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TEOLOGIA E METÁFORAEM BOAVENTURA

António Rocha Martins

2009

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Texto originalmente publicado emMaria Leonor XAVIER (Coord.),

A Questão de Deus na História da Filosofia, Vol. I,Zéfiro, Lisboa, 2008, pp. 477-495

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Covilhã, 2009

FICHA TÉCNICA

Título: Teologia e Metáfora em BoaventuraAutor: António Rocha MartinsColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: José M. Silva RosaUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2009

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Teologia e Metáfora em Boaventura

António Rocha Martins

Conteúdo1. Filosofia-Deus-Teologia 42. Unidade e evidência divinas: o nome “Deus” 123. A mediação das criaturas – possibilidades de pensar 204. Scientia e Sapientia 235. Dizer Deus: Metáfora (Poética) 28

“Cogitare nihil aliud est quam quid est,quod dicitur, intelligere.”

S. Boaventura, I Sent. d. 8,a.1, q. 2 (I, 154a).

Uma leitura não correntia do opus bonaventuriano facilmentepermite apreender elementos de modernidade do seu pensamento:lógicos, linguísticos e hermenêuticos1. O presente estudo percorretrês momentos: 1. reconhecimento desses elementos na posição

1

Cf. M. BIANCO, “Rilettura dell’opera bonaventuriana sulla Questione diDio: dalla teologia dogmatica alla metafisica moderna, in: M. Bianco, Letturefilosofiche. Saggi su Hegel, Sohn-Rethel, Bonaventura e Agostino, Guida, Na-poli, 2004, 85-127.

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bonaventuriana sobre o conhecimento de Deus; 2. enquadramentodo conhecimento do divino na estrutura comum/universal e poéticada razão (o “incompreensível” como “pensável” metaforicamente);e 3. determinação teológica da metáfora e/ou determinação meta-fórica da teologia no dúplice movimento: de Deus para as criaturas(epifórico) e das criaturas para Deus (diafórico).

1. Filosofia-Deus-Teologia

A identificação do pensamento bonaventuriano com a chamada “fi-losofia cristã”, ou com o seu absorvimento na noção de “sabedo-ria/sapiência”, equivalente no léxico de Boaventura a “teologia”,oferece uma formulação ambígua do texto bonaventuriano2. Poder-se-á mesmo dizer que essa interpretação manifesta um certo dis-tanciamento da fonte, uma vez que o Autor distingue claramente odiscurso do filósofo do discurso do teólogo, como que já prevendoe prevenindo uma hermenêutica do texto: Loquendo non sicut the-ologus, sed sicut philosophus3.

Referindo Sócrates, Plotino e os “demais neoplatónicos” como“verdadeiros filósofos” – “todos os verdadeiros filósofos cultiva-ram um Deus”4 –, Doutor Seráfico faz preservar a intuição clássicado filosofar como “saber do não saber”, combinando no seu própriodiscurso o pensar e o viver, apresentando-se como admiravelmente

2 É impossível reduzir a filosofia medieval à referência cristã, e, bem assim,é impossível reduzir a filosofia de S. Boaventura ao conceito de filosofia cristã.Um por todos, veja-se: W. KLUXEN, “Die geschichtliche Erforschung der mit-telalterlichen Philosophie und die Neuscholastik”, in: E. Coreth; W. M. Neidl;G. Pfligersdorffer (eds.), Christliche Philosophie, II (Rückgriff auf scholastis-ches Erbe), Graz/Wien/Köln, pp. 362-389.

3 Coll.in Hexaem. V, 14 (V 356b). As indicações entre parêntesis referem-seà edição crítica de Quaracchi.

4 Coll. in Hexaem. V, 15 (V 356b).

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actual para o nosso tempo5. O Santo vivia a sua interioridade. Nãopoderia sobrepor a teologia à filosofia: o filósofo e o teólogo sãopara ele um só – o mesmo homem. São Boaventura pensa e ensinacomo vive, porque a vida para ele é filosofia e teologia.

O que São Boaventura fez foi tirar à filosofia a pseudo-ilusão dapossessão da verdade completa, porque para ele a razão – ou mens– não pode desconhecer-se a si mesma ignorando a raiz histórica.Não esqueçamos que o tempo é imprescindível à existência (“serno tempo presente”) como dupla disposição: da coisa inteligida –mundo – e do próprio inteligente – ser humano6.

São Boaventura, como observa A. Menard, é habitualmenteconsiderado um tradicionalista7. E ele próprio confessa não de-sejar ser um inovador8. Pensamos, contudo, que o Doutor Será-fico foi capaz de operar a síntese mais completa da sua tradição,erigindo-se como momento de elevada inovação; abriu caminhossusceptíveis de captar nos desenvolvimentos ulteriores do pensa-mento9.

No sentido oposto de quaisquer dicotomias/dualismos10, a “ob-jectividade” vive imprimida de “subjectividade” (quoad nos)11. O

5 Cf. A. POPPI, “Se e come è possibile la filosofia in s. Bonaventura”, in V.Gamboso et al., Teologia e filosofia nel pensiero de S. Bonaventura. Contributiper una nuova interpretazione, Brescia, Morcelliana, 1974, p. 185.

6 Cf. M. Trin. V, 1 (V 91b).7 Cf. A. MENARD, “Une leçon inaugurale de Boanventure”, Etudes Fran-

ciscaines, 21 (1971), p. 273.8 II Sent., Praelocutio (II, 1A).9 Entre muitos possíveis, veja-se: D. ANTISEREI: “La logica di un mistico

e la mistica di un lógico. Bonaventura da Bagnoregio e Ludwig Wittgenstein”,Doctor Seraphicus 28 (1981) 29-63); e também H. U. von BALTHASAR, Her-rlichkeit. Eine Theologische Ästhetik, II, (Fächer der Stille), Johannes Verlag,1984, pp. 267-268.

10 Cf. H. PUTNAM, Reason, Truht and History, Cambridge, 1981, p. 9.11 Quanto mais necessário mais evidente. Uma coisa diz-se mais certa ou

mais conhecida do que outra duplamente: 1. absolutamente (simpliciter); e 2.relativamente a nós (quoad nos). As coisas mais evidentes e claras parecem-nosobscuras por defeito do nosso intelecto criado. (M. Trin. VII, 1; V, 109b). A

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intelecto humano, nesta vida, permanece incapaz de captar imedi-atamente as coisas mais manifestas da natureza: nada se conhececompletamente12. Nesse processo, o Autor funde sistematicamente– sem jamais as confundir – filosofia, teologia e mística. A filosofiaabre-se à teologia: oportet philosophari in theologia; e o “salto darazão” eleva finalmente a mente a Deus (elevatio mentis ad deum).

O pensar do divino é estrutura do nosso pensamento; expliquemo-lo: iremos vendo como essa concepção do pensamento empreendee apreende a originalidade de São Boaventura. Cremos não errarquando afirmamos que o Santo descreve a metáfora como modali-dade de constituição do próprio pensamento, uma vez que este sedesdobra completamente naquela como procedimento mais conve-niente à linguagem humana (verbum humanum) no acto constituídopelo conhecimento de Deus.

Deus é-nos naturalmente pensável mas não é pensamento nemé totalizável no ou pelo pensamento. Se assim fora, aliás, a trans-cendência do divino anular-se-ia. Não é possível ver o Deus divinocomo reacção – estrutural – ou produção – interna – do pensa-mento. A verdade está em nós mas não é nossa. Na relação deDeus com o pensamento a transcendência divina jamais coincidecom a imanência do mundo: Deus continua a ser Deus, e não ho-mem/mundo. A contemplação de Deus, propriamente falando, só épossível fazendo prevalecer a “distância absoluta” entre o próprioDeus e o homem/criaturas, isto é, não submetendo Deus às con-dições humanas da experiência do divino. Os pólos de tal relação“não são equiparáveis”. Com efeito, diz Boaventura, assim comonenhuma “alma” pode unir-se a outras “almas”, e como nenhum“corpo” pode unir-se a outros “corpos”, também o “oposto” não

mediação dianoética, sem a qual não é possível falar de processo cognoscitivo,requer a remoção do “tríplice defeito do intelecto cognoscente”: 1. “defeito daobscuridade e ignorância para conhecer o verdadeiro”; 2. “defeito da tepidez einacção para operar o bem”; 3. “defeito da timidez e inconstância para fugir esuperar o mal”. (Sermones dominicales, 39, 6)

12 Sc. Chr. IV, ad 22 (V 26b).

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pode unir-se ao “oposto”: e, portanto, a criatura não pode unir-sesubstancialmente a Deus13.

Ora, então, porquê e como pensar Deus? Como é possível dizerDeus?

O estudo de Deus, ou melhor, o conhecimento de Deus, é ocentro da filosofia bonaventuriana14. Poder-se-á dizer que Deusé fundamento, objecto e fim último de todo o sistema filosófico-teológico de São Boaventura. Mas importa desde já notar que oSanto situa a questão de Deus, não no plano da existência – pro-priamente falando, o problema de Deus não constitui um problema–, mas no plano da essência. Ele pretende, com efeito, saber, nãose Deus existe – “Deus é evidente tanto por si como por meio deprovas” –, mas sim como é que o Ser divino pode ser, simultane-amente, pensado – pensabilidade –, conhecido – cognoscibilidade– e dito – dizibilidade –, salvaguardando-se a transcendência di-vina, ou seja: por um lado, não fechar Deus ao pensamento e, poroutro, não fechar Deus no pensamento. Se a transcendência fosseanulada o pensamento não poderia sequer saber que Deus é Deus;o divino que assim surgiria não se identifica com Deus: ver-se-iareduzido a mero conteúdo formal da consciência. O conceito deDeus não pode fazer de Deus um conceito. Pensar Deus não faztransitar Deus no pensamento que o pensa, nem o pensamento noobjecto pensado.

