Temas Polêmicos da Jurisdição do TJRS · MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS – 2º Vice-Presidente...

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ORGANIZADORES: DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER | CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CAROLINE RITT | CLÁUDIA DE BARROS GEHRES | CYNTHIA JURUENA | DENISE FRIEDRICH | DIÓGENES V. H. RIBEIRO | EDUARDA SIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | IVAN LEOMAR BRUXEL | JANRIÊ RECK | JAYME WEINGARTNER NETO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER | KARINE SANTOS | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | MAURO EVELY VIEIRA DE BORBA | NEREU GIACOMOLLI | NEWTON BRASIL DE LEÃO | RAFAEL BRANDINI | RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL TEMAS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: DOS CRIMES AOS ILÍCITOS DE NATUREZA PÚBLICA INCONDICIONADA POLÊMICOS

Transcript of Temas Polêmicos da Jurisdição do TJRS · MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS – 2º Vice-Presidente...

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ORGANIZADORES:DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER |CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CAROLINE RITT | CLÁUDIA DE BARROS GEHRES |CYNTHIA JURUENA | DENISE FRIEDRICH | DIÓGENES V. H. RIBEIRO | EDUARDASIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | IVAN LEOMAR BRUXEL | JANRIÊ RECK| JAYME WEINGARTNER NETO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER |KARINE SANTOS | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | MAURO EVELYVIEIRA DE BORBA | NEREU GIACOMOLLI | NEWTON BRASIL DE LEÃO | RAFAEL BRANDINI| RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL

TEMASDA JURISDIÇÃO DOTRIBUNAL DE JUSTIÇADO RIO GRANDE DO SUL:DOS CRIMES AOS ILÍCITOSDE NATUREZA PÚBLICAINCONDICIONADA

POLÊMICOS

Porto AlegreTribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

2015

OrganizadoresDesembargador Rogério Gesta Leal

Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt

TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO

GRANDE DO SUL: DOS CRIMES AOS ILÍCITOS DE NATUREZA PÚBLICA

INCONDICIONADA

1ª edição

EXPEDIENTE

OrganizadoresDesembargador Rogério Gesta LealProfa. Dra. Caroline Müller Bitencourt

CapaMarcelo Oliveira Ames

Projeto Gráfico, Diagramação, Impressão e AcabamentoDepartamento de Artes Gráficas do TJRS

ISBN 978-85-89676-16-8 (impresso)ISBN 978-85-89676-15-1 (e-book)

Tiragem3.000 exemplares

Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul : dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada / Organizadores, Rogério Gesta Leal, Caroline Müller Bitencourt ; Aristides Pedroso de Albuquerque Neto ... [et al.]. – Porto Alegre : Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2015. 384 p. ISBN 978-85-89676-16-8 (impresso) ISBN 978-85-89676-15-1 (e-book) 1. Tribunal de Justiça. Rio Grande do Sul. Jurisprudência. Comentário. 2. Improbidade administrativa. Jurisprudência. Comentário. 3. Contratação pública. Jurisprudência. Comentário. 4. Corrupção. Jurisprudência. Comentário. 5. Administração Pública. Jurisprudência. Comentário. 6. Processo penal. Jurisprudência. Comentário. 7.Investigação criminal. Jurisprudência. Comentário. 8. Responsabilidade Penal. Jurisprudência. Comentário. 9. Crime contra a Administração Pública. Jurisprudência. Comentário. I. Leal, Rogério Gesta. II. Bitencourt, Caroline Müller. III. Albuquerque Neto, Aristides Pedroso. IV. Beber, Augusto Carlos de Menezes. V. Ritt, Caroline. VI. Gehres, Cláudia de Barros. VII. Juruena, Cynthia. VIII. Friedrich, Denise. IX. Ribeiro, Diógenes V. H. X. Pase, Eduarda Simonetti. XI. Silva, Ianaiê Somonelli da. XII. Bruxel, Ivan Leomar. XIII. Reck, Janriê. XIV. Weingartner Neto, Jayme. XV. Kaercher, Jonathan Augustus Kellermann. XVI. Santos, Karine. XVII. Ohlweiler, Leonel Pires. XVIII. Richter, Luiz Egon. XIX. Borba, Mauro Evely Vieira de. XX. Giacomolli, Nereu. XXI. Leão, Newton Brasil de. XXII. Brandini, Rafael. XXIII. Schmidt, Ramônia. XXIV. Hermany, Ricardo. CDU 347.99(816.5)(094.9) Catalogação na fonte elaborada pelo Departamento de Biblioteca e de Jurisprudência do TJRS

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

ADMINISTRAÇÃO 2014-2015

Des. JOSÉ AQUINO FLÔRES DE CAMARGO – Presidente

Des. LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI – 1º Vice-Presidente

Des. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS – 2º Vice-Presidente

Des. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – 3º Vice-Presidente

Des. TASSO CAUBI SOARES DELABARY – Corregedor-Geral da Justiça

SUMÁRIO

MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL ...............................................................................................................................7

MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC ........................................................... 9

APRESENTAÇÃO DES. NEY WIEDEMANN NETO ................................................11

I – ANÁLISE DE CASOS DA JURISDIÇÃO CRIMINAL

1 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa – Jayme Weingartner Neto ...............................................................15

2 Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição – Diógenes V. H. Ribeiro ......................................................................................................33

3 O princípio da identidade física do juiz no Processo Penal – Nereu Giacomolli .........49

4 A responsabilidade penal por extermínio de animais: um estudo de caso – Newton Brasil de Leão .......................................................................................................... 57

5 A responsabilidade penal pela apropriação indébita de contribuições sindicais: um estudo de caso – Aristides Pedroso de Albuquerque Neto ......................................... 63

6 O direito fundamental de intangibilidade domiciliar na persecução penal: um estudo de caso – Ivan Leomar Bruxel ................................................................................... 79

7 A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso – Rogério Gesta Leal..........................................................................89

8 Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro? – Caroline Ritt e Rogério Gesta Leal .................................................109

9 O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato – Mauro Evely Vieira de Borba ...............................................................................................................131

II – ANÁLISE DA VIOLAÇÃO DOS INTERESSES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ÂMBITO DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA

1 Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência – Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase .......................................................155

2 Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos – Eduarda Simonetti Pase e Janriê Reck .....................191

3 Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões – Cynthia Juruena e Denise Friedrich ........213

4 Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS – Karine Santos e Ricardo Hermany ....................................................................................................................... 229

5 Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa – Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter .................................................................................257

6 O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência – Rafael Brandini e Ramônia Schmidt ... 285

7 Âmbitos de responsabilidade de servidor público do Poder Judiciário em Ação Civil Pública no Rio Grande do Sul: um estudo de caso concreto das Apelações 70057782294, 70055576037 e 70054719489 – Ianaiê Simonelli da Silva e Jonathan Augustus Kellermann Kaercher ......................................................................................................................... 297

8 A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo – Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres ..............................................................................................315

9 O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo – Leonel Pires Ohlweiler ....................................................................................................353

MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

A probidade é o norte que deve regular as relações entre o homem e o Estado. A ausência dela representa negação de valores, fator que, infelizmente, se torna cada vez mais evidente. O afastamento do homem dos padrões éticos, como a honestidade e a honradez, faz emergir a corrupção, mal que mais aflige a humanidade neste século. Dita mazela, associada à fragilidade dos padrões éticos da sociedade, está refletida principalmente na vida pública.

Sob essa ótica, a importância da obra poderia ser sintetizada pela natureza dos temas abordados, que é pauta de todos os segmentos sociais: a corrupção e crimes de alto impacto no tecido social, bem como o extraordinário papel reservado ao Poder Judiciário nesse delicado momento da vida nacional, quando o combate destas patologias constitui uma das prioridades nacionais.

Conhecer o pensamento dos juízes gaúchos, bem como dar parcerias institucionais que temos feito com outros segmentos da Sociedade, como é o caso dos pesquisadores da UNISC que se debruçaram sobre a casuística de nosso Tribunal, neste livro, tem o significado de sinalizar à população acerca do entendimento do Poder Judiciário sobre os postulados morais e éticos da vida pública. Registra a sabedoria e prudência dos julgados, que repelem o desonesto e preservam as garantias da cidadania, fazendo valer o próprio significado da Justiça como valor social.

A publicação serve, igualmente, como excelente fonte de informação ao administrador. Cada vez mais se exige preparo para a gestão pública. O controle

social da contratação e os mecanismos que estão à disposição da cidadania são temas abordados na obra de forma acadêmica, mas, igualmente, com sentido prático.

Honra-nos, sobremaneira, como Presidente do Tribunal de Justiça, apresentar a obra idealizada por ilustres juristas, que tem, como pano de fundo, a qualidade das decisões da nossa Corte.

Estimo proveitosa e boa leitura.

Des. José Aquino Flôres de Camargo,Presidente do TJRS.

MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC

O presente livro “TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: DOS CRIMES AOS ILÍCITOS DE NATUREZA PÚBLICA INCONDICIONADA” é fruto de intensos estudos e debates promovidos pelo grupo de Estudos Patologias Corruptivas no Estado, Administração Pública e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação em direito (Mestrado e Doutorado), da UNISC, coordenado pelo Doutor e Desembargador Rogério Gesta Leal, e sua interlocução com dois outros renomados programas de Pós-Graduação em Direito do Rio Grande do Sul, a saber, da Universidade Lasalle, nas figuras dos pesquisadores, Doutores e Desembargadores Jayme Weingartner Neto, Diógenes V. H. Ribeiro e Leonel Pires Ohlweiler; e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na pessoa do pesquisador Doutor e Desembargador Nereu Giacomolli. Ainda estão presentes aqui outros ilustres desembargadores, juiz de direito, alunos do mestrado e doutorado, todos associados com o Centro de Estudos do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, sob a Direção do Desembargador Ney Wiedemann Neto, com apoio e financiamento editorial do próprio Tribunal de Justiça do RS.

As temáticas selecionadas têm gerado intensos debates nas mais diversas áreas do conhecimento, haja vista os tópicos complexos que abordam, daí a importância de se eleger a jurisprudência do Tribunal gaúcho – um dos mais respeitados em todo o País – como fio condutor da eleição dos conteúdos de cada contribuição.

Optou-se pela divisão do livro em dois momentos, sendo que, as contribuições foram orquestradas conforme a linha de enfrentamento: administrativa e penal. Primeiramente, estão os trabalhos que versam sobre a análise de casos polêmicos

da jurisdição criminal. A posteriori, encontram-se os casos de violação dos interesses da administração pública no âmbito da contratação pública.

Uma breve explanação acerca da orientação metodológica para redação dos referidos artigos é de fundamental importância para situar o leitor, a saber, a do caso concreto, a partir de abordagens descritivas, analíticas e prospectivas.

No primeiro momento, o descritivo, os esforços voltam-se aos elementos de identificação, qualificação e contextualização do caso, a fim de destacá-lo de seu contexto, elucidando-se o máximo de informações fáticas acerca dele; diagnosticar e aprofundar para uma melhor análise os elementos quantitativos e qualitativos do caso; permear com elementos que ligam o caso ao conjunto da realidade social, a partir da identificação dos agentes envolvidos, os meios e os resultados que se relacionam.

No segundo momento, o analítico, buscou-se a demarcação dos fatores, variáveis, agentes que participam deste caso, bem como suas implicações múltiplas (econômicas, políticas, ideológicas, culturais, religiosas, etc.), além do enquadramento normativo matriz.

No terceiro momento, o prospectivo, buscou-se definir quais os cenários de enfrentamento do caso que estão presentes na espécie, possibilidades de ação (jurídica, política, social, cultural, etc.), e tarefas a realizar – individuais ou coletivas, por meio do enfrentamento dos cenários fáticos e normativos (em todas as suas espécies), considerando-se todos os seus efeitos jurídicos, sociais, econômicos, políticos, culturais e outros; o levantamento das possibilidades de enfrentamento para realocar as perspectivas dos envolvidos fomentando as possibilidades de escolha; e por fim, o acompanhamento por intermédio de tarefas pré-ordenadas a fim de orientar a ação concreta.

Ao optar-se pelo estudo da casuística dos julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, demarcou-se bem o período da pesquisa nos referidos artigos.

Em momento em que a sociedade brasileira clama por uma administração mais ética e por gestões voltadas a combater e controlar o fenômeno corruptivo que tanto usurpa e inviabiliza a concretização de direitos fundamentais, esta obra pretende trazer uma reflexão crítica de casos enfrentados cotidianamente em nossos Tribunais.

Que esta parceria tão salutar entre Academia e Poder Judiciário siga em frente em outros projetos de igual importância.

Boa leitura a todos.

Professor Doutor Desembargador Ro gério Gesta Leal,Professora Doutora Caroline Müller Bitencourt,

Organizadores.

APRESENTAÇÃO

Em um momento como o atual, o debate acerca da improbidade administrativa é bastante oportuno e leva à diminuição de sua infiltração nas instituições, seja por meio da disseminação do conhecimento ou pela conscientização acerca da imoralidade em que estão inseridas as práticas destes atos.

Como parte fundamental na preservação do Estado Democrático de Direito, o Tribunal de Justiça preocupa-se com a questão, não apenas em seu âmbito jurisdicional, mas também como objeto de estudo da sociedade em que atua e na busca da extirpação de práticas de improbidade no âmbito institucional.

A importância da discussão travada nesta obra é ímpar, tanto para o Judiciário como para a sociedade em geral, pois é momento de uma reflexão moral e ética, a ser entendida sob a perspectiva daqueles que atuam na administração das demandas e das necessidades sociais. O problema necessita de um estudo aprofundado, pois apenas o debate claro e aberto acerca do tema pode promover a resolução dos conflitos postos à apreciação do Poder Judiciário e a preservação institucional.

A corrupção – uma das formas pela qual se apresenta a improbidade – pode ser considerada um fenômeno inerente à sociedade moderna, e os episódios, cada vez mais constantes, abalam a credibilidade e confiança da população nas instituições públicas.

O Poder Judiciário deve estar atento e atuar como um propulsor na busca pela elucidação dos elementos que medeiam a improbidade, em um diálogo direto com a sociedade, buscando um verdadeiro resgate do caráter ético da função pública, tendo sempre a moralidade administrativa como elemento basilar da Administração.

Demonstrar a ótica pela qual o Judiciário vê a questão da improbidade administrativa, não apenas aos operadores do direito, mas a toda a sociedade, reforça o ideal de confiança e abre caminhos para uma reflexão profunda a respeito das consequências do fenômeno sistêmico da corrupção.

A edição deste trabalho demonstra a preocupação desta Corte com a prevenção e repressão à improbidade administrativa, traduzindo-se em uma oportunidade para refletir sobre o assunto e semear um pacto de integridade em todos os setores da sociedade.

Ney Wiedemann Neto,Coordenador-Geral do Centro de Estudos do TJRS.

I – ANÁLISE DE CASOS

DA JURISDIÇÃO CRIMINAL

DISPENSA DE PENA EM TRÁFICO PRIVILEGIADO: PARA UNIVERSALIZAR UMA RESPOSTA

CONCRETAMENTE JUSTA

Jayme Weingartner Neto1

K bateu nas portas da Corte, já condenado a quase dois anos de reclusão, que seriam substituídos por duas penas restritivas de direito, e multa, pois, um ano antes, ao visitar o filho adolescente internado na FASE, fora flagrado, na revista antes do ingresso, com três tijolinhos de maconha (1,65g). No apelo, K alegou que, diante da bagatela, devia ser absolvido, e que não se tratava de prática habitual. K, pedreiro de profissão e primário, ficou preso preventivamente cerca de quarenta dias. K, de fato, trazia consigo a droga, como confessou. Disse que estava levando o entorpecente para seu filho, usuário de drogas desde os 14 anos de idade. Contou que o filho pedia, insistentemente, para que levasse maconha, e ele acabou cedendo. Disse que não é usuário e nunca usou drogas.

K estressa o sistema de justiça criminal, ao provocar uma pergunta crucial: quid juris quando se defronta com injusto culpável e punível de crime abstratamente grave cuja moldura sancionatória, ao cabo e presentes peculiaridades pessoais e vicissitudes processuais, ainda que comprimida no limite de flexibilidade do sistema, persiste desproporcional?

O presente texto, partejado pelo encontro com um K real, propõe manter a condenação, com a inarredável declaração de culpa, mas afastar a pena, que

1 – Desembargador TJRS, Doutor em Direito do Estado (PUCRS) e Mestre em Ciências Jurídico-

-Criminais (Coimbra), Professor PPGDIR Unilasalle (Canoas).

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Jayme Weingartner Neto

se revela concretamente desarrazoada, aplicando-se o instituto da dispensa de pena que, embora sem previsão em regra específica do sistema penal brasileiro, coaduna-se com os princípios e vetores que orientam nossa política criminal.2

Para tanto, em breve preliminar, enfatiza-se a atualidade sociológica do tema, em face do caráter epidêmico que o consumo/tráfico de drogas assume nesta quadra da vida real, de modo a multiplicar os casos difíceis. Basta, por exemplo, trocar K por E, supondo uma mulher matricial, parente ou afeto de um apenado e que, por circunstâncias muito variadas, tenta ingressar com droga nos estabelecimentos prisionais. A seguir, enquadra-se o caso de K no aspecto mais amplo da racionalidade da resposta jurisdicional.

Na sequência, diante da ausência de regra positivada no direito brasileiro e, até onde conheço, de precedentes, o texto cumpre o dever redobrado de fundamentar a senda jurisprudencial aventada.3

Ao cabo, procuro justificar as referências ao direito comparado e à doutrina estrangeira, sumarizando a estratégia de política criminal.

O contexto no qual se movem K e seu filho adolescente representa um dos grandes desafios sociais deste início de século, encontrar uma política pública adequada para enfrentar os problemas de saúde e segurança públicas mais evidentes, na esteira da dimensão econômica, decorrentes do fenômeno mundial do uso e abuso de drogas. Ressalto, logo, que há uma disputa intercultural fermentando na esfera pública, sobressaindo, em nível nacional, a polêmica em torno das “marchas da maconha” – tendo o STF assegurado aos diversos grupos sociais os direitos fundamentais de reunião e liberdade de expressão com o objetivo de criticar os modelos normativos em vigor, inclusive podendo exercer proselitismo em torno do abolicionismo penal na matéria, o que não se confunde com incitação à prática de

2 – Essa, ao menos, foi a resposta encontrada na Apelação-Crime nº 70053574067, TJRS, Terceira Cri-

minal, Rel. Des. Jayme Weingartner Neto, j. em 27/6/2013. No acórdão, à unanimidade, deu-se parcial

provimento ao apelo para manter a condenação, mas dispensar o cumprimento da pena, inclusive a de

multa, certificando-se, para fins de antecedentes, a data do trânsito em julgado da decisão colegiada

como data do cumprimento da pena.

3 – Já consignei, no contexto de correição parcial que versava sobre declaração incidental de incons-

titucionalidade (nº 70051127132, TJRS, 3ª Câm. Crim.), que se exige do magistrado fundamentação

robusta, clara e objetiva, “mormente ao veicular tese visivelmente minoritária, bem como recomenda-se

diálogo, horizontal e vertical, com os precedentes judiciais em sentido contrário, notadamente Súmula

e decisões dos Tribunais Superiores”.

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

delito nem se identifica com apologia de fato criminoso.4 No plano exterior, notória a iniciativa do Uruguai, cuja Lei 19.172, de 07/01/2014, mesmo rejeitada por 63% da população, legalizou, sob certas condições regulamentadas, a importação, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição de maconha. Embora o atual modelo brasileiro pareça dominante (medidas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, que convivem com a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas), inclusive na linha das convenções internacionais, é possível que estejamos atravessando uma fase de transição, flexibilizando-se as políticas nacionais (mais do que fruto de convicção ideológica, por razões pragmáticas diante das dificuldades de combate efetivo ao narcotráfico), adotando experimentações (como o Uruguai) e incrementando a luta contra as organizações criminosas.5

Mesmo em relação ao tráfico, as respostas não costumam ser homogêneas, em voga, articuladas com políticas de saúde, alternativas ao encarceramento, como a previsão de redução e substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito no que se tem chamado, no Brasil, de tráfico privilegiado.6 Seja como for, as taxas de encarceramento permanecem altíssimas e as ocorrências apresentam viés de alta. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, considerada a quantidade de crimes tentados/consumados, o tráfico de drogas é a segunda maior incidência, subindo de 25,5% em 2012 para 25,9% em 2013 (146.276 casos, de um total de 563.711)7.

4 – Na ADPF nº 187, rel. Min. Celso de Mello, j. 15/6/2011, o STF deu, ao art. 287 do Código Pe-

nal, interpretação conforme à Constituição “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a

criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica,

inclusive através de manifestações e eventos públicos”. Para além das celeumas a respeito de plantas

de uso estritamente ritualístico-religioso e dos fins exclusivamente medicinais ou científicos (art. 2º da

Lei nº 11.343/2006).

5 – Do que é testemunho, no Brasil, a Lei nº 12.850, de 02/8/2013, não obstante o Projeto de Lei da

Câmara nº 37, de 2013, que representa certo endurecimento na política nacional de drogas, por exemplo

com a internação involuntária para tratamento do usuário, isto é, sem o consentimento do dependente

de drogas.

6 – Destinado, nos termos do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas – aprofundado o benefício, causa pessoal

de diminuição de pena, pelo STF (para além da previsão original do legislador) –, ao agente, cumula-

tivamente, primário, de bons antecedentes, que não se dedique às atividades criminosas nem integre

organização criminosa.

7 – Perde apenas para os crimes contra o patrimônio, que representam 48,9% dos crimes. Para que se

tenha uma ideia das grandezas, o terceiro item, em ordem decrescente, os crimes contra as pessoas

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Jayme Weingartner Neto

Em Portugal, a política criminal é matéria de direito positivo. Parte-se da Lei nº 17/2006, de 23 de maio (Lei Quadro da Política Criminal), que versa sobre definição de objetivos, prioridades e orientações em matéria de prevenção da criminalidade, investigação criminal, ação penal e execução das penas e medidas de segurança. A condução da política geral é detalhada em leis sucessivas, de dois em dois anos. Sintomático o tratamento ao tráfico de drogas na Lei nº 38/2009, de 20 de julho, que regulou o biênio 2009-2011. Seu art. 2º, alínea “a”, dentre os objetivos específicos, elenca a prevenção, repressão e redução da criminalidade violenta, grave ou organizada, categoria na qual inclui a associação criminosa dedicada ao tráfico de drogas. Logo a seguir, tendo em conta a dignidade dos bens jurídicos tutelados e a necessidade de proteger as potenciais vítimas, considera crime de prevenção prioritária o tráfico de drogas (art. 3º, 1, “f ”). Nada obstante, adiante, ao delimitar o âmbito das orientações sobre a pequena criminalidade, refere o tráfico de menor gravidade ou praticado pelo traficante consumidor (art. 15, letra “d”), sendo medida aplicável, neste caso, dentre outras, a possibilidade de arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 16, 1, “a”).8

(homicídios simples e qualificados, sequestro e cárcere privado) alcançam 11,9% dos casos (o sen-

so comum aposta na forte correlação entre homicídios e disputa por territórios entre traficantes) –

cf. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014 (ano 8), Fórum Brasileiro de Segurança Pública,

Tabelas 38 e 39 – Quantidade de crimes tentados/consumados, pp. 78-80, disponível em http://www.

forumseguranca.org.br/storage/download//8anuariofbsp.pdf, acesso em 07/01/2014. Se a taxa na-

cional, em 2013, para o tráfico, chegou a 73,3 ocorrências por 100 mil habitantes, no Rio Grande do

Sul a taxa vai a 89,2; no que tange à posse e uso, para uma taxa nacional de 60,5, o Rio Grande do Sul

apresenta impressionantes 130,1 (idem, Tabela 7 – Leis especiais, por tipo, p. 26). Quanto ao sistema

penitenciário, Fábio de Sá e Silva observa: “O crescente encarceramento, com ênfase em jovens, negros e por cri-mes associados a entorpecentes, o crescimento do déficit de vagas em estabelecimentos penais, e o aumento

do número de presos em situação provisória explicam por que o Brasil caminha resoluto para alcançar

posições de destaque entre os países que mais encarceram.” (Anuário, p. 82, grifei) – atualmente em

quarto lugar no ranking, atrás do EUA, China e Rússia, o Brasil já supera a China considerada a taxa

de presos por 100 mil habitantes; em 2013, 393,3 para cada 100 mil (Tabela 30 – Presos nos sistemas

penitenciários e sob custódia das polícias, pp. 64-5), dos quais 40,1% são provisórios (contra 37,6% em

2012), cf. Tabela 32 – Distribuição dos presos no sistema penitenciário, por situação prisionária, p. 68 –

nunca é demais lembrar que a razão presos/vagas subiu de 1,6 em 2012 para 1,7 em 2013 (Tabela 34 –

Presos no sistema penitenciário, vagas existentes, razão entre presos e vagas e déficit de vagas, p. 70).

8 – O Anexo (Fundamentação das prioridades e orientações da política criminal) explicita: “(...) con-

trolar as principais fontes de perigo para os bens jurídicos, combater fenómenos que minam o Estado

de direito democrático, como o tráfico de influência, a corrupção e o branqueamento, reprimir o tráfico

de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (...) A importância da prevenção e repressão do tráfico de

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

K trazia consigo, para entregar ao filho, um pouco de maconha. Materialidade e autoria incontroversas, no jargão forense. Ainda que não destinado ao comércio, ficou comprovada a circulabilidade do entorpecente. Logo, conduta tipificada no art. 33 da Lei nº 11.343/06. Pode-se, evidentemente, discordar da vereda legal, cogitar de alternativas, mas, no Estado democrático de direito, a política criminal, em primeira linha, é densificada pelo legislador, mormente em temas altamente controvertidos, tanto moral quanto empiricamente.

Todavia, a simples punição de K (que já “pagou” quarenta dias no Presídio Central, vale lembrar), mesmo na figura privilegiada do § 4º do art. 33, assombra a consciência/sensibilidade dos sujeitos processuais. O Ministério Público, em segundo grau, na busca da proporcionalidade, opinou pela desclassificação para o delito previsto no artigo 33, § 3º, da Lei nº 11.343/06 (tráfico de uso compartilhado), e, na excepcionalidade do caso concreto, dando-se por extinta a punibilidade, considerando a pena corporal (já experimentada na “preventiva”) como suficiente.9

Ademais, sendo o tráfico crime de perigo abstrato, cujo bem jurídico protegido é a saúde pública, a priori não se aplica o princípio da insignificância nos delitos relacionados aos entorpecentes, sendo irrelevante a pequena quantidade de droga apreendida (STJ, HC 156543 / RJ, 6ª T., j. em 25/10/11 e HC 248652 / MT, 5ª T., j. em 18/10/12, STF HC 102940/ES, 1ª T., j. em 15/02/11 e HC 103684 / DF, Tribunal Pleno, j. em 21/10/10).10 NR – Analisadas as circunstâncias e os

estupefacientes e substâncias psicotrópicas justifica a sua manutenção como prioridades. (...) é sabido

que a criminalidade violenta contra bens patrimoniais tem como uma das principais causas a necessida-

de de sustentar o consumo de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas” – item 3, §§ 1º e 8º; “Por

último, também a figura do consumidor-traficante justifica a aplicação de orientações sobre pequena

criminalidade, tanto mais que a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, descriminalizou o consumo de

estupefacientes, convertendo-o em ilícito de mera ordenação social. Por vezes, as situações de pequeno

tráfico instrumental de consumo reclamam, acima de tudo, uma intervenção terapêutica e não a puni-

ção pura e simples” – item 4, último §.

9 – Embora a bondade do argumento, descarto a hipótese porque o comportamento de K não se amol-

da perfeitamente ao tipo penal em comento. Certo que se pode afirmar que a prática deu-se eventual-

mente e sem objetivo de lucro, o que indica incidência típica parcial. Todavia, há incontornáveis distin-

ções. Primeira, a conduta imputada a K é de trazer consigo e não de oferecer. Segunda, embora a intenção

de K fosse entregar o entorpecente à pessoa de seu relacionamento (filho), a droga não se destinava para

consumo conjunto. K afirmou peremptoriamente – e com lealdade (abandonando a linha inaugurada

pela defesa técnica) – que não é e nunca foi usuário de drogas.

10 – A questão é polêmica e comporta nuanças que podem alterar o juízo de adequação típica, sempre a

depender da constelação fática. A 2ª Turma do STF, por exemplo, concedeu “habeas corpus” de ofício

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Jayme Weingartner Neto

elementos presentes nos autos, restava comprovada a prática delituosa de K. Não sendo, então, caso de absolvição, as regras do jogo indicavam a manutenção da condenação. Tratava-se, a seguir, de estabelecer a pena de K.

Já havia manifestado entendimento, em casos similares (ingressar no presídio, durante visita, levando drogas para entrega a detento), cogitando a possibilidade de aplicação fundamentada (e controlável) do princípio da proporcionalidade, para suspender a eficácia da pena acaso consequente, inclusive como atitude pragmática, de evidente repercussão política e repto à administração prisional. Mas não de forma genérica e gerando precedentes de duvidosa assimilação sistemática, e sim no diapasão da prudência jurisdicional, creio que virtude inafastável do Poder Judiciário.

As tensões do caso em tela provocaram-me mais intensa reflexão, ao cabo da qual considero possível, proporcional e razoável chegar a resultado semelhante (não idêntico), dispensando-se a pena, sem entretanto violar a teoria geral do delito e tampouco conspurcar o contexto fático que exsurge do contraditório, de modo que a solução proclame-se em sua integridade lógica e axiológica, sem subterfúgio, capaz de harmonizar as exigências tópicas de justiça que o caso encerra e, preservada a segurança jurídica (consideração sistêmica), universalizar-se caso reproduzam-se materialmente as condições de aplicação do decisum.11

para absolver condenado pela prática dos crimes de tráfico e associação para o tráfico. Na espécie, o

paciente estava em posse de 1,5g de maconha para “alegados fins de tráfico” e a Turma concluiu não

haver prova da existência do fato, diante da pequena apreensão e da ausência de outras diligências inves-

tigatórias, pelo que a condenação “representara medida nitidamente descabida”. A Turma oficiou ao

CNJ “para que fosse avaliada a uniformização do procedimento da Lei 11.343/2006, em razão da reite-

ração de casos idênticos aos dos presentes autos nos quais a inadequada qualificação jurídica dos fatos

teria gerado uma resposta penal exacerbada” (HC 123221/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 28/10/2014).

Já o STJ, pela Sexta Turma, parece manter a orientação – impossibilidade de aplicação do princípio

da insignificância –, mesmo nos casos de porte de substância entorpecente para consumo próprio

(art. 28 da Lei de Drogas), como se vê no RHC 37.094/MG, rel. Min. Rogério S. Cruz, j. 04/11/2014,

in verbis: “1. Independentemente da quantidade de drogas apreendidas, não se aplica o princípio da

insignificância aos delitos de porte de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de

drogas, sob pena de se ter a própria revogação, contra legem, da norma penal incriminadora. Preceden-

tes.” (Grifos próprios).

11 – Aqui, válido o ensinamento de Rosito (2012, p. 297), o qual aduz que “a virtude está em identi-

ficar o ponto de equilíbrio entre a excessiva flexibilidade, orientada pela justiça do caso concreto, e a

excessiva rigidez na aplicação do direito, decorrente do princípio da legalidade, com os limites técnicos

impostos pelo ordenamento jurídico, os quais são reveladores de segurança jurídica. O problema central

21

Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

Repito a pergunta da introdução: o que fazer quando se impõe a condenação por crime abstratamente grave cuja sanção, no substrato de vida examinado, mesmo levada ao limite inferior, revela-se desproporcional? A um, evitar a tentação da desconstrução dogmática,12 afirmando com simplicidade que há tipicidade, pois inocorre, aqui, crime impossível;13 que não socorre causa de exclusão da ilicitude e tampouco exculpação por inexigibilidade de conduta diversa (a coação moral que parece aflorar no coração do pai pedreiro não ultrapassa a barreira do resistível).14 A dois, recusar o atalho do decisionismo,15 seja enviesando de tal

consiste na individuação de formas idôneas a garantir um equilíbrio racional entre o livre convencimen-

to judicial no exame do caso concreto e a necessidade de segurança”.

12 – Nesse sentido, “a pretensão de rejeitar o método dogmático, por considerá-lo inútil, é um infanti-

lismo jurídico, próprio de pretensos teóricos gerais que jamais enfrentaram os problemas concretos de

algum ramo do saber jurídico. Quando prescindimos da construção desses conceitos, caímos no campo

das soluções arbitrárias.” (ZAFFARONI, 2002, p. 166).

13 – Observo que considerar atípico o fato imputado a K significaria, rigorosamente, afirmar a sua irrele-

vância penal, uma conduta socialmente neutra aos olhos da tutela penal. Já fundamentei a inviabilidade

de reconhecer crime impossível em situações similares. Mesmo que, ad argumentandum tantum, se tratasse

de crime de resultado (no caso, o verbo nuclear imputado na denúncia, trazer consigo, aponta para delito

formal), não seria o caso de crime impossível. A revista pessoal e nos pertences, no ingresso, quando em

visita, ou no retorno à casa prisional, embora constitua elemento que dificulta, não inviabiliza comple-

tamente a consumação do delito. Não se trata, portanto, de absoluta ineficácia do meio empregado, mas,

apenas, de relativa ineficácia. Por oportuno, como argumento analógico, ressalto que é firme o enten-

dimento no STJ no sentido de que a existência de aparato de segurança no estabelecimento comercial

não ilide, de forma absolutamente eficaz, a consumação do delito de furto (HC 251913/RS, 6ª T., j. em

13/11/2012). De igual forma, a existência de procedimento de revista pessoal e nos pertences, no ingresso

em estabelecimento prisional, não é totalmente eficaz de modo a impedir completamente a consumação

de delito de tráfico na modalidade “trazer consigo” drogas para entrega a terceiros dentro do estabeleci-

mento prisional. Fato, aliás, notório, a rigor dispensando maiores considerações (confira-se o Voto Venci-

do, Apelação-Crime 70053819603, Terceira Câmara Criminal TJRS, j. 09/05/13).

14 – Reconhecer exculpação importaria, a seu turno, proclamar que não há reprovação social em re-

lação à conduta de K, o que dificilmente passaria num escrutínio imparcial em qualquer auditório

relevante e, certamente, não foi aceito pela FASE e seus agentes socioeducadores. Parece evidente, no

contexto do caso, que era exigível de K outra conduta, descabido (e sequer alegado) o reconhecimento

de vis compulsiva, isto é, coação moral irresistível (art. 22, 1ª parte, CP), que demandaria constrangimen-

to de tal monta que se tornasse impossível de ser vencido por K, diante de ameaça de mal grave, certo e

inevitável. Certo que a coação moral resistível importa atenuação de pena (art. 65, III, “c”, CP), inócua,

na lógica do texto, em face da solução de dispensa de pena.

15 – Há interessante abordagem crítica ao fenômeno, que explora o conceito de zona de autar-quia, “o espaço institucional em que as decisões não estão fundadas em um padrão de racionalidade

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Jayme Weingartner Neto

modo a apreciação dos fatos que resultariam artificiosos e quase irreconhecíveis a um observador imparcial, seja proclamando tout court o resultado justo, segundo o diapasão da sensibilidade magistral, desacompanhada do supedâneo normativo e sistemático. A três, com humildade, reconhecer que, em sendo assim, impõe-se a condenação, seguindo-se que tal conduta, pese sua especificidade, é criminosa e que a resposta sistêmica adequada é declará-lo alto e bom som, inclusive porque não há como extinguir sua punibilidade, à míngua de regra autorizadora – o que leva em conta exigências razoáveis (e democraticamente postas) de prevenção geral e segurança jurídica.

A quatro, enunciar as peculiaridades – que tornam a dosimetria tradicional demasiada –, inclusive para que a comunidade jurídica e a opinião pública possam aferir a prudência da avaliação realizada. Quinto, elencar pressupostos necessários para a dispensa da pena, num esforço de demonstrar que o instituto coaduna--se com o sistema normativo e que futura e eventual aplicação há de amparar-se também em requisitos objetivos e, portanto, ser previsível.

Com olhos em K, dos passos um e dois ocupei-me ao motivar a manutenção da condenação nas sanções do art. 33, caput, da Lei de Drogas, presente a minorante prevista no § 4º do citado artigo e justificando a impossibilidade de considerar aperfeiçoado o suporte fático do § 3º do mesmo artigo (ou crime impossível, ou bagatelar). O passo três parece-me premissa aceita por qualquer sistema de justiça que atue no espaço do Estado democrático de direito.

Enfrento, na sequência, as tensões dos passos quatro e cinco.O que há, portanto, de peculiar no caso em tela, que torna imperativa

solução que esgarça, para aquém, a moldura legal posta pelo legislador? Em realidade, uma confluência de fatores. K é um pai trabalhador de toda uma vida (contava com 50 anos quando do interrogatório), pedreiro, cuja conduta social é abonada e, a boa índole, atestada. Primário, sem qualquer antecedente.

A prova oral fala por si, desnecessário qualquer floreio literário. A esposa é funcionária pública municipal, trabalha [...]. Tem dois filhos, um de 14 e outro de 18, que se encontrava preso na FASE por tráfico e que é usuário de drogas desde os 14.

qualquer, ou seja, em que as decisões são tomadas sem fundamentação” – sendo raro o caso de que se

assuma a postura (“decido assim porque eu quero”), sendo de esperar “alguma forma de falsa fundamen-tação cujo objetivo seja conferir aparência racional a decisões puramente arbitrárias” –, além de apontar

a pessoalidade da jurisdição brasileira, conjugados o uso de argumentos de autoridade e uma racionalidade

puramente estratégica, tudo a redundar que o “objetivo da autoridade não é, nesse registro, argumentar

em nome da melhor solução possível para o caso, mas sim apresentar as razões pelas quais formou

sua opinião pessoal sobre qual deve ser a melhor solução para o caso.” (RODRIGUEZ, 2013, p. 69-80).

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

O controle familiar era difícil: o casal saía para trabalhar de manhã e só voltava à noite; o filho estudava até meio-dia e, quando chegavam do serviço, estava em casa. Atribui o ato infracional do filho às más companhias, da [...], que o adolescente continuou a frequentar depois que se mudaram para a [...]. Nas suas palavras: “A gente não tinha como controlar ele. Eu e a mãe dele tinha que trabalhar. Ele estava estudando no [...]. Nós estávamos pagando seiscentos ‘pila’ por mês e trancou a matrícula dele na metade do ano e nós tivemos que continuar pagando para não sujar o nome.”. Quanto ao garoto de 14, perguntado sobre “rédea curta em cima dele”, declarou-se tranquilo, pois “até religioso ele é, se batizou na igreja. A mãe dele também se batizou.” Durante a internação do filho, por aproximadamente um ano e dois meses, visitava-o sempre, revezando-se o casal entre as visitas de quarta-feira e do sábado. Ressalta, mais de uma vez, que em todas, “todas” as oportunidades, visitavam o filho: “Quando a minha mulher não ia na quarta-feira, eu ia. Eu ia no sábado. Em todas as visitas, eu ia visitar ele. [...] Quando ela não pode ir, eu trabalho até meio-dia no serviço e vou para levar as coisinhas para ele lá, para comer, levar roupa. E, sábado, vamos nós três – eu, a mulher e o irmão dele pequeno.”.

Pois bem, neste contexto, fazia mais de mês “que ele [o filho internado] estava me enchendo o saco, porque é muito problema na cabeça, serviço e ele. Aí, tanto foi, que eu não sei o que me deu na cabeça que eu... J: Que o senhor levou? I: [Acenou positivamente]. Porque não adianta eu dizer que sou usuário, porque nunca usei droga nenhuma, nunca. Em 50 anos, nunca precisei disso aí. J: Mas como seu filho lhe importunava para o senhor levar droga? Como ele fazia? I: [em todas visitas] Ele pedia: ‘Pai, dá um jeitinho aí! Traz maconha’. Eu digo: ‘Não posso. Nunca fiz isso. Vou acabar me atrapalhando ainda’. Foi o que aconteceu, isso aí. [...] Ele é usuário. Eu não sei se dão remédio para ele, porque ele pediu duas vezes tratamento lá e também não providenciariam uma clínica.”.

E, no início de uma tarde de um dia primaveril, K acabou sucumbindo... realizada uma revista, teve que tirar toda a roupa e o agente encontrou as três trouxinhas de maconha na cueca de K. O policial militar de plantão foi acionado. K “teve uma postura tranquila, não teve, não esboçou qualquer reação”. Perguntado o motivo, respondeu: “O guri pede!”. E o socioeducador respondeu para K: “Mas o senhor é pai. O Senhor não pode fazer uma coisa dessas”. Embora ocorra com alguma frequência apreenderem drogas, “não chegou a haver um fato como esse de K”.

O flagrante foi homologado pelo Juiz Plantonista e convertido em “prisão preventiva na garantia da ordem pública para evitar reiteração delitiva própria

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Jayme Weingartner Neto

do crime de tráfico” (simples assim). Ao pedir a liberdade provisória, alegando excessivo rigor, a defesa técnica explicou que K “vez em quando faz uso de pequena quantidade” e esqueceu a pequena porção, “sem maldade nenhuma”, no bolso de sua calça. O pedido foi indeferido, já que a matéria “precisa ser esclarecida com o mérito”. Relator do habeas, indeferi a liminar, pois, embora interposto por defensor constituído, “não foi acostado documento algum. Não veio aos autos sequer o decreto prisional ora atacado. Portanto, por ora, não há como verificar o contexto fático-jurídico em que se fundamenta o pedido”. Pautado na primeira sessão subsequente, e à vista das informações, o habeas foi concedido à unanimidade. O fato é que K permaneceu preso cautelarmente, no Presídio Central – com toda a precariedade humanística consabida – cerca de 40 dias. Tal circunstância o Procurador de Justiça considerou “como punição suficiente”.16

Reparo, nesta quadra, que, modo leal e digno, o réu confessou lisamente sua conduta, embora exponencialmente mais grave do que o assumido pela defesa técnica na primeira manifestação processual, exercendo sua autodeterminação existencial sem reserva mental, deixando de refugiar-se num atalho jurídico que poderia emergir da sombra probatória.

Também por isso, em homenagem à dignidade que concretamente exerceu no processo, soaria mais que excessivo impor ao pai, para beneficiar-se da conduta privilegiada (art. 33, § 3º, da Lei de Drogas), o consumo conjunto. Se ele, K, não enveredou por tal caminho, mesmo assumindo as vestes de uma formalização in bonam partem, penso que também ao Poder Judiciário resta vedado o recurso da extinção da punibilidade, que, como premissa, exigiria admitir que K tentava fumar maconha com o filho na FASE, logo ele, pai de família que tem o filho afligido “sob a tortura da droga” – paradoxalmente, a figura privilegiada, nesta configuração fática hipotética, parece mais hedionda que o tráfico em si, na sua modalidade simples.

O que me leva ao quinto passo, para justificar e tecer parâmetros que substanciem a dispensa de pena como melhor solução para o caso em tela. Proporção e razoabilidade, ligadas a noções de justiça e equidade, sempre estiveram presentes nas diversas vertentes que desafiam o conceito de direito. Seja na tradição germânica,

16 – A detração (o cômputo da prisão provisória), segundo o comando legislativo (art. 1º da Lei

nº 12.736/2012), é vetor a ser considerado pelo juiz que profere sentença condenatória – valor subse-

quente à norma –, certo que a regra bitola a operação “para fins de determinação do regime inicial de

pena privativa de liberdade” (art. 387, § 2º, do CPP).

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

como proporcionalidade (com seus subprincípios analisados em procedimento trifásico, cláusula inerente ao Estado de direito, art. 1º CF), seja na senda norte--americana, como razoabilidade (ancorada no devido processo legal substantivo, art. 5º, LIV, CF), o que importa é “a constatação, amplamente difundida, de que a aplicabilidade dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não está excluída de qualquer matéria jurídica” (SARLET, 2009, p. 396) – naturalmente, trata-se, aqui, do plano da proibição de excesso. A razoabilidade guarda estreita relação com o terceiro subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito (a ponto de a doutrina polemizar acerca da fungibilidade de ambas),17 no esforço de equilíbrio entre meios utilizados e fins colimados, na busca da justa medida, “já que mesmo uma medida adequada e necessária poderá ser desproporcional” (SARLET, 2009, p. 398).

Identifico aqui o problema de K, pois a condenação criminal, ultrapassados os filtros racionais da teoria geral do delito e a prova de fogo do acertamento fático realizado pelo contraditório e pela ampla defesa, é medida adequada e necessária, mas “medidas adequadas e necessárias podem, ainda assim, resultar em compressão excessiva do bem afetado pela restrição” (SARLET, 2009, p. 399) – a pena final, no caso, implica excesso, cotejada com as peculiaridades fáticas e vicissitudes processuais especificadas no anterior passo quatro.

Percebo que o refúgio, ainda que via analogia material pro reo, nalguma forma de extinção da punibilidade (perdão judicial, por exemplo), desconstitui a declaração de culpa ínsita à sentença condenatória (ex vi dos arts. 107 e 120 do Código Penal), o que desequilibra a equação e violaria a proporcionalidade – agora no horizonte da proibição de insuficiência –, nos tópicos adequação e necessidade, com reflexos presumíveis e verossímeis em termos de prevenção geral.18

17 – No sentido de que o princípio da razoabilidade-proporcionalidade engloba termos a empregar-se de

modo fungível, vide BARROSO, 2010, p. 258 e 305. Contra tal equiparação, confira-se SARLET, 2012, p. 213.

18 – Discorrendo acerca das pulsões psicológicas de vingança, e seus reflexos no processo civilizador

(Norbert Elias), o neurocientista de Harvard Steven Pinker pergunta (e responde): “Portanto a vingança

compensa no mundo real? A ameaça verossímil de punição induz o temor no coração dos potenciais

exploradores e os dissuade da exploração? A resposta dos laboratórios é sim. Na verdade, quando as

pessoas testam jogos do dilema do prisioneiro em experimentos, elas tendem para estratégias de olho por

olho e terminam por desfrutar dos frutos da cooperação. (...) A vingança só pode funcionar como uma

contenção caso o vingador tenha uma reputação de ser decidido na vingança e determinado a empreendê-

-la mesmo a um alto custo. Isso ajuda a explicar por que a ânsia de vingança pode ser tão implacável,

consumidora e, em alguns casos, autodestrutiva (como ocorre com os adeptos do fazer justiça com as

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Jayme Weingartner Neto

Daí a inspiração do direito comparado, notoriamente o instituto da dispensa de pena, previsto no art. 74º do Código Penal Português, localizado no Título III (das consequências jurídicas do fato) do Livro I (Parte Geral), precisamente no Capítulo IV (escolha e medida da pena) e cujos pressupostos vão elencados no referido artigo, 1, alíneas ‘a’, ‘b’, e ‘c’. Literalmente:

Artigo 74.º (Dispensa de pena) 1. Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se: a) A ili-citude do facto e a culpa do agente forem diminutas; b) O dano tiver sido re-parado; e c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção [...]19.

Trata-se, no campo da penalogia, consoante a Introdução [equivalente a nossa Exposição de Motivos], 8 (Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de setembro), de importante inovação na matéria:

Na verdade, ‘pode o tribunal não aplicar qualquer pena se a culpa do agente for diminuta, o dano tiver sido reparado e a tal se não opuserem as exigências da recuperação do delinquente e da prevenção geral’ (artigo 75º, nº 1 [74º, nº 1]). [...] Com tais medidas – que o Comité de Ministros do Conselho da Europa re-comenda em resolução de Março de 1976 e que se encontram já consagradas, por exemplo, na Inglaterra, França (por recente lei de 11 de junho de 1975) e também na Áustria (Código Penal, § 42º) – espera o Código dotar a adminis-tração da justiça penal de um meio idóneo de substituição de curtas penas de prisão ou mesmo da pronúncia de outras penas que nem a protecção (sic) da sociedade nem a recuperação do delinquente parecem seriamente exigir20.

próprias mãos que matam uma esposa infiel ou um forasteiro insultuoso). Mais ainda, ela é mais efetiva

quando o alvo sabe que a punição veio do vingador, de modo que pode redirecionar seu comportamento

em relação ao vingador do futuro. Isso explica por que uma ânsia de vingança só se consuma quando o

alvo fica sabendo que foi escolhido para sofrer a punição. Esses impulsos implementam aquilo que os

teóricos do direito chamam de dissuasão específica: uma punição que é direcionada a um determinado

malfeitor de modo a impedi-lo a reincidir em um crime. A psicologia da vingança também implementa o

que os teóricos do direito chamam de dissuasão geral: uma punição publicamente decretada que é con-

cebida para afugentar terceiros da tentação do crime.” (PINKER, 2013, p. 720-721. Grifos próprios).

19 – Código Penal Português, http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_main.php. Acesso em 12 jun. 2012.

20 – Código Penal Português, http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_main.php. Acesso em 12 jun. 2012.

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

A ideia político-criminal que preside o instituto é a declaração de culpa sem declaração de pena. Na lição de Figueiredo Dias:

Do que se trata aqui é, na verdade, de comportamentos que integram to-dos os pressupostos da punibilidade – que constituem, isto é, acções (sic) ilícitas, típicas, culposas e puníveis –, mas não determinam a aplicação de qualquer pena (antes só a declaração de que o agente é culpado) em virtu-de de seu caráter bagatelar, ligado à falta de carência de punição do facto concreto. Em casos tais, manda a lei que se não aplique uma pena, pura e simplesmente, porque ela não surge, perante as finalidades que deveria cumprir, como necessária. (DIAS, 1993, p. 314. Grifos no original).

Note-se que o instituto não pertence à categoria da punibilidade do fato (hipótese em que ainda estaria dentro da doutrina do crime), mas sim “já ao domínio específico das consequências jurídicas do crime, e, portanto, como produto de um acto (sic) especial de determinação da pena” (DIAS, 1993, p. 315-316). Tanto que a sentença que pronuncia uma dispensa de pena é uma sentença condenatória (assim prevista formalmente no CPP Português, art. 375º-3),21 inclusive acarretando condenação em custas. “Tudo isto faz compreender que a problemática da dispensa de pena se desenvolve a um nível político-criminal e dogmático diferente do das condições de punibilidade do facto e, na verdade, ao nível da determinação da pena; não sendo pois exactamente a categoria da dignidade punitiva do facto – a mesma que está na base das condições materiais de punibilidade – mas a da necessidade da pena que dá fundamento ao instituto.”

Pode-se, assim, vislumbrar “algo de uma pena de substituição” e, embora pareça formalmente contraditório, “o que existe verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa, ou, se se preferir, uma espécie de admoestação em que esta resulta, sem mais, da declaração de culpa” (DIAS, 1993, p. 317. Grifos no original).

Quanto aos pressupostos, tenho que podem ser transpostos ao direito brasileiro, mas reconheço que o maior embaraço seria a pena aplicável – pois em Portugal é preciso que o crime seja punível com pena de prisão não superior a 6 meses, na lógica legislativa de que o instituto geral da dispensa de pena só tenha lugar em relação à pequena criminalidade, num juízo abstrato de que se trata de

21 – Código de Processo Penal Português. http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_main.php. Acesso em 11

jun. 2013.

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crime leve – de menor potencial ofensivo, na dicção do art. 98, I, CF. Entretanto, o tráfico é, consabido, crime hediondo por equiparação (CF, art. 5º, XLIII).

Penso, contudo, contornável a objeção por dois argumentos: (i) a privação de liberdade no caso de K foi afastada na consideração final da pena, justo em função de minorante prevista pelo legislador (§ 4º do art. 33 da Lei de Drogas), o que permitiu, consoante regra geral posta no art. 44 do Código Penal, a substituição por penas restritivas de direito – vale dizer, o sistema penal brasileiro, sopesado legislativa e jurisprudencialmente (notadamente em face de decisões do STF), permite que o tráfico de drogas pelo qual K foi condenado não seja punido com pena de prisão, vetor axiológico relevante; (ii) a dispensa de pena aplicada ao caso dos autos, nas franjas da pequena criminalidade que orbita em torno da epidemia de saúde pública causada pelo atual estágio do tráfico de drogas, compensa a ausência de previsão legislativa específica, com a casuística prudencial realizada pelo Poder Judiciário.

No mais, a culpabilidade é diminuta, inclusive pela presença de coação moral resistível, como já sinalei, e sopesados todos os fatores (também a quantidade bagatelar, insuficiente para afetar a tipicidade, mas impressiva e preponderante na dosimetria, aliás junto com a natureza comparativamente menos lesiva do entorpecente, a par da personalidade que K demonstrou e a conduta social auferida – nos termos do art. 42 da Lei nº 11.343/2006) conclui-se que a imagem global pende claramente para um limite de culpabilidade que, embora presente, situa-se na “zona inferior da moldura penal”. Não há dano concreto a ser reparado, tratando-se de crime sem vítima específica e tutelada, como objeto jurídico, a saúde pública.

Finalmente, não se opõem exigências preventivas. Evidente, no que tange à prevenção especial, que K não precisa ser neutralizado, despido de periculosidade que periclite a segurança pública e tampouco carece de específica necessidade de socialização. Do ponto de vista da prevenção geral,

a dispensa de pena será admissível sempre que, verificados os restantes pressupostos, o tribunal considere que, com a circunstância de o agente ser declarado culpado – o que o instituto da dispensa de pena necessaria-mente supõe –, ligada à natureza condenatória da sentença (supra § 471) e à sua comunicação ao registro criminal [DL nº 39/83, art. 3º, d), hoje L nº 12/91, de MAI21, art. 15º, d)], se alcança o liminar mínimo de pre-venção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico, não sendo por

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

isso, do ponto de vista da prevenção geral necessária a imposição de uma pena. (DIAS, 1993, p. 320. Grifos no original).

Em face de todo arrazoado, necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime em apreço (art. 59, caput, do Código Penal), a melhor solução encontrada foi manter a condenação de K, declarando-o culpado, mas não se lhe aplicar qualquer pena, não subordinando a dispensa de pena ao cumprimento de quaisquer condições, deveres ou regras de conduta. Anoto, por outro lado, que a dispensa de pena, não dizendo respeito às condições do fato delituoso, “mas à necessidade de pena, é eminentemente individual e incomunicável aos comparticipantes” (DIAS, 1993, p. 321. Grifos no original).

O recurso ao direito comparado e à doutrina estrangeira, para além da proximidade matrística com o paradigma lusitano, escuda-se na percepção de que Pascal estava errado ao estranhar a dignidade científica da Jurisprudência (Pensées, 1670, fragmento 294, o erro ou a verdade da justiça não resistiriam à travessia dos Pirineos). Em 1998, em Milão, Roxin realizou célebre conferência sobre As tarefas futuras da ciência penal e iniciou sustentando que o objeto desta ciência é muito mais homogêneo do que se tem sugerido e que “a diversidade das normas nacionais não desqualifica a unidade da Ciência do Direito Penal” (ROXIN, 2009, p. 192). Dentre as tarefas científicas no plano nacional, estava logo a elaboração do direito nacional sobre a base internacional, pelo que um determinado problema, a par da tradição pátria, deve buscar argumentos da dogmática dos outros países, “na direção de uma aproximação gradual entre os diversos sistemas penais” (ROXIN, 2009, p. 195). Outra grande tarefa é a reforma do sistema sancionatório, que há de ser socialmente construído e polimorfo a fim de dar conta das “aquisições científicas e das experiências da práxis do mundo inteiro” (ROXIN, 2009, p. 201).

Em suma, lançar mão do instituto de dispensa de pena ao caso de K harmoniza, modo proporcional e razoável, as exigências de segurança jurídica, pois a confirmação da condenação mantém a reprovação ao fato delituoso, e de justiça tópica, que demanda a modulação extraordinária que se opera na consequência jurídica do crime, com o ajuste da pena, satisfeita com a declaração de culpa.

Cada vez mais, as “opiniões dominantes hoje na doutrina penal alemã não orientam seus sistemas na realidade do ser, como na causalidade ou na finalidade, mas sim na função e finalidade do Direito Penal”, é dizer, os fundamentos sistemáticos baseiam-se na política criminal (ROXIN, 2011, p. 48. Grifos próprios). É consenso hoje na Alemanha (e em Portugal, acrescento),

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Jayme Weingartner Neto

que ao injusto segue a categoria da culpabilidade. Ela tem origem, de acordo com minha concepção, nas finalidades de se determinar a respon-sabilidade penal individual e precisa, em minha opinião, de uma extensão do ponto de vista da prevenção, porque a punição não depende somente da culpabilidade, mas também da necessidade de prevenção. (ROXIN, 2011, p. 53).22

Ao ressaltar a noção de que a política criminal constitui irredutível categoria transcendental de toda decisão de um tribunal criminal, Costa Andrade é lapidar: “Ao decidir do se, do como e do quanto duma condenação penal, o Tribunal cumpre a lei, dando expressão aos desígnios de política criminal, presentes, de forma mais ou menos exposta, mais ou menos larvada, em todos os preceitos legais convocados para a solução do caso” (ANDRADE, 2009, p. 214. Grifos no original). Enfatiza, ainda, os problemas da execução das reações criminais, em geral, e da ressocialização, em particular, que correspondem a

indeclinável imperativo constitucional, além de um “programa expressa-mente assumido pela lei ordinária”, sendo certo que é o juiz que “iden-tifica, assume e pondera os valores coenvolvidos na hora de decidir em nome ou em função da ressocialização; é ele que opera a superação dos conflitos e detém o domínio dos institutos de mais óbvia relevância resso-cializadora. (ANDRADE, 2009, p. 217).23

Espero, ao cabo, sustente-se a racionalidade da decisão jurisdicional fundamentada no texto, orientada pela melhor política criminal e ancorada numa concepção teleológico-racional do sistema penal.

22 – A concepção sistêmica de Roxin implica agregar as necessidades de prevenção à culpabilidade,

agrupando-as numa categoria que chama de “Responsabilidade”. A solução do texto não implica, ne-

cessariamente, adesão global à tese. De toda sorte, chega-se ao mesmo resultado: “A pena pode, por

exemplo, ser desejável por razões de reinserção social, ser fixada abaixo da medida da culpabilidade,

ou mesmo ser completamente dispensada se não há necessidade de prevenção”. (ROXIN, 2011, p. 55).

23 – Dentre tais institutos, menciona a “escolha e medida da pena, suspensão da execução da pena de

prisão, trabalho a favor da comunidade, liberdade condicional” (idem). Lembra, também, que a atuali-

zação de figuras processuais, como o arquivamento em caso de dispensa de pena, “depende sempre da

intervenção necessária e decisiva do Tribunal” (ANDRADE, 2009, p. 218).

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Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa

REFERÊNCIAS

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LIMITES À INVESTIGAÇÃO POLICIAL: OS PRIVILÉGIOS/DIREITOS DO CIDADÃO NO

ESTADO CONSTITUCIONAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O PAPEL CONTRAMAJORITÁRIO

DA CONSTITUIÇÃO

Diógenes V. Hassan Ribeiro1

INTRODUÇÃO

A pesquisa trazida à publicação teve a intenção de por em discussão alguns pontos, possivelmente não esclarecidos, sobre a investigação policial e suas limitações. As noções que aqui se procuram colocar partem da ideia de que os direitos fundamentais são contramajoritários – esta é uma das suas características. Assim, o cidadão tem direitos contra o Estado que, paradoxalmente, foram positivados pelo Estado.

Viver em sociedade, é certo, implica uma sobrecarga de obrigações e limitações recíprocas. Essas limitações, responsabilidades e obrigações, contudo, não são de tal monta que o cidadão fique plenamente submisso às vontades e desejos daqueles que exercem uma parcela do poder público estatal, daí o papel contramajoritário da Constituição Federal. De qualquer modo, os direitos fundamentais, a seu turno, por igual não são direitos absolutos, no sentido de serem ilimitados. Há limites aos direitos constitucionais, mas há limites a esses limites.

1 – Desembargador da 3a Câmara Criminal do TJRS; Doutor em Direito Público (UNISINOS, 2006);

Mestre em Direito Público (UNISINOS, 2001); Professor titular do PPGD (Sociedade e Acesso à Justi-

ça) e da graduação (Direito Constitucional) do UNILASALLE - CANOAS/RS.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

Com efeito, a Constituição impõe diversos limites aos direitos fundamentais, mas também há os limites a esses limites. Assim, quando a Constituição estabelece, no art. 5º, XI, que a casa é asilo inviolável, logo em seguida enuncia as hipóteses em que não prevalece esse direito/garantia fundamental. Essa limitação se vê na possibilidade de ingressar na casa, até então inviolável, se estiver sendo praticado um crime e houver, portanto, situação de flagrante. A outra hipótese é a de desastre, caso em que também fica suspenso esse direito/garantia fundamental, com a possibilidade de ingresso na casa para salvar as pessoas vitimadas ou tentar, de outras maneiras, proteger outras pessoas. E, em qualquer hipótese, na ocorrência de desastre, ou não, também fica suspenso esse direito para que se preste socorro ao morador da casa. No caso de mandado judicial, o seu cumprimento somente pode ocorrer durante o dia. Nesse último caso está prevista a limitação da inviolabilidade, mas no próprio texto há uma limitação/restrição ao limite imposto, pois a execução do ato somente pode ocorrer à luz do dia.

Assim, erigida a casa como asilo inviolável, válido enfatizar a expressão asilo que tem sentido, e aqui tem muito mais sentido, ou deveria ter, porque o constituinte poderia ter preferido outra expressão, ou simplesmente eliminado essa expressão, dizendo, simplesmente, que a casa é inviolável. Pelo contrário, o constituinte fez constar a expressão asilo, cheia de sentido. Na etimologia dessa palavra há a concepção de refúgio, assim como o seu significado como lugar de proteção, de amparo. No direito internacional público há a noção de asilo político2, em que os políticos ou pessoas eventualmente perseguidas por governos se asilam em embaixadas de outros países, buscando proteção da perseguição política que sofrem. Nesses termos, essa palavra, asilo, sem dúvida alguma é cheia de sentidos e não pode deixar de ser lida.

Colocado esse exemplo inicial, no decorrer do artigo ora publicado, procurar--se-á trazer à discussão alguns pontos sobre as limitações ao Estado no confronto com os direitos contramajoritários constantes da Constituição Federal. No início convém reconhecer que a criminalidade contemporânea evoluiu e, por isso, possui

2 – O caso atual mais famoso de asilo político é de Julian Assange, o criador do site WikiLeaks, que tem

prisão decretada pela Suécia, mas que obteve asilo político na Embaixada do Equador, em Londres, e

que está lá há mais de 2 anos. A prisão decorre de acusação por abusos sexuais, mas o receio é de que,

preso na Suécia, haja a entrega do asilado ao Estados Unidos, quando então poderá responder pelas di-

vulgações de informações secretas e de suposta segurança realizadas no citado site (Acesso em 03 mai.

2015 no http://oglobo.globo.com/mundo/equador-mantera-asilo-politico-julian-assange-12931461).

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Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição

novas, por assim dizer, “tecnologias3”. No outro vértice, compreensível que o aparato estatal de segurança pública e de polícia judiciária também seja dotado de modernas tecnologias, compreendidas estas como instrumentos legais e, ainda, instrumentais tecnológicos. Na última parte a abordagem será, propriamente esse confronto ético/legal/constitucional, entre os meios e os fins, especificamente quanto aos limites ao poder de investigar, prender, enfim, processar.

1. A CRIMINALIDADE CONTEMPORÂNEA E SUAS “TECNOLO-

GIAS”

Embora seja até incompreensível, há organizações criminosas. Antigamente havia quadrilhas, mas, na contemporaneidade há organizações. Essa mudança, essa sutil mudança, também é cheia de sentidos. Quando se cogitava apenas do tipo do art. 288 do Código Penal, em momento anterior à Lei nº 12.850/2013, havia uma simplicidade maior na significação do delito nessa modalidade, porque se tratava da chamada “quadrilha ou bando”. Atualmente fala-se em “associação criminosa” naquele tipo penal e, desde Lei nº 9.304/1995 fala-se em “organização criminosa”, embora não com a atualização conceitual de que trata a Lei nº 12.850/2013.

O antigo art. 288, na sua redação revogada, mencionava que constituía crime “associarem-se, mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”. A redação atual tipifica o crime de “associação criminosa” e enuncia: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Portanto, atualmente, bastam 3 pessoas, enquanto que antes devia haver ao menos 4 pessoas para ser considerada a hipótese de quadrilha ou bando.

E a Lei nº 12.850/2013 produziu profunda e importante alteração na compreensão do que seja “organização criminosa”, em relação ao que havia na Lei nº 9.034/1995, esta que já possuía 18 anos de edição e merecia uma atualização. A Lei nº 12.850/2013 trouxe a definição do que seja organização criminosa4, conforme o art. 1º, § 1º:

3 – Quando se tratar de criminalidade, a expressão tecnologia vem entre aspas porque não se compreen-

de que o ilícito deva ter igual tratamento que o lícito. É um preconceito semântico do autor apenas. Mas

quando se tratar de tecnologia propriamente, a expressão quer significar: técnicas, processos, métodos,

meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana. Portanto, a adaptação

legislativa é um instrumento posto à disposição da investigação policial e que introduz novos meios de

investigação.

4 – Esta definição já existia e estava inserta no art. 1º da Lei 12.694/2012, que possibilitou o julgamento

colegiado, em primeiro grau, de crimes praticados por organizações criminosas.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

Assim, para a associação criminosa bastam 3 pessoas, no mínimo, enquanto que para considerar haver organização criminosa deve haver 4 pessoas, pelo menos.

O essencial, portanto, na organização criminosa é que está “estruturalmente ordenada” e que há “divisão de tarefas”. Nesses termos, se antes havia a formação de quadrilha ou bando para a prática de crimes, desde há muitos anos houve uma evolução sensível, em outros países. Na Itália havia a máfia, ou La cosa nostra. Nos Estados Unidos, quando a máfia italiana lá chegou, passou a ser conhecida como sindicato do crime. Há algumas décadas são conhecidas outras organizações internacionais como, na Colômbia, o Cartel de Medelín e o Cartel de Cali, assim como outras mais antigas: a Yakuza de origem japonesa, a máfia russa e a máfia chinesa (tríade). Há também máfias da prostituição que operam com o tráfico de mulheres e pessoas.

No Brasil, as organizações criminosas, dizem alguns, teria iniciado com o popular “jogo do bicho”, pois, com a sua proibição, passaram a existir contraventores em todas as regiões do país. Também há a hipótese da ditadura militar, que teria feito com que os presos políticos dividissem suas celas com os presos comuns e, daí, aqueles teriam com estes aprendido formas de melhor se organizarem. E existem diversas organizações criminosas que nasceram nas casas prisionais e, ainda e pior, de lá são comandadas. Há o PCC – Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho Rogério Lemgruber (que teria nascido da união entre presos políticos e presos comuns). No Rio Grande do Sul há, atualmente, a chamada organização “Balas na Cara”. Existem outras em diversos estados da Federação, mas algumas têm ramificações e extensões em diversos estados.

Atualmente, no Rio de Janeiro existem várias organizações criminosas: (i) máfia das vans; (ii) máfia da milícias; (iii) máfia do óleo; (iv) máfia das drogas; (v) máfia das máquinas caçaníqueis; e (vi) máfia do jogo do bicho, além de outras. É certo que algumas funcionam vinculadas a outras, como se chegou a dizer em relação ao narcotráfico que passa a agir conjuntamente com algumas outras. A corrupção, ou a participação de servidores públicos, policiais ou não,

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Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição

e possivelmente de políticos, assim como a lavagem de dinheiro, andam sempre juntas com essas máfias.

Assim, as organizações criminosas se estruturam e se vinculam em regiões, bem como atuam com divisão de tarefas e de funções, atemorizando os cidadãos que convivem com esse tipo de delinquência, ou cooptando esses mesmos cidadãos e “empregando” outros. Por igual, em busca de proteção, cooptação, compromisso e de silêncio, prestam favores e determinados “serviços públicos”.

Essa estrutura organizada opera envolvendo pessoas que possuem alto conhecimento técnico, com formação superior, como auxiliares em comunicações por sistemas de internet, de lavagem de dinheiro e de logística operacional. Pessoas que literalmente vivem da prática de crimes, como se fosse uma profissão.

Não é possível, portanto, prosseguir no combate à criminalidade dos tempos atuais, com instrumentos, legais inclusive, do combate à criminalidade de antes, que operava ostensivamente, com roubos a bancos e carros fortes, com roubos a cidadãos, sequestros, estelionatos, estupros, tráfico de drogas em espectro irrelevante. Isso não quer dizer que essa criminalidade de antes não existe mais. Pelo contrário, continua a existir. Todavia, para o combate à criminalidade dos tempos atuais exige--se um melhor preparo investigatório e, para tanto, são necessários instrumentos contemporâneos, legais e técnicos, especialmente de formação dos policiais.

2. A TECNOLOGIA NA INVESTIGAÇÃO DA CRIMINALIDADE

CONTEMPORÂNEA

O sistema jurídico evoluiu, aqui compreendendo evolução segundo a Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann (2005). Essa evolução é imposta pelo que se chama, na linguagem exposta por Luhmann, de irritação causada pelo sistemas sociais que formam o ambiente do sistema jurídico, que funciona em prol da sociedade, o sistema mais abrangente. Essa irritação significa uma variação, uma alteração em como as coisas ocorrem, que exige, então, uma seleção, que é, a seu turno, contingente, no sentido de que sempre existe um número maior de possibilidades de solução. Feita a opção, no caso, então, com a edição de uma lei, passa-se ao último elemento da evolução, que é a adaptação sistêmica, ou readaptação, ou estabilização ou reestabilização, diante da inovação operada.

No caso da criminalidade contemporânea, visto que o sistema jurídico não opera com eficiência, ou não possibilita uma operação bem elaborada, considerando que houve evolução na prática de crimes, tanto que se organizaram,

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

isso significa uma variação, uma irritação sistêmica. Daí, então, advém a necessidade de eleger escolhas, opções, entre diversas que podem ser eleitas, com o objetivo de possibilitar um melhor “combate” à criminalidade. Feita a escolha, que deve ser amoldada aos ditames constitucionais, prossegue-se com a reestabilização sistêmica. Cumpre sempre deixar que, conforme Luhmann (2005), a evolução não pode ser causada, podendo somente ser estimulada. A edição de uma lei, conforme as opções do legislador, significam um estímulo à evolução, ou uma ressonância da evolução operada na sociedade. Nesse ponto, Marcelo Neves (2008, p. 7) explica que as estruturas inovadoras não tem “que se adaptar passivamente ao modelo estrutural já existente”, mas, em sentido contrário, “que as estruturas preexistentes se rearticulem para adequar-se às novas expectativas” (NEVES, 2008, p. 7), possibilitando a continuidade dinâmica da sociedade.

Portanto, no caso dos novos instrumentos legais para a investigação da criminalidade contemporânea, conforme Marcelo Neves (2008) a estrutura já existente é que deve se adaptar as inovações, não ao contrário. Evidentemente que há os limites constitucionais, que sempre devem ser observados.

Nesses termos, no Brasil vieram tarde essas leis que atualizaram as possibilidades de investigação. Todavia, o Brasil também está na periferia no que concerne a própria criminalidade organizada. Com efeito, as organizações criminosas chegaram ou surgiram no Brasil não faz muitas décadas, muito tempo depois daquele em que surgiram nos Estados Unidos, na Itália, no Japão, na China, ou na Rússia. Pode-se dizer, portanto, que embora tarde, chegaram no momento em que havia necessidade desses novos instrumentos legais.

A Lei nº 9.034, que é de 1995, e que dispôs sobre meios operacionais para a investigação dos crimes praticados por organizações criminosas, foi revogada pela Lei 12.850, de 2013, esta que, para além de dispor sobre os meios operacionais para investigação, definiu o que seja organização criminosa. Certo que, em 2012, com a Lei 12.694, já havia ficado definido o que seja organização criminosa, em termos legais.

Esse arcabouço legislativo trouxe os meios operacionais de investigação da ação monitorada, da infiltração de agentes, da escuta ambiental, da interceptação telefônica e tudo o mais que consta do art. 3º da Lei 12.850/2013, inclusive a colaboração premiada, acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, acesso a sigilo financeiro e fiscal e colaboração entre instituições de diversas esferas públicas. Desde a Lei 9.296, de 1996, que regulamentou o inciso XII do art. 5º da Constituição, já havia a possibilidade de interceptação telefônica. Mas, convém perceber, há uma distinção importante entre a Lei nº 9.296/1996 e a Lei 12.850/2013. Naquela é possível a interceptação telefônica para investigação

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Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição

criminal ou processual penal em hipóteses em que está envolvido o cidadão comum. A lei de 2013 trata de organizações criminosas. A respeito disso haverá digressão maior adiante, no próximo tópico.

Nesse quadro, não se pode olvidar da Lei nº 9.613/1998, chamada Lei da Lavagem do Dinheiro, que foi alterada pela Lei nº 12.683/2012. Esse estatuto legal trouxe a novidade da “função de compliance” ou função de controle da conformidade das operações realizadas por pessoas físicas ou jurídicas perante instituições financeiras, entre diversas outras, inclusive operações de aquisição de joias, obras de arte, moeda estrangeira, imóveis etc. Especialmente no âmbito das instituições financeiras a imposição de controle de conformidade aos regulamentos internos e externos, privados e públicos, éticos e legais, busca sedimentar um ambiente de honestidade, evitando-se uma das possibilidades de fomento às atividades ilícitas praticadas pelas organizações criminosas – a lavagem do dinheiro. Com efeito, pela prática de várias operações, em que as organizações criminosas perdem grande parte dos seus ganhos aos intermediadores diversos, elas tornam lícitos parte dos ganhos com as atividades ilícitas. Nesse sentido, a função de compliance, ou os agentes responsáveis por compliance, com os instrumentos de controle e com a possibilidade de sua responsabilização, viabilizam a comunicação de operações eventualmente ilícitas às autoridades, sob pena de eles responderem, civil e criminalmente, por sua omissão.

Esses atuais instrumentos legais postos à disposição das autoridades responsáveis pela investigação permitem o “combate” mais efetivo à criminalidade contemporânea, que possivelmente, analisados os efeitos em escala, causam muito mais mal do que a criminalidade de antes, que causava males e violências em menor escala, ou em escala numérica que se podia quantificar, diversamente da criminalidade praticada pelas organizações criminosas, que em muitas situações não é possível quantificar. Isso ocorre, por exemplo, na corrupção nas licitações públicas, nas quais grande parte do orçamento público é desviado, deixando de atender à finalidade da sua arrecadação: investimentos diversos na educação, na segurança, na saúde, na infraestrutura etc.

3. OS LIMITES CONSTITUCIONAIS, LEGAIS E JURISPRUDEN-CIAIS DA INVESTIGAÇÃO POLICIAL

A investigação policial sofre inúmeros controles, o que constitui uma aquisição evolutiva do Estado Liberal, percebendo-se, claramente, nesse ponto, o papel contramajoritário dos direitos fundamentais.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

Inicie-se por dizer que há o controle externo de incumbência do Ministério Público, nos termos do art. 129, VII, da Constituição. A Lei Complementar nº 75/1993, no caso da União, no art. 9º, estabelece como deve ser feito o controle externo da atividade policial. No Rio Grande do Sul há a Lei Estadual nº 11.578/2001, especificamente sobre o controle externo da atividade policial. Em outros Estados da Federação há semelhante legislação, mas o controle externo da atividade policial pelo Ministério Público fica limitado especificamente à atividade policial, no sentido de que não ocorram determinadas negligências ou omissões, especialmente que não haja proteções que possibilitem que determinados indivíduos se abriguem da persecução penal.

Iniciando pelo exame da jurisprudência, a atuação policial sofre determinadas limitações próprias de um Estado Constitucional e Democrático de Direito.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal5 estabeleceu algumas limitações a medidas que podem ser objeto de representação pela autoridade policial sem que haja prévia investigação. Assim, não é possível o exame e, então, o deferimento de representação de busca e apreensão baseada em mera

5 – Veja-se, por todos, a seguinte ementa: “HABEAS CORPUS” – RECURSO ORDINÁRIO – MOTI-

VAÇÃO “PER RELATIONEM” – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL – DELAÇÃO ANÔNI-

MA – ADMISSIBILIDADE – CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DOS REQUISITOS LEGITIMADO-

RES DE SEU ACOLHIMENTO – DOUTRINA – PRECEDENTES – PRETENDIDA DISCUSSÃO

EM TORNO DA ALEGADA INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS – IMPOSSI-

BILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO “HABEAS CORPUS” – PRECEDENTES – RECURSO

ORDINÁRIO IMPROVIDO. PERSECUÇÃO PENAL E DELAÇÃO ANÔNIMA – As autoridades

públicas não podem iniciar qualquer medida de persecução (penal ou disciplinar), apoiando-se, unica-

mente, para tal fim, em peças apócrifas ou em escritos anônimos. É por essa razão que o escrito anônimo

não autoriza, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração de “persecutio criminis”. –

Nada impede que o Poder Público, provocado por delação anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote

medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discri-

ção”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de

conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo,

a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse pro-

cedimento estatal em relação às peças apócrifas. – Diligências prévias, promovidas por agentes policiais,

reveladoras da preocupação da Polícia Judiciária em observar, com cautela e discrição, notadamente

em matéria de produção probatória, as diretrizes jurisprudenciais estabelecidas, em tema de delação

anônima, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. (...) Precedentes.

(RHC 117988, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE

MELLO, Segunda Turma, julgado em 16/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-037 DIVULG

25-02-2015 PUBLIC 26-02-2015).

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Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição

“informação anônima” de prática de delito. A autoridade policial deve realizar investigações subsequentes a eventual relato anônimo de infração penal e somente depois representar pela expedição de mandado de busca e apreensão domiciliar, ou pessoal.

Nos mesmos termos, há diversas providências preliminares ao pedido de interceptação telefônica, o que consta claramente na Lei nº 9.296/1996. O rigor é tanto nessa lei que, somente para exemplificar, vale lembrar do disposto no art. 2º, inciso II, que enuncia que a interceptação telefônica não é admitida “se a prova puder ser feita por outros meios disponíveis.” Nesses termos, a autoridade policial terá de justificar a representação pela interceptação telefônica deixando claro que há indícios razoáveis de autoria e de prática de infração penal (inciso I do art. 2º), esclarecendo, especialmente, que a prova não pode ser obtida por outros meios.

Esses limites infra-legais decorrem do próprio art. 5º XII, da Constituição, que desde esse texto original, prevê a inviolabilidade das comunicações telefônicas, salvo por ordem judicial, “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Ora, se a Constituição enuncia que a lei estabelecerá as hipóteses e forma possíveis, por evidente que a lei deve trazer essa disciplina, não cabendo, então, não criar hipóteses possíveis e forma, tudo permitindo. Certo que, nesse caso, a lei quer proteger os cidadãos que, eventualmente, se comuniquem com algum infrator, daí o rigor legal e constitucional. Por isso que não é possível pedir interceptações telefônicas sem o enquadramento legal e constitucional, nem, muito menos, deferir tal medida.

No caso dos instrumentos legais postos à disposição para fins de investigação policial da criminalidade contemporânea, convém dizer que, em relação à ação controlada e a infiltração de agentes policiais, já se encontravam previstas na Lei de Drogas nº 11.343/2006. Certo que a ação controlada já havia desde a Lei nº 9.034/1995, enquanto a infiltração de agentes foi incluída na Lei nº 9.034 pela Lei 10.217/2001, assim como a captação e interceptação de sinais acústicos ambientais.

Contudo, a ação controlada e a infiltração de agentes são possíveis tratando--se de organização criminosa ou de tráfico de drogas, não sendo permitidos esses instrumentos de investigação nas demais modalidades delituosas.

Portanto, cogitando-se de organização criminosa, como definida na Lei nº 12.850, que se caracteriza por uma ordenação estrutural com divisão de tarefas, ainda que informal, e constituída por 4 ou mais pessoas, verifica-se possível o pedido de investigação com o uso de instrumentos como o de infiltração de agentes ou de ação controlada.

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Diógenes V. Hassan Ribeiro

Questionamentos devem ser feitos, por outro lado, sobre se tais instrumentos podem ser utilizados com vistas a investigar e encarcerar pessoas que não se enquadram no conceito de organização criminosa, podendo, alguns, ser considerados traficantes. O sentido da Lei nº 11.343/2006 enseja resposta negativa.

Com efeito, relativamente à ação controlada o art. 53, II, possibilita “a não--atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível”. Nesses termos, o objetivo constante do próprio texto legal era o de que, com a ação controlada, ficasse possibilitada a responsabilização de um maior número de pessoas. Por igual, na infiltração de agentes, constante do inciso I do art. 53 da Lei de Drogas, está implícito esse objetivo.

Essa questão se colocou no julgamento da Apelação Criminal nº 70058671728, ocorrido na sessão de 6 de novembro de 2014, na 3a Câmara Criminal. No processo na origem foram denunciadas 12 pessoas, tendo sido condenadas, em primeiro grau, 10 delas por tráfico, 8 destas também por associação para o tráfico. A investigação policial toda se deu em um beco pobre, absolutamente humilde, de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, em que se localizavam casebres e um “cracódromo”. A operação, denominada “Castelo de Areia”, como se costuma fazer adotando nomes para tentar demonstrar uma certa importância, perdurou por cerca de 60 dias, com a apreensão, no período inteiro, de no máximo 30 gramas de maconha e de no máximo 5 gramas de crack. Não houve prisão ou investigação de pessoas mais influentes que aqueles moradores, pobres, paupérrimos do local formado de casebres, daquele beco. Noutras palavras, não foram identificados fornecedores de drogas que eventualmente possuíssem quantidades vultosas.

Ora, a despeito de parecer possível, nos termos da legislação, a operação realizada, certamente não se afigura adequada aos objetivos insertos na própria legislação. É certo que de organização criminosa não se tratava, pois o local da prática se constituía de um beco formado por casebres, lugar paupérrimo. Rememore-se que a Lei nº 12.850/2013 define organização criminosa como sendo dotada de estrutura ordenada com divisão de tarefas. Nesse caso, não se pode, nem de longe, dizer que havia uma estrutura, quanto mais uma estrutura ordenada. E a divisão de tarefas era uma divisão própria da pobreza em que se viam todos envolvidos, provavelmente todos usuários e dependentes.

E, quanto à Lei nº 11.343/2006, que no artigo 53 possibilita a ação controlada e a infiltração de agentes, há claramente o objetivo, como visto acima, de identificar

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e responsabilizar o maior número de pessoas envolvidas em operações de tráfico e de distribuição. No caso mencionado esse objetivo ficou frustrado totalmente, porque as pessoas que foram denunciadas eram, todas, moradoras do citado beco formado de casebres paupérrimos, possivelmente, convém reiterar, todos usuários e dependentes. Para fazer uma metáfora, usou-se um míssil supersônico e teleguiado para matar uma barata. Houve a utilização de instrumentos legais atualizados para denunciar e encarcerar pessoas pobres, moradores de um beco formado por casebres. É a própria criminalização da pobreza.

Não se pode dizer que tal não seja possível. Todavia, com total certeza, não foram esses os objetivos visados pelo legislador ao instituir no ordenamento jurídico instrumentos importantes e atualizados de combate à criminalidade contemporânea. E não se está pretendendo limitar a interpretação à teleológica.

Mais comedimento seria exigido e maior adequação à realidade.Sobre a infiltração de agentes, importante dizer que esse instituto também

comporta um comedimento de parte da autoridade policial postulante, assim como do Ministério Público e do Judiciário. A infiltração de agentes é medida que exige todas as cautelas e vem disciplinada nos artigos 10 a 14 da Lei nº 12.850/2013. Para exemplificar o rigor legislativo, basta ver o disposto no art. 10, § 2º: “será admitida a infiltração se houver indícios de infração penal de que trata o art. 1º e se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis.” Portanto, se a prova puder ser produzida por outros meios, não é lícita a infiltração de agentes e, ainda, somente é lícita se houver indícios de organização criminosa. Tudo isso deve ser plenamente justificado, os pedidos devem ser demonstrados, e a decisão judicial deve ser fundamentada. Mas não são somente esses os requisitos para a autorização judicial de infiltração de agentes. Há outros, como se constata pela leitura dos citados artigos.

Fundamentalmente a lei quer proteger o agente infiltrado e não é possível deixar de ter cautela máxima nesse ponto. O agente infiltrado deve ter uma capacidade especial para desempenhar essa ação investigativa, pois correrá riscos e poderá praticar delitos, em relação aos quais poderá ser responsabilizado se não houver proporcionalidade.

Um questionamento se impõe a propósito da infiltração de agentes. Como houve novo tratamento legal com a Lei nº 12.850/2013, que restringiu o seu cabimento, de maneira expressa, à hipótese de organização criminosa, perfeitamente possível interpretação de que ficou, nessa parte, derrogado o art. 53 da Lei de Drogas. Nesse ponto convém perceber que o tratamento legal constante

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da Lei de Drogas, do ano de 2006, é rudimentar, ou seja primitivo, enquanto que o tratamento legal da infiltração constante da Lei de Organizações Criminosas, de 2013, é bem mais aprimorado e adequado. Basta ver que, na Lei de Drogas, consta de um parágrafo, enquanto que, na Lei de Organizações Criminosas, consta de 5 artigos, vários parágrafos e muitos incisos.

Além do exposto, o instrumento de investigação da infiltração de agentes não pode ser utilizado de modo temerário, impróprio, inadequado, sem as cautelas que se devem exigir. O risco de morte do agente impede que se permita esse instrumento de investigação de forma desarrazoada.

No caso do julgamento da Apelação Criminal nº 70058671728 há mais para ser dito, pois houve autorização judicial para a aquisição de drogas pelo agente infiltrado. Bom, convém dizer, desde logo, que a suposta infiltração resumiu-se a isso: possibilitar ao agente a aquisição de drogas. Ao contrário disso, a infiltração de agentes supõe a possibilidade de o agente infiltrar-se numa organização criminosa e, juntamente com os demais componentes da organização, praticar delitos de diversas espécies, podendo, até, ter de cometer homicídios para proteger a si próprio e à sua identidade de policial. Essa é a gravidade. Todavia, no caso daquele processo, o que houve foi autorização para aquisição de drogas e a infiltração se limitou a isso. Na verdade não houve infiltração de agentes.

Por outro lado, ainda que se considere o crime de tráfico como delito de ação múltipla ou tipo misto alternativo de conteúdo variado, pois são diversos os verbos e alternativas podem ser as ações praticadas e, nesses termos, antes da venda, provocada, teria havido já a prática do verbo “guardar” pelo autor do ato ilícito penal, no caso daquele processo há dado importante a ser observado. Ora, houve a imputação de 14 fatos. O segundo dos fatos consistiu na venda de 20 decigramas, ou 0,2 gramas, de crack; o terceiro fato consistiu na venda de 28 decigramas, ou 0,28 gramas de crack; o quarto fato consistiu na venda de 50 decigramas, ou 0,5 gramas de crack; o sétimo fato consistiu na venda de 90 decigramas, ou 0,9 gramas, de crack, e de 1,26 gramas de maconha. As drogas, naquelas ocasiões dos fatos foram vendidas e entregues por pessoas diversas, inclusive adolescentes, em alguns casos houve a venda pelos mesmos indivíduos ao “agente infiltrado” que, é de pasmar, tinha autorização judicial para adquirir drogas. A pergunta que se impõe, diante da suposta infiltração e, então, busca de aquisição de drogas pelo agente infiltrado, é sobre se as drogas vendidas não se destinavam ao consumo dos vendedores, considerando as pequeníssimas quantidades, os quais, diante de eventual insistência de compra, se desfizeram da droga, por solidariedade, ou

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Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição

para a obtenção de dinheiro, quando, na verdade, talvez não fossem traficantes os envolvidos e que entregaram a droga para o suposto agente infiltrado. Fossem somente usuários.

Nessa hipótese fica clara a provocação ao crime, pois os supostos vendedores da droga poderiam possuí-la para seu consumo, mas somente a teriam vendido diante da insistência da compra. Desvanece-se, assim, a hipótese de prática de tráfico, na modalidade de guardar para o tráfico, caracterizando-se a hipótese de guardar para o uso, caso em que se configura, inarredavelmente, a hipótese de flagrante provocado, que caracteriza o crime como impossível, em conformidade ao verbete nº 145 da Súmula do Supremo Tribunal Federal: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

Existem limites à investigação policial.

3.1 O papel contramajoritário dos direitos fundamentaisA casa como asilo inviolável, a exigência de fundamentação das decisões

judiciais, o rigor legal e judicial para o deferimento de interceptações telefônicas, a legislação atual que estabelece instrumentos de investigação com vistas a facilitar o combate à criminalidade contemporânea e seu rigor, colocam enfim um contexto de limitações fundados no aspecto ou papel contramajoritário dos direitos fundamentais.

Desde Ronald Dworkin (2005) se concebe esse papel contramajoritário da Constituição. Em determinada passagem de sua obra Uma Questão de Princípio, esse jusfilósofo concebe a suposição de haver sido eleito um parlamento que, por uma maioria, decida instituir crime pronunciar-se a favor de uma posição política impopular ou participar de práticas sexuais excêntricas, uma vez que a maioria reprova essas opiniões ou essa moralidade sexual. Esta, como uma decisão de natureza política em que há o predomínio de um corpo de preferências externas. A decisão, então, mais viola do que aplica o direito de que todos sejam tratados igualmente. Aí, então, ele pergunta: “como o liberal pode proteger os cidadãos contra esse tipo de violação de seu direito fundamental?” (DWORKIN, 2005, p. 293-294).

Nesse ponto, então, surge a concepção de papel contramajoritário da Constituição e dos direitos fundamentais.

Noutra passagem de sua obra, Dworkin (2005, p. 130) põe a seguinte conclusão:

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Portanto, mesmo no mundo real, as decisões majoritárias que estabele-cem um nível particular de exatidão em decisões criminais anteriormente a julgamentos específicos, pela escolha de normas de prova e outras deci-sões processuais, somente poderão ser acusadas de injustiça séria se essas decisões fizerem discriminação contra algum grupo distinto, de uma ou outra das maneiras retratadas.

Robert Alexy também tratou desse papel contramajoritário dos direitos fundamentais. Disse o jusfilósofo alemão que “os direitos fundamentais da Constituição Alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar simples” (ALEXY, 2009, p. 446-447).

Assim, mesmo que interesse a maioria a segurança pública e a condenação dos criminosos, interessa muito mais, e sobretudo, a salvaguarda dos direitos fundamentais e da Constituição Federal. Interessa, então, a prevalência do princípio do devido processo legal, que teve sua origem na Magna Charta do Rei João Sem Terra, de 1215, há exatos 800 anos. Importa prevalecer o princípio do estado de inocência e importa prevalecer a proteção da casa, como asilo inviolável, a proteção da privacidade, a exigência de decisão judicial fundamentada, embora a possibilidade de ingresso na casa do cidadão, desde que observados os parâmetros constitucionais, e a violação do sigilo das comunicações telefônicas, desde que observada a legislação aplicável.

No que tange ao combate à criminalidade contemporânea, o legislador deve dotar o sistema de segurança pública em geral e o aparato policial de instrumentos legais atualizados, mas sempre com os olhos voltados para os direitos fundamentais. E, sobretudo, as autoridades policiais, o Ministério Público e, enfim, o Poder Judiciário, todos devem observar os limites legais e constitucionais, em interpretação sempre estudada e aprimorada, pois os fins não devem prevalecer sobre os meios.

CONCLUSÃO

Objetivou-se apresentar essa pesquisa, em modelo praticamente dogmático, especialmente como uma contribuição ao debate acadêmico e, porque não jurisdicional, acerca dessas limitações que são, na nossa compreensão, impostas às investigações policiais.

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De modo sucinto, sabe-se que houve uma sensível evolução na criminalidade dos tempos atuais, especialmente no Brasil, daí tendo havido a necessidade de o sistema jurídico evoluir para poder fazer frente, inclusive e sobretudo, na investigação. E o sistema jurídico recebeu escolhas legislativas importantes. Todavia, ainda que haja pressão da opinião pública, pressão da maioria dos cidadãos e da classe política que lhe faz eco, não é possível suplantar os direitos fundamentais e a Constituição, muito menos o rigor previsto na própria legislação. A concepção de “papel contramajoritário dos direitos fundamentais” deve estar sempre em vista e servir de modelo de partida.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2009.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação- -crime nº 70058671728. Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro. Data de julgamento: 06/11/2014. Data de publicação: 06/11/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1848533. Acesso em: 22/06/2015.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. México: Editorial Herder/Universidad Iberoamericana, 2005.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora e Wolters Kluwer Portugal, 2a ed., 2010.

O PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ NO PROCESSO PENAL

Nereu José Giacomolli1

INTRODUÇÃO

A delimitação do tema a ser abordado poderia ser abrigado sob vários mantos do processo penal, tais como a jurisdição, a prova, a audiência ou o decisum. Com a ancoragem em qualquer dessas perspectivas, a tradição recomendaria, adotando-se uma metodologia tradicional, a sustentação, antes do enfrentamento da delimitação, em um assento no elemento de sua afetação. Contudo, em face da metodologia do case study, a abordagem parte da enunciação fática, das considerações jurídicas do princípio da identidade física do juiz e do que decidido. O problema a ser considerado é: quando é exigível, no processo penal, a identidade física entre o juiz que colheu a prova em audiência e o decisor? A hipótese ou resposta provisória é a sua relativização, diante de situações fáticas concretamente avaliadas e das novas formas de documentação do processo e dos atos processuais.

Por isso, em um primeiro momento o capítulo descreve o fato submetido a julgamento no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Posteriormente, são enunciados alguns enfoques acerca do princípio da identidade física do juiz para, em um terceiro momento, discutir a hipótese.

1 – Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madri, Professor da graduação,

mestrado e doutorado na PUCRS. Ex-desembargador, advogado e parecerista.

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1. CASE ANALISADO

Em uma Comarca do Estado do Rio Grande do Sul, o Ministério Público ofereceu denúncia contra um sujeito, como incurso nos artigos 33, caput, e 35 da Lei 11.343/06, bem como no artigo 244-B da Lei 8.072/1990, na forma do artigo 69 do Código Penal. Segundo a peça incoativa, o acusado teria se associado com uma adolescente de 18 anos de idade, com o fito de praticarem o delito de tráfico de drogas. Em determinado dia, policiais militares foram até a residência do suspeito. Este, ao avistar os policiais, fugiu. Ao ser perseguido, foi revistado. Os policiais encontraram com ele a droga (3,2g de crack e 2,46g de cocaína), dinheiro, celular. Ao retornarem à residência do acusado, apreenderam com a adolescente, 4,2g de maconha, 4,2g de crack, celular sem chip e dinheiro. Após o recebimento da denúncia, o réu foi notificado e apresentou defesa. No decorrer do processo foram escutadas testemunhas e interrogado o réu. Em alegações escritas, o Ministério Público pediu a condenação, nos moldes da acusação formulada. A defesa, por seu turno, fez os seguintes pedidos: absolvição, desclassificação para uso, reconhecimento da causa de diminuição da pena do artigo 33, parágrafo quarto, da referida lei. A sentença condenou o réu como incurso no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, combinado com o artigo 61, inciso I, do Código Penal, com pena privativa de liberdade cinco anos e nove meses de reclusão, em regime fechado, em face da pena e reincidência. Ademais, foi aplicada uma multa. Em razões de apelação, a defesa sustentou a preliminar de descumprimento do princípio da identidade física do juiz, vez que o magistrado que proferiu a sentença não foi o mesmo que presidiu a instrução, pugnando pela nulidade do processo. No mérito, debateu as mesmas teses das alegações finais, acrescentando a possibilidade de redução da pena. Houve contrarrazões, os autos foram remetidos ao Tribunal de Justiça. Após o parecer do Ministério Público, o feito foi submetido a julgamento (TJRS, processo n. 70052652922).

O acórdão recebeu a seguinte ementa: Apelação, tráfico de entorpecentes, preliminar de identidade física do juiz no processo penal. Segundo o art. 399, § 2º, do CPP, o magistrado que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Essa determinação legal há de ser interpretada dentro da normalidade dos fatos da vida e das demais disposições do sistema criminal, numa perspectiva do racional e razoável. Um dos nortes possíveis é a aplicação subsidiária do disposto no artigo 132 do CPC como critério para definir, a priori, as hipóteses de exceção à identidade física do magistrado no processo penal. De qualquer forma, em todos os casos, a

O princípio da identidade física do juiz no Processo Penal

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inaplicabilidade do art. 399, § 2º, do CPP há de ser devidamente fundamentada nos autos, nos termos do artigo 93, IX, da CF. Acolhida a preliminar e desconstituída a sentença.

2. DISCUSSÃO DA HIPÓTESE DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ

A normatividade ordinária do princípio da identidade física do magistrado, no âmbito do processo penal, foi introduzida pela reforma parcial do Código de Processo Penal, através Lei 11.719/08. Esta, outorgou nova redação ao artigo 399, § 2º, do Código de Processo Penal: “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”. Trata-se, no caso, do princípio da identidade física do juiz, até então de aplicação afeta ao âmbito do Código de Processo Civil, agora substituído por uma novel legislação.

É de notar que Chiovenda (2000, p. 64 e 65) já fazia menção ao princípio da imediação da relação entre o juiz e as pessoas cujas declarações devia apreciar, a exigir um contato direto do magistrado com o ato de produção das provas a partir das quais extrairia seu convencimento, de modo a permitir uma melhor apreciação das declarações das partes e das testemunhas, além de uma mais apropriada compreensão das circunstâncias que envolvem o fato objeto do julgamento. Esse princípio, segundo Chiovenda (2000, p. 61), decorre diretamente do princípio da oralidade, segundo o qual o processo deve ser orientado pela prevalência da palavra como meio de expressão combinada com o uso de meios escritos de preparação e de documentação.

Ainda, na perspectiva da construção do princípio da identidade física, na esfera do processo civil, Carneiro (1996, p. 173) o situa como perfeitamente compatível com os processos predominantemente escriturais, nos quais a forma escrita aparece como regra à propositura da demanda, da defesa e para a apresentação de recursos. Portanova (2005, p. 241) explica decorrerem da oralidade os princípios da imediaticidade, da concentração, bem como o da identidade física do juiz, na medida em que seu objetivo se traduz na produção de provas de forma oral, na presença do magistrado, quem deverá decidir de forma imediata, sem intermediários, aproveitando-se da presença da prova na sua mente. Por isso, segundo este autor, justifica-se a concentração dos atos processuais em uma única audiência, e a exigência de que o juiz sentenciante seja o mesmo que atuara na colheita das provas.

Sustentado por essa principiologia, o Código de Processo Civil de 1939 incorporou à sistemática processual pátria o princípio da identidade física do juiz,

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constando da sua exposição de motivos, da lavra de Francisco Campos citado por Carneiro (1996, p. 174), in verbis:

O princípio que deve reger a situação do juiz em relação à prova e o de concentração dos atos do processo postulam, necessariamente, o princí-pio da identidade física do juiz. O juiz que dirige a instrução do processo há de ser o juiz que decida o litígio. Nem de outra maneira poderia ser, pois o processo visando à investigação da verdade, somente o juiz que tomou as provas está realmente habilitado a apreciá-las do ponto de vista do seu valor ou da sua eficácia em relação aos pontos debatidos.

Esse regramento, segundo destaca Portanova (2005, p. 242), tido por absoluto durante a vigência do Código de Processo Civil de 1939, foi flexibilizado com o advento da Lei processual de 1973, a qual, em sua exposição de motivos referiu não ser possível a consagração de uma aplicação tão rígida e inflexível ao princípio da identidade física. Daí a redação original do artigo 132 do Código de Processo Civil, preservando, como regra, a identidade física do juiz, salvo nos casos de remoção, promoção ou aposentadoria. Essa redação foi relativizada, ainda, por ocasião da Lei 8.637/93, a qual incluiu, dentre as hipóteses de exceção ao princípio da identidade física do juiz, além das já mencionadas na anterior redação, a convocação, a licença, e o afastamento do juiz por qualquer motivo, casos nos quais os autos devem ser encaminhados ao seu sucessor. Assim, consta da redação hoje vigente do artigo 132, caput, do Código de Processo Civil, in verbis: “o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor”.

Nota-se uma crescente relativização do princípio da identidade física do juiz no ordenamento processual civil brasileiro. Constava, no artigo 132 do Código de Processo Civil, uma cláusula de abertura tal (afastado por qualquer motivo), que praticamente em todas as hipóteses estaria justificado o seu não cumprimento. De qualquer forma, as demais hipóteses ali listadas, expressamente pelo legislador, conformariam o dispositivo legal ao princípio da razoabilidade, de modo a permitir a compatibilização do princípio da identidade física do juiz à dinâmica da carreira jurisdicional, evitando, por exemplo, os problemas decorrentes da promoção ou da aposentadoria de um magistrado, antes da conclusão dos processos distribuídos. Aponta, nesse sentido, Carneiro (1996, p. citação direta curta), que se está diante de

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uma “norma cogente de competência funcional: o juiz que houver concluído a audiência, deverá necessariamente manter-se como juiz da causa e nesta prolatar a sentença, salvante nos casos taxativamente previstos como regra legal”. (Grifos no original).

O princípio da identidade física do juiz estava previsto no projeto de reforma do Código de Processo Civil: “Artigo 112. O juiz que concluir a audiência de instrução e julgamento resolverá a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que tiver que proferir a sentença poderá mandar repetir as provas já produzidas, se entender necessário.” Contudo, o princípio da identidade física do juiz foi retirado do projeto de reforma do Código de Processo Civil, já aprovado, mas ainda não em vigor.

Segundo o artigo 399, § 2º, do Código de Processo Penal, o mesmo juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. Tal disposição situa-se num plano ideal, aproximativo da perfeição, desvinculado da realidade da demanda processual e da movimentação dos magistrados. O ideal seria que todas as testemunhas fossem encontradas e comparecessem na audiência; que não fosse necessário conduzir testemunhas; que as alegações finais fossem orais, que houvesse, realmente, debates e não ditados; que a sentença fosse proferida na audiência. Entretanto, a realidade processual criminal brasileira é bem diferenciada e não comporta esferas de obrigatoriedade herméticas, de modo que uma interpretação razoável desse dispositivo se direciona na obrigatoriedade de atingir o magistrado que colheu e ouviu as alegações finais orais (GIACOMOLLI, 2008. p. 72), desde que não documentadas eletronicamente em áudio e vídeo.

Inafastável que o princípio da identidade física do juiz há de ser interpretado à luz do princípio da razoabilidade, de forma a orientar que, na medida do possível, o magistrado responsável pela colheita da prova e pela oitiva das alegações finais seja o prolator da sentença. Isso, entretanto, nem sempre será viável. Contudo, isso deverá estar expressamente justificada nos autos, na medida em que não se pode partir da premissa de que se outro juiz proferiu a sentença foi porque o que colheu os debates não pode proferir a decisão. Trata-se, portanto, de um princípio de direito processual penal de natureza relativa, não absoluta, a orientar a atuação dos juízes no âmbito criminal. Não fosse assim, estaríamos retrocedendo ao entendimento que deu ensejo à inserção do princípio da identidade física do juiz no Código de Processo Penal de 1939, dando-lhe roupagem absoluta, como se a dinâmica decorrente da atual realidade processual criminal brasileira permitisse uma regra nesses moldes.

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Nessa perspectiva, um critério norteador de interpretação ao artigo 399, § 2º, do Código de Processo Penal, há de fundar-se em sua razoabilidade casuística, mas justificada em critérios fáticos e jurídicos (fundamentação idônea), admitindo-se a sua não observância em casos nos quais, efetivamente, não seja possível ao juiz responsável pela colheita da prova e/ou colheu os debates, proferir a sentença.

Com efeito, o legislador deixou claro, no decorrer de toda a Lei 11.719/08, a intenção de adequar os procedimentos penais ao princípio da oralidade e da concentração, estabelecendo a realização de audiência una e o encerramento da instrução com debates orais entre as partes. Daí porque o princípio da identidade física do juiz deve ter, na medida do possível, potencializada sua efetividade no processo penal. Nessa linha, aplicáveis as hipóteses listadas no artigo 132 do Código de Processo Civil apenas de forma exemplificativa, para estabelecer, como regra, a razoabilidade da não aplicação do princípio da identidade física do juiz nos casos de promoção, aposentadoria, licença e convocação do magistrado que atuou na colheita da prova, e que, por isso, ficou impedido de sentenciar o feito (SANTOS, 2008, p. 329).

Nesse sentido é a lição de Oliveira (2009, p. 284), ao destacar que o artigo 132 do Código de Processo Civil “não só pode, como deve, ser aplicado subsidiariamente”, pois o Código de Processo Penal não proíbe a aplicação de legislação de outra espécie, e também porque “as regras de substituição do Código de Processo Civil (art. 132) visam resguardar o regular andamento processual”, listando situações processuais nas quais a prolação de sentença pelo juiz da instrução tumultuaria o trâmite do feito, quando não consistisse em regra de aplicação impossível, como no caso de aposentadoria do magistrado.

Não há como acolher, em sua totalidade, a doutrina antes referida, mormente quando admite a aplicação integral e subsidiária do artigo 132 do Código de Processo Civil ao âmbito criminal. Isso porque a referida “cláusula de abertura” retira quase a totalidade da eficácia do princípio da identidade física do juiz. É mais adequado, do ponto de vista da avaliação da prova, como forma de definição a priori dos casos de não aplicação do princípio da identidade física do juiz, a utilização apenas das hipóteses de promoção, aposentadoria, licença e convocação dos magistrados, reservando as demais hipóteses às circunstâncias específicas de cada caso examinado. A supressão deste princípio no novo Código de Processo Civil torna mais problemática a discussão das hipóteses que o excepcionam. Outro aspecto que potencializa a problemática diz respeito à documentação em áudio e vídeo das audiências, o que possibilita ao julgador o contato integral com a prova.

O princípio da identidade física do juiz no Processo Penal

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Contudo, o juiz que colhe a prova possui uma amplitude bem maior do ambiente e das reações das pessoas que estiverem depondo.

Da expressa previsão do princípio da identidade física do juiz no Código de Processo Penal se infere que os magistrados, ao receberem os processos para sentenciar, em não havendo presidido a instrução, deverão justificar o motivo por que o estão fazendo. As alegações orais ou debates deverão ser renovados, salvo a ocorrência de “ditado” ou de alegações escritas e não debates. Na mesma perspectiva, os magistrados que iniciarem a instrução e não a concluírem, ou não sentenciarem estes processos, deverão justificar o motivo nos autos, sob pena de retirar qualquer eficácia do princípio da identidade física do juiz. Em se tratando de princípio expressamente previsto no Código de Processo Penal, a sua não--observância deve ser devidamente fundamentada, pois o disposto na Constituição Federal não é mera fotografia a ser olhada e admirada, mas há de ser efetiva (art. 93, IX, CF).

CONCLUSÃO

No caso submetido à apreciação do Tribunal, nada constou no processo acerca dos motivos pelos quais a sentença penal foi proferida por magistrado diverso do que havia presidido a instrução processual. Além disso, o juiz responsável pela colheita da prova apenas não proferiu a sentença, retornado ao comando do processo quando do recebimento do recurso. Por isso, a Câmara acolheu a preliminar de nulidade suscitada pela defesa, em face da ausência de justificação nos autos do descumprimento do princípio da identidade física do juiz e determinou que outra sentença fosse proferida, pelo magistrado que havia colhido a prova e que continuava conduzindo o processo. Contudo, a aplicação do princípio da identidade física do juiz, diante dos avanços rumo ao processo eletrônico e a documentação dos atos processuais em áudio e vídeo deverá receber o devido redimensionamento.

REFERÊNCIAS

BACIGALUPO, E. La Técnica de Resolución de Casos Penales. Madri: Colex, 1995.

CARNEIRO, A. G. Temas atuais de direito e de processo. Brasília: Brasília Jurídica, 1996.

Nereu José Giacomolli

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CHIOVENDA, G. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 2000. v. III.

FERRUA, P. Il giusto processo. Bologna: Zanichelli, 2011.GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do Processo Penal: considerações

críticas. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008.GREVI, V. Alla ricerca di un processo penale “giusto”: Itinerari e prospettive.

Milão: Giuffrè, 2000.PACELLI DE OLIVEIRA, Eugênio. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2009.PORTANOVA, R. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2005.SANTOS, L.G. Procedimentos – Lei 11.719/08, de 20.06.2008. In: MOURA,

M. T. R. (Org.). As Reformas no Processo Penal: as novas Lei de 2008 e os Projetos de Reforma. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

A RESPONSABILIDADE PENAL POR EXTERMÍNIO DE ANIMAIS: UM ESTUDO DE CASO

Newton Brasil de Leão

Habeas Corpus nº 70063142665 (N° CNJ: 0506829-42.2014.8.21.7000) – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Bom Jesus

Ementa: HABEAS CORPUS. EXTERMÍNIO DE ANIMAIS. PRISÃO PREVENTIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO. ORDEM DENEGADA.

Partes: Adelar Velho Varela, impetrante – Rafael Oliveira Silveira, paciente – Juiz de Direito, coator.

ACÓRDÃOAcordam, os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, em denegar a ordem. Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. IVAN LEOMAR BRUXEL E DES. ROGÉRIO GESTA LEAL.

Porto Alegre, 12 de fevereiro de 2015.Des. Newton Brasil de Leão, Relator.

RELATÓRIO1. Trata-se de Habeas corpus, impetrado em favor de RAFAEL OLIVEIRA

SILVEIRA, preso preventivamente, pela prática de extermínio de animais, desde 17/12/2014, em Bom Jesus/RS.

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Newton Brasil de Leão

Alegando, o impetrante, ilegalidade da prisão cautelar, por não preenchidos seus requisitos, e favoráveis as condições pessoais do paciente, requer concessão da ordem.

O pedido liminar foi indeferido, e as informações prestadas.Sobreveio parecer do Dr. Procurador de Justiça, em que opina pela

denegação.É o relatório.

VOTOS2. Traduz, o parecer das fls. 35/38, meu entendimento acerca do que ora é

submetido à Câmara. Por isso, e também como forma de evitação de despicienda tautologia - o que admitido, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, disso exemplos os julgamentos dos HC 102903/PR (STF) e 244963/SP (STJ) -, é que de dito parecer transcrevo, valendo-me da fundamentação ad relationem, integrando ao voto, com vênia do ilustrado Procurador de Justiça, Dr. Silvio Miranda Munhoz, que o lavrou, o que segue, in verbis:

“Conforme informado pelo juízo de origem, o Ministério Público requereu a prisão preventiva do paciente, a qual deferida e efetivada em 17 de dezembro de 2014, fundamentada na garantia da ordem pública e na conveniência da instrução processual, em razão da instauração de Inquérito Policial que investiga o envolvimento do paciente, em conjunção de esforços com outras pessoas, no extermínio de cães e gatos no Município de Bom Jesus/RS.

Os pedidos de liberdade provisória veiculados em 1ª instância foram indeferidos, sob o fundamento de as condições pessoais do paciente não serem favoráveis, porque, quando da prática da conduta deliiva, já estava submetido a rigorosas medidas cautelares criminais, por conta da conjunto de graves fatos a ele imputados, consoante despacho acostado, extraído do site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Em janeiro de 2015 o Ministério Público ofereceu denúncia contra o paciente, RAFAEL OLIVEIRA SILVEIRA, e os demais investigados, OBERDAN CALLAI CHAVES, LUIS FABIANO CARDOSO e VINÍCIUS CHISSINI NUNES, imputando--lhes as sanções dos delitos tipificados no artigo 288 do Código Penal, no artigo 32, § 2º, da Lei 9.605/98 (126 vezes, em continuidade delitiva) e no artigo 278 do Código Penal, tudo na forma do artigo 69 do mesmo diploma legal, tendo o paciente, RAFAEL, incidido na causa agravante do artigo 62, inciso I, do Código Penal, conforme cópia da denúncia, em anexo.

Esse o ocorrido.

A responsabilidade penal por extermínio de animais: um estudo de caso

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Nessa seara, de cognição sumária, necessário aferir acerca da existência da prova da ocorrência do crime e indícios suficientes da autoria, na forma do disposto no art. 312 do CPP. Pressupostos presentes no caso, conforme demonstram os documentos constantes no apenso.

De plano, por curial, saliento ser qualquer análise e discussão acerca da prova colhida em sede policial, relativa à dúvida quanto à participação do paciente no extermínio de cães e gatos no município de Bom Jesus/RS, absolutamente inviável em sede de ‘habeas corpus’, pois inadmitido o exame aprofundado de provas, considerando sua natureza de cognição sumária1. Aliás, há momento processual adequado para a apreciação profunda da prova: a sentença.

A propósito trago colação o seguinte acórdão, demonstrando ser essa a orientação desta Corte:

‘HABEAS CORPUS. CRIME DE ARMAS – PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ARTIGO 16 - \’CAPUT’\, DA LEI Nº 10.826/03) E DELITO DE CORRUPÇÃO DE MENORES (ARTIGO 244-B, DA LEI Nº 8.609/90). TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. A denúncia oferecida contra o paciente atende aos requisitos do artigo 41, do CPP, não se configurando como inepta, porquanto imputa a ele a prática, em tese, dos delitos supra mencionados. O Habeas Corpus não é meio idôneo para a discussão e apreciação de prova, quando se pretende o trancamento da ação penal, por falta de justa causa, o que somente é possível em circunstâncias e condições especialíssimas. Não é o caso dos autos. As condutas descritas na denúncia caracterizam crimes, em tese, inviável, por isso, o trancamento da ação penal. [...]. O âmbito estreito do habeas corpus não comporta aprofundado exame de prova, inviabilizando que se analise as teses defensivas suscitadas na impetra-ção. Em que pese a alegação defensiva posta na presente impetração, não se verifi ca a existência do apontado constrangimento ilegal imposto ao paciente. Com efeito, não há como acolher o pedido visando o trancamento da ação penal. Ao contrário, verifi ca-se que há elementos que tornam possível a par-ticipação do paciente nos delitos noticiados, o que demonstra a regularidade da acusação proposta na peça incoativa, em princípio. Por fi m, acrescento que

1 – Nesse sentido: STF: HC 105836, Relator Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 02 de dezembro

de 2010; STJ: HC 181.973/DF, Relator Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 16 de dezembro

de 2010.

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Newton Brasil de Leão

não há ilegalidade na propositura da demanda. Os fatos, à toda evidência, trazem em seu bojo base informativa sufi ciente para a formação da ‘opinio delicti’ do Ministério Público e conseqüente ‘fumus’ para a apresentação de denúncia ou seu aditamento, como ocorreu na espécie. Com efeito, é cediço que para apresentação da peça inicial acusatória, não se faz necessária a com-provação imediata do ali articulado. Basta, em tese, tão-somente que haja sufi ciente ‘fumus boni iurius’, para que o agente ministerial, cumprindo seu múnus, apresente a acusação. Razão pela qual, mostra-se adequado que, por ora, se mantenha a ação penal nos moldes em que tramita. ‘DA AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA: Só é cabível o trancamento do inquérito policial ou da ação penal, segundo orientação do Supremo Tribunal Federal, quando não há fato confi gurado como crime ou quando não houver qualquer indício de autoria – HC 80516/PE. É de se observar, também, segundo a jurisprudência do Pretório Excelso, que “... o HABEAS não é meio idôneo para verificar a existência ou não de justa causa, quando implicar em profundo exame do conjunto probató-rio.”, pois “Não é admissível, no processo de habeas corpus, o exame aprofundado da prova.” (HC 76557/RJ, relator Ministro Marco Aurélio, j. em 04/08/1998, 2ª Turma). “A negativa de autoria e a alegação de que inexiste nos autos prova de sua participação no delito implicam o exame de todo o conjunto probatório, o que é inviável em sede de habeas corpus.” (HC 76381/SP, relator Ministro Carlos Velloso, j. em 16/06/1998, 2ª Turma). Não podemos esquecer que o entendimento acima mencionado também encontra abrigo na orientação do egrégio Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifica nos precedentes das Turmas (5ª e 6ª) in-tegrantes da 3ª Seção. A pretensão, por tal fundamento, não merece acolhida, pois o fato não é evidentemente atípico e há indício de autoria. [...]. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA”. (Habeas Corpus Nº 70035080415, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Rela-tor: José Antônio Cidade Pitrez, Julgado em 29/04/2010). (Grifei).

Portanto, estando presentes os pressupostos relativos à prova da existência do crime e indícios suficientes da autoria, não há constrangimento ilegal a ensejar soltura por meio do remédio heroico, como pretende fazer crer o impetrante.

Sustenta o impetrante, ser ilegal a prisão cautelar do paciente, pois não pode estar fundamentada na garantia da ordem pública, enquanto os demais envolvidos, dentre os quais, dois são confessos, permanecem soltos. Além disto, eventual abalo à ordem pública não decorre da prática, pelo paciente, de ato único e exclusivo, mas da conjunção de esforços

A responsabilidade penal por extermínio de animais: um estudo de caso

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de determinadas pessoas, as quais, inclusive, imputam ao mesmo menor participação já que, enquanto Secretário Municipal, teria apenas ordenado o extermínio dos animais, não tendo participado dos atos executórios.

Ao contrário do asseverado, não vislumbro a ilegalidade apontada, pois, a documentação acostada evidencia a periculosidade social do paciente, ante a gravidade concreta das condutas praticadas, notadamente porque além deste tramitam contra ele outras duas ações penais por crimes de homicídio.

Nesse particular, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a possibilidade de reiteração delitiva constitui fundamento idôneo para a decretação da custódia cautelar, uma vez evidenciada, como no caso, em dados concretos do processo-crime2.

O abalo à ordem pública é incontroverso, não apenas por conta do meio cruel utilizado para exterminar os animais, mas, devido a ação ter sido decorrente de uma ordem institucional, ou seja, do Secretário de Desenvolvimento Municipal, ora paciente, e o fato chocou toda comunidade e ganhou repercussão nacional em todos os canais de notícias.

Aliás, diversamente do alegado pelo paciente, dar ordem para os demais praticarem o extermínio de animais não é participação de menor importância, muito pelo contrário, faz incidir causa agravante, porque, na condição de chefia, instigou servidores sujeitos à sua autoridade a executar atos sabidamente ilegais e por meio cruel.

Outrossim, sustenta o impetrante a ilegalidade da manutenção da segregação cautelar é ilegal, porquanto não restou demonstrado a possibilidade do paciente influenciar na instrução processual.

Apenas para não deixar passar em branco, não vislumbro, igualmente, a ilegalidade apontada.

Embora os inúmeros documentos acostados pelo impetrante buscando provar não haver o paciente ameaçado os corréus, o contexto fático induz à conclusão no sentido de caso mantida a liberdade pode, sim, o paciente prejudicar o andamento do feito, a instrução processual e também a aplicação da lei penal, bem como ofender a ordem pública com a prática de novos delitos, pois assim agiu na fruição de medidas cautelares concedidas por conta dos outros processos criminais.

Assim, comprovada a periculosidade social do paciente, resta evidente a configuração do ‘periculum libertatis’, conduzindo à conclusão inarredável do acerto da decretação da prisão preventiva, sendo insuficiente, por ora, a imposição de outra medida cautelar.

Por derradeiro, condições pessoais favoráveis, tais como ter ocupação lícita e residência fixa, por si sós, não impedem a medida coercitiva adotada, pois não afasta a gravidade

2 – HC 119385, Relatora Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, j. 18/12/2013.

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concreta do ato praticado pelo paciente, do qual sobressai a necessidade do encarceramento cautelar, nesse sentido pacífica e iterativa a jurisprudência dos Tribunais3, inclusive, a dos Superiores.

Em síntese, não observo constrangimento ilegal a sanar pela via ‘habeas corpus’ devendo, por ora, a segregação de RAFAEL OLIVEIRA SILVEIRA ser mantida.”

3. Denego, dessarte, a ordem.Des. Ivan Leomar Bruxel – De acordo com o(a) Relator(a).Des. Rogério Gesta Leal – De acordo com o(a) Relator(a).Des. Newton Brasil de Leão – Presidente - Habeas Corpus nº 70063142665,

Comarca de Bom Jesus: “DENEGARAM A ORDEM. UNÂNIME.”

3 – Habeas Corpus Nº 70059185454, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Fabianne Breton Baisch, Julgado em 14/05/2014; e Habeas Corpus Nº 70059940221, Quarta Câmara

Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em

05/06/2014.

A RESPONSABILIDADE PENAL PELA APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE CONTRIBUIÇÕES SINDICAIS:

UM ESTUDO DE CASO

Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Processo-Crime nº 70011981412 – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Santa Maria

Ementa: PROCESSO-CRIME. PREFEITO MUNICIPAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. CRIME CONTINUADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 243 DO STJ.

Tratando-se de delitos cometidos em continuidade delitiva, cuja pena mínima cominada somada à incidência da causa de aumento prevista no art. 71 do Código Penal supera o patamar de um ano, inaplicável a suspensão condicional do processo.

APROPRIAÇÃO INDÉBITA.Apropriação, em proveito próprio, de dinheiro de propriedade dos

produtores rurais, ao efetuar cobrança de contribuições sindicais devidas a FARSUL, sem o devido repasse à instituição. Cometimento do delito previsto no art. 168 do CP. Ação penal julgada procedente. Unânime.

Partes: Ministério Público, autor – Gilson de Almeida, denunciado – João Carlos Barcellos Peixoto, assistente de acusação – Luiz Pontelli, assistente de acusação.

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos.

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Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Acordam os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, rejeitadas as preliminares, julgar procedente a denúncia para condenar GILSON DE ALMEIDA por incurso no art. 168, caput, por oito vezes, na forma do art. 71, ambos do Código Penal, à pena de 02 anos de reclusão, em regime inicial aberto, e 20 dias-multa, a razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, corrigido quando do pagamento, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária.

Custas na forma da lei.Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores

DES. JOSÉ EUGÊNIO TEDESCO (PRESIDENTE E REVISOR) E DES.ª ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS.

Porto Alegre, 12 de junho de 2008.Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Relator.

RELATÓRIODes. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (RELATOR)O Ministério Público denunciou Gilson de Almeida, Prefeito Municipal

de São Martinho da Serra, por incurso nas sanções do art. 168, na forma do art. 71, ambos do Código Penal, consoante os fatos delituosos assim narrados na denúncia:

“No curso do ano de 2003, o denunciado GILSON DE ALMEIDA, à época vereador de São Martinho da Serra, e prevalecendo-se daquela função, de forma continuada e repetida, apropriou-se, em proveito próprio, da importância de pelo menos R$ 15.168,49 (quinze mil, cento e sessenta e oito reais e quarenta e nove centavos), de propriedade dos produtores rurais daquele município, ao efetuar a cobrança das contribuições sindicais devidas à Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), sem o devido repasse à referida instituição.

Na oportunidade, em reunião realizada no mês de março de 2003, no CTG Galpão Alegre, em São Martinho da Serra, entre os produtores rurais e o Diretor-Financeiro da Farsul, Jorge Luiz Machado Rodrigues, restou ajustado que a contribuição sindical era obrigatória. Todavia, se os agricultores pagassem os débitos até 20.08.2003, seriam beneficiados com isenção de juros, multas e correção monetária, o que ensejaria uma redução de cerca de 50% (cinqüenta por cento) do valor total da dívida.

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A responsabilidade penal pela apropriação indébita de contribuições sindicais: um estudo de caso

Assim, os produtores rurais interessados em saldar suas dívidas junto à Farsul, e confiantes na palavra do então vereador GILSON DE ALMEIDA, autorizado a receber os valores devidos para posterior repasse à entidade, efetuaram o pagamento ao denunciado. Entretanto, o denunciado reteve os valores deixando de repassá-los, conforme estabelecido em reunião, ficando os agricultores sem o ressarcimento do dinheiro entregue e, ainda, permanecendo no cadastro de inadimplentes da Farsul, consoante se observa nas cartas de notificação das fls. 11/16, 29/30, 51/52, 66/67, 75/76, 81/82 e 111/112 do presente Inquérito Policial.

Visando perpetrar a ação criminosa, o denunciado GILSON DE ALMEIDA obteve, junto à Farsul, o montante da dívida de cada um dos agricultores, passando, então, a fazer o acerto através de um Termo de Acordo (fls. 08/10, 50, 65, 74, 100/101, 110), no qual constava o nome do devedor e o valor da dívida. Assim, diversos produtores rurais efetuaram o repasse dos valores, alguns em dinheiro e outros em cheque, entretanto, nunca receberam o recibo de quitação.

Os produtores rurais Noeli Siqueira Padilha, Nereu da Silva Oliveira e Gilberto Antônio Bassotto efetuaram ao denunciado o pagamento da quantia devida em dinheiro.

Altamir Severiano do Amaral, Nelsi Buligon, Luiz Pontelli João Carlos Barcelos Peixoto e Luiz Agostinho Flores realizaram o pagamento ao denunciado em cheque. No caso, a fim de atingir seu desiderato, o denunciado determinou, a esses produtores rurais, que entregaram títulos nominais à Farsul, a emitir novo cheque com espaço nominal em branco, alegando que não poderia fazer o pagamento dos débitos, se fosse nominal à Farsul.

Consoante se observa nos cheques acostados aos autos, às fls. 83, 90, 113/116, 121 e 194, todos encontram-se nominais a GILSON DE ALMEIDA.

Os produtores rurais Nereu da Silva Oliveira, Ari Antão Savian e Eri Sanmartin efetuaram o pagamento ao denunciado em dinheiro. Todavia, para arrecadar o valor da contribuição, era necessário obter as guias de contribuição sindical. O denunciado GILSON DE ALMEIDA, falsificou a solicitação de emissão das guias de contribuição sindical pendentes até o ano de 2002, postando a assinatura dos referidos produtores rurais, que se negaram a assiná-la, conforme documentos das fls. 136/141, bem como nas declarações das fls. 26/27 e 200/202.

Analisando o extrato bancário do denunciado torna-se, ainda, mais evidente a apropriação. Foram realizados depósitos em dinheiro e em cheques com somas vultosas, durante os anos de 2003 e 2004, sendo que sua movimentação bancária mensal ultrapassou várias vezes o valor de seus vencimentos como vereador (fls. 61/120).

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Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Os produtores rurais prejudicados, que prestaram depoimento no Inquérito Policial, bem como os valores despendidos, encontram-se relacionados no quadro abaixo:

NOME VALORTERMO

DE ACORDONOTIFICAÇÃO

Altamir Severiano do

Amaral

R$ 423,13 – Cheque

n° 702624 (fl. 90)Fl. 08 Fls. 11/12

Noeli de Siqueira PadilhaR$ 240,00 – em dinheiro

R$ 240,47 – em dinheiroFl. 09 Fl. 15/16

Nelsi Buligon

R$ 858,33 – Cheque

n° 850286 (fl. 83)

R$ 125,00 – em dinheiro

Fls. 81/82

Luiz Pontelli

R$ 647,00 – Cheque

n° 682538

R$ 3.809,00 – Cheque

n° 682539 (fl. 121)

Fl. 74 Fl. 75/76

João Carlos Barcelos

Peixoto

R$ 1.237,00 – Cheque

n° 460020

R$ 1.237,00 – Cheque

n° 460021 (fls. 113/114)

R$ 1.237,00 – Cheque

460022 (fls. 115/116)

R$ 226,00 – em dinheiro

Fl. 110 Fl. 111/112

Luiz Agostinho Flores

R$ 179,33 – Cheque n°

724041 (fl. 186)

R$ 1.055,23 – Cheque n°

724042

R$ 1.000,00 – Cheque n°

724045 (fl. 187)

R$ 315,00 – Cheque n°

724046 (fl. 188)

Fl. 50 Fls. 51/52

Gilberto Antônio BassottoR$ 450,00 – em dinheiro

R$ 1.425,00 – em dinheiroFl. 25 Fls. 66/67

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A responsabilidade penal pela apropriação indébita de contribuições sindicais: um estudo de caso

Nereu da Silva Oliveira R$ 464,00 – em dinheiro

Solicitação

falsificada –

Fl.136

Fls. 29/30

Ary Antão Savian R$ 800,00 – em dinheiro

Solicitação

falsificada –

Fl.140

Eri Sanmartin Valor não apurado

Solicitação

Falsificada –

Fl.138

Resposta EscritaDevidamente notificado (fl. 258v.), o denunciado Gilson de Almeida

ofereceu resposta escrita (fls. 260/271).Preliminarmente, alegou a inépcia da denúncia por ausência de provas que

confrontem as acusações e falta de clareza e certeza dos fatos narrados. Sustentou que as supostas vítimas descritas na denúncia, tiveram seu imposto

devidamente pago pelo denunciado, sendo que os valores que permanecem com o mesmo são para pagar as demais guias que até hoje não foram enviadas.

Aduziu que os respectivos valores foram corrigidos e poderiam ter sido depositados em conta remunerada junto à rede bancária, com aviso de depósito às vítimas e oportunamente ajuizado ação de consignação, para aqueles que se negassem a receber os valores, porém, isso não ocorreu na expectativa de serem as guias emitidas, e recolhidos os impostos.

Alegou não serem verdadeiros os valores descritos na denúncia.Afirmou que a movimentação bancária, maior que o salário do denunciado,

justificou-se através dos depósitos referente a um ‘bric de móveis’ de sua propriedade e diárias.

Por fim, requereu a rejeição da denúncia.

Manifestação do Ministério PúblicoIntimado, o Ministério Público manifestou-se sobre a resposta escrita do

denunciado (fls. 277/283).Sustentou que a descrição da conduta do denunciado foi feita de forma

concisa, sem deixar qualquer dúvida quanto à imputação, permitindo, assim, a integral defesa do acusado.

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Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Afirmou haver demonstração documental de que o denunciado passou a efetuar o pagamento das guias após a instauração do inquérito policial, sendo que na maioria dos casos o pagamento foi efetuado com atraso.

Quanto a não serem verdadeiros os valores descritos na denúncia, afirmou haver cópias das cártulas bancárias emitidas em favor dos denunciados para que fossem efetuados os pagamentos junto à FARSUL.

Asseverou que o denunciado não apresentou provas para elidir a acusação imputada, enquanto que há provas suficientes de que o mesmo concorreu para o crime imputado.

Por fim, requereu o recebimento da denúncia, seguindo-se os demais atos processuais até final julgamento e condenação do acusado.

Sessão de JulgamentoEm sessão realizada dia 25 de janeiro de 2007 esta Câmara rejeitou a

preliminar e recebeu a denúncia, à unanimidade (fls. 292/299).

Instrução ProcessualO denunciado foi interrogado (fls. 321/336) e ofereceu defesa prévia (fls. 337/ 338).Luiz Pontelli e João Carlos Barcellos Peixoto foram admitidos como

assistentes de acusação (fl. 400).As testemunhas de acusação e de defesa foram inquiridas (fls. 353/365,

384/481 e 492/501).No prazo do art. 10 da Lei nº 8.038/90 o assistente de acusação requereu

diligências (fl. 502), as quais foram indeferidas (fl. 508).O Ministério Público requereu a atualização dos antecedentes judiciais do

acusado junto a esta Câmara Criminal e à Comarca de Santa Maria (fls. 506/507).A defesa do acusado Gilson requereu diligências e a juntada de documentos

(fls. 523/525).

Alegações Finais do Ministério PúblicoNo prazo do art. 11 da Lei nº 8.038/90, o Ministério Público ofereceu

alegações finais. Sustenta que restou comprovado que o acusado não repassou os valores recebidos

de produtores rurais para o pagamento de débitos existentes entre eles e a FARSUL. Afirma que embora tenha havido problemas técnicos na FARSUL o denunciado

não diligenciou no sentido de efetuar os pagamentos após a solução do problema.

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A responsabilidade penal pela apropriação indébita de contribuições sindicais: um estudo de caso

Enfatiza que o acusado, somente após a instauração do inquérito policial, com o intuito de que as vítimas ‘desistissem’ do prosseguimento do feito, restituiu valores e até mesmo efetuou o pagamento de parte da dívida.

Refere que o denunciado mesmo sabendo que a partir de 1° de julho de 2004 a FARSUL só poderia emitir guia para o sindicato, permaneceu com os valores a ele repassados pelos agricultores.

Por fim, requer seja julgada procedente a ação penal, com a condenação do acusado GILSON DE ALMEIDA como incurso nas sanções do art. 168 (08 vezes), na forma do art. 71, ambos do Código Penal (fls. 562/572).

Alegações Finais da Assistência de AcusaçãoIntimado, o assistente de acusação apresentou alegações finais. Sustenta, em

síntese, que restou comprovada a apropriação de valores repassados ao acusado, requerendo a procedência da ação penal (fls. 576/580).

Alegações Finais do Denunciado Intimado, o acusado apresentou alegações finais.Sustenta, em preliminar, que deve ser oferecida ao réu proposta de suspensão

condicional do processo, por não configurada a continuidade delitiva. Afirma que a denúncia não atendeu os requisitos do art. 41 do CPP.

No mérito, alega que tudo não passou de uma armação de cunho político. Afirma que o acusado não agiu com dolo, pois somente tentou ajudar os produtores rurais de São Martinho da Serra. Refere que o denunciado repassou o dinheiro à FARSUL e que a demora se deu pelo grande número de contribuições a serem pagas, sendo que muitas ainda eram pagas de forma fracionada.

Por fim, requer seja determinado ao órgão acusador que ofereça proposta de Suspensão Condicional do Processo ao réu, seja declarada nula a denúncia e, no mérito, seja julgada improcedente a ação penal absolvendo-se o acusado, com base no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal (fls. 582/593).

É o relatório.

VOTOSDes. Aristides Pedroso de Albuquerque Neto (RELATOR) – Não merece

acolhida a preliminar de nulidade por ausência de suspensão condicional do processo, alegada pela defesa.

Gilson de Almeida foi denunciado porque teria cometido o delito de apropriação indébita em continuidade delitiva ao apropriar-se de valores de

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Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

propriedade dos produtores rurais do Município de São Martinho da Serra, ao efetuar a cobrança das contribuições sindicais devidas à FARSUL, sem realizar o devido repasse à instituição. Consta na denúncia que o acusado teria causado prejuízo a dez produtores rurais, o que caracteriza, por óbvio, a continuidade.

Praticado, em tese, delito de apropriação indébita em continuidade delitiva, não há falar em ação única, como faz crer a defesa.

Tratando-se de crime continuado, aplicável o disposto na Súmula nº 243 do Superior Tribunal de Justiça: “o benefício da suspensão do processo não é aplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso material, concurso formal ou continuidade delitiva, quando a pena mínima cominada, seja pelo somatório, seja pela incidência da majorante, ultrapassar o limite de 1 (um) ano”.

Iterativa a jurisprudência neste sentido:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE FURTO SUSPEN-SÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. ART. 89 DA LEI 9.099/95. IMPOS-SIBILIDADE. INSTITUTO NÃO ALCANÇADO PELA LEI N.º 10.259/01. PRECEDENTES DESTA CORTE. CRIME CONTINUADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 243 DO STJ.1. As inovações da Lei n.º 10.259/01 derrogaram o art. 61 da Lei n.º 9.099/95, passando a considerar crimes de menor potencial ofensivo aqueles cuja pena máxi-ma cominada seja de 2 (dois) anos.2. Tais inovações, porém, segundo entendimento pacífico desta Corte, não alcan-çaram o instituto do sursis processual, previsto no art. 89 da Lei n.º 9.099/95, permanecendo, pois, inalterado o seu cabimento tão-somente para os delitos com a cominação de pena mínima igual ou inferior a 1 (um) ano.3. Não se aplica, portanto, a teor da Súmula n.º 243 do STJ, o referido instituto na espécie, tendo em vista tratar-se de crimes de furto cometidos em continuidade delitiva, cuja pena mínima cominada somada à incidência da causa especial de aumento, prevista no art. 71 do Código Penal, supera o patamar de 1 (um) ano. 4. Ordem denegada. (HC 32.945/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06.05.2004, DJ 07.06.2004 p. 256).

Assim, não há falar na possibilidade de ser ofertada ao réu proposta de suspensão condicional do processo.

De outra parte, a denúncia, ao contrário do que sustenta a defesa, atende aos requisitos do art. 41 do CPP. O fato de haver vítimas ou valores equivocados,

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como alegado pela defesa, não torna a denúncia nula, nem imprecisa. Pelo contrário. A inicial descreve a conduta praticada, com todas as suas circunstâncias, possibilitando a ampla defesa do acusado, como referido na sessão de julgamento em que recebida denúncia (fls. 292/299).

Nestas condições, rejeitos as preliminares.No mérito, melhor sorte não assiste ao denunciado.A materialidade restou demonstrada pela vasta documentação anexada aos

autos, em especial, os termos de acordo às fls. 15/17, 57, 73, 82 e 118, cartas de notificação às fls. 18/19, 22/23, 36/37, 58/59, 74/75, 83/84, 89/90 e 119/120, cópia dos cheques às fls. 91, 98, 121/124 e 129 e demais elementos coligidos ao feito.

Interrogado, o denunciado relatou que foi procurado por agricultores que tinham recebido notificação da FARSUL para pagamento de contribuição sindical, porque ainda não havia sindicato rural em São Martinho da Serra. Falou com Dr. Jorge da FARSUL e fizeram uma reunião no Município, na qual ficou acertado que o réu, Presidente da Câmara de Vereadores na época, receberia os valores dos agricultores e os repassaria à FARSUL. “Ficou estipulado que até agosto os produtores pagariam de uma forma parcelada, ou à vista, com cheque nominal à FARSUL e no qual eu perceberia uma comissão de 20%, que a FARSUL me pagaria, não os produtores. Assim feito, não sei, acho que com uns 20 clientes foi acordado, mandamos os cheques para Porto Alegre, aí para me pagar a comissão mandei um recibo em branco, porque eu não sabia o valor que ia dar. No momento que ele teve o valor, que ia quitando os cheques, ele ia depositando na minha conta. Quitamos aqueles débitos, foram os comprovantes, só que aí, como o tempo já estava passando e tinha mais produtores que queriam acertar e não tinham condições de acertar, eles foram dilatando o prazo (...) Depois que eles me pagaram os primeiros, ele disse que ficaria difícil me pagar uma comissão, porque eu não seria advogado. Então, que a melhor maneira seria eu receber em dinheiro ou cheque dos produtores, descontar os cheques e pagar as guias, que ele passaria a me mandar as guias dos produtores, e assim foi feito, como tem eu acho no processo várias guias pagas.” Confirma que recebeu dinheiro dos agricultores e que, de 2004 em diante, ficou com valores de alguns contribuintes, que se recusaram a recebê-los de volta (Luiz Pontelli, Nereu da Silva Oliveira, Ari Antão Saviano e Eri Sanmartin). Afirma que a maioria queria as guias quitadas, por isso não efetuou consignação bancária dos valores recebidos. Refere que houve um período em que as guias não estavam sendo emitidas e que, por isso, ficou com o dinheiro de algumas pessoas por um ano, mais ou menos. Afirma que apenas duas pessoas referidas na denúncia receberam o dinheiro de volta, as demais se recusaram a receber. Questiona os valores referidos na inicial. Sustenta que as guias

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de Altamir Severiano do Amaral estão todas pagas. Para João Carlos Barcelos Peixoto e Nelsi Buligon só ficou faltando uma guia. De Luiz Pontelli foram pagas duas guias, faltaram outras três. Não foram pagas as guias de Noeli, Nereu, Ari e Eri e foram devolvidos os dinheiros de Luiz Agostinho Flores e Gilberto Bassotto (fls. 321/336).

Jorge Luiz Machado Rodrigues, Diretor Financeiro da FARSUL à época dos fatos, estava fazendo a cobrança dos produtores inadimplentes. Relata que foram encaminhadas correspondências a estes agricultores para saldar os débitos havidos. Foi convidado a participar de uma reunião em São Martinho da Serra, porque lá não havia Sindicato Rural na época. Não tem conhecimento de que o Sr. Gilson tenha ficado encarregado de fazer os recolhimentos, nem de que teria recebido comissão para isso, mas afirma que alguns acertos foram feitos por ele. Confirma que houve um período em que as guias não estavam sendo emitidas (fls. 353/365).

Nelsi Buligon relata que o Sr. Jorge autorizou o Sr. Gilson a fazer os pagamentos das contribuições dos agricultores de São Martinho da Serra. Disse ter dado um cheque ao réu, que permaneceu por mais de 60 dias sem ser descontado. Afirma ter sido procurado por um sujeito, a pedido do réu, para trocar o cheque, que era nominal à FARSUL para um que não estivesse nominal. Trocou na boa-fé. Posteriormente veio a cobrança de novo então descobriu que o dinheiro tinha sido depositado na conta do réu, que não tinha efetuado o pagamento, conforme combinado. A única coisa que o réu lhe disse é que teria parcelado a dívida. Ficou sabendo em juízo da existência de recibos em seu nome quitando o débito (fls. 385/392).

Pedro Dalberto Rigo confirma ter dado dinheiro ao acusado para pagamento de contribuições junto à FARSUL. Afirma que ele pagou todas e lhe entregou o recibo, à exceção da que não foi enviada a guia, a qual até hoje não foi paga. Disse não ter sido prejudicado e que o réu ficou com o valor da guia que não foi enviada para pagamento, com o compromisso de pagá-la no futuro (fls. 393/397).

Altamir Severiano do Amaral afirma que o acusado ficou encarregado de fazer a cobrança das contribuições sindicais e repassá-las à FARSUL. Disse ter dado cheque nominal ao Sr. Gilson e que, após um ano, veio a cobrança de novo. Como tinha efetuado o pagamento, registrou ocorrência na polícia. Não procurou o réu, foi direto na Delegacia. Afirma nunca ter sido procurado pelo acusado. Ficou sabendo em audiência que os impostos de 1999, 2000, 2002 e 2003 foram quitados pelo réu (fls. 400/407).

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Ary Antão Savian também entregou dinheiro para o acusado fazer o pagamento da contribuição sindical junto à FARSUL. Não sabe se foi feito o pagamento, mas nunca veio nova cobrança (fls. 408/412).

João Augusto Botelho do Nascimento assumiu a Presidência do Sindicato Rural em julho de 2004. Relata ter sido procurado por agricultores que estavam sendo cobrados pela FARSUL. Alguns mencionaram que tinham efetuado o pagamento diretamente ao réu e que estavam sendo cobrados novamente. Alguns produtores se recusaram a receber as guias que o sindicato havia recebido da FARSUL dizendo que não as haviam solicitado (fls. 413/424).

João Carlos Barcelos Peixoto refere ter dado cheques ao réu para pagamento de contribuição junto à FARSUL. Não tinha conhecimento de que os débitos estavam pagos nem dos recebidos juntados ao processo. Questiona a atitude do réu em não o procurar para lhe entregar os recibos (fls. 425/432).

Luiz Agostinho Flores confirma que o réu o procurou, aproximadamente um mês atrás, para lhe devolver o dinheiro porque não tinha recebido as guias para fazer o pagamento (fls. 433/438).

Luiz Pontelli afirma que entregou ao acusado os valores para pagamento de contribuições sindicais junto à FARSUL. Quando recebeu novamente a cobrança da FARSUL resolveu entrar na Justiça contra ao réu. Não o procurou nem foi procurado por ele para saber se estavam pagos os valores que havia lhe entregado (fls. 439/447).

Nereu da Silva Oliveira disse que entregou valores ao acusado para pagamento de contribuições junto à FARSUL e um ano depois veio cobrança de novo (fls. 448/455).

Noeli de Siqueira Padilha também entregou valores ao acusado e também foi cobrada novamente. Ligou para a FARSUL e descobriu que a contribuição não havia sido paga. Fez contato com sindicato que lhe disse que deveria provar o pagamento. O acusado estava em Porto Alegre então disse ter ido à Delegacia. Depois disso foi procurada pelo réu que lhe disse que pagava a contribuição se a queixa fosse retirada (fls. 456/460).

As testemunhas arroladas pela defesa pouco esclarecem, ademais de considerações genéricas favoráveis ao acusado:

Wilson Bassotto, é amigo do réu, a quem considera uma pessoa honesta e trabalhadora. Disse ter dado dinheiro a ele para pagamento de contribuição junto à FARSUL, o que foi feito. Quanto à situação dos demais produtores, não tem conhecimento (fls. 461/473).

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Aristides Pedroso de Albuquerque Neto

Aldorino Rosa Trindade disse ter dado dinheiro ao réu para pagamento de contribuição sindical junto à FARSUL. Afirma que a contribuição foi paga e que o réu lhe deu recibo. As guias demoraram um pouco então deu uma procuração ao réu (fls. 465/467).

Núbia Maria Machado soube do fato quando era Presidente do Partido contrário ao do réu. Relata que se falava bastante no assunto e que havia cópias dos cheques, entregues pelas vítimas ao acusado e outros documentos para fazer campanha política. Por conhecer o réu, e saber que ele é uma pessoa boa, retirou--se do partido. Informa que as pessoas que faziam parte do diretório do partido opositor não eram as vítimas. Refere ainda que as vítimas Altamir Severiano do Amaral, Noeli de Siqueira Padilha, Nelsi Buligon, Luiz Pontelli, João Augusto Botelho do Nascimento, Nereu da Silva Oliveira e João Carlos Barcellos Peixoto são contrárias politicamente ao réu (fls. 468/473).

Ozone José de Camargo conhece o acusado há bastante tempo. Não tem conhecimento de que ele tenha se apropriado de dinheiro de produtores rurais recebido para pagamento de contribuições junto à FARSUL. Afirma ter dado dinheiro ao acusado para pagamento de impostos, os quais foram pagos havendo recibos (fls. 474/475).

José Álvaro da Trindade foi vereador na mesma época em que o réu, mas por partido diverso. Refere que era Presidente da Câmara em 2003 e a oposição quis abrir sindicância contra o réu por causa desses pagamentos, mas não havia motivo para sindicância, tendo ficado tudo registrado em ata. Isso foi antes das eleições (fls. 476/479).

Adalardo Rodrigues da Silva afirma que deu dinheiro ao acusado para que ele efetuasse o pagamento do imposto sindical. Como não vieram os documentos, ele voltou a sua residência e devolveu o dinheiro. Admirou a ação do réu. Não recorda ao certo quanto tempo levou para o dinheiro ser devolvido (fls. 480/481).

Alexandre Bartz confirma que houve um problema técnico na emissão das guias porque o sistema ficou em torno de um mês fora do ar. Negou que a FARSUL tenha ficado com esses problemas técnicos, sem emitir as guias, durante um ano. Relata que assim como houve orientação de seu chefe para atender pedidos de emissão de guias para o acusado, um dia lhe foi informado para não mais atendê--lo, mas não sabe o motivo. Antes disso, o acusado obtinha a informação de débito, acertava com o produtor e a FARSUL emitia a guia para pagamento. Informa que têm produtores rurais que assinaram o termo de acordo e continuam inadimplentes com a FARSUL, mas não saberia precisar quantos (fls. 492/500).

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A abertura de CPI contra o réu foi negada pelo Presidente da Câmara de Vereadores do Município “dizendo que a resposta do colega Vereador Gilson deverá ser feita na justiça, uma vez que já passaram por cima desta Casa, denunciando-o primeiramente na polícia, e que agora não caberia aos Vereadores esta investigação.” (fl. 532).

Não há dúvida, pela reconstituição probatória, como operada, que o réu, no curso do ano de 2003, à época Vereador de São Martinho da Serra, apropriou--se, em proveito próprio, de dinheiro de propriedade dos produtores rurais daquele município, ao efetuar a cobrança das contribuições sindicais devidas à FARSUL, sem o devido repasse à instituição.

A prova é inconteste, como claramente demonstram os diversos termos de acordo assinados com as vítimas no período compreendido entre 13.03.2003 a 01.09.2003 (fls. 15/17, 57, 73, 82 e 118), as cartas de notificação, cobrando as contribuições que deveriam ter sido pagas pelo acusado (fls. 18/19, 22/23, 36/37, 58/59, 74/75, 83/84, 89/90 e 119/120), além de cópia de cheques nominais ao acusado (fls. 91, 98, 121/124 e 129).

Além disso, verifica-se que os pagamentos, cujos recibos o réu juntou ao processo (fls. 272/275) são de contribuições referentes aos exercícios de 1998, 1999, 2000 e 2001, pagas apenas em 2004, a maioria depois do prazo de vencimento e após a instauração do inquérito policial.

O fato de algumas testemunhas referirem que o acusado pagou corretamente suas contribuições, como é o caso de Wilson Bassotto e Aldorino Rosa Trindade, não elide a prática delitiva em relação aos demais.

Sem falar na atitude do acusado de ter procurado a vítima Luiz Agostinho Flores, aproximadamente um mês antes da audiência, para lhe devolver o dinheiro porque não tinha recebido as guias para fazer o pagamento (fls. 433/438), além de ter dito a Noeli de Siqueira Padilha que pagava a contribuição, caso ela retirasse a queixa (fls. 456/460).

Ora, de fato houve problemas técnicos na emissão das guias que ficaram suspensas, mas não mais de um mês, como informado à fl. 559, ao contrário do alegado pelo réu, que permaneceu com o dinheiro recebido, com a suposta desculpa de que as guias não estavam sendo emitidas.

Se realmente não tivesse a intenção de apropriar-se dos valores recebidos poderia tê-los depositado em juízo mediante ação de consignação em pagamento em favor das vítimas que se negassem a recebê-los, o que não o fez.

Sequer procurou as vítimas para esclarecer a situação. De outra parte, não há prova da suposta armação política alegada pela

defesa. Pelo contrário.

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Luiz Pontelli e João Carlos Barcellos Peixoto, supostos adversários políticos do réu não são eleitores em São Martinho da Serra, conforme certidões acostadas às fls. 503/504.

Não há dúvida de que o acusado estava incumbido de efetuar o pagamento das contribuições dos produtores rurais do Município de São Martinho da Serra junto à FARSUL, tendo inclusive recebido comissão para tanto, conforme comprovante de depósito anexado à fl. 546. Ao contrário disso, deteve e apropriou--se dos valores recebidos, sem efetuar o devido repasse.

O réu agiu com dolo. Na condição de Vereador do Município tinha consciência da ilicitude de sua conduta ao se apropriar de valores recebidos de alguns produtores rurais para pagamento de débitos existentes entre eles e a FARSUL, sem ter efetuado o devido repasse, cometendo, por conseguinte, o delito de apropriação indébita de forma continuada. Ele próprio firmou os termos de acordo (fls. 15/17, 57, 73, 82 e 118) no período compreendido entre março e setembro de 2003. Entretanto, recebidas as quantias correspondentes, deixou de efetuar o pagamento a FARSUL. A partir de então se consumaram os delitos de apropriação indébita em continuidade.

A situação só veio a ser descoberta no momento em que estes produtores começaram a receber cartas de notificação da FARSUL cobrando as contribuições que deveriam ter sido pagas pelo réu.

Caracterizado o delito do art. 168 do Código Penal, impõe-se a condenação do réu, por incurso no art. 168, caput, por oito vezes, na forma do art. 71, ambos do Código Penal.

Gilson de Almeida não registra antecedentes. Dolo intenso. Tinha potencial consciência da ilicitude de sua conduta. A circunstância de ser Vereador do Município, assim captando a confiança das vítimas, também opera de modo negativo. Favoráveis os demais operadores do art. 59 do CP (conduta social abonada, personalidade normal, motivos normais à espécie, sem conseqüências a maior, o fato de ter permanecido com o dinheiro das vítimas faz parte do tipo do delito), vai estabelecida a pena-base em 01 ano e 06 meses de reclusão, definitiva, ausentes causas alteradoras.

Tratando-se de delitos da mesma espécie, cometidos nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, evidenciada a continuidade delitiva, aplico a pena de um dos crimes, já que idênticas, 01 ano e 06 meses de reclusão, aumentada de 1/3 (um terço) pela quantidade de crimes perpetrados (oito), o que faz pena definitiva em 02 anos de reclusão.

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A responsabilidade penal pela apropriação indébita de contribuições sindicais: um estudo de caso

A pena de multa vai fixada em 20 dias-multa, a razão de 1/30 do salário mínimo o dia.

Regime inicial aberto, nos termos do art. 33, § 2º, c, do CP.Presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal, vai substituída a pena

privativa de liberdade por prestação de serviços à comunidade, pelo prazo da pena aplicada, em local a ser definido no juízo da execução, e prestação pecuniária fixada em um salário mínimo em entidade também a ser definida no juízo da execução.

Rejeitadas as preliminares, julgo procedente a denúncia para condenar GILSON DE ALMEIDA por incurso no art. 168, caput, por oito vezes, na forma do art. 71, ambos do Código Penal, à pena de 02 anos de reclusão, em regime inicial aberto, e 20 dias-multa, a razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, corrigido quando do pagamento, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Custas pelo réu. Após o trânsito em julgado, oficie-se o Tribunal Regional Eleitoral e inclua-se o nome do réu no rol dos culpados. A Secretaria providenciará os registros e comunicações.

Des. José Eugênio Tedesco (Presidente e Revisor) – De acordo.Des.ª Elba Aparecida Nicolli Bastos – De acordo.Des. José Eugênio Tedesco (Presidente) – Processo-Crime nº 70011981412,

Comarca de Santa Maria: “À unanimidade, rejeitadas as preliminares, julgaram procedente a denúncia para condenar Gilson de Almeida por incurso no art. 168, caput, por oito vezes, na forma do art. 71, ambos do código penal, à pena de 02 anos de reclusão, em regime inicial aberto, e 20 dias-multa, a razão de 1/30 do salário mínimo vigente à época do fato, corrigido quando do pagamento, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária.”

O DIREITO FUNDAMENTAL DE INTANGIBILIDADE DOMICILIAR NA PERSECUÇÃO PENAL:

UM ESTUDO DE CASO

Ivan Leomar Bruxel

Apelação-Crime nº 70063374003 (N° CNJ: 0022778-32.2015.8.21.7000) – 4ª Câmara Criminal – Comarca de Pelotas

Partes: Pablo Leal Teixeira, apelante – Ministério Público, apelado.

Ementa: LEI 10.826/03. ART. 14. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. CÓDIGO PENAL. ART. 180. RECEPTAÇÃO.

Em relação ao delito de receptação, verifica-se que as provas não permitem realizar um juízo condenatório. No caso dos autos, não ficou demonstrado o dolo do agente em adquirir ou receber a arma de fogo que soubesse ser produto de crime, motivo pelo qual se impõe a absolvição, de forma unânime.

Quanto ao delito de porte ilegal de arma de fogo, a atitude suspeita, tal como a cristalizada neste caso concreto pela prova oral produzida, não está nesse rol das exceções constitucionais à proteção domiciliar. Veja-se que o acusado não estava em flagrante de prática criminosa; ele simplesmente passou a adotar a famosa atitude suspeita diante da presença de agentes da autoridade. Dadas tais considerações, a apreensão efetuada pelos policiais é prova ilícita, pois colhida mediante violação ao direito fundamental de intangibilidade domiciliar, de sorte que pode ser reconhecida de ofício em face da magnitude desse direito constitucional, componente do rol de direitos fundamentais do artigo 5º da Carta Magna.Provimento pela absolvição deste delito, por maioria, vencido o Relator.

APELO DEFENSIVO PROVIDO. POR MAIORIA.

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Ivan Leomar Bruxel

ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos os autos. Acordam, os Desembargadores integrantes da Quarta Câmara Criminal do

Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, dar provimento ao apelo, vencido o Relator, que dava parcial provimento. Redator para o acórdão o Des. Ivan Leomar Bruxel.

Custas na forma da lei.Participou do julgamento, além dos signatários, o eminente Senhor

DES. ROGÉRIO GESTA LEAL.Porto Alegre, 16 de abril de 2015.Newton Brasil de Leão, Presidente e Relator. Ivan Leomar Bruxel, Revisor e Redator.

RELATÓRIODes. Newton Brasil de Leão (PRESIDENTE E RELATOR) – 1. Cuida-

-se de apelação, interposta por PABLO LEAL TEIXEIRA, contra o decidir que o condenou, como incurso nas sanções dos artigos 14, da Lei nº 10.826/03, e 180, caput, na forma do artigo 69, os dois últimos do Código Penal, às penas de 04 anos de reclusão, no regime aberto, e de 20 dias-multa, por fato ocorrido em 08.09.2011, em Pelotas/RS, oportunidade em que o ora apelante portava arma de fogo, tipo revólver, calibre 38, sem autorização, o qual, em data anterior, havia adquirido, sabendo ser produto de crime.

Nas razões, alegando insuficiência probatória, requer absolvição. Insurge--se, ainda, quanto às penas.

O recurso foi contra-arrazoado.Em parecer escrito, a Dra. Procuradora de Justiça opina pelo parcial

provimento da desconformidade.Esta Câmara adotou o procedimento informatizado, tendo sido atendido o

disposto no artigo 613, I, do Código de Processo Penal.É o relatório.

VOTOSDes. Newton Brasil de Leão (PRESIDENTE E RELATOR) – 2. Traduz,

o parecer das fls. 206/208, meu entendimento acerca do que ora é submetido à Câmara. Por isso, e também como forma de evitação de despicienda tautologia - o que admitido, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, disso exemplos os julgamentos dos HC 102903/PR (STF) e 244963/SP (STJ) -,

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O direito fundamental de intangibilidade domiciliar na persecução penal: um estudo de caso

é que de dito parecer transcrevo, valendo-me da fundamentação ad relationem, integrando ao voto, com vênia da ilustrada Procuradora de Justiça, Dra. Sílvia Cappelli, que o lavrou, o que segue, in verbis:

“A materialidade do delito é comprovada pela comunicação de ocorrência (fls. 07/09), pelo auto de apreensão (fl. 10), pelo auto de constatação de funcionamento e potencialidade lesiva (fl. 55) e pela prova oral colhida.

A autoria é certa. O réu, quando interrogado, negou a posse apreendida da arma de fogo. Disse que

estava na frente de uma casa e, ao avistar a viatura, correu para dentro da residência. Explicou que os policiais o detiveram lá dentro, onde a arma foi encontrada; porém, nega ter dispensado a arma enquanto fugia dos policiais. Afirmou que havia outras pessoas lá dentro.

William Rodrigues Valadão, policial militar, explicou que estavam passando de viatura, quando o acusado correu para dentro de uma residência ao avistar os policiais. Disse que foram atrás dele e o detiveram, onde seu colega encontrou a arma de fogo. Mencionou que algumas pessoas utilizam a residência para consumir drogas. Referiu, ainda, que não é a primeira vez que atende a uma ocorrência envolvendo o réu, oportunidade na qual ele já havia dispensado uma arma.

Paulo Ricardo Vasconcelos, policial militar, disse que foi apoiar os colegas que realizaram a abordagem em alguns indivíduos. Mencionou que, quando chegou ao local, seus colegas já haviam apreendido a arma, que estava em poder do acusado. Referiu que o réu é bastante conhecido pelo envolvimento em assaltos, furtos e que já foi flagrado anteriormente portando armas.

Israel de Moura Lorenzato, policial militar, esclareceu que correu atrás do réu quando este fugiu. Disse que o réu entrou na residência e dispensou a arma de fogo, realizando, então, a prisão do acusado e apreensão da arma. Informou, ainda, que junto com o acusado correu o indivíduo de alcunha “Fúria”.

Dessa maneira, diante do conjunto probatório, ficam comprovadas a materialidade e autoria do delito de porte ilegal de arma de fogo, atestado que o acusado portava um revólver, marca Taurus, 38, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar.

No entanto, em relação ao delito de receptação, verifica-se que as provas não permitem realizar um juízo condenatório. No caso dos autos, não ficou demonstrado o dolo do agente em adquirir ou receber a arma de fogo que soubesse ser produto de crime. Com efeito, estão ausentes maiores detalhes para deduzir se o réu sabia da origem ilícita da arma. Ora, se não se sabe exatamente de que maneira o réu teria adquirido a arma de fogo, não se podendo presumir, pelas circunstancias, tivesse ciência da sua procedência ilícita.

Necessário observar, ainda, que seria diferente se a arma em questão estivesse com a numeração raspada, ou o réu a tivesse adquirido por um valor muito baixo, situações que não foram comprovadas nos autos.

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Ivan Leomar Bruxel

Portanto, diante da ausência de demais elementos probatórios que autorizem uma condenação criminal quanto ao delito de receptação, necessário ser o réu absolvido em relação a este crime.

Finalmente, a pena aplicada relativamente ao delito de porte de arma deve ser mantida, pois seus vetores de aplicação foram devidamente valorados. A pena foi adequadamente fixada, conforme as circunstâncias judiciais do art. 59, do Código Penal, pautando-se pelos critérios da necessidade e suficiência da pena para reprovação e prevenção do crime.

Com efeito, o DD. Magistrado elevou a pena-base, pois considerou que o réu possui uma personalidade voltada ao ilícito criminal. Não merece, portanto, reforma o ‘quantum’ de pena aplicado, haja vista estar dentro do parâmetro de discricionariedade do Magistrado e de acordo com os critérios legais.

Não há falar, igualmente, em isenção da pena de multa, porque esta, constando do preceito secundário do tipo, é norma cogente, de aplicação obrigatória pelo julgador. Além disso, a condição econômica do réu já é circunstância considerada quando da fixação do valor do dia-multa; logo, eventual impossibilidade de pagamento é questão a ser aventada perante o juízo da execução.”

3. Ante ao exposto, dou parcial provimento ao apelo, para absolver PABLO LEAL TEIXEIRA da imputação de prática do ilícito do artigo 180, do Código Penal, mantendo as penas fixadas na sentença pelo cometimento do delito previsto no artigo 14, da Lei de Armas, bem como o regime de cumprimento da sanção corporal.

Des. Ivan Leomar Bruxel (REVISOR E REDATOR) – Para melhor exame da controvérsia, melhor começar pela transcrição da sentença, de pronto observando que trata-se de arma de fogo de uso permitido, com numeração aparente, tanto que reconhecida a incidência do art. 14, da Lei nº 10.826/03, cuja pena vai de dois a quatro anos de reclusão:

Vistos.PABLO LEAL TEIXEIRA, já qualificado, foi denunciado como incurso nas san-ções do art. 180, caput, do Código Penal, e do art. 14 da Lei nº 10.826/03, na forma do art. 69, do Código Penal, pelos seguintes fatos:1º fato: Em dia, horário e local não identificados no inquérito policial, mas em momento anterior ao dia 08 de setembro de 2011, o denunciado teria adquirido um revólver marca Taurus, calibre .38, nº 2081411, coisa que saberia ser produto de crime.2º fato: No dia 08 de setembro de 2011, por volta das 21h e 30min, na Rua De-métrio Ribeiro, nº 1168, bairro Fragata, nesta Cidade, o denunciado postava um

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O direito fundamental de intangibilidade domiciliar na persecução penal: um estudo de caso

revólver cromado marca Taurus, calibre .38, nº 2081411, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar.Recebida a denúncia em (fl. 66), o réu foi citado (fl. 101) e ofereceu defesa prelimi-nar (fl. 105). Afastada a absolvição sumária, procedeu-se à instrução com a oitiva de quatro testemunhas (CD’s de fls. 122, 151), sendo, ao final, o réu interrogado (CD de fl. 173). Nenhuma diligência foi requerida. Nas alegações finais, o Minis-tério Público (fl. 177/179v) analisou a prova e requereu condenação nos termos da denúncia. A Defesa (fls. 180/182) alegou inocência e que a prova carreada não autorizaria o decreto condenatório, aplicando-se, assim, os Princípios do In dubio pro reo e da Presunção de Inocência. Os autos vieram conclusos.É o relatório. Decido.A materialidade do delito restou positivada na comunicação de ocorrência de fls. 07/09, no auto de apreensão de fl. 10, na consulta de arma de fl. 11, e no termo de verificação de funcionamento de arma de fl. 55.O policial militar William Rodrigues Valadão afirma em juízo que na data do fato o réu estava na frente de uma casa quando por ali passaram com a viatura. Quando o réu avistou a viatura, correu e entrou dentro de uma residência. Foram atrás dele e o detiveram dentro da residência, onde seu colega localizou uma arma jogada no chão. Conta que tinham outras pessoas dentro da residência, pois a mesma era usada para encontro de usuários de drogas. Acredita que seu colega avistou o réu dispensando a arma. As outras pessoas estavam em peças diferente da peça em que foi localizada a arma e o réu. Conta que não é a primeira ocorrência que ele atende envolvendo o réu e que na outra ocorrência, o réu também havia dispensado uma arma.Paulo Ricardo Vasconcelos, policial militar, conta que foi em apoio aos colegas que já haviam feito a abordagem de indivíduos que estavam consumindo drogas no local do fato. Quando chegou seus colegas já tinham apreendido a arma e lhe disseram que a arma pertencia ao acusado. Pelo que recorda, quem fez a preensão do acusado foi o policial Moura. Afirma que Pablo já é bastante conhecido por envolvimentos em outros crimes. Em relato de mesmo teor, o policial militar Israel de Moura Lorenzato, esclarece que quando o réu adentrou a residência foi atrás dele e o viu dispensar a arma no chão, pelo que o deteve e fez a apreensão da arma. Afirma ter sido o primeiro a ingressar na casa atrás do acusado, que viu o réu dispensar a arma, e que junto com o réu correu outro indivíduo, que seria o “Fúria”.

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Ivan Leomar Bruxel

A testemunha Adão da Silva Caldeira afirma em juízo que teve sua arma furtada por volta de 1980 ou 1982. Comunicou seu superior Hierárquico. Teve a arma restituída.O réu, em seu interrogatório, nega a posse da arma apreendida e que ela fosse sua. Conta que estava na frente de uma casa e quando avistou a viatura policial correu para dentro da residência. Os policiais o detiveram já no interior da casa, onde foi achada a arma. Nega ter dispensado a arma enquanto fugia dos policiais. Não sabe a quem pertencia a arma e afirma que haviam outras pessoas na casa. Os depoimentos dos policiais militares responsáveis pela prisão em flagrante são válidos tal como os de qualquer outra testemunha, salvo prova em contrário. Me-ras conjecturas, baseadas unicamente na condição funcional e/ou presunção de interesse destes no resultado condenatório, não servem como fundamento para descredibilizar seus depoimentos. Seria, aliás, contrassenso o Estado credenciar agentes para a função repressiva e lhes negar crédito justo quando prestam contas de suas diligências.Discorrendo sobre o assunto, o invulgar jurista JULIO FABRINI MIRABETE, com muita propriedade, elucida que a função pública dos policiais, assumida sob o compromisso de bem e fielmente cumprirem o dever, não os torna impedidos de prestar depoimento: “(...) não se pode contestar em princípio a validade dos depoimentos de policiais, pois o exercício da função não desmerece, nem torna suspeito seu titular, presumin-do-se, em princípio que digam a verdade, como qualquer testemunha. Realmente, o depoimento de policial só não tem valor quando se demonstra ter interesse na in-vestigação e não encontra sustentação alguma em outros elementos probatórios.”1O crime de porte ilegal de arma de fogo é de mera conduta, sendo irrelevante a intenção do agente e bastando, para a sua configuração, o porte da arma de fogo sem a devida licença legal em via pública, fato comprovado nos autos, que autoriza a condenação do acusado, nos termos do art. 14, da Lei 10.826/03.ZAFFARONI e PIERANGELI lecionam que:“(...) não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens”2. Ainda que as circunstâncias da aquisição da arma não tenham ficado esclarecidas, não restam dúvidas de que o réu sabia da origem ilícita da arma, fato que resta claro no documento de fl. 11, que demonstra que a arma foi furtada há anos atrás de Adão da Silva Caldeira.

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O direito fundamental de intangibilidade domiciliar na persecução penal: um estudo de caso

Atenta-se que o réu já responde por dois processos por porte ilegal de arma de fogo, e, portanto, não restam dúvidas de que o réu comprou a arma de forma irregular. Na lição de DAMÁSIO DE JESUS:“(...) o sujeito não sabe que a coisa é produto de crime. Se sabe, responde por receptação dolosa. Entretanto, em face dos índicos reveladores da procedência ilí-cita do objeto, não deveria recebê-lo ou adquiri-lo. Fazendo-o, responde pela forma culposa. Os indícios deveriam fazer com que o sujeito ativo desconfiasse da origem do objeto material. A ausência dessa desconfiança impeditiva de aquisição ou do recebimento faz com que surja a culpa.”³Desse modo, tem-se por comprovada a autoria.Passo a aplicar a pena. Analiso, em conjunto, as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal. Pablo não tem antecedentes criminais. Todavia, já respondeu por processo crimi-nal, ocasião em que foi preso de forma preventiva, com sentença condenatória em 09/08/2013, ainda sem o transito em julgado, o que denota que o réu possui uma personalidade voltada ao ilícito. Inobstante o princípio da presunção de inocência, afigura-se que essa passagem não foi suficiente para refrear seu ímpeto delituoso, evidenciando-se a ousadia, o desapreço à lei e, pois, a má conduta social. Motivo comum à espécie. Agiu o réu com dolo direto e intensa culpabilidade em ambos os delitos. Sem particularidades no que se refere às circunstâncias e consequências do crime que foram refreadas pela eficiente ação policial. Não há que se falar, por fim, em comportamento da vítima. Assim sendo, considerando a má conduta social e a personalidade do réu, fixo a pena base para o delito do art. 180, caput, em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão e multa de 10 (dez) dias-multa, e para o delito do art. 14 da Lei 10.826/03 em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de reclusão e multa de 10 (dez) dias--multa, calculado o dia-multa à mínima razão legal, tendo em vista sua situação econômica.Inexistem agravantes ou atenuantes, bem como majorantes ou minorantes. Nos termos da fundamentação, torno definitiva a pena acima fixada.Reconhecido o concurso material, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade, restando definitivo o apenamento para os delitos em 4 (quatro) anos de reclusão e 20 (vinte) dias-multa, calculado o dia-multa à mínima razão legal, tendo em vista sua situação econômica.Isso posto, julgo procedente a denúncia, e CONDENO o réu PABLO LEAL TEI-XEIRA à pena de 4 (quatro) anos de reclusão e 20 (vinte) dias-multa, como

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Ivan Leomar Bruxel

incurso nas sanções dos artigos 180, caput, do Código Penal, e do art. 14 da Lei 10.826/03, calculado o dia-multa à mínima razão legal, tendo em vista sua si-tuação econômica.O réu pagará as custas processuais. Suspende-se entretanto a exigibilidade do pa-gamento, pela concessão da AJG, nos termos do art. 12 da Lei 1060/50.Pablo Leal Teixeira deverá cumprir inicialmente a pena imposta no regime aberto, forte no art. 33, §2º, “c”, do Código Penal, e aguardará o transito em julgado em liberdade, se por outro motivo não estiver preso.Considerando que o réu já respondeu processo criminal, pelo qual foi preso preven-tivamente, sua personalidade e conduta social voltadas ao cometimento de delitos, deixo de substituir a pena privativa de liberdade por outra restritiva de direitos, com fulcro no art. 44, III, do CP.O réu aguardará em liberdade o trânsito em julgado, após o qual seu nome será lançado no Rol dos Culpados.Oportunamente, cumpra-se o disposto no art. 809, §3º do CPP, comunique-se ao TRE e extraiam-se as peças necessárias à formação do PEC, com remessa à VEC local.A arma e as munições serão destinadas conforme o art. 25 da Lei 10.826/03.Publique-se. Registre-se. Comunique-se.Intimem-se, sendo o ré, pessoalmente.Diligência Legais.Pelotas, 30 de outubro de 2014.Gerson MartinsJuiz de Direito

Com relação à receptação, estou aderindo ao voto do eminente Relator, pela absolvição.

Mas vou além, para também absolver relativamente ao crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido.

Ora, a instrução deixa bem evidenciado que o réu foi avistado pelos policiais, antes de ingressar na casa, mas foi abordado quando dentro dela já se encontrava.

E os policiais ingressaram na casa, diante da famosa atitude suspeita, sem ter ciência de que, no interior, estaria ocorrendo algum crime.

Disto não há dúvida.E a distinção é importante, pois também não há dúvida de que o ingresso é

autorizado, vale dizer, permitido, quando estiver ocorrendo um crime.

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O direito fundamental de intangibilidade domiciliar na persecução penal: um estudo de caso

Mas o ingresso em casa alheia não é permitido por mera suspeita.Só isto já basta para a absolvição.Mas, tanto não bastasse, a prova não permite a conclusão, segura, de que

tenha sido efetivamente o réu a desprezar a arma, pois também não há dúvida de que outras pessoas estavam no local.

CONCLUSÃOVoto, em um primeiro momento, por dar provimento ao apelo defensivo, para

absