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1 AS CHINAS GAÚCHAS: A INVISIBILIDADE DO FEMININO NA GUERRA DO PARAGUAI ANA MARIA COLLING Professora Visitante Sênior (Capes) no PPG de História da UFGD [email protected] As mulheres são as eternas esquecidas na história das guerras e são também as maiores vítimas destes eventos. Segundo Claude Quetel, em tempos de paz as mulheres veem sua história dissolvida na história dos homens. E isto é muito mais verdade em tempos de guerra, nos quais os homens ocupam mais ainda o centro da cena e escrevem a história, a história deles. Não foi diferente com a história da Guerra do Paraguai que acompanhou o silêncio destinado às mulheres como todos os eventos que tratam de política. A Guerra do Paraguai, a Guerra da Tríplice Aliança ou a Guerra Grande como é conhecida no Paraguai, tem produzido reflexões no campo político, econômico, militar e diplomático, pois é um importante capitulo da História do Brasil. Mas as novas abordagens, novos temas e novos sujeitos, proporcionados pela renovação historiográfica com a Nova História ou a História Cultural, não tem recebido acolhida. Histórias do cotidiano, das mentalidades, das relações de gênero e das sensibilidades estão à espera do interesse dos historiadores. A Guerra do Paraguai tem sido relatada pelo sob três fases teóricas, que são visíveis na produção sobre o tema: numa versão positivista, o Brasil salvou a América do grande ditador Solano Lopes que, expansionista e imperialista, invadiu território

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AS CHINAS GAÚCHAS: A INVISIBILIDADE DO

FEMININO NA GUERRA DO PARAGUAI

ANA MARIA COLLING

Professora Visitante Sênior (Capes) no PPG de História da UFGD

[email protected]

As mulheres são as eternas esquecidas na história das guerras e são também as

maiores vítimas destes eventos. Segundo Claude Quetel, em tempos de paz as mulheres

veem sua história dissolvida na história dos homens. E isto é muito mais verdade em

tempos de guerra, nos quais os homens ocupam mais ainda o centro da cena e escrevem

a história, a história deles.

Não foi diferente com a história da Guerra do Paraguai que acompanhou o

silêncio destinado às mulheres como todos os eventos que tratam de política. A Guerra

do Paraguai, a Guerra da Tríplice Aliança ou a Guerra Grande como é conhecida no

Paraguai, tem produzido reflexões no campo político, econômico, militar e diplomático,

pois é um importante capitulo da História do Brasil. Mas as novas abordagens, novos

temas e novos sujeitos, proporcionados pela renovação historiográfica com a Nova

História ou a História Cultural, não tem recebido acolhida. Histórias do cotidiano, das

mentalidades, das relações de gênero e das sensibilidades estão à espera do interesse dos

historiadores.

A Guerra do Paraguai tem sido relatada pelo sob três fases teóricas, que são

visíveis na produção sobre o tema: numa versão positivista, o Brasil salvou a América

do grande ditador Solano Lopes que, expansionista e imperialista, invadiu território

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brasileiro. Esta interpretação da guerra foi escrita basicamente por militares. A segunda

fase fazendo uma revisão da anterior, é marcada por uma obra paradigmática,

Genocídio Americano – a Guerra do Paraguai, escrita por Julio José Chiavenato e que

inverteu a abordagem histórica. Agora a Tríplice Aliança não é mais a salvadora, mas

financiada pela Inglaterra para exterminar seu concorrente, o Paraguai. País que não

tinha analfabetos, industrializado, com reforma agrária, etc. Para esta corrente, tida por

alguns como marxista, o Brasil foi o algoz do conflito. Esta obra é lançada em 1979

quando o Brasil está mergulhado em plena ditadura militar. Em 1968 o argentino Leon

Pommer havia escrito “A guerra do Paraguai, grande negócio”, inspiração de

Chiavenato.

Uma terceira abordagem tenta relativizar as duas correntes anteriores com a obra

de Francisco Doratioto, A Maldita Guerra – nova história da Guerra do Paraguai em

1991. De ambos os lados, nem bandidos nem mocinhos. Mas a revisão de Doratioto é

endereçada em especial à Chiavenato cuja obra, segundo ele, carecia de argumentos

sólidos, sem método histórico, escrita apaixonada e ideológica.

Em nenhuma destas obras aparecem as mulheres que foram fundamentais na

guerra. Rarament, quando aparecem são somente como vítimas, especialmente as

sobreviventes paraguaias que deveriam reconstruir o país, agora sem homens.

A Guerra do Paraguai, a mais longa guerra internacional da América Latina,

evento trágico que ainda causa perplexidade, se desenvolveu de dezembro de 1864 a

março de 1870, e quase varreu o Paraguai do mapa. Contam os relatos, que além das

operações bélicas, saques, fome e epidemias, muitas atrocidades foram cometidas contra

as mulheres, tanto pelos aliados da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) como

pelo Paraguai.

A participação feminina na guerra é mais estudada no Paraguai que no Brasil.

Existem dezenas de livros sobre a principal personagem da guerra, somente igualada à

Solano Lopes em importância – sua companheira Elisa Alicia Linch, a irlandesa, tida

como francesa. Madame Lynch, mulher e mãe de 5 filhos de Solano Lopes, que

sonhava em ser a Imperatriz do Prata.

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Mas este reconhecimento atual não impediu que Madame Lynch morresse

pobre e esquecida num subúrbio de Paris e, dizem muitos, enterrada como indigente.

No caso brasileiro uma personagem merece destaque: a enfermeira baiana Ana

Néri. Ambas, Lynch e Néri, figuras simbólicas e emblemáticas. Sobre as outras, resta o

silêncio da historiografia. Sabemos que estavam lá como enfermeiras, esposas,

amantes, costureiras, andarilhas, vivandeiras e chinas gaúchas, contam alguns relatos

vagos e esparsos. Segundo memorialistas, elas eram muitas e os comandantes

brasileiros tinham conhecimento disso, mas reconheciam que o Exército brasileiro não

marchava, não lutava, não avançava sem a presença feminina.

Entre as produções que tratam da participação das mulheres na Guerra do

Paraguai destaco a obra de Maria Teresa Dourado, Mulheres comuns, senhoras

respeitáveis, a presença feminina na Guerra do Paraguai (2005). Pergunta a autora,

após elencar algumas personagens: e as mulheres do Mato Grosso e do Rio Grande do

Sul, únicos estados brasileiros que tiveram seu território invadido, onde estão elas? Por

outro lado, a autora relata que “a historiografia paraguaia registra, com grande

frequência, o nome e o papel desempenhado pelas mulheres”.1

Como atestado dessa afirmação de Dourado de que o Paraguai reserva um lugar

na memória às mulheres que participaram da sua Grande Guerra, tive a primeira

surpresa ao visitar o “Museo Regional Del de Amambay” na cidade paraguaia de

Pedro Juan Caballero em 2011, na fronteira com o Mato Grosso do Sul. No interior do

Museu, com surpresa, divisei um imenso painel com fotografia de Elisa Lynch e o

titulo “Elisa Lynch y la guerra contra la triple alianza”. Abaixo da imagem, um texto

destacando a importância desta personagem para a história paraguaia.

Nesta guerra em que pereceu 99 % da população masculina do Paraguai, qual foi

o lugar destinado às mulheres? Quantas mulheres participaram deste conflito? Elas

estavam lá, contam alguns relatos vagos e esparsos, muitas vezes preconceituosos, da

literatura sobre o conflito. Alfredo Taunay, reconhecido e reverenciado como

1 Maria Teresa Dourado, 2005, p. 36.

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participante e relator da guerra, especialmente com “A Retirada da Laguna” onde

enaltece as tropas brasileiras, não cansa de fazer comentários preconceituosos e

desqualificadores sobre as mulheres. Segundo Pernidji ao tratar das jovens adolescentes

que serviam aos oficiais, Taunay diz que elas, precocemente envelhecidas, eram muito

feias, mas dada a necessidade do sexo, a soldadesca as usava sexualmente.2

Dourado falando de Taunay conta que este memorialista pretendeu caracterizar

a fauna, a flora e o tipo humano exótico do interior e, que, pessoalmente manteve uma

relação amorosa com Antônia, índia chané que comprou de seu pai. Apesar de se dizer

apaixonado e ser a mulher que mais amou, em um livro de memórias conta ele que a

Antônia “...vive hoje em Corumbá ou Cuiabá e deve ter quarenta e dois anos, o que

significa que deve estar velha e feia mêmê, pois as índias cedo, muito cedo, perdem os

encantos e regalias da mocidade”.3

Joseph e Mauricio Pernidji em Homens e Mulheres na Guerra do Paraguai

relatam o esquecimento da historiografia em relação a uma parcela importantíssima na

guerra, cujo número era assustador. Segundo eles, os comandantes brasileiros sabiam do

número expressivo de mulheres que acompanhavam as tropas, mas reconheciam que

estas não marchavam, não lutavam, não avançavam sem as mulheres atrás.