Todos os verdadeiros filósofos cultivaram um Deus, salientaBoaventura. Pode dizer-se que por si Deus é um conceito filosóficoe de algum modo o mais filosófico de todos os nossos conceitos, oconceito superior e limite. Mas o conceito mais filosófico de todosjá não é apenas filosófico, pois excede continuamente o domíniodo pensado. Como adverte Boaventura, “a primeira clareza é a

13 III Sent. d. 1, a. 1, q. 1 (III 11b).14 Cf. M. de WULF, Histoire de la philosophie médiévale, II, Lovain-Paris,

1936, p. 114.

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da ciência filosófica”, mas embora ela seja “grande na opinião demuitos homens do mundo, facilmente se eclipsa se o homem nãotomar cuidado com a cabeça e a cauda do dragão”, a fim de se nãoexpor aos perigos da “loucura”15.

Na sua constituição a racionalidade, interpelada pela ideia deinfinito, guarda um sentido que excede absolutamente o interior dosujeito, cujo movimento é sempre de transgressão e de subversão(metáfora) do anterior/acumulado, abrindo e abrindo-se a horizontesempre maior: o pensamento vê-se por si mesmo impedido de parare sabe converter-se para poder crescer16. São Boaventura é muitopositivo a respeito das capacidades da razão. Na actividade de co-nhecer compromete todo o homem. Não por acaso distingue asciências relevando o seu objecto17. Para ele, toda a ciência é essen-cialmente conhecimento da verdade (notitia veritas): Deus videturratione ostensiva18.

A filosofia vai ao encontro da teologia, não por imposição destamas especialmente por carência dela mesma19. Filosofia e teologianão são apenas duas etapas de um mesmo “itinerário”20. Dizer quea filosofia não se basta a si mesma não quer dizer que ela não pos-sui “autonomia”21, quer isso sim dizer que ela conjuga intencional-mente um horizonte infinitamente aberto22. À essência do filosofaré apta a transcendência. Ora São Boaventura doutrina essa noçãode filosofia e faz dela uso indeclinável, a fim de mostrar que Deus

15 De donis IV, 12 (V 475a).16 Vd. J. C. GONÇALVES, “O estilo medieval da racionalidade”, in: J. Antô-

nio de C. R. de Souza, (Org.), Idade Média: tempo do mundo, tempo dos ho-mens, tempo de Deus, Edições Est, Porto Alegre, 2006, pp. 182-188.

17 De donis IV, 6 (V 474b).18 I Sent. d. 2, a. un., q. 1 (I 50a-b).19 De donis IV, 13 (V 476a).20 De donis IV, 12 (V 476a).21 De donis IV, 6 (V 520b).22 Vd. L. VEUTHEY, “Spirito Bonaventuriano”, in A. Pompei (org.), La

filosofia cristiana di san Bonaventura, Roma, Miscellanea Francescana, 1996,275-291).

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é o Ser (esse est primum Dei nomen) e que tudo quanto se dis-ser de Deus se reduz ao Ser. O Ser divino é o primeiro objectodo pensamento, o ser que primeiramente cai no intelecto (primumcognitum)23.

Para São Boaventura, o conhecimento do divino preenche todasas operações do intelecto humano: “Deus está presente na própriaalma e em todo o intelecto pela verdade.”24

Deus é o conceito mais evidente, mais perfeito e primeiro detodos; mas o Ser divino não pode ser conhecido imediatamente emsi no nosso estado actual. E isso, sublinha Boaventura – é interes-sante notá-lo –, não em virtude do pecado original mas da naturezafinita da nossa inteligência: “o homem é um ser racional mortal”25.E, por definição, todo o limite coarcta e inclui alguma deficiência.Com efeito, distingue o Santo que uma coisa se pode dizer maiscerta ou mais conhecida do que outra em dois sentidos: ou absolu-tamente (“simpliciter”), ou relativamente (quoad nos). A primeiraproposição é verdadeira no que respeita ao conhecimento da maiorcerteza absoluta, não o é, contudo, no que respeita à certeza relativaa nós26. A vida contempla manifestações obscuras não por defici-ência das coisas manifestas mas do nosso intelecto. As coisas emsi são “certíssimas” e “claríssimas”, mas parecem-nos sempre obs-curas. Tal “carência” (defectus) da nossa parte é a “cegueira” ou a“ignorância” que faz com que pensemos que uma coisa não existe– justamente porque a ignoramos. Diz mesmo Boaventura: “Es-tranha cegueira [essa] do nosso intelecto que não considera aquiloque primeiramente vê e sem o qual não nada pode conhecer”27.

Dizer, pois, que algo não é não quer dizer que ele não seja.No caso de um qualquer ente, diz o nosso Santo, o pensamentoaplica-se-lhe sempre unicamente de dois modos: a propósito sua

23 Coll. in Hexaem. X, 10 (V 378b).24 I Sent. d. 3, a.un. q. 1 (I 70a).25 I Sent. d. 25, a. 1, q. 2 (I 439b).26M. Trin VII, 2 (V 109b).27 Itin. V, 4 (V 309a).

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existência (si est) e a propósito sua essência (quid est). Pensando,contudo, a verdade divina o nosso intelecto falha no conhecimentoda sua essência, mas o mesmo não sucede no conhecimento da suaexistência28. Como disse Hugo de São Vítor: “Desde o início Deusdepôs com medida o seu conhecimento no homem, a fim de que,tal como a sua essência [quid esset] jamais poderia ser compreen-dida, assim também a sua existência [quia esset] jamais poderiaser ignorada”29. Portanto, visto que o nosso intelecto jamais falhano conhecimento da existência divina, não pode ignorar que Deusexiste nem pensar que o Ser divino não é30.

A ideia frequente de que Deus não existe, de que é um ídolo,ou de que é o que não é – de que não é um Deus justo, por exemplo– é mera consequência do nosso próprio pensamento, que assimmostra falhar no conhecimento da essência divina31. Conhecemoscomo pensamos. Ou seja, poderia dizer São Boaventura: pensamosnão pensando como pensamos e como é possível o que pensamos.

O que significa, pois, pensar, em termos bonaventurianos? Ora,responde o nosso Autor: “Pensar nada mais é do que o que é, o quese diz, [ou seja] conhecer [inteligir]”32.

É também o Santo que o explica:Se eu pensar que o homem é um burro sei que isso é falso. É

28 I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 154b).29 Ibidem. (Boaventura cita aqui o “Mestre” HUGO DE SÃO VÍTOR, Libr. I

de Sacram.; PL 176, 217).30 Ibidem.31I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 154b).32I Sent. d. 8, q. 2 (I 154a): “[. . . ] et hoc cogitare nihil aliud est quam

quid est, quod dicitur, intelligere”. (Sublinhado nosso). Costuma traduzir-seintelligere por “entender”, reservando-se “conhecer” para o termo cognitio. Vd.A. BLAISE, Dictionnaire latin-français des auteurs chrétiens, Turnhout, Bre-pols, 1954, p. 461: art. intelligo. Preferimos manter “inteligir”, ou vertê-lopor “conhecer”, pois nos parece este termo corresponder mais adequadamenteao sentido e desenvolvimento do texto bonaventuriano. Isso será particulamentemanifesto no contraste entre intelligere e comprehendere (Deus é imcompreen-sível mas é cognoscível).

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deste modo que se pode pensar que a verdade do Ser divino nãoé. Se, pelo contrário, eu pensar que algo não é e crer que não é,isso é pensar “com assentimento”. Mas, se assim for, pensar quenão existe o que é, pode vir de um defeito da inteligência ou dointeligível. Com efeito, se eu pensar que uma coisa não é porque aignoro, o que eu penso é forçosamente falso, e isso deve chamar-secegueira ou ignorância, pois tal não nega que a coisa pensada sejaaquilo que é33.

Por consequência, temos de conceder que a verdade do Ser di-vino é tal que não pode ser pensada, com assentimento, não ser,senão por ignorância daquele que a pensa e que ignora o que de-fine o nome Deus34. Pensar verdadeiramente não é, portanto, nadamais do que conhecer o que se diz.

Associa o Santo, deste modo, pensamento, conhecimento e lin-guagem; fazendo eco do clássico problema da relação entre o pen-samento e a linguagem – muito debatido na Idade Média –, SãoBoaventura, como que antecipando Kant (pensar não é conhecer),atribui ao pensamento, ao conhecimento e à linguagem iguais fun-ções espirituais, visto traduzirem-se mutuamente. Há, assim, podedizer-se – já para o Santo –, uma relação recíproca de mútua deter-minação entre cogitare, dicere e intelligere.

Boaventura, como Agostinho e Anselmo, distingue o discursointerior (loqui ad se, is est apud se) do discurso que se dirige paraos outros (dicere ad alterum): o primeiro não é mais do que conce-ber alguma coisa com a mente (cogitatio); o segundo é o exprimiro conceito da mente (locutio), que equivale à palavra proferida ouescrita (verbum prolatum)35.

33 I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 154a).34I Sent. d. 8, a. 2, q. 2 (I 155a-b).35I Sent. d. 27, a. un., q. 1 ( I 482b).

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2. Unidade e evidência divinas: o nome“Deus”

Os principais lugares em que São Boaventura coloca “racional-mente” a questão Deus, são os seguintes: 1. Commentarii S. Bona-venturae in primum librum Sententiarum Petri Lombardi; 2. Qua-estiones disputatae de mysterio Trinitatis; 3. Itinerarium mentis inDeum; 4. Collationes in Hexaëmeron.

Não se trata aqui – sublinhemo-lo – de provar a existência daDivindade. Não é possível totalizar Deus no intelecto mas é possí-vel apreender totalmente a sua existência. A verdade do Ser divinoé evidente, “quer em si quer por meio de provas”. Não é apenas pordefeito de “presença” que alguma coisa pode ser pensada não ser,mas também por defeito de “evidência”, porque não é evidente emsi nem por meio de provas. Em Deus não há defeito de presençanem defeito de evidência. Deus é de tal modo verdadeiro que nãopode ser pensado não ser, senão por ignorância daquele que pensae que ignora o que quer dizer o nome Deus: o predicado está in-cluído no sujeito, a verdade e a natureza criada provam e concluema existência da verdade divina, porque se há um “ser por participa-ção e por um outro, há necessariamente um ser por essência e nãopor outro36.

