TEMPO DAS FIGURAS - ESTÉTICA E POLÍTICA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSC DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA NILCÉIA VALDATI TEMPO DAS FIGURAS: AGAMBEN, VIRNO, CACCIARI e RELLA FLORIANÓPOLIS – SC 2009

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA - UFSCDEPARTAMENTO DE COMUNICAO E EXPRESSOPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA

    NILCIA VALDATI

    TEMPO DAS FIGURAS: AGAMBEN, VIRNO, CACCIARI e RELLA

    FLORIANPOLIS SC2009

  • NILCIA VALDATI

    TEMPO DAS FIGURAS: AGAMBEN, VIRNO, CACCIARI, RELLA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Literatura da Univesidade Federal de Santa Catarina, como requisito para obteno do ttulo de Doutor Literatura.Orintador: Prof. Dr. Ral Antelo.

    FLORIANPOLIS-SC2009

  • AGRADECIMENTOS

    Ao professor Ral Antelo pela dedicao e generosidade em conduzir a

    orientao desta pesquisa, muitssimo obrigada.

    Agradeo imensamente aos membros da banca de qualificao de projeto de

    doutorado, os professores Carlos Eduardo Schmidt Capela (UFSC), Susana Scramin

    (UFSC) e Luz Rodriguez-Carranza (Universidade de Leiden), pelas contundentes

    colocaes.

    Sou grata ao professor Roberto Vecchi da Universidade de Bologna por me

    acolher e me orientar na coleta dos materiais esparsos nas bibliotecas italianas.

    Agradeo aos colegas e amigos Renata Telles, Lucia Oliveira Almeida, Dbora

    Cota, Alexandre Nodari e Flavia Cera pelas discusses, leituras e bibliografias.

    A Silvia, Marga, Edna, Magda, Gislene, Agnes, Marta, Marina, Cristiane,

    Roberto, Jairo, Man, Rafael, Chico, Robison pela presena afetiva, obrigada.

    Capes pela concesso da bolsa de pesquisa.

  • por isso que o tempo do moderno, o tempo em que as grandes unidades simblicas se despedaam sobre a urgncia do prestissimo metropolitano e para precipitar a crise, como diz Benjamin, o tempo do Glechnis, o tempo da figura.

    Franco Rella

  • RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo analisar quatro figuras da crtica italiana contempornea que antagonizam e protagonizam o debate sobre esttica e poltica: Giorgio Agamben, Paolo Virno, Massimo Cacciari e Franco Rella. A anlise passa, principalmente, pelos materiais esparsos produzidos a partir dos anos 1970 at a entrada do novo sculo, a fim de observar a montagem das categorias que movimentam as articulaes desses pensamentos. Categorias que, carregadas de tempo e de tica, permitem chegar hiptese de que o pensar filosfico e o fazer potico, artstico e crtico operam de maneira polarmente conjugada na inoperncia constituda entre as quatro figuras, de modo a perceber que: pela profanao, Agamben monta as imagens que transitam entre as diversas disciplinas do saber e a arte; pela ambivalncia, Virno rearticula a conduta da esquerda, a partir de consideraes marxinianas; pelo paradoxo do pensamento, Cacciari explicita filosofia esttica e filosofia poltica; pela noo de figura, Rella passeiapelas imagens da modernidade. Diante das divergncias e das semelhanas h algo que os toca: a tarefa dada ao tempo.

    Palavras-chave: Tempo. Esttica. Poltica. Crtica italiana.

  • ABSTRACT

    The maim purpose of this thesis is to analyse four figures of the contenporary Italian critique, who play the antagonists and the protoganists role in thediscussion about aesthetics and politics,: Giorgio Agamben, Paolo Virno, Massimo Cacciari and Franco Rella. The analysis crosses, mainly, the dispersed materials produced from the 1970s to the entry of the new century, in order to observe the montage of the categories that move the articulations of these thoughts. Charged with time and ethics, these categories allow us to formulate the hypothesis that the philosophycal thinking and the poetical, artistic and critical doing operate, in a polarly conjugated way, on the inoperancy constituted among these four figures: trough profanation, Agamben constructs the images that transits among the various disciplines of knowledge and art; trough ambivalence, Virno rearticulates the conduct of the left, from marxian considerations; trough the paradox of thinking, Cacciari turn explicit aesthetic philosophy and political philosophy; trough the notion of figure, Rella strolls by the images of modernity. In face of the divergences and the simillitudes, something touches them: the task assigned to the time.

    Keywords: Time. Aesthetics. Politics. Italian critique.

  • SUMRIO

    1 Premissa........................................................................................ 8

    2 A leitura como profanao............................................................. 12

    2.1 Categorias italianas .................................................................... 12

    2.1.1 Che cos la poesia?................................................................ 21

    2.1.2 Soleira Galxias................................................................... 24

    2.1.3 A senhora pode dizer isto?................................................... 29

    2.2 O que o dispositivo?............................................................... 33

    2.2.1 Soleira Turista aprendiz....................................................... 40

    2.3 Gesto ou signatura da tica ..................................................... 46

    2.3.1 Soleira Carta ao pai............................................................... 51

    2.4 A literatura ................................................................................ 63

    3 Ambivalncia................................................................................. 64

    3.1 A poca do desencanto................................................................ 64

    3.2 Formas de vida .......................................................................... 66

    3.3 Multido .................................................................................... 76

    3.3.1 Luogo Comune e Metropolis .................................................... 81

    3.3.2 Soleira Abraado ao meu rancor .......................................... 83

    3.4 Modernariato ............................................................................. 86

    3.4.1 Soleira O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos) ......... 88

    3.5 Quando o verbo se faz carne ...................................................... 100

    4 Nomos .......................................................................................... 104

    4.1 Oikos ......................................................................................... 104

  • 4.1.1 Do deserto `a escritura ............................................................ 109

    4.1.2 Soleira Lavoura arcaica ....................................................... 118

    4.2 Da metrpole cidade-territrio................................................. 122

    4.2.1 Confim do corpo...................................................................... 131

    4.2.2 Soleira - Berkeley em Bellagio ................................................. 135

    4.3 A lei ........................................................................................... 139

    5 Figuras da modernidade................................................................. 144

    5.1 As soleiras.................................................................................. 144

    5.2 Ler por figuras ........................................................................... 145

    5.2.1 Soleira Cadeira de balano.................................................. 150

    5.3 Sobre o tempo ............................................................................ 157

    Referncias ...................................................................................... 158

    Bibliografia de Agamben, Cacciari, Rella e Virno............................... 170

    Apndice........................................................................................... 192

    Apndice A Arquivo das figuras ...................................................... 193

  • 1Premissa

    Desde o fim dos anos sessenta, com percursos e termos originais, tambm a filosofia italiana inseriu-se, assim, substancialmente no mais amplo debate internacional. A fase mais aguda e inovadora da mudana de perspectivas corresponde ao declnio de tendncias outrora hegemnicas na Pennsula, em particular, as vrias famlias da dialtica e do historicismo. O pathos pela histria e pelo valor salvfico da poltica transforma-se, ento, seja em desencanto, seja em levar a srio o nihilismo.

    Remo Bodei, A filosofia do sculo XX

    Uma gerao de pensadores italianos nascidos durante a Segunda Guerra

    Mundial, e mesmo logo aps, vai se formar sobre os escombros de uma Europa em

    reconstruo no campo poltico, econmico e esttico. Trata-se, num recorte

    espacial e temporal, de Massimo Cacciari, Giorgio Agamben, Franco Rella e Paolo

    Virno, que durante os anos 1960 italianos iniciam, cada qual a sua maneira, a

    montagem de categorias, imagens, figuras, conceitos que permitem passar por

    vrios campos do saber. No como opositores, embora no sejam aliados; no como

    representantes de uma gerao, embora pertenam mesma poca, mas sim como

    formuladores de significativas respostas (e perguntas) tradio ocidental, formada

    a partir do encontro com a oriental. Ao mesmo tempo, profanando-a, como o faz

    Giorgio Agamben, constestando-a como prefere Virno, percebendo seus paradoxos

    como sugere Cacciari, ou transformando-a em figuras como pratica Rella,

    saqueando desta o seu mais valioso arquivo, para lembrar de uma expresso

    utilizada por Sylvia Molloy.1

    Neste saque de arquivo esto, principalmente, as linhagens francesas, que

    vo de Baudelaire a Foucault; as alems, que se esmeram em repensar de Nietzsche

    a Benjamin, a Viena do Fin-de-sicle, com Wittgenstein e Musil; marginalmente, a

    espanhola, com Bergamin e San Juan de la Cruz; e a prpria italiana, que,

    1 Sylvia Molloy se refere ao saque do arquivo europeu, praticado pelos escritores da Amrica Hispnica. [MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito a escritura autobiogrfica na Amrica Latina. Traduo de Antonio Carlos dos Santos. Chapec SC: Argos, 2004.]

  • 9deixando de lado nomes que consagraram a tradio poltica e historicista, se

    detm em outros, como Dante e Negri, por exemplo, que possibilitam articular

    discusses com o to perto e to longe, to seu e to do outro, arquivo ocidental.

    Enquanto Agamben monta e l o arquivo, ou a biblioteca, de uma maneira

    warburguiana, atravs da lei do bom vizinho que ele estende uma sombra sobre

    o passado de forma a pr lado a lado nomes e linhagens, s vezes, sem relaes

    aparentes, com o intuito de colocar o leitor num labirinto, no restando outra

    sada, seno a profanao; Virno, leitor e articulador de uma biblioteca mais

    restrita e especfica, mas nem por isso menos densa, opta por determinar o seu

    mtodo, que tambm acaba se tornando o objetivo de seu trabalho, na articulao

    das formas de vida contemporneas, v a necessidade de unir participao poltica e

    pensar filosfico como linguagem. Enquanto Cacciari, diferentemente de Agamben e

    Virno, passeia nos corredores das bibliotecas, sem jamais se perder, montando um

    arquivo slido e fixo, que funcione como cone para legislar a obra e a vida poltica

    na cidade, Rella tambm passeia, no entanto, como um flneur que capta da

    biblioteca as figuras constelacionais para ler a modernidade.

    Giorgio Agamben, Paolo Virno, Massimo Cacciari e Franco Rella so, desse

    modo, figuras. Figuras na medida em que so singularidades quodlibet, diria

    Agamben , formas de vida, acrescentaria Virno ou formas do ensaio, esclareceria

    Cacciari , soleira da modernidade, advertiria Rella que, colocadas distintamente

    dentro de uma figura informe, chamada tempo, permitem ler as nuances de um

    recorte temporal e espacial. Ou ainda, permitem ler estilhaos do pensamento

    produzido na Itlia, a partir da dcada de 1960 at a entrada do novo milnio, que

    atingem confins latino-americanos.