Mas, esquecidas pela memória nacional, desprezadas pelos observadores e

historiadores ao tempo dos acontecimentos, essas mulheres constituem uma nobre parte

de nossa história, dificílima de reconstituir por falta quase total de testemunho. O

antifeminismo e o desprezo que o povo tinha pelas mulheres, consequência dos

costumes e da erudição da época, concorrem para que se produzisse essa lacuna em

nossa história.4

A baiana Ana Néri é unanimidade em todas as obras brasileiras sobre a Guerra

do Paraguai. Viúva, fazia parte da elite baiana. Inclusive Benjamin Constant em suas

cartas à esposa conta que “D. Ana Néri, uma responsável senhora brasileira vizinha de

2 Joseph Pernidji; Mauricio Pernidji: Homens e Mulheres na Guerra do Paraguai, Imago, 2003, p.58.

3 Maria Teresa Dourado, 2005, p. 93.

4 Joseph Pernidji, Mauricio Pernidji, 2003, p. 59.

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um oficial da Marinha que aqui encontrei e que é muito minha amiga, sabendo que eu

tinha me casado e que era bem o dia de teus anos, convidou-me para que eu fosse jantar

com ela e seus filhos ( que são três e todo servem no exército: um é militar e dois são

médicos)”.

Um dos poucos, talvez único relato feminino sobre a guerra, além de Madame

Lynch, pertence a Dorothea Duprat de Lassere, francesa que vivia com a sua familia de

comerciantes em Assunção. Fez parte do grupo das destinadas, como inimiga de Solano

Lopes. Seu relato intitulado Memórias foi apresentado por Arthur Montenegro em 1893

e está disponível em pdf na internet.

Apesar da vasta produção acadêmica sobre a Guerra do Paraguai, as pesquisas

sobre as mulheres na guerra ainda são tênues, não garantindo sua presença na

historiografia. Elas, assim como os homens, lutaram, sofreram e morreram de fome e

de doenças variadas. Se a Guerra do Paraguai foi um conflito importante para os

destinos do Brasil e da América Latina, a historiografia necessita analisá-la sob todas as

abordagens, incluindo a história social e a história cultural. Asseguram alguns

historiadores que a presença da mulher na Guerra do Paraguai foi a maior nos conflitos

que envolveram países da América Latina, mas sua ausência histórica permanece. A

ausência das mulheres nos relatos sobre a Guerra do Paraguai, transforma-se em questão

de gênero, a ser resolvida.

As produções que tratam da presença feminina na Guerra do Paraguai são

peculiares. Reverencio aqui a obra de Maria Teresa Dourado que produziu uma

excelente dissertação de mestrado transformada em livro intitulado “Mulheres comuns,

senhoras respeitáveis, a presença feminina na Guerra do Paraguai”. Dourado, intelectual

sulmatogrossense resgata a presença feminina na guerra desta região, num trabalho de

pesquisa exemplar. Dedica um bom espaço a Elisa Lynch – 13 páginas. Pergunta

Dourado: e as personagens do Mato Grosso e do Rio Grande do Sul, únicos estados

brasileiros que tiveram seu território invadido onde estão? O livro de Dourado é de

2005.

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Em 2010 a gaúcha Hilda Flores que tem um trabalho sobre a mulher na

Revolução Farroupilha, publica Mulheres na Guerra do Paraguai, seguindo os passos

de Teresa Dourado. Dedica um bom espaço a Elisa Linch, tratando-a como amante de

Solano, dedicando a ela 29 páginas, à Dorothea Lasserre, 8 páginas. Às chinas gaúchas

nada.

Os irmãos advogados Pernidji, publicam em 2003 Homens e mulheres na

Guerra do Paraguai. Como não são historiadores o livro carece de metodologia e não

sabemos quando é um relato histórico ou quando é romance. Segundo eles o número de

mulheres que acompanhavam a tropa era assustador: entre 4 a 10 mil, muitas montadas

à amazona, com boas economias nas algibeiras, arreios de prata, muitas veteranas de

combate. Segundo eles, “o marquês de Caxias as tolerava, mulatas, chinas e brancas.