Que Deus é, isso é um dado, mas como é, eis a questão. Não setrata, portanto, de saber que Deus é (quia est), mas sim de saber oque Deus é (quid sit). Ou seja, repetimo-lo, trata-se de uma ques-tão de essência, e não de existência; é, contudo, uma questão queassocia lógica, linguagem e hermenêutica. A intuição imediata daexistência de Deus proporciona-se somente ao comprehendens37;

36 I Sent. d. 8, a. 1, q. 2 (I 155a-b).37M. Trin. I, 1 (V 49a).

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como viator o intelecto carece de signos38, pois que este conhece‘materialmente’, isto é, per modum complexionis39.

A evidência (verum indubitabile) faz com que Deus seja uma“concepção comum [universal] do espírito” e, ao mesmo tempo,igualmente o inverso: Deus existe “certamente” porque é uma con-cepção comum/universal do espírito. Mas tal círculo, dir-se-ia, éapenas aparente: excedendo embora o pensamento o Ser divinonão se apresenta fechado ao pensamento. Deus é um só; e issotanto pela sua “simplicidade”, como pela “concepção comum doespírito de que Deus é o que de maior não pode pensar-se”, bemcomo pela “razão de estado, que não é senão o [estado] mais supe-rior e o primeiro”40. Seria, pois, não só impossível, como tambémininteligível dizer que há vários deuses. O nome “Deus” signi-fica o que é absolutamente superior na realidade (in re) e na repre-sentação de aquele que o pensa (in opinione cogitantis): na reali-dade, porque todas as coisas são por ele, nele e para ele, e porquenele se encontra totalmente a perfeição41. É por isso impossívelque, preservando tal significação, alguma outra coisa lhe seja igual.Por conseguinte, nada de maior se pode pensar, nem mesmo comoigual, sendo o que é sempre superior na representação42.

Sublinhámos que a “evidência” do Ser divino, em si e por meiode provas (in se et in probando), constitui, por um lado, o modode ser de Deus (“modo sem modo”) e, por outro lado, configurae estrutura o modo do nosso conhecimento do divino, pois quesendo uma concepção comum do espírito, o homem naturalmentenão pode não pensar Deus. Como se explica, porém, a questão deDeus? A “evidência” não deveria ela mesma dispensar a “ques-tão”?

Somos como a ave nocturna diante da luz, não vemos as coisas38I Sent. d. 16, a. un., q. 2 ( I 281b).39I Sent. d. 41, a. 2, q. 1 (I 736a-b).40I. Sent. d. 2, a. un., q. 1 (I 50a-b).41I. Sent. d. 2, a. un., q. 1(I 52a).42 Ibidem.

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mais manifestas da natureza. Os nossos olhos não são capazes dedistinguir a luz divina da luz do fogo ou da luz lua43.

Na verdade, a evidência de Deus em si não exige provas, maso mesmo não sucede quanto à existência de Deus para nós. Deusem si, como luz suprema, é sumamente cognoscível. E como luzsuprema completa o nosso intelecto; Deus ser-nos-ia sumamentecognoscível se não fora um “certo defeito” da parte do sujeito cog-noscente44.

Sublinhamos este ponto porque ele é muito oportuno para anossa reflexão: precisamente aqui – pensamos – repousa o inícioda chamada “síntese” bonaventuriana, por meio da qual o Santoreconstitui a sua tradição.

Notemos de novo a interrogação regente: Será possível ao in-telecto humano conhecer Deus? Se sim, como?

Santo Agostinho, o Pseudo-Dionísio, Santo Anselmo e SãoBernardo – os quatro afluentes do pensamento de Boaventura (H.U. von Balthasar) – constituem essa tradição na qual o Doutor Se-ráfico vem a distinguir a sua posição sobre a possibilidade humanade conhecimento do divino; faz nela incluir explicitamente, comomais do que o simples enunciado, essa nossa interrogação sobre Di-vindade. Boaventura dá-se bem conta de que qualquer “solução”contém perigos, o maior dos quais seria a anulação da transcen-dência e a reificação divina. Ora, não apenas é possível ao homemconhecer e dizer Deus, como já a referência ao divino se encontrade algum modo presente na estrutura e funcionamento do intelectohumano: o “superior” como que inere e excede o “inferior”. A ra-zão não pensa sem uma ideia suprema, a qual é por isso inerenteàquela mas sem se lhe identificar – poder-se-á dizer que Boaven-tura sintetiza neste ponto a tradição. Deus está no pensamento maso pensamento não é Deus. Se Deus fosse igual ao intelecto seriamutável, como ele o é. Por outras palavras, afirma-se a simultânea

43I Sent. d. 7, a. 1, q. 3 (I 299b).44 I Sent. d. 3, a. un., q. 1 (I 68a).

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transcendência de Deus ao mesmo tempo que a sua máxima ima-nência, como afirmara Santo Agostinho45. Boaventura oferece umaparticular visão de conjunto46, dir-se-ia um eclectismo, de uma tra-dição de cujo o primeiro nome a abonar é caracteristicamente oautor patrístico. Os quatro afluentes parecem, então, intervir noDoutor Seráfico da seguinte forma: Deus é imanente, superior e es-truturador do acto de pensar (Santo Agostinho e Santo Anselmo);Deus é transcendente (Pseudo-Dionísio); e Deus é objecto e termode um conhecimento unitivo (São Bernardo)47.

Dionísio afirmara “não ser possível dizer nem conhecer Deus”48.Outros, igualmente defendendo a impossibilidade de conhecimentodo divino, haviam considerado que todo e qualquer conhecimentoexigiria a combinação de quatro pressupostos: 1. proporção; 2.união ou recepção; 3. juízo; e 4. informação. Assim, o intelectocognoscente não poderia conhecer senão o que era para si mesmoproporcionável, ao qual ele podia de algum modo unir-se, julgare informar. Entre Deus e o intelecto não haveria qualquer espéciede “proporção”, e mesmo que houvesse também não seria sufici-ente porque a verdade incriada dista mais do intelecto humano doque qualquer criatura inteligível dos sentidos; e, portanto, o inte-lecto jamais poderia elevar-se ao conhecimento inteligível do cri-ado. Por outro lado, visto ter de admitir-se uma certa “união” entreo cognoscível e o cognoscente, não é o cognoscente – mente – queestá no cognoscível – Deus –, mas o inverso. Ora como é impossí-vel que o infinito seja compreendido pelo finito, é impossível queDeus esteja no intelecto. De igual modo, aquele que julga tempoder sobre o que é julgado: ora o finito não tem poder sobre o in-finito, portanto, não pode julgá-lo; como o “juízo” é requerido pelo

45 Cf. AGOSTINHO, Lib. Arbit. II, XII, 34. Agostinho mostra que Deus é aideia quo nullus est superior.

46 Cf. L. VEUTHEY, “L’Illuminazione”, in Op. cit., p. 238.47 Vd. E. GILSON , La philosophie chez saint Bonaventure, Paris, Vrin, 1984;

ID., La Théologie mystique de saint Bernard, Paris, Vrin, 1980.48 PS.-DIONISIO AREOPAGITA, De Dvinis Nominibus, I, 2 (PG 3, 587).

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conhecimento, segue-se que o intelecto finito não conhece Deusinfinito, sobre o qual ele não tem poder49.

Este bloco de argumentos contra a cognoscibilidade de Deus– e que São Boaventura salienta – completa-se pela impossibili-dade de Deus “informar” o intelecto humano: tudo o que informaoutro, informa-o ou pela essência ou pela semelhança; ora Deusnão informa pela essência, porque a nada se une como forma, nempela semelhança abstracta, porque a semelhança é mais espiritualdo que abstracta: e nada é mais espiritual do que Deus. Se é poisnecessário haver “informação” entre o intelecto cognoscente e oconhecido e se essa informação não subsiste relativamente a Deus,então não é possível falar de conhecimento humano de Deus50.

Na base de tais argumentos é indisfarçável a tentação do natu-ral, que desde o século XII o homem medieval vem sentindo.

No pólo oposto, mesmo dentro das fronteiras da Ordem Fran-ciscana51, estão os que tiram a ciência do caminho a percorrer peloespírito na compreensão da verdade divina, introduzindo nesse per-curso uma solução de continuidade entre o natural e o sobrenatural.

A nosso ver, dirimindo tais objecções, o Doutor Seráfico se-guirá sempre um caminho integrador, no decurso do qual defineum novo estilo de pensar, que designamos como “pensar comosentido”, construindo uma verdadeira poética do pensamento. Éna linguagem que o Santo encontra a solução da indeclinável exi-gência de Deus com a determinação do sensível. Iremos vendoque para ele a linguagem obedece à dinâmica da “expressão” (ex-pressionismo), e não da “representação”, e que sua exposição éinconciliável – bem como para a poética – com a distinção de um“dentro” e de um “fora” da linguagem52. Estamos perante uma po-

49I Sent. d. III, a.un., q. 1 (I 67b-68a).50 Cf. I Sent. d. III, a.un., q. 1 (I 68a-68b).51 Cf. J.C. GONÇALVES, Homem e Mundo em São Boaventura, Braga, 1970,

p. 27.52 Cf. P. RICOEUR, “Poétique et symbolique”, in: Initiation à la pratique de

la théologie. Tome: Introduction. Paris, Les Éditions du Cerf, 1982, p. 37 e 39.

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sição que favorece a continuidade e o equilíbrio; sendo designada,por alguns intérpretes de Boaventura, pelo emblemático título de“coincidência dos opostos”, “a chave de acesso à sua metafísica, àsua lógica e à sua retórica”53.

