Tempo, espaço e movimento na narrativa de "O Falador" de Mario Vargas Llosa

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES SCHLA

    DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA DEAN

    BRUNO CAMPOS CARDOSO

    TEMPO, ESPAO E MOVIMENTO NA NARRATIVA

    DE O FALADOR DE MARIO VARGAS LLOSA

    CURITIBA2012

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    BRUNO CAMPOS CARDOSO

    TEMPO, ESPAO E MOVIMENTO NA NARRATIVA

    DE O FALADOR DE MARIO VARGAS LLOSA

    Monografia apresentada como requisito

    parcial para obteno do grau de

    Bacharelado do Curso de Cincias Sociais,

    Setor de Cincias Humanas e Artes da

    Universidade Federal do Paran.

    Orientao: Selma Baptista.

    CURITIBA

    2012

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    FOLHA DE APROVAO

    BRUNO CAMPOS CARDOSO

    Monografia aprovada como requisito parcial para a obteno do grau de Bacharelado

    no Curso de Cincias Sociais, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade

    Federal do Paran, pela seguinte Banca Examinadora:

    Orientadora: Profa. Dra. Selma Baptista

    Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran (DEAN).

    Profa. Dra. Laura Prez Gil

    Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paran (DEAN).

    Profa. Dra. Maria de Lourdes Patrini-Charlon

    Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Curitiba, 18 de maro de 2013.

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    minha me e minha irm,por tudo.

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    AGRADECIMENTOS

    minha famlia, com amor.

    Aos meus amigos faladores, escutadores, andarilhos, seripigaris.

    minha orientadora, Selma Baptista, paciente destravadora de sinapses.

    erva-mate chimarro e demais ervas & substncias estimulantes

    (pois sem elas nada disso teria sido possvel.)

    Ao Caos

    e aoprincpio prprio e escondido das coisas, talvez.

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    A memria uma verdadeira armadilha:corrige, sutilmente acomoda o passado

    em funo do presente.

    (Mario Vargas Llosa)

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    RESUMO

    Este trabalho tem o objetivo de explicitar uma sugerida fronteira entre a Antropologia e a

    Literatura, tratando de uma novela especfica em que a etnologia desempenha papel importante,

    em busca dos seus campos narrativos, interpretativos e alegricos. Trata-se de interpretar como

    a fico e a inveno etnogrfica, continuamente constroem e iluminam o real. Pergunta-se

    como tais relaes, ao mesmo tempo em que inventam o Outro e sua cultura, denunciam,

    sugerem e revelam as caractersticas do prprio contexto cultural de onde se originam. Tal

    perspectiva de uma Antropologia como crtica cultural tem como objeto etnogrfico o romance

    O Falador (1987), de Mario Vargas Llosa, buscando em suas mltiplas liminaridades e

    estranhamentos nesses lugares impossveis da narrativa os devires e utopias queacompanham a literatura latino-americana desde os seus os primeiros cronistas at as mais

    recentes literaturas, indigenistas ou no, nas relaes com o Outro, com a diversidade e a

    diferena.

    Palavras-chave: narrativas, literatura, estranhamento, liminaridade, alegoria.

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    SUMRIO

    1. INTRODUO........................................................................................................................9

    2. O CONTEXTO DO INDIGENISMO PERUANO..............................................................143. O UNIVERSO DA NARRATIVA.........................................................................................25

    3.1. TEMPOS..........................................................................................................................26

    3.1.1. Estruturas..................................................................................................................26

    3.1.2. Tempo & memria....................................................................................................27

    3.2. ESPAOS.........................................................................................................................29

    3.2.1. Lima, Peru (1953-58; 1981).....................................................................................30

    3.2.2. A selva amaznica (1958 e anos 1980).....................................................................31

    3.2.3. Florena, Itlia (1985)..............................................................................................32

    3.2.4. Lugares da utopia.....................................................................................................33

    3.3. MOVIMENTOS...............................................................................................................36

    3.3.1. O homem anda: necessidade de nomadismo (movimentos no espao)................37

    3.3.2. O Narrador viaja: acasos e destinos..........................................................................40

    3.3.3. Movimentos de estranhamento.................................................................................43

    4. INVENO & ESTRANHAMENTO.................................................................................45

    4.1. O tornar-se Outro..........................................................................................................45

    4.2. O lugar da inveno..........................................................................................................48

    4.3. Antropologia & Literatura: o estranhamento como crtica cultural.................................58

    5. CONSIDERAES FINAIS................................................................................................65

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.....................................................................................69

    APNDICES..............................................................................................................................72

    APNDICE A Fragmentos Narrativos.................................................................................72

    APNDICE B Referncias etnogrficas citadas no livro....................................................74

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    1. INTRODUO

    Se a gente falasse menostalvez compreendesse mais(Luiz Melodia)

    Como costuma acontecer maioria das coisas interessantes, seja ao revel-las

    inesperadamente ou ao torn-las um objeto da curiosidade, tenho quase certeza foi obra do

    Grande Acaso meu primeiro contato com o Falador. E, tambm, como costuma ocorrer ao

    interesse, este nem sempre sbito: pode at ser, mas s vezes precisamos ver ou ouvir esta

    coisa, de passagem ou de um ngulo e outro, at que a Ateno, como que pela primeira vez oupor cansao, resolva ajustar seu foco para produzir uma imagem mais ou menos ntida o que

    vale tanto para objetos quanto para novas ideias ou percepes.

    A apreenso, no entanto, nunca imediata e acredito que nunca chegue a ser

    completa. preciso ouvir, refletir, pesquisar algo a respeito, ir ao sebo prximo praa Osrio,

    comprar o tal livro. E, claro, preciso ler. Chega a ser irnico que, na minha opinio, um dos

    melhores conselhos venha de um livro que se diz mudo, sem palavras, composto de quinze

    gravuras alqumicas. E est l na penltima, a nica coisa escrita: ORA LEGE LEGE LEGERELEGE LABORA ET INVENIES 1. Pois no assim mesmo que as coisas costumam

    funcionar?

    Inicialmente, para mim, Mario Vargas Llosa bem poderia ser mais um desses grandes

    escritores argentinos, como Borges (acaso conheo outro?). Eu no sabia nada. Mas fui

    sabendo: nobel de literatura, peruano, candidato presidncia de seu pas (e, certa vez, ao ver

    meu livro, um sujeito me disse que ele tinha sido eleito presidente, e eu ri, achando tanto um

    absurdo que um escritor fosse se candidatar presidncia, quanto improvvel que ganhasse: e,

    claro, eu estava parcialmente errado ou, talvez, parcialmente certo).

    Custei um pouco a ler. Devagar, lentamente, s vezes pouco atento, confuso e at

    entediado com o captulo trs. Depois, ele me pegou. Primeiro o Narrador, no captulo quarto;

    ento Llosa, pela habilidade com as palavras; e por fim esse estranho Falador. Da pro fim a

    leitura foi bem mais rpida. O final do captulo stimo, em especial, me fez fechar o livro e

    praguejar contra o autor: o desgraado me tirou o flego. Ruminei a narrativa por um tempo.

    Fiz uns esquemas, escrevi umas coisas. O problema comeou, talvez, quando eu estava

    1 Reza, l, l, l, rel, trabalha e encontrars (14 lmina doMutus Liber, annimo, sculo XVII).

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    escrevendo uma coisa ou outra, quem sabe um e-mail ou uma anotao, e l estava, no fim de

    uma frase, aps uma vrgula, a palavra talvez. Coisa do falador.

    Comecei a notar como essas expresses, encontrando caminhos ocultos, feito guafluido por um tecido aparentemente impermevel (como gostamos de acreditar que so nossas

    mochilas ou jaquetas), iam penetrando no meu vocabulrio, no meu estilo de escrever, se

    alocando ou umedecendo at mesmo alguns dos meus padres de pensamento. Tal como o

    Narrador se enfurece num episdio do captulo dois e, no dia seguinte, recebe de Mascarita um

    bilhete e um presente, um ossinho branco, em forma de losango, gravado com figuras

    geomtricas cor de tijolo puxando para ocre, eu tambm, por vrios dias e vrios outros

    motivos alheios a tudo isso, senti raiva, muita raiva, mas me lembrei que aquele que se deixa

    vencer pela raiva entorta essas linhas e elas, tortas, no podem mais sustentar a terra. No vai

    querer que por sua culpa a vida se desintegre e voltemos ao caos original do qual nos tiraram,

    aos sopros, Tasurinchi, o deus do bem, e Kientibakori, o deus do mal, no , compadre? 2.

    Tenho quase certeza, ento, que meu contato se deu por acaso e que minha

    aproximao definitiva decorreu dessa inesperada infiltrao que demorei a notar. Isto , ainda

    que me agrade a suspeita de estar sujeito a um devir-falador, creio que tenho experimentado,

    guardadas as devidas propores, algo similar ao que o Narrador identificou em seu antigo

    amigo: visto com a perspectiva do tempo, sabendo o que aconteceu depois pensei muito

    nisso , posso dizer que Saul experimentou uma converso. Em um sentido cultural e talvez

    tambm religioso 3.

    Por tudo isso, e, claro, pela prpria obrigao que me trouxe ao livro, tratei de

    esmiuar seus captulos numa segunda leitura. No toa, tanto os temas que j haviam surgido

    se tornaram mais expressivos, quanto toda narrativa pareceu se desdobrar umas duas ou trs

    vezes, revelando outros tantos temas e conexes pelas mesmas 214 pginas. Livros, ao menos

    os bons, por vezes me causam a impresso de que tm vida prpria nas entrelinhas. E essa

    apreenso do Outro, na literatura, na antropologia ou na vida, tal como o Narrador procura

    apreender o Falador nos captulos mpares, me parece sempre uma funo dessa relao que se

    cria: contato, aproximao, deslocamentos, movimentos, interaes, interpretaes, invenes,

    construes e transformaes e uma vez que cedi maldita tentao de escrever sobre ele

    devo inventar 4.

    Mas isso , pelo menos, o que eu soube.

    2 VARGAS LLOSA, p. 16-17.3 IBID, p. 21.4 IBID, p. 34.

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    Pensei muito sobre tudo isso, ao ponto de sonhar dentro e fora da narrativa, como se

    estivesse s voltas do falador, buscando-o em etnografias como realmente o fiz e, tambm

    como o Narrador, com nenhum sucesso ou sendo eu mesmo essa espcie de contador dehistrias que, ao desatar a primeira, encadeia uma aps outra, entremeadas por causos, mentiras,

    piadas, fices, relatos, enfim; mas principalmente virando noites e mais noites em

    entorpecentes rituais de confraternizao semi-nmades, com as mais diversas companhias de

    amigos e parentes transeuntes e guardanapos e com a mesma, e por vezes at mais intensa,

    vontade de prosa. Sendo este trabalho mesmo uma coisa dessas, talvez.

