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TEMPO DE IMPLÚVIO 1 Geocentelha 007 Os Romanos usavam o "impluvium". Povo a um tempo preguiçoso e operoso, preferia dedicar-se aos prazeres da vida a carregar água em pesados bornais de couro para o alto do morro. Tiravam dos elementos, nos meses de chuva anual, o álibi para dedicarem-se à poesia, ao amor, à caça, aos jogos e ao desporto da guerra. Corpo preguiçoso, mente azeitada para aproveitar o gênio grego e por o mundo a trabalhar por eles. É aí que nasce o Império Romano, sub-produto casual de quem não tinha outro projeto senão viver bem a vida. Importaram mulheres contra a vontade do exportador. Para isto liberaram taxas de importação e, deslise que prosperou, até se esqueceram de pagar a conta! Hoje o povo trabalha e trabalha. Mas os romanos atuais não merecem letra maiúscula. E tudo começou naquela ilha da garoa em que até crianças (como se fosse novidade) malhavam de aurora em aurora. Morriam cedo. Por isso tinham de trabalhar muito. Hoje morrem bem mais tarde, e trabalham menos. Então devem trabalhar até morrer para manter a média. Mesmo que isto signifique falta de trabalho para muitos. (Já pensou como deve ser a Espanha, com velhinhos desiludidos atendendo nas repartições, enquanto 20% de seus irmãos não têm sequer o esporte da "lata-dágua-na-cabeça" para praticar, quando poderiam estar vibrantes pondo experiência em mister mais útil?). A tecnologia, Romana ou romana, não veio para aliviar o corpo? Então por que submetê-lo ao faz-de-conta-que-trabalha até a beira do ocaso? Para deixar os outros sem serviço? Não! É para impedir que pensem! Ninguém aí fora "agüenta" mais a famigerada criatividade brasileira. Acho que descobriram que ela não se explica em qualquer atavismo étnico-ambiental, mas nas levas de aposentados precoces que, precisando complementar parcas aposentadorias, libertos do jugo sem criação de repartições e corporações, abrem campos, criando oportunidades novas de emprego e, aí sim, ameaçando os gigantes do Mercado. Voltando ao implúvio, ele, em sua versão atual, tem outras justificações: economizar na conta de água; compensar o mais grave impacto ambiental da urbanização, o bloqueio à infiltração, capaz de gerar inundações, erosão, assoreamento, redução da vazão de base dos rios. Além disto, ele ameniza demandas crescentes por canalizações que muitas vezes apenas transferem enchentes, e que competem com recursos públicos escassos que deveriam ser direcionados para dar infraestruturas consistentes às cidades, como transporte de massa, reurbanizações, moradias seguras. Diferentemente do coletor solar, ainda mais caro do que o desejável para que se torne bem difundido, o coletor pluvial está pronto, bastando pô-lo a funcionar, fazendo um reservatório de capacidade proporcional à área de telhado, à razão de cerca de 2m3/100m2 de telhado. Residências, clubes, escolas e prédios públicos horizontais, galpões industriais e comerciais, são edificações muito favoráveis para a implantação de reservatórios mediante soluções arquitetônicas muito simples. Os usos possíveis das águas pluviais são inúmeros, contando-se entre eles recarga de piscinas, sanitários públicos, lavajatos, rega de jardins, lavagem de calçadas e resfriamento industrial. As prefeituras deveriam exigir nas leis de uso e ocupação do solo compensação integral do bloqueio à infiltração, considerado impacto ambiental intolerável. Isto seria muito educativo e econômico para o cidadão e para o ambiente global. 1 JORNAL DOS CONDOMÍNIOS, ANO XI, NÚMERO 01 (BELO HORIZONTE)

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TEMPO DE IMPLÚVIO1

Geocentelha 007 Os Romanos usavam o "impluvium". Povo a um tempo preguiçoso e operoso, preferia dedicar-se aos prazeres da vida a carregar água em pesados bornais de couro para o alto do morro. Tiravam dos elementos, nos meses de chuva anual, o álibi para dedicarem-se à poesia, ao amor, à caça, aos jogos e ao desporto da guerra. Corpo preguiçoso, mente azeitada para aproveitar o gênio grego e por o mundo a trabalhar por eles. É aí que nasce o Império Romano, sub-produto casual de quem não tinha outro projeto senão viver bem a vida. Importaram mulheres contra a vontade do exportador. Para isto liberaram taxas de importação e, deslise que prosperou, até se esqueceram de pagar a conta!

Hoje o povo trabalha e trabalha. Mas os romanos atuais não merecem letra maiúscula. E tudo começou naquela ilha da garoa em que até crianças (como se fosse novidade) malhavam de aurora em aurora. Morriam cedo. Por isso tinham de trabalhar muito. Hoje morrem bem mais tarde, e trabalham menos. Então devem trabalhar até morrer para manter a média. Mesmo que isto signifique falta de trabalho para muitos. (Já pensou como deve ser a Espanha, com velhinhos desiludidos atendendo nas repartições, enquanto 20% de seus irmãos não têm sequer o esporte da "lata-dágua-na-cabeça" para praticar, quando poderiam estar vibrantes pondo experiência em mister mais útil?). A tecnologia, Romana ou romana, não veio para aliviar o corpo? Então por que submetê-lo ao faz-de-conta-que-trabalha até a beira do ocaso? Para deixar os outros sem serviço? Não! É para impedir que pensem! Ninguém aí fora "agüenta" mais a famigerada criatividade brasileira. Acho que descobriram que ela não se explica em qualquer atavismo étnico-ambiental, mas nas levas de aposentados precoces que, precisando complementar parcas aposentadorias, libertos do jugo sem criação de repartições e corporações, abrem campos, criando oportunidades novas de emprego e, aí sim, ameaçando os gigantes do Mercado.

Voltando ao implúvio, ele, em sua versão atual, tem outras justificações: economizar na conta de água; compensar o mais grave impacto ambiental da urbanização, o bloqueio à infiltração, capaz de gerar inundações, erosão, assoreamento, redução da vazão de base dos rios. Além disto, ele ameniza demandas crescentes por canalizações que muitas vezes apenas transferem enchentes, e que competem com recursos públicos escassos que deveriam ser direcionados para dar infraestruturas consistentes às cidades, como transporte de massa, reurbanizações, moradias seguras.

Diferentemente do coletor solar, ainda mais caro do que o desejável para que se torne bem difundido, o coletor pluvial está pronto, bastando pô-lo a funcionar, fazendo um reservatório de capacidade proporcional à área de telhado, à razão de cerca de 2m3/100m2 de telhado. Residências, clubes, escolas e prédios públicos horizontais, galpões industriais e comerciais, são edificações muito favoráveis para a implantação de reservatórios mediante soluções arquitetônicas muito simples. Os usos possíveis das águas pluviais são inúmeros, contando-se entre eles recarga de piscinas, sanitários públicos, lavajatos, rega de jardins, lavagem de calçadas e resfriamento industrial. As prefeituras deveriam exigir nas leis de uso e ocupação do solo compensação integral do bloqueio à infiltração, considerado impacto ambiental intolerável. Isto seria muito educativo e econômico para o cidadão e para o ambiente global.

BELO HORIZONTE, DEZEMBRO DE 1996

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

1 JORNAL DOS CONDOMÍNIOS, ANO XI, NÚMERO 01 (BELO HORIZONTE)

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ERRADICANDO O RISCO2

Geocentelhas 009

A Humanidade aceita conviver, em níveis estatisticamente toleráveis, com o risco. Avanços tecnológicos, econômicos e de consciência vêm baixando os níveis admissíveis. Ideal é alcançar níveis baixos, e equiparados, em relação às modalidades de risco. Isto resultará de democrática distribuição de recursos públicos em prevenção, proporcionada por orçamentos baseados no princípio do investimento socialmente justificável, conceituado como aquele suportável pela comunidade e do qual resulta o maior benefício social por unidade monetária investida. É verdade chã que, a quem perde vida ou propriedade, não importa a via pela qual tenha sido atingido. Daí justificação para o combate ao risco de forma sistêmica e estrutural, segundo o princípio acima.

Contudo é necessário atentar para realidades que distorcem a priorização de verbas, provocando assimetria entre necessidades e recursos alocados entre as modalidades de risco: nível muito diferenciado do conhecimento dos fatores de risco e dos meios de combatê-los e nível ainda mais diferenciado do poder de obter a alocação de recursos entre os grupos sociais em exposição. Desta forma a modalidade de risco que afeta indistintamente ricos e pobres tem maior probabilidade de obter os recursos necessários à prevenção, como ocorreu com a poliomielite. O risco geológico incide com sinistra regularidade sobre camadas mais humildes da população, e é só para elas que ele tem incidência direta capaz de torná-lo objeto central da gestão, faltando-lhes forças para incluí-lo em prioridades orçamentárias e administrativas, já que sobre as camadas mais ricas sua incidência é fortuita.

Fácil demonstrar que erradicar o risco geológico é objetivo de toda a sociedade, porque os benefícios de tal erradicação reverterão para ela indistintamente. Com razão, a erradicação desse risco, e com ela a de efeitos colaterais, traz benefícios para a sociedade inteira, como se demonstra: a) reduzindo a pressão sobre hospitais e ambulatórios pela redução da ocorrência de doenças infecto-contagiosas; b) reduzindo a pressão sobre hospitais e delegacias de polícia pela redução da criminalidade; c) reduzindo o absenteísmo ao trabalho e às aulas pela redução de ocorrências que os provocam; d) reduzindo onerosas operações de defesa civil em geral; e) reduzindo operações de rescaldo e as rotineiras, de limpeza de ruas e avenidas; f) pela desocupação das áreas de risco não mitigável, recriando flexibilidades de gestão capazes de criar áreas verdes onde hoje exista carência delas (em planejamento verdes são as áreas que queremos verdes), e de outros equipamentos comunitários; g) liberando recursos para outras prioridades das cidades e ativando a construção civil; h) reduzindo esta sensação angustiante de país de terceiro mundo, que parece gostar de miséria, pela incapacidade de indignar-se.

Nosso país não precisa estar na corrida espacial para que nos ufanemos dele, porque não tem recursos e objetivos imediatos para isto, mas não precisa mendigar recursos externos caros e onerosos em termos de autonomia tecnológica para corrigir problemas tipicamente nossos, se temos condições perfeitas para enfrentá-los sozinhos: a nossa própria tecnologia e a tão propalada falta de dinheiro.

Erradiquemos em dez anos o risco geológico e teremos em dez anos, nas cidades que o consigam, as mais ricas do país!

BELO HORIZONTE, DEZEMBRO DE 1996

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

2 JORNAL HOJE EM DIA - OPINIÃO - 06/01/1997

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METRÓPOLE SITIADA3

Geocentelhas 010

Relutei antes de usar a expressão. Considero todavia que ela se ajusta às circunstâncias presentes no limiar do centenário e virada do século. Quais são essas circunstâncias? A da divisão política, que reservou à cidade escassos 335km2 de território; a da questão geológica, relacionada à mineração e à realidade geotécnica; o anel de ferro populacional, parte atraída de remotas regiões pelas luzes da Capital, redistribuída na RMBH por fatores como preço de terrenos, emprego, Vale Transporte(?). O resultado: saturação ou esgotamento das condições de suporte do meio físico a um desenvolvimento de qualidade. Urge "romper o sítio" configurado nesse quadro adverso. A tarefa, de porte colossal, mas não além das forças da cidade, pode ser levada a termo se elas forem alinhadas em frentes de ação estratégica. Internamente pela implantação do conceito de assentamento geo-suportado, envolvendo erradicação do risco geológico, reabilitação de áreas degradadas e controle dos processos geodinâmicos.

No espaço envolvente do município a outra linha de ação. É urgente que se dê à Capital dimensão de Metrópole do futuro: Não pode ela continuar a exercer tal função com os cerceamentos presentes, acumulando-a com as de maior entroncamento do país. O feixe de ligações que passa por aqui sobrecarrega a infra-estrutura local e não atende bem o resto do país. Importa quebrar a excessiva radialidade com a construção de Hiperanel viário a 100km do Centro. Esse Hiperanel, com 700km de extensão, teria em seus nós cidades como Conselheiro Lafaiete, Divinópolis, Itabira, que desempenhariam funções metropolitanas. Não se trata de resolver problema de tráfego. Mais que isto, o Hiperanel é conceito estruturante muito concreto, pois parte significativa dele tem implantação de variada categoria (p.e. o segmento Oliveira-Divinópolis), e pode ser implantado por etapas. Quando seus segmentos começarem a induzir o desenvolvimento local, a complementação será objeto óbvio de aplicação de recursos federais e estaduais. O Hiperanel não é corredor de exportação, mas alavanca de desenvolvimento regional e do mercado interno, prometendo integração econômica e cultural em área não menor que a do Uruguai. Com ele, a RMBH dividirá funções com polos como os citados.

Oportuno assinalar que isto significa concentrar populações em núcleos menores, onde está a água que escasseia por aqui. É lá que estão os materiais de construção, matéria prima da estrutura física das cidades. Em resumo, a tarefa colossal, de dar a Belo Horizonte um futuro mais brilhante, deve ser atacada numa linha vertical, onde intervirão agentes urbanísticos, arquitetônicos, sociológicos, culturais, que poderão melhorar muito o aproveitamento dos recursos do território, e numa linha horizontal, de cunho geopolítico, que permitirá engendrar um padrão de desenvolvimento de que resultará imenso benefício para a cidade e para o estado.

É importante, ainda que falando em tese de soluções, tecer considerações sobre custos. O Hiperanel, como outras opções de planejamento de cunho estruturante, em verdade não implica custo a maior em relação ao atual, pois serão redirecionados investimentos hoje feitos na óptica convencional.

Tarefa nada fácil, mas Roma não se fez num dia.

BELO HORIZONTE, DEZEMBRO DE 1996 EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

3 JORNAL HOJE EM DIA - OPINIÃO - 17/12/1996

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RISCO GEOLÓGICO4

Geocentelhas 011

Quando chegam as chuvas, a expressão risco geológico invade páginas de jornais e telas de televisão. Implantou-se depois de graves acidentes no Rio, serra das Araras, Petrópolis e litoral de São Paulo no final dos anos 60. No Rio gerou a criação do Instituto de Geotécnica, atual Fundação GEO-RIO, e em São Paulo a formação de um grupo de pesquisadores no IPT. Essas instituições, principalmente a segunda, fizeram muito pela divulgação de métodos e técnicas de prevenção e controle do risco geológico no Brasil. Em Minas a Carta Geotécnica de Ouro Preto foi experiência pioneira, elaborada junto ao Convênio SPHAN/UFOP/PMOP, que, após as chuvas de 1979, promoveu trabalhos de consolidação de encostas a custo baixo, e de remoções. O tratamento da encosta da Santa Casa de Ouro Preto é caso histórico de êxito de soluções pouco dispendiosas, com a participação de engenheiros e geólogos de entidades diversas. Lamentável é que ao extinguir-se o Convênio, o Grupo desfez-se.

O risco geológico urbano não é uma susceptibilidade nova do sistema geológico. O fato é que ele só se manifesta com intensidade capaz de fazer dele um objeto de planejamento precisamente a partir dos anos 50, quando se reúnem as duas condições necessárias para que se manifestem seus efeitos mais perversos: a predisposição do terreno à ocorrência do acidente geológico e a existência de pessoas e propriedades expostas. Esta coexistência agravou-se muito com a urbanização acelerada, sem controles técnicos calcados no conhecimento dos aspectos constitutivo e comportamental do sistema geológico, e socialmente excludente. Um problema, portanto, de gestão.

Não obstante, geólogos, engenheiros e outros profissionais atuantes na área têm feito grande trabalho, a que se devem creditar centenas e talvez milhares de vidas salvas no país, mas eles não podem tudo e se agora é a vez do Sudeste, há poucos meses dezenas de vidas perderam-se em Recife e Salvador. O fato é que a eficácia de medidas locais de mitigação do risco geológico tem limites, aqui ou no Japão. Desta forma, embora tenham sido desenvolvidas técnicas e metodologias modernas de classificação, prevenção e controle do risco, penso que é chegado o momento de os geólogos serem ouvidos com atenção quando preferem condenar uma dada área exposta a promoverem minuciosa triagem de níveis de risco que transitam continuamente entre o tolerável e o muito grave. Mais que a frieza de critérios quantitativos para aprovar ou condenar a área, não há orientação melhor para quem cuida do caso que a ditada pela consciência, depois de feitos os estudos indicados: condenar a área em que não residiria.

Dada a natureza do risco em Minas Gerais, ele pode ser muito atenuado com obras simples e medidas de planejamento pouco dispendiosas quando cotejados custos e benefícios que ensejariam alcançar (economia de vidas, casas por reconstruir, televisores, caçarolas e geladeiras, além do benefício urbanístico representado pela abertura de novos espaços para áreas verdes e outros equipamentos de interesse geral).

Poucas cidades do mundo terão, como Belo Horizonte, à sua disposição, definição técnica tão abrangente do problema e das soluções, ajustadas ao nosso contexto (em documentação elaborada pelo Departamento de Geologia do IGC/UFMG). Lembram-se, entretanto, da pólio? Qual teria sido o impacto da descoberta de sua vacina se o genial descobridor não tivesse jogado o peso de sua credibilidade e capacidade de indignar-se para que fosse avante o programa de vacinação que tantos benefícios trouxe ao país?

O risco geológico tem vacinas. Acho que Belo Horizonte, que vem dando passos promissores na área, pode, no limiar de seu centenário, colocar nas ruas a campanha da extinção, como meta a ser atingida num prazo de dez anos, do risco geológico. Estou certo de que Sabin aprovaria. Por outro lado, esta medida constituiria a melhor resposta de nossa capital ao apelo da ONU, que declarou os anos 90 a “década da prevenção dos acidentes naturais”.

BELO HORIZONTE, NOVEMBRO DE 1996

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

4 JORNAL HOJE EM DIA - OPINIÃO - 29/11/1996

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AJUSTE EM OURO PRETO5

GEOCENTELHA 024

Por mais significativo que seja o acervo histórico e cultural de Ouro Preto, não pode ele antepor-se assim tão vivamente, e tão prioritariamente, ao drama humano que a cidade presencia. Tenho lido apelos do país inteiro pela preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e cultural ali sediado. Não pode a cidade deixar de reconhecer que a solidariedade do Brasil inteiro e do exterior sempre se traduziu em apoios efetivos à proteção desse patrimônio, quer na reconstrução da sacristia do Pilar na década de 60 e em tantos outros episódios isolados, quer nas situações dramáticas geradas pelas chuvas de 1979. Naquela ocasião perceberam bem as autoridades da SPHAN, e de seu braço executivo, a Fundação Nacional pró-Memória, que tal patrimônio se amesquinha muito com a perda de uma paisagem urbana sadia, traduzida em montanhas de ondulações verdejantes, e também, onde o terreno permita, de um casario alegre instalado em condições seguras, nos seus patamares mais estáveis, onde resida um povo culto, alegre e próspero.

Lamentavelmente, a cidade, pela mesma dinâmica de urbanização que caracterizou praticamente todo o resto do país nos últimos 40 anos, ocupou as encostas de modo temerário.

Na década de 80, o Convênio SPHAN/UFOP/PMOP deu à cidade seu primeiro documento de natureza geotécnica, a Carta Geotécnica de Ouro Preto, como contribuição para que se buscasse organizar racionalmente a ocupação, ainda que não com proibições drásticas, pelo menos com a introdução de critérios de segurança mínimos na escolha dos locais de construção e de métodos construtivos adequados. A Carta Geotécnica de Ouro Preto é um mapa de risco que classifica o terreno em três categorias em relação a este aspecto, desde a Classe I, de risco desprezível, até a Classe III, de alto risco, que se recomenda não ocupar. A Equipe do Convênio entendia àquela altura que isto poderia prosperar com a adesão da Prefeitura Municipal. Pesquisadores da Universidade Federal de Ouro Preto, apoiados por outros centros, deram continuidade ao trabalho, testando, aprofundando e aperfeiçoando os resultados da Carta Geotécnica de Ouro Preto. Embora não tenha visitado a cidade após a tragédia recente, tenho recolhido informações de que muitas das ocorrências graves concentram-se sobre áreas de risco iminente, não se tratando, portanto, de eventos imprevistos ou imprevisíveis.

Pela dedicação desses pesquisadores, nem sempre reconhecida e respeitada, a cidade conta com técnicos à altura das responsabilidades de promover as corretas avaliações dos riscos que efetivamente pesam sobre o patrimônio senso estrito, representado pelo conjunto arquitetônico, e também sobre esse patrimônio maior que representa o próprio conjunto dentro da cidade que o envolve, como um objeto uno e indissociável.

Do exposto é forçoso concluir não ser suficiente concentrar atenção exclusivamente nos importantes monumentos, e que é igualmente importante dirigir a atenção para o povo, em suas condições de vida e moradia, afinal seu guardião, sem cuja segurança e prosperidade eles não sobreviverão na integridade que tanto prezamos.

Cuidar agora do futuro daquela criança que perdeu pais e irmãos não deve ser encargo exclusivo dos seus tios, mas de toda a comunidade ouropretana, e que isto seja o ponto de partida de uma profunda revisão, de um verdadeiro ajuste da cidade com seu povo, com vistas ao futuro de ambos.

BELO HORIZONTE, JANEIRO DE 1997

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

5 JORNAL HOJE EM DIA - OPINIÃO - 18/01/1997

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CONTAS DA ENCHENTE6

GEOCENTELHA 25

Tenho defendido a coleta de águas pluviais, disseminadamente nas cidades, aproveitando telhados, que são coletores prontos. A água coletada presta-se a muitos usos. Em situações arquitetonicamente favoráveis, como galpões, residências, prédios escolares, poder-se-ia alcançar uma área de coleta da ordem de 1% do território municipal. Admitindo coleta efetiva de 1.000mm ao longo do ano, seriam 3,35km2 x 1.000mm o volume recolhido, ou seja, 3,35 bilhões de litros, valendo 3,35 milhões de reais. Como a economia é alcançada por quem implanta o sistema, creio ser fadada ao êxito uma política de estímulo à prática, sem ônus para o erário municipal. Se imposta por lei para certas situações, como contrapartida ambientalmente justificada, rapidamente se encontrará uso para o nada incômodo recurso que cai do céu. Essa retenção evita erosões locais, assoreamento e inundações de curta duração. Além disto economiza energia de adução e produtos de tratamento, dispensáveis para usos compatíveis com a qualidade das águas pluviais.

Pedreiras desativadas, bem posicionadas, podem comportar grandes volumes de águas pluviais, funcionando como piscinões a que só falta acabamento apropriado.

Botafora e entulho, adequadamente dispostos, podem ser usados na reabilitação de áreas erodidas, transformando-as em parques e campos de várzea, áreas verdes em geral (soluções compartilhadas). Absorverão um décimo de seu volume em águas pluviais, que deixarão de correr. A cada ano, se 1 milhão de metros cúbicos de entulho e botafora forem dispostos desta forma, são 100.000 metros cúbicos anuais de espaço poroso criado em lugar de terras soltas que engrossam os caudais, ajudando a reduzir as cheias. Dezenas de quilômetros de taludes urbanos aguardam uma simples mureta para conter materiais erodidos. Dezenas de vales encaixados, fáceis de fechar por obras simples, estão nas vertentes da serra, como no Taquaril e nas partes altas de Venda Nova. Instalar neles diques retentores de baixo custo dará a melhor proteção para as galerias pluviais e avenidas situadas nos baixos vales.