O Doutor Seráfico, insistindo sempre muito na unificação dossaberes, não vê dualismos entre scientia e sapientia: a verdade éconciliável com a ciência54, que é sinónimo de filosofia55.

Tudo isto significa que Boaventura não só não dispensa umamediação, como também compreende a ciência na constituição edesenvolvimento da espiritualidade. A ciência é necessária e estru-tura a actividade do espírito, embora este seja sempre mais do queaquela56.

Ora o chamado argumento ontológico cumpre essa vocação doespírito: pensar o incompreensível e conhecer o incognoscível. SeDeus é incompreensível, tal incompreensibilidade reflecte-se posi-tivamente no pensamento e, portanto, sendo pensável, é tambémcognoscível e dizível: pensar nada mais é do que conhecer o quese diz.

No dizer de M. Leonor Xavier, a versão consonante de São Bo-aventura do argumento anselmiano do Proslogion situa-se na tradi-ção das versões com as quais esse argumento se foi sucedendo atéaos nossos dias – mais concordantes ou discordantes57. Há entre

53 E. H. COUSINS, “La coïncidentia oppositorum dans la théologie de saintBonaventure”, in: Etudes Francisacines, 17 (1968), pp. 15-31. Vd. também:L. PRUNIERES, “La problématique de saint Bonaventure ou la coïncidentiaoppositorum”, in: Etudes Franciscaines, 21 (1971), pp. 263-272; C. BÉRUBÉ,“Symbolisme, image et coincidence des contraires chez saint Bonaventure”, in:Collectanea Franciscana, 50 (1980) pp. 235-251.

54 Cf. Epistola de tribus quaestionibus, 12 (VIII 335b).55 Brevil. I, 1 (V 210).56 Cf. Sent. III, d. 31, a. 2, q. 3 (III 686b).57 Cf. M. LEONOR XAVIER, “Anselme et Bonaventure au sujet l’argument

du Proslogion”, J. F. Meirinhos (eds.): Itinéraires de la raison. Études de phi-losophie médiévale offerts à Maria Cândida Pacheco, Louvain-la-Neuve, 2005,127-145.

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Anselmo e Boaventura uma continuidade de fundo, visto ambosterem recebido a influência de Agostinho, por meio da qual rece-bem igualmente a inspiração da linha filosófica de cariz neoplató-nico. Mas essa sua forte afinidade não faz esbater a originalidadede ambos58.

O argumento anselmiano recebeu um acolhimento favorável nametafísica de São Boaventura. Santo Anselmo – poderoso afluentedo pensamento bonaventuriano – é frequentemente citado por SãoBoaventura. Isso sucede, por exemplo, no primeiro livro do Co-mentário às Sentenças, na distinção VIII, logo no início da questão2 do 1.o artigo: “Se o Ser divino é de tal modo verdadeiro que nãopode ser pensado não ser”59. Conclui aqui o Santo que a verdadenão pode convir a Deus como uma determinação acidental podeconvir a um sujeito, mas como propriedade essencial indissociávelda essência e, portanto, inseparável da existência60.

Mas, como vimos, há um passo primeiro no qual Boaventuraparece já referir o “argumento ontológico”, sem, contudo, menci-onar Anselmo – cujo contexto nos importa agora salientar. Comefeito, examinando a questão “Se é verdade que há um só Deus”,afirma que a unidade divina de essência ou de natureza se com-preende segundo uma tríplice suposição: 1. a “simplicidade”; 2.a “concepção universal do espírito de que Deus é o que de maiornão pode pensar-se”; e 3. a “razão de estado”61. Aqui Boaventuranão menciona o arcebispo de Cantuária. O que é verdadeiramenteimportante, para o nosso ponto de vista, é o valor dessa afirmaçãodo Santo.

Segundo Marc Ozilou, essa passagem do texto bonaventuri-ano não corresponde verdadeiramente a uma citação de Anselmo62.

58 Cf. M. LEONOR XAVIER, Op. cit., p. 127.59I Sent., d. 8, a. 1, q. 2 (I 153a).60I Sent., d. 8, a. 1, q. 2 (I 153a-b).61I Sent., d. 2, a.un., q. 1 (I 50-ab).62 M. OZILOU, Saint Bonaventure, Les Sentences. Questions sur Dieu. Com-

mentaire du primier livre des Sentences de Pierre Lombard [extraits]. Introduc-

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Mas é um passo que permite já indiciar a originalidade de São Bo-aventura. O que o Doutor Seráfico se propõe é enunciar e expli-citar o próprio esquema de funcionamento do nosso pensamento;e, portanto – observa Marc Ozilou –, o Santo não poderia perma-necer apenas no pensar comparativo. Como observa igualmenteH. Urs von Balthasar, já a propósito de Anselmo, o comparativo(majus) indica claramente que não pode constituir-se como com-parativo estático, mas sim como movimento dinâmico do pensa-mento; deste modo, o comparativo exprime também um horizontedo pensamento que transcende e engloba todo o pensamento63. OTranscendente – Deus – não é pensamento mas o pensamento éininteligível fora do Transcendente. Ou seja, o absoluto do pen-samento não é pensamento – a ideia – : é Deus. É assim que oSer divino aparece como limite do pensamento mas não como pen-samento do limite: Deus é aquilo a que nada é superior. Todo opensamento tem como fim o Infinito.

A existência, isto é, a “evidência”, e unidade divinas identifi-cam os termos bonaventurianos da cognosciblidade de Deus. Con-tra a nova corrente peripatética, de Alberto Magno e Tomás deAquino, Boaventura defende a doutrina agostiniana da evidênciada existência de Deus, considerando erro voluntário o non est Deusdo insipiente64.

tion générale, traduction, notes et index de Marc Ozilou, Paris, Puf, 2002, p.51.n.1.

63 Cf. Hans U. von BALTHASAR, Op. cit., p. 236.

64 Cf. M. BIANCO, Op. cit., p. 90.

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3. A mediação das criaturas –possibilidades de pensar

Mas uma coisa é dizer que Deus é cognoscível, outra coisa é dizercomo é que esse conhecimento é possível. São Boaventura dá-sebem conta dessa distinção no interior da nossa actividade cognos-citiva, sublinhando a acção mediadora das criaturas na ordem aseguir nesse processo, a ponto de ele próprio nos deixar supor se osegundo livro do Comentário às Sentenças – que trata justamentedas criaturas65 – não deveria ser propriamente o primeiro; e issoporque, conhecendo nós o Criador por meio de todas as criaturas,poder-se-ia considerar que primeiro se deve tratar delas e depoisde Deus. Responde-nos que, tendo tratado antes do Criador, tra-tou também das criaturas, por isso é o objecto do primeiro livroo conhecimento de Deus66; o conhecimento do divino é auxílio àconsideração da origem (conditio) e queda (deviatio) das criaturas,objecto do segundo livro67. Não se pode conhecer a origem dascoisas sem conhecer primeiro o princípio, e o princípio da condi-tio das coisas é Deus; Deus está no princípio, durante e no termodas criaturas. À medida que se desenvolve o processo das criaturas(egressus), estendem-se à mente do homem os infinitos aspectosde Deus (regressus)68. Conhecer as criaturas significa conhecerDeus, como conhecer Deus significa conhecer as criaturas.

A nossa capacidade de conhecer é ilimitada, e de igual modoé ilimitada a inteligibilidade do objecto; com efeito, para Boaven-

65 “Acerca da criação e formação das coisas corporais e espirituais e de outrascoisas pertinentes.” (De rerum creatione et formatione corparalium et spiritua-lium et aliis pluribus eo pertinentibus)

66 “Acerca da unidade e trindade de Deus” (De Dei unitate et trinitate).67II Sent. Proem. (II, 6-7).68 Cf. R. LAZZARINI, S. Bonaventura filosofo e mistico del cristianesimo,

Milano, Fratelli Bocca, 1946, pp. 44-45.

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tura, o obstáculo ao conhecimento perfeito de Deus subsiste, nãona estrutura do nosso poder cognoscitivo, isto é, na razão, mas nasituação histórica na qual operamos – o tempo. O Santo sente a im-possibilidade de, neste mundo, ver Deus em toda a sua claridade,ou sicut est. Concedemos, pois, as razões, diz o Doutor Seráfico,pelas quais Deus é cognoscível pela criatura e absolutamente cog-noscível por si, se não existir impedimento ou deficiência da partedo intelecto cognoscente69.

A passagem da cognoscibilidade para o conhecimento propria-mente dito repousa na mediação das criaturas, mas não exclusiva-mente nem principalmente nelas. As criaturas dependem de Deuscomo os efeitos da causa; esta dependência causal consigna umadupla função mediadora: uma positiva, que se sintetiza no factode que entre a causa e o efeito se dá sempre uma certa conveni-ência e, portanto, uma certa semelhança; e uma negativa, que semanifesta na necessidade que o intelecto humano, “como se fossematerial”, tem das próprias criaturas para conhecer o Ser divino,essencialmente imaterial70.

É claro, explica São Boaventura, que a diversidade das criatu-ras não pode não determinar uma certa diversidade no seu modode convir e ou de se assemelhar a Deus. Com efeito, o conjuntodas criaturas pode agrupar-se em três categorias: sombra, vestígioe imagem. Tais denominações traduzem modos diversos de repre-sentação. Como sombra, a criatura é representação afastada e con-fusa; como vestígio ela é representação afastada mas já distinta; e,como imagem, a criatura é representação já próxima e distinta71.E desta diferença tira-se uma outra, que vem das condições nasquais se observam as coisas. Com efeito, chamam-se sombras àscriaturas em virtude das propriedades respeitantes a Deus – consi-derado algum género de causa e segundo uma razão indeterminada;

69 I Sent., d. 3, q. 1 (I 68b).70I Sent. d, 3, q. 1 (I 72a).71I Sent., d, 3, a. un., q. 1 (I 73a-b).

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chamam-se vestígios em virtude das propriedades que respeitam aDeus, como a uma tríplice causa: eficiente, formal e final; tais sãoo uno, o verdadeiro e o bom. Chamam-se imagens em virtude dascondições que respeitam a Deus, não somente como à causa, mastambém como ao objecto, que são a memória, a inteligência e avontade72.