Um mulherio dito inútil por alguns observadores, mas sem o qual a campanha não teria

sido levada adiante.” La Madama ocupa boa parte do relato.

Fernando Ortolan defende uma dissertação de mestrado na Unisinos/RS sobre o

recrutamento feminino na Guerra do Paraguai, tratando das mulheres paraguaias.

Alberto Moby da Silva, historiador carioca, defendeu sua tese de doutorado na

Universidade Federal Fluminense em 1998, sobre as mulheres após a Guerra do

Paraguai. Seu trabalho La noche de las kygua vera: la mujer y la reconstrucción de la

identidad nacional en la posguerra de la Triple Alianza (1867-1904) foi publicado em

2010 no Paraguai e não no Brasil. Ele possui vários trabalhos sobre o tema, mulheres na

Guerra do Paraguai tratando sobre as paraguaias.

Outro texto é de Vivian Zambonio e Sebastião Peres da Ufpel/RS; “O poder

masculino cede espaço aos poderes femininos: as relações de gênero na Guerra do

Paraguai” trata da importância da mulher paraguaia.

Se existem muitos trabalhos de paraguaios e paraguaias sobre as mulheres

paraguaias na Grande Guerra , no caso brasileiro os trabalhos também tratam das

mulheres paraguaias. Por outro lado, todos os relatos de viajantes, obras militares e

demais produções em poucas linhas relatam a presença de mulheres brasileiras..

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Somente o Paraguai e o Brasil permitiam mulheres no campo de batalha. Uruguai e

Argentina haviam proibido sua presença. Alguns relatos:

Osório teria dito: o Exército brasileiro não marcha, não luta não avança sem o

mulherio atrás. José Luis Rodrigues da Silva conta que Osório decretou o regresso das

mulheres de vida alegre, inclusive viúvas. Ocorreu uma celeuma e ele revogou a

ordem. Inclusive ele possuía uma amásia no campo de luta.

Os bailes eram comuns nos acampamentos. E certamente não dançavam homens

com homens. Conta Ricardo Salles que o exército aliado, em sua marcha por território

argentino, era seguido por uma multidão de comerciantes, mulheres, crianças,

prostitutas, jogadores, aproveitadores e aventureiros de toda espécie. Segundo ele, não

eram apenas prostitutas e mulheres humildes de soldados que seguiam a tropa. Havia

também mulheres e mães de oficiais.

Uma menção especial merecem as mulheres que durante toda a campanha

acompanhavam o exército. Eram prostitutas buscando obter lucros da situação, eram

esposas e amantes que seguiam seus companheiros, eram mães que buscavam dar apoio

e cuidados a seus filhos. Elas cuidavam das roupas e da comida de seus companheiros,

muitas vezes atendiam-nos quando doentes; acudiam os feridos em combates;

expunham-se ao fogo e algumas vezes pegavam em armas. Muitas levavam consigo

seus filhos pequenos.

Aliás, o militar Dionisio Cerqueira recorda-se dos nascimentos nas fileiras

militares:

“As enfermidades e os desastres nos iam levando camaradas e abrindo

claros nas fileiras. Em compensação surgia, às vezes, um novo habitante

para aumentar a população das ALDEIAS. Não era muito raro ouvir à

noite depois do toque de silêncio um vagido de criança, que nascia. Na

manhã seguinte, fazia sua primeira marcha amarrada às costas de alguma

CHINA caridosa ou da própria mãe, que, com a cabeça envolvida num

lenço vermelho, cavalgava magro MATUNGO, cuja sela era uma barraca

dobrada, presa ao lombo por uma GUASCA. (...) Esses FILHOS DO

REGIMENTO criavam-se fortes e, livremente, cresciam nos

acampamentos, espertinhos e vestidos de soldadinhos, com um gorro

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velho na cabeça e comendo a magra BÓIA que com eles e a mães,

repartiam os pais, brutais às vezes, mas quase sempre amorosos e bons.”5

A história das mulheres e das relações de gênero, revisita um conjunto de

problemas – o poder, as representações, as imagens e o real, o social e o político, o

pensamento simbólico, a fixação de identidades, enfim a marginalização, o

esquecimento de sujeitos na história do ocidente. A falta de informações contrasta com

a abundância dos discursos e das imagens, especialmente de musas e deusas – a mulher

real e a mulher imaginária, da representação. Fazer a história das mulheres é chocar-se

contra este bloco de representações que as cobre. A presença feminina na Guerra do

Paraguai segue estes mesmos ditames, marginalizada, desqualificada, esquecida.

Se a história é produtora e um reflexo das discriminações, desigualdades e

preconceitos instalados na sociedade, poderá também ser um espaço de mudanças. As

relações de poder que atravessam a historiografia e os currículos de história vão

continuar existindo, com certeza. Mas necessitamos nos acostumar a olhar o texto

histórico com uma certa desconfiança, como uma verdade estabelecida num certo

contexto e não como uma verdade absoluta e sempre dada.

Descobrir as mulheres nos arquivos de pesquisa, tanto no Paraguai como no

Brasil, revela-se um trabalho instigante para qualquer historiadora. Como a Guerra do

Paraguai desenvolveu-se de 1864 a 1870 não existem personagens vivas para serem

entrevistadas sobre sua participação no conflito, restando a riqueza ou pobreza dos

arquivos. No caso de minha pesquisa, os documentos nos arquivos históricos do Rio

grande do Sul as mulheres não existem. Mas sabemos que elas participaram da Guerra

do Paraguai, como mães, esposas, costureiras, enfermeiras, prostitutas, comerciantes,

soldadas, prisioneiras ao serem tratadas como traidoras, enfrentando junto com os

homens a fome e os horrores da maior guerra da América do Sul.

A historiadora brasileira Margareth Rago, atenta em observar os diversos rostos

da história, nos pergunta:

5 CERQUEIRA, p. 99

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Afinal, o que faz o historiador? Para que e para quem busca o

acontecido? A partir de que instrumentos, teorias, valores e

concepções recorta seus temas, seleciona seu material documental

e produz sua reescrita do passado? E, aliás, de que passado se

trata? Dos ricos e dos pobres? Dos brancos e dos negros? Das

mulheres e dos homens especificamente considerados? Das

crianças e dos adultos? Ou do de uma figura imaginária

construída à imagem do branco europeu, pensado como

ocidental?

O filme do cineasta/historiador Sylvio Back que possui o sugestivo titulo de “A

Guerra do Brasil – toda a verdade sobre a Guerra do Paraguai”, e que venceu o Festival

de Cinema de Gramado em 1987, tem como personagens historiadores dos países

envolvidos. O documentário, que logo desapareceu das prateleiras das locadoras, é uma

prova do motivo do silêncio. O Brasil deveria fazer uma revisão histórica de seus

personagens que cometeram atrocidades e que fazem parte do panteão da história. Por

outro lado, o Paraguai que foi devastado pela guerra ainda tem dificuldades em fazer um

distanciamento para análise. Para os historiadores argentinos, seu país infantilmente

entrou na guerra contra o país vizinho pelas mãos do Brasil.

Michel Foucault nos mostra em suas obras, que tudo aquilo que invocamos do

passado passa por um intricado jogo de relações de poder e saber que instituem

verdades. Segundo ele,

“ A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentadores de poder. Cada sociedade tem o seu

regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de

discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (...) a maneira como se sanciona uns e outros (...) o estatuto daqueles que têm o encargo de

dizer o que funciona como verdadeiro”6.

6 FOUCAULT, 1979, p. 12.

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Foucault nos ensinou a prestar atenção ao discurso, a maneira como um objeto

histórico é produzido discursivamente e a sua própria narrativa. E mais ainda, nos alerta

para a produção dos silêncios na narrativa histórica.

O silêncio da historiografia brasileira sobre a participação feminina na Guerra do

paraguai é compensado pela literatura. Todos os relatos de viajantes, obras militares e

demais produções, em poucas linhas relatam a presença de mulheres brasileiras, em

especial as chinas gaúchas. Descobrir estas mulheres, trazê-las à superfície, é resgatar

uma dívida historiográfica brasileira com o passado.

Paul Ricoeur em um texto que discute o passado, afirma que a história somente

sabe que há o passado porque a memória já o disse antes dela. Mas por menos confiável

que seja a memória, por menos fiel que ela seja ao passado, ela é a nossa primeira

abertura em relação a ele. Refazer a trajetória da memória rumo à história é buscar na

memória as raízes de nossa demanda de história. Se historicamente o feminino é

entendido como subalterno e analisado fora da história, porque sua presença não é

registrada, libertar a história é falar de homens e mulheres numa relação igualitária, é

resgatar a dívida com a memória. Falar de mulheres não é somente relatar os fatos em

que esteve presente, mas reconhecer o processo histórico de exclusão de sujeitos.

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