Esses recursos, combinados com a reimplantação de vegetação arbórea em áreas de risco desocupadas, além de reduzir muito o escoamento superficial, reduzirá também a erosão, o transporte de materiais sólidos e o assoreamento, que tanto comprometem o desempenho das galerias pluviais.

Danos das cheias recentes estarão sendo corrigidos ao longo do ano inteiro, enquanto atividades econômicas estão paralisadas ou sensivelmente prejudicadas. Muitos prejuízos não são computados e se os relacionados a obras que terão de ser refeitas importam em 350 milhões de reais, provavelmente as perdas totais ultrapassam a casa do bilhão, isto sem falar das perdas humanas, que não têm preço, mas que eram indenizadas à razão de 360.000 dólares por pessoa na Califórnia em 1980. Os danos crescem exponencialmente com a altura das águas, e muitos teriam sido evitados se a terra não estivesse tão expoliada. Para exemplificar, se o leito do Velhas estivesse menos assoreado, parte em decorrência da sujeira levada pelo Arrudas, é provável que a ponte do trecho Lagoa Santa - Baldim não tivesse interditada.

No campus da UFMG um dique retentor de baixo custo operou um pequeno milagre ambiental e quem for vistoriar o talude da Santa Casa de Ouro Preto com uma foto de 1979 poderá ver muito bem que os milagres se repetem.

BELO HORIZONTE, JANEIRO DE 1997

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

6 JORNAL HOJE EM DIA - OPINIÃO - 25/02/1997

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CIDADES E ESTRELAS7

GEOCENTELHA 026

As cidades costumam ser comparadas a estrelas. No conjunto, vistas de cima à noite, são constelações. Aviadores pioneiros, como Saint-Exupéry, em voos noturnos com mau tempo, sem bons instrumentos, buscavam-nas com ansiedade entre as nuvens, para confirmação de suas posições. Despiam-nas assim da relevância populacional, econômica e cultural: um retalho urbanizado de 200 fogos, onde nunca tinham descido, de onde jamais veriam um rosto sequer, era saudado por eles como a própria Nova Iorque, estivesse na orla africana ou na imensidão dos Pampas.

De outro ponto de vista, podemos comparar a grande cidade a uma estrela. Sorvedouro de populações rurais, e dos recursos do campo, verdadeiro vórtice gravítico, assumem dinâmica que desafia os governos. Depois de um século de crescimento acelerado, algumas cidades tornam-se "gigantes vermelhas", e começam a encolher sob a esmagadora pressão de seu próprio tamanho. Para elas não se conhece a fase terminal de "anãs brancas", porque energias externas são injetadas para afastar o destino inglório, entretanto transferindo mais sustentabilidade do campo ou de estados e países periféricos.

O Brasil tem duas gigantes vermelhas e mais oito ou dez candidatas. Há dados indicando que já crescem mais lentamente que no passado: São Paulo 0,3% ao ano a partir de 1991, Rio de Janeiro 0,2% e Belo Horizonte 0,8%, sem que iniciativa maior de cunho estrutural tenha sido tomada pelo Planejador, sinal claro de deterioração de qualidades que o homem às vezes procura instintivamente e não mais encontra. Não constitui, pois, o fato motivo para muitas comemorações, mesmo porque ao lado de São Paulo ainda cresce à razão de 4,3% a cidade de Guarulhos; à volta de Belo Horizonte cidades crescem acima de 5% e, o que mais importa, a mancha conurbada em verdade vai tendo seus "buracos" preenchidos.

Essas cidades não deveriam bater-se avidamente por grandes empreendimentos, quando é objetivo combater o desemprego, pois, dada a divulgação nos meios de imprensa, eles só fazem acentuá-lo pela atração de mão de obra do interior e os quadros futuros da nova empresa poderão contar mais gente de fora do que pessoal incorporado por absorção de desempregados locais.

O Governo Estadual parece disposto a consolidar sua Universidade à feição da UNESP (Universidade Estadual Paulista), com vários "campi" dispersos pelo interior do Estado. Esta é medida que contribuirá muito para a interiorização do desenvolvimento. Não obstante a RMBH continuará crescendo em ritmo intenso e precisa de intervenção bem articulada entre os governos Federal, Estadual e municipais, principalmente Belo Horizonte, que pára de crescer sozinha, mas continua vendo o anel de ferro fechar-se à sua volta. Considero ponto essencial dessa intervenção a construção do Hiperanel viário de Belo Horizonte, que significa dar atrituições metropolitanas a pólos como Conselheiro Lafaiete, Divinópolis, Itabira e outros. O Hiperanel, com extensão da ordem de 700 km, e da categoria das vias federais que passam pela Capital, proporcionaria economia e maior eficiência ao transporte de cargas que não envolvam a RMBH (interesse federal), criação de bases para o desenvolvimento geo-suportado em área não menor que o Uruguai (interesse estadual) e desativação do cerco ameaçador que se fecha sobre a Capital.

Com o Hiperanel em implantação (em alguns segmentos pouco mais que retificar e alargar trechos existentes), cria-se cenário para investimentos privados, que dispensaria renúncias fiscais dispendiosas, adotadas para a sua atração. É este insubstituível papel de Estado, que não pode ser tão pequeno, como muitos querem.

BELO HORIZONTE, NOVEMBRO DE 19988

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

7 Estado de Minas – OPINIÃO, 28/12/98

8 Escrito originalmente em março de 1997

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VIVIANE ENFURECIDA9

GEOCENTELHA 033

Já escrevi sobre o grande débito do século XX: ficará imortalizado como aquele em que, até o presente, maior é o fosso entre os meios disponíveis de promover o bem estar e sua efetiva aplicação. Leio interessante matéria no Hoje em Dia sobre escritora francesa (Cultura, 13/04/97). Para mim não constitui novidade o que Viviane Forrester escreve aos 71 anos. Novidade é que na sociedade narcotizada pela subversão de valores naturais, ainda haja quem tenha lucidez (ou insanidade) desse porte, e coragem para desová-la impetuosamente.

De minha óptica, e deixando de lado a vertente geológica (2.000 anos depois de o Sábio ter pedido um ponto de apoio para mover o mundo, e que tem por corolário ser também necessário esse apoio para mantê-lo, a humanidade insiste em desconsiderá-lo), são claras as origens da fúria transformada em sucesso editorial.

Não pode ser indefinidamente contrariada a natureza, agora humana, sem que o desastre sobrevenha. E é isto o que está sendo feito. A tecnologia veio para aliviar o corpo, e hoje devora empregos. Persistindo no erro, até sindicatos progressistas lutam por conquistas justas, mas isoladas (redução de horas semanais) que, realizadas, nada farão senão aprofundar o êxito do modelo, e o tamanho do colapso anunciado. Países europeus chegam a ter 30% de desemprego na base etária da força de trabalho. Assim não há "wellfare state" que resista! Enquanto isto outros são postos a trabalhar até a ante-sala da morte. Mais cinco anos e são compulsoriamente afastados de seus postos (quer dizer, o homem não quer trabalhar e obrigam-no a fazê-lo; o homem quer trabalhar e proíbem-no de fazê-lo!). É desrespeito demais ao diverso da natureza humana. Qual a justificação? As chamadas bases atuariais de financiamento do sistema previdenciário. Assim triunfa a tese da aposentadoria por idade, sem margem a opções criativas, e implanta-se o mais abrangente sistema de escravidão da história - o trabalho forçado sem razão de ser.

Apague-se tudo e reflitamos sobre a diversidade dos homens. Implantemos o sistema de aposentadoria por idade mínima, sem compulsória, senão baseada em avaliação médica e psicológica, e integral no sentido de ser calculada com base na média ponderada dos salários de contribuição. Deixe-se ao trabalhador, não importa que nível tenha, a opção de aposentar-se por tempo mínimo de serviço, mediante contrapartida ao direito de optar (por exemplo, em lugar de deixar de recolher, recolher a mais até alcançar a idade mínima). Nem todos optarão, mas todos serão livres para agir de um ou de outro modo. Optarão os que tenham projeto de vida para depois dos 50, mais criativo e estimulante que o proporcionado em seus empregos originais. Sem reflexão mais profunda alguns dizem que esses trabalhadores "livres" disputarão os empregos com os que estão entrando no mercado. Bobagem de cartesianismo incorrigível porque experiências e aspirações desses grupos são tão díspares que isto só ocorrerá como exceção e nunca como regra. Esses "alforriados" estarão iniciando negócios próprios e criativos, escorados na segurança mínima proporcionada pela aposentadoria conquistada, e estarão ampliando a base de financiamento do sistema. Como será bonito o mundo com um cientista de 80 anos trabalhando, criando e ensinando, porque não lhe tenham tirado o sagrado direito de fazê-lo, e com trabalhadores aposentados vendendo o produto de seu trabalho livre. O mundo voltará a ser mais diverso e alegre como é a natureza respeitada. Muito obrigado, Viviane.

Belo Horizonte, 14/04/97

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (Ministério da Ciência e Tecnologia)

9 HOJE em Dia - Opinião (15/04/97)

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ÁGUAS DA PROSPERIDADE10

GEOCENTELHA 034

As águas da chuva não são recursos naturais, enquanto não pensemos que podem ser. Enquanto isto, provocam catástrofes anunciadas, colhendo de surpresa a humanidade. Há muitas maneiras de aproveitar águas de chuva, obtendo quem o faz economia para si, de 1 real por metro cúbico (1.000 litros). Importante é notar que esta é economia de acesso democrático porque o cidadão que tem um teto já fez o investimento principal, que é o telhado, seu perfeito coletor. O complemento do investimento consiste em colocar calhas e recolher a água numa caixa, de 2.000 litros por cem metros quadrados de telhado, tampada como qualquer outra. Essa água é quase potável, e melhor que a de muitas cidades. Pode ser usada em sanitários, jardins, hortas, lavagem de roupas, carros, calçadas, para dar exemplos comuns.

Galpões, garagens, postos de gasolina, serralherias, escolas, universidades, com telhados de grande área, têm muitos usos possíveis para as águas de chuva, alcançando expressivas economias (um galpão de 10.000 metros quadrados, de siderúrgica ou supermercado, coletando dois terços da chuva de outubro a março, economiza 1.500 reais por mês).

De outro ângulo, quem usa água de chuva ajuda a controlar enchentes, erosão, assoreamento; a evitar a morte gradual dos rios; a diminuir o consumo de produtos de tratamento e de energia de adução; a reduzir o número de desabrigados; a reduzir outros estragos (os últimos levarão tempo para serem corrigidos e pararem de dar prejuízos). Já escrevi que se forem implantados coletores em telhados, que representem 1% da área de Belo Horizonte, a economia anual alcançada será da ordem de 3,35 milhões de reais. A indireta, podem crer, é muito maior, porque, além do benefício ambiental e econômico, a efetiva educação daí resultante vai fazer o povo abrir os olhos para outros grandes desperdícios que estão por aí, condenando o país a não alcançar prosperidade alguma. Isto justifica que governos pratiquem a renúncia fiscal em instrumentos de gestão que estimulem a coleta de águas pluviais, sem desembolso direto, contrariamente ao caso dos piscinões de São Paulo, que tipificam solução onerosa, irreprodutível, deseducativa e com objetivo limitado ao combate às enchentes. Águas de chuva aproveitadas são as águas da prosperidade; em caso contrário são as do luto e da pobreza.

O manejo das águas de chuva compreende outras vias de grande repercussão ambiental e econômica, mas não as querem e ficam nesse nhenhenhém que não vai resultar, porque segue a linha de sempre, que produziu os resultados conhecidos. Dir-se-á que a proposta não elimina enchentes, e é verdade, mas contribui e é fato evidente que retirar meio metro no nível do rio que transborda faz a diferença entre perturbação tolerável e catástrofe.

Para terminar: entidade internacional concede certificado de qualidade a empresas que zelam pelo meio ambiente. Entre contempladas com o diploma estão muitas que, com imensos telhados não aproveitados, contribuem para o maior dano ambiental imposto às áreas urbanizadas (por aí se vendo que não temos muitos de quem copiar).

BELO HORIZONTE, 18/04/97

EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHO

10 Estado de Minas - Opinião , 22/04/97

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RECEITA DE DESASTRE11

GEOCENTELHA 035

Siga a receita, que o êxito é certo. Proteja o território como sempre fez, mantendo fronteiras. Persista por 300 anos, em fogo alto, passando a brando. Não ligue para a sua qualidade, que se pode tirar da quantidade. Afinal, você não é a Holanda, que precisa conquistar palmo a palmo o chão que pisa. Você pode destruí-lo pouco a pouco. Você dispõe de mais dois séculos para queimar. Siga em frente e produza o desenvolvimento fazendo seus buracos. Saiba que essa riqueza um dia será chamada a tapá-los, mas isto daqui a sete gerações e seus filhos devem ter prioridade sobre netos de seus trinetos. Para não legitimar acusaçoes de desleixo, monte um monturo de leis proibitivas e fixe que não se parcelará o solo urbano no terreno de declividade maior que 30% (alguns se julgarão seguros abaixo dos 30%, e morrerão, mas não por isto se dirá que a lei é assassina, afinal ela nem sabe que existe). Proíba que nas margens do rio estreito seja arrancada a língua arbórea de 50m de cada lado porque disto depende sua preservação; se ele for mais largo, que tal 200m? Para aumentar na convicção do povo essa sensação de zelo, monitore a baía que morreu, o rio que virou esgoto, e todos os filhos de seu pecado ambiental, porque medir seu tamanho é mais fácil que suprimi-lo. Para isto, compre dos alemães aqueles aparelhinhos danados, capazes de detectar rastros sutis do pecado venial, e de arquivá-los em via digital. Não crie um mercado aqui, bobagem! Lá fora existe um pronto para comprar soja, carne (sem aftosa, então de frango), e o minério. Financie o corredor de exportação, que os juros são baratinhos, como o seu povo. Combata o desemprego urbano atraindo indústrias, que vão fazê-lo crescer, como é óbvio, e quanto ao geral, faça como Europa, boa companhia, e ponha o povo a trabalhar aos setenta, mesmo que fiquem sem trabalho 30% dos menores de 30 (mesmo que Europa erre, plagie-a!). Crie mais três ou quatro gigantes vermelhas, como o Rio e São Paulo, e pague por metro quadrado desapropriado para novas avenidas até cem mil reais, pois o povo está aí para isto mesmo. Expulse pedreiras do meio urbano, que é mais fácil que conter a população que se aproxima delas. O preço a maior pelo frete, paga quem constrói; a estrada sobrecarregada, por ela paga o povo; um pouco de efeito estufa a mais nem será notado. Deixe o povo ocupar buracos, que outros investimentos urge fazer, como limpar a baía, como limpar o rio, como desassorear a represa. Você sabe que a ocupação dos buracos traz efeitos danosos, mas difusos, e para aliviar a consciência, vamos relembrá-los para que veja como são pequenos: contaremos com a pobreza permanente dos que para lá vão, porque perdem geladeira e fogão a cada ano; nas águas, vamos ser pacientes com faltas ao trabalho, afinal descontadas, e à escola; sobrecarregarão postos médicos os resfriados infantis; não teremos como recolher o lixo, nem tão volumoso; a patrulha vai rodar por fora e circunscrever o crime; crianças vão desgarrar-se das famílias, mas são só dezenas; e bem que naquele buraco cabia área verde, mas a cidade tem outros locais para instalá-la. Há secretarias da educação, saúde, segurança, meio ambiente, cultura, esportes, lazer e turismo. Não ficarão desassistidos. Pensando bem, é melhor que Manchester em 1800! Não permita o uso das águas pluviais. Deixe que rolem por aí, pois você tem tecnologia para controlá-las e não é de fazer economia de palitos. Economia mesmo você já fez: economizou em todas as profissões (veja bem!, que se dizem necessárias!), entre elas 50.000 geólogos, que nem chegou a formar, e com aquelas leis imperiais economizou também os que formou. Para os que sobraram sempre resta um terremoto a explicar. (Estranhos seres, não é mesmo?) Daqui a sete gerações, importe holandeses, prontinhos, que agora urge socorrer o banqueiro!

Belo Horizonte, junho de 1997

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (Ministério da Ciência e Tecnologia)

11 Jornal Hoje em dia - Opinião, coluna “Dos Leitores”, em forma compactada (17/06/97)

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REFLEXÃO SOBRE A ÁGUA E SEU GERENCIAMENTO12

GEOCENTELHA 038Dimensões da água. Quem abre a torneira não pensa em coisa tão abstrata, principalmente em Belo Horizonte, que tem serviço bom quanto a este aspecto. É importante considerar que essa água da torneira resulta da solução gerencial da dimensão suprimento. Outras dimensões capazes de exigir o empenho de governo são: a dimensão agente de processos geodinâmicos e geotécnicos e a dimensão veículo de poluentes e contaminantes. A primeira refere-se à água promovendo erosão, assoreamento, inundações, escorregamentos; a segunda ao seu papel no transporte de poluentes e no suporte a formas de vida capazes de veicular doenças, como a famigerada dengue. Águas contaminadas, além de afetarem a saúde de pessoas e animais, podem entrar na circulação subterrânea nas zonas de recarga de aqüíferos, comprometendo a utilização futura. Isto é dissipação da sustentabilidade, comprometendo economia e qualidade de vida de nossos bisnetos, infringindo normas do direito inter-gerações.

As qualidades da água. Água de beber e cozinhar é água potável. Outras qualidades existem: águas minerais, algumas tão carregadas de sais que têm sabor e cheiro desagradáveis, embora recomendadas com fins terapêuticos, ou para banhos de imersão. Águas para elaboração de remédios, cosméticos, bebidas e outros produtos de uso corrente podem exigir especificações outras. Águas de uso em banheiros, de lavar roupas, veículos, calçadas, máquinas, equipamentos; águas de rega; águas de uso industrial, como no resfriamento de peças usinadas, dispensam condições de potabilidade. Menos de 10% da demanda de água exige tais condições. Quais são as conseqüências do que se acaba de expor? Que, generalizando o uso da água potável para fins que não requeiram tal qualidade, estamos dispensando recursos que sustentariam outras formas de suprimento, que não passam por onerosos adução, tratamento, distribuição. Entretanto o maior custo pode ainda estar escondido, objeto de considerações a seguir. Com efeito, não utilizar águas pluviais significa que elas rolarão por aí promovendo erosão e outros distúrbios, exigindo investimentos pesados em canalizações, que, como estruturas-meios, não são geradoras de riqueza, além de transferirem cheias para as áreas situadas rio abaixo (pontes ruíram há um ano por causa das descargas acentuadas pelos sistemas de canalizações urbanos). A sub-utilização dos manaciais subterrâneos, além de ter efeito semelhante ao do caso anterior, deixa meio sem sentido o justo apelo de proteção das áreas de recarga. Como está a gestão das águas (centrada no suprimento), prejuízos econômicos e ambientais serão crescentes.

Gerenciamento sustentável. Deve obedecer a três princípios: Limitar ao mínimo a transferência de água do Campo para a Cidade porque isto diminui a sustentabilidade que pertence ao Campo, até para que ele possa atender adequadamente a outras demandas da cidade cuja satisfação depende de água; ajustar o suprimento à demanda, dos pontos de vista quantitativo e qualitativo, o que significa, p. ex., usar águas de chuva em lavajatos, usar água subterrânea onde condições hidrogeológicas sejam favoráveis (a respeito das águas pluviais, é incompreensível não serem usadas regularmente em instalações que tenham grande demanda por água não potável, tendo tais estabelecimentos grandes telhados arquitetonicamente simples para a coleta); finalmente introduzir o uso sequencial, em que águas efluentes de uso nobre sejam usadas para fins menos nobres.

Riscos de perdas de mananciais: A Pampulha já contribuiu para o abastecimento de Belo Horizonte. Sua substituição, devida à eutrofização, significou transferência da demanda para outros componentes do sistema. Se a Pampulha fosse região industrial, haveria demanda para a sua água, e mesmo assim permaneceriam motivações para a recuperação do importante manancial pelas suas outras funções. Isto é possível e considero estar no propósito da PBH e no acalentado anseio de todos nós. Em situação similar à da Pampulha, com 30 anos de atraso, encontra-se Vargem das Flores. Que não passe pelo “efeito orloff” de seguir a Pampulha, o que seria perda de sustentabilidade, exigindo recursos vultosos para a correção, que, diferentemente da construção de boas moradias e vias públicas, não seria, em si, obra geradora de riqueza, embora inadiável.

Tecnologia. A adoção do gerenciamento baseado em política unificada, envolvendo as três dimensões de gestão e as três fontes de suprimento, com a aplicação dos princípios acima expostos, é exeqüível no contexto tecnológico atual e encerra desafios para os profissionais envolvidos com a gestão de recursos hídricos, entre os quais engenheiros, urbanistas, arquitetos, geólogos, geógrafos e advogados.

Belo Horizonte, 30/04/98

Edézio Teixeira de Carvalho

12 Jornal Estado de Minas; Caderno Opinião, p. 11 (16/05/98)

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Geólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (do Ministério da Ciência e Tecnologia)

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GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS13

GEOCENTELHA 039

A decantada Sustentabilidade tem sido usada em discursos como algo supostamente conhecido de todos. Descontextualizada, é vaga abstração. O concreto é que toda a sustentabilidade fundamental repousa no sistema geológico, cuja abrangência vai do centro da Terra até os limites de seu campo gravitacional. Essa sustentabilidade fundamental organiza-se em pelo menos 4 grupos de fatores geológicos da sustentabilidade: recursos minerais (inclusive o solo que sustenta a cobertura vegetal); recursos hídricos; condições de suporte físico aos assentamentos humanos; condições (limitadas) de absorção de impactos ambientais.

O verdadeiro desenvolvimento requer a mobilização coordenada dos fatores da sustentabilidade. Assentamentos em que isto se faz levando em consideração os aspectos constitutivos e comportamentais do sistema geológico, e que poderiam ser chamados assentamentos geo-suportados, tendem a produzir um desenvolvimento econômico efetivamente sustentável e ambientalmente sadio.

Muitos assentamentos humanos, a Cidade em primeiro lugar, são grandes redutores da sustentabilidade global na medida em que mobilizam discriminadamente alguns desses fatores em detrimento de outros.

O melhor exemplo dá-se com a gestão dos recursos hídricos. Estes comportam três dimensões de gestão: a dimensão suprimento, a dimensão agente geodinâmico e geotécnico e a dimensão veículo de poluentes e contaminantes. Por outro lado, podem ser buscados em pelo menos três fontes distintas: mananciais superficiais, mananciais subterrâneos e águas pluviais.

A via geo-suportada, única capaz de gerar desenvolvimento sustentável dos pontos de vista econômico e ambiental, realiza-se pela adoção da gestão unificada dos recursos hídricos, através da qual se combinam do modo harmônico as dimensões de gestão acima referidas e as fontes de suprimento.

Na perspectiva acima exposta os operadores do sistema nas cidades deixam de ser apenas a Concessionária (dimensão suprimento) e a municipalidade (dimensões relacionadas ao descontrole do regime hidrológico) e passam a incluir cada cidadão e cada empresa.

Não há saída fora disto.

Belo Horizonte, maio de 1998

Edézio Teixeira de Carvalho

Engº Geólogo - Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (Ministério da Ciência e Tecnologia).