    Assim, analisar essas figuras o objeto e o objetivo principal desta tese. Nas

    primeiras produes, dos anos 1960 at o final dos 1970, mantm uma

    preocupao com o instante atual e um silncio em relao Segunda Guerra

    Mundial. Essa situao muda a partir da metade da dcada de 80, com a queda do

    muro de Berlim e a abertura da Comunidade Europia. O silncio sobre o

    holocausto quebrado e os anos 1960 ganham olhares contemporneos. Neste

    sentido, Cacciari rompe com o laicismo em defesa de um pragmatismo, Rella, de

    forma diversa, estabelece rupturas com o pragmatismo para defender o laicismo,

    Agamben rompe com laicismo-marxiniano em nome de uma tradio marxista

    teolgica e Virno rompe com a militncia extra-institucional para exerc-la de

    dentro da instituio acadmica. Diante deste quadro, a hiptese que aqui se

    desenha a de que esses quatro nomes marcam uma posio na crtica italiana

  • 10

    contempornea, a partir de rupturas tericas tecidas com os fios do tempo para

    pensar o espao poltico e esttico.

    Para tanto foram montados quatro captulos. Parto de noes que lhes so

    caras e as recoloco dentro de sua obra enquanto forma de traar o mtodo com o

    qual se ocupam e estabelecer, assim, o problema central de seu pensamento. O meu

    ponto de partida Giorgio Agamben. Nele vejo que pelo conceito de profanao pe

    lado a lado categorias que, dentro da tradio filosfica ocidental, eram pensadas

    em esferas separadas, por esse mesmo motivo, ele conduzir a tese na medida em

    permitir que o toque se configure no como confronto, mas sim como algo que

    afeta. De Virno, estabeleo que atravs da ambivalncia ele se v dentro da poca

    que o formou como militante, o passado, mas tambm inserido naquela em que

    est, o presente. No momento em que a ambivalncia rompe com o tempo no mais

    possvel, ela explica a prpria condio do espao de atuao desse novo tempo do

    pensamento, que sai das ruas para entrar na academia. De Cacciari, percebo que

    pelo nomos ele atua na esfera filosfica e poltica lendo o espao do pensamento

    ocidental, entenda-se europeu, diante dos conflitos e dos confrontos religiosos e

    polticos, que cada tempo instaura. De Rella, atesto que pelo confim ele monta as

    figuras do tempo, que transitam na soleira da literatura. Por esse motivo Rella

    tambm fechar a tese, pois pela considerao benjaminiana permite, ao final,

    dizermos, estamos no tempo das figuras.

    Passos que opto em percorrer no exatamente atravs das obras acabadas

    mas pelos esparsos, considerando que por eles possvel observar o movimento das

    elaboraes tericas: os encontros, as parcerias, os cortes, os acrscimos, os

    apagamentos, os abandonos, as recorrncias, os prolongamentos, os destaques, as

    associaes; eles nos do a dimenso da vida fragmentria. Os esparsos formam o

    arquivo, que apresento ao final na forma de Apndice. Arquivo, que como pressupe

    Michel Foucault2 o domnio das coisas ditas, cuja anlise tarefa da arqueologia.

    Assim a partir do fichamento dos 150 artigos, que funcionam como um corpus

    inicial, organizados de forma a recortar os fragmentos em que conceitos e autores-

    chave para a pesquisa aparecem, alm, claro, de anotaes e possveis relaes

    entre eles, permitiriam ler arqueologicamente .

    Anterior ao Arquivo, o leitor encontrar as Referncias e a Bibliografia.

    Esta ltima organizada da seguinte forma: dos quatro autores centrais na tese, listo

    2 Cf. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Petrpolis: Vozes; Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1986. p.173.

  • 11

    as publicaes em livros, as contribuies em peridicos e em obras, as

    organizaes de edies, as tradues.

    Essa pesquisa teve seu germe em 2003, quando assisti a disciplina O

    retorno do real e as polticas do presente, oferecido pelo professor Ral Antelo, no

    programa de ps-graduao em Literatura UFSC. Foi neste curso que entrei em

    contato com as primeiras leituras de Paolo Virno, em especial Il ricordo del presente.

    Chamava-me ateno como Virno, com toda sua trajetria de militncia poltica nos

    anos 1960 e 1970, dava conta, anos depois, de pensar a histria, o tempo,

    renovando, desta forma, a tradio da esquerda. Virno potencializava o perodo que

    passei pesquisando revistas, no Ncleo de Estudos Literrios e Culturais - NELIC,

    que resultou em dissertao de mestrado. Revistas, que nas dcadas de 1970 e

    1980 tinham um cunho poltico-cultural. Interessou-me saber por que isso

    acontecia na Itlia e que outros nomes havia, que trabalhassem com as mesmas

    articulaes ou em contraponto a elas. Foi nesse momento que parti para a leitura

    de outros italianos e cheguei aos nomes em questo. Com eles uma presena

    comum: as concepes de benjamininas de tempo, histria e linguagem, como

    tambm as divergncias entre as consideraes de poder e poltica, tal como

    elaboradas por Foucault. Tinha ali, um primeiro indcio de que poltica e tempo

    eram centrais para o projeto e que a partir delas era possvel ler as soleiras da

    literatura. O projeto de pesquisa foi se alargando; no incio de 2005, realizei uma

    pesquisa bibliogrfica nas bibliotecas italianas e ingressei no curso de ps-

    graduao com a pesquisa que agora aqui apresentada.

  • 12

    2 A leitura como profanao

    Em um certo sentido os meus livros so na verdade um nico livro, que, por sua vez, somente uma espcie de prlogo a um livro nunca escrito e inescrevvel.3

    Giorgio Agamben, Una Idea de Giorgio

    Agamben

    Na biblioteca havia todos os livros possveis e imaginveis. Isto , todos os que foram escritos e tambm os que poderiam ter sido escritos. Como se tratava evidentemente de uma biblioteca do outro mundo, o bibliotecrio, que nunca era incomodado, teve tempo de ler toda a coleo, como tambm pde exprimir valores de mrito, proceder a oportunas comparaes e fazer escolhas. At mesmo conseguiu indicar, entre todos, o livro que melhor narrasse como estavam as coisas. Aqui embaixo, naturalmente, neste mundo.

    Sergio Givone, Il bibliotecario di Leibniz

    2.1Categorias italianas

    Em 1996 Giorgio Agamben rene em Categorie italiane uma srie de textos

    publicados de maneira esparsa durante as duas dcadas anteriores. Com o estudo

    da potica como fio condutor, o livro a proliferao de um projeto inacabado para

    uma revista, que, sem ttulo, tinha em uma das sees o propsito de identificar,

    atravs de uma srie de conceitos polarmente conjugados, nada menos que as

    3 Todas as citaes em lngua estrangeira presentes nesta tese foram por mim traduzidas. As referncias permanecem na lngua original.

  • 13

    estruturas categoriais da cultura italiana4. Era entre 1974, 1976, Agamben mais

    dois amigos/escritores italianos, talo Calvino e Claudio Rugafiori, encontravam-se

    em Paris, e durante as freqentes reunies e discusses chegaram a uma lista de

    categorias: Rugafiori defendia a idia de arquitetura/vagueza5, como aquilo que

    possui o domnio da ordem matemtico-arquitetnica junto com a percepo da

    beleza como coisa vaga; Calvino velocidade/leveza; Agamben tragdia/comdia,

    direito/criatura, biografia/fbula.

    No final daquela mesma dcada, os amigos voltam a uma Itlia que, ao

    contrrio das definies programticas que buscavam, exigia resistncia e xodo.

    No entanto, o projeto inicial se expandiu, em Calvino nas Lezioni americane, em

    especial em Legereza6, em Agamben, como j foi dito, em Categorie italiane, e

    antes disso no Programma per una rivista7, publicado em Infanzia e storia, livro

    por sinal tambm dedicado Rugafiori, que, se no colocou em prtica suas

    categorias, as viu desenvolvidas, por Agamben, em La fine del poema8 numa

    homenagem ao poeta Dragonetti.

    4 AGAMBEN, Giorgio. Premessa. Categorie italiane studi di poetica. Veneza: Marslio, 1996, p.VII.5 Italo Calvino, em Seis propostas para o prximo milnio [Traduo de Ivo Barroso, So Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.73], para sustentar o argumento da exatido o inverte e fala do vago, vagueza: Posso, pois, definir tambm negativamente o valor que me proponho defender. Resta ver se com argumentos igualmente convincentes no se possa tambm defender a tese contrria. Por exemplo, Giacomo Leopardi sustentava que a linguagem ser tanto mais potica quanto mais vaga e imprecisa for. (Quero observar de passagem que o italiano, tanto quanto sei, a nica lngua em que vago significa tambm gracioso, atraente; partindo do significado original (wandering), a palavra vago traz consigo uma idia de movimento e mutabilidade, que se associa em italiano tanto ao incerto e ao indefinido quanto graa e ao agradvel.). 6 CALVINO, Op. cit. Vale lembrar que a sexta, consistncia, nunca concluda, faria referncia a Bartleby, de Herman Melville. Agamben comentar o texto do amigo ainda em 1986, em Quatro glosse a Kafka[Rivista di estetica, Torino: Rosenberg & Sellier, ano XXVI, n.22, 1986, p.40-41]:A ltima vez que vi Italo Calvino foi para falar da primeira conferncia que estava preparando para a universidade de Harvard, a qual havia me dado para ler em uma verso provisria. O tema da conferncia era a leveza. Ela se iniciava, se bem me lembro, com o verso de Cavalcanti (que lhe era importante e do qual falamos tantas vezes): e bianca neve scender senza venti e terminava com a imagem kafkiana do cavaleiro do balde. Sobre este ltimo terminou por concentrar-se o nosso discurso. Esta meditao que nasce da conversa com Italo e que procuro prolongar lhe dedico. Mas que a sua voz que falte resposta faa para sempre deste texto, alm da sua provisria inconcluso, um torso e um fragmento.7 AGAMBEN, Giorgio. Programma per uma rivista. Infanzia e storia. Distruzione dellesperienza e origine della storia. 2ed [1 ed. 1978]. Torino: Einaudi, 2001, p.143-150. [Traduo brasileira: Infncia e histria: Destruio da experincia e origem da histria. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p159-168.]8AGAMBEN, Giorgio. La fine del poema. Macerata: Quodlibet, 1995. [Ed. Limitada de 600 cpias numeradas. Texto republicado em Categorie italiane no mesmo ano].

  • 14

    Pela maneira9 como esto colocados esses dois momentos da escritura das

    categorias em Agamben, percebe-se a potncia de um programa, no primeiro, que se

    potencializa na habilidade de uma idia, no segundo. uma potncia que se

    potencializa, no necessariamente uma potncia que se transforma em ato, mas um

    ato que se potencializa. Para chegarmos a esse ponto, nos interessa, antes, mostrar

    como so montadas essas categorias e do que so carregadas, para, em seguida,

    entender o porqu ler por categorias permite construir uma crtica ao mesmo tempo

    do possvel e do impossvel; permite uma leitura como profanao.

