulantes do sistema nervoso central.

No Brasil, trabalhos consultados demons-tram que a medicalização da gestante também éum fato. Fonseca7 observou na cidade de Campi-nas/SP uma taxa de 94,6% de gestantes que toma-ram pelo menos um medicamento durante agestação, com uma mediana de três medicamen-tos por mulher, sendo que, do total de medica-mentos, 21,5% foram usados no primeirotrimestre e 88,8%, prescritos por médicos. Go-mes et al.10 encontraram uma prevalência de94,9% de gestantes que utilizaram pelo menos

* Segundo BARROS (1995), entende-se por medicalização fenômeno percebido na sociedade contemporânea que se constituina elevada dependência de serviços ou bens de natureza médica assistencial e conseqüente consumo intensivo das práticas e ins-trumento considerados de saúde. Esse fenômeno contribui para a transformação de processos fisiológicos normais em estadospatológicos, como a gestação e o parto, processos que vêm sofrendo, ao longo do tempo, cada vez mais intervenções médicas(indução artificial e aceleração do trabalho de parto, utilização de anestesia, alto índice de cesáreas e disseminação do uso demedicamentos, entre outras).

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um medicamento com indicação médica e 33,5%de automedicação, sendo que, de forma geral,97,6% das entrevistadas tomaram pelo menosum medicamento durante a gravidez, com umamédia de 4,2 medicamentos/mulher. Os mais uti-lizados foram aqueles contendo vitaminas e saisminerais (incluindo aqui os antianêmicos)(86,7%), seguidos de vacina antitetânica (39,7%),analgésicos (30,9%), antiácidos (27,0%) e anties-pasmódicos (25,1%). Ressaltam que o consumode medicamentos, independente da fonte de indi-cação (médica ou não médica), foi maior entre asmulheres com grau de escolaridade mais alta,que, teoricamente, teriam mais acesso a informa-ções sobre os riscos da terapia medicamentosa aofeto.

Mengue et al.,16 em estudo realizado em seiscidades brasileiras com 5.564 gestantes entre a21.a e a 28.a semanas de gravidez, observaramque 83,8% das entrevistadas usaram pelo menosum medicamento na gestação. Os mais consumi-dos foram, em primeiro lugar, as vitaminas asso-ciadas a antianêmicos (33,5%), seguidos pelosmedicamentos que atuam sobre o aparelho diges-tivo (31,3%), os analgésicos/antiinflamatórios(22,2%), os antianêmicos (19,8%) e os antimi-crobianos (11,1%). Quanto à classificação de ris-co para o feto, segundo as categorias propostaspelo FDA, 34% dos medicamentos foram enqua-drados na CATEGORIA A, 22,6% na CATEGORIA B,39,7% na CATEGORIA C, 3% na D e 0,6% na X.Do total, 12,9% não foram enquadrados em ne-nhuma categoria, pois não foram encontradas in-formações suficientes na literatura para talprocedimento. Os dados relatados demonstramque cerca de 40% dos medicamentos foram con-sumidos sem bases definidas de segurança. Osmedicamentos totalmente contra-indicados cor-responderam a 3%. Os autores relatam, ainda,ter encontrado uma diversidade muito grande emrelação ao uso de medicamentos entre as cidades

pesquisadas, o que pode ser explicado pelas parti-cularidades dos vários serviços de atenção à saú-de, dos problemas de saúde pública pertinentes acada região e da cultura local.

Em relação ao uso indiscriminado de medica-mentos descritos nesses e em outros trabalhos,Castro4 salienta que, especificamente no Brasil, afalta de controle na venda de medicamentos agestantes ou a mulheres em idade fértil são fato-res contribuintes e preponderantes, e que o pano-rama brasileiro é o mesmo encontrado em outrospaíses latino-americanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se pelos dados apresentados que amedicalização da gestante é um fato. E, apesar dainsuficiência de informações quanto ao risco dautilização de medicamentos durante a gravidez, ouso indiscriminado decorrente de automedicaçãoou de prescrições médicas sem critérios técnico-científicos é relatado em diferentes países.

Recomenda-se, então, que medidas de inter-venção sejam tomadas para minimizar os riscosinerentes à terapia medicamentosa, promovendouma utilização racional dos medicamentos e a oti-mização dos recursos disponíveis, como:

• estabelecimento de programas de educação emsaúde visando conscientização das gestantes so-bre os riscos da automedicação;

• orientação sobre medidas não farmacológicasque podem ser adotadas pelas mulheres paracontrolar sintomas comuns na gravidez (comonáuseas, vômitos e constipação), diminuindo anecessidade da utilização de medicamentos;

• estímulo à educação continuada dos profissio-nais de saúde envolvidos com o pré-natal, visan-do uma melhoria da qualidade das prescrições e,conseqüentemente, da atenção à gestante.

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Submetido: 31/out./2002Aprovado: 7/jul./2003

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