13 Jornal Estado de Minas; Caderno Opinião, p. 7 (16/05/98

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E O “CLARO RAIO ORDENADOR”, QUEM O MOVERÁ?14

GEOCENTELHA 041

Pois é: o Poeta, com sensibilidade peculiar, já entristecido com a sua amada Itabira, estende um olhar compassivo, mas não resignado, sobre a serra do Curral, e pede uma intervenção divina, descrente dos humanos. Os escombros da cirurgia mineral são para ele um emblema, uma ilustração circunstancial da colossal tragédia que já então reportava.

Hoje chamam profetas da catástrofe os que de forma poética ou não reclamam a intervenção corretiva. São, tanto quanto Jeremias, repórteres e não profetas, porque apenas viram antes dos demais a borrasca já formada. Mas a capacidade de escamotear seus verdadeiros contornos é ilimitada.

O México entra em bancarrota porque ocupa mal e porcamente seu território, concentrando num gigantesco buraco sem ventilação, sem água, sem ter para onde remover seus resíduos, sobre camadas de argila ultra-sensível, afetado por notória sismicidade, mais de 30% da população (pior só dentro da cratera do Mauna Loa); constrói a custos colossais, e com técnicas indiscutivelmente refinadíssimas, gigantescos espigões, como a Torre Latina, e inúmeras outras estruturas sismo-resistentes, para isto drenando colossais quantidades de fatores de sustentabilidade de todo o território, em detrimento do restante do país. Qual o diagnóstico da bancarrota? Quebrou por problemas cambiais. No Sudeste Asiático, surgem como por encanto os tigres, literalmente de papel. Não há que repetir o que já se conhece, mas o desrespeito à Terra e ao Homem, e não há como desrespeitar um sem fazê-lo ao outro, encontra aí níveis de “qualidade total”. Um aviso para nós (ainda) detentores (formais) da Amazônia: as madeireiras, depois de limparem as penínsulas e o gigantesco arquipélago, já estão chegando. A União Soviética deixou escombros por todo lado, entre os quais o sarcófago de Chernobyl, de onde exala o hálito pestilento da morte nuclear, com a olímpica, britânica, fleugmática indiferença de Europa, a Reluzente. Mas agora a coisa pegou de vez, porque o Japão é o emblema maior do triunfo da objetividade, da praticidade, da eficiência, do primado da livre iniciativa. De fato, apoiado na formidável capacidade do povo japonês, operou-se ali excepcional aproveitamento da sustentabilidade alheia, toda ela de origem geológica (minérios, energia, solo arável e recursos hídricos, estes transferidos indiretamente via madeiras, produtos alimentícios, fibras vegetais e muitos outros), e promoveu-se uma das maiores acumulações de capital da história, que, não sendo comestível ou desfrutável por qualquer outra via direta, fica doido à procura da única função que sabe exercer, que é a de reproduzir-se prolificamente, despertando inveja nas ratasanas. Dizem que emprestaram mal o dinheiro e por isto a recessão teimosa de quase dez anos. É lá que, provavelmente por também terem desaprendido bastante de conhecer (e por conseqüência respeitar) a Terra, fizeram estruturas “sismo-resistentes” em profusão, uma das quais um ridículo elevado com a inércia toda do tabuleiro montada sobre pilares centrais esbeltos como um obelisco, e que ruiu fragorosamente sob as vibrações de um sismo bastante previsível, assim como o pandeiro no dedo do sambista embriagado. É demais dizer que a perda de 27 entre 30 grandes estruturas de atracação do porto de Kobe (equivalente para o Japão ao nosso porto de Santos), afundadas no lodo liquefeito, deva responder por este solavanco momentâneo da economia japonesa.

Não custa recomendar aos que traçam e definem as políticas econômicas mundiais e brasileiras que a Economia verdadeira, não esta coisa que está por aí, cujo vocabulário está, merecidamente, às portas da morte por inanição, pode nutrir-se melhor no conhecimento da Terra e do Homem. Este conhecimento, e respeito conseqüente, terá o efeito do advento do “claro raio ordenador” reclamado pelo Poeta Maior.

Não há muito espaço, todavia, para otimismo a curto prazo porque nenhum dos inúmeros candidatos a Presidente ou Governador revelou até aqui conhecimento, ou pelo menos preocupação, com a constituição, e portanto possibilidades de nossa terra, algo assim como ser-lhes indiferente governar o Brasil, Minas, São Paulo, ou as Ilhas Virgens.

Belo Horizonte, 23/09/98

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (do Ministério da Ciência e Tecnologia)

14 Publicado no Estado de Minas, Opinião Pag. 9 em 28/09/98, com pequenas alterações e sob o título “O claro raio ordenador”

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A TERCEIRA VIA15

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A primeira via é a até aqui triunfante na medida em que tem arrastado adeptos e não adeptos, estes por não terem sido capazes de oferecer alternativas viáveis. É a do Mercado totalmente livre, sem Estado incômodo a por-lhe empecilhos pelo caminho. A segunda é a do Estado forte, executor, nas versões do socialismo autoritário, do Estado democrático do bem-estar e do Estado sobranceiro de perfil salvacionista. Buscam agora a “terceira via”, porque as duas, filhas siamesas do mesmo pai, na medida em que a segunda é em verdade uma resposta à primeira, estão esgotadas. Não há sinal mais claro de que, afinal, se convenceram de que nenhuma das duas presta. Atentemos, portanto: quem carrega a proposta não é excluído, ou não-alinhado, mas os responsáveis pelos dois experimentos igualmente fracassados, e pelo fato de o século XX chegar a seu termo com um contingente de miseráveis, excluídos e indigentes maior que a população total do mundo em qualquer século precedente.

Falharão de novo, porque ambas as vias que se pretende substituir cometeram o erro fundamental de desrespeitar a Terra e o Homem, ao mesmo tempo, porque não é possível desrespeitar um sem fazê-lo ao outro e vice-versa, e porque está muito claro que estão dispostos a continuar nesta linha.

Aos fatos: a tecnologia veio, supostamente, para aliviar o corpo e liberar o espírito. Não fez uma coisa nem outra: O corpo está cansado e o espírito dilacerado.

O Estado democrático do bem-estar social, ponto de partida possivelmente interessante para a meia-sola proposta, cometeu o erro de implantar o mais sutil e abrangente sistema de escravidão que já se abateu sobre as pessoas na história da humanidade (aquela escravidão que, de tão sutil, é desejada, o Emprego nas base em que está posto, e não o Trabalho que realmente dignifica o Homem): Instituiu a aposentadoria por idade, sob a alegação de que é a única compatível com o financiamento da seguridade social em bases atuariais. Na outra ponta veio o desemprego, note-se, muito maior na base da PEA (População Economicamente Ativa), desta forma pagando sob outras rubricas o rombo que alega evitar. Seu contingente de aposentados é velho, incapaz de lançar-se a empreendimentos criativos, quando deveria ser novo, com condições de trabalho livre (pela primeira vez na vida), e capaz de ampliar a base de financiamento do sistema, gerando opções para quem chega à idade de trabalhar. (Essa aposentadoria, espécie de carta de alforria, não pode ser mais tardia que aos 55 anos). Mas o desrespeito ao Homem vai além, e nos casos em que está “de bem” com o trabalho que faz, aos 70 anos o cidadão é mandado para casa quer queira, quer não queira. Esse modelo de Estado errou não menos tragicamente ao desrespeitar a Terra, sob seu próprio céu, mas principalmente alhures. Recebe o reflexo do fato de que bem se esqueceu: de que o planeta é pequenino e o ponto mais remoto está à porta da cozinha.

País como o Brasil não pode alegar que a globalização é fato inelutável, porque é dos poucos que dispõem de base tecnológica e territorial capaz de habilitá-lo a desenvolver a terceira via, autônoma, e não a ficar aguardando a meia-sola (aliás engendrada por quem?), que acabará por aceitar, enquanto “torce” para que os EUA baixem a taxa de juros, como se eles estivessem aí para ouvir nossos anseios.

Para habilitar-se ao desenvolvimento de sua própria terceira via, única saída que nos resta, tem de começar por conhecer a Terra. Isto o ajudará a conhecer melhor o Homem. Passar a respeitar um e outro virá por conseqüência.

Belo Horizonte, 20 de setembro de 1998

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM-MCT

15 Estado de Minas – OPINIÃO, 21/10/98

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A FALTA QUE FAZ A GEOLOGIA16 GEOCENTELHA 044

Pensam que natureza é flora e fauna (pensam e agem). A quem, sem muitos companheiros, pensa diverso, resta pensar (e reagir). Bernard de Palissy dizia que o mais importante dos livros é a Natureza. Não é preciso ir longe para comprovar que a leitura geológica, quanto a sua difusão na sociedade, ficou defasada das outras leituras, necessariamente fragmentárias, sem suporte geológico. Isto é característica da visão cartesiana, analítica, potencializada pela mecânica newtoniana, que, se nos levou à Lua, gerou esta pérola de dito popular “cada macaco no seu galho”, que infelicita a humanidade desde antes que um anônimo a cunhou. Da geologia só quiseram o “caminho das pedras”, onde estão os minerais úteis, não importando o sutilíssimo metabolismo planetário, senão para explicar um terremoto. Hoje todos são especialistas e o próximo passo é começarmos a ver nações especialistas.

Não é fácil sair da crise. Será impossível, sem a geologia explorada em seu inteiro potencial. A própria lógica cartesiana permite comprová-lo. Relembro fatores geológicos da sustentabilidade fundamental: Recursos minerais (inclusive solo que suporta flora, fauna e atividade rural); água; condições de suporte aos assentamentos humanos; condições (limitadas e geodeterminadas) de absorção de impactos ambientais. Essa lógica ajuda a ler a equação seguinte: Sistema Geológico + Ação Humana Sistema Tecnogênico. Este, gerado pela tecnologia humana, depende não só da vontade, mas também das características constitutivas e comportamentais do sistema geológico, como o resultado da cirurgia depende da anatomia e fisiologia do paciente. Se o sistema geológico é relegado como um “detalhe”, o tecnogênico escapa ao controle, como na reação em cadeia da bomba atômica. Este é o resultado lógico da manipulação empírica dos fatores da sustentabilidade, como se pudéssemos todos ficar por aí a operar fígados e corações (que diriam os médicos?). O único setor em que a geologia atua sistematicamente é a pesquisa mineral, e revelou recursos como o petróleo, que seriam desconhecidos sem seus métodos. Ainda nessa lógica, até Bacon, ferrenho utilitarista, dizia que a natureza só será comandada se lhe prestarmos obediência. Concluo: não é possível obedecer, senão por ato de fé, a algo que se desconhece. Vou além: precisamos de criatividade, mas não é possível ser criativo operando sobre sistema ignorado!

Nada a estranhar sobre o uso do conhecimento geológico centrado nos recursos minerais metálicos e energéticos. Com efeito é o único fator da sustentabilidade fundamental que faz brilharem os olhos dos planejadores de governo e das corporações.

Extinta a licenciatura da história natural, acabou a educação geológica como pilar da formação geral, tão importante quanto o ensino da língua para a construção de uma nação. Criados bacharelados de geologia em 1956, formatados para alavancar a indústria mineral, e não para promover ampla e fenomenológica leitura do território brasileiro, são 18 no país, formando menos geólogos que a UFMG forma de médicos. Temos 1 geólogo (nominal) por município brasileiro. A pensar naquele dito popular, não há geólogos para os “galhos” que deveriam ocupar. A ausência da geologia prejudica toda a pedagogia do restante, a filosofia, a compreensão da inteireza do Homem, toda a ordenação jurídica, toda a economia e toda a engenharia, porque lhes esconde o desafio de operar a equação acima no desenvolvimento de filosofias, critérios e tecnologias operativas para cada contexto geológico.

Não é fácil sair da crise, repito, mas há fato positivo nela, que é o de serem bem conhecidas causas remotas. Em Contagem e Betim pequenos experimentos em curso sob orientação geológica, com outros poucos, são como um vírus da prosperidade, que levará 100 anos para contaminar o país. Em contrapartida, imperam e prosperam visões aterrorizantemente reduzidas em torno de questões nacionais como o futuro da Amazônia e a transposição do São Francisco, e locais, como evitar que Vargem das Flores imite a Pampulha. Tal prazo precisa ser encurtado. Presidente, Governadores, Ministro, Secretários da Educação, Reitores, deveriam parar para pensar que podem estar cometendo crime contra a Terra (contra o Homem, contra a Economia, enfim) possivelmente capitulável (por omissão) na Lei de Crimes Ambientais, não cuidando da criação da licenciatura geológica, com orientação pedagógica que vá muito além do “show” geológico de vulcões e terremotos que invadiu a televisão a cabo e que ajuda pouco.

Belo Horizonte, 27 de outubro de 1998

Edézio Teixeira de Carvalho

Geólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (Ministério da Ciência e Tecnologia)

16Estado de Minas – Opinião; Pg. 7 (9/11/98)

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A LUZ NO TÚNEL17

GEOCENTELHA 048Tenho um amigo, o Antônio Cláudio, que acumula habilitações de geólogo, engenheiro e médico, adquiridas nesta ordem. Na geologia especializou-se em geofísica e geologia de engenharia. Em geofísica, depois de especialização feita em Barranquilla nos anos 60, na área de petróleo, notabilizou-se por excepcional criatividade em áreas aplicadas à engenharia e pesquisa de águas subterrâneas. Já engenheiro civil, sem deixar a geofísica, cursou medicina na UFMG, ocasião em que nos contava ter encontrado grandes similaridades entre a medicina e a geologia. Acabou por inspirar-me o modelo antropomórfico do sistema geológico, e tenho dito a amigos médicos que, não obstante ser o Homem sistema infinitamente mais complexo que o geológico, é , se cabe a expressão, infinitamente mais homogêneo que este, nenhum de nós sendo minimamente diferente de Ramsés, como não serão

de nós nossos descendentes nos próximos 1.000 anos.

Em finais da década de 60 do século passado, franceses e italianos empreendiam a primeira travessia, por túnel, dos Alpes. Ia mal a obra, nas duas frentes, com cronograma atrasado em dois anos, em virtude da maravilhosa heterogenenidade do sistema geológico local, que provocava imprevistos freqüentes, acidentes, mortes. Estava difícil segurar os operários. Entra na história Angelo de Sismonda, estudioso da geologia dos Alpes, na Universidade de Bolonha. Contratado, dedicou-se a levantar rigorosamente a geologia ao longo do traçado, com base nos dados colhidos nas duas frentes e em meticuloso trabalho ao longo do perfil do terreno sobre o túnel na porção ainda por escavar. Com base nesses estudos, elaborou uma previsão dos tipos de rochas que seriam escavadas, e seus respectivos problemas, que seguia atualizando à medida que a escavação avançava. A obra retomou seu ritmo sem percalços, com redução drástica de imprevistos, acidentes e tempo de execução. Foi tão excepcional o acerto de suas previsões que sobre ele os operários, agradecidos, cunharam, uma frase célebre: “Para os sábios as montanhas são transparentes”. O que fez Angelo de Sismonda? Foi a luz no túnel. Iluminou o sistema geológico, dando aos engenheiros a oportunidade de exercer sobre o sistema, já agora conhecido, sua criatividade executiva. Nos anais da história das obras figura, não obstante, a introdução de perfuratriz a ar comprimido como elemento decisivo para a redução do tempo de execução! Que podemos concluir, senão que a Tecnologia pensa que venceu sozinha o desafio, e não que, ajudada pelo conhecimento oportuno, pôde realizar proesa de inegável envergadura?

O uso da tecnologia adequada, sobre sistema conhecido, pode operar maravilhas. Todavia muito mais complexo que resolver um problema pontual é articular o uso da tecnologia em busca do desenvolvimento e da prosperidade. Na educação vigente, nas conformações estamentais vigentes, na legislação vigente, na economia e engenharia vigentes, prosperam a excessiva especialização das pessoas e, logo, logo, das nações, onde só se enxerga, qual esfinge, a desafiadora frente do túnel, sem se antever o caminho a percorrer.

Ver a dilapidação dos fatores geológicos da sustentabilidade como condição “sine qua non” para o desenvolvimento é demais para quem, sem pretensão de sábio, (pelo contrário, humildemente ciente da própria impotência em meramente mostrar esse caminho) enxerga através do túnel não escavado, paga impostos e ainda tem de ouvir “pitos de presidente” que se auto-deifica, no horário nobre, e a arrogância vazia de seus mitológicos mirmidões. É demais, convenhamos. Enquanto não retorna a sensatez, aprendamos com humildade do maior legado egípcio: a preservação, ao longo da nada menos que 50 séculos, dos fatores geológicos da estreita sustentabilidade de que dispunham, nós que vamos tenazmente dissipando os nossos em pouco mais de um e meio. Afinal, também eles, de suas tumbas imortais, terão que ouvir o eco do despeito grego (que até considero injustificado) nas salas escolares do século 21 (“O Egito é uma dádiva do Nilo”).

Belo Horizonte, 14 de novembro de 1998. Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do PADCT/GTM (Ministério da Ciência e Tecnologia)

17 Estado de Minas – OPINIÃO, 19/11/98

ANPA

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A REVOLUÇÃO GEOLÓGICA (III)18

GEOCENTELHA 055

O mundo acorda agora para o problema da água? Ao contrário, debate-se com ele há milênios. A Revolução do Regadio, em mais de um foco independente, foi resposta tecnológica e estamental à escassez local, ou à sucessão de excesso e falta, que é o caso atual em muitos países. A água provoca guerras, nas quais eventual motivação religiosa não passa de pretexto. Indianos e paquistaneses (irmãos) brigam entre si pelo controle do castelo de águas da Caxemira; as colinas de Golan são menos um baluarte militar e mais propriamente estratégica caixa d’água; portugueses e espanhóis acertam diferenças antigas sobre o Guadiana, com curso em parte compartilhado, e nas bacias do Tejo e Douro onde espanhóis estão a montante e portugueses a jusante; a Argentina, não sem razão fundamentada, já reclamou na ONU das ações brasileiras em Itaipu e em desvios nas cabeceiras do Paraná, cobrando compensações.

Sem país fronteiriço de quem reclamar, a água prega peças à Inglaterra: de tanto usar as águas subterrâneas da bacia de Londres, viram os ingleses o lençol freático ou a superfície piezométrica localmente baixar até mais de cem metros, em processo começado no século XIX. Construções do metrô e outras construções subterrâneas foram feitas neste século em terreno drenado. Todavia os custos crescentes de extração de águas subterrâneas, devidos a esses rebaixamentos, combinados com custos menores de tratamento de águas superficiais, decorrentes de melhor controle ambiental dos rios, têm provocado o retorno às águas superficiais por grandes consumidores, e obras subterrâneas executadas em terreno drenado enfrentam o fenômeno da sub-inundação, com custos crescentes de drenagem para evitar transtornos previsíveis.

A Rússia usou intensamente as águas do Volga na agricultura, reduzindo a uma fração da original a descarga para o mar Cáspio. Logicamente o nível deste baixou devido à perda de parte da descarga do maior tributário? Surpreendentemente não: o mar Cáspio sobe gerando transtornos em praias e instalações portuárias, sem alterações climáticas e movimentos crustais que possam explicá-lo (contrariamente ao agonizante mar de Aral, que vai secando pelo excesso de consumo na agricultura). Para o Cáspio, simplificando e admitindo que a bacia de contribuição tenha área 10 vezes maior que a do lago, a cada 10 metros de rebaixamento do lençol freático, com porosidade efetiva de 5% (números hipotéticos), teríamos uma lâmina d’água de meio metro retirada do reservatório superficial, que está fluindo para o mar Cáspio, onde formaria lâmina adicional de 5 metros; se descontarmos a perda devida à redução da descarga do Volga e o acréscimo de evaporação direta de um lago com superfície um pouco maior, entramos na ordem de grandeza da subida de nível do mar Cáspio. Se o fenômeno for apenas este, é possível estimar o limite dessa subida de nível. O nível do mar global pode ter subido na ordem de centímetros no último século por este fenômeno, devido a todas as intervenções humanas que tendem a promover o rebaixamento do lençol freático. Não sei se há marcos precisos e estáveis para medir tal ascensão, e se terá sido feita (na falta desta medida direta, o mar Cáspio, que é fechado, seria excelente laboratório para aferição do mecanismo exposto). Importante lembrar que oscilações do nível do mar em áreas tectonicamente instáveis não podem contar, como as evidenciadas nas colunas do templo de Serápis na Itália, que, de acordo com o exame de crustáceos a elas aderentes, subiu e desceu alternadamente desde o período romano.

Se no Brasil, em 4 milhões de quilômetros quadrados, o lençol freático desceu 10 metros em média, com 5% de porosidade efetiva, são 2.000 quilômetros cúbicos de água que perderam sua moradia temporária. Sem “casa”, como os homens, essas águas vadias vão aprontar por aí, como temos visto.

Para controlar águas vadias reflorestemos o país nas áreas improdutivas. Para salvar espécies em extinção, reflorestemos o país (continuamente, colocando túneis e viadutos nas passagens em que a cobertura vegetal não possa ser interrompida, para garantir o trânsito da fauna). Para mitigar a seca, reflorestemos o país. Para reabsorver o CO2 , reflorestemos o país. Para salvar o país, substituamos a lei dos homens pelas leis da natureza. Resolvamos de vez conhecer a nossa “casa”, para que possamos pensar globalmente, não só para cima e para os lados, mas também para baixo, para os porões da casa, para o passado e para o futuro. Só assim saberemos agir localmente, diferentemente do ladrão improvisado em casa desconhecida e escura, que vive atropelando cristaleiras.

Belo Horizonte, 29 de dezembro de 199818Publicado no Estado de Minas, OPINIÂO, p. 9, sob o título “Para controlar águas vadias única solução é reflorestar”.

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_______________________Edézio Teixeira de Carvalho

Engenheiro GeólogoProfessor aposentado do Departamento de Geologia da UFMG

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HORA DE RECONSTRUIR19

GEOCENTELHA060

Na hora de reconstruir devemos ser radicais, mudando tudo o que não deu certo. E não deu mesmo. Nem dará de novo, se insistirmos com os hábitos de avestruz que tanto cultivamos. Contribuo com o seguinte. A mineração é atividade de grande efeito multiplicativo. Quando bem aproveitados os recursos minerais do país, exportando parte e desenvolvendo toda a cadeia industrial apoiada no restante, parte-se de porcentagem de 2 a 4% do PIB, correspondente ao produto mineral entregue pela mina, para porcentagens da ordem de 25% quando se considera a atividade econômica industrial, comercial e de serviços desencadeada. Para que se tenha idéia deste efeito multiplicativo, basta considerarmos o fato de pelo menos metade da população de Belo Horizonte aqui estar por influência direta ou indireta da mineração.

Teve o Estado Brasileiro de intervir na mineração porque não tinha capitais privados internos, ou vocação, e os externos não estavam dispostos a promover a verticalização que enriquece as nações. Assim entrou na área do petróleo e tratou também de cuidar das refinarias e da petroquímica. Entrou na mineração de ferro e tratou de desenvolver a siderurgia. Penso que poderia ter saído gradualmente dessas atividades. Na base do indiscutível êxito dessa política de implantação de respeitável estrutura industrial estava o competente e introspectivo geólogo brasileiro, com estrangeiros contribuindo muito para esse êxito. Na década de 70, o braço internacional da PETROBRÁS, a BRASPETRO, assinou contrato de risco com o Iraque. A conseqüência disto já sabemos: os geólogos brasileiros lograram excepcional façanha técnica, encontrando, em poucos anos, o campo gigante de Mahjnoon naquele país; sabemos também que, por não dispor de poder econômico e militar, teve o Brasil de aceitar a renegociação de seus direitos com o Iraque. O episódio merece ser lembrado por outras razões. Essa façanha foi conseguida em área de onde, desanimadas, tinham-se retirado as maiores empresas petrolíferas do mundo, atestando a descoberta a capacidade técnica dos brasileiros, no caso suplantando americanos e europeus. Outra razão para lembrar o fato é que o monopólio (estatal ou privado) é pernicioso por submeter a possibilidade de êxito a uma única filosofia de pesquisa (o que significa que, se a empresa brasileira teve êxito onde outras fracassaram, é possível que ela tenha fracassado onde outras não puderam fazer a tentativa).