    Agamben10, alm de sustentar que com os autores que ama, mais que imit-

    los, repeti-los, procura encontrar o ponto no qual possam ser desenvolvidos,

    levados a, continuados, compartilha a idia do amigo Deleuze11 de que os conceitos

    precisam ser remanejados para que possam dar conta dos novos problemas que

    surgem. No somente Agamben se assumir desta forma, outros assim o

    denominaro. Daniel Link12, ao escrever a sua carta ao pai, dir que Agamben

    continuar os mapas de Michel Foucault, definindo as biopolticas a partir das

    insinuaes foucaultianas. Alm de levar adiante os pontos no tocados pelos

    autores que ama, poderamos tambm insinuar que o trabalho de Agamben s

    possvel pela amizade, por uma poltica da amizade, como sugere Derrida13, uma

    amizade pela philia, como ele assume em Lamico14, uma amizade que no caminha

    para o comum, para a comunidade, para o grupo. Nessa lista de amigos, estariam:

    Elza Morante, Pierre Klossovski, Gilles Deleuze, Jean-Luc Nancy e os j

    mencionados, talo Calvino e Cludio Rugafiori.

    Em relao ao programa para uma revista, no podemos esquecer que

    Walter Benjamin, ainda na dcada de 1920, havia programado a Angelus Novus,

    como crtica concepo de um tempo homogneo e linear pela imagem dos anjos

    talmdicos, os quais segundo a leitura benjaminiana de Gagnebin so o indcio de

    um outro tempo que o das comemoraes; eles introduzem, na cronologia linear e

    9 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Maneries. In: La comunita che viene. Torino: Bollati Boringhieri, 2001, p.28. 10 AGAMBEN, Giorgio. Un'idea di Giorgio Agamben. Entrevista concedida a Adriano Sofri,Reporter, 10 nov. 1985, p. 3233. Disponvel em Acesso em 20 jun.2007.11 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix. O que um conceito? In: O que a filosofia? Traduo de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muoz. So Paulo: Editora 34, 1992 [Coleo Trans].12 Cf. LINK, Daniel. Carta ao pai. In: Como se l e outras intervenes crticas. Trad. Jorge Wolff. Chapec SC: Argos, 2002, p.52.13Cf. DERRIDA, Jacques. Por uma poltica da amizade. Coimbra Portugal:Campo das Letras, 2003.14 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Lamico. Roma: Nottetempo, 2007.

  • 15

    morosa que costumamos chamar de histria, uma cesura imperceptvel mas que

    transforma esse continuum histrico, to ocupado a se perpetuar a si mesmo15.

    Se compararmos a idia de Benjamin para a revista com as colocaes de

    Agamben no programa, veremos que, inicialmente, os projetos tm a mesma

    preocupao. No entanto, mais que compar-los, aproxim-los, interessa perceber

    como, dizendo-se um continuador do pensamento de Benjamin, de Foucault e de

    tantos outros, Agamben cria um mtodo prprio, o qual permite que outros tentem

    encontrar nesse mtodo pontos que possibilitem desenvolv-lo, lev-lo a, continu-

    lo, como uma poltica do afeto, ou seja, como aquilo que tocado, afeta. Nessa

    poltica est em questo a possibilidade e a impossibilidade do toque, cujo gesto

    no anuncia a insero de um oposto, um inimigo, anuncia um eu e um ele

    reflexivos que se encontram numa soleira, entre idas e voltas, como indcios de

    profanao.

    Voltando ao programa, o ponto de vista que a revista deseja adotar, diz

    Agamben:

    [...] , com efeito, to radical e originalmente histrico que ela pode facilmente renunciar a qualquer perspectiva cronolgica e incluir, alis, entre os seus prprios deveres, uma destruio da historiografia literria: o lugar que ela escolhe como morada vital no nem uma continuidade nem um novo incio, mas uma interrupo e uma quebra, e a experincia desta quebra como evento histrico originrio que constitui precisamente o fundamento de sua atualidade.16

    Uma quebra, ou cesura, que na sociedade moderna se produziu entre o

    patrimnio cultural e a sua transmisso, entre a verdade e a transmissibilidade,

    entre a escritura e a autoridade. Entretanto, essa mesma cultura tem dificuldades

    para entender a quebra enquanto efeito do que ela (cultura) produziu. Somente o

    encontro com categorias de outras culturas pode tornar visvel essa fratura

    irreparvel, o que supe Agamben. Dentre elas esto as categorias talmdicas de

    Halaca (a Lei em si, a verdade separada de toda conscincia mtica) e Agadah

    (isto , a verdade na sua consistncia emocional, na sua traibilidade), ou ainda

    as categorias rabes de sharat e haqqat (a lei em sua literalidade e em seu sentido

    espiritual), como tambm as categorias de teor coisal e teor de verdade, cuja

    15 GAGNEBIN, Jeanne Marie. O hino, a brisa e a tempestade: dos anjos em Walter Benjamin. In: Sete aulas sobre linguagem, memria e histria. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.125. 16 AGAMBEN, Giorgio. Infncia e histria: Destruio da experincia e origem da histria. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p.161.

  • 16

    unidade originria e cuja separao no decorrer do tempo caracterizam, segundo

    Benjamin, a essncia e a historicidade da obra de arte17.

    Assim, Agamben sugere que, no momento que tais categorias so colocadas

    lado a lado, no se tem a nem o resultado de uma equao dialtica, nem a aporia

    do contraste, do choque, tem-se a instaurao de um lugar vazio, de um agio, no

    qual possvel para qualquer um mover-se livremente, em uma constelao

    semntica cuja proximidade espacial confina com o tempo oportuno (a-agio, ter

    agio) e a comodidade com a justa relao18, um lugar que o da revista dentro das

    estruturas da cultura italiana. Categorias que, ao colocarem em cheque a tradio

    ocidental pela insero das orientais, produzem efeito na cultura italiana. Efeito

    que se torna a tarefa da revista: no se basear na destruio da tradio, mas na

    destruio da destruio.

    E somente em uma tal destruio que, como o projeto arquitetnico de uma casa em chamas, podero tornar-se visveis as estruturas categoriais da cultura italiana. A escolha e a renncia tragdia, o domnio do elemento arquitetnico e uma sensibilidade to inerme diante da beleza que no se consegue aferr-la exceto na vagueza, a preeminncia do Direito unida a uma concepo criatural da inocncia humana, a precoce ateno fbula como mundo enfeitiado da culpa e o resgate cristo deste mundo na miniatura histrica do prespio, o interesse pela historiografia junto a uma concepo da vida humana como fbula, estas so apenas algumas das categorias em cuja tenso antinmica se sustenta o fenmeno italiano.19

    A base do projeto agambeniano para a revista centra-se na filologia enquanto

    rgo que, retirado de uma concepo unicamente acadmica e imprescindvel

    para a educao literria, possibilita a destruio da destruio. Na concepo de

    Agamben, a cultura ocidental sempre classificou a filologia como cincia rigorosa,

    no entanto, cada vez mais, ela se afasta da materialidade dos textos para

    reivindicar a emendatio e a coniectura, que, por sua vez, ligam-se Halaca e

    Agadah entre verdade e transmisso, entre teor coisal e teor de verdade a fim de

    atestar a funo de abolir a defasagem entre coisa a transmitir e ato da

    transmisso, entre escritura e autoridade20. Alm do programa para a revista ser

    um exemplo - ou seja, um objeto nem particular, nem universal, mas singular que,

    17 Idem, ibidem, p.161-162.18 AGAMBEN, Giorgio. La comunit che viene. Turim: Bollati Boringhieri, 2001, p.24-25.19 AGAMBEN, Op. cit., 2005, p.163-164.20 Idem, ibidem, p.165.

  • 17

    por assim dizer, se deixa ver como tal, mostra a sua singularidade21 - de como a

    filologia tem ainda papel a desempenhar, Agamben lembra, em 2006, que ela

    essencialmente contraditria: a filologia, por exemplo se se propem edio de

    um texto antigo, deveria restaurar o texto assim com era, mas para fazer isto deve

    recorrer a prticas como a suposio, que so prticas quase divinatrias22.

    nesse momento que filologia e mito se tocam. Embora no mencione

    explicitamente no programa, evidente que, alm das indagaes benjaminianas

    sobre os anjos talmdicos, Agamben tivesse conhecimento do trabalho do, no

    menos benjaminiano, Furio Jesi sobre o mito23. s lembrar da leitura, em 1974,

    da poesia de San Juan de La Cruz24, nela Agamben coloca Jesi para justificar a

    entrada de Bachofen: Os smbolos, segundo a justa expresso de Bachofen,

    repousam em si mesmos, saturados e cheios de nada, e no reenviam a alguma

    coisa escondida. Em uma nota de rodap, explica que tal considerao retirada

    de Jesi: a propsito desta frase de Bachofen e sobre o smbolo em geral se

    observam as preciosas observaes de F. Jesi, Simbolo e silenzio (recolhido em

    Letteratura e mito, Torino, 1968). Mas ser em trabalhos posteriores, como Il

    talismano di Furio Jesi25 e Sullimpossibilit di dire Io26, que Agamben deixar

    claro a importncia do menino prodgio na elaborao das suas consideraes

    sobre filologia e poesia.

    Em 1973, o mais inteligente estudioso italiano da mitologia e cincia da

    religio, a personalidade original, com um trabalho impossvel de se adequar dentro

    da instituio acadmica, nas palavras de Agamben27, publica O mito, livro no qual

    se pergunta como ser possvel atingir o mito atravs da cincia e da filosofia, se a

    investigao tem de ficar limitada histria e encontra sempre detrs de uma

    mitologia, uma nova mitologia? Este livro e tantos outros so referenciados por

    Agamben, que v em Jesi uma singularidade no estudo de

    mitologia/histria/filologia, a partir do conceito de mquina mitolgica, ou seja, de

    21 AGAMBEN, Op. cit., 2001, p.14.22 AGAMBEN, Giorgio. I ricordi per favore no. Entrevista concedida a Roberto Andreotti e Federico De Melis. Alias Il Manifesto, 09 set. 2006, ano 9, n.35 (420), p.1-5; 8. Disponvel em Acesso em 20 jun.2007.23 FURIO, Jesi. O mito. Trad. de Lemos de Azevedo. Portugal: Editorial Presena / Brasil: Martins Fontes, 1977. A edio italiana de 1973. 24 AGAMBEN, Giorgio. La notte oscura di Juan de la Cruz. In: CRUZ, San Juan de la. Poesie. Trad. Giorgio Agamben.Torino: Einaudi, 1974, p.V-XIII25 AGAMBEN, Giorgio. Il talismano di Furio Jesi. In: JESI, Furio. Lettura del Bateau ivre di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996, p.5-8.26 AGAMBEN, Giorgio. Sullimpossibilit di dire Io. Cultura tedesca, ano, 5, n.12, Roma: Donzelli Editori, dez. 1999, p. 11-20.27AGAMBEN, Op. cit., 1996, p.5-8.

  • 18

    que a mitologia produz novas mitologias, atravs das mscaras do eu.