Prosseguindo, o Santo diz que em ligação com essa diversidadehá ainda a tirar duas outras diferenças: uma diz respeito àquilo parao qual as criaturas conduzem; a outra, por sua vez, vem das pró-prias criaturas, enquanto sombra, vestígio e imagem; como som-bra, a criatura conduz ao conhecimento do que é comum comocomum; como vestígio, conduz ao conhecimento do que é comumcomo apropriado; já como imagem, (“só Deus é superior à ima-gem”), conduz ao conhecimento do que é próprio como próprio.Assim, só a criatura racional pode ser comparada a Deus como ob-jecto, porque só ela é capaz de Deus por conhecimento e amor: porisso só ela é imagem.73.

Aqui surge, porém, uma certa dificuldade. Se é de facto ima-gem e semelhança de Deus, se o melhor nele é a mente racional,pela qual é superior às demais criaturas, o homem pode unir-seDeus sem o intermédio de alguma criatura. Como distinguir, en-tão, onde termina o interesse predominante da criatura e da suajustificação e começa a acção constituída pela contemplação doSer divino?

São Boaventura cita Agostinho, que havia dito ser “a menteimediatamente formada pela própria verdade”74; arguir-se-á, notaBoaventura, que um tal conhecimento não convém à natureza hu-

72 I Sent., d, 3, a. un., q. 1 (I 73b).

73 Ibidem.74 Cf. AGOSTINHO, De diversis quaestionibus, q. 51, n. 2 (PL, 40, 33; CCL,

44 A, 80): “Quare cum homo possit particeps esse sapientiae secundum interio-rem hominem, secundum ipsum ita est ad imaginem, ut nulla natura interpositaformetur, et ideo nihil sit deo coniunctius.” (Sublinhado nosso).

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mana no presente estado, nem mesmo em qualquer outro. Comosolução, no entanto, formula uma dupla mediação: a eficiente (ef-ficiens) e a disponente (disponens); e explica a interpretação deAgostinho à luz daquela: Deus é o meio eficiente e o objecto pró-prio da mente75. Tal distinção deve entender-se com a dupla con-sideração do homem: ou como ser em si (ens in se), ou como serfora de si (extra); com efeito, segundo o primeiro modo, o homemnão chega a Deus por meio das criaturas; mas como ser fora desi, conhecendo as criaturas, o homem recolhe-se em si e eleva-seacima de si76.

E, assim, Boaventura distingue dois modos de conhecer Deus,nas (in) criaturas e pelas (per) criaturas; conhecer Deus nas cria-turas – cognoscere in creaturis – é conhecer a própria presença einfluência dele na criatura. Este modo de conhecer, diz o Santo, épróprio dos bem-aventurados (“homens de compreensão perfeita”);o homem no estado presente só em parte pode dele desfrutar. Co-nhecer Deus pelas (per) criaturas é elevar-se pelo conhecimento dacriatura ao conhecimento de Deus, como se fosse por meio de umaescada77.

4. Scientia e Sapientia

J. Cerqueira Gonçalves faz notar que as simpatias do Doutor Se-ráfico vão para o conhecimento nas criaturas, motivo por que oSanto atribui esse modo de conhecer aos homens de compreensãoperfeita78. Mas a superioridade do conhecimento que vê Deus nascriaturas não invalida nem disfarça a situação do homem presente

75 I Sent., d. 3, a. un., q. 4 (I 75a).76 I Sent., d. 3, a. un., q. 4 (I 75b).77 I Sent., d. 3, a. un., q. 4 ( I 74b).

78 J. C. GONÇALVES, Op. cit., p. 382.

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– viator – , para quem o acesso a Deus se realiza também pelascriaturas. Este último aspecto revelar-se-á decisivo na concepçãobonaventuriana de sapientia; com efeito, para o Santo, o conheci-mento das “coisas humanas” – a ciência – constitui grande parte donosso saber, enquanto somos in via, e por isso, tal conhecimento énaturalmente compreendido na definição de sapientia. A nossa sa-pientia inclui diversas ciências: o conhecimento das coisas divinase humanas e de todas as restantes criaturas, nas quais se manifestaa suprema sapientia de Deus79.

É de notar que Boaventura insiste reiteradamente na unificaçãodos saberes em função da origem da inteligibilidade dos objectos,à qual dispensa atenção particular no opúsculo De Reductione Ar-tium ad Theologiam80.

Na interpretação de F. Corvino, a importância concedida porBoaventura à ciência explica-se pela sua forte influência do natura-lismo de Hugo de São Vítor81. O Vitorino, que muitas vezes é vistocomo “fiel intérprete e continuador” de Agostinho, reitera a defini-ção clássica da Filosofia como “investigação completa de todas ascoisas humanas e divinas”82. O autor patrístico fizera consistir a fi-losofia, o studium sapientiae, exclusivamente no conhecimento deDeus e da alma; para Hugo, o studium sapientiae não se exaure noconhecimento de si nem no problema de Deus, mas compreendetambém, como sua parte essencial, o estudo da natureza. Com

79III Sent., d. 35, d. 1 (III 787a-b).80 Vd. J. C. GONÇALVES, “Filosofia e Epistemologia. ‘Redução das Ciên-

cias à Teologia’ de São Boaventura, in: Pensar a Cultura Portuguesa. Homena-gem ao Prof. Doutor Francisco da Gama Caeiro, Lisboa, 1993, pp. 331-345.

81 F. CORVINO, “Qualche annotazione sulla concezione della “sapientia” inBonaventura da Bagnoregio”, in A. Musco (a cura di): Il concetto di “sapien-tia” in San Bonaventura e San Tommaso, Palermo, Biblioteca dell’Enchiridion,1983, pp. 86-87.

82 HUGO DE SÃO VÍTOR, Eruditionis Didascalicae, I, cap.V (PL; 176, p.745): “Philosophia est disciplina omnium rerum humanarum atque divinarumrationes plene investigans”.

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efeito, diz o Vitorino que são três as coisas nas quais se exerce ofilosofar: primeiramente, o homem deve conhecer-se a si mesmo,para admitir que foi feito/criado; depois, ele deve investigar o queé e quem o fez/criou; e, por último, deve começar a meditar sobrea obra admirável do seu criador para conhecer com igual diligên-cia quais são as coisas que foram feitas ao mesmo tempo com elee por ele83. Eis o esquema do movimento aí implícito: Homem-Deus-Mundo.

A “redescoberta” de Aristóteles, isto é, a reabilitação do mundosensível e material responde a tendências que estavam já presentesnos autores latinos do século XII, mesmo quando eles se movemno âmbito de tradições platonizantes.

Quando um século depois chega São Boaventura, vemos na suaobra todos esses elementos culturais diversos, confluindo entre sinum coerente e orgânico sistema doutrinal84.

Boaventura confirmando, ipsis verbis, a valorização da ciên-cia, considera que à objecção segundo a qual a “ciência das coisashumanas” nada acrescenta ao “conhecimento das coisas divinas”,se deve responder que, embora as coisas divinas superem infini-tamente as coisas humanas, porque aquelas são infinitas e estasfinitas, todavia o conhecimento das primeiras não excede infini-tamente o conhecimento das segundas, porque ambos são finitos.Com efeito, conhecemos as coisas divinas segundo a sua imensi-dade; neste estado – in via – não nos é possível ver a própria Ver-dade em si; é por isso necessário que a conheçamos mediante osseus efeitos85

Mesmo in patria a ciência não desaparece; conservaremos delao “hábito” e o “uso”, embora mude o nosso “modo de conhecer”86

83 Cf. HUGO DE SÃO VÍTOR, Epitome Dindimi in philosophiam, in: R.BARON (ed.), Hugonis de Sancto Victore Opera propaedeutica, Notre Dame,1966, p. 190.

84 Ibidem, p. 80.85III Sent. d. 35, dub. 1 (III 793b-794a).86III Sent. d. 31, a. 2, q. 3 (III 687a).

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– que será intuitivo e não discursivo. “Platão” e “Aristóteles” sãoambos indispensáveis à perfeição porque ambos são parciais e in-completos; Platão, querendo estabelecer a via da sapientia, con-verteu todo o conhecimento ao mundo inteligível ou ideal, e porisso foi justamente repreendido por Aristóteles, o qual vice-versaestabelecia a via da ciência, mas descurando a outra exigência87.

Nem só Platão (sermo sapientiae), nem só Aristóteles (sermoscientiae): o homem não vive inexoravelmente cingido às reali-dades sensíveis, mas também não pode viver irremediavelmentedesligado delas. É assim que dois títulos podem sintetizar as linhasde força da sua especulação filosófica, consignando também har-monicamente os ingredientes da tradição e da sua época: o “exem-plarismo” e o “expressionismo”88. Aliás, nota Bissen, poder-se-iamesmo dar a toda a filosofia de São Boaventura o nome de expres-sionismo89.

Ora a “expressão” é o nome próprio da “semelhança”, sem aqual não há conhecimento. E sabe-se que “toda a metáfora é umasemelhança”90.