Contudo a razão principal para lembrar ainda o mesmo episódio é que o potencial da geologia não se restringe a revelar para o mundo riquezas minerais, não importa quão sutilmente escondidas. Toda atividade exercida sobre a terra, desde a agricultura até o turismo, desde o suprimento de água até a construção urbana, desde a prevenção dos danos ambientais até a reabilitação do território, desde a prevenção dos desastres naturais até a redução dos seus efeitos, pode ser amplamente beneficiada pelo emprego adequado dos recursos da geologia. A economia verdadeira, sadia, fiel ao conceito etimológico, só produz resultados com o conhecimento de possibilidades. Não conhecidos os recursos minerais da terra, nenhuma economia poderia beneficiar-se deles, nenhum economista teria o que fazer a respeito, nenhum engenheiro, nenhum advogado, nenhum químico, nenhum biólogo, nenhum cabeleireiro, nenhum taxista, nenhum diplomata, nenhum político . Pela milésima vez, repito. Muitíssimo pouco conhecemos das possibilidades geológicas do nosso território, exatamente daquelas que, ainda, não estão postas sob olhos vidrados de economistas internacionais. Se dessem à geologia um milionésimo dos recursos aplicados à pesquisa do petróleo, revelaria ela imensas possibilidades para a reconstrução do país. Portanto peço, eu que, como cidadão comum, tenho o direito sagrado que se confere a quem paga a conta, e o faço em nome de nossa descendência, apenas um pouco de atenção.

É preciso ensinar geologia, verdadeira, aos nossos filhos, porque a terra é o nosso lar, e bem usar o lar, até para não entrar na despensa quando se pretende ir ao sanitário, é fundamental para a vida. Povo que conheça a constituição de sua terra, e como ela funciona, conhece suas possibilidades. Quem conhece possibilidades pode ter aspirações. Quem tem aspirações potencializa a vontade. Quem tem vontade constrói.

É por aí que começa a (re)construção de uma nação, radicalmente, pelo conhecimento de sua infra-estrutura, seu suporte, seu berço, seus pilares. A nação suicida, o Grande Enfermo do Ocidente, tem 500.000 advogados (li nesta página), mas acha que pode ter 5.000 geólogos, infinitamente mal-aproveitados. Os 500.000 advogados vão viver de intermediar desavenças entre 160.000.000 de desiludidos, lançados nessa desilusão pela vampirização de seu país?

Belo Horizonte, 4 de fevereiro de 199819 Estado de Minas, Opinião, 15/02/99

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Edézio Teixeira de Carvalho

Geólogo, Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG, Membro Suplente do COPAM

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FARRA DA TERRA. FOLIA DAS ÁGUAS20

GEOCENTELHA 063Novas enchentes em São Paulo. Exercício simples permite calcular os prejuízos de cada evento destes. Poderia começar com o combustível. Penso que em três horas de engarrafamento não é demais admitir aumento médio de consumo, por veículo, da ordem de R$ 5,00. Com um milhão de veículos envolvidos, são 5 milhões, numa única pancada de chuva. Provavelmente 70% dos municípios mineiros não têm isto de arrecadação anual. Deveremos incluir danos aos veículos. Perdas de horas de operários, servidores públicos, comerciários, ambulantes, profissionais liberais, executivos. Perdas de horas de professores e alunos. Desvios de policiais das atividades regulares. Passada a chuva, vem o tempo da limpeza e do rescaldo, que toma tempo adicional da população, sonegado aos afazeres normais. Não acabou: o rio sujo levou detritos encontrados no caminho e os depositou no leito a jusante, ou na primeira represa, como se rio abaixo morasse inimigo. Quem perdeu barracos vai ficar inadimplente com a conta de 200 reais que pagaria certamente, ainda do natal, com o salário a receber. Nem poderá comprar a fantasia dos garotos, porque terá de recomprar cadernos perdidos na enchente. Incalculável prejuízo, incontabilizável em sua totalidade, e tão previsível a qualquer cidadão, que já deve estar incluído no seu “custo Brasil” particular.

Escrevi artigo com o mesmo tema deste no início de fevereiro. Mantenho resumido seu primeiro parágrafo. Já mais de uma dezena de vezes o quadro se repete com contornos mais sombrios. O que veio desde então e continua é mais grave, como estamos vendo. É a farra da terra que provoca tudo isto. Ainda em março ouviremos dizer que a grande metrópole planeja o racionamento porque a seca estará chegando. Estará também seco o sistema geológico, porque, nas partes altas, a cidade terá impedido sua recarga apesar de tanta chuva, ela que veio como líquido maná, previsível como uma nevasca da Escandinávia. Dir-se-á que veio em excesso, e agora já se culpa “la niña”, que forma com “el niño” o casal 20, inimigo do Brasil, sob o olhar impassível de Deus, o maior dos brasileiros.

A natureza de nossa terra insiste em dar-nos possibilidades ilimitadas. Relegadas, desprezadas, não consultadas estas, ela, seguindo leis naturais, determina desempenhos previsíveis, insurgindo-se contra as leis e as obras dos homens. Falam de novo em aprofundar o leito do Tietê, em construir mais piscinões. Esqueçamos o dinheiro envolvido. Aprofundado o leito do famoso rio, do Pinheiros e demais, restarão controladas as inundações em faixa de largura variável ao longo de seus cursos. Restarão também inundações locais em pontos não atingidos por influência das obras; rebaixar-se-ão os leitos dos tributários até as cabeceiras remotas. Uma geração a mais e retornarão previsivelmente as inundações no baixo curso; aí então o processo recomeça. Enquanto isto, não sobra dinheiro para outras coisas, como o metropolitano e moradia de qualidade, base operacional da cidadania. Quanto aos piscinões, a que se destinam? A retirar de circulação alguns milhares de metros cúbicos de água e soltá-la passada a chuva intensa. Custa cada um milhões de reais. O rebaixamento do leito se faz sem se pensar em quem está a jusante (execrável desvio moral, até porque as inundações provocadas rio abaixo sequer contam com o testemunho das imagens de helicóptero). O desastre não pára aí. O assoreamento toma reservatórios de hidrelétricas a jusante. Só é visto quando bancos de sedimento afloram. Se compararmos a represa assoreada com o veículo de serviço amortizado, veremos que este pode ser reposto com as taxas de amortização descontadas do lucro da empresa, enquanto a represa não. Quanto aos piscinões, teriam na coleta de águas pluviais dos telhados substituto muito mais eficaz, porque auto-financiável pelo uso dessa água. Há mais ainda: parte das águas do planalto paulista são desviadas para acionarem as turbinas da usina Henry Borden em Cubatão. Com a escassez crescente de água no planalto, por conseqüência desta política suicida, a usina, que produz mais energia que Três Marias, dada a queda útil de 700 metros, um dia será desativada. Pagaremos então, os brasileiros todos, os piscinões do senhor Pita, o rebaixamento de calha do governador, e, quem sabe, um aprofundamento futuro do Arrudas, que provavelmente teria saído da calha com chuvas iguais às que ocorrem em São Paulo (já ameaçou sair em janeiro de 1997).

Sou a favor da taxa de permeabilização de 20% do terreno introduzida pela nova Lei de Uso do Solo de Belo Horizonte, mas é preciso dizer que, num local de taxa natural de infiltração de 30%, isto retira apenas 6% das águas pluviais de circulação. Deus deve estar ficando cansado. Sua infinita sabedoria deve estar enfrentando o maior dos desafios, o de salvar o mais pródigo de seus filhos.

Belo Horizonte, 03/03/99

Edézio Teixeira de Carvalho20 Estado de Minas, Opinião, 17/03/99

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Engenheiro Geólogo, Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

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A AURORA DO PÓS-CAPITALISMO21

GEOCENTELHA 064Frugalidade no gasto ou consumo de dinheiro ou materiais; gerenciamento dos recursos de um país visando à sua produtividade; disposição ou regulação das partes ou funções de qualquer todo complexo. São significados para “economia” do dicionário Webster (citação propositada de fonte da pátria do capitalismo moderno). Das raízes gregas, economia é gestão ou gerenciamento do lar. Esses significados são desconsiderados nas decisões econômicas de governos ou empresários, quando inspiradas na extremidade mais perversa da ideologia capitalista ou na ignorância do objeto de decisão.

Não vou discorrer sobre crises do capitalismo, mas sobre condições de contorno, inspirado na matemática (certas funções, muito complexas, podem ter valores conhecidos em situações particulares). A condição de contorno aqui usada é esta: são limitados os recursos da terra e de cada país em particular.

Quando eclodiu a crise de 1930, salvo os visíveis, não eram conhecidos sequer 10% dos recursos naturais posteriormente descobertos e a seguir freneticamente consumidos, embora não esgotados. Portanto nessa crise havia limites relativos. A crise do petróleo nos anos 70, com conotações pejorativas comandadas pelos centros do poder mundial, foi, em parte, inspirada numa visão de economia natural (portanto, em parte, motivada pela tentativa de ser fiel ao segundo conceito acima). Parece que sobra petróleo, tanto assim é que seu preço, descontada a inflação do dólar, não está distante dos vigentes entre os choques de 1973 e 1977. Não sobra petróleo; o carvão enfrenta problemas ambientais maiores que o petróleo e a descontaminação nuclear da Europa, incluindo o legado de Chernobyl e o desmonte futuro de centrais e de submarinos nucleares representam dispêndios previstos em 1 trilhão de dólares. Os centros de poder mundial antecipam em mais de 100 anos suas preocupações de suprimento, enquanto partes periféricas, como o Brasil, mal pensam em 10 anos. Todavia esses centros de poder não pensam economicamente, no bom e global sentido: ET que monitorasse a terra em 1.900, repetindo a vistoria em 2.000, constataria que a distribuição do bem-estar no “país” terra piorou muito entre as duas visitas, caracterizando inegável fracasso da concepção e implementação de políticas econômicas e sociais.

A crise atual bate com limites absolutos e não relativos. Há, portanto, que pensar no segundo significado, “gerenciar os recursos de um país visando à sua produtividade”. Não o temos feito, porque impera o espírito extrativista, que olha para uma floresta como fonte só de madeira, e que se desdobra numa infinidade de atitudes do cotidiano, todas implicando a dissipação de fatores expressivos da sustentabilidade em benefício de explorar um só deles. Toda ação implementada sobre a terra, assim como a do médico sobre o corpo humano, gera o resultado desejado, acompanhado de efeitos colaterais positivos e de efeitos colaterais negativos. O bom médico, quando seu objeto tem capacidade de resposta, consegue o resultado desejado, e o faz limitando efeitos colaterais negativos e ampliando os positivos. Nosso território tem capacidade de responder a intervenções bem pensadas, mas, como o corpo humano, tem de ser bem conhecido para que se levem em conta as reais possibilidades e vulnerabilidades que carrega. Sem tal conhecimento, efeitos colaterais positivos são dispersados e efeitos colaterais negativos, ampliados. Aí caímos no caso do significado “disposição ou regulação das partes ou funções de qualquer todo complexo”. Como o corpo humano, a terra é, constitutiva e comportamentalmente, um todo complexo. Esse todo é extremamente simplificado pelos economistas hiperbóreos. Não podemos acompanhá-los. Precisamos inaugurar o pós-capitalismo, ou estaremos condenados a financiar eternamente a limpeza do passivo ambiental determinado pela transgressão dos princípios econômicos sadios inerentes aos significados acima, e de financiar as guerras punitivas. É bom que estejamos atentos para o fato óbvio de que, se toda a Ásia, toda a África, toda a América Latina e toda a Europa Oriental tivessem alcançado nível de desenvolvimento material equivalente à média européia, muitos dos recursos naturais estariam às portas da extinção, e os danos ambientais seriam tão maiores que a visibilidade desses limites absolutos estaria escancarada à percepção de todos. Por esta razão, “previdentemente”, os hiperbóreos não querem saber de mais convidados para o banquete que montaram com os limitados frutos da terra. Para isto contam com a cooperação disciplinada de alguns leões de chácara e com a passividade ignorante dos demais. Há possibilidades inimagináveis a serem aproveitadas para evitar o colapso final, mas é preciso que governos de todas as esferas comecem a dar espaço de reflexão sobre elas, em lugar de ficarem cuidando acriticamente, e burocraticamente, da administração do miserável quadro pré-falimentar que vivemos.

Belo Horizonte, 25 de março de 1.99921Estado de Minas – Opinião, 01/04/99

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Edézio Teixeira de Carvalho – Geólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

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UMA GUERRA QUE NÃO DÁ MANCHETE22

GEOCENTELHA 065

Lembra-me na insônia o Silêncio cantado por Gardel: “...los hombres se matan cubriendo de sangre los campos de Francia”. Nos Bálcãs, de novo, o aterrorizante espectro da conflagração. Não se luta mais de baioneta. Lançam-se mísseis, economizando o sangue dos agressores. Depois diplomatas reúnem-se em salões de castelos ornados com motivos de guerra. Darão entrevistas em jardins bem aparados. Se forem reunidos bósnios, croatas, sérvios, eslovenos, albaneses, muçulmanos, ortodoxos, católicos, protestantes, incréus, e levados a habitarem país estranho, descobrir-se-ão mais irmãos, e haverá mãe sérvia que perdera o filho amamentando bebê kosovar que perdera a mãe. Este é o homem natural, sem valores menores a defender e com valores maiores a construir. Não sei quanto pagamos pelo show de mísseis cruzando os céus de Belgrado, como não sei se seria moral assistir passivamente à briga fratricida. Os valores que a OTAN defende, defende-os com acerto maior que os das partes? Conforta-nos saber que algo se faz? E se é feito para esvaziar paióis de munição? Na guerra é difícil saber quem tem razão.

Há muitas guerras entre os homens, mas há uma que não aparece nas manchetes como tal. É a do homem contra a terra, que prepara as demais. Há anos em São Paulo o senhor Elair Padim desenvolve luta incansável pelo uso das águas pluviais, como meio de contribuir para a redução das enchentes. Conheci essa luta quando ele compareceu a programa de entrevistas e foi tratado com indisfarçável ironia. Em chuva forte o entrevistador não chega de helicóptero ao estúdio, e não chega de carro porque a enchente não deixa. Portanto não sei a razão do tratamento dado a quem quer ajudar. Mais recentemente, aquele senhor exibiu em feira projetos de reservatórios pluviais. Despertou entusiasmo nos visitantes e na imprensa. Não abalou os burocratas, que não acolhem a idéia, mas também não resolvem o problema, como sobejamente provado. Posteriormente, fiquei sabendo que em São Paulo há (ou havia, porque vereadores tentavam a revogação) lei municipal que proíbe o uso de águas pluviais na lavagem de carros, uso óbvio e adequado da água coletada nos telhados de postos de gasolina. A razão da lei é que, com a poluição, tais águas estão contaminadas com substâncias corrosivas. Esqueceu-se quem a votou de duas coisas: Carros não trafegam de guarda-chuva, de modo que, se não recolhidos, estão expostos às chuvas corrosivas; também se esqueceu de que a lei contribui para a perpetuação da poluição do ar, porque elimina uso que poderia aglutinar razões a mais para acabar com ela. Seria construtiva se exigisse que o uso das águas pluviais fosse informado, sem paternalismo estéril, que, a título de defender o consumidor, poda alternativas que a sociedade pode explorar.

A lei (Código Florestal de 1965), com a definição de faixas de proteção permanente aplicadas ao Brasil inteiro, determina que em regiões montanhosas de Minas, Rio, Espírito Santo, sejam cultivadas faixas intermediárias das vertentes, nesses domínios precisamente as menos indicadas por sua maior vulnerabilidade aos processos erosivos. A mesma lei determina que a área contida num raio de 50 metros em torno de nascente é de preservação permanente. Centenas de milhares de nascentes ocorrem em voçorocas (erosões surgidas com os desmatamentos), expressão acabada do desequilíbrio ambiental iniciado no século 16. Quem as preencha com terras e resíduos inertes não está matando uma nascente. Sua água não irá para o Japão. Irá nascer a jusante, como nascia antigamente, seguindo as leis da hidráulica dos meios porosos conformadas à geologia dos terrenos.

A floresta comercial foi, muito justamente, estigmatizada por dizimar a fauna e ressecar a terra (aqui talvez nem tanto). A prosaica alface faria a mesma coisa, desde que ocupasse milhares de hectares contínuos. Hoje vemos eucaliptais imensos entrecortados por corredores de matas nativas, em solução certamente autorizada. Esses corredores são bons mas não garantem a onça pintada e o lobo guará. Do nordeste ao extremo sul deve ser replantada, com a maior continuidade possível, a mata que aí tivemos. Assim não precisaremos ter um programa de proteção para cada espécie animal. Sobrará espaço para as outras coisas. A Lei, que, supostamente, pretende implantar o ideal, acaba por induzir o indesejável e por anistiar o absurdo. Aí, dilapidados por todas as formas os recursos da terra, os homens põem-se a brigar por valores menores, porque já terão perdido os maiores.

Belo Horizonte, 07 de abril de 1999

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

22 Estado de Minas, OPINIÃO, 14/04/98

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EM DEFESA DA CIÊNCIA NACIONAL23

GEOCENTELHA 067

O PADCT parece agonizar. O que tem a ver com isto o leitor deste prestigioso jornal? É que ele é, como patrão do Governo Federal, o único patrocinador do Programa, e necessariamente seu beneficiário final. O PADCT é o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Ministério da Ciência e Tecnologia. Nasceu na primeira metade da década de 80, apoiando as áreas de Química e Engenharia Química, Biotecnologia, Geociências e Tecnologia Mineral, Ciências do Ambiente, Novos Materiais e Educação para a Ciência, chamados subprogramas verticais, além de outros seis subprogramas ditos horizontais, entre os quais Informação em Ciência e Tecnologia e Tecnologia Industrial Básica. Os fundos de manutenção do Programa vêm de duas parcelas, sendo 50% do Tesouro Nacional (recursos orçamentários) e 50% do Banco Mundial (empréstimo). Os recursos dos subprogramas verticais são distribuídos mediante a realização de concorrência anunciada por Edital, a que podem habilitar-se universidades e órgãos de pesquisa, segundo regras definidas por representantes da Comunidade Científica e Técnica, indicados por seus pares no Brasil inteiro. Para o julgamento das propostas encaminhadas em atendimento a cada Edital, forma-se um Comitê Assessor (CA) de membros dessa comunidade, não comprometidos com qualquer das propostas encaminhadas.

Desde 1984 (fase de teste) até o ano passado, o programa sofreu aperfeiçoamentos significativos em seus procedimentos, ganhando adesão e respeito crescentes dos pesquisadores. Entre alterações recentemente implantadas nota-se a introdução de novas áreas, como Física Aplicada, e a informatização de todos os procedimentos, conferindo-lhes eficiência na tramitação e transparência muito maior que anteriormente quanto ao julgamento, porque os interessados tomam conhecimento dos Editais e enviam propostas via internet, além de, pela mesma via, terem acesso aos critérios adotados no julgamento, às notas que suas propostas receberam, aos pareceres emitidos por consultores especializados e ao Parecer Final do CA. Além de ganhar-se em rapidez e qualidade operacional e credibilidade, economizou-se muito na administração.

Limitando-me à área de Geociências e Tecnologia Mineral, participei do Programa desde as formulações iniciais (na redação de textos básicos) e desde 1990 como Membro do Grupo Técnico (GT), por 2 anos, reconduzido até 1995; atualmente sou Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação (GPA), que na nova estrutura substituiu o GT. Nessas condições coordenei Comitês Assessores em 1991, 1995 e em 1998. Em 1991, cumprindo dever inerente ao de Coordenador do CA, propus revisão do Processo de elaboração e divulgação de Editais e do Processo de julgamento, muito semelhante ao adotado a partir de 1997, que tanto contribuiu para a crescente credibilidade do Programa.

Assim, posso dar testemunho de que o PADCT alçou a área de Geociências e Tecnologia Mineral de um nível mais baixo que sofrível a padrões de qualidade da infra-estrutura material e de pessoal que se igualam e localmente superam os de países desenvolvidos. A produção científica e tecnológica, que é a resposta final, vem-se desenvolvendo francamente, aproximando-se também deles, assim como, pela primeira vez em nossa história, vem engendrando o PADCT uma forte interação universidade-empresa, aumentando em muito as possibilidades de o país gerar as suas próprias soluções.

Tem falhas o Programa, uma delas ter drenado recursos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), em parte compensada por aparelhamento melhor, e desempenho, das FAP’s (Fundações estaduais de amparo à pesquisa). Todavia o direcionamento das pesquisas com visão institucional modificou drasticamente o panorama dessas instituições, com significativa dispersão geográfica dos centros de excelência. Penso que a principal falha é o financiamento compartilhado com órgão internacional. O PADCT demonstrou cabalmente a capacidade de alavancar a geração de ciência e tecnologia genuinamente nacionais. Não pode ficar ao sabor de necessidades prementes de contenção de gastos, no caso inadiáveis, porque destinados a libertar de fato o país.

Espero que o Ministro Bresser Pereira, que se tem notabilizado por deixar um rastro de escombros à sua passagem por outros ministérios, pense mil vezes antes de deitar a perder tão importante programa, porque aqui não estão em causa razões discutíveis, mas a soberania da Pátria.

Belo Horizonte, 09 de abril de 199923 Estado de Minas – Opinião , pg. 07 (01/05/99)

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Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG e Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do Subprograma Geociências e Tecnologia Mineral do PADCT/MCT

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O (VERDADEIRO) TERROR AMBIENTAL24

GEOCENTELHA 068Já ouvi que o eucalipto resseca a terra porque, tendo raiz pivotante, esta rompe uma camada impermeável que sustenta o lençol freático e a água “vaza” para camadas inferiores, ressecando a superfície. Vi livros de Ciências, aprovados pelo ministério, mostrarem, em desenhos, o lençol freático como uma “camada” azul de água, sustentada não sei como. Hoje vi na televisão um desenho mostrando como os metais pesados de pilhas de telefones celulares lançados em lixão, lavados pelas águas das chuvas, alcançam o lençol freático, representado como uma “camada” azul, e fico a pensar que com “amigos” tão zelosos a terra não precisa de inimigos. Faço tudo para ser “construtivo”, mas a paciência esgota-se com tamanhas barbaridades cometidas sobre a terra, com reflexos danosos sobre os homens (sobre todos eles).

Aos médicos: A terra está doente e em terra doente não sobreviverá humanidade sadia, não importa que, protegidos em bolhas ambientais de custo incomportável, alguns passem a viver 130 anos sadios, como prometem os indiscutíveis recursos de suas conquistas mais recentes.

Aos advogados: Leis ambientais ou correlacionadas revogaram a lei da gravidade. Inocentes pagarão por descumpri-las e homens de iniciativa deixarão de empreender pelo receio de serem colhidos em suas malhas aterrorizantes.