    Ao esmiuar o livro sobre uma improvisada mesa de dissecao num procedimento,

    digamos, bem menos sensual que os do Conde de Lautramont , a linearidade, que

    frequentemente me angustia, enfim se espacializou. Foi premeditado. Mas isso era antes.

    O livro d conta, nos captulos pares, da histria de um certo Tasurinchi-Narrador, um

    Narrador sem nome, alter-ego de Vargas Llosa, que l de Florena, num presente narrativo que

    se passa em 1985, rememora, a partir de uma fotografia presente numa exposio sobre a tribo

    peruana machiguenga, sua juventude na Universidade de San Marcos e sua amizade com Saul

    Zuratas, apelidado Mascarita. Tal mergulho no abismo da memria, impulsionado pela

    fotografia de um falador machiguenga diante de seu auditrio de atentos ouvintes, o faz

    trilhar diversos caminhos ao longo do tempo, do espao e da fico: percorre os corredores da

    universidade, os bares e botecos adjacentes; repassa sua grande amizade com o estudante de

    etnologia, estigmatizado por uma grande mancha avinagrada que lhe cobre parte do rosto; o

    fascnio do amigo pelos machiguenga e sua progressiva converso; suas prprias viagens

    selva peruana e Europa, assim como sua busca e especulao acerca do paradeiro de

    Mascarita, com quem perdera o contato. E sendo ele mesmo um contador de histrias,

    Tasurinchi-Narrador enfeitiado pela figura dos faladores machiguenga, pela ideia de que

    esses contadores ambulantes de histrias seriam, ento, o trao mais delicado e precioso

    daquele pequeno povo5.

    Paralelamente, nos captulos mpares, um certo Tasurinchi-Falador, tambm

    annimo6, quem narra suas memrias, percursos, causos e mitos de seu prprio povo, estando

    ao mesmo tempo em lugar nenhum e em todos os lugares, perambulando pela selva peruana

    num tempo fora do tempo, num constante encadeamento de narrativas de toda sorte. Andando,

    ento. Levando e trazendo todo o tipo de histrias, exercendo a funo da seiva circulante que

    5 IBID., p. 139.6 Como todos os machiguengas o so, sempre referenciados pelo nome Tasurinchi e, eventualmente, por suas

    ocupaes como, por exemplo, Tasurinchi, o ervateiro.

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    fazia dos machiguengas uma sociedade 7. E embora o Narrador muito queria encontrar ou

    mesmo tornar-se um Falador machiguenga, isso jamais ocorre. Em verdade, apesar das

    simetrias, suas narrativas esto bem separadas em seus captulos.O esquema que apresento abaixo (Figura 1) uma tentativa de ilustrar parte desta

    estrutura, que uma importante caracterstica do livro. O mergulho no tempo, na memria, de

    1985 at 1958 e ento de volta ao presente, muito significativo e ser abordado em detalhe

    mais adiante. Por ora, cabe dizer que a narrativa do Narrador bastante linear e cronolgica

    (junto s datas, entre parnteses, esto indicados os captulos correspondentes).

    Simultaneamente, a narrativa do Falador, por se passar num tempo indefinido e intravel,

    parece cruzar a outra de um modo mais fluido e passageiro, tal como, imagino, seria o andar e o

    contar do Falador por isso optei por uma linha tracejada e curvilnea. Este mapa-mergulho,

    preciso dizer, no se pretende mais que um mero suporte necessariamente impreciso para o

    presente texto.

    FIGURA 1: MAPAS-MERGULHO DAS TRAVESSIAS NARRATIVAS

    Ao lado, no sei se por acaso ou destino, temos um mapa-mergulho similar. Em

    verdade, apenas uma alternativa potica ao sumrio padro desta monografia. Pois o estilo mais

    livre desta Introduo (captulo 1) seguir por um caminho intangvel e talvez impreciso at

    as Consideraes Finais (captulo 5); uma vez que o percurso dos captulos intermedirios

    segue uma argumentao mais lgica e necessariamente linear, como esperado.

    No captulo 2 iremos esboar um contexto geral da literatura peruana, em especial a

    7 IBID., p. 84.

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    indigenista, desde os primeiros cronistas da Conquista (sculo XVI) at Jos Maria Arguedas e

    Mario Vargas Llosa (sculo XX), procurando situar o autor d'O Falador (1987) junto a uma

    linhagem/tradio deste tipo de narrativa, tanto literria quanto antropolgica.Em seguida, no captulo 3, abordaremos o livro de Vargas Llosa a partir das ideias de

    tempo, espao e movimento no como categorias ou conceitos bem definidos, mas sim em

    seus sentidos mais amplos buscando revelar a estrutura do livro e suas articulaes narrativas.

    Por fim, no captulo 4, atravessaremos as diversas camadas de estranhamentos e

    liminaridades, a fim de analisar de que maneiras os campos narrativos da antropologia e

    literatura se relacionam neste romance, produzindo efeitos interpretativos e de crtica cultural.

    FIGURA 2: TRIANGULAES

    Estranhamento e inveno, assim como as ideias de liminaridade e percursos, eu e

    outro, so centrais neste trabalho. E tendo isso em mos e em mente que abriremos

    caminho pelas entrelinhas e sub-textos, visando explorar essa fronteira, to frtil quanto sutil,entre Antropologia e Literatura.

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    2. O CONTEXTO DO INDIGENISMO PERUANO

    Em seu artigo Mito, utopia e sobre-significao da pluralidade cultural no Perucontemporneo (2003), Selma Baptista mostra como a relao mito/utopia se desenvolve nos

    termos de uma funcionalidade poltica e como esta se relaciona contemporaneamente com as

    noes de pluralidade e diversidade tnica no Peru, dentro do que se poderia chamar de uma

    matriz do pensamento andino.

    Esta chamada matriz do pensamento andino veio se desenvolvendo dentro de uma

    ampla tradio intelectual peruana, sujeita a disputas como todas as tradies, mas que, de

    certo ponto de vista, pode ser compreendida como tendo se formado desde os cronistas do

    perodo da Conquista, at ento preservada apenas pelos registros orais, e at o incio sculo

    XX, pelo menos, tendo passado pela independncia do pas (1821) e a constante e crescente

    necessidade de articular e abarcar as diversas etnias e identidades num mesmo projeto de nao.

    Aps esse perodo inicial, dois destes cronistas, os mais importantes, deixaram escritos que se

    tornaram as fontes transculturadas desse perodo: Inca Garcilaso de la Vega, com seus

    Comentarios Reales de los Incas, e Guamn Poma de Ayala, com seus dois trabalhos Nueva

    Crnica e Buen Gobierno, todos mais ou menos da mesma poca, ou seja, dos sculos XVI e

    XVII.

    Destas fontes derivou, portanto, um processo transculturador: uma possvel

    literatura incaica, mantida oralmente e atravs dos quipus8, que foi submetida a um processo de

    traduo e adaptao durante todo o perodo que sucedeu conquista e os primrdios da

    colonizao. Como nos relata Selma Baptista, estes possveis originais

    nunca aparecieron porque nunca existieron. Sabemos que el establecimiento

    de estos posibles textos se haca por mdio de la repeticin de una estructura

    bsica de ideas, imgenes, metforas, secuencias narrativas, ritmos y sonidos,que seguia um ritual establecido para las celebraciones oficiales, lasfestividades religiosas y el trabajo agrcola (BAPTISTA, 2006, p. 60) 9.

    Este processo teve, numa primeira verso indigenista, a colonial, sua expresso mais

    frtil, tanto cultural quanto politicamente. Esse movimento, que neste perodo poderia ser

    8 Quipus eram cordes de vrias cores e com ns em distintas sequncias que, amarrados numa vara de madeira,pendiam como um macram e marcavam os fatos importantes no tempo e no espao. Este quipus eram lidospelos quipucamayoc, seus mestres decifradores.

    9 nunca apareceram porque nunca existiram. Sabemos que o estabelecimento desses possveis textos se faziapor meio da repetio de uma estrutura bsica de ideias, imagens, metforas, sequencias narrativas, ritmos esons, que seguia um ritual estabelecido para as celebraes oficiais, as festividades religiosas e o trabalhoagrcola (BAPTISTA, 2006, p. 60).

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    caracterizado como a construo de uma utopia possvel, posteriormente se revelou enquanto

    construo da utopia andina: recontam o passado, retomam-no como possibilidade de futuro,

    construindo, ao mesmo tempo, a base e o incentivo para algumas das mais importantesrebelies indgenas10.

    Dessa maneira, podemos entender que

    el indigenismo cuestiona la visin excluyente de la oligarqua, que dejaba

    fuera de la 'comunidad imaginada' nacional a las mayoras indgenas o lasincorporaba en todo caso como sustrato servil, cuando no degenerado. () el

    indigenismo como reivindicacin del 'indio actual' y de su incorporacin como

    base fundamental de la 'comunidad imaginada' peruana se abri campo, con

    altibajos, en la conciencia, la cultura y la poltica peruana (DEGREGORI,

    2000, p. 30) 11.

    Dito de outra forma, procurando localizar a tradio indigenista, em suas vrias

    verses, dentro desta tradio intelectual, poderamos dizer que

    a prpria percepo desta pluriculturalidade como base de projetos desociedade antagnicos refora a ideia de uma profunda relao entre a

    formulao da existncia de uma matriz andina e sua subsequente percepo

    enquanto utopia andina, e a recolocao do seu significado histrico ao

    longo do tempo, sob a forma de uma tragicidade inerente prpria concepo

    peruana enquanto locus de uma contradio irresoluta (BAPTISTA, 2003, p.290).

    Tal matriz de pensamento tambm esteve, nos anos de 1920, congruente com o

    pensamento marxista da poca, o que levou Jos Carlos Maritegui a buscar uma fuso entre

    indigenismo e socialismo, ao reclamar populao indgena uma posio ativa e essencial na

    construo do que Degregori veio chamar de comunidade imaginada, ou o que se poderia

    chamar de socialismo andino, visando a construo de uma nao peruana mais integrada e

    menos oligrquica.

    El socialismo ordena y define las reivindicaciones de las masas, de la clase

    trabajadora. Y en el Per las masas la clase trabajadora son en sus cuatro

    quintas partes Indgenas. Nuestro socialismo no sera, pues, peruano, ni sera

    siquiera socialismo si no se solidarizase primeramente con lasreivindicaciones indgenas (MARITEGUI apud BAPTISTA, 2002, p. 61)12.

    10 BAPTISTA, 1997, p. 250, grifos da autora.11 o indigenismo questiona a viso excludente da oligarquia, que deixava fora da comunidade imaginada

    nacional as maiorias indgenas ou as incorporava, em todo caso, como substrato servil, quando nodegenerado. (...) [com] o indigenismo como reivindicao do ndio atual e de sua incorporao como base

    fundamental da comunidade imaginada peruana, se abriu o campo, com altos e baixos, na conscincia, nacultura, e na poltica peruana (DEGREGORI, 2000, p. 30).12 O socialismo ordena e define as reivindicaes das massas, da classe trabalhadora. E, no Peru, as massas a

    classe trabalhadora so quatro quintos indgena. Nosso socialismo no seria, pois, peruano no seria sequer

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    Como afirma Selma Baptista neste outro artigo (2002), tambm no ser por acaso

    que as questes antropolgicas jamais puderam deixar de ser, ao mesmo tempo,polticas, e, em

    momentos especiais, receberam um tratamento literrio de grande repercusso13

    . Em sua tesede doutorado (1997), posteriormente publicada em livro Una Concepcin Trgica de la

    cultura (2006) , discorrendo sobre a concepo trgica da cultura peruana, Baptista coloca

    que se poderia visualizar o campo da Antropologia da seguinte maneira: por indigenismo

    podemos entender a reflexo sobre todo o processo de contato entre as culturas, sob a forma das

    polticas destinadas populao indgena e, portanto, com variaes ao longo do tempo e de

    acordo com os interesses das oligarquias 14. E, assim sendo,

    o indigenismo moderno, por sua vez, influenciado pelo ensasmo crtico deManuel Gonzlez-Prada, Maritegui, Valcrcel, Uriel Garca, Escalante, entre

    outros, bem como pela literatura, pode ser tomado como a origem daAntropologia enquanto disciplina, da mesma forma marcada pela discussodas questes ligadas identidade nacional e ao projeto de nao, mas que vai,

    na sequncia histrica, desenvolver seus estudos mais sistemticos, de

    conformidade com seu processo de institucionalizao (BAPTISTA, 1997, p.

    240, grifos da autora).

    Com Luis E. Valcrcel, tendo chegado Lima na dcada de 1930, o indigenismo se

    aproximou da academia: primeiro por sua grande influncia literria, como o romanceTempestadad em los Andes (1927) eRuta Cultural del Per (1945), relacionando uma noo de

    cultura andina com a ideia de uma raa indgena, incaica, que vem resistindo a todo tipo de

    exploraes e intempries ao longos dos sculos, sem nunca desaparecer por completo.

    Tambm Valcrcel evidenciava a importncia da completa imerso na vida indgena para

    melhor compreend-la 15, perspectiva essa que o acompanhou nos cursos ministrados na

    Universidad de San Marcos e na direo dos Museo de la Cultura Peruana, sendo fortes

    influncias neste meio: o socialismo e a etnologia como formas de compreenso e

    transformao da realidade 16.

    Assim, seguindo o prprio percurso de Valcrcel, percebemos como o

    indigenismo foi se tornando uma escola de pensamento: em primeiro lugar,

    pelo seu carter cientfico devido s novas disciplinas que foram sendo

    introduzidas nos cursos de Etnologia, e em segundo lugar, pelo seu carterprtico, j que a avaliao etnolgica passou a ser condio prvia para

    socialismo se no se solidarizasse primeiramente com as reivindicaes indgenas (MARITEGUI apudBAPTISTA, 2002, p. 61).

    13 IDEM, 2002, p. 61.14 IDEM, 1997, p. 240.15 IDEM, 2002, p. 62.16 IBID., p. 61

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    qualquer formulao de projetos voltados s populaes indgenas. precisolembrar que esta perspectiva incorporou-se aos fins desenvolvimentistas a

    partir de 1946, com a criao do Instituto Indigenista Peruano, rgo

    vinculado ao Ministrio da Justia e do Trabalho do qual Valcrcel foi oprimeiro diretor (BAPTISTA, 2002, p. 63).

    Ou, como procura resumir o crtico e ensasta peruano Antonio Cornejo Polar, num

    ensaio acerca das caractersticas e influncias histricas do romance indigenista peruano:

    Em termos muito esquemticos: a urgncia de uma transformao social

    colidia com a necessidade de preservar a raiz autctone da nacionalidade.Talvez as colocaes iniciais de Lus E. Valcrcel (1891) sejam as mais

    representativas deste conflito precisamente por seu carter paradoxal:

    preconizava ele uma transformao, sim, mas uma transformao que

    restaurasse o passado (POLAR, p. 179).

    Outro personagem importante nesta trajetria Jos Maria Arguedas, que alm de ter

    sido aluno de Valcrcel em 1931, foi responsvel por importantes e vastas contribuies

    literrias acerca das questes indgenas peruanas. Em 1956 produz seu primeiro trabalho de

    peso em Etnologia, conseguindo seu ttulo de bacharel no ano seguinte. Em 1959 chega sua

    tese doutoral na Espanha e, de volta ao Peru, passou a lecionar na Universidade de San

    Marcos17.

    Seu ltimo trabalho [El zorro de arriba y el zorro de abajo], uma novela

    inacabada, pode ser pensada como um paradigma da relao intelectual eemocional, consubstanciado numa escritura em que tanto a literatura quando a

    antropologia so invocadas de forma profunda e inexoravelmente estranhas

    (BAPTISTA, 2002, p. 64).

    Mario Vargas Llosa foi um grande crtico da obra literria de Arguedas 18,

    especialmente de seu ltimo trabalho, o que expe, entre outras coisas, una disputa por la

    hegemona interpretativa de la natureza del pas. En esta confrontacin entre escritores en

    verdad se enfrentan dos proyectos de nacin 19.

    Nascido em Arequipa (1936), Vargas Llosa cursou Letras e Direito na Universidad de

    San Marcos (entre 1955 e 1957), e apesar de seu reconhecimento global como escritor, suas

    posies polticas tornaram-se motivo de controvrsia: de apoiador da Revoluo Cubana na

    juventude candidato da direita peruana (Frente Democrtica FREDEMO) na disputa

    presidencial do pas em 1990. Vargas Llosa (1996) v na obra de Arguedas a existncia de uma

    17 IBID., p. 63.18 cf. BAPTISTA, 2006; e MONTOYA, 1998.19 IDEM, 2006, p. 189: uma disputa pela hegemonia interpretativa da natureza do pas. Nesse confronto entre

    escritores, na verdade se enfrentam dois projetos de nao.

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    utopia arcaica, que poderamos resumir aqui por el colectivismo; el rechazo de la sociedad

    industrial, de la sociedad urbana, del mercado; la inexistencia de individuos; una mezcla de

    utopa cristiana y paraso perdido; el carcter brbaro de la cultura india; y el pasadismopermanente 20. Noutras palavras, essa utopia a culpada da rejeio da sociedade industrial,

    da cultura urbana, da civilizao baseada no dinheiro e no mercado. Em suma, da rejeio da

    modernidade 21.

    En su libro La utopa arcaica [1996] vuelve sobre los Andes para tratar de

    demostrar que el sueo indigenista carece de sentido, y que los indgenas nada

    tienen que decir ni hacer en el futuro del pas. La obra literaria de Arguedas es

    el pretexto para afirmar su nueva fe sin limites: el capitalismo (MONTOYA,

    1998)22.

    Como tambm afirma a antroploga peruana Urpi Montoya Uriarte, atualmente,

    Mario Vargas Llosa continua pensando que impossvel e indesejvel se manter ou estimular o

    elemento indgena na sociedade moderna e nas palavras do prprio escritor:

    tal vez no haya otra manera realista de integrar nuestras sociedades quepidiendo a los indios pagar ese alto precio [renunciar a su cultura a su

    lengua, a sus creencias, a sus tradiciones y usos y adoptar la de sus viejosamos]; tal vez, el ideal, es decir, la preservacin de las culturas primitivas de

    Amrica, es una utopa incompatible con otra meta ms urgente: el

    establecimiento de sociedades modernas (VARGAS LLOSA [1992] apud

    URIARTE, 1998) 23.

    Es trgico destruir lo que todava vive, una posibilidad cultural, a pesar de ser

    arcaica; pero me temo que tendremos que elegir entre ambas cosas. No s deningn caso en el que haya sido posible elegir ambas cosas, excepto en

    aquellos pases en que dos culturas diferentes han evolucionado ms o menossimultneamente. Pero cuando existen brechas econmicas y sociales tan

    grandes, la modernizacin slo es posible mediante el sacrificio de las culturas

    indgenas (VARGAS LLOSA [1990] apud URIARTE, 1998) 24.

    20 MONTOYA, 1998: pelo coletivismo; pelo rechao da sociedade industrial, da sociedade urbana, do mercado;a inexistncia de indivduos; uma mescla de utopia crist e paraso perdido; o carter brbaro da culturaindgena; e o saudosismo permanente.

    21 URIARTE, 1998.22 Em seu livroLa utopa arcaica [1996] se volta para os Andes para tentar demonstrar que o sonho indigenista

    carece de sentido, e que os indgenas nada tm a dizer ou fazer em relao ao futuro do pas. A obra literria deArguedas um pretexto para afirmar sua nova f sem limites: o capitalismo (MONTOYA, 1998).

    23 talvez no haja outra maneira realista de integrar nossas sociedades que pedindo aos ndios para pagar essealto preo [renunciar sua cultura sua lngua, s suas crenas, s suas tradies e usos e adotar de seusvelhos senhores]; talvez o ideal dizer que a preservao das culturas primitivas da Amrica uma utopiaincompatvel com outra meta mais urgente: o estabelecimento das sociedades modernas (VARGAS LLOSA

    [1992] apud URIARTE, 1998).24 trgico destruir o que ainda vive, uma possibilidade cultural, apesar de ser arcaica; mas temo que temos deescolher entre ambas as coisas. No sei de nenhum caso em que foi possvel escolher ambas as coisas, excetonaqueles pases em que duas culturas diferentes tenham evoludo mais ou menos simultaneamente. Entretanto,

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    Uriarte nos resume a posio de Vargas Llosa de modo bastante interessante (e

    contundente) ao salientar que o escritor continua vendo o Peru como um pas onde duas

    culturas (uma ocidental e moderna e outra aborgene e primitiva) e dois grupos (um civilizado eoutro brbaro) veem-se 'condenados a vivir juntos sin amarse ni saber los unos de los otros' 25.

    Tal posio ou, diramos melhor, tal ideia de nao sintetiza e coincide, j num primeiro

    momento, com a prpria estrutura da obra que aqui nos propusemos a analisar nos captulos

    seguintes o romance O Falador(1988), de Mario Vargas Llosa.

    Toda esta trajetria, aqui bastante sinttica 26, da literatura indigenista peruana e

    sua influncia na academia, em especial sobre a Antropologia, nos interessa aqui por dois

    motivos em especial.

    O primeiro a proposta de reflexo acerca dos importantes papis da(s) literatura(s) na

    construo e formao de uma ideia de nao plural e necessariamente heterognea, tanto

    atravs das vozes e letras dos primeiros cronistas quanto pelos mais recentes movimentos

    literrios, que podemos chamar indigenistas, mas, sobretudo, porque todos eles, de uma

    forma ou de outra, buscam no passado uma inspirao para lidar com as contradies presentes,

    mirando sempre um futuro quer seja mtico, mas especialmente utpico onde tais

    contradies, sempre irresolutas, possam finalmente vir a serem solucionadas ou seja,

    parece haver uma utopia da diversidade subjacente a estes movimentos. Tal segmentao

    entre um antes (um passado por vezes nostlgico ou romantizado) e um depois (tanto um

    presente fraturado quanto um devir, uma utopia, uma comunidade imaginada), o que Polar

    assinala como uma das principais caractersticas desta(s) literatura(s):

    Esta insero do indigenismo no tempo longo, e sua consequente

    associao com as crnicas, permite explicar com melhores argumentos algunsfatos decisivos: desde sua norma estilstica sempre explicativa (s vezes em

    excesso) e tambm sempre comparativa (o outro ininteligvel se no forreferido ao prprio), at, em outro nvel, ndole da histria narrada, que

    repetidamente a histria de uma interferncia. Efetivamente, para mencionar

    com alguma preciso apenas o ltimo fato, no h crnica que no suponha,

    em sua prpria instncia de enunciao, um ato de ruptura (descobrir,

    quando h brechas econmicas e sociais to grandes, a modernizao s possvel mediante ao sacrifcio dasculturas indgenas (VARGAS LLOSA [1990] apud URIARTE, 1998).

    25 IBID.: condenados a viver juntos sem se amar nem saber uns dos outros.26 Uma extensa e mais detalhada perspectiva da trajetria, consolidao e caractersticas do indigenismo peruano

    pode ser encontrada nos trabalhos citados de Selma Baptista (1997 e 2002) e Antonio Cornejo Polar (2000). E

    faz-se necessrio, tambm, ressaltar a seguinte considerao de Polar, que nos ser cara por todo este trabalho: bvio que para muitos estudiosos ainda no est suficientemente assimilada a lio de Maritegui:indigenismo no o mesmo que indgena, e por conseguinte, no se pode esperar daquilo que por definiotranscultural uma auto-expresso cujo espao , certamente, outro: a literatura indgena (POLAR, p. 198).

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    conquistar, colonizar), do mesmo modo que no h romance indigenista cujanarrao no implique uma intromisso (de imediato, a do prprio narrador) e

    seu tempo referencial, um hiato muito ntido entre um antes e um depois

    (POLAR, 2000, p. 196, grifos do autor).

    E, ainda segundo Polar, o indigenismo s inteligvel a partir de uma prvia

    conceituao do mundo andino como realidade dividida e desintegrada. uma literatura

    heterognea inscrita num universo tambm heterogneo 27. Essa noo de diviso e

    desintegrao depende de outra, implcita de modo quase sempre sutil ou mesmo despercebida,

    a de interferncia:

    Pode-se dizer, usando critrios de evidncia, que o romance indigenista tpicorelata algumas das formas de opresso que os exploradores () exercem sobre

    o sofrido povo indgena. Por trs dessa evidncia, reside uma das condies deexistncia do gnero: o universo indgena parece romancevel, efetivamente,

    s na medida em que interferido quase sempre agredido de fora. Em sua

    coerncia ou em seus conflitos interiores, esse universo torna-se alheio ao

    indigenismo (IBID., p. 181)

    Isto, ento, nos leva ao segundo motivo desta reflexo: uma vez que o indigenismo,

    caracterizado como tal, necessariamente dependente de (ou ainda, pressuposto por) um ato

    ruptura 28, uma interferncia externa anterior coerncia autctone, a consequente

    heterogeneidade e diversidade esto tambm implcitas neste cenrio, ainda que comumente

    articulados, como vimos, a partir de uma perspectiva contrastante e no necessariamente por

    suas particularidades ou caractersticas prprias. Retomando novamente as consideraes de

    Polar,

    indispensvel destacar, num primeiro momento, a fratura entre o universo

    indgena e sua representao indigenista. Nos termos at aqui empregados,

    esta ciso indica a existncia de um novo caso de literatura heterognea, em

    que as instncias de produo, realizao textual e consumo pertencem a um

    universo sociocultural, e o referente, a outro diverso. Esta heterogeneidadeganha relevo no indigenismo, na medida em que ambos os universos noaparecem justapostos, mas em contenda, e enquanto o segundo, o universo

    indgena, costuma mostrar-se, precisamente, em funo de suas peculiaridades

    distintivas (IBID., p. 169).

    E, com isso, quero tambm sugerir um outro contraste, entre essa literatura (em

    especial, mas no em particular) e a Antropologia, que, como sabemos, ocupa-se mais de

    indgenas que (de) indigenistas. Porm, o que nos interessa aqui no assinalar, de modo

    27 POLAR, 2000, p. 169-170.28 E, como assinala Baptista sobre a nao peruana, uma ruptura essencialmente trgica (1997).

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    binrio, a dicotomia entre Antropologia e Literatura, mas sim seus pontos de inflexo.

    A conscincia de que nossa literatura produto de vrios e antagnicos

    sujeitos sociais, com linguagens, racionalidades e imaginrios discordantes,bem poderia terminar numa afirmao prazerosa da harmonia entre os

    contrrios, algo assim como uma mestiagem que admite tudo, ou quase,sempre e quando o resultado no for demasiado negro ou acobreado. (IBID.,

    p.51)

    E do mesmo modo que a Literatura e sempre foi capaz de comunicar e inventar

    novas e distintas comunidades imaginadas, de ser um veculo de denncia e crtica cultural,

    assim tambm a Antropologia se aproxima nem sempre de modo explcito, pois por outros

    caminhos e mtodos deste campo de investigao cultural, uma vez que

    a proposta de uma crtica culturalde cunho antropolgico aparentemente est

    se constituindo como uma ponte que se distancia do simples interesse peladescrio de outros culturais, indo em direo considerao das

    experincias etnogrficas como experimentos que, quando tomadascoletivamente, sugerem a possibilidade de relacionar inmeras crticas

    dispersas num certo contexto com outras, em contextos diferentes, de forma

    comparativa, diluindo de certa maneira a oposio centro/periferia

    (BAPTISTA, 2002, p. 61)

    Tecer um plano verossmil onde todos esses outros (sujeitos, crticas, contextos)

    possam ser articulados e postos em relao um dos grandes desafios da Antropologia como

    crtica cultural, especialmente quando de fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de

    direito, uns sempre so mais nativos que outros 29.

    A distinctively anthropological cultural critique must find ways to explore

    equally the possibilities for alternatives in both situations the domestic andthe cross-cultural using the juxtaposition of cases (derived from etnography's

    built-in Janus-faced perspective) to generate critical questions from one

    society to probe the other. This scholarly process is really only a sharpening

    and enhancement of a common condition globally, in which members ofdifferent societes themselves are constantly engaged in this same comparative

    checking of reality against alternative possibilities. Yet, we realize that,contrary to the idea of looking to exotic cultures simplistically for models,

    many of the alternatives they pose are not importable like some form of

    technology. The Japonese, Tongans, or Nigerians do not provide clear contrasts

    with ourselves; any juxtaposing of them with us generates complex inquiryabout our respective situations in a contemporary world order in which

    relationships between societies must be presupposed (MARCUS; FISCHER,1986, p. 117) 30.

    29 VIVEIROS DE CASTRO, 2002.30 Uma distinta crtica cultural antropolgica deve encontrar meios de explorar de maneira equilibrada as

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    Nesse sentido, a ideia de transculturao aqui nos parece til para pensar estes

    processos e suas utopias e contendas que os movimentam, tanto em seus desdobramentos

    seguintes (cf. BAPTISTA e MONTOYA) quanto na sua formulao inicial por Fernando Ortiz,como um processo inevitvel:

    Entendemos que o vocbulo transculturao expressa melhor as diferentes

    fases do processo transitivo de uma cultura a outra, porque este no consisteapenas em adquirir uma cultura, que o que a rigor indica o vocbulo anglo-

    americano aculturao, mas implica tambm necessariamente a perda ou o

    desligamento de uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma

    parcial desaculturao, e, alm disso, significa a consequente criao denovos fenmenos culturais que poderiam ser denominados neoculturao

    (ORTIZ apud OTN, p. 2)Angel Rama 31, por exemplo, tomando o conceito de Ortiz, classifica Arguedas como

    um transculturador, que busca na fronteira Antropologia/Literatura um local para a

    resoluo das contradies sociais e culturais de seu pas. J Vargas Llosa, do meu ponto de

    vista, apesar de discordar da posio de Arguedas, parece procurar atravs d' O Falador,

    tambm nesta fronteira, esse mesmo local, essa ideia sem forma que Montoya vai chamar de

    utopia da diversidade 32.

    Para isso, Vargas Llosa cria dois personagens, dois mundos, dois movimentos parailustrar essas diferenas que, apesar de estarem sob uma mesma nao (territorial) no esto

    sob uma mesma ideia ou projeto de nao isto , no esto integrados ou sequer em dilogo.

    Por integrao, no caso, no se entende uma fuso, mas sim uma ideia de

    diversidades e multiplicidades que devem (precisam) ser articuladas por outras duas grandes

    utopias: democracia e igualdade (de direitos 33). Integrao, nesse sentido, aproximaria-se mais

    contemplao e o respeito s diferenas e talvez por isso carregue consigo nuanas desta

    utopia da diversidade.

    alternativas possveis em ambas situaes o domstico e o transcultural [cross-cultural] usando ajustaposio de casos (derivados de uma inerente perspectiva Janus-faced da etnografia), gerando assimquestes crticas de uma sociedade sobre a outra. Esse processo acadmico na verdade apenas um ajuste eum aprimoramento de uma condio comum e global, na qual membros de diferentes sociedades soengajados constantemente nessa mesma verificao comparativa da realidade contra as diferentes

    possibilidades. Todavia, ns percebemos que, de maneira contrria a ideia de buscar modelos simplicistas emsociedades exticas, muitas dessas alternativas no so importveis como se fossem uma forma de tecnologia.Os japoneses, tonganeses, ou nigerianos no oferecem contrastes claros com ns mesmos; qualquer

    justaposio deles conosco gera inquritos complexos sobre nossas respectivas situaes em uma ordemmundial contempornea na qual as relaes entre as sociedades devem ser pressupostas (MARCUS;

    FISCHER, 1986, p. 117).31 apud BAPTISTA, 2003,passim.32 BAPTISTA, 2002.33 cf. VIVEIROS DE CASTRO, 2002.

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    Vargas Llosa, ento, ao invs de procurar fundir culturas e lnguas, como me parece

    ser a abordagem de Arguedas, opta pela criao de um personagem converso e controverso, um

    transculturador de si mesmo: um Falador (figura individual de um status social dos ndiosmachiguenga), um nmade, um mediador. Um ex-etnlogo que passa de porta-voz alto-

    falante, que mergulha to profundamente no Outro, que assim se transforma, e que no pode

    mais voltar.

    Pero esta inmersin transcultural o 'traduccin intercultural' entraa peligros.

    En efecto: 'el conocimiento puede llevar al aprendiz tan adentro de la cultura

    del outro que sta puede tragrselo del todo, el placer de la experiencia del

    descubrimiento y la simpatia por el 'objeto' que es necesaria para

    comprenderlo pueden borrar la distancia entre sujeto y objeto de

    conocimiento' (LOMNTIZ apud DEGREGORI, 2000, p. 26) 34.

    Mas tal transformao nunca completa e isso faz com que ele no possa firmar razes

    em lugar nenhum (exemplo: M18 35, quando o Falador tenta formar uma famlia e tudo d

    errado), pois no existe um lugar para ele. Seu lugar ser um contador de histrias, um falador,

    a prpria oralidade que se move, o mediador que s existe durante a mediao (pois seno

    apenas um andarilho em busca de seu destino falar).

    Por esses motivos, Vargas Llosa parece sugerir uma resoluo dessa questo da

    diversidade cultural por meio de um personagem, que tanto um tipo ideal machiguenga

    (nmade e falador) quanto um tipo ideal de etnolgo (embora seja, por isso mesmo, mais um

    nativo que um pesquisador: isto , ambas posies so utpicas e mutuamente exclusivas).

    E aqui entram os estranhamentos necessrios para 1) a construo da personagem; 2)

    sua movimentao; e 3) para nossa apreenso aprofundaremos estas situaes ao longo do

    captulo 4.

    Alguns desses processos se revelam na prpria estrutura do livro; outros esto ocultos

    ou implcitos ou inconscientes. Outros ainda devem ser preenchidos na subjetividade inerente interpretao dos textos (e das culturas): e por isso, talvez, que a memria seja um aspecto

    central de todo livro e de toda narrativa. Sua verossimilhana uma tentativa de calcar esta

    fico em algum lugar plausvel, em uma ideia de nao que, por no dar conta de tudo isso, s

    pode ser almejada como um porvir distante, que nunca se realiza (tal como a nao Inca de

    34 Porm essa imerso transcultural ou traduo intercultural implica perigos. De fato: 'o conhecimento podelevar o aprendiz to adentro da cultura do outro que esta pode trag-lo todo, o prazer da experincia do

    descobrimento e a simpatia pelo objeto que necessria para compreend-lo podem borrar a distncia entreo sujeito e o objeto de conhecimento (LOMNTIZ apud DEGREGORI, p. 26).35 Daqui em diante, as diversas notaes N e M, numeradas, referem-se minha diviso do livro em unidades

    narrativas. Para isso, vide APNDICE A Fragmentos narrativos.

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    Valcrcel, ou o socialismo andino de Maritegui, ou o socialismo mgico de Arguedas).

    Talvez o Falador, como mediador, seja este personagem que precise dar os primeiros

    passos e est condenado a estes passos a todo momento, sempre andando e contando eouvindo. No fim, esta ideia de diversidade, tomando o falador como um exemplo, sugere que s

    estar prxima de se concretizar quando todos ns nos tornamos um pouco faladores, um pouco

    andarilhos, um pouco escutadores, um pouco outros: isto , exige uma disposio para

    conhecer o mundo e as pessoas, ouvir e escutar e andar e contar e inventar e lembrar e esquecer

    e transformar.

    A utopia da diversidade, aqui, estaria em entender a diferena no como algo a ser

    solucionado ou superado, mas como sendo a prpria soluo, no sentido de que preciso

    ser antes um escutador para se tornar um falador (como ocorre ao personagem, em M23);

    ou ainda, preciso ser transcultural (partindo, sempre, do estranhamento) para pensar a

    diversidade e suas possibilidades de mediao.

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    3. O UNIVERSO DA NARRATIVA

    O romance O Falador, de Mario Vargas Llosa, portanto, ser nosso objetoetnogrfico. No apenas porque seu contexto narrativo (etnlogos, ndios e tudo mais) se

    aproxima do mtierantropolgico, mas principalmente pelo modo como estes elementos esto

    estruturados e tecidos, em que no apenas uma voz, mas duas, so articuladas durante a

    narrativa e etc. J apresentamos um resumo do enredo e algumas das principais questes do

    livro nos dois captulos precedentes. Como foi dito inicialmente, no seguiremos por um

    percurso linear, mas espacial e temporal. Os movimentos, de todas as naturezas, nos sero

    caros.

    A recente teoria literria sugere que a eficcia de um texto em fazer sentido

    de uma forma coerente depende menos das intenes pretendidas do autor do

    que da atividade criativa de um leitor. Para citar Roland Barthes, se um texto

    a trama de citaes retiradas de inumerveis centros de cultura, ento aunidade de um texto repousa no em sua origem mas em seu destino. () h

    sempre uma variedade de leituras possveis (alm das apropriaes meramente

    individuais), leituras alm do controle de qualquer autoridade nica

    (CLIFFORD, 1998, p. 57).

    A edio do livro na qual me baseei para a realizao deste trabalho foi a da editoraFrancisco Alves, com traduo de Remy Gorga, filho, 3 edio (1988) cuja capa, alis, traz o

    fragmento de uma pintura de Henri Rousseau: Paisagem tropical. ndio lutando com um

    macaco (1910). J a contra-capa que tanto apreciamos nos diz o seguinte:

    O falador

    Duas narrativas alternam-se, em O Falador, para nos contar o verso e o

    reverso de uma histria singular. De um lado, o narrador principal (da mesma

    forma que em Tia Julia e o escrevinhador ou Histria de Mayta parece

    identificar-se com o autor) evoca as recordaes de um companheiro dejuventude em Lima, apelidado Mascarita, fascinado por uma pequena culturaprimitiva; de outro, um annimo contador ambulante de histrias um

    falador , testemunha da memria coletiva dos ndios machiguengas da

    Amaznia peruana, conta-nos, em uma linguagem incomum de poesia e de

    magia, a prpria existncia, a histria e os mitos de seu povo. A conflunciafinal das duas histrias, ao revelar sua secreta unidade, mostra as misteriosas

    relaes da fico com as sociedades e os indivduos, sua razo de ser, seusmecanismos e suas consequncias na vida. Por seu domnio expressivo e a

    problemtica abordada, O Falador uma das mais significativas e originais

    contribuies da obra de Mario Vargas Llosa. (EQUIPE EDITORIAL DAFRANCISCO ALVES apud VARGAS LLOSA, 1988, contra-capa do livro).

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    O leitor tpico desses que no se encontra em lugar algum , ento, abriria o livro e

    iniciaria sua leitura; ou, quem sabe, o abandonaria nas estantes empoeiradas de um sebo

    qualquer. Mas claro que no faremos nem isso, nem aquilo. Pois tendo uma vez tornado esseromance nosso objeto etnogrfico, resta agora, e nada menos do que isso, tornar-mo-nos

    etngrafos e, como acrescentaria James Clifford,

    tentador comparar o etngrafo com o intrprete literrio (e esta comparao

    cada vez mais um lugar-comum) mas mais especificamente com o crticotradicional, que encara como sua a tarefa de organizar os significados no

    controlados em um texto numa nica inteno coerente (CLIFFORD, 1998, p.

    41).

    Esta, portanto, uma organizao possvel.

    3.1. TEMPOS

    O Falador transcorre em trs tempos e em trs localidades principais: Lima, a selva

    amaznica e Florena. Cada um desses espaos, distintos cultural e geograficamente, existem

    em trs tempos bem marcados: a capital peruana na transio das dcadas de 1950/60 e em

    1981, a selva amaznica nos mesmos perodos, e o presente narrativo de Florena, em 1985.

    A princpio pode parecer um tanto contraproducente a separao do binmio espao-

    tempo em duas unidades distintas, uma vez que h pouco mais de um sculo Einstein nos

    alertou para sua indissociabilidade. Mas os separo aqui por dois motivos: 1) para introduzir

    alguns aspectos da prpria estrutura do livro e da narrativa do Narrador; e 2) para levantar

    algumas questes sobre memria e narrativa. Os detalhes de cada poca, isto , seus contextos,

    localidades e deslocamentos, sero tratados nas partes seguintes, sobre os espaos e

    movimentos.

    3.1.1. Estruturas

    O primeiro dado importante acerca da estrutura do livro sua diviso em captulos: o

    primeiro e os captulos pares (1, 2, 4, 6 e 8) so narrados em primeira pessoa pelo Narrador; os

    captulos mpares (3, 5 e 7) so narrados em primeira pessoa pelo Falador.

    Os captulos 1 e 8 se passam em Florena, em 1985. Os captulos 2 e 6, em grande

    parte, so memrias de Lima (1953-58), ainda que o Narrador passeie pelo tempo e por

    memrias de outros perodos (principalmente o incio da dcada de 1980) e localidades. O

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    captulo 4 narra a visita do Narrador selva peruana em 1958. J os captulos narrados pelo

    Falador se passam num tempo indefinido, em algum ou em vrios momentos deste intervalo de

    vinte e sete anos, entre 1958 e 1985.

    3.1.2. Tempo & memria

    No por acaso que a narrativa do Falador transcorra em uma poca ou data no

    especificada. O primeiro motivo, imediato, que o Falador no , digamos assim, um sujeito

    concreto como parece ser o Narrador, alter-ego de Vargas Llosa. Ainda que este seja tambm

    uma criao, aquele inventado por ele criao da criao.

    Quando do seu primeiro contato com a figura machiguenga dos faladores (em 1958;

    captulo 4, N11), numa conversa com o casal Schneil, linguistas-missionrios do Instituto

    Lingustico de Vero 36, o Narrador conclui que a funo do falador parecia ser sobretudo

    aquela inscrita em seu nome: falar37. Mais adiante, Edwin Schneil, no tendo ainda encontrado

    nenhum falador machiguenga, expe suas hipteses: Tenho a impresso de que o falador no

    traz s notcias atuais. Tambm do passado. provvel que seja, ao mesmo tempo, a memria

    da comunidade. Que realize uma funo parecida dos trovadores e jograis medievais 38. Na

    segunda visita do Narrador selva (1981; captulo 6, N20), no reencontro com o casal Schneil,

    Edwin lhe conta que por duas vezes ouviu um falador machiguenga: falava sem parar, com

    muita energia. Enfim, era seu ofcio e sem dvida ele o fazia bem. E, reproduzindo o dilogo,

    o Narrador lhe pergunta:

    De que falava? Bem, impossvel lembrar. Que confuso! De tudo um pouco,

    das coisas que lhe vinham cabea. Do que tinha feito na vspera e dos quatromundos do cosmos machiguenga, de suas viagens, de ervas mgicas, das

    pessoas que tinha conhecido e dos deuses, deusinhos e seres fabulosos dopanteo da tribo. Dos animais que tinha visto e da geografia celeste, um

    labirinto de rios cujos nomes no h quem recorde (IBID., p. 156).

    Tais caractersticas no esto presentes apenas nestas descries, mas so marcantes

    nos trs captulos narrados pelo Falador, que conta diversos mitos e histrias, uma aps a outra,

    sempre falando e falando sobre muitos temas. Dado que suas histrias vo dos deuses dos

    vrios mundos at suas experincias particulares e andanas pela selva, estes captulos,

    36 Summer Institute of Linguistics (SIL): no livro, tanto na traduo quanto no original em espanhol, o nome em

    ingls do Instituto foi traduzido literalmente. Sabe-se, no entanto, que em portugus, a fim de manter a sigla, arazo social do SIL Sociedade Internacional de Lingustica.37 IBID., p. 82.38 IBID., p. 83.

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    portanto, transcorrem num tempo atemporal, no eterno presente do mito.

    Isto ainda mais marcante quando, ainda no captulo 4, na primeira conversa com os

    linguistas, a senhora Schneil tenta explicar a dificuldade de estabelecer sobre o qu fala umfalador:

    O sistema verbal machiguenga era intrincado e desorientador, entre outras

    razes porque confundia facilmente o passado e o presente. Assim como apalavra muitos tobaiti servia para expressar todas as quantidades

    superiores a quatro, o agora abrangia, frequentemente, o hoje e o ontem e o

    verbo no tempo presente era usado com frequncia para referir-se a aes do

    passado prximo. Era como se s o futuro fosse para eles algo nitidamentedelimitado (IBID., p. 83-84).

    Esta particularidade do idioma machiguenga, aliada s caractersticas j citadas das

    narrativas do personagem do falador, evidenciam esse presente constante da narrativa mtica e

    da prpria oralidade. E, mesmo escrito em espanhol, Vargas Llosa constri uma narrativa que

    emula essas risonhas e inquietantes implicaes de uma maneira de falar na qual o antes e o

    agora pouco se diferenciavam 39, apesar da dificuldade que significava inventar, em espanhol

    e dentro de esquemas intelectuais lgicos, uma forma literria que verossimilmente sugerisse a

    maneira de contar de um homem primitivo, de mentalidade mgico-religiosa 40 pois, numa

    espcie de meta-narrativa, tambm o Narrador procura, sem sucesso, escrever um conto sobreos faladores machiguengas.

    Tudo isso, tambm, parece ter reflexo no prprio modo de narrar do Narrador: tanto

    por estar escrevendo sobre memrias espalhadas por trs dcadas, quanto, por isso mesmo,

    realizar saltos temporais entre uma histria e outra, ou mesmo dentro da mesma histria, como

    neste trecho em que coloca Mascarita em dilogo direto com seus pensamentos acerca do

    fascnio que a figura do falador passou a exercer sobre ele:

    A ideia desse ser, desses seres, nas florestas insalubres do Oriente cusquenhoe de Madre de Dios, que faziam extensssimas travessias de dias e semanas

    levando e trazendo histrias de uns machiguengas a outros, recordando a cada

    membro da tribo que os demais viviam, que, apesar das grandes distncias que

    os separavam, formavam uma comunidade e compartilhavam uma tradio,umas crenas, uns ancestrais, uns infortnios e algumas alegrias, a silhueta

    furtiva, talvez lendria, desses faladores que com o simples e antiqussimoexpediente trabalho, necessidade, capricho humano de contar histrias,

    eram a seiva circulante que fazia dos machiguengas uma sociedade, um povo

    de seres solitrios e comunicados, comoveu-me extraordinariamente. Comove-

    39 IBID., p. 84.40 IBID., p. 139.

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    me ainda, quando penso neles, e, agora mesmo, aqui, enquanto escrevo estaslinhas, no Caff Strozzi da velha Florena, sob o calor trrido de julho, fico

    todo arrepiado.

    Mas por que fica todo arrepiado? disse Mascarita. Que que chama tanto

    a sua ateno? Que tm de particular os faladores?

    De fato, por que no podia tir-los da cabea, desde aquela noite?

    So uma prova palpvel de que contar histrias pode ser algo mais que umamera diverso ocorreu-me dizer-lhe. Algo primordial, algo de que depende

    a prpria existncia de um povo. Talvez tenha sido isso o que me impressionoutanto. A gente nem sempre sabe por que as coisas nos comovem, Mascarita.

    Tocam em uma fibra secreta, e pronto. (IBID. p. 84-85).

    Em certa medida, a memria parece operar do mesmo modo que o mito, num tempo

    fora do tempo, ou melhor, no presente constante da enunciao ou evocao. Parece-me

    inevitvel concluir esta parte com mais uma citao, referente ao trecho acima, que ilustra e

    aglutina algumas das questes aqui levantadas:

    A memria uma verdadeira armadilha: corrige, sutilmente acomoda o

    passado em funo do presente. Tenho tentado tantas vezes reconstruir aquelaconversa de agosto de 1958 com meu amigo Saul Zuratas, naquele botequinho

    de cadeiras furadas e mesas bambas da Avenida Espanha, que agora j no

    estou certo de nada, salvo, talvez, de sua grande mancha cor de vinho-vinagre,que imantava os olhares dos outros fregueses, de sua alvoroada mecha de

    cabelos vermelhos, de sua camisinha de flanela, quadriculada em vermelho e

    azul, e de seus sapates de grande caminhador (IBID., p. 85).

    3.2. ESPAOS

    Os trs principais lugares do livro j foram listados: Lima, a selva amaznica e

    Florena. Mas, alm destes, parece haver um quarto espao, os lugares da utopia, sobre os quais

    falarei adiante. Ainda que os tenha listado aqui em uma ordem quase cronolgica, no assim

    que ocorrem na narrativa: o livro comea e termina com os captulos de Florena e, entre eles,

    como num abismo da memria, passeia por outros lugares e tempos, submergindo e emergindo

    de volta ao presente abafado da cidade italiana. E esses lugares, mesmo sendo momentos

    distintos no tempo e no espao, guardam entre si algumas relaes simblicas interessantes:

    Florena, em especial no ltimo captulo, sob o calor trrido de julho 41 e repleta de

    pernilongos, parece se aproximar da selva peruana tanto pelo clima quanto pelo xodo (embora

    41 IBID., p. 84.

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    voluntrio) de seus nativos:

    Os florentinos tm fama, na Itlia, de serem arrogantes e odiarem os turistas

    que os inundam, cada vero, como um rio amaznico. Neste momento difcilcomprovar se isso verdade porque quase no restam nativos em Florena.

    Eles tm viajado, pouco a pouco, medida que aumentava o calor, cessava abrisa das tardes, secavam as guas do Arno e os pernilongos tomavam conta da

    cidade. Estes so verdadeiras mirades volantes que resistem vitoriosamente a

    repelentes e inseticidas e se encarniam contra suas vtimas dia e noite,

    sobretudo nos museus. So as zanzare de Florena os animais totmicos, anjosprotetores de Leonardos, Cellinis, Botticellis, Filippos Lippis, Fray Anglicos?

    Pareceria. Porque ao p destas esttuas, afrescos e quadros onde recebi amaior parte das picadas que tm me avariado braos e pernas tanto quanto

    cada vez que viajo selva amaznica. (IBID., p. 205).Este apenas um exemplo, entre outros, de similaridades simblicas entre os locais por

    onde viaja o Narrador, operadas justamente pela memria, da qual falamos anteriormente.

    Outras poderiam ser os cafs de Lima e Florena, espaos para conversas e escrituras (vide a

    citao do salto temporal na pgina anterior, onde o narrador parte de um monlogo no Caff

    Strozzi da velha Florena, em 1985, diretamente para um dilogo com Mascarita num

    botequim de Lima, em 1958). Essas relaes so sutis e diversas, e sero mais bem exploradas

    no quarto item desta parte, sobre os lugares da utopia.

    3.2.1. Lima, Peru (1953-58; 1981)

    O Narrador nos conta, no captulo dois, que conheceu Saul Zuratas, o Mascarita,

    quando do ingresso deles na Universidade de San Marcos. Cursaram juntos os dois primeiros

    anos do curso de Letras. Saul inicialmente fazia Direito, seguindo a vontade do pai, Dom

    Salomn, mas ento passou a cursar, concomitantemente, o curso de Etnologia. Em 1956, aps

    abandonar o Direito, obteve o ttulo de bacharel em Etnologia, a partir de suas experincias

    entre os machiguengas de Quillabamba e Madre Dios, sob a orientao de Jos Matos Mar42. J

    o Narrador deu prosseguimento ao curso de Letras e trabalhava com o historiador Porras

    Barrenechea 43, amigo de Matos Mar. A amizade dos dois protagonistas, ento, havia comeado

    em 1953 e seguiu muito forte e significativa at 1956. Depois disso, experimentando os

    42 Jos Matos Mar, antroplogo, amigo de Vargas Llosa, e diz t-lo ajudado a criar suas novelas, conforme esta

    breve entrevista: http://peru.com/2012/03/20/actualidad/nacionales/jose-matos-mar-le-ayude-mario-vargas-llosa-crear-sus-novelas-noticia-4745343 O livro anteriormente citado de Vargas Llosa, La utopia arcaica (1996), decicado a la memria de Ral

    Porras Barrenechea, em cuya biblioteca de la calle Colina aprend l historia del Per.

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    primeiros estgios do que o Narrador chamou de converso, passaram a se distanciar

    gradualmente voc se tornou um homem de ideias fixas, Mascarita. No se pode falar de

    outra coisa com voc44

    . Ainda sobre San Marcos, notvel a seguinte passagem, em que oNarrador, analogamente ao seu processo de criao (estudo de referncias etnogrficas para a

    produo literria, como veremos mais adiante), menciona: eu o encontrava, muito raramente,

    nas poucas vezes em que aparecia pelo Departamento de Literatura, contguo ento ao de

    Etnologia 45. Em suma, este o espao base da novela, a partir de onde todo o restante se

    desenrola, isto , da Universidade de San Marcos para fora, primeiro aos bares, cafs, depois

    selva e da por vrias direes.

    Como mencionado na introduo, so os cafs e botequins o espao da conversa, do

    dilogo, da troca de ideias. Diversos locais so citados, como o Jirn Azngaro e o botequim da

    Avenida Espanha, ainda que nem todos possuam nomes ou descries suficientes, mas os

    ressalto aqui pela importncia do espao no desenvolvimento da amizade de ambos. Outro

    local, anlogo, a casa de Mascarita, em Brea, onde tambm se encontravam para conversar.

    Ademais, poderamos falar de Lima no incio dos anos 1980, quando o Narrador

    passou a ser responsvel por um programa de documentrios na TV local, La Torre de Babel.

    No entanto, trataremos disso na parte reservada aos movimentos.

    3.2.2. A selva amaznica (1958 e anos 1980)

    A primeira coisa que se nota acerca dos espaos na leitura dos captulos do Falador

    que todos eles so referenciados por nomes de rios. E so muitos. H portanto, um importante

    mapeamento fluvial, que orienta as histrias e os deslocamentos na selva peruana.

    Para alm dos rios, existem tambm outras regies importantes, como o Gran Pongo de

    Mainique (local tambm da cosmognese machiguenga), o Cerro do Sal, o Quillabamba.

    Somado a estes lugares, e dada a presena ostensiva do Instituto Lingustico de Vero em parte

    da regio, so mencionadas diversas aldeias recm-criadas (por onde o Falador no transita),

    como as do Alto Urubamba, Madre de Dios, Yarinacocha, Nuevo Mundo, Nueva Luz, etc.

    difcil, todavia, delimitar precisamente cada um desses locais, pois a maioria deles carece de

    uma descrio mais detalhada. Por isso, vou optar por apenas list-los aqui para referncia

    posterior.

    44 VARGAS LLOSA, 1987, p. 21.45 IBID., p. 33; grifos meus.

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    3.2.3. Florena, Itlia (1985)

    Assim como em Lima, os cafs de Florena so locais muito frequentados peloNarrador. E conforme a narrativa vai se encaminhando para um fechamento, temos um dado

    interessante: nesses dois meses, tudo foi se fechando: as lojas, as lavanderias, a incmoda

    Biblioteca Nacional perto do rio, os cinemas que eram meu refgio das noites, e, finalmente os

    cafs onde ia ler Dante e Maquiavel e pensar em Mascarita e os machiguengas das cabeceiras

    do Alto Urubamba e Madre de Dios 46. Tambm fecha a minscula galeria de arte, estopim da

    narrativa, sobre a qual dedicada todo o primeiro captulo: Fechou tambm, naturalmente, a

    pequena galeria da Rua Santa Margherita onde, entre uma tica e um armazm, face a face com

    a chamada igreja de Dante, estiveram expostas as fotografias machiguengas de Gabriele

    Malfatti 47.

    Ressaltei inicialmente algumas aproximaes simblicas entre Florena e a selva

    peruana, mas tambm h, evidentemente, um forte antagonismo entre as localidades, expresso

    j nas primeiras frases do livro: vim para Florena para esquecer-me por um tempo do Peru e

    dos peruanos e eis que o malfadado pas me veio ao encontro esta manh da maneira mais

    inesperada48 atravs das fotografias expostas na galeria:

    com uma estranha excitao e o pressentimento de estar fazendo uma burrice,

    arriscando-me por uma curiosidade banal a frustrar, de algum modo, o projeto

    to bem planejado e executado at agora ler Dante e Maquiavel e ver pintura

    renascentista durante dois ou trs meses, em irredutvel solido , a provocaruma dessas discretas hecatombes que, de quando em quando, pem minha vida

    de cabea para baixo. Mas, naturalmente, entrei (IBID., p. 7).

    clara, nesses trechos, a oposio de uma Florena clssica, renascentista (poca das

    navegaes e descobrimentos) e racional imagem tambm clssica e tambm renascentista

    de uma selva primitiva, intocada, repleta de riquezas a extrair 49. Tal oposioocidental/indgena, naturalizada por sculos e ainda hoje bastante comum, no reflete, no

    entanto, o pensamento do Narrador em 1985, mas talvez nos anos 1950, quando suas conversas

    com Mascarita, em vrias passagens do captulo dois (N4, N6) e quatro (N12), indicam sua

    viso inicial (e tambm ingnua) do atraso dos ndios em relao ao desenvolvimento do pas

    46 IBID., p. 206.47 IBID., p. 206-207.

    48 IBID., p. 7.49 H uma passagem sutil e interessante em que o Narrador, trabalhando com o historiador Porras Barrenechea,afirma estar catalogando os mitos sobre El Dorado e as Sete Cidades de Cibola nos cronistas dodescobrimento e conquista (IBID., p. 31).

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    seu amigo, obviamente, defende o oposto, a autonomia e o respeito pela cultura desses povos, o

    que o leva a abandonar o doutorado em Etnologia em 1958.

    Enfatizo novamente, portanto, mais a oposio simblica entre as duas localidades e asideias que costumam representar, que a prpria posio dos protogonistas, pois ao longo do

    livro o Narrador passa a compreender melhor a posio do amigo e at, no captulo quatro

    (N11) e no captulo seis (N18, N19, N20) a expressa como oposio ao discurso dos linguistas

    Schneil. Do mesmo modo, tambm simblico, seno muito curioso, que seja precisamente em

    Florena, contra todas as probabilidades, que o Narrador venha a encontrar numa foto uma

    figura to familiar quanto a de Mascarita.

    3.2.4. Lugares da utopia

    Alm destes lugares fsicos e bem definidos na narrativa, h tambm os lugares da

    utopia. A comear pelos locais do mito: o Gran Pongo de Mainique, onde Tasurinchi e

    Kientibakori sopraram tudo que bom e o que mau, todos os saankarites e os kamagarinis

    (M1, M24); o Cerro do Sal, onde Pareni e sua filha jazem como rochas (M2, M17); os quatro

    mundos de cima e de baixo (N13): o Inkite, onde vive Tasurinchi e corre o rio Meshiareni, que

    a nossa Via-Lctea; o Menkoripatsa, a regio das nvens e do rio transparente

    Manaironchaari; Kipacha, a terra, por onde andam os machiguengas e flui o Kamabira, o rio

    dos mortos; e a regio mais profunda, onde vive Kientibakori e corre o Gamaironi, o rio de

    guas negras50.

    O Grand Pongo e o Cerro do Sal so, tambm, lugares fsicos (tal como Kipacha, em

    certo sentido), e com isso no quero dizer que so mais reais que os outros, mas sim que

    podem ser um destino possvel de uma caminhada de muitas luas. E, destes, o Cerro do Sal me

    parece o mais emblemtico.

    Antes, preciso uma digresso: ao comparar Florena com a selva peruana, a categoria

    do ocidental com a do indgena, ressaltei algumas similaridades e oposies. Ambas,

    idealizadas e enviesadas, costumam ser antagnicas e, tambm, costumam no dar conta de

    todos os problemas que as cercam (alis, costumam cri-los ou justific-los). O que quero dizer

    com isso , em poucas palavras, que Vargas Llosa, apesar de aparentemente operar com elas,

    procura, na verdade, um outro lugar, um outro espao que lhes sejam exterior, onde talvez

    possamos encontrar outras coisas alm das ideias progressistas de dominao e modernizao

    50 IBID., p. 95.

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    ou de um romantismo indigenista.

    O Narrador, antes de ir para Florena, e talvez mesmo antes de sab-lo, um defensor

    do progresso e da racionalidade materialista (como j assinalei, vide os dilogos do captulodois); Mascarita, ao contrrio, um partidrio indgena, quase um porta-voz de um povo

    ameaado como tal. O Narrador, ento, ao longo dos captulos, observa a dissoluo de suas

    prprias certezas marxistas 51, ainda que a duas ou trs dcadas de distncia. Mascarita, agora

    convertido, tambm foge sua posio de bradar contra Etnologia e os abusos do Estado

    peruano: de porta-voz indgena, torna-se um falador machiguenga, e passa a falar somente a

    eles. Ambos, portanto, escapam s suas categorias iniciais e, tambm ambos, experimentam

    transformaes distintas, por linhas de fuga distintas.

    Mas a questo, quase romntica, da coexistncia e respeito mtuo da diversidade

    cultural persiste, e ainda sem soluo: o Narrador vai busc-la, de algum modo, no prprio

    exerccio da escrita e rememorao, na redeno da memria, inspirado por uma fotografia que

    lembra o amigo e o remete a essas questes que o perseguem h trs dcadas; o Falador, em

    algum canto da selva peruana, parece fazer o mesmo quando, juntamente com os mitos

    machiguengas e suas experincias, narra, com a mesma estrutura e estilo, o mito cristo da

    criao (M25) e A Metamorfose de Kafka (M22), talvez nessa mesma tentativa de encontrar

    esse lugar da diversidade, de trazer para dentro do imaginrio machiguenga essa ideia (o

    oposto, por exemplo, do trabalho dos linguistas e missionrios, ao traduzir a Bblia e o Hino

    Nacional peruano para o idioma machiguenga). O erro, talvez, se que podemos dizer assim,

    que ambos cometem inicialmente crer que um dos lados deve ceder em nome dessa mesma

    utopia da diversidade; o que ambos percebem depois, e assim me parece, que os dois lados, o

    ocidental e o indgena, tm de mudar e se transformar, mas esta conscincia parece surgir

    apenas depois, aps cada um passar por suas transformaes individuais. No quero dizer, com

    isso, que ambos esto mais prximos de encontrar uma soluo para este impasse pois talvez

    nunca a encontrem, ou quem sabe at se distanciem cada vez mais dela.

    Quando aproximei Florena e a selva pelo calor, pelos pernilongos, pelo xodo (ou

    dispora, ou mesmo, por que no, pelo extermnio) dos seus nativos quis me aproximar

    tambm desta questo: ambos os locais, em certa medida, no encontram sada para o mesmo

    problema da diversidade. Florena, inundada de turistas, derrete:

    Escureceu mas h tambm estrelas, ainda que no to lcidas como as da

    selva, na noite de Florena. Pressinto que a qualquer momento acabar a tinta

    51 IBID., p. 70.

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    (as lojas da cidade onde poderia encontrar nova carga para minha caneta estotambm em chiusura estivale, naturalmente). O calor intolervel e o quarto

    da Penso Alejandra fervilha de mosquitos que zumbem e esvoaam volta de

    minha cabea. Poderia tomar uma ducha e sair para dar uma volta, em buscade distrao. possvel que no Lungarno haja um pouco de brisa, e, se opercorro, o espetculo dos molhes, pontes e palcios iluminados, sempre belo,

    desemboca em outro espetculo, mais truculento, o do Cascine, de diabeatfico passeio de senhoras e crianas, e, a estas horas, antro de putas,

    pederastas e vendedores de drogas. Poderia ir misturar-me com os jovens

    brios de msica e maconha da Piazza del Santo Spirito ou Piazza della

    Signoria que, a estas horas, uma multicolorida Corte dos Milagres, onde seimprovisam simultaneamente quatro, cinco e s vezes dez espetculos:

    conjuntos de maraqueiros e tumbadores caribenhos, equilibristas turcos,

    engolidores de fogo marroquinos, uma tuna espanhola, mmicos franceses,jazzmen norte-americanos, adivinhadoras ciganas, guitarristas alemes,

    flautistas hngaros. s vezes agradvel perder um instante nessa multido

    variada e juvenil. (IBID., p. 213-214).