Assim, diz Boaventura, a ideia é a semelhança da coisa conhe-cida. Mas há dois modos de dizer a semelhança: 1. a semelhançasegundo a conveniência de dois termos a um terceiro: esta seme-lhança é a de univocidade; 2. e a semelhança segundo a qual sediz semelhança de outro: esta semelhança não concerne a conve-niência a algo de comum porque tal semelhança é semelhante a simesma, e não a um terceiro. Ora, é somente segundo esta últimaacepção que a criatura é semelhante a Deus, ou, inversamente, queDeus é a semelhança da criatura. E é assim que deve compreender-

87Christus mag. 18 (V 572a-b).88 Cf. J. C. GONÇALVES, “Boaventura (São)”, in Logos. Enciclopédia Luso-

Brasileira de Filosofia, vol. 1, Lisboa, 1990, p. 701.89 Cf. J.-M BISSEN, L’exemplarisme divin selon saint Bonaventure, Paris,

Vrin, 1929, p. 93.90I Sent. d. 27, a. un., q. 4 (I 488a).

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se a semelhança de que falamos – afirma Boaventura. A seme-lhança é a razão de conhecer e chama-se ideia91.

Como se vê, a semelhança é de um modo em nós e de outromodo em Deus. Em nós, como se sabe, ela é a razão de conhe-cer (ratio cognoscendi), e a verdade é o que é conhecido. Comefeito, em nós a semelhança é recebida e imprimida de fora (abextrinseco), pelo que o nosso intelecto a respeito do que é conhe-cido é intelecto possível e não acto puro. Ou seja, o nosso intelectotorna-se acto por alguma coisa conhece, melhor, pela semelhançada coisa conhecida92.

Mas, como se viu também, em Deus é o inverso, porque a razãode conhecer é a própria verdade, e o conhecido é a semelhança daverdade, ou seja, a própria criatura. E porque a razão de conhecerconsiste na própria verdade primeira, a razão de conhecer em Deusé sumamente expressiva. E, visto que tudo o que é exprimido suma-mente, assimila/representa perfeitamente o que conhece, é evidenteque a própria verdade é semelhança expressiva e ideia. O contrárioé em nós, porque não conhecemos sem a semelhança93.

O Doutor Seráfico distingue assim de três espécies de seme-lhança: 1. a “semelhança de univocidade ou de participação”; 2. a“semelhança de imitação”; e 3. a “semelhança de expressão”.

A semelhança de participação é totalmente nula porque nadahá de comum; a semelhança de imitação é pouco importante por-que o finito não pode imitar o infinito senão modicamente, e, por-tanto, a dissemelhança é sempre maior do que a semelhança. Asemelhança de expressão é a semelhança mais elevada, porque écausada pela intenção da verdade, que, como se viu, é a própria ex-pressão. Nesta espécie de semelhança, já possível entre Deus e osseus efeitos, verifica-se uma “conveniência de proporcionalidade”

91I Sent. d. 35, a. un., q. 1 (I 600a-601b).92I Sent. d. 35, a. un., q. 1 (I 601b).93I Sent. d. 35, a. un., q. 1 (I 601b).

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– o sentido de “conveniência” existente entre os seres Infinito efinitos. Essa conveniência é de ordem e proporção, porque in con-venientia ordinis unum est similitudo alterius94.

Ao conceito de semelhança associa o Santo o conceito de “ima-gem”: o homem é verdadeiramente imagem de Deus, porque é suaexpressa similitudo95.

Esse é um elemento fundamental da solução bonaventurianapara o conhecimento positivo de Deus, que é ser, e para as de-terminações das criaturas, cujas razões últimas se encontram nointelecto divino. Boaventura não partilharia a ideia de uma repre-sentação adequada de Deus, mas isso não pela razão da incognos-cibilidade do divino; vence a impossibilidade de um conhecimentohumano do divino declarando que, não obstante ser infinita a dis-tância que separa Deus das criaturas, há uma similitudo alterius.Esse conhecimento é, pois, por analogia, base da metáfora.

5. Dizer Deus: Metáfora (Poética)

Até aqui, dir-se-ia, nada de novo. A analogia descreve a relaçãoadequada entre Deus e as criaturas96. Num outro passo, todavia,comparece uma novidade: interrogando-se Boaventura sobre se ametáfora se aplica a Deus, responde integrando-a no esquema dasemelhança por analogia. E tal como considera que a semelhançase diz de um modo em Deus e de outro modo em nós, considera

94II Sent., d. 16. a. 1, q. 1 (II 395a).95II Sent., d. 16. a. 1, q. 1 (II 394b).96Similitudo, expressio, exemplaritas e repraesentatio são os conceitos bona-

venturianos que melhor explicam a relação entre o Criador e as criaturas: Vd.:A. SPEER, Bonaventura. Vom Wissen Christi, Übersetz, Kommentiert und mitEinleitung herausgegeben von Andreas Speer, Hamburg, Felix Meiner Verlag,1992.

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igualmente que a metáfora se aplica duplamente a Deus, isto é: aparte Dei e a parte creaturae.

O. Todisco vê no dúplice movimento – da analogia ao símbolo edo símbolo à analogia – motivo para uma releitura da proposta bo-naventuriana97. A ideia de que a metáfora entra na constituição dopensamento, fundando-se na analogia, permitiu verdadeiramente aSão Boaventura vencer o silêncio metafísico e o esquecimento dodivino que a manipulação de signos vazios e a construção de lin-guagens formalizantes tendem a fazer proliferar.

O que é, afinal, a metáfora para São Boaventura?Não existe de Boaventura uma obra expressamente dedicada à

doutrina da metáfora. Aparece, de forma directa, na questão IVda distinção XXXIV, artículo único do I Livro das Sentenças, quese interroga nos seguintes termos: Utrum in divinis ponenda sittranslatio98. De forma mais indirecta embora logicamente, apa-rece também na distinção XXII do mesmo Livro, acerca da nome-ação de Deus (“De nominibus divinis”)99, bem como na primeiraparte do Breviloquium, onde o Santo mostra, pela equivalência me-taphora/transsumptio, por que é que as cinco últimas categorias deAristóteles se não atribuem a Deus senão de modo transpositivo efigurativo (non attribuntur Deo nisi transsumptivo modo et figura-tivo)100.

Uma tal indicação modelar da metáfora surge igualmente emalguns dos Sermões, presumivelmente redigidos na última fase davida do Santo. A verdade explica-se metaforicamente: “[...] porconvenientíssima metáfora explica-se no verbo a obra da criação[...] por metáfora nobilíssima exprime-se a criação do homemquanto ao princípio efectivo, constituindo-se, assim [a criação],

97 Orlando TODISCO, “Dall’analogia al simbolo e dal simbolo all’analogiain San Bonaventura”, in: Doctor Seraphicus, 27 (1980) p. 15.

98 I Sent. d. 34, a.un., q. 4 (I 593-594).99I Sent. d. 22, a. un., qs. 1-4 (I 390-399).

100Brevil. I, 4 (V 212b).

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significação metafórica para o homem”101. “Pela metáfora do arcoíris ou celeste mostrou-se Deus à humanidade [...] o nascimento deCristo diz-se arco íris ou celeste.”102.

Ou seja: que Boaventura reconhece, valoriza e usa a metáfora,não há dúvida; resta saber porquê e como.

Neste ponto, a questão que se sobreleva é a de saber se SãoBoaventura faz apenas um uso retórico ou discursivo da metáfora– cingindo-a a mero plano/recurso exterior do pensamento – ou se,pelo contrário, é possível encontrar no seu próprio discurso ele-mentos que autorizam uma doutrina da metáfora, interpretando-anão apenas como poética mas também como modalidade de raci-onalidade e, portanto, como natural ao acto de pensar “como sen-tido”.

É isso que agora iremos ver, pela análise daqueles referidostextos.

São Boaventura reconhece explicitamente a “excelência” dametáfora como modo de atribuição divina103. Interrogando-se, comoacima vimos, sobre se a metáfora se pode aplicar a Deus, respondeque a metáfora possui “uma dupla razão ou fim”: 1. louvar Deus(laus Dei); e 2. conduzir o nosso intelecto (manuductio intellectusnostri)104.

A metáfora, diz o Santo, é necessária para o louvor de Deus105;e porque Deus é maximamente louvável, para que esse louvor não

101Serm. Dominica V. Post Epiphaniam, Sermo I (IX 192b): “[...] opus crea-tionis hominis explicat in verbo proposito sub convenientissima metaphora [...]sub metaphora nobilissima exprimitur creatio hominis quantum ad principiumeffectivum in metaphorica hominis significatione”. (Sublinhado nosso).

102 BOAVENTURA, Serm. , In Nativitate Domini, Sermo IV (IX 113a): “Submetaphora ergo iridis sive caelestis arcus Dei potentia nobis inclinata per huma-nitatem ostenditur [...] Christus natus dicitur arcus caelestis [...]”. (Sublinhadonosso).

103I Sent., d. 22, a. un., q. 3, (I 396b).104I Sent., d. 34, a.un. q. 4 ( I 594a).105I Sent., d. 34, a. un. q. 4 (I 594a): “Quoniam igitur finis imponit necessita-

tem his quae sunt ad finem, cum translatio sit ad laudem Dei”.

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cesse por falta de palavras – dir-se-ia, por penúria/impotência dalinguagem – a Sagrada Escritura ensinou a transferir os nomes dascriaturas para Deus106. Por isso, é em número indefinido que épreciso usar metáforas (translationes), a fim de que, tal como todasas criaturas louvam Deus, o Ser divino seja igualmente louvado apartir de todos os nomes das criaturas107. “Louvar Deus” constitui,assim, um modo denominativo – “descendente” – do Ser divino.“Louvar Deus” significa dizer Deus a partir do próprio Deus.

Embora Boaventura não dedique à linguagem estudo especial,esta “razão ou fim” da metáfora determina, nas suas propriedadessemânticas, um certo modelo de discurso e, simultaneamente, é de-terminada por uma indeclinável concepção da linguagem, no seupoder de apreender e de exprimir um mundo invisível, inacessí-vel em termos definitivos. Por outras palavras, o que o Santo jádiz é que a linguagem jamais coincide com o objecto dito. Essa“apropriação adequada” virar-se-ia contra ela mesma, pela impos-sibilidade de articulação e de acumulação progressiva de sentido.Importa, pois, preservar uma “distância”108, fonte do próprio dis-curso, sem o que não é possível falar sentido109. Essa distânciasignifica, contudo, não um afastamento, mas uma “proximidade fi-lial”, dissolvendo toda e qualquer identidade.

P. Ricoeur foi o porta-voz da viragem hermenêutica, sobretudoatravés da sua obra La métaphore vive. A justa interpretação dofilósofo francês, é no entanto parcial na medida em que, apontandoas virtudes da transição da metáfora do campo da “teoria retórica”

106Ibidem: “Propter laudem Dei necessaria est translatio. Quoniam enim Deusmultum est laudabilis, ne propter inopiam vocabulorum contingeret cessare alaude, sacra Scriptura docuit, nomina creaturarum ad Deum transferri [. . . ]”.

107Ibidem: “[...] et hoc in numero indefinito, ut, sicut omnis creatura laudatDeum, sic Deus laudetur ex omni nomine creaturae”.

108 Vd. J.-L. MARION, L’idole et la distance: cinque études, Paris, BernardGrasset, 1977, p. 230 sgs.

109 Cf. J. C. GONÇALVES, Fazer Filosofia – Como e Onde? – Braga, 1990,p. 29.

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para o da “teoria semântica”, negligencia muitas outras suscitadaspor essa transição. Pois é bem possível encontrar em São Boaven-tura indícios da transformação da metáfora aí subjacente. Já paraBoaventura tudo se resolve no bom uso da linguagem natural, cu-jos contornos, ao contrário dos das linguagens artificiais, jamaissão fechados e definitivos110.

Ricoeur distingue entre discurso descritivo e discurso não des-critivo. A “literatura” desenvolve-se em zonas não descritivas dodiscurso. A metáfora redescreve a realidade, o que supõe a suspen-são da função descritiva, para intensificação de múltiplos modos depertença ao mundo111.

J.-L. Marion faz igualmente a destrinça entre discurso de predi-cação categórica e discurso do louvor. Construindo interpretaçõesem termos de modelos, o discurso formal nega à linguagem umaalternativa de discurso: o referente é atingido categoricamente ounão o é e então deve parar.112. O discurso poético seria privado defunção referencial, visto ser meramente emocional113.

Boaventura, nos antípodas quer do terminismo, quer do nomi-nalismo114, não poderia aceitar um tal procedimento linguístico.Diria, certamente, não se alterar o fundo da questão: “Deus nãoexiste mas é”.

Marion vê justamente no “discurso do louvor” a alternativa àpredicação categórica da linguagem, que garantiria somente umaidolatria – um referente fantasmático. A linguagem, quando pre-dica artificialmente, produz ela mesma os objectos. Sobre Deus talpredicação é uma impossibilidade radical, porque não é possível

110 Cf. J. LADRIERE, “Le discours théologique et le symbole”, Revue desSciences Religieuses, 49 (1975), p. 131 e 136.

111 Vd. P. RICOEUR, “Entre philosophie et théologie II: nommer Dieu, in:Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, Paris, Seuil, pp. 286ss.

112 J.-L. MARION, Op. cit., p. 231.113 Cf. P. RICOEUR, Op. cit., p. 287.114 Cf. O. TODISCO, Le creature e le parole. Da Agostino a Bonaventura,

Roma, Anicia, 1994, p. 111.

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atingir o Ser divino como se fora um referente que verificaria ouinfirmaria uma proposição bem construída115.

A metáfora interpela radicalmente o discurso descritivo/categóricoe interpreta a plasticidade da linguagem, fundindo-se com a capa-cidade de o homem se distanciar, pela razão, vontade e imaginação(as “potências da alma”116) do imediato, para gizar um projecto demundo mais rico, integrando sucessivamente as instâncias de ondepartiu117. O discurso poético não vive do mundo dos objectos masnão ignora o mundo. Refere-se às nossas múltiplas formas de per-tencer ao mundo. Se nos tornarmos cegos a essas modalidades deenraizamento e de pertença, que precedem a relação de um sujeitoa objectos, é porque ratificamos de modo não crítico um certo con-ceito de verdade, definido pela adequação a um real de objectos esubmisso ao critério da verificação e da falsificação empíricas118.Ora nada seria mais estranho do que isso ao sentir de Boaventura.

Em ligação com a razão ou fim de louvor, a metáfora tem umaoutra razão ou fim: “conduzir pela mão” (manu-ductio) o nosso in-telecto: alia ratio vel finis translationis est manuductio intellectusnostri. Como manuductio, a metáfora reflecte igualmente a insufi-ciência de uma noção restrita de ciência, que fixaria o homem nasmalhas de um universal elaborado pelo intelecto, e acentua o sen-tido da existência das criaturas como reflexo, impossível de deduzirda sua própria essência. O real não pode reduzir-se aos seus sinais.O homem “habita” Deus119, conduzindo-se pelos signos (medium

115 J.-L. MARION, Op. cit., p. 231.116 Para Boaventura, a razão e a vontade, ou o intelecto e o afecto, são diversas

potências, mas não diversas essências, isto é, as potências da alma não diferemessencialmente. Por exemplo, há tanta conveniência entre a inteligência e a von-tade, quanta há entre a verdade substancial e a bondade. (Vd. II Sent, d. 24, a.2, q. 1; II 558-563).

117 Cf. J. C. GONÇALVES, Op. cit., p. 28.118 Vd. P. RICOEUR, Op. cit., pp. 287-288.119 Cf. Brevil. I, 5 (V 214a).

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manuductionis)120. Deus não se identifica como que sobre ele alinguagem diz – incluindo o próprio nome Deus. As metáforaspossuem uma razão comum: falam de Deus segundo a experiên-cia sensível; por exemplo, o brilho de uma estrela, o rosado de umamanhã, a força de um leão, a doçura de um cordeiro, etc. . Note-se,todavia, que “determinação sensível” não quer dizer “significaçãosensível”: “o verbo da inteligência, que é insensível, reveste a vozsensível”121.

Posto isto, vê-se por que a metáfora se aplica às coisas divi-nas tanto quanto a multiformidade dos nomes, por cuja razão sediz que Deus se pode nomear por todos os nomes – e jamais porum só: a ciência humana actual só o alcança metaforicamente, nãona sua determinação essencial. Ou seja, metaforizar não significa“inventar” Deus, a metáfora aplicada a Deus não faz de Deus uma“recriação”; as metáforas do divino traduzem a manifestação ex-pressiva da nossa contemplação Deus.

São Boaventura não poderia, pois, dissociar teologia e metá-fora. A teologia, cujo objecto é o credível não enquanto credívelmas enquanto inteligível (credibile ut intelligibile), compreendeem si a metáfora como modalidade de racionalidade, constituindo-se desse modo como resposta ao desafio simultaneamente da cog-noscibilidade e não-conceptualidade do divino. Deus não podeser conceptualizado mas pode ser conhecido. Cremos que, destemodo, o Santo antecipa a redescoberta do valor cognitivo, heurís-tico e hermenêutico da metáfora, virando para a linguagem a con-sumação do pensamento122. Deus está sempre para além do seupróprio conceito.

Se, como laus Dei, a predicação metafórica é de sentido “des-

120 Cf. Brevil. V, 9 (V 262b).121 I Sent., d. 22, a. un., q. 1 (I 396b).122 Recorde-se que Boaventura jamais desqualifica a retórica: “Tertia irradiatio

est, qua mens illustratur ad persuadendum vel inclinandum animum; hoc fit perrhetoricam”. (Hexaem. IV, 21; V 353a). E diz mais: “Certum est, quod rationalisphilosophia in rhetorica consummatur”. (De donis, IV, 12; V 475b).

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cendente” (a parte Dei), já como manuductio essa predicação é desentido “ascendente” (a parte creaturae). Ou seja, temos de o re-conhecer: Boaventura atribui à metáfora um duplo movimento: 1.epifórico (descendente); e 2. diafórico (ascendente). No primeiro,a metáfora manifesta uma função heurística; no segundo, ela as-sume uma função cognitiva. O santo franciscano “entrecruza” duasmodalidades predicativas, uma segundo a ordem descendente doser (laus Dei) e outra segundo a ordem ascendente das significa-ções (manuductio), as quais, por sua vez, correspondem a duasvias para Deus (a parte Dei e a parte creaturae). A predicaçãometafórica consigna um “equilíbrio” entre ambas, constituindo-seassim como o grande modelo da linguagem humana sobre Deus.

Lembre-se ainda que Boaventura é contra os nomes meramentecontemplativos (nominalismo)123.

No Breviloquium importa determinar um modo (modus), umaexpressão (expressio) adequada, para dizer Deus: uma expressãocatólica para traduzir a fé trinitária (De istius fidei expressionecatholica). Referindo-se aos “documentos dos santos doutores” eà classificação dos modos (modi) de P. Lombardo, Boaventura dizque tal expressão corresponde à determinação do modo de predi-cação (modus predicandi) que melhor pode dizer Deus124.

Em Deus alguns nomes são metafóricos e outros não125. As coi-sas que são perfeitas devem dizer-se de Deus “própria e verdadei-ramente”; mas as coisas que são imperfeitas não podem dizer-se,ou se se disserem, devem dizer-se segundo a assunção da naturezahumana, ou metaforicamente126. Dizer própria e verdadeiramenteé, pois, dizer de um modo perfeito, predicar propriamente o Serdivino. Tomando o exemplo das dez categorias de Aristóteles, se-gundo Boécio, só as cinco primeiras (substantia, quantitas, rela-

123 “Et quid prodest nomen habere sine re?” (Serm., Dominica tertia in qua-dragesima; IX, 229b).

124Brevil. I, 4 (V 212-213).125I Sent., d. 22, q. 3 (I 396b126Brevil. I, 4 (V 212a).