Aos engenheiros: O ensino que os deixou sem bom conhecimento geológico básico, retirou-lhes desafios maiores e transformou-os em cirurgiões que não conhecem a anatomia e a fisiologia da terra. Seus êxitos serão limitados, e pontuais, ainda que tão grandes quanto uma magnífica Itaipu.

Aos urbanistas: Suas cidades são aparelhos mais complexos do que pensam. E porque pensam que suas infra-estruturas são vias públicas, serviços de água e similares, não compreendem seu desafiante metabolismo, porque em tudo ele depende do conhecimento da anatomia e fisiologia do sistema geológico, verdadeira infra-estrutura das cidades. Por esta razão não se construiu uma única cidade funcionalmente satisfatória (embora o conceito de satisfatório comporte subjetividades).

Aos biólogos: A vida é o mais importante dos fatos geológicos. Colonizou o sistema geológico, tornando-o apto a dar-lhe suporte e a proporcionar-lhe a diversificação que tanto nos fascina e de que tanto dependemos, mas não vive sem ele, não obstante seja capaz de reconstruí-lo depois que passarmos. Aplaudiremos sempre os que tentam salvar a espécie ameaçada, mas teremos dinheiro para todas as ações individuais? Quantas extinções simplesmente deixarão de ser detectadas? Se reunirmos parte do que se dispende no país para essa proteção, e aplicarmos na reconstrução do ambiente geológico como a “casa” da vida, não será isto mais eficaz para a proteção das espécies ameaçadas e a das que não sabemos ameaçadas?

Aos físicos: a energia fóssil não está em vias de esgotamento, não obstante ouça dizerem, e leia, há mais de 30 anos, que o petróleo é suficiente apenas para 30 anos. Esta previsão está baseada nas reservas comerciais e sabemos que há imensa reserva subcomercial, que se incorporará às comerciais se o preço der um salto firme. Sua queima com a do carvão promete repor o efeito estufa retirado nos albores da história geológica, entre outros, com a formação das camadas de calcário. O reflorestamento mundial, com a reimplantação de maciços vegetais, comerciais e “naturais”, embora imperiosamente necessário, não será suficiente para compensar toda essa queima, de modo que não sei se é melhor que esses combustíveis não estejam esgotando-se, porque fontes praticamente inesgotáveis de energia mais limpa como a geotérmica e a solar, da biomassa ou direta, estão na fila para assumirem papel relevante na matriz energética. A questão geotérmica merece esclarecimento: não me refiro à energia captável nos ambientes explícitos, como a Islândia e outros, mas sempre que um granito jovem, pouco fraturado, se encontra próximo à superfície, ele pode ser alcançado por sondagens, fraturado hidraulicamente e ceder energia pela injeção de água num poço profundo e sua captação, superaquecida, num mais raso. O Brasil não tem granitos jovens, mas estou falando globalmente.

Aos jornalistas: A verdade que divulgam é a da consciência que podem formar dos temas técnico-científicos. Dei exemplo de que nem sempre se lhes oferece o correto substrato geológico da informação.

Aos geólogos: Se não conseguirmos desvendar as entranhas da terra, em sua anatomia e fisiologia, embora sejamos apenas um por município brasileiro, seremos cada vez mais uma espécie de sociedade secreta, colecionadora de possibilidades inexploradas, e de terrores muito bem fundados.

24 Estado de Minas – Opinião ; 05/06/99

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Belo Horizonte, 22 de abril de 1999

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG e Membro do Grupo de Planejamento e Avaliação do Subprograma Geociências e Tecnologia Mineral do PADCT/MCT

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PAÍS PROVISÓRIO25

GEOCENTELHA 070Sob o signo da improvisação nascemos. Sob ele persistimos. Temos marcas de improvisação inerentes ao espírito extrativista. Não as busquemos longe de nós, no pau brasil, ouro e couro do jacaré, porque isto é comum aos demais países, e não ilumina peculiaridades nossas, a explicar não o insucesso definitivo da nação, mas os solavancos de nossa penosa caminhada.

Tiremos o elefante do salão para vermos além da opacidade criada por seu corpanzil. Esse elefante são juros, corrupção, manobras políticas, drogas, criminalidade, até infantil, justiça lenta, obesidade dos ricos, extinção das espécies, carência de água, excesso de água... Tentando resolver cada um por vez, não resolveremos qualquer deles, porque filhos de pecado original não limitado como o bíblico episódio, mas que se reproduz até nas ações inspiradas na necessidade de resolvê-los.

Dos organismos internacionais, nacionais, regionais e locais criados para resolvê-los, alguém que pense pode esperar que o façam? Pode a OTAN resolver problemas de guerra, se guerra é seu negócio? Pode a UNICEF resolver problemas da infância, se são a sua razão de ser? Pode um programa de combate a drogas resolver o problema das drogas? Pode a caridade extinguir a indigência, se indigência é, tantas vezes, sua razão de ser?

Atrás do elefante: Todos esses problemas persistirão porque nenhum dos programas que inspiraram foi concebido para controlar as condições de chegada, quer dizer a sua origem, mas para atender à demanda que exibem. Alguns crescem até ultrapassarem o tamanho do elefante.

Examinemos exemplos do assentamento urbano e do rural, marcados pelo espírito extrativista acima referido. No urbano esse espírito determina que os materiais de que são feitas as cidades venham do campo, embora deles tenham elas mais de 50% de sua massa, e estejam erigidas em parte sobre eles; dispensa águas subterrâneas e pluviais, para buscá-las no campo; desconhecendo características anatômico-fisiológicas de suas plataformas geológicas, as cidades são iguais em soluções, estritamente tecnológicas, sem serem tecnologicamente geo-inspiradas. Recife morre de sede, um pouco porque não providenciou a recarga de formações arenosas com dispositivos de infiltração que encarecem uma casa no valor de uma ceia. Porque deixa escapar nas enchentes, sem infiltrá-los, quilômetros cúbicos de águas pluviais por ano, a Grande São Paulo, para ter o que beber, acabará por impor a desativação da usina Henry Borden em Cubatão (não é nada, pois sua substituição custará uns 800 milhões de dólares, e isto cai como luva num país que detesta pequenas economias, e morre de amores pelos grandes gastos). Búzios, que se esmera em cuidados ambientais, deixa de fazer por casa um reservatório pluvial que custa um baile de carnaval, mas paga sem reclamar R$ 10,00 a 15,00 por metro cúbico de água trazida por caminhões pipas, e leva de quebra o atravancamento das ruas (não satisfeita, coloca redutor eletrônico de velocidade a cada quilômetro para alegria dos fabricantes e irritação dos motoristas, inclusive cuidadosos, fazendo-os até correrem mais depois de ultrapassarem a cancela eletrônica, que lembra a passagem de nível, sempre com trem da Central atravessado, sem horário de chegar). Belo Horizonte só quer saber de drenar e vai estendendo canalizações pelas cabeceiras do Arrudas; esquece-se de que esta forma de prevenir enchentes é um círculo vicioso, que só comporta realimentações positivas (quer dizer, quanto mais se drena, mais águas a rolar, maior necessidade de drenar, mais obras de drenagem, mais águas a rolar). A realimentação positiva vai determinar o transbordamento do Arrudas, espero que não antes do final do século. Com tantos desencontros entre as cidades e suas plataformas geológicas, seria demais querer que o metabolismo urbano fosse minimamente sadio e comportado.

Sobre as voçorocas de Minas, São Paulo, Mato Grosso do Sul, iniciadas há trezentos anos, e que continuam a ser criadas pelas formas expoliativas e anti-científicas de explorar a terra: já passa da hora de compreenderem os que tentam corrigi-las, empiricamente, que a remoção do solo erodido no voçorocamento é a única razão essencial de progresso do fenômeno. Sua imobilização a única forma de contê-lo. A forma de combatê-lo é também a forma de evitá-lo.

Um elefante esconde muitas coisas. Muitas manadas esconderão muito mais. Por estas e outras razões, somos o país do improviso. Ficam-lhe bem Medidas Provisórias, porque, como já foi dito, o brasileiro é baratinho e aceita improvisações.

Belo Horizonte, 02 de maio de 1999

Edézio Teixeira de CarvalhoGeólogo, Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

25 Publicado no Estado de Minas, Caderno Opinião, pg. 09 em 20/05/99, sob o título “ As cidades e as soluções naturais”.

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O GEÓLOGO E A AGENDA DO DESENVOLVIMENTO26

GEOCENTELHA 072Transcorre em 30 de maio o Dia do Geólogo. Ocasião para reflexão sobre a agenda do desenvolvimento. Funda-se ele em dois pilares: A Terra e o Homem. O espírito geológico e social de Euclides da Cunha, engenheiro e jornalista, não poderia deixar de imortalizá-lo em sua obra imperecível. Do Homem há milhões que mais acertadamente podem falar, embora não tenha visto escritos sobre o mais abrangente sistema de escravidão da história da humanidade: a escravidão do emprego até a ante-sala da morte. Sistema tão sutil que é capaz de fazer-se o mais acalentado ideal, de ser desejado como condição de membro de um clube seleto. Esquecemo-nos de que a tecnologia veio para aliviar o corpo e libertar o espírito. Nem uma coisa nem outra resultou desta promessa, repetida desde que ela surgiu. Tão visceralmente estão unidos os destinos da Terra e do Homem que falar da Terra é falar do Homem.

Agenda geológica para o desenvolvimento:

Convencer a sociedade de que é impossível ser criativo sobre o desconhecido e de que desenvolvimento sustentado exige criatividade; convencê-la de que esse conhecimento, com a finalidade de fundar o Homem no corpo da Terra, é idêntico ao do vernáculo, que tem a finalidade de fundar o Homem no corpo social;

convencer a sociedade de que as cidades brasileiras têm mais água de chuva por ano do que podem consumir, e de que a tecnologia para aproveitá-las existe há pelo menos 5.000 anos;

convencer a sociedade de que as enchentes urbanas resultam em parte do desperdício de tão regular suprimento; de que a erosão e o assoreamento, que, por exemplo, assolam a Pampulha, resultam também deste desperdício do maltrapilho que pensa ser rico, mas que não tem dinheiro para fazer metrô como deve ser;

convencer a sociedade de que lavar a pracinha, como vejo agora pela janela, com água tratada trazida de 50 quilômetros de distância, quando um poço tubular no centro da praça poderia fazê-lo a custo muito menor, é jogar fora seu imposto a duras penas recolhido aos cofres da União, Estado e Municípios, irremissível trio de trapalhões a torturar o cidadão com suas piadas sem graça;

convencer a sociedade de que, sendo feitas as cidades, em mais de 50% de suas massas, de pura terra, areia e brita, constitui crime ambiental contra a Terra determinar que sejam buscadas a dezenas de quilômetros de distância sob argumentos de cunho pretensamente ambiental, provocando aumento do efeito estufa pela queima de óleo diesel, excessiva carga sobre rodovias e acidentes desnecessários;

convencer a sociedade de que extinguir áreas de risco geológico removendo populações é a única maneira de resgatar para o desenvolvimento sustentado e sadio as cidades e o país, e de que o planejamento econômico desta providência terá de contabilizar os imensos benefícios que resultarão, como os que incidirão sobre a saúde, a segurança individual e coletiva, o ambiente e a promoção econômica e social das pessoas;

convencer a sociedade de que não precisamos ter envolvidas no processo “produtivo” áreas totais maiores que 25% do território, de que os restantes 75% devem ser destinados ao reflorestamento natural contínuo combinado com o comercial descontínuo, e de que uma tal tarefa, dos três níveis de governo e da sociedade inteira, pode, e precisa, envolver todos os desempregados atuais;

convencer a sociedade de que a condução da questão amazônica não está levando em conta com a necessária seriedade a questão geológica e, a continuar como está, serão perdidas possibilidades dadas pela geologia de um desenvolvimento autônomo e ambientalmente sadio; de que, sobrevindo o desequilíbrio ambiental em tal área, o tão conhecido processo de erosão e assoreamento do Pantanal parecerá diante do amazônico uma mera figuração em modelo reduzido; finalmente de que a conta lhe será fatalmente apresentada;

convencer a sociedade de que o Brasil não chega a ter, na ativa, um geólogo por município; de que as descobertas que fez na mineração convencional e no petróleo geraram um patrimônio e uma produção global sem paralelo em qualquer outro segmento profissional; de que a revelação desse patrimônio gerou milhões de empregos para todas as demais categorias profissionais, do engenheiro ao cabeleireiro; de que a repactuação das cidades com a geologia, a reabilitação do território e a proteção da Amazônia valem muito mais que isto.

Belo Horizonte, 30 de maio de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho

26 JC E-MAIL de 28/05/99

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Geólogo, Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

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MARAVILHAS E PERIGOS27

GEOCENTELHA 073Não importando estar fora do território de Belo Horizonte, a região cárstica integra sua infra-estrutura, sua plataforma geológica. De lá vem grande parte do concreto incorporado à massa antrópica da RMBH; lá estão o endocarste (grutas) e as manifestações de colapsos subterrâneos espetaculares, como paredões, dolinas, “sinkholes” (depressões secas em forma de funil), visíveis do avião que decola ou aterrissa, compondo o exocarste. Poucas paisagens são tão extraordinárias no entorno de uma grande capital estimulando um turismo organizado, não predador, lucrativo para a população. Lá está o aeroporto, contra cuja construção, com boa intenção e justificada preocupação, levantaram-se defensores da natureza. Melhor que não foi uma barragem, aí sim, obra que, além de excepcionais desafios executivos, comprometeria o carste. O aeroporto, por exigências inerentes à necessidade de dar segurança máxima aos passageiros, impôs limitações aos planos de fogo das mineradoras vizinhas e ao uso residencial adensado em suas imediações.

A área é um queijo suíço, se se permite a imagem exagerada, mas adequada para fazer pensarem os que decidam ocupá-la em duas questões fundamentais: por um lado a excepcional vulnerabilidade do delicado geo-sistema à introdução dos poluentes comuns das áreas residenciais e específicos de atividades mínero-industriais e agrícolas; por outro lado a dinâmica peculiar do sistema cárstico, que gerou e continua a gerar vazios no subsolo, pondo em risco as construções.

Deter-me-ei neste tema, embora não o de maior repercussão econômica e ambiental. Abatimentos recentes ocorreram em Vespasiano danificando residências e o piso de uma rua, relacionados ao sistema cárstico. O ocorrido deve ser examinado sob vários ângulos. O mais importante no momento é o das pessoas atingidas, felizmente só em sua economia. Devem ser totalmente indenizadas pelos prejuízos diretos e indiretos, não importando se os responsáveis pela urbanização agiram com prudência e acerto, ou não, no empreendimento, porque esta indenização é devida pelo Estado (União, Estado, Município), na condição essencial de ente criado para promover a solidariedade aos cidadãos atingidos em nome de todos os demais.

O segundo ângulo de abordagem, do qual deve ser absolutamente independente o ressarcimento aos atingidos, deve contemplar interesse de Estado em verificar se seu agente direto ou agente autorizado conduziu estudos apropriados para a implantação do projeto de urbanização. Torno ao exemplo do queijo suíço, e recorro ao leitor para que imagine um deles, sem bolhas distribuídas homogeneamente pela massa, mas com poucas bolhas distribuídas de forma casual, errática, sem regra de distribuição conhecida previamente. Agora introduza o leitor 20 palitos alinhados numa direção qualquer. Corte o queijo (que tem poucas bolhas) na direção dos palitos fincados e conte as bolhas que acertou. Verá que poucas foram atravessadas. Existe norma técnica que determina um mínimo de três sondagens não alinhadas para verificar as condições de fundação para edificação em lote de tamanho comum. A probabilidade de uma das três sondagens encontrar cavidade de pequeno porte é pequena. Embora boa a norma para algumas situações, não o é para outras, em especial para terrenos carstificados.

Todos têm idéia do que seja uma tomografia computadorizada, de uso crescente em medicina. Para o projeto do aeroporto de Confins, sem prejuízo de numerosas sondagens, fez-se previamente a elas, com métodos geofísicos então disponíveis, semelhantes a uma tomografia, uma varredura sistemática do terreno para a detecção de possíveis grutas. As sondagens entraram posteriormente para o fim de obter outros dados e para testarem feições suspeitas resultantes das sondagens geofísicas. Casas por construir no referido conjunto, se não o foram, devem ter seus lotes varridos por este tipo de sondagem, não às expensas do proprietário do lote, porque para lá ele se deslocou sem saber que seu terreno poderia ter um “fundo falso”.

Volvendo ao carste: os valores econômicos e ambientais que encerra são tão extraordinários e multifacetados que sua gestão oscila entre interesses conflitantes, sendo todos procedentes. A grande desgraça que se abateu sobre este país é que raramente uma tão excepcional plataforma geológica foi para a prancheta com os dados e informações disponíveis para sobre ela desenvolver-se a tecnologia da conciliação, abrigando todos os interesses ao mesmo tempo. Digo que isto não só é possível, como também a única via de implantar de fato o desenvolvimento da área nos planos econômico, social e ambiental de modo sustentável.

Belo Horizonte, 24 de maio de 1999

27 Estado de Minas, Opinião, pg.9, 23/06/99

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Edézio Teixeira de Carvalho

Geólogo, Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

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POLÍTICAS ALTERNATIVAS28

GEOCENTELHA 077Chamamos alternativo o que participa de alternação mediante revezamento com certo ritmo ou freqüência. Alternativa será também uma de duas (ou mais) possibilidades de opção mutuamente excludentes. O exercício da opção por uma alternativa, entre duas ou mais, em tese equivalentes, pode ser condicionado por circunstâncias que alteram o valor de oportunidade de cada uma delas, ou, simplesmente, pelo poder maior de quem tenha preferência já formada.

Um significado atualmente muito difundido do termo é diverso do acima exposto. Alternativo tem sido considerado o oposto ao usual, o relegado, a opção perdedora. Para alguns o extravagante. Para outros a utopia.

Considerando o último significado, acho particularmente oportuno o Seminário promovido pela Assembléia Legislativa, pelo qual tomamos contato mais vivo com o pensamento e as propostas de várias pessoas, entre as quais destacaria o ilustre economista Celso Furtado e a geógrafa Maria Adélia, da USP e UNICAMP. A seu modo defenderam a derrubada de paradigmas que vêm presidindo nossas políticas macroeconômicas, e que vem reduzindo as já estreitas margens de nossa soberania há muito tempo. Assim, elas acabam por esgotar-se.

Especialmente a geógrafa, que agregou a seu pronunciamento muita emoção e indignação severa, atacou apropriadamente emblemas característicos dessas macropolíticas e seus designativos, que têm prosperado nos jargões vazios, invasores da comunicação social cotidiana em todas as escalas e esferas da vida nacional.

Contudo, gostaria de fixar o conceito de “alternativo” aplicado ao Seminário. Passou a ser alternativo o que deveria ser regra, o predominante, o ajustado ao nosso contexto físico, social, cultural, econômico e tecnológico. Não poderá haver comprovação mais cabal da subdução de muitos dos nossos valores característicos, inconfundíveis, regionalizados, maravilhosamente heterogêneos, de norte a sul do país. São heterogêneos precisamente para estarem adaptados à diversidade das respectivas plataformas físicas sobre as quais se assentam. Esta adaptação é cultura em seu melhor sentido.

A famigerada globalização, mundialização, ou o que valha, não admite a diversidade, nem na natureza dos recursos tecnológicos de gestão, nem no seu grau de “modernidade”. Já temos visto isto há muito tempo. A locomotiva é bom exemplo, com o imediato sumiço da maria-fumaça à chegada das diesel-elétricas, antes que o jato de fumaça começasse a ser concretamente considerado uma agressão ambiental e a descarga do braseiro fosse responsabilizada por incêndios. Na própria Europa, uma das matrizes do pensar globalizado, a tecnologia mais nova não substitui tão açodadamente a mais antiga, desde que bem adaptada ao meio e aos valores culturais milenares que por lá sobrevivem. Vale dizer, lá a modernização respeita as bases tecnológicas que, por tantos séculos, asseguraram seu triunfo. Quem troca bases tecnológicas como quem troca de roupa não vai longe.

A tecnologia triunfante desaloja seus equivalentes tradicionais e muitas vezes não coloca nada no lugar (o que sobrou da África?). Recentemente a fúria globalizante atacou o pão de queijo. Metafórico, não é? Nunca vi ninguém morrer com pão de queijo, embora concorde com adequado rigor em seu controle sanitário, mas a grande exposição na mídia, a quem de fato defendia? Enquanto isto, na Bélgica, o refrigerante mundial mostra que não é primor de cuidados e na França produtores de queijo artesanal cerram fileiras em defesa das técnicas tradicionais de produção, responsáveis pelo finíssimo sabor, e contra a ruína econômica que, se não tiverem êxito, virá na mundialização do paladar.

Em mais de um lugar escrevi que o uso de tecnologias adaptadas às plataformas geológicas locais promete incomensuráveis ganhos econômicos, ambientais e sociais. Já disse que os prejuízos decorrentes da inadaptação tecnológica às peculiaridades locais alcançam valores colossais em nossas grandes cidades. Recentemente pagamos uma conta de 5,5 bilhões de reais, certamente parte dela consumida nas incontroláveis disfunções de nossa metrópole maior. Nós, que já pagaremos muito pela Pampulha, em futuro não muito remoto poderemos estar pagando por novos transbordamentos do Arrudas. Por ralos como estes escoa muito de nossas riquezas. Salvá-las com a adoção de tecnologias próprias, adaptadas ao nosso contexto, constitui um dos graus de liberdade com que contamos sem o policiamento internacional incômodo a que, livremente, diga-se de passagem, nosso imprevidente governo federal nos submeteu, sem consultar-nos. Afinal ele pensa 28 Publicada no Estado de Minas, Opinião, 21/07/99, pg. 9, sob o título “Cultura e soberania em xeque”

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que não lhe cabe a responsabilidade primordial de dirigir a construção de uma nação, mas só a de recolher tributos de sua distante satrapia.

Belo Horizonte, 8 de julho de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho – Geólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

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ÁGUA! ÁGUA! ÁGUA!29

GEOCENTELHA 079Nas águas: E com a água, o que fazemos? Jogamos fora! Jogamos fora! Na seca, o que pedimos? Queremos água! Queremos água! Querer nem sempre é poder. De onde vem a água doce e onde se hospeda? No sistema geológico, do qual fazem parte calotas polares, icebergs e aqüíferos. A dos rios, lagos e atmosfera está de passagem. Água mesmo está no sistema geológico. Nos aqüíferos profundos existe água que lá estava antes que o Homem começasse a olhar para o alto. Olhou tanto para cima que não sabe olhar para baixo, para a terra de onde retira seu sustento. Aqüíferos mais rasos têm tempos de residência medidos em centenas a milhares de anos. O superficial tem residência de meses. Embora de menor capacidade, é o de maior interação cotidiana com todos os viventes e dele depende a recarga dos profundos.