    Constatao que para Agamben, em ltima anlise, caminha para a hiptese de que

    a mquina mitolgica nomeia a linguagem, o ser falante do homem28. O seu

    argumento se sustenta a partir da considerao de Jesi de que a imagem mquina

    mitolgica um modelo

    [...] dentro do qual se organizam os resultados, ainda que provisrios, das nossas observaes e da nossa investigao, a mquina mitolgica nasce da articulao orgnica daquilo que constitui o denominador comum como repertrio de elementos destinados a compor um modelo gnoseolgico, corresponde nossa escolha de orientar a investigao para uma imagem histrica global da cincia do mito como cincia do girar em crculo, sempre mesma distncia, em redor de um centro inacessvel: o mito. O horizonte em que se coloca o modelo mquina mitolgica o espao em que medimos esta perene eqidistncia de um centro no acessvel, a respeito do qual no se fica indiferente, sendo-se antes estimulado a estabelecer a relao do girar em crculo.29

    Jesi centra sua crtica sobre o mtodo histrico da filologia alem, que, na

    virada do sculo XIX para o XX, determinante e conseguiu manter sombra a via

    de abordagem da mitologia que, tendo nascido como a cincia histrica do mito da

    crise ps-iluminista da relao com o Antigo, teria resultado na negao da

    legitimidade de qualquer conhecimento historicista do material mitolgico.30 No

    entanto, por que, para Agamben, ao discutir as concepes de filologia e histria,

    mais interessante a crtica de Jesi ao historicismo alemo do que as contestaes

    tradio italiana?

    Em certo sentido, tanto a tradio alem quanto a italiana atribuem as

    funes da filologia histria, porm enquanto a alem, marcada no incio do

    sculo passado pela presena do historicismo, buscava quebrar, romper com essas

    consideraes Walter Benjamin acaba sendo o nome que exemplifica essa

    situao na recepo brasileira - na Itlia, a filologia, sendo um campo para

    histria, teve um processo mais lento em sua desmontagem. Uma concepo muito

    ligada ao historicismo absoluto de Benedetto Croce, que, ao designar o papel do

    fillogo, o reduz a mero ajudante da histria: o bichinho incuo e benfico31, o sapo

    da agricultura francesa; eliminado, como no ardor polmico por vezes se deseja,

    28 AGAMBEN, Giorgio. Sullimpossibilit di dire Io. Cultura tedesca, Roma: Donzelli editori, ano V, n.12, dezembro de 1999, p. 11-20 p.1729 FURIO, Jesi. O mito. Trad. de Lemos de Azevedo. Portugal: Editorial Presena / Brasil: Martins Fontes, 1977. A edio italiana de 1973, p.174.30 Idem., ibidem., p.79.31 CROCE, Benedetto. Teoria e storia della storiografia [1916]. Laterza: Bari, 1948.

  • 19

    faria com que a fertilidade dos campos do esprito no s diminusse como fosse

    mesmo destruda e se tornasse necessrio a urgente re-introduo e acrscimos dos

    coeficientes de cultura32. Ou seja, o sapo, o bichinho incuo, ao cumprir a sua

    tarefa deveria pular da mesa para dar espao ao historiador e sua crtica

    iluminante.33 Essa concepo sobre a filologia como disciplina isolada passou por

    um processo de transformao, que Jesi denominar como mquina mitolgica e

    Agamben como mitologia crtica. Nesse sentido, ao voltarmos ao programa, a

    mquina mitolgica de Jesi encontra lugar na mitologia crtica proposta por

    Agamben:

    A filologia , essencial e historicamente, uma Aufhebung da mitologia, ela sempre um fabulari ex re. A rigidez mtica do fragmento filolgico deve, porm, ser criticamente animada, e o objeto construdo em uma perspectiva cujas linhas convirjam na nossa prpria experincia histrica. esta Aufhebung da filologia que a revista se prope a realizar, de um ponto de vista em que, como mitologia crtica, ela se identifica sem resduos com a poesia. Um dos princpios pragmticos aos quais a revista dever ater-se, retomando a definio de Vico que inclui entre os fillogos poetas, historiadores, oradores, gramticos, ser o de considerar exatamente no mesmo plano disciplinas crtico-filolgicas e poesia. No se trata, naturalmente, de conclamar os poetas a fazerem obras de filologia e os fillogos a escreverem poesia, mas de se colocarem ambos em um lugar em que a fratura da palavra que, na cultura ocidental, divide poesia e filosofia torne-se uma experincia consciente e problemtica, e no uma canhestra remoo. [...] Poder ento tomar forma e consistncia o projeto de uma disciplina da interdisciplinaridade, na qual convirjam, com a poesia, todas as cincias humanas, e cujo fim seja aquela cincia geral do humano que de vrios cantos se anuncia como a tarefa cultural da prxima gerao. o advento de uma tal cincia ainda sem nome que, na sua identidade com a poesia, seja tambm, no sentido que se viu, uma nova e crtica mitologia (crtica, ou seja, livre da sujeio s potncias do Direito e do Destino e restituda histria) que a revista pretende, dentro dos prprios limites, preparar.34

    Jesi e Agamben acreditam com isso que possvel conceber cincia e mito

    como possibilidade da filologia. A mquina mitolgica e a mitologia crtica como

    mtodos para aquilo que a materialidade da vida, o logos, no pode tocar, isto , o

    mito como o lugar da narrao, da fico. No girar em crculo, uma srie de

    32 Luciana Stegagno Picchio em A lio do texto. Filologia e literatura [Lisboa: Edies 70, 1979, p.212] relembra esta considerao de Benedetto Crocce, publicada em Teoria e storia della storiografia [1916. Na 6 edio, revista, Laterza: Bari, 1948, p.23]. 33 PICCHIO, Luciana Stegagno. A lio do texto. Filologia e literatura, Lisboa: Edies 70, 1979, p. 213.34 AGAMBEN, Op. cit., 2005, p.166.

  • 20

    foras, de mscaras do eu gravitariam em torno de uma fratura, na qual mito e

    poesia teriam seu lugar restitudo histria.

    Mas que dispositivo permite o girar em crculos? Ou permite a fratura da

    palavra? Para tocar nessas questes retomemos a pergunta inicial: do que as

    categorias so carregadas? A resposta imediata colocaria em evidncia uma nova

    dupla: o tempo e a histria. Se, por um lado, temos a cesura histrica, percebida

    somente com o confronto com outra tradio, ou a partir da reinveno de uma

    dialtica hegeliana, por outro, a tentativa de uma coeso s pode produzir uma

    nova fratura, como o caso, entre poesia e poltica. A questo no tanto saber se

    a poesia seria ou no relevante com respeito poltica, mas se a poltica estaria

    ainda altura de sua coeso originria com a poesia. Agamben se refere poltica

    ideolgica, a qual produz uma separao com a poesia: Se deseja restituir

    poltica a sua dimenso prpria, a crtica deve primeiramente colocar-se como

    anttese da ideologia, que se instala na dissoluo desta coeso. Concluso de

    Agamben: A falsa conscincia, que, em nosso tempo e por toda parte, impede com

    sua obscura clareza o acesso aos problemas, deve ser precipitada no mesmo abismo

    que procura manter aberto.35

    Ao tempo vazio, contnuo, quantificado e infinito do historicismo vulgar, deve ser oposto o tempo pleno, partido, indivisvel e perfeito da experincia humana concreta; ao tempo cronolgico da pseudo-histria, o tempo cairolgico da histria autntica; ao processo global de uma dialtica que se perdeu no tempo, a interrupo e a imediatez de uma dialtica imvel. A crtica da razo histrica, empreendida por Dilthey na perspectiva de uma fundao crtica das cincias humanas, deve ser levada a termo, no para abandonar a histria, mas para atingir uma nova concepo mais original. A afirmao do conde Yorck: o homem moderno, ou melhor, o homem ps-renascentista, est pronto para a sepultura deve ser integrada a de Valry: a idade do findo mundo comea. Assim, a Aufhebung da filologia passa por uma nova experincia da histria, e o lugar em que a revista se situa coincide com o seu mtodo.36

    Para Toni Negri37, a experincia por que passou a Aufhebung (superao,

    negao, elevao), termo caro ao movimento contnuo da dialtica hegeliana, e sua

    relao com a imanncia (enquanto o transcendental), existentes na opinio

    filosfica ou na historiografia, foi quebrada pelo pensamento da gerao ps-

    segunda guerra, do qual Agamben faz parte. Pensamento que nasceu precisamente 35 Idem, ibidem, p.167.36 Idem, ibidem, p.168.37 NEGRI, Antonio. Giorgio Agamben. The discreet taste of the dialectic. In: CALARCO, Matthew; DE CAROLI, Steven (orgs.).Giorgio Agamben. Sovereignty e life. California: Stanford, 2007.

  • 21

    da negao terica e da recusa tica desta relao.38 Neste sentido, se

    historicamente o mundo foi dividido em categorias distintas, a proposta de

    Agamben implica narrar, pela mitologia crtica, as rachaduras, as quebras, as

    cesuras da histria, como lugar que permite a inveno possvel/impossvel, que at

    esse momento conta com a filologia restituda histria, para criar uma nova

    histria; conta com a materialidade imaterial e o tempo em constante movimento,

    que tornam as categorias instncias lingsticas e histricas39.

    2.1.1 Che cos la poesia?

    No toa que Giorgio Agamben dedica Infanzia e storia a Claudio Rugafiori

    e em Categorie italiane explicita a importncia do poeta, tradutor, editor para

    pensar a cultura italiana. Se anteriormente afirmou-se que em Agamben o

    pensamento ocidental encontra seu lugar ao ser colocado lado a lado com o oriental

    atravs de suas categorias, a amizade com Rugafiori contribuiu para que esta

    considerao ganhasse fora. Quando nos anos 1970 os dois amigos participam do

    projeto de criao de uma revista, Agamben j havia passado pelas leituras

    benjaminianas e se dedicava aos estudos da linguagem e, principalmente, dos

    pensadores medievais40, Rugafiori j estava envolvido com as tradues, para a

    Adelphi, de Alfred Jarry e Ren Daumal, alm de Antonin Artaud, Lao Tsu. De

    Jarry, Agamben tambm compartilha os estudos sobre Il supermaschio41. Neste

    sentido, Jarry com a lgica do absurdo, proposta pela patafsica, e Daumal com a

    dissidncia surrealista, influenciada inclusive por Jarry, e as inseres na filosofia

    oriental so as leituras de Rugafiori que tm indcios na montagem das categorias

    arquitetura/vagueza. A arquitetura como a solidez, a forma, a tradio, o ocidente,

    38 Idem., ibidem., p.110.39AGAMBEN, Giorgio. Lingua e storia. Categorie linguistiche e categorie storiche nel pensiero di Benjamin. In: BELLOI, Lucio; LOTTI, Lorenzina (org.). Walter Benjamin. Tempo storia linguaggio. Roma: Editori Reuniti, 1983, p.65-82. 40 Ao mesmo tempo em que organiza o projeto para a revista, Agamben transfere-se para Londres e trabalha com Frances Yates, estudioso do ocultismo, no Warburg Institute, sobre a relao entre linguagem e vises do conceito medieval de melancolia, pesquisa que resulta em Stanze: La parola e il fantasma nella cultura occidentale, publicado em 1977. Ainda no Instituto, encanta-se com as idias de seu mentor, Aby Warburg, em especial, a cincia sem nome e a lei do bom vizinho. Esse encantamento ser descrito em textos como Aby Warburg e la scienza senza nome, de 1975, ou Nymphae, de 2004.41 Cf. AGAMBEN, Giorgio (Org.). Jarry o la divinit del riso. In: JARRY, Alfred. Il supermaschio. Milo: Bompiani, 1967, p.147-157.