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tio, qualitas et actio) convêm verdadeiramente a Deus, como suasformas de ser, pelas quais também é conhecido127. As cinco últi-mas (passio, ubi, quando, situs et habere) só podem convir a Deus“por transposição e de modo figurativo”, visto contemplarem pro-priamente as coisas corpóreas ou mutáveis (quinque ultima propriespectant ad corporalia seu mutabilia)128.

Assim, o que interdita a predicação própria de algumas catego-rias a Deus é a corporeidade (“paixão” e “haver”, por exemplo) ea mutabilidade (“lugar”, “tempo” e “situação”). “Corporeidade” e“mutabilidade” convêm, em sentido próprio, somente ao ser finito:“somente por metáfora” (nisi forte transsumptiva) podem atribuir-se ao Ser infinito. Propriamente falando, o nome Deus não templural, não é nome apelativo, porque não significa uma forma mul-tiplicável. O nome Deus é próprio da natureza divina. Deus nãopode ser limitado, nem coarctado, nem composto: Deus está forade todo o género129. Deus é incircunscritível, invisível e imutá-vel130.

Note-se que, à semelhança do Pseudo-Dionísio, o Doutor Se-ráfico preserva a noção de que um só nome não pode significarDeus. O Ser divino, por definição, transcende todos os nomes. Ouseja, os nomes divinos são os nomes das criaturas transferidos paraDeus: metaforicamente (metaphorice), Deus é nomeável por to-dos os nomes das criaturas (Deus est omninominabilis) – exceptoos das que importam deformidade, como diabo, sapo, raposa (utdiabulus, bufo, vulpes), que mais transfeririam vitupério do quelouvor131. A metáfora, nota Boaventura, serve “para a nossa ins-trução”; é por essa razão que a semelhança sensível pode ser “viade conhecimento”132. Só os nomes que importam “deiformidade”

127I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 398a).128Brevil. I, 4 (V 212a-b).129Brevil. I, 8 (V, 217b).130Brevil., I, 5 (V, 214a ).131I Sent. d. 34, a. un., q. 4 (I 594b).132 Ibidem.

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podem predicar-se metaforicamente do Ser divino. A “diferença”que separa ambos os pólos da relação é tão essencial à transferênciasignificativa como a sua “conferência” naquilo em que se aproxi-mam (analogia). À predicação metafórica é essencial a analogia(similitudo alterius).

Para nós (pro nobis) a metáfora é o melhor meio de conhecerDeus em si (in rem). Tal como há dois modos de conhecer, hádois modos de dizer. Ao conhecimento de compreensão perfeitacorresponde o que pode ser dito ou nomeado segundo a expres-são perfeita. Aqui deve dizer-se que Deus é inteligível por si só,e assim também por si só pode ser dito e nomeado. Ao conheci-mento imperfeito, por sua vez, corresponde o que pode ser dito ounomeado num “discurso qualquer” – discurso imperfeito133.

O Doutor Seráfico distingue, com toda a clareza, os nomes queDeus se impôs a si mesmo e os nomes que nós lhe impusemos.Se falarmos dos nomes que Deus se dá a si mesmo, esses nomessão próprios; se, porém, falarmos dos nomes pelos quais nós onomeamos, esses nomes são metafóricos134. Contudo, Boaventurasabe bem que não poderia estender a metáfora indefinidamente.Por isso, sublinha ele: “digo que tudo o que é dito impropriamentenão é dito metaforicamente”135; ou seja, “também se nomeia pornegação”136.

Fica, pois, bem evidente que, para o Santo, a metáfora possui“propriedades de excelência” na nomeação de Deus e também porque, diversamente, recusa erigi-la como norma de toda a teologia.O melhor dos caminhos também comporta perigos, o maior dosquais seria a reificação de Ser divino. Boaventura não só, pois, teo-riza, como define o respectivo uso da metáfora, isto é, a sua esferade pertença; propõe, pode dizer-se, uma doutrina sobre o bom uso

133I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391a).134 I Sent., d. 22, a. un., q. 3 (I 395a).135I Sent. d. 22, a. un., q. 3 (I 396b).136 Ibidem.

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da metáfora. O Santo intui aqui a hodierna questão dos limites dalinguagem: não podemos sair da linguagem para vermos fora dela.Mas a linguagem não pode fazer transitar em linguagem aquilo quediz. Eu não sou aquilo que penso. Dir-se-ia que linguagem não éconcebível sem um espelho, o qual supõe a separação – e relação –entre o dito e o referente, pela intensificação das imagens.

Deus tem forma, não forma acessível ao nosso intelecto, aomodo da forma que é imagem dos nosso sentidos, mas forma por-que ele mesmo é a própria razão de conhecer. Deus dá-se-nos aconhecer na forma criada – as criaturas. É porque lhe impomosnomes a partir da forma criada que o conhecemos e vemos137.

E porque nas criaturas diferem maximamente “o que é” conhe-cido e “aquilo pelo qual” se conhece, o nome nas criaturas implicamaximamente a diversidade das substâncias e das qualidades. NoSer divino, porém, não há essa distinção, pois o conhecido e a razãode conhecer são o mesmo; por isso o nome divino significa essasduas coisas por indiferença real138. E assim Deus não é apenasconhecido pela diversidade das coisas, mas também por todas assuas formas de ser. Os nomes ditos de Deus, alguns dizem-se pelomodo da substância, como quando se diz “Deus”, outros dizem-sepelo nome da quantidade, como quando se diz “grande”, e outrospelo modo da qualidade, como quando se diz “bom”, e o mesmo seaplica a todos os outros nomes139, como imenso (immensus), sim-ples (simplex) e infinito (infinitus) – nomes estes que coexistem noSer divino140.

Deus manifesta-se e oculta-se simultaneamente: manifesta-separa o pensamento, mas oculta-se para a compreensão. E se seperguntar como é que Deus se conhece, se algo de seu está mais de

137I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391b).138 Ibidem.139I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 398a).140III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 301a).

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um lado ou do outro, deve dizer-se que Deus está “integralmente”de ambos os lados, e só assim se dá a conhecer141.

Santo Agostinho distinguiu, de modo calro, attingere de com-prehendere142. Uma coisa é ver, outra coisa é ver e compreender.O que se apreende (aspicio) não é totalmente apreendido. SãoBoaventura recolhe essa distinção, que Anselmo igualmente as-sumira, separando pensamento (intelligere) e compreensão (com-prehendere): Deus mostra-se integralmente, mas não é compreen-dido por nenhuma criatura, quer unida quer separada143. Deus éincompreensível, visto que o Ser divino jamais se pode fazer igua-lar/fechar nos termos que o conhecem144: conhecemos por seme-lhança e não por essência145. Ou seja, há um certo modo “positivo”e um certo modo “privativo” no nosso conhecimento de Deus; posi-tivo, no que respeita à capacidade da nossa inteligência, e privativono que respeita à mais íntima constituição do próprio Ser divino146.

Sublinhe-se: pode conhecer-se Deus totus sed non totaliter147,isto é, a impossibilidade de conhecermos Deus “totalmente” nãoobsta que não o possamos conhecer sicuti est. A incompreensibili-dade, portanto, não se reflecte no conhecimento, uma vez que nãotorna Deus estranho ao pensamento.

Recorde-se agora a concepção bonaventuriana de pensar: “Pen-sar nada mais é do que conhecer o que se diz”. Como acima vi-mos, o Doutor Seráfico associa intimamente os conceitos de pen-samento, linguagem e conhecimento – sem os considerar, contudo,numa exacta equivalência. Propriamente falando, não se diz o quese não pensa, não se pensa o que se não conhece. “Nada é possí-

141III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 303a).142 AGOSTINHO, Sermo 117, c. 3, n. 5 (PL, 38, 663).143III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 301a).144III Sent. d. 14, a. 1, q. 2 (III 303b).145I Sent. d. 17, a. un., q. 4 (I 300a).146 Ibidem.147III Sent., d. 14, a. 1, q. 2 (III 302b).

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vel nomear sem o conhecimento da coisa nomeada”148. Ou seja, oconhecimento pertence à própria essência do pensamento, do quala linguagem é manifestação.

Mas, como vimos também, o nosso Santo atribui à metáforafunções próprias na nomeação do Ser divino. Chega mesmo a re-petir que a metáfora possui uma dupla razão: uma é a semelhançaexpressa, a outra é a nossa instrução149. Os modos simbólicos nãosão artifícios a que a razão poderia recorrer por defeito de verdade.Constituem antes o seu próprio espaço habitacional, o seu modoespecífico de estar e de fazer o mundo, pelo que ela não sai parafora de si. Metodologicamente falando, está em questão menoso defeito de verdade – os limites da razão – do que a natureza econstituição poética da própria razão – a capacidade da razão. Te-ologicamente falando, estamos perante uma doutrina que repousano conceito positivo/afirmativo (e não negativo) do mistério – oudo “segredo” – de Deus. Filosoficamente falando, São Boaventuraconsidera que a razão vive de racionalidades múltiplas.

O discurso poético não é apenas uma alternativa ao discursocientífico. A criação de sentido não faz sentido sem a transforma-ção do sentido dado. A poética (“habitação”), consistindo nessatransformação, afecta e modifica o destinador (homem), e não odestinatário (Deus): o sentido das palavras faz recolher os nossospensamentos, pois que a palavra assemelha e assemelha-nos ao seudestinatário150.

Não é possível tirar Deus do pensamento. À pergunta se hoje,isto é, a seguir à sua “morte”, é possível ainda pensar e continuara dizer Deus, Boaventura responderia que a salvação da teologiadepende da retomação da metáfora no seu dúplice movimento, epi-

148II Sent. d. 23, a. 2, q. 1 (II 537a).149I Sent. d. 27, a. un., q. 4 (I 489a).150Brevil. V, 10 (V 264a).

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fórico e diafórico. “O modo como conhecemos Deus é também omodo como falamos dele e o nomeamos”.151

151I Sent. d. 22, a. un., q. 1 (I 391a).

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