Uma caixa de vidro, com torneira lateral ao fundo e areia limpa, permite simular o lençol freático para crianças a partir de 5 anos, e isto ajudaria a iniciar seu conhecimento sobre a terra e seus mecanismos. Dois milhões de caixas de vidro com torneiras, a dez reais, seria investimento insignificante. Com a torneira da caixa fechada, a professora deita água sobre a areia para simular a chuva recarregando o aqüífero. Pela parede de vidro, vê-se o nível da água, ou o “lençol freático”, subindo. Abre-se a torneira, deixando a água escoar em quantidade semelhante à de entrada. A superfície de saturação da água vai inclinar-se para o lado da torneira, descendo ou subindo conforme se diminua ou se aumente o suprimento. Aí ela assumirá aspecto próximo do verdadeiro lençol freático, horizontal apenas em terreno horizontal. Nas áreas montanhosas, o lençol freático acompanha a ondulação do terreno. A nascente é, como a torneira, ponto de descarga do aqüífero, o ponto em que a superfície do lençol freático toca a do terreno. Voltando à caixa de vidro com areia, cortado o suprimento, o nível da água vai baixar até o da torneira (a nascente seca). A professora criativa, apoiada no conhecimento da anatomia e fisiologia do sistema geológico, pedirá ao vidreiro a introdução de adaptações na caixa para que possa simular lençóis cativos, lençóis suspensos, poços artesianos jorrantes, enfim os elementos essenciais do ciclo da água no interior da terra.

A Cidade constrói telhados e outras superfícies impermeáveis, canaliza mais do que devia, remove rugosidades e impede que a chuva alcance o aqüífero (como placa de vidro cobrindo a caixa de areia). Tais bloqueios, alguns inevitáveis, pedem medidas compensatórias, como o aproveitamento das águas pluviais e sua infiltração em poços ou cisternas secas (no modelo um furo na tampa de vidro). Assim reduzem-se erosões e inundações, promovem-se economias no consumo de água e utiliza-se a capacidade reguladora do sistema geológico, que transfere para agosto as águas de janeiro. Na gestão rural a Cidade remove matas virgens e secundárias, esgota solos e segue à procura de novas fronteiras agrícolas, deixando para trás terras depauperadas e erodidas, sob o descontrole do ciclo hidrológico. Na mineração o mesmo.

O vale da Ribeira está a um pulo de São Paulo, e tem água e pobreza. O Nordeste quer dessedentar-se no São Francisco. Um não sabe conviver com o excesso e o outro com a carência, ambos relativos. Agora vão criar a ANA (Agência Nacional das Águas), para tratá-la como mercadoria, mas certamente sem respeito, que só poderia vir da contextualização geológica da água. Façam mais barato: introduzam a caixinha de vidro no ensino fundamental, bem escondidinho do FMI; revoguem urgentemente o Código Florestal; não criem a ANA. Se quiserem criar coisa burocrática para tratar de água, criem a ANT, que cuidaria da Terra e de seus componentes, um dos quais a água, e que instruiria a votação de leis minimamente adaptadas ao planeta. Liberdade criativa sobre a terra, ainda que tardia, para que tenhamos água na medida certa.

O ensino do vernáculo funda o Homem no corpo social, habilitando-o a fazer-se cidadão. O da geologia funda o Homem no corpo da Terra, fazendo-o cidadão de planeta especial. Enquanto não vem o ensino da geologia, para ajudar a ensinar o Homem a viver na Terra e não em Marte, usemos a prosaica caixinha de vidro com areia.

Belo Horizonte, 09 de agosto de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho – Geólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

NÚMEROS QUESTIONÁVEIS30

GEOCENTELHA 080Números questionáveis, nunca ou só muito debilmente questionados, presidem todas as nossas decisões governamentais, institucionais e pessoais. O pouco questionamento que há incide apenas nas quantidades e raramente na essência dos seus reais significados.29 Estado de Minas, Opinião, p. 930 Estado de Minas; Opinião, página 7 (13/10/99)

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Embora não tenha dificuldade maior em trabalhar com números, vou propositadamente dispensar a precisão. Circula por aí um número pacificamente aceito de crescimento econômico médio do Brasil no último século, ou no primeiro século de regime republicano: Cerca de 7% ao ano, e dado como o maior do mundo. Penso, comparativamente, em pelo menos dois países: Os Estados Unidos do final do século passado, ainda nação de segunda categoria, e a Coréia (do Sul), na década de 60, citada como exemplo acabado de nação indigente, inviável. Não cresceram mais que nós? Para chegar à tal média, acompanhou-se ano a ano a taxa, acumulando-a, ou tomaram-se os números globais inicial e final, obtendo-se a taxa geométrica que os vincula? Na primeira hipótese, foi descontado ano a ano tudo o que figurou como produto, mas que foi desativado, desmanchado, arruinado etc, nos anos seguintes? Todos os viadutos ferroviários e rodoviários inúteis; todas as canalizações arruinadas ou substituídas por maiores; todas as moradias abandonadas, arruinadas, substituídas; todos os esqueletos de prédios não concluídos; todos os serviços de água desativados; todas as rodas pelton removidas; todos os bens produzidos que duram menos que o previsto terão sido descontados? Como devemos medir o produto comercial, por exemplo, na área farmacêutica? Embora um produto às vezes essencial, contabilizável, quanto mais consumimos, mais ricos ou mais doentes estamos? Como ficam os produtos serviços de segurança pública e privada (institucional e pessoal), quanto mais desses “produtos” geramos e consumimos, por isto mais ricos ficaremos, ou efetivamente mais pobres?

Os econometristas não têm sido muito generosos em elucidar-nos números que considero fundamentais: Qual a taxa da produção gerada este ano estará efetivamente compondo nossa riqueza real no ano próximo? Quando a usina de Cubatão for desativada e parte da potência instalada do São Francisco for dispensada, como é que a anulação desses bens tangíveis, realíssimos, gravará o índice de crescimento? O desassoreamento da Pampulha, obra embora essencial, mas que não gerará riqueza nova, e sim recuperará a riqueza havida e perdida, será um produto a compor o PIB exatamente como 20 quilômetros de metrô?

Tocamos aqui num ponto delicado. Que temos feito de fato, senão leis, em proteção do território, como se leis operassem em substituição ao engenho e esforço humanos? Façamos então uma conta simples e hipotética, mas próxima da real. Se um dia o país voltar a crescer, digamos 5%, e a população 1,5%, teremos ficado mais ou menos 3,5% mais ricos? Vamos subtrair daí 5% do PIB como compensação pela perda de valor intrínseco do território (mais ou menos como é hoje): Teremos ficado 1,5% mais pobres. Subtraindo 2,5% do PIB (país razoavelmente cuidadoso com seu território), teremos ficado 1% mais ricos. Nada subtraindo (cuidamos bem o nosso território, preservamo-lo e ele não perdeu valor intrínseco): Teremos ficado 3,5% mais ricos. Somando 2,5% do PIB (nosso território valorizou-se, porque teremos investido em sua reabilitação; somos um país muito zeloso): Ficamos, em termos líquidos, 6% mais prósperos. Em duas gerações superamos os hiperbóreos todos que hoje andam dando as cartas por aí, e, não sem ponta de razão, chamando-nos de pouco sérios.

Um túnel em via dupla escavado em gnaisse pode custar 4 a 5 milhões de dólares o quilômetro, não mais. O “Estado de Minas” publicou série de reportagens dando conta de que o Metrô de Belo Horizonte já custou 720 milhões de dólares. Somando com trilhos, material rodante, cabos, sistemas de controle, dava para fazer 100 quilômetros de metrô subterrâneo, nas mais favoráveis condições geológicas das grandes capitais do Brasil.

Preços de muitos produtos e serviços, administrados ou não, estão subindo muito mais que a taxa média de inflação, mesmo oficial. Alegações marotas os justificam com base em números. Exemplo? Administração profissional de condomínios, em que os custos largamente predominantes são os de pessoal, cujos salários, se não estão congelados, foram reduzidos ao invés de crescerem.

Quem manipula o significado dos números, mais que quem manipula seus valores, detesta a própria descendência.

Belo Horizonte, 12 de agosto de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho – Geólogo, ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG

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AS ÁGUAS DO GOVERNADOR31

Geocentelha 083Não estão claras questões relacionadas ao desvio para o São Francisco das águas contidas na bacia do rio Grande pelo dique de Capitólio. Algumas conseqüências: a água da represa acima do desvio escoa para o São Francisco no leito do Pium-hi (Pium-hy?), correndo ao contrário em seu baixo curso, como é hoje. O reservatório de Capitólio incorpora-se ao de Furnas. Esta, operada pelo Presidente, se dispuser de descarga de fundo suficiente, ajusta a vazão total para que a represa mantenha nível inferior ao do desvio, de modo que todo o rio Grande continue a correr em seu leito, esgotando o pequeno reservatório e levando o alto Pium-hi, a menos que outro dique seja feito para que ele, de vocação platina, prefira o xaxado ao tango e rume para o nordeste, encorpado por seu maior tributário, o São Francisco. Assim, em termos permanentes, de fato, o desvio terá tirado potência apenas a Furnas e apenas por redução de queda, e não de vazão, e as usinas rio abaixo nada sofrerão senão com a redução do efeito regularizador da represa de Furnas. Se o desvio não for feito com vazão controlada, será um desastre; se for com vazão controlada (por sifonamento?), o rebaixamento pode levar meses, dependendo da altura atual da água na represa.

Penso que o Governador não desferirá o golpe anunciado, dadas as poderosas armas jurídicas e políticas à sua mão, e as conseqüências muito mais negativas que positivas.

Em 1926 parte do Pinheiros em São Paulo foi desviada para a vertente atlântica, para rodar as turbinas da usina Henry Borden em Cubatão. Bela obra da engenharia nacional, com participação de técnicos estrangeiros, aos quais muito devemos. Hoje somos dos melhores do mundo neste ramo, participando inclusive da construção de Three Gorges na China, provavelmente a maior hidrelétrica de sempre. A manipulação da água requer cuidado e respeito aos vizinhos. A China tem acidente geográfico único, um especialíssimo feixe de rios que desce do Tibete, passando a leste o Yangtsé, pelo centro o Mekong, e a oeste o Saluen. O excepcional acidente parece uma ruga no tapete feita por uma pinça colossal. É efeito tardio da formidável colisão continental entre a Índia do tempo dos dinossauros e o restante da Ásia. O primeiro irriga a planície central da China antes de desaguar no Pacífico; o segundo, em baixo curso curioso, corre pelo eixo da península, banhando a Tailândia, Laos e Camboja, e entrega-se ao mar da China Meridional na costa do Vietnã; o terceiro deságua no golfo de Bengala a oeste. Com dois túneis relativamente curtos, em território chinês, jogam-se o Saluen e o Mekong no Iangtsé. Com a previsível escassez de água, por absoluto desrespeito ao sistema geológico mundial (flora e fauna incluídas), tudo é possível.

Pode-se também desviar o mar. Israel, beneficiado pela depressão de 396 metros abaixo do nível do mar, conhecendo as taxas de evaporação locais, pode definir cota de equilíbrio para a vazão escolhida e construir hidrelétrica movida pelas águas do Mediterrâneo, dando margem de 40 ou 50 metros para a subida conseqüente do mar Morto. Controlada a agressividade da água salgada, tal hidrelétrica transformaria Israel em exportador de energia, para o Egito, Jordânia e Líbano, naturalmente, ou para a Europa via Turquia, em qualquer caso a paz com os vizinhos sendo essencial.

Se o desvio do Pinheiros for desativado para atender a demanda da RMSP, e se o Pium-hi voltar a correr para o Prata, estaremos acertando contas com a Argentina, Paraguai e Uruguai. Se, com gestão mais feliz dos recursos hídricos do planalto paulista, tal desativação for evitada, e se o Pium-hi ficar onde está, deve o Brasil, se não o fez, pagar por tais desvios, como determina a nossa legislação, porque tais águas são partes integrantes dos respectivos territórios. Não façamos como os Estados Unidos, que nunca compensarão suficientemente o México por sorverem inteiramente em seu território o rio Colorado, uma espécie de São Francisco deles.

A gestão geo-inspirada das águas pode proporcionar confiança e cooperação entre países. Baseada em posições de força e desvios estratégicos, pode conduzir à guerra. Dentro dos limites de respeito a terceiros, nossos e hispano-americanos, que, tenho certeza, Sua Excelência fixou para a ação em Furnas, merece ele compreensão e apoio.

Belo Horizonte, 23 de agosto de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geo-Ciências da UFMG.

31 Estado de Minas, Opinião, p. 713 de setembro de 1999

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TERRA, ÁGUA, AR ... FOGO32

Geocentelha 084James Lovelock, em “Gaia - um novo olhar sobre a vida na terra”, afirma que provavelmente uma das mais devastadoras formas de poluição seria um aumento da porcentagem de oxigênio na composição da atmosfera, dos redondos 21% para algo como 24 ou 25%. Segundo ele, isto aumentaria dramaticamente as probabilidades de combustão espontânea da cobertura vegetal. Parece que deste tipo de poluição estamos livres. Do ar, pode-se dizer que está sob impacto de uma forma de poluição incircunscritível, que é o efeito estufa. Forma ainda circunscrita de poluição, ameaçando espalhar-se, é o buraco da camada de ozônio. A poluição local do ar não é circunscritível a ponto de justificar procedimentos do tipo dispor os focos de emissão de poluentes em posição favorável em relação às correntes de ar, para dispersá-los e afastá-los, porque a terra está cada vez “menor” em termos relativos e a coalescência dos efeitos da poluição, determinada pela mobilidade do ar e da água, é há muito reconhecida.

Temos concentrado atenção maior à poluição do ar e da água. Quando se fala em poluição do solo, frequentemente a ela se associa a poluição veiculada pela água ou por gases, conduzindo poluentes gerados nas instalações industriais, ou impregnando-se de efluentes difusamente gerados nas áreas urbanas e, principalmente, agrícolas. Uma das formas de poluição de efeitos mais danosos é o rebaixamento do lençol freático, resultante do desmatamento indiscriminado, da urbanização mal conduzida, de práticas agrícolas inadequadas. Tal processo deve ser incluído numa das possíveis causas da maior facilidade de propagação dos incêndios, e também numa das causas da formação das ilhas de calor nas cidades (embora, se predominante, devesse provocar verões mais quentes e invernos mais frios, quando vemos ambos mais quentes, provavelmente devido ao efeito estufa).

O desmatamento desnecessário e não compensado é crime contra a flora, do qual resulta, de imediato, crime contra a fauna, reduzindo-a quantitativamente e qualitativamente (bio-diversidade animal). Sendo tais elementos componentes indestacáveis do sistema geológico, o desmatamento é crime contra a terra, obviamente, mas, para quem não pense assim, ele provoca erosão, assoreamento e descontrole do regime dos rios, que são poderosos agentes de processos geológicos superficiais. Aí inequívocos os danos sobre a terra (que a lei dos crimes ambientais se esqueceu de destacar, limitando o destaque à flora e fauna).

A humanidade, atônita, grita contra o efeito estufa; contra a falta d’água, contra os incêndios, contra a perda da bio-diversidade; contra a erosão; contra o assoreamento; contra as inundações; contra a violência. A cada grito, pede uma ação específica, e não é justo dizer que os governos não respondam. De alguma forma respondem, mas atendendo a cada grito, dependendo da potência de quem o emita. É óbvio que, por aí, não se chegará a lugar algum, até porque, muitas dessas ações específicas colidem frontalmente com o propósito global, e quando não colidem ilustram custos incomportáveis.

Sem prejuízo de pormenores a ajustar, e de ações isoladas de cunho complementar, há uma única e óbvia medida a tomar, e isto não vale só para o Brasil: Reimplantar, nas mais contínuas extensões possíveis, a mata de características naturais, nas extensas áreas imprestáveis para a agricultura (é mais fácil reabilitar porções do Saara do que colonizar Marte, embora eu seja totalmente a favor deste empreendimento).

Vamos imaginar que nossa nação, governo e povo, resolva fazê-lo. Que ganharemos para nós (benefícios locais) e para a humanidade (benefícios mundiais)? O retorno da água, ou, mais corretamente, da regularidade de seu ciclo; a recuperação quantitativa da fauna e atenuação do processo de perda da bio-diversidade; a redução do efeito estufa; a redução da erosão, assoreamento e inundações; milhões de postos de trabalho, com parcela pequena de servidores públicos; a redução da violência; o retorno de nosso orgulho, tão abatido.

Em tal programa, a nação estaria pondo em prática o princípio das soluções compartilhadas, em que custos são diluídos e benefícios distintos agregados uns aos outros. Na gestão territorial e urbana não se deve admitir o dito popularmente conhecido “cada coisa a seu tempo”. Na gestão o êxito só coroa os que se disponham a fazer tudo ao mesmo tempo, com empenho e confiança.

Belo Horizonte, 19 de setembro de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geo-Ciências da UFMG. 32 Estado de Minas, Opinião, página 9 (24/09/1999)

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CONTRA A ANA, SIM SENHOR!33

Geocentelha 085Dia desses saí de reunião pública sobre educação ambiental com nítida impressão de ter chocado muita gente. No momento dessa avaliação, cheguei a fraquejar, pensando que veemência não presta serviço ao propósito de divulgar idéias. Afinal assim pensa a ciência oficial, formatando com rigor textos de congressos, quanto à forma, por exemplo castigando a subjetividade fecunda. Passada a fase de auto-recriminação, retorna-me a convicção com força redobrada, pois penso que é hora de chocar os benvindos leitores deste artigo: Dissera eu na ocasião que, como nação, o Brasil já se tinha suicidado havia tempo, embora o efeito final do extremo gesto não estivesse claro, e que minha esperança residia no fato de que, com tantos fracassos, não custava, aí sim, torcer por um a mais. O corpo cadente passa em frente a janelas e há tempo ainda para que braços providenciais se estendam para aparar a queda.

Sempre fui a favor de certas privatizações, e encontrei argumento poderoso ao visitar um parque em Santa Catarina, onde o proprietário cuida da diversão, seu negócio, enquanto a alimentação, com ampla variedade de ofertas, fica por conta de concessionários, sob o melhor controle, o do consumidor com opções reais. Pensava eu que grande parcela do capital de estatais encontraria multidões de compradores, nos anos 70, quando o Brasil chegou a ser chamado de Brasil SA nos comentários de jornalistas especializados. Também acho que o monopólio do petróleo, que teve sua justa vez, deveria ter dado lugar, no momento certo, a competição de uma Petrobrás poderosa com a concorrência privada nas áreas que ela tivesse dispensado. Esta convicção cresceu com o êxito da própria Petrobrás no Iraque, onde trabalhou em áreas liberadas pelas sete irmãs, encontrando numa o maior campo iraqueano. Raciocínio simples: se passara por lá, sucessivamente, o competente olho de tantas empresas, sem êxito, porque não pensar que o mesmo poderia repetir-se no Brasil com áreas abandonadas pela Petrobrás, que passara sozinha? A quem aproveita deixar sem testar tais áreas, se recursos minerais só existem quando descobertos? O grande risco que corre país com monopólios perenes é que o julgamento decisivo fica concentrado em meia dúzia, literalmente, não mais, de iluminados, que decidem por todos. A propósito, a Petrobrás encontrou diversos sais minerais, hoje aproveitados pela Petromisa (CVRD) em Sergipe. Garanto que em outras áreas encontrou água doce, próximo a sedentas capitais nordestinas, em terra e no mar.

Urge examinar esses dados. Na década de 70, geólogo da Petrobrás, com dados competentes, avisou que havia água doce para suprir Salvador, sob a baía de Todos os Santos (embora pareça absurdo, é ocorrência geológica trivialíssima). Ridicularizado pela ignorância global, laborando a favor de minoria muito bem esclarecida, sua proposta foi pulverizada com pilhérias impiedosas (o soteropolitano beberia doravante água mineral!). Tudo em benefício de barragem e adutora com mais de 100 km de extensão. Também ele propusera usar o gás do Recôncavo-Tucano no Centro Industrial de Aratu, que a Petrobrás queimou por falta de consumidor! Nem uma nem outro. O cavalo passou arriado, mas, bem conduzido, o indefeso povo foi atrás do trio elétrico...

Querem privatizar a água, absolutamente imprivatizável. É isto mesmo, porque criar a Agência Nacional das Águas é nada mais, nada menos, que entregar sua gestão, que deve integrar a de todo o território, a meia dúzia de iluminados, sobre os quais bem sabemos que influências, pressões e determinações incidirão. Por exemplo, ficará fácil aprovar o desvio do São Francisco. Honestamente não tenho absoluta certeza dos fatores envolvidos e de seus respectivos pesos, até pela obscuridade que paira sobre eles, mas tenho certeza de que essa obscuridade é irmã siamesa da que vendeu a idéia da Ferrovia do Aço, cujos viadutos nunca usados deveriam ser transformados em Patrimônio Cultural da Humanidade pelo exato, denso e oportuníssimo significado que têm. Assim, pelo menos, poderíamos inaugurar modalidade nova de turismo, em que seríamos imbatíveis. Nada de novo: Também em Portugal, terra de povo criativo, há tempos, tentou o cidadão usar moinhos de vento desativados para produzir energia elétrica. Logo se verificou a impossibilidade de tamanha pretensão, porque imediatamente um burocrata se lembrou de taxar o vento, pá!

Belo Horizonte, 19 de setembro de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geo-Ciências da UFMG.

33 Estado de Minas, Opinião, p. 9; 27/10/99

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E A ÁGUA NÃO FALTARÁ34

Geocentelha 087Dizem, como se fosse novidade na história da civilização, que a água acabará. Acabou já, mais de uma vez, levando à solução hidráulica, intimamente associada à revolução do regadio, com todos os seus apetrechos estamentais, no Egito, Mesopotâmia, Índia e China, pelo menos. Neste século a água acabou em muitos lugares. O rio Colorado, que nasce nos Estados Unidos e deságua em território mexicano, secou na foz, onde os rios costumam ser mais caudalosos, porque sorvido com sofreguidão no país de origem. O Indo está hoje mais seco do que quando sustentou a antiga civilização a ele vinculada.

A falta de água, onde não determinada pelos fatores geológicos e geográficos, nos núcleos naturais dos desertos atuais, conduz à guerra. Conduzirá de novo, e agora em escala mundial, se se espalhar pelas regiões densamente povoadas e se a solução para estas continuar sendo baseada nas transferências crescentes, nos desvios, ainda que locais, na sua gestão reduzida ao objetivo do suprimento. A civilização atual destruiu a “casa” da água. Não há de querer que ela fique na casa que não a aloja, como se fosse um “penetra” qualquer.

Embora não resumido a isto, o problema está aqui: as águas de chuva, impedidas de infiltrar na terra, passaram a ser o mais volumoso dos efluentes da atividade humana sobre ela. Como efluente da atividade urbana, rural, mineral, industrial, a água da chuva deveria merecer o tratamento modernamente recomendado para todos os efluentes – a mais ampla utilização possível e a mais adequada disposição possível do excesso não utilizado. O mais importante de tudo é que esta recomendação não representa dispêndios adicionais, mas economias de porte colossal. Vejamos de que modos.

A biodiversidade animal depende da biodiversidade vegetal (a recíproca, se os biólogos me permitem a incursão de leigo, é verdadeira em parte). Aqui encontramos um ponto de convergência muito forte entre a proteção da biodiversidade e a restauração da “casa” da água, porque ambos os objetivos requerem o reflorestamento de características naturais contínuo, e não descontínuo, do planeta. Outro ponto de convergência entre esses dois objetivos encontra-se no objetivo não menos importante de paralisar o avanço do efeito estufa, também proporcionado pelo reflorestamento proposto, embora este com a opção de ser alcançado com o reflorestamento homogêneo, de caráter comercial.

Nas cidades, e a Região Metropolitana de Belo Horizonte oferece-nos exemplos excepcionais, o sistema geológico, a “casa” da água, requer grande atenção, pois, se tratarmos o efluente água de chuva como deve ser, teremos muita coisa a salvar e muitas situações aparentemente perdidas a recuperar. Cito três exemplos: O importantíssimo manancial de Vargem das Flores pode ser protegido do destino que até aqui marca a Pampulha; o sistema de escoamento pluvial do Arrudas no centro de Belo Horizonte pode ter reduzida a probabilidade de transbordamento, que se mostrou iminente numa chuva isolada de janeiro de 1997, como documentado por imagens de televisão que devem estar arquivadas; finalmente a Pampulha pode ser reabilitada, não só quanto aos aspectos ambientais naturalmente mais focalizados, mas também quanto ao aspecto econômico importantíssimo de reintroduzi-la na matriz suprimento da RMBH. Neste último caso essa reintrodução poderia ser feita com tratamento menos dispendioso do que o exigido pelas condições atuais, devido ao desvio do esgoto e ao tratamento geral da bacia, ou pelo uso da água compatível com a sua qualidade (afinal, não precisamos de potabilidade para mais que 10 ou 20% dos usos cotidianos).

A reabilitação de duas grandes áreas degradadas no município de Contagem, uma em fase final e outra em adiantada fase de execução, são suficientes para comprovar claramente o excepcional benefício econômico e ambiental de tais intervenções. Com elas, a água não faltará. Belo Horizonte, 16 de novembro de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geo-Ciências da UFMG. EDÉZIO TEIXEIRA DE CARVALHOMSC Engenheiro Geólogo - CREA 8.157/D

A TERRA ESQUARTEJADA35

34 Estado de Minas, Opinião; pg. 7; 22/11/99

35 Estado de Minas, 10/12/99; Opinião, p. 7

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Geocentelha 088É de países como o Brasil, e não da Europa ou dos Estados Unidos, que poderá vir a solução para a humanidade. Não destes, porque não precisam tanto. Não somos melhores que eles, quer pelas habilidades, quer por qualidades do espírito, mas temos sobre eles a imensa vantagem de precisarmos muito mais. Não temos força e engenho menores, nem aspirações mais modestas. (Quem tem aspirações modestíssimas para nosso povo são muitos de nossos governantes). Um de nossos grandes males é querermos imitar esses países em tudo, esquecendo de exercitar nosso próprio engenho e poderosa força.

Pelo menos em alguns pontos, paremos de imitá-los. Paremos, por exemplo, de imitá-los na decisiva questão ambiental, campo em que o fracasso deles foi estrondoso, em casa e no mundo inteiro, onde ostensiva ou veladamente mandam. Em casa porque não sabem como controlar uma enchente, nem europeus, com exceções, nem estadunidenses; ou não precisam disto, porque quem paga a conta somos nós; não sabem, ou não querem, evitar que um grande rio seque na foz; não dão conta sequer de cuidar com mais amor e carinho dos inocentes de Chernobyl, vitimados pelo hálito pestilento da morte nuclear; quando muito farão chegar aos lapões a compensação financeira por suas renas sacrificadas. Seu estilo de vida será mudado, mas isto é só um detalhe. Se achamos que jardins bem aparados são a quintessência do zelo ambiental, estamos mal-avisados, e quem viver verá, lamentavelmente.

Fora de casa é o que se vê: o UNICEF tem nas mãos um problema que nem sabe descrever e nem se abala com isto. Refiro-me à exposição de milhões de bengaleses ao câncer geológico, trazido por águas naturalmente contaminadas por arsênico. Percebem, e dizem, que o problema de Chernobyl, comparado ao de Bangladesh, chega a ser insignificante. Se estivesse por lá um Oswaldo Cruz há muito teria infiltrado geólogos entre seus colegas médicos para cuidarem obviamente dos sadios, buscando água sã onde estiver, e isolando a contaminada. Ao cabo de um estudo cuja complexidade é muito inferior ao da pesquisa do petróleo, esses geólogos poderiam reduzir drasticamente a exposição do povo aos fatores ambientais da doença geodeterminada, não pelo método da tentativa e erro, excepcionalmente dispendioso, mas pela aplicação da ciência, que está aí para ser usada em benefício da humanidade.

Agora, como esquecendo o óbvio, que a água é como o sangue da terra, resolvemos criar a ANA (Agência Nacional das Águas). Mas há também a ANP, a ANEEL, e virão muitas outras (algumas, como a Agência Nacional do Petróleo, isoladamente, não representam todos os riscos que muitos vêm justificadamente na ANA). O mal maior está no fato de que o governo parece ter encontrado nessas agências a forma ideal de desvencilhar-se da complexa e desafiante gestão global do país, fragmentando-a de forma temática, atomizando a gestão. Dentro em pouco ministros, governadores, prefeitos e chefes de serviços de gestão não mais terão o que fazer, porque cada probleminha terá seu endereço certo, em Brasília, para onde correrão os peregrinos. Esses titulares serão despachantes de luxo. Governadores e prefeitos, eleitos pelo povo, terão de submeter o peso de seus votos à vontade imperial de um titular respaldado num conselho escolhido a dedo para impor a vontade do rei. Nada mais justo que um aumentozinho de tarifas para fazer face ao pagamento da outorga, a cargo do Concessionário. Mas não diz o próprio governo que haverá um salto de eficiência, traduzido em produtividade? Onde há salto de produtividade, não é o benefício inerente transferido ao povo, por redução de tarifas, ou eu entendi mal? Ao povo indefeso será vendida a idéia de democratização e de simplificação de sua vida, porque embora a sede seja Brasília, cada uma dessas agências terá seu terminal de computador no posto de gasolina ou na loja de conveniência mais próxima. Estará instalada a nação virtual. A real fica para depois.

Esquartejaram a terra. Passado o banquete, de fazer inveja a Trimalchão, será difícil costurar seus cacos. O otimismo é grande, mas o tempo escoa fácil como as águas do riacho. Belo Horizonte, 02 de dezembro de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.

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ARGUMENTOS REFORÇADOS36

Geocentelha 089Leio na Harvard Business Review de maio-junho de 1.999 artigo precioso, intitulado A Road Map for Natural Capitalism (Um Mapa Viário para o Capitalismo Natural). Acostumado a desenvolver meu raciocínio tupiniquim com o único mérito da fidelidade ao tema dos assentamentos geossuportados, posto recentemente em livro de cunho técnico-opinativo (Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte), eis que vejo surgir do centro do capitalismo moderno crítica muito mais ácida e nutrida de números que as pitadas aqui e ali colocadas nos artigos que freqüentam este espaço nobre do jornalismo mineiro, e um pouco mais sistematizadas no citado livro.

Os autores são Amory B. Lovins, L. Hunter Lovins e Paul Hawken. Começam comparando a incapacidade da famigerada Biosfera II de produzir alimentos, ar e água para 8 pessoas (quatro casais nela enclausurados em 1.991), ao custo de U$ 200 milhões, com a ainda capaz Biosfera I (da terra) de prover tais necessidades para 6 bilhões de humanos viventes. Seguem dizendo que provêm da terra, como tenho dito, os recursos que sustentam a humanidade, embora fazendo agrupamento diverso: os recursos minerais, vegetais e animais que extraímos e os de prestação de serviços ambientais, como depuração do ar, reciclagem da água, e outros. Aí chamam atenção para fato notório, que tem marcada exacerbação precisamente nas matrizes do capitalismo atual: a Biosfera I encontra-se sob severo risco. A capacidade da terra em manter a vida e a atividade econômica está ameaçada pela forma como extraímos, processamos, transportamos e descartamos um fluxo de 220 bilhões de toneladas de materiais por ano. Não estão considerando nesta tonelagem a água de chuva que pomos a correr a mais, em comparação com as quantidades naturais, nas atividades agropastoris e na urbanização – o efluente mais volumoso e destrutivo da civilização atual.

Os números continuam impressionantes: Em estimativa conservadora, a revista Nature (citam) fixou um valor de 33 trilhões de dólares (mais ou menos o Produto Mundial Bruto) se fossem pagos os serviços ambientais prestados anualmente pela terra ao Homem, mas assevera que muitos deles não teriam outro fornecedor, e nos são imprescindíveis. Dizem ainda que a economia dos Estados Unidos e mundial é absurdamente incompetente na gestão dos recursos naturais e na preservação dos meios de a terra continuar provendo esses serviços ambientais: Somente 1% da energia consumida pelos carros é realmente usada para transportar o condutor, porque somente 15 a 20% da potência gerada pela combustão da gasolina alcança as rodas e 95% da propulsão gerada move o carro e não o condutor; a economia dos Estados Unidos não é nem 10% energeticamente eficiente em comparação com o permitido pelas leis da física; suas perdas energéticas, só nas estações geradoras, equivalem a toda a energia consumida pelo Japão. A eficiência dessa economia em relação aos materiais é ainda mais medíocre: apenas 1% dos materiais mobilizados para atenderem às necessidades do país é realmente transformada em produtos, ainda em uso seis meses depois de sua venda.

Para o mundo: Só em 1.998 a violência dos temporais e suas conseqüências, agravadas pelo desmatamento, desalojou 300 milhões de pessoas e causou danos de U$ 90 bilhões, mais que em toda a década de 80. Sem reinvestimento no capital natural, a redução dos serviços ambientais prestados pelos ecossistemas tornar-se-á o fator limitante da prosperidade no próximo século (Os limites geoambientais do desenvolvimento já postos por geólogos do IPT – São Paulo em 1.990 e os limites absolutos de que falo no citado livro ao comparar a crise dos anos 30 com a atual). Dizem mais: Em quase todos os climas, solos e sociedades, trabalhar com a natureza é mais produtivo que trabalhar contra ela. Das mais de 60 formas de mau gerenciamento identificadas, as mais óbvias envolvem as formas como as empresas alocam capital (em seus planos) e como os governos estabelecem políticas e impõem tributos. E continuam: Em quase todos os países do mundo as leis tributárias penalizam o que mais desejamos – empregos e faturamento – enquanto subsidiam o que menos desejamos – a depleção dos recursos (da terra) e a poluição.

Diagnósticos amplamente coincidentes e medidas corretivas em filosofia semelhante, exceto por um ponto: não falam dos para mim óbvios e fecundos recursos da geologia a orientarem boa parte das medidas, como a confirmar que (só) poderá nascer aqui, e não lá, a Revolução Geológica.

Belo Horizonte, 20 de dezembro de 1999

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.36 Estado de Minas – Opinião pg. 7; 05/01/2.000

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Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

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ENCHENTES: COMO PREVENIR37

Geocentelha 091Muitas cidades nasceram ao longo dos rios, enfileiradas. Muitas delas subiram as encostas e, como já falei, esqueceram-se de levar os recursos tecnológicos de gestão apropriados para as urbanizações de topo (pelo menos três – os reservatórios pluviais, que custam uma ninharia, aproveitando os telhados como excelentes coletores, as cisternas secas para infiltração das águas excedentes à coletada, onde o sistema geológico o permita, e os diques retentores de sedimentos em cabeceiras secas e valas de erosão como as voçorocas, permitindo que esses sedimentos acumulados, e entulhos bem dispostos, funcionem como esponjas a absorverem águas pluviais). Contudo o maior de todos os recursos é o reflorestamento intenso do território nas partes não adequadas para a agricultura e pecuária. Esse reflorestamento deve ser feito com características naturais e da forma mais contínua possível nas áreas de difícil acesso e impróprias para a atividade florestal comercial e com eucaliptos, sim senhor, nas áreas em que tal manejo seja favorecido pelo relevo, ou com pinus, das montanhas frescas de Minas para o sul.

Abro parênteses para perguntar se morreriam na indigência pequenos proprietários rurais do Jequitinhonha que tivessem meio hectare plantado em eucaliptos na seca mais aguda. Não teriam eles pelo menos madeira ou carvão para trocarem por cestas básicas, preservando a própria dignidade? O eucalipto não veio de Marte, é terráqueo. Nem sequer é mais capaz de secar o solo do que um cedro brasileiríssimo (comparação que já teria sido feita por importante escola agrícola)! Mas, tudo bem, expulsemos o eucalipto por ser tão estranho à nossa flora. Mandemos então de volta as mangueiras, os coqueiros, as macieiras, todos os capins africanos e tantos outros intrusos.

Voltando ao combate das enchentes, o regional tem de ser feito pelas duas modalidades de reflorestamento, que, como é óbvio, ajudarão a reabsorver o gás carbônico do efeito estufa, ajudarão a equilibrar o ciclo da água e a conter (a modalidade natural) a perda de biodiversidade, vale dizer os três mais globais problemas ambientais do planeta. As águas de chuva que rolam em excesso constituem o mais volumoso e destrutivo efluente da civilização atual (acabaram de destruir dezenas de vidas e muitos bilhões de dólares de bens materiais). Se o ministério público atentasse para o fato de que uma das razões fundamentais da existência do Estado é exatamente exercer a solidariedade para com os cidadãos atingidos em nome de todos os demais, estaria movendo ações públicas em nome dos que sequer sabem que merecem mais do que o socorro alimentar, porque também perderam tetos onde se abrigam e panelas com que preparam as refeições. No plano preventivo, o que uma política ambiental minimamente inteligente tem a fazer? Tratar efluentes como efluentes. O que se faz com efluentes em tal política? Reduzir tão drasticamente quanto possível a sua geração; reciclá-los tão intensamente quanto possível; criar as condições mais adequadas para a disposição do excesso. No caso das cidades, deixarem aos rios o seu leito. Assim deve ser a política das águas pluviais. Dela dificilmente a Agência Nacional das Águas (ANA) quererá cuidar.

Já me dão calafrios os ecos de pedidos emocionados de verbas para canalizar rios. Cidades ligadas em série pelos rios que elas desrespeitam tenderão a transferir enchentes para as de jusante – como se rio abaixo morasse inimigo – não de fato a preveni-las. Assim será evidentemente no Paraíba do Sul; assim no Doce, no Sapucaí e em tantos outros. Por menores que sejam as verbas liberadas pela União, Estados e Municípios, tão tradicionalmente parcimoniosos quando se trata de investir em prevenção, 10% delas aplicadas nas ações propostas renderão mais benefícios que os 90% restantes jogados em canalizações mal concebidas.

Belo Horizonte, 20 de janeiro de 2.000

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

37 Estado de Minas – Opinião; 30/01/2.000; p. 13

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ONDE NASCE A ECOLOGIA38

Geocentelha 093Os geólogos já discutiram temas como estará a terra esfriando, esquentando, encolhendo ou expandindo? A certa altura da investigação pura a possibilidade de estar a terra esfriando era aliciante para os que tentavam explicar a origem das montanhas formadas por camadas dobradas (alguns diziam que se tais dobras fossem desfeitas, a superfície da terra atual seria insuficiente para acomodar a crosta desdobrada, e isto seria prova de que no passado a terra teria sido um planeta maior). Numa saga científica deslumbrante, descobriram os geólogos que um só processo explicava a formação das montanhas e a deriva continental, que se dá pela expansão do assoalho oceânico ao longo das cadeias meso-oceânicas, como no Atlântico, e pelo consumo de placas tectônicas nas zonas de subducção, como na costa chilena.

Maravilha da unificação, o mesmo processo explica a disposição geográfica dos terremotos, suas características distintas consoante o compartimento geotectônico em que ocorrem (um terremoto da Califórnia é diferente de um dos Andes); explica também a diferença entre vulcões, uns explosivos e outros “pacíficos” como os do Havaí e Islândia. Salvo pelas leis da física, biologia e química, que já nascem globalizadas sem depender de adesões, o conhecimento fatual da terra é a primeira proeza de globalização da civilização atual.

Tudo vem de dois fatos hoje bem conhecidos: a desintegração dos elementos radioativos, com velocidade independente das condições de temperatura e pressão, gerando calor, e a baixa condutividade térmica das rochas. Grande parte desse calor é gerado a taxa constante na camada da terra chamada Manto. Por algum tempo esse calor é retido porque as rochas sobrejacentes impedem sua ascensão. Ultrapassados valores críticos acumulados, gigantescas massas rochosas que o contêm, mais leves que as vizinhas, começam a ascender num processo de convecção em meio sólido. Essas massas ascendentes alcançam as proximidades do assoalho oceânico, onde sofrem fusão devida à descompressão e extravasam sob a forma de vulcões submarinos ao longo das fissuras meso-oceânicas. Os alongados “cones” vulcânicos emergem como ilhas ao longo de tais fissuras, ou, mesmo submersos, formam extensas dorsais, com a grande fenda simetricamente central, das quais ilhas como a Islândia são os cumes mais elevados. Se massa deslocou-se para cima nessas regiões, massas deslocam-se para baixo em outros pontos do globo. É o que ocorre na costa chilena, onde a placa de Nazca mergulha sob os Andes. No centro do Atlântico dois fatos extraordinários merecem ser citados: ali ampliam-se as placas Sulamericana, a oeste da fenda, por acréscimos de material mantélico à sua borda leste, e a placa Africana a leste, por efeitos simétricos. Assim evolui o Atlântico (10 a 20 metros mais largo que no tempo de Cabral). O outro fato é vida submarina aproveitando o calor dissipado ao longo da grande fenda. Ali também, na ilha de Surtsey, nascida nos mares da Islândia pela década de 60, uma flor nasceu semanas depois da emersão, revelando a extraordinária disposição da Vida em colonizar precocemente seu ambiente. A oeste a subducção da placa de Nazca sob os Andes é processo muito mais turbulento, porque existe forte fricção entre a placa mergulhante e as raízes da grande cadeia montanhosa sob as quais mergulha. Além dos terremotos decorrentes diretamente das rupturas associadas à subducção, o calor gerado localmente pela fricção forma câmaras magmáticas que alimentam os vulcões. Como fato semelhante dá-se do outro lado do Pacífico, como no Japão, o Círculo de Fogo do Pacífico tem sua lógica geográfica perfeitamente explicada. O que acabei de descrever é a geotectônica global, sem a qual, mantidas outras variáveis, os processos geológicos exteriores (geodinâmica externa), comandados pelo sol, já teriam submergido os continentes sob um oceano global de três quilômetros de profundidade, e não haveria quem pudesse falar de ecologia.

Pelas razões acima tenho dito a colegas geólogos que nos cursos introdutórios de geologia, que deveriam ser dados a partir dos seis anos de idade, há uma linha pedagógica essencial a ser seguida: ensinar primeiro geodinâmica global (interna) e depois a externa, porque, mais tarde, se tornará claro para esses alunos que a ecologia começa na geosfera que os geólogos chamamos Manto.

Belo Horizonte, 27 de janeiro de 2.000Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

O SÉCULO DO OBSCURANTISMO39

Geocentelha 094Existe distância interestelar entre a qualidade da tecnologia disponível para promoção do desenvolvimento econômico,

38 Estado de Minas, Opinião, 13/02/00; p.7.39 Estado de Minas – Opinião; p. 7; 01/03/00

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social e ambientalmente compatível, ou sustentável, e a qualidade da alocação dessa tecnologia à efetiva promoção de tal desenvolvimento. Não importa se esses recursos estão concentrados no primeiro mundo: São da Terra (planeta, ou país de toda a humanidade). Podemos comparar o Brasil com esse país: De Belo Horizonte para sul, temos recursos tecnológicos, mais modestos que os do primeiro mundo, mas suficientes para que todo o Brasil possa beneficiar-se da promoção de um tal desenvolvimento dentro de nossas fronteiras. Dentro desse subpaís, existe um arquipélago de subpaíses que

reproduzem em escalas próprias em relação a suas periferias o que o conjunto representa para o Brasil e o que o primeiro mundo representa para o resto. No subpaís a norte de Belo Horizonte existe arquipélago, mais rarefeito que o anterior, que também reproduz em relação a suas periferias o atrelamento centralizante acima esboçado. Este fenômeno nasce das relações da Cidade com os territórios que domina o Campo relações que estão longe de ser atenuadas. O conceito de Campo aqui tem conotação diversa daquele campo que se estende do perímetro urbano de uma cidade até o da vizinha. Imaginemos remota localidade perdida nas montanhas de Minas, digamos Covanca, na extremidade inferior de uma escala de poder, e Nova Iorque na superior. Covanca estaria, p. ex., na “zona rural” de Furquim, esta na de Mariana, Mariana na de Belo Horizonte; esta na de São Paulo e esta última na de Nova Iorque.

O mundo caminhará para solução melhor quando a Cidade, que a tudo domina e para tudo dita regras, compreender que o Campo é a Cidade rarefeita, e não seu quarto de despejo, e que a própria Cidade deve ser o Campo adensado. Assisti dia desses a conferência do senador Requião sobre políticas alternativas de desenvolvimento, em que, ao referir-se ao “new deal” com que Roosevelt debelou a crise dos anos 30, comentava que uma das idéias-força do programa era a seguinte: “se a Cidade for destruída pelo incêndio, o Campo a reconstrói; se este for destruído, não haverá Campo para reconstruir a Cidade”. O Campo tem águas, mas a Cidade as toma, devolve esgotos e legisla sobre o que reste; o Campo tem florestas, mas a Cidade as corta e legisla sobre os seus retalhos. Agora dizem os que pensam entender de água no sentido planetário que ela está acabando, e esquecem-se de que em seus 2 a 5% de território de cada país as cidades declaram guerra à água, expulsam-na, enquanto recomendam ao Campo, com mais de 90% do território, que cuide da sua proteção, como se esses 90% não estivessem submetidos às leis escritas pela Cidade, nos padrões comportamentais que impõe ao Campo e nas leis destruidoras que promulga, essas leis de gestão inimigas do bom pensar. Voltando ao campo, é claro que ele só poderia responder enviando contingentes numerosos para as áreas de risco das cidades, onde pelo menos o posto médico está à mão.

A tecnologia da moda vai de Nova Iorque a Covanca em meses. Nenhuma tecnologia contextual, obviamente sem escala de mercado, resistirá. Aliás, para que ela não prospere, decidiu-se que não se ensinará a ciência básica do contexto, que é a geologia, algo equivalente ao vernáculo, este pilar da inserção do Homem no mundo social, enquanto aquela o de sua inserção no mundo físico. Sem tecnologia contextual, que resiste, importamos qualquer coisa e isto nos está causando uma grave indigestão tecnológica.

E aí o século do obscurantismo mais reluzente da história (reclamar de El Niño não é o mesmo padrão de obscurantismo que apelidou de o “tenebroso” o mar exterior que se estende para além das colunas de Hércules?), vai chegando ao seu inglório termo. Já vai tarde. Façamos doravante algo melhor. Nós temos jeito sim, mas precisamos tomar esses cordéis eletrônicos com que nos manipulam.

Belo Horizonte, 15 de fevereiro de 2.000

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

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A VEZ DAS GRANDES LEVADAS40

Geocentelha 097Na ilha da Madeira os habitantes desviaram águas da vertente norte da ilha, íngreme e com alta pluviosidade, para a vertente sul, menos íngreme e com pouca água. As transferências fazem-se pelas chamadas levadas, canalizações executadas em condições de terreno difíceis, compreendendo simples vala nas passagens simples, e, nas mais difíceis, túneis, aquedutos e muros de arrimo. Os agricultores beneficiados pelas levadas estão comprometidos com a manutenção destas obras em seu trajeto sinuoso acompanhando as dobras do terreno. No caso a transposição se justifica, porque na vertente norte há água sem solo, que não produz, enquanto na vertente sul há solo sem água, que também não produz, e afinal na ilha estão todos sob uma só bandeira.

A transposição de pequena porção da vazão do São Francisco, podendo envolver também o Tocantins, será uma grande levada. Aqui estão envolvidas questões econômicas, ambientais, sociais e principalmente morais extremamente delicadas. Dizem que beneficiará 12.000.000 de nordestinos, no campo e cidades. Contudo, são apenas 70.000 litros por segundo, equivalente à vazão de um pequeno rio. Certamente haverá projetos de irrigação por gotejamento, mas não será todo o uso agrícola conformado a esta modalidade.

Do lado dos custos há que somar ao das obras o da energia que deixará de ser gerada nas usinas a jusante do desvio e o do bombeamento na transposição e distribuição nas ramificações estudadas. Serão beneficiadas, além de cidades, faixas estreitas de terrenos marginais aos eixos de distribuição. Não serão feitas distribuições distantes para terrenos elevados, o que caracterizaria, depois de implantado o sistema, um estranho rio invertido. Não se discute a urgente necessidade de resolver o problema da seca no Nordeste, mas vamos por outras considerações. Aos custos visíveis apropriados terão de ser somados os invisíveis, que surgirão. Deverão ser incluídos os associados à perda por evaporação não só nos reservatórios, mas também ao longo dos rios perenizados, onde também ocorrerão processos de saturação dos terrenos marginais (benefício) e a infiltração em direção a aqüíferos profundos, que poderão estar pelo caminho. Se as extensões de perda por infiltração profunda forem grandes (não vi nada de perfil geológico dos eixos, o que, em país disposto convincentemente a resolver seus problemas, antecipa-se ao topográfico), trechos extensos terão de ser impermeabilizados.

Se se planeja fazer água chegar ao maior número possível de famílias rurais, elas não terão de ser concentradas ao longo das faixas marginais, com os custos associados? Aqui entra em questão severa dúvida a respeito da capilaridade social do alcance das águas desviadas: ou essa concentração já lá está, hipótese da qual duvido, ou terá de ser acoplado à transposição o mais drástico experimento de reforma agrária do país.

Acho 70.000 litros por segundo pouco, e os processos de evaporação e infiltração profunda podem reduzi-los significativamente. Embora se pretenda conferir ao projeto um caráter salvacionista, isoladamente ele não poderá muito, e a levada de água promoverá uma levada de populações para as faixas beneficiadas e o previsível esquecimento de outras possibilidades, até de perfil similar, como a, não cogitada, de abastecer capitais nordestinas litorâneas com águas doces dos aqüíferos da plataforma continental, devolvendo ao campo os mananciais de superfície, e outras de capilaridade muito maior, como reflorestamento com espécies arbóreas locais, resistentes à seca, e uma infinidade de sistemas de captura das águas pluviais pontualmente já testados e de eficácia comprovada (coleta e armazenamento em cisternas revestidas), diques retentores, barragens subterrâneas bloqueando o fluxo pelo sedimento sob o leito dos rios secos, infiltração forçada em aqüíferos de geometria conhecida, para alimentar poços e cisternas de produção, além de outros que só o conhecimento fatual da natureza local permitem conceber (tecnologia contextual).

De levada em levada, coroada ou não de êxito, vai a humanidade intensificar a milenar causa de guerras, porque se esquece frequentemente de que as águas que a natureza fez escoarem de um país ou estado para outro integram naturalmente o patrimônio territorial desse outro.

Belo Horizonte, 09/03/00

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.40 Publicado no Estado de Minas – Opinião pág. 7 sob o título “Transposição do São Francisco” . Também no JC E-mail 1.502 de 20/03/00, com o título original.

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O MAIOR DOS DESAFIOS41

Geocentelha 098

Está longe de ser o maior desafio de gestão do presente fim de século a garantia de água para os séculos vindouros. O desafio maior é remover das mentes a complacência imobilizante. Tão maior é este desafio quanto é reconhecível que com mais 10 ou 20 anos teremos erradicado o analfabetismo formal, sem qualquer arranhão na couraça do verdadeiro desafio. Assim fica difícil escapar ao estado geral de perplexidade e prostração diante do iminente desastre geológico e do já configurado desastre social da civilização.

De que vale saber ler se tal faculdade só é utilizada para importar a última novidade tecnológica que se implantou por lá? De que vale saber ler se não há projetos globais, setoriais, pontuais, em que estes e os setoriais estejam sistêmica e consistentemente compatibilizados com os globais, para que leiamos essa consistência, e, compreendendo-a, apoiemos mediante o voto ou a opinião, e participemos. Que programa há para ler e compreender? Há muitos programas por aí, mas onde está a sua mútua consistência? Onde a sua própria consistência interna, concedendo o esquecimento de seus compromissos com os demais, que já seria querer demais? Vejamos o da água. Está toda gente preocupada com ela, mas poucos se preocupam simultaneamente, como deve ser, com as suas três dimensões de gestão (suprimento, agente geodinâmico e veículo de poluentes e contaminantes). Já na dimensão suprimento, esquecendo as demais, é assim: se há mananciais superficiais, nada mais se discute, pois é só com eles que se proverá água; onde há carência de água superficial e bons mananciais subterrâneos, ou se inverte a equação do suprimento e só se usa a subterrânea, ou se faz a concessão pela dobradinha. Águas pluviais, nem pensar, embora as mais fáceis de captar, para os usos adequados, por certo. Dir-se-á que águas pluviais capta, quando pode, o nordestino. Nada mais equivocado, pois a lógica, já descoberta em Éfeso há 25 séculos, ou antes, recomendaria que águas pluviais se captassem sempre, preferencialmente onde chove muito! A avenida Tereza Cristina, no médio Arrudas, foi inundada. Lamentamos que a canalização recente não tenha suportado as águas de março, ou regozijamo-nos com essa inundação, que pode ter evitado o transbordamento do Arrudas no centro da cidade? Gestão anti-científica dá nisto!

Quanto à Tereza Cristina, nada está perdido, mesmo sendo muito provável que uma ampliação do seu canal implique a do baixo Arrudas, o que torna o problema praticamente insolúvel em termos econômicos. Existem ainda trechos de canalizações a serem ligadas no alto Arrudas, jogando um pouco mais de sombra no cenário. Mesmo assim, nada está perdido, porque soou a hora de respeitar a lei dos crimes ambientais e implantar a coleta de águas pluviais e a infiltração forçada, esta onde as condições geológicas sejam propícias, como compensação ambiental, econômica e socialmente urgentíssima do bloqueio à infiltração promovido pelas edificações e vias asfaltadas da cidade. Mais que isto, aproveitando os vales encaixados do Barreiro e de outras áreas, usá-los para acomodar o entulho inerte gerado em grande volume nas regiões próximas. Esse entulho bem acomodado e contido por diques retentores funcionará como esponja de grande capacidade de absorção de águas de chuvas, e permitirá depois do enchimento a criação de um parque ou similar. Será suficiente? Hoje não sei, mas o que é insuficiente, não por isto deixa de ser urgente.

Mesmo que não povoem freqüentemente os livros, princípios básicos de gestão das águas recomendam que se o consumo está disperso, a oferta, quando possível, deve ser dispersa e com geografia coincidente com a do consumo, o que permite retirar de circulação águas pluviais que destroem, passando da dimensão destrutiva do agente geodinâmico para a construtiva do suprimento. Outro princípio básico é promover o suprimento segundo a demanda, do ponto de vista qualitativo e quantitativo, o que permite, pelo menos por seis meses no ano, lavar carros e trocar calor nas indústrias com águas pluviais, economizando energia, produtos químicos e desastres.

Belo Horizonte, 21/03/00

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.41 Estado de Minas – Opinião , pg. 07; 01/04/00

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Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

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MAIS GRAVE QUE FALTAR ÁGUA42

Geocentelhas 099

Integra a legislação de recursos hídricos a seguinte premissa: “A água é um recurso limitado e vulnerável”. Do ponto de vista geológico é lamentável equívoco, porque a substância, pelo menos, nada tem de limitada e muito menos de vulnerável. Já o recurso, é ilimitado porque todo dia o sol dessaliniza milhões de toneladas de água do mar e as despeja generosamente sobre a terra. Vulnerável? Também não: a água em si sai limpa e fresca de todas as enrascadas em que é metida, desde que o sistema geológico de que faz parte seja bem tratado.

Aterrorizante esta premissa equivocada, infelizmente de consensual aceitação, quando o que, de fato, limitado e vulnerável é o recurso terra nas características que dele precisamos para a sobrevivência e desenvolvimento. O modelo antropomórfico do sistema geológico ajuda na explicação do que digo. Nele a terra é assimilada ao corpo humano e a água ao sangue. O médico, só na diálise, extrai o sangue para tratá-lo à parte e devolvê-lo ao corpo, operação que o metabolismo natural é incapaz de executar. No mais, ele trata sangue e corpo ao mesmo tempo. É o corpo que hospeda o sangue e se o corpo é ferido, o sangue flui e perde-se. A terra armazena e purifica a água, quando pode.

Vejamos conseqüências desastrosas daquela visão autônoma da água. Profunda erosão foi rasgada na terra (uma voçoroca, por exemplo). A mais tardia manifestação desta degradação é o surgimento de uma nascente. Um corte no corpo põe o sangue a escoar para fora dele. Como a analogia não é perfeita, se o corpo é sadio, o sangue coagula e a ferida fecha. Se o corte é profundo e não houver socorro, o corpo morre. A terra fica no meio termo: nunca o corte é bastante pequeno para que o fluxo estanque por si, nem bastante grande para drenar e levar à morte a terra. A nascente fica por ali, sugando-a. Com o tempo, passa a ser vista como natural. Aí vem a lei dos homens, incansável no revogar as da natureza, e determina que o terreno em volta da nascente é área de proteção ambiental. Daí não podermos soterrá-la. Então, a pretexto de proteger a nascente, não podemos reabilitar a terra, o que requer o soterramento da nascente e seu deslocamento para jusante, onde esteve antes da erosão! Perde a nascente a oportunidade de ter seu abastecimento reforçado com a terra usada para soterrá-la. Dezenas de milhares de voçorocas existem em Minas Gerais, “protegidas” contra a reabilitação sob as determinações da lei! Nas cidades, que não estão sob o império do Código Florestal, a inspiração dele emanada ainda impede a intervenção corretiva, mas a situação vai virando lentamente, porque o bom senso começa a prevalecer.

Inspirados na lei, em restrições técnico-econômicas discutíveis, e na falta de zelo ambiental, construtores de vias férreas e rodovias colocam grande parte de seus bota-foras em posições absurdas, perdendo a oportunidade de compensar em parte o impacto das obras, fazendo que esses bota-foras entrem em processo erosivo ou requeiram, tão mal dispostos, gastos de controle elevados, e que deixem de funcionar como boas esponjas absorventes de água. Rejeitos não perigosos e estéreis inertes da mineração também costumam ser mal dispostos pelas razões acima. Em áreas rurais de declividade acentuada ainda são visíveis sulcos de arados mecânicos encosta abaixo, promovendo erosão.

A terra, como hospedaria da água, está acabando, porque o solo superficial está sendo erodido à razão de mais de 1 bilhão de toneladas por ano, levando com ele 10 a 20% de capacidade de armazenamento, no compartimento que seria a ante-sala da hospedaria, aquele onde os hóspedes se reúnem antes de entrar nela. O recurso água é oferecido todo dia à terra, mas ela não está preparada para armazená-lo, e, não obstante toda a preocupação com a água, poucos estão de fato preocupados com isto.

Belo Horizonte, 28/03/00

Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

42 Estado de Minas – Opinião, p. 9; 14/04/00

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ÁGUA, DESAFIO DA GESTÃO43

Geocentelha 100As atribuições da gestão oscilam entre dois extremos: Quase tudo a cargo do Estado nos países de economia planificada e quase toda a atividade econômica com o setor privado nos países de economia de mercado, ficando a cargo do Estado apenas aquelas atribuições que mesmo os liberais mais ferrenhos admitem não serem privatizáveis. Por razões diversas os modelos mais próximos desses limites fracassaram, embora um deles ostente os emblemas de um êxito ilimitado. Pois o que mais lhe caracteriza o fracasso é precisamente aquilo em que muitos vêm o êxito – o domínio incontestável do mundo. Ora, se dominaram o mundo, e isto não contesto, por que anda o mundo assim tão mal? Onde está portanto o êxito?

Os americaníssimos Amory B. Lovins, L. Hunter Lovins e Paul Hawkens, em seu recente livro “Natural capitalism” (1.999) questionam severamente as bases do capitalismo atual, e não se limitam em sua crítica à claríssima (dado à economia um mínimo de comprometimento ecológico) inconsistência econômica a longo prazo do modelo triunfante, que só não enxergam seus iluminados mentores e o ignorante bobo-alegre. Estendem-se eles por aspectos morais e éticos, por eles formulados ou reproduzidos de autores citados. Há citações como esta, referindo-se a educador americano, especializado em educação de meninos de rua: “Como é que poderemos pensar em ensinar álgebra a alunos que não querem estar aqui?”, e grifam o aqui não como a escola, mas o próprio mundo. Tão despojados de bens materiais, sociais e humanos chegam eles a ela, que buscam um termo expondo-se a riscos de toda ordem (sexo, drogas, assaltos, lutas). Uma das marcas no entendimento dos autores mais destrutivas do capitalismo atual é sua obsessiva busca da produtividade do trabalho em oposição à absoluta falta de esforço em relação à produtividade dos recursos naturais, onde assinalam desperdícios absurdos. Tudo isto, ainda eles, gera desemprego e dilapida os recursos da terra.

Dizem, em perfeita identidade com o que já afirmei, que é impossível desrespeitar a terra sem fazê-lo ao homem e vice-versa.

Nascemos e crescemos vendo a natureza como um todo, até chegarmos à escola, onde ela começa a ser analisada e passamos inicialmente a vê-la por três janelas. Essas janelas, na universidade são dezenas, e nenhum de nós freqüenta todas elas. Mais, afastamo-nos da natureza para podermos dela fazer um objeto manipulável. Mais tarde, cada um em sua profissão é incapaz de compor uma síntese coerente, porque só aprendeu a analisar, mas cada um de nós tem de operar sobre ela, com ou sem síntese. Como no fazer a análise aprendemos a nos deliciar com as excelências de nosso ferramental analítico, acabamos por supor que nossas ferramentas de análise são mais importantes que nosso objeto, e aí começa a farra da terra. Inventaram então as abordagens multidisciplinares. Estas, se proporcionam pelo menos uma visão mais equilibrada das relevâncias relativas, nunca conseguem conduzir a uma síntese coerente, porque aí entram as relevâncias relativas do poder de decisão e sobre o objeto em tese bem analisado acaba por ser promovida uma operação incompatível com suas características constitutivas e comportamentais.

As visibilidades são distintas para os que observam de janelas diferentes. Da janela geológica, não vejo a água como recurso finito e vulnerável. A finitude da água é quase uma impossibilidade física. Toda a água, que não conseguimos ou não quisemos reter no solo através da manutenção de uma cobertura vegetal competente e de uma infinidade de recursos proporcionados pela geologia, volta à terra graças ao sol, pela evaporação dos mares, que são, para as dimensões das necessidades humanas, infinitos. O problema a resolver é a reabilitação da terra, quer em sua capacidade de armazenamento, quer no pleno aproveitamento dessa capacidade, hoje muito baixo devido ao generalizado bloqueio à infiltração.

O maior desafio da gestão em relação à água é a remoção da absoluta indisposição de reintegrá-la à terra, desafio que até hoje não foi enfrentado como deve ser por nenhuma nação moderna, capitalista ou de outra conformação estamental.

Belo Horizonte, 30/03/00Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

43 Estado de Minas; Opinião, p. 9; 03/05/00

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SENHORES, EU VI!44

Geocentelha 101

Eu vi um planeta esquadrinhando o céu e mandando desenhos com frases ideográficas de futuro bom vizinho. Fico maravilhado com este tipo de esforço, que reproduz 570 anos depois o colossal empreendimento do Infante Dom Henrique, maior que Colombo, que Vasco da Gama e que o burocrático fidalgo das 13 caravelas, o festejado Cabral. Nessas frases não se inclui o último pássaro elefante num vôo solitário em parafuso para mergulhar sem testemunhas nas profundezas do Índico, nem Arábia Feliz, nem a calcinada Palestina onde outrora corriam leite e mel, para não despertar a desconfiança dos seres verdes, quase só-cabeças, desconfiança esta que só tardiamente povoou os pesadelos de Montezuma.

Não é o texto acima nenhum libelo rancoroso contra a civilização. Contudo será ela menos inimiga de si mesma do que poderia ser de raça mais poderosa que pretendesse escravizá-la como nos filmes de ficção, ou de raça menos poderosa, como aztecas e incas diante dos espanhóis?

A civilização atual exagera em seus descuidos com relação à sua plataforma planetária, por muitos já assimilada a uma nave espacial como a chamar atenção para uma função marcada pela transitoriedade e pelo destino de lixo espacial a ser evitado pelos navegantes do futuro, como já o são escombros da corrida espacial dos anos sessenta.

Eu vi as matas sombrias povoadas de duendes e onagros cederem seu precioso cerne ao fogo, e depois a turfa das charnecas, o carvão profundo, o petróleo d’além mar, e depois de tudo o urânio com seu hálito pestilento a contaminar o sepulcro congelado do mamute.

Eu vi as matas bravias da zona da Mata de Minas Gerais dizimadas a machadadas, anteontem mesmo, esgotando em poucos anos o suporte do ciclo anual de sobrevivência de uns que nas águas eram lavradores, carreiros e tropeiros e na seca lenhadores candidatos à maleita, cujos filhos foram plantar menta em Medianeira, cujos netos foram desbravar Rondônia e cujos bisnetos talvez já sejam brasilguaios.

Eu vi surgirem os pesque-e-pagues instalados em tanques abastecidos por águas desviadas para que não sejam soterrados pelo assoreamento originado nas encostas íngremes raladas em carne viva pela erosão. Eu vi as rodas pelton serem desativadas uma após a outra porque era preciso comprar energia de São Simão, ou porque a água minguava ano a ano. Eu vi engenhos d’água e os tocados a bois serem desmontados um a um, porque o açúcar cristal ficava mais em conta que o mascavo feito em casa. Atrás do açúcar eu vi chegar o café empacotado, cheiroso-como-ele-só. Eu vi o cigano dar um cavalo trôpego pela sucata do alambique e pelo tacho grande de cobre onde se fazia rapadura Eu vi o camponês comprar madeira na cidade para fazer pouco mais que um rancho. Eu vi também um moderno produtor rural reclamando do preço da soja no mercado de Chicago, e outro, de celular na mão, contemplando o ondulante laranjal, estrelado de pingentes vermelhos, recortado aqui e ali por uma insuficiente mata ciliar, consultando alguém sobre as geadas da Flórida (mas eu não vi um pé de couve nas redondezas, porque isto se compra no mercado, e há os que só plantam couve). Eu vi cidades inundadas e as pessoas pedindo medidas contra as enchentes, todas na linha de transferi-las rio abaixo, ressecando cada vez mais a terra.

Eu vi um país criar uma agência para cada coisa, e as agências proliferando mais rapidamente que as emendas constitucionais, embora não tanto quanto as medidas provisórias. Nessa trapalhada geral, eu sonhei que vi Macondo, mas estava enganado, porque em verdade, senhores, Macondo eu vi.

Belo Horizonte, 24/04/00

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo Horizonte

44 Estado de Minas, Opinião, p. 7; 22/05/2.000

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A DESCOBERTA QUE FALTA45

Geocentelha 102A descoberta de um país não termina no fincar da bandeira, nem na ocupação do território. Ela só começa aí. Para mim uma das coisas mais importantes é o chão que piso. Não piso qualquer chão, porque ao fazê-lo estou usando um dos fatores da sustentabilidade que ele me dá e isto pode ser em detrimento dos demais. Então preciso descobrir quais são esses fatores, e medir suas potencialidades, para pisar o chão no lugar certo.

Tenho pena do chão da parte oeste do sul do Brasil, de São Paulo, Triângulo Mineiro, Mato Grosso, do chãozinho costeiro bonito, suave ondulado, de Sergipe e do que sustenta os tabuleiros de Alagoas. São tão bons para a agricultura mecanizada, para a egoísta “plantation”... Tenho pena do chão muito rico num dos fatores da sustentabilidade, porque isto atrai a cobiça reducionista dos que querem tirar dele um produto só, seja isto a madeira, o cereal ou o minério.

O território brasileiro está por descobrir, não só inicialmente em suas características constitutivas, mas terminalmente em suas características comportamentais.

Em parte dos territórios citados, da bacia do Paraná, um dos objetos que falta conhecer bem é o formidável aqüífero Botucatu, ou Guarani, não o conhecimento já usado no abastecimento local de água, mas o de seu pleno significado para a gestão em escala regional. Isto é sumamente importante para saber como manter sobre ele uma taxa de infiltração não poluente capaz de garantir sua perenidade e de proteger a superfície contra a erosão, o assoreamento, as inundações (quero dizer que ele tem, dentre outros, dois valores de sustentabilidade solidários, cujo aproveitamento requer exatamente as mesmas medidas).

Nos terrenos cristalinos de Santa Catarina até Minas Gerais e Espirito Santo outros objetos importantes do ponto de vista geológico estão determinando o medíocre desempenho dos assentamentos humanos, na cidade e no campo. Todavia à notória simplicidade das possibilidades que o contexto geológico oferece à gestão, opõe-se a ausência de critérios de gestão adaptados a cada um de seus domínios homogêneos (tecnologia contextual).

A bacia do São Francisco constitui objeto de gestão único, singular, fascinante, mas que singularidade existe nos critérios de gestão aplicados? Nenhuma. Só se ouve falar da seca, do rio moribundo e mais recentemente das possibilidades de gás nas rochas do Grupo Bambuí. A geologia tem de ir atrás de tais possibilidades, sim, mas antes de tudo também das diretrizes que o contexto geológico reclama para o manejo criterioso dos demais fatores da sustentabilidade presentes.

O Nordeste tem pouca água? Não em todos os lugares. Onde há pouca água, mesmo, a dinâmica populacional ajusta a população ao fator dominante. O trato adequado da terra para armazenar a pouca água das chuvas, combinado com a escolha de espécies resistentes à escassez, é caminho certo. Transferir água atrai mais população, gerando de novo carência, que pede mais água (um típico círculo de realimentação positiva).

E a Amazônia? Com pouca gente e muitas máquinas agrícolas (penso ser o que querem), o Amazonas vai escapar completamente ao controle, porque nada tenho lido sobre a gestão regional que leve em consideração de modo sistêmico o conjunto do Cristalino, que compõe a norte e sul a bacia hidrográfica, com as seqüências sedimentares de idade paleozóica a cenozóica, da faixa central. Os hiperbóreos querem internacionalizá-la, pretensamente em benefício do ambiente global (como gostam de receitar para os outros o que não são capazes de fazer em casa!). Acho melhor cuidarem de recuperar seu ambiente, em área 10 vezes maior, completamente estraçalhado de São Francisco a Vladivostok.

Conhecer o território não é só mapeá-lo. Conhecer é ser capaz de prever como responderá à ação antrópica e decidir oportunamente a respeito. Nós damos conta da Amazônia e do Nordeste, mas, para não imitarmos os hiperbóreos, devemos fazê-lo já em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre.

Belo Horizonte, 25/04/00

Edézio Teixeira de Carvalho.Ex-Diretor do Instituto de Geociências da UFMG.Autor do livro Geologia urbana para todos – Uma visão de Belo HorizonteMembro da ACL de Conselheiro Lafaiete

45 Estado de Minas; Opinião, pg. 07; 31/05/00