  • 22

    e a vagueza como a mobilidade, a graa, o estranho, o estrangeiro, o oriente, dariam

    ao pensamento a ambivalncia necessria para constituir-se enquanto agio, lugar

    de passagem, soglia.

    Em O fim do poema42, cuja hiptese centra-se nas categorias

    arquitetura/vagueza propostas por Rugafiori, Agamben parte da considerao de

    que o fim do poema um instituto potico que, precisando de uma identidade, far

    com que a poesia viva na hesitao prolongada, nas palavras de Valry, na tenso e

    no contraste entre o som e o sentido, entre a srie semntica e a srie semitica. Tal

    conscincia s ser possvel pelo enjambement, que, junto com os elementos

    rtmicos, icto, cesura e corte, permite distinguir a poesia da prosa. o dispositivo

    que indica pela mtrica o momento exato em que a poesia produz sua identidade

    em relao prosa e, ao mesmo tempo, desloca o centro de uma instituio, como o

    poema, para aquilo que complementa e encerra um verso, o seu fim.

    No entanto essa mesma ciso cria uma outra, a de que a separao entre o

    som e o sentido, a semntica e a semitica, no existe como duas correntes, mas

    como duas intensidades que criam um novo estatuto potico para o fim do poema,

    no qual a prosa e a poesia se encontram atravs da voz (no do pensamento). O

    ttulo o fim do poema j carrega duas intensidades que se tocam: a possibilidade

    enjambement, a identidade da poesia, e a impossibilidade da poesia, que encontra a

    voz da prosa no seu fim. O que Agamben constata uma ciso histrica entre

    poesia e filosofia, ou entre prosa e poesia. No exatamente concorda com ela.

    Coloca-as em jogo e v que se potencializam. Em certo sentido, questiona por que a

    filosofia se separou da poesia e vice-versa.

    Esse o ponto de partida para o fim do poema, que poder ser encontrado

    em todos os institutos da poesia, entretanto Agamben buscar exemplos na Idade

    42 Alm dos textos recolhidos em Categorie italiane, Agamben dedica-se ao estudo da potica nos trabalhos sobre a jovem alem Ingborg Bachmann, que em 1950 defende tese sobre Heidegger: a apresentao de Quel che ho visto e udito a Roma, para a edio de 2002; e o prefcio da traduo italiana de In cerca di frase vere, de 1989. No prefcio, La notte oscura di Juan de la Cruz, e na traduo de Poesie, em 1974.Na exposio sobre os Immmoriaux (1907), de Victor Segalen, Lorigine e loblio", texto escrito originalmente em francs, para um congresso sobre Victor Segalen, no Muse Guimet de Paris, em novembro de 1978 e publicado na Itlia em Risalire il Nilo mito fiaba allegoria, livro organizado em referncia a Furio Jesi, recm-morto na poca (1983), que, entre os colaboradores, est Massimo Cacciari. Cabe lembrar tambm os trabalhos sobre Furio Jesi, j citados anteriormente nesta pesquisa. No ensaio Kommerell , o del gesto, apresentao de Il poeta e lindicibile, de Max Kommerell, em 1991.

  • 23

    Mdia, atravs das rimas e dos versos dos poemas provenais de Raimbaut

    D'Aurenga e Arnaut Daniel, como tambm em Dante Alighieri (que por sinal incluiu

    Daniel na Divina Comdia)43. Enquanto o verso compreendido como o ser que

    reside nesse cisma, ser feito de murs et paliz, como queria Brunetto Latini, ou tre

    de suspens, segundo as palavras de Mallarm44, a rima na lrica provenal,

    tambm chamada de no-relacionada [irrelata], assinala um

    [...] antagonismo entre som e sentido em virtude de no-correspondncia entre uma homofonia e uma significao, aqui a rima, faltando onde era esperada, deixa as duas sries por um timo interferirem numa aparncia de coincidncia. Digo aparncia, j que, se verdade que o seio da arte parece aqui romper o seu encerramento mtrico, acenando para o seio do sentido, a rima no-relacionada remete porm a um rhyme-fellow [rima relacionada] na estrofe seguinte, e portanto no faz mais que deslocar a estrutura mtrica para um nvel metaestrfico. Por isso, nas mos de Arnaut, ela se desenvolve quase que naturalmente como palavra-rima, a engendrar o admirvel mecanismo da sextina. Pois a palavra-rima sobretudo um ponto de indeterminabilidade entre um elemento por excelncia assemntico (a homofonia) e um elemento por excelncia semntico (a palavra). A sextina a forma potica que eleva a rima no-relacionada ao estatuto de supremo cnone composicional e procura, por assim dizer, incorporar o elemento do som no prprio seio do sentido.45

    Enquanto pelos poemas de Daniel e Dante a constatao da ciso

    evidenciada, colocando o fim do poema, como ltima estrutura formal perceptvel

    de um texto potico46, Raimbaut D'Aurenga entra como possibilidade retrica para

    problematizar que se o verso se define precisamente atravs da possibilidade do

    enjambement, segue-se da que o ltimo verso de um poema no um verso. Quer

    dizer isto que o ltimo verso se transfunde em prosa?47 A pergunta fica sem

    resposta, entretanto no poema No sai que ses de Raimbaut D'Aurenga, o fim do

    poema marca um gesto diferenciado, h ali uma indeterminao entre prosa e

    poesia.

    Desta forma, como no produzir aqui uma nova ciso ao constatar que o

    ltimo verso, no verso, mas tambm no prosa? H o anncio de que o poema

    s poema quando a prosa o coloca em suspenso, e pressupe, por sua vez, uma

    43 Augusto de Campos, em Inveno [So Paulo: Editora Arx, 2003], explora as ligaes entre os poetas provenais, Raimbaut D'Aurenga e Arnaut Daniel, e os poetas italianos, Dante Alighieri e Guido Cavalcanti.44 Utilizo a traduo brasileira, nas citaes: AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema, trad. de Srgio Alcides. Cacto, n.1, ago. 2002, p.143.45 Idem, ibidem, 144.46 Idem, ibidem, 144.47 Idem, ibidem, 145.

  • 24

    crise, a crise de vers, diria Mallarm, no sculo XIX, para no dizer uma crise de

    nerfs, cuja homofonia dilacera o poema e faz surgir a uma vida, o verso em sua

    singularidade:

    O verso, acredito, esperou com deferncia que o gigante que o identificava sua mo tenaz e sempre mais firme de ferreiro, desertasse, para, ento ele mesmo, romper-se. Toda a lngua, adestrada pela mtrica a recobrir seus talhos vitais, evade-se, segundo uma livre disjuno em milhares de elementos simples; e, indicarei, passando a assemelhar-se multiplicidade dos gritos de uma orquestrao que permanece verbal.48

    Mallarm prev, assim, como um profeta, como um Zarathustra, que o gesto

    da mtrica ao desertar-se do poema, ao abandon-lo, deixa espao para este

    assumir-se como instituio prpria, como instituio verbal. A mesma que

    Agamben pe em evidncia ao jogar o foco de luz sobre o enjambement. ele que

    desestabiliza a sintaxe, o ritmo, para dar espao a crise de vers e no a crise du

    vers. Mallarm como Agamben no fala em crise do verso, mas sim em crise de

    verso. E a opo preposicional no insignificante, ela detona uma condio do

    verso, que, por sua vez, faz pensar em uma condio para a poesia. Nessa condio,

    a poesia no passa por uma crise, no h nela uma ruptura histrica, h sim, como

    prefere analisar Marcos Siscar, uma irritao do verso, dentro do verso, e a

    propsito dele.49 Ou seja: Crise de verso [...] a situao do verso irritado,

    enervado, do verso em estado crtico. uma funo fundamental do prprio verso

    que, num determinado momento, tem sua histria abalada internamente.50

    2.1.2 Soleira - Galxias

    A partir desta instituio verbal chamada poema, abrimos um parntese para

    o caso brasileiro, a fim de perceber como o modernismo e outras instituies

    poticas inseriram uma crise de verso na poesia. Manuel Bandeira em Poesia e

    48 MALLARM, Stphane. Crise do verso, trad. de Ana de Alencar. Inimigo rumor, n.20, So Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008, p.151.49 SISCAR, Marcos. Poetas beira de uma crise de versos. Disponvel em Acesso em: 20 mai 2009. Conferncia proferida no Rio de Janeiro, novembro de 2007, durante o Seminrio Internacional de Poesia Contempornea: identidades e subjetividades em devir, organizado por Clia Pedrosa e Ida Alves.50 Idem, ibidem, s/p.

  • 25

    verso51, em 1954, tomando os manuais de Bilac e Guimares Passos, encontra em

    uma nota a explicao do francs Quitard que lhe parece convincente para

    determinar os lugares da poesia e o da prosa:

    A etimologia latina das palavras prosa e verso claramente indica a diferena essencial da sua significao: prosa vem do adjetivo latino prosa (subentendendo-se o substantivo oratio, discurso, orao) oratio prosa, discurso contnuo, seguido, e respeitando a ordem gramatical direta; Verso derivado de versus, do verbo vertere, tornar ou voltar, - porque, uma vez esgotado um certo nmero de slabas, a orao se interrompe e volta de novo ao ponto de partida, a fim de comear outra evoluo silbica.52

    Neste sentido, teramos a o contnuo progressivo na prosa e a volta

    constante na poesia, uma volta que implica tambm oposio, embate, contraste,

    cujo termo versus vai encontrar na lngua latina53 a sua significao, como tambm

    verso carrega em si a noo de virar54, a virada para o outro lado, o olhar curioso

    que vira a pgina, que vira o verso e que ao voltar rapidamente encontra o reverso.

    Todas essas possibilidades que a etimologia da palavra oferece desguam num

    mesmo ponto: o verso existe na condio de se voltar, tanto porque uma ao

    reflexiva em que o poema abandona o externo e se assume enquanto ser, sujeito,

    quanto porque um gesto de retorno a um lugar j antes visitado, porm este lugar

    habitado, por isso a volta tambm sempre um encontro com o outro. Desta

    forma, os versos livres so abandonados pela mtrica e sustentados por esse ltimo

    sinal exterior, como diz Bandeira, que a volta ao ponto de partida, margem

    esquerda da folha de papel.55

    Alm das definies de Bandeira, tomemos alguns versos de Galxias de

    Haroldo de Campos, que, alm de referenciar os mesmos nomes que Agamben cita

    para a compreenso do fim do poema - Valry como definio de que poema vive

    na hesitao prolongada entre som e sentido, Dante e Daniel pelo uso do

    enjambement, pelo uso dos versos e das rimas, dAurenga pela indeterminao

    51 BANDEIRA, Manuel. Poesia e verso. Seleta de prosa e verso. Org. Emanuel de Moraes. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Ed. 1975. Sob o ttulo Definies de poesia, uma primeira verso deste texto foi publicada em 1947, no suplemento Pensamento da Amrica Latina, do jornal A manh. Na ocasio o texto era um fragmento de uma conferncia realizada, naquele mesmo ano, na Universidade Catlica. O texto aparece depois em De poetas e de poesia, em 1954.52 Idem, ibidem, p.3253 CRETELA JUNIOR, Jos; CINTRA, Geraldo de Uchoa. Verso. In: Dicionrio latino-portugus. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p.1332.54 Idem, ibidem, p. 1332.55 BANDEIRA, Manuel. Poesia e verso. Seleta de prosa e verso. Org. Emanuel de Moraes. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Ed. 1975, p.38.

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    entre prosa e poesia e Mallarm com a crise de vers - dedica-se a fazer versos

    livres, transcriando essa mesma tradio. Pensadas como uma viagem, as Galxias

    comearam a ser escritas em 1963 e chegaram ao seu fim em 1976. Versos sem

    ttulo e sem pgina que colocam o leitor como guia dessa viagem. Abaixo teremos

    dois trechos, um retirado da primeira folha do livro e um outro da ltima:

    e comeo aqui e meo aqui este comeo e recomeo e remeo e arremessoe aqui me meo quando se vive sob a espcie da viagem o que importano a viagem mas o comeo da por isso meo por isso comeo escrevermil pginas escrever milumapginas para acabar com a escritura para comear com a escritura para acabarcomear com a escritura por issorecomeo por isso arremeo por isso teo escrever sobre escrever o futuro do escrever sobescrevo sobescravo em milumanoites miluma-pginas ou uma pgina em uma noite que o mesmo noites e pginasmesmam ensimesmam onde o fim o como onde escrever sobre o escrever no escrever sobre no escrever e por isso comeo descomeo pelodescomo desconheo e me teo um livro onde tudo seja fortuito eforoso um livro onde tudo seja no esteja seja um umbigodomundolivroum umbigodomundolivro um livro de viagem onde a viagem seja o livroo ser livro a viagem por isso comeo pois a viagem o comeoe volto e revolto pois na volta recomeo reconheo remeo um livro[...]56

    fecho encerro reverbero aqui me fino aqui me zero no canto no contono quero anoiteo desprimavero me libro enfim neste livro neste vome revo mosca e aranha mina e minrio corda acorde psaltrio musa nomaisnomais que destempero joguei limpo joguei a srio nesta sdeme desaltero me descomeo me encerro no fim do mundo o livro fina ofundo o fim o livro a sina no fica trao nem seqela jogo de dama oude amarela cabracega jogo da velha o livro acaba o mundo fina o amordespluma e tremulina a mo se move a mesa vira verdade o mesmo quementira fico fiao tesoura e lira que a mente toda se ensafira emadriperla e desatina cantando o pssaro por dentro por onde o canto

    dele afina a sua lmina mais lngua enquanto a lngua mais laminaaqui me largo foz e voz ponto sem n contrapelo onde cantei j nocanto onde vero fao inverno viagem tornaviagem passandalm [...]57

    Ao interrompermos a viagem verbal e inserirmos as reticncias anunciamos

    a continuao do poema, h algo que vem que s percebido pela ciso do verso, no

    mesmo gesto, porm, delimitamos um fim no momento exato em que o poema

    voltaria a ganhar fora, no momento, no s que ele volta ao verso que o antecede,

    como tambm ao verso inicial da pgina. Coloca-se a uma suspenso sinttica

    para dar fora corporificao da palavra. Em Galxias esse corte j elemento

    composicional do poema, j est contido na viagem verbal que carrega em si um

    fim, mas no se encerra, uma parada obrigatria para um recomeo (e comeo

    56 CAMPOS, Haroldo de. Galxias. So Paulo: Editora 34, 2004.57 Idem, ibidem.

  • 27

    aqui e meo aqui este comeo e recomeo e remeo e arremesso, primeiro verso; e

    volto e revolto pois na volta recomeo reconheo remeo um livro, dcimo quinto

    verso, da primeira folha no somente no verso, mas em cada palavra, em cada

    morfologia (viagem tornaviagem passandalm, dcimo terceiro verso, da primeira

    folha). A palavra em Galxias esse universo constelacional que carrega em si os

    sons, os sentidos, as formas de vida, ela o ourio, diriam Jacques Derrida e

    Mrio de Andrade. Assim, o poema centra-se na palavra no no verso, centra-se

    nas linhas de fora entre morfologia e sintaxe, entre som e forma, no entre

    semntica e semitica, entre som e sentido. Em resumo, para Agamben a fora est

    na sintaxe desarticulada pela lei da mtrica, para Haroldo a fora est na forma de

    vida articuladamente desarticulada da palavra. Ral Antelo argumenta que no

    universo galctico, portanto, a palavra esse cadavrescrito - faz assim sintoma: ela

    cai e precipita, em suma, um saber a respeito de corpos e linguagens. Galxias

    justamente isso: uma interferncia nos circuitos corriqueiros de subjetivao. Um

    dispositivo. 58

    Na viagem etnogrfica e verbal de O Turista aprendiz, Mrio de Andrade

    tambm se depara com o ourio da prosa na flor da poesia: Tempo chegado, o

    boto chofra tambm fora dgua. um ourio espinhento que nem inseto pousa. E

    assim cresce e arredonda, esperando a manh de ser flor.59 O ourio, que acima

    associamos s Galxias e poesia de Mrio de Andrade, tambm apresentado por

    Derrida - que tecera observaes generosas a respeito de Haroldo de Campos60 -

    como resposta para Cos la poesia? 61. Derrida toca num ponto em que a cesura

    pensada por Agamben ganhar fora. Para o pensador franco-argelino a questo

    central est entre poesia e filosofia, ou entre pensamento e filosofia como coisas

    58 ANTELO, Ral. Haroldo de Campos y la armona hermtica. Punto de Vista, n. 90, Buenos Aires, mar. 2008.59 ANDRADE, Mrio de. Vitria-rgia (7 de junho). In: O turista aprendiz. So Paulo: Duas Cidades; Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976, p.86. Texto antecipado pela revista Verde, maio de 1929.60 DERRIDA, Jacques. Cada vez, quer dizer, e no entanto, Haroldo.... Trad. Leda Tenrio da Motta. In: Homenagem a Haroldo de Campos. So Paulo: Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 1996. p. 12-14. Diz Derrida em uma das passagens: E, no entanto, tudo o que pde significar a lei, tambm o desejo, a urgncia mais aventurosa e mais audaciosa para mim, na ordem do pensamento, da escritura, da poesia nica fonte -, no horizonte da literatura e, antes de mais nada, na intimidade da lngua das lnguas, cada vez, tantas lnguas em toda lngua, sei que Haroldo ter tido acesso a ela, como eu antes de mim, melhor que eu. Quer dizer que ele me esperava, no entanto, j, do outro lado, chegado antes de mim, o primeiro, na outra margem (p.12).61 DERRIDA, Jacques. Che cos la poesia? Trad. de Fernando Scheibe. Disponvel em Acesso em: 20 jan. 2008. Che cos la poesia? foi publicado inicialmente na revista italiana Poesia, em 1988, e recolhido, em 1992, no volume Points de suspension. As tradues, independente da lngua, mantm o ttulo original em italiano.

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    distintas. A poesia como o ourio, o ourio de Alice no pas das maravilhas,

    lembrar o mesmo Derrida, o ourio como metfora, imagem, ser, figura, assume-se

    enquanto tal para dizer que se o pensamento do animal, se pensamento houver,

    cabe poesia, eis a uma tese, e disso que a filosofia, por essncia, teve de se

    privar. a diferena entre um saber filosfico e um pensamento potico62.

    Derrida separa, assume a ciso, ponto a partir do qual Agamben comea a

    sua discusso. No necessariamente condena a posio de Derrida, ele a

    impulsiona na direo de pensar a coisa mesma da linguagem, da poesia como um

    instituto que precisa de um outro, novamente poderia se pensar que para o ourio

    se fechar, algo ou algum precisa toc-lo, um dispositivo precisa ser acionado. Para

    Derrida a poesia o animal lanado sobre a rota, absoluto, solitrio, enrolado em

    bola, ao p de si. Ele pode se fazer esmagar, justamente e por isso mesmo, o ourio,

    istrice63. necessrio lembrar que Agamben dedica o texto La cosa stessa, de

    1984, a Derrida, a categoria de origem platnica, ttulo do texto, o objeto em si da

    linguagem, a prpria linguagem, o pensamento64, nos leva a um mestre comum

    entre os dois: Martin Heidegger, mas tambm nos leva a um contraponto: a

    linguagem, a coisa mesma, para Agamben, encontra na lingustica de Benveniste a

    sua base de articulao - a linguagem prpria do sujeito, o ser de enunciao -,

    para Derrida ela encontra sua densidade em Saussure - a linguagem tambm

    externa ao sujeito. No entanto, o que h em comum entre Agamben e Derrida que

    ao se perguntarem o que a poesia (?) eles vem nascer a prosa, vem nascer o

    trao e a signatura. Termos trabalhados por Agamben em Pardes, la scrittura della

    potenza65, de 1990, e Signatura rerum66, de 2008, nos quais discute a presena de

    Derrida nas articulaes do experimentum linguae, na experincia da poesia, na

    experincia da filosofia.

    62 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. Trad. de Fbio Landa. So Paulo: Editora UNESP, 2002, p.22.63 DERRIDA, Jacques. Che cos la poesia? Trad. de Fernando Scheibe. Disponvel em Acesso em: 20 jan. 2008.64 Jean-Luc Nancy dir que no corao do pensamento, h alguma coisa que desafia toda apropriao do pensamento (por exemplo, sua apropriao como conceito, ou como idia, ou inclusive filosofia como meditao ou... como pensamento mesmo). Esta coisa no outra coisa que a imobilidade imanente do fato de que a h coisas. (H mais coisas na terra e no cu, Horcio, do que sonha a vossa filosofia...) A h coisas, e seu a h [il y a] da lugar a esta outra coisa todavia, que o pensamento, o memorial suplementar da coisa imemorial. [NANCY, Jean-Luc. El corazn de las cosas. In: Un pensamiento finito. Trad. de Juan Carlos Moreno Romo. Barcelona: Anthropos Editorial, 2002, p.157.]65 AGAMBEN, Giorgio. Pardes la scrittura della potenza. In: La potenza del pensiero.Vicenza: Neri Pozza, 2005, p.345-363.66 AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum. Sul metodo. Turim: Bollati Boringhieri, 2008.

  • 29

    Voltando ao Fim do poema, Susana Scramim nos esclarece que o livro

    Galxias demonstra que o fim do poema no significa a banalidade da prosa e

    tampouco o excesso de tenso e de pensamento acrescentando, em seguida, e

    menos ainda que a poesia deve-se propriamente filosof-la, conforme Giorgio

    Agamben diz ao parafrasear Wittgenstein. A poesia h que se conhec-la, pois o que

    resta depois do verso a Hybris do mnimo que resta.67 Antes de Agamben chegar

    concluso discutida por Scramim, ele anuncia em O fim do poema que:

    Tudo se complica com o fato de no haver no poema, a pretexto de exatido, duas sries ou duas linhas de fuga em paralelo, mas s uma, percorrida ao mesmo tempo pela corrente semntica e pela corrente semitica; e, entre os dois fluxos, a brusca parada que a mechan potica se aplica to obstinadamente a manter. (O som e o sentido no so duas substncias, mas duas intensidades, dois tnoi da nica substncia lingstica). O poema como o catechon da epstola de Paulo aos Tessalonicenses (II,2, 2-8): algo que freia e retarda o advento do Messias, portanto daquele que, cumprindo o tempo da poesia e unificando os dois ones, destruiria a mquina potica precipitando-a no silncio. Mas qual seria o fim dessa conspirao teolgica sobre a linguagem? Por que tanta obstinao em manter a qualquer custo um contraste capaz de garantir o espao do poema s ao preo de lhe negar qualquer possibilidade de um acordo durvel entre o som e o sentido?68

    Assim para Agamben, o poema um modelo de operao que consiste em

    tornar inoperantes todas as obras humanas e divinas.69

    2.1.3 A senhora pode dizer isto?

    A pergunta levantada por Agamben centra-se na aporia da impossibilidade

    da resposta, a nica possibilidade do poema: carregar-se de silncio no momento

    exato em que a palavra surge, ou ainda carregar-se de palavra quando o

    pensamento a possibilidade que vem. Em resumo, o poema carregado de

    tempo.70 O poema tem a necessidade da aporia para se constituir enquanto tal,

    para se constituir no como identidade potica, no como instituio, mas sim

    67 SCRAMIM, Susana. A exceo e o excesso, Outra travessia, n.05, Florianpolis: Programa de Ps-graduao em Literatura, 2 semestre de 2005, p.174.68 AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema, Op. cit., p.146-147. 69 AGAMBEN, Giorgio. Il regno e la gloria. Per una genealogia teologica delleconomia e del governo. Vicenza: 2007, p. 274.70 AGAMBEN, Giorgio. Che cos il contemporaneo? Roma: Nottetempo, 2008.

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    enquanto articulao latente impregnada de fora, que precisa de um gesto

    lingstico, precisa de um dispositivo, para estar em movimento. A figura do poeta

    a possibilidade do tempo, j que como diz Agamben: O poeta, enquanto

    contemporneo, esta fratura, o que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo

    tempo o sangue que deve emergir dessa ruptura.71

    Mas o que o pensamento? Por que ele est to prximo ao Fim do poema?

    O pensamento que est ligado instaurao do vazio, tambm o elemento que

    freia o impulso mtrico do verso, ele a cesura do verso72, o fim do pensamento e o

    fim do poema possuem uma relao ntima, uma relao em que a linguagem

    encontra e desencontra o seu lugar, uma dimora mvel, que s pode existir pela

    parada, mas que s pode ser habitada pelo movimento. Pensamento no idia,

    concordar Agamben em O fim do pensamento. Desta forma, se num primeiro

    momento a categoria pensamento est ligada s atribuies da filosofia, ela

    encontra no campo da linguagem o seu espao de articulao, no somente como

    um segundo momento, mas como seu agio, ou seja, o lugar no qual pode mover-se.

    A linguagem o ponto de toque entre filosofia e poesia: porque a filosofia como a

    poesia essencialmente uma experincia da linguagem, antes uma experincia da

    linguagem como tal, aquilo que est em questo no homem pelo simples fato de

    falar, o lugar no qual se situa o sujeito que fala deve ser extremamente claro.

    Publicado na Frana em 1982, como suplemento do Nouveau Commerce, O

    fim do pensamento73 carrega na alegoria a concepo da linguagem como

    constituinte do sujeito, numa juno entre semitica e semntica; carrega no tom

    potico para falar de filosofia, o que exemplifica as consideraes finais de O fim da

    poesia, j lembradas aqui por Susana Scramim, quando a partir das palavras de

    Wittgenstein diz que [...]a filosofia deve-se apenas propriamente poet-la [...]

    Quanto poesia, pode-se dizer, ao contrrio, que est ameaada por um excesso de

    tenso e de pensamento. Ou, talvez, parafraseando Wittgenstein, que a a poesia

    deve-se apenas propriamente filosof-la.

    Que pensamento esse que ameaa a poesia? Ao romper o silncio, o homem

    cai, por um lado, na angstia na origem da palavra pensamento est esse estado

    71 Idem, ibidem, p.11.72 AGAMBEN, Giorgio. Idea de la cesura. In: Idea de la prosa. Trad. de Laura Silvani. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1989, p.25. A primeira edio italiana deste livro de 1985.73AGAMBEN, Giorgio. La fine del pensiero. Trad. de Grard Mac. Paris, 1982 [Suplemento n. 53/54 de Noveau Commerce]. Utiliza-se nas citaes a traduo brasileira: O Fim do Pensamento. Trad. de Alberto Pucheu. Terceira Margem, Revista do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Literatura, UFRJ, ano VIII, n.11, 2004.

  • 31

    de mpeto ansioso, que se encontra ainda na expresso familiar stare in pensiero

    (estar atormentado) por outro, possibilita estar suspenso, palavra que tem origem

    no verbo latino pendere, do qual deriva a palavra nas lnguas romnicas.74 Assim a

    angstia e o estar em suspenso levam o homem a buscar a voz na linguagem, uma

    busca que o prprio estado do pensamento. O pensamento no pode se

    concretizar na palavra, por isso o nico estado possvel para a palavra o silncio.

    Ou ainda, se a procura da voz na linguagem o pensamento, este chega ao seu fim

    quando se transforma em palavra. O fim do pensamento se d quando o homem

    transforma-o em palavra na linguagem. Neste sentido, como diz Agamben, a voz

    humana deixa de pertencer ao homem no momento em que se inscreve na letra, da

    que a linguagem seja sempre letra morta, que a linguagem tenha lugar no no

    lugar da voz.

    Com uma ida ao prefcio de Estncias75, teremos algumas noes sobre a

    idia de lugar como no lugar. Respondendo pergunta de Plato (onde est

    capricervo, onde est a esfinge?) Agamben dir: Ainda devemos habituar-nos a

    pensar o lugar no como algo espacial, mas como algo mais originrio que o

    espao; talvez, de acordo com a sugesto de Plato, como pura diferena, a que

    corresponde o poder fazer com que algo que no , de certa maneira seja, e aquilo

    que , por sua vez, de algum modo, no seja. Neste sentido, o lugar o no lugar, e

    o no lugar o lugar. O prprio ttulo do livro, estncias, uma referncia a lugar.

    Coloquialmente como as partes da casa, os quartos, mas dentro da poesia como

    estrofe de uma cano, ou como oitava de uma composio potica.

    A concluso a que chega Agamben em O fim do pensamento a de que a

    linguagem, portanto, a nossa voz, a nossa linguagem. Como tu agora falas eis

    tica. A mesma tica que permite responder pergunta: A senhora pode dizer

    isso? e ouvir a resposta: Sim, eu posso. A tica que a potncia, a Potncia do

    pensamento76, conferncia proferida em Lisboa, 1987, e agrupada na coletnea La

    potenza del pensiero, em 2005. A nica pergunta feita poeta Anna Achmatova77,

    quando buscava, entre tantas mes, notcias de seu filho em frente priso de 74 Idem, ibidem.75 AGAMBEN, Giorgio. Prefcio. In: Estncias A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. de Selvino Jos Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.15. Em italiano h duas edies para o segundo livro de Agamben: uma de 1977 e outra de 2006, ambas pela Einaudi.76 AGAMBEN, Giorgio. A potncia do pensamento. Traduo de Carolina Pizzolo Torquato. Rev. Dep. Psicol.,UFF., Niteri, v.18, n.1, 2006. Disponvel em: . Acesso em: 15 dez. 2006. [Texto extrado da coletnea La potenza del pensiero, 2005]77 Idem, ibidem.

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    Leningrado, por uma das mes que a reconhece como poeta, foi: A senhora pode

    dizer isto? e ela sem saber o porqu responde: Sim, eu posso, coloca em questo,

    pela ao de perguntar, a faculdade, o saber fazer; mas a resposta da poeta no

    responde a esta demanda, responde condio de estar em jogo, como a

    experincia da potncia.

    A potncia nem sempre precisa do ato, dir Agamben, via as consideraes

    de Aristteles, por isso a resposta de Ana, eu posso, vislumbra ao mesmo tempo

    duas situaes: tenho a faculdade para isso, porm posso ou no fazer. Decido sim,

    decido no. Eis a tica, que novamente pe uma ciso. O pensamento carrega a

    possibilidade do poder sim e do poder no. Como a potncia passa ao ato, se toda

    potncia j sempre potncia de no passar ao ato? E como podemos pensar o ato

    da potncia de-no-ser? A resposta direta nos conduz concluso anunciada no

    final de Potncia do pensamento: o pensamento do pensamento, a potncia, a

    doao extrema da potncia a si mesma, a figura completa da potncia do

    pensamento.78

    Sabrina Sedlmayer ao discutir a presena da potncia e do ato aristotlicos

    em Agamben dir que:

    O que Aristteles buscava era tentar entender como o pensamento passa ao ato. No entanto, constata Agamben, essa tabua rasaaristotlica, ou melhor, essa rasura tabulae serviu, sim, para demonstrar como o esprito pura potncia; e a metfora da tbua de escrever sobre a qual nada ainda foi escrito serviu para representar a forma de existir uma pura potncia.Devemos apreender aqui a noo aristotlica de que toda possibilidade tambm potncia do no.79

    Da se entende a resposta da poeta, que ao responder sim, eu posso, coloca

    a possibilidade de outra resposta eu posso no. A poesia, como um Bartleby, a

    potncia condicional do no, do no da prosa, do ourio, dos espinhos da flor, dos

    versos livres, das voltas na margem esquerda da pgina. A potncia da poesia o

    lugar das categorias, que, conforme o movimento dado pelo tempo, carregam em si

    os antagonismos de uma possibilidade: o sim e o no. O momento em que a parada

    acontece o momento da sada do campo da indecibilidade, para usar um termo

    to caro a Derrida, o momento da chegada a uma tica.

    78 Idem, ibidem, p.28.79 SEDLMAYER, Sabrina. Recados de vida, cartas sem destinatrio: Bartleby e Companhia. In: SEDLMAYER, Sabrina; GUIMARES, Csar; OTTE, Georg (orgs.). O comum e a experincia da linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.19.

  • 33

    2.2 O que o dispositivo?

    A necessidade de montar as categorias por duplas polarmente conjugadas

    carrega em si a existncia de um hiato, que ser constantemente colocado prova

    pelo contgio da profanao. A partir de um termo ligado tradio teolgica, que

    implica a condio de estar fora do templo, mas nem por isso longe dele, (pro -

    diante de + fanum- lugar consagrado aos deuses, templo), Agamben v nessa

    condio a maneira de restituir aquilo que era do sacro ou do religioso ao livre uso

    comum dos homens80, ao uso poltico, ou ainda, biopoltico, desativando os

    dispositivos do poder e restituindo os espaos que eles haviam confiscado81. Ou

    seja, a coisa mesma82 que a religio separou pode ser tocada a partir de um

    dispositivo que acione um contato, tornando, desta forma, o dispositivo foucaultiano

    o prprio gesto profanador de Agamben. Isso talvez explique porque o texto Elogio

    da profanao se transforme em outro, O que um dispositivo?.83 Desse modo, o

    conceito de profanao seria [...] um contrapositivo que devolveria ao comum aquilo

    que o sacrifcio havia separado e dividido.84

    Nesse sentido, considerando que na montagem das categorias histricas e

    lingusticas o essencial o tempo, que, ao ser tomado por uma rachadura no fluxo

    contnuo da histria, se v imerso numa soleira, num dentro-fora do prprio evento

    que o constitui, veremos como a profanao se monta nesse mesmo movimento do

    tempo. Desta forma, necessrio pensar o que permeia a profanao, o que permite

    o contagio da teologia e da vida humana no gesto agambeniano? Ou ainda, por que

    80 AGAMBEN, Giorgio. Elogio della profanazione. In: Profanazioni. Roma: Nottetempo, 2005, p.83. Traduo brasileira: Profanaes.Trad. de Selvino Assmann. So Paulo: Boitempo, 2007. 81 Idem, Ibidem, p. 88.82 AGAMBEN, Giorgio. La cosa stessa. In: DALMASSO, Gianfranco (org.). Di-segno: la giustizia nel discorso. Milano: Jaca Book spa, 1984, p.1-12. (Republicado em Potenza del pensiero, em 2005].83 O texto Elogio della profanazione, publicado na Itlia em 2005, junto aos curtos ensaios de Profanazioni [Boitempo, 2007], apresentado quase na ntegra, numa das conferncias proferidas por Giorgio Agamben na sua passagem pelo Brasil em 2005, como Che cos um dispositivo?. Texto traduzido para o portugus e publicado, no ano seguinte, pela revista Outra Travessia. Posterior publicao brasileira, sai na Itlia, em 2006, pela editora Nottetempo o mesmo texto com algumas alteraes, como o mesmo ttulo Che cos um dispositivo?. 84 Idem, ibidem, p.21.

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    aquilo que prprio da imagem do poltico, aquilo que da esttica da tica,

    aquilo que do homem do divino, aquilo que da linguagem do silncio, aquilo

    que de Benjamin de Foucault, aquilo que de Bataille de Schmitt, aquilo que

    de Bergamin de Warburg e vice-versa.

    Em 1987, Agamben publica Bataille e il paradosso della sovranit85. Neste

    texto, discute a herana terica do pensamento de Bataille e a desenvolve em

    direo a uma teoria da comunidade, ou seja, esto em questo Nancy, com La

    communaut desoeuvre, e Blanchot, com La communaut inavouable, para pensar

    uma comunidade negativa, uma comunidade do no-comum. Uma comunit che

    viene a concluso a que chega Agamben. Como diz Antelo:

    La comunit no quer dizer a comunidade e muito menos o comunismo, o comunitarismo. Che viene no quer dizer futura. Quer dizer inoperante e decreativa. Impoltica. Que est sempre chegando no meio de uma coletividade e , justamente, porque nunca acaba de chegar, que ela resiste ao coletivo e at mesmo ao indivduo. Chega ao limite: mais ainda, ela o limite que se de-limita. 86

    Entretanto, a comunidade montada a partir de Bataille-Nancy-Blanchot-

    Agamben ir questionar o pertencer ao no-comum, atravs de conceitos como o da

    soberania. E nesse ponto que o filsofo italiano se ope a Bataille. Reclama que a

    soberania colocada, pelo autor de Exprience intrieure, como experincia do xtase

    no d conta de pens-la como experincia poltica. Para justificar tal afirmativa,

    Agamben ir utilizar pela primeira vez a sua j clssica referncia a Carl Schmitt,

    em relao ao paradoxo da soberania. Mais do que deixar de lado um texto,

    Agamben indica o seu corte em relao a Bataille, inclusive no ttulo de uma das

    partes de Homo sacer I o nome Bataille retirado. L-se somente: O paradoxo da

    85 Giorgio Agamben profere esta fala durante o seminrio sobre Georges Bataille, realizado na Itlia, no incio de 1986 e organizado pelo Centro Cultural francs de Roma, sob a curadoria de Jacqueline Risset com a colaborao de Marina Galleti e Annamaria Laserra. Alm de Agamben tambm participa, entre outros nomes, Georges Didi-Huberman, com Limmagine aperta. O evento resulta na publicao, em 1987, do livro Georges Bataille: il politico e il sacro [AGAMBEN, Giorgio. Bataille e il paradosso della sovranit. In RISSET, Jacqueline. Georges Bataille: il politico e il sacro. Napoli: Liguori, 1987, p.115-119. (Contribuio na terceira parte: Una impresa temeraria: Il Collge de sociologie). Em 2005, o texto foi publicado no Brasil, na revista Outra Travessia, nmero dedicado a Georges Bataille e Giorgio Agamben [Bataille e o paradoxo da soberania. Trad. de Nilcia Valdati. Outra Travessia. Florianpolis, n. 5, 2005, p.91-94.]86 ANTELO, Ral. La comunit che viene. Ontologia da potncia. In: SEDLMAYER, Sabrina; GUIMARES, Csar; OTTE, Georg (Orgs.). O comum e a experincia da linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p.29.

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    soberania. Mais adiante no mesmo livro a explicao do rompimento com o

    pensamento batalliano; justamente uma reelaborao do trabalho de 1987:

    Se mrito de Bataille ter trazido novamente, ainda que inconscientemente, luz o nexo entre vida nua e soberania, a vida para ele permanece inteiramente enfeitiada no crculo ambguo do sacro. Por aquele caminho no era possvel outra coisa alm da repetio, real ou farsesca, do bando soberano e se compreende que Benjamin tenha podido estigmatizar (segundo testemunho de Kossowski) a pesquisa do grupo de Acphale com a frmula peremptria: Vous travaillez pour le fascisme.87

    Agamben questiona, desta forma, como Bataille e seus amigos acfalos no

    perceberam que enquanto eles estavam discutindo o sacro, o xtase, e fazendo

    disso uma maneira de vida, essa mesma vida era colocada em jogo numa guerra

    de corpos atravs da experincia do holocausto, durante a Segunda Guerra

    Mundial. Em Laperto, de 2002, essa constatao fica evidenciada, quando numa

    referncia ao mestre Kjeve e ao aluno Bataille, Agamben sugere que

    O contraste entre Bataille e Kojve concerne exatamente naquele resto que sobrevive morte do homem transformado em animal no fim da histria. O que o aluno que era na verdade cinco anos mais velho que o mestre no podia aceitar sem algum custo era que a arte, o amor, o jogo, como tambm o riso, o xtase, o luxo (que, revestidos de uma aura de excepcionalidade, estivessem no centro das preocupaes da Acphale e, dois anos depois, do Collge de Sociologie), cessassem de ser sobre-humanos, negativos e sacros para serem simplesmente restitudos a prxis animal. 88

    Se, por um lado, Agamben questiona como Bataille abandonou a poltica na

    sua experincia transgressiva, por outro, ele parece no querer dar continuidade

    aos estilhaos de sua prpria relao com o grupo do qual participou ainda nos

    1960, quando era um jovem estudante de direito em Roma, ao menos no que se

    refere a Bataille. Naquela poca participava de encontros com intelectuais, artistas,

    poetas que agitavam as estruturas da cultura italiana, dentre os quais a poeta

    alem Ingeborg Bachmann e o to cheio de denominaes e to inclassificvel Pier

    Paolo Pasolini89. Pela primeira foi apresentado ao pensamento de Heidegger, pelo

    87 AGAMBEN, Giorgio. Limiar. In: Homo sacer I o poder soberano e a vida nua. Traduo de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 120.88 AGAMBEN, Giorgio. Acefalo. In: LAperto. Luomo e lanimale. Turim: Bollati Boringhieri, 2002, p.13-14.89 Na primeira metade da dcada de 60, o jovem Agamben se aproxima de Pier Paolo Pasoloni, Elza Morante, Alberto Moravia, Ingeborg Bachmann. Por conta disso, chega a ser dirigido por Pasolini, no papel do evangelista Felipe, no filme Il Vangelo Secondo Matteo, de

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    segundo, s leituras de Bataille. No entanto, Agamben prefere assumir que, junto

    com Heidegger, Benjamin foi o grande mestre daquela poca; um transformado em

    antdoto para o outro. Na verdade, Bataille torna-se para Agamben o dispositivo que

    coloca em movimento o sacro, a poltica, a biopoltica, a animalidade, ou ainda,

    com o transgressor Bataille que Agamben alimenta a profanao.

    O sacro, a poltica, a biopoltica, a animalidade que afastam, ao mesmo tempo

    em que aproximam Agamben de Bataille, levam a outro texto: *Se. Lassoluto e

    lEreignis`90, publicado em 1982, no mesmo ano de Il linguaggio e la morte, e

    reunido tambm em La potenza del pensiero. Neste texto, o mestre Agamben 1964, o mesmo filme que tem Elza Morante como assistente de direo, quando tambm se encanta por Sandro Penna, poeta admirado por Pasolini, que Agamben analisar em Idea della prosa. Tambm se torna colaborador freqente de Nuovi argomenti, revista dirigida por Pasolini, Morante e Moravia. Alm desta, escreve seus primeiros artigos para outras duas revistas romanas: Futuro e Tempo presente. com esses jovens, intelectuais, poetas, artistas, leitores de Bataille e Heidegger, por exemplo, que Agamben se insere na poesia, na filosofia, no cinema, na literatura. A jovem alem Bachmann, que em 1950 defende tese sobre Heidegger, merece tempos depois homenagem em dois belos textos: a apresentao de Quel che ho visto e udito a Roma, para a edio de 2002; e o prefcio da traduo italiana de In cerca di frase vere, de 1989. Alm do convvio com esses jovens que escolheram Roma para viver, Agamben, nessa mesma poca, comea a circular fora do espao italiano. Inicialmente, entre 1966 e 1968 como aluno de Martin Heidegger, nos seminrios sobre Herclito e Hegel, em Le Thor. Heidegger que descrito da seguinte forma: Em Le Thor, Heidegger realizava seu seminrio em um jardim sob a sombra de umas rvores frondosas. Em algumas ocasies, em troca, saamos do vilarejo, caminhando em direo a Thouzon ou se fazia Rebanquet, e ento o seminrio acontecia em frente a uma cabana perdida no meio das oliveiras. Um dia quando o seminrio chegava ao fim e os alunos o assediavam com perguntas, o filosfo contestou: Vocs podem ver o meu limite, eu no posso. Anos antes ele havia escrito que a grandeza de um pensador se mede pela fidelidade pelo prprio limite interno, e que n