    Acaso em Florena essa questo da diversidade est resolvida? Tenta-se. E na selva e

    no Estado peruano, com seus viracochas, mestios, machiguengas, ashaninkas, amueshas, piros,

    yaminahuas, mashcos, etc, etc, etc? Tenta-se. Os modos e os meios so diferentes, mas o

    modelo tende a ser o mesmo: das grandes metrpoles, a iluso da diversidade exportada, ou

    melhor dizendo, imposta, para as menores e destas para suas periferias. Obviamente, no to

    simples quanto parece, mas o ponto comum que tanto do lado de l quanto do de c, as coisas,

    nesse sentido, no vo bem.

    E, enfim, percorremos toda essa digresso para chegarmos ao Cerro do Sal, um espao

    fsico e mtico, que contado (M2) como um lugar onde, apesar de todas diferenas, as tribos se

    respeitavam e coexistiam. No existia conflito: havia sal e respeito para todos 52.

    Todos conheciam o Cerro. Ns chegvamos e os inimigos estavam a. No

    brigvamos. No havia guerras nem caadas, mas respeito, dizem. Isso , pelomenos, o que eu soube. Ser verdade, talvez. Igual que nas collpas, igual que

    nos bebedouros. Por acaso nesses lugares escondidos da selva, onde a terra salgada e a vo lamber, os animais lutam? Quem j viu em uma collpa o sajino

    investir contra o majaz ou a capivara morder o shimbillo? Nada se fazem. A

    se encontram e a ficam, cada um em seu lugar, lambendo tranquilamente do

    solo seu sal ou sua gua, at que se fartam. Por acaso no to bom descobrir

    uma collpa ou um bebedouro? Como fcil caar os animais, ento. Ali esto,

    descuidados, confiantes, lambendo. No sentem a pedra, no fogem quandosilva a flecha. Caem fcil. O Cerro era a collpa dos homens, era seu grande

    bebedouro. Tinha sua magia, quem sabe. (IBID., p. 42).

    52 IBID., p. 42.

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    Mas isso era antes.

    Depois j no se podia mais subir ao Cerro. Depois, eles ficaram sem sal.

    Depois, o que subia era caado. Amarrado, era levado aos acampamentos. Issoera a sangria de rvores. Fora, porra! Depois, a terra se encheu de viracochas

    procurando e caando homens. E os levavam e eles sangravam a rvore ecarregavam o caucho. Fora, porra! Nos acampamentos foi pior que na

    escurido e nas chuvas, parece, pior que quando o dano e os mashcos. Tivemos

    muitssima sorte. No estamos andando? Eram espertos os viracochas, dizem.

    Sabiam que as pessoas subiriam com seus cestos e redes para recolher o sal doCerro. Esperavam-nos com armadilhas e escopetas. Levavam o que casse.

    Ashaninka, piro, amahuaca, yaminahua, mashco. No tinham preferncias. Oque casse, se no faltariam mos para sangrar a rvore, dedos para abrir-lhe

    feridas, colocar sua lata e recolher seu leite, ombros para carregar e pernaspara correr com as bolas de caucho ao acampamento. Alguns escapavam,

    quem sabe. Muito poucos, dizem. No era fcil. (IBID., p. 42-43).

    Esses dois trechos nos contam coisas interessantes: inicialmente, antes da chegada dos

    brancos e do ciclo da borracha, o Cerro do Sal abrigava, mesmo que temporariamente, diversas

    etnias, inclusive as inimigas, e ainda assim no havia conflito, mas respeito. Mesmo que apenas

    nesse intervalo da caa e da coleta, poderamos dizer, havia ento uma diversidade temporria,

    quase utpica. Melhor ainda: o prprio local, independente de quem ali estivesse, era

    reconhecido por todos como este espao da diversidade. Deixa de ser quando os ndios,

    qualquer que seja sua etnia, passam a ser caados como os prprios animais do local. E a utopia

    fica, ento, apenas no mito, no passado.

    Creio que de algum modo tanto o Narrador quanto o Falador, em suas linhas de fuga,

    almejem chegar a esse Cerro do Sal mtico. Ou, antes, que a prpria narrativa de Vargas Llosa

    procure tambm este lugar, este refgio, este bebedouro onde no exista conflito: o lugar da

    utopia.

    3.3. MOVIMENTOS

    Aqui reunimos novamente o binmio espao-tempo para podermos falar nos

    movimentos do livro, que so vrios e de vrias ordens tentarei explorar alguns deles: o

    nomadismo machiguenga, as viagens do Narrador e os movimentos de estranhamento. J

    falamos de alguns movimentos temporais e da memria nas pginas anteriores, embora no

    estejam dissociados dos movimentos que tratarei aqui alis, esto intimamente ligados.

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    3.3.1. O homem anda: necessidade de nomadismo (movimentos no espao)

    O princpio o deslocamento. Ou, como diria Chico Science, basta um passo frentepara que voc j no esteja mais no mesmo lugar: Tudo tinha comeado, ele me contou, certa

    ocasio, com uma viagem a Quillabamba, no Dia da Ptria 53. E muito significativo que Saul

    Zuratas, o Mascarita, tenha tido seu primeiro contato com os machiguengas e a selva em uma

    viajem justamente no Dia da Ptria peruana.

    Voltou a Quillabamba no Natal e ali passou o vero todo. Regressou nas

    frias de julho e no dezembro seguinte. Cada vez que havia uma greve em San

    Marcos, embora de poucos dias, voava para a selva de qualquer maneira: em

    caminho, trem, lotaes, nibus. Voltava dessas viagens exaltado e loquaz, osolhos brilhantes de admirao pelos tesouros que tinha descoberto. Tudo o que

    fosse de l o interessava e o excitava de maneira excessiva (IBID., p. 19-20)

    Logo no primeiro mito contado pelo Falador, o mito da gnese no Grand Pongo, onde

    Tasurinchi e Kientibakori sopram todas as coisas do mundo, e tambm quando a lua, Kashiri,

    fez cair o Sol para pr em trevas os machiguengas, v-se uma caracterstica essencial deste

    povo: o andar.

    preciso fazer alguma coisa, diziam. E, olhando direita e esquerda, que

    coisa? Que faremos? Diziam. Pr-se a andar, ordenou Tasurinchi. Estavamem plena treva, rodeados de dano. A mandioca comeara a faltar, a gua fedia.

    Os que iam j no voltavam, afugentados pelas calamidades, perdidos entre o

    mundo das nuvens e o nosso. Sob o solo que pisavam ouviam correr, espesso,

    o Kamabira, rio dos mortos. Como que se aproximando, como que oschamando. Pr-se a andar? Sim, disse o seripigari, engasgando-se de tabaco

    na mareada. Andar, andar. E, lembrem-se, o dia que deixarem de andar, iro

    definitivamente. Trazendo abaixo o sol. Assim comeou. O movimento, a

    marcha. Avanar com ou sem chuva, por terra ou por gua, subindo o morro ou

    descendo a ladeira. Nas florestas, to espessas, era noite sendo dia, e as

    plancies pareciam lagoas porque no tinham qualquer vegetao, como cabeade homem que o diabinho kamagarini deixou sem cabelo. O sol no caiu

    ainda, animava-os Tasurinchi. Tropea e se levanta. Cuidado, est dormindo.

    Vamos despert-lo, vamos ajud-lo. Temos sofrido danos e mortes, mas

    continuamos andando. Bastariam todas as fascas do cu para contar as luas

    que se passaram? No. Estamos vivos. Ns nos movemos (IBID., p. 37-38).

    Noutro momento, num episdio contado pelo Falador (M11), o Tasurinchi do rio

    Mishahua rouba uma garota yaminahua (ou, segundo ele, trocou-a por uma sachavaca, uma

    saca de milho e outra de mandioca) e est ensinando-a a falar. Isto , a garota, de outra etnia e

    53 IBID., p. 19.

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    outra cultura, est sendo ensinada a viver entre os machiguengas e mal se compreendia o que

    a yaminahua dizia, o que era motivo de zombaria entre as outras mulheres. E o que ela

    aprendeu, as primeiras coisas, refletem a importncia do andar como trao distintivo dacultura machiguenga: verdade, est aprendendo a falar. Algumas coisas que dizia, entendi.

    O homem anda, entendi54.

    Saul, com seus sapates de grande caminhador 55, mergulha neste universo de

    pequenos grupos familiares dispersos pela selva, sempre andando, sempre fugindo do dano,

    qualquer que seja, para que no lhes atinja e para que o sol no caia. Seus movimentos entre a

    selva e a Universidade de San Marcos cessam em 1958, talvez, a partir de quando o Narrador

    no tem mais notcias do amigo. Apesar de no sab-lo na poca, mas anos depois, os

    movimentos de Mascarita, agora Falador, tangenciam os emaranhados de rios e selva densa

    para encontrar os machiguengas e contar suas histrias:

    Tornei-me falador depois de ser isso que so vocs neste momento.

    Escutadores. Isso era eu: escutador. Ocorreu sem o querer. Pouco a poucosucedeu. Sem sequer me dar conta fui descobrindo meu destino. Lento,

    tranquilo. Apareceu aos pedacinhos. No com o suco de tabaco nem ocozimento de ayahuasca. Nem com a ajuda do seripigari. S eu o descobri

    (IBID., p. 184).

    Primeiramente como etnlogo, na busca por melhor conhecer os machiguengas e suas

    histrias, ia de um lado a outro, procurando os homens que andam 56. Como afirma o

    Narrador, lembrando o comeo do contato de Mascarita com os machiguengas, a experincia

    teve consequncias que ningum poderia imaginar. Nem mesmo ele, estou certo disso 57.

    Alguns me conheciam, outros foram me conhecendo. Faziam-me entrar,

    davam-me de comer e beber. Uma esteira para dormir, me emprestavam.Muitas luas ficava com eles. Eu me sentia um da famlia. Para que voc veio

    at aqui?, perguntavam-me. Para aprender como se prepara o tabaco antes de

    aspir-lo pelos buracos do nariz, eu lhes respondia. Para saber como se pegacom breu as pernas da peruazinha kanari para poder aspirar o tabaco,

    dizendo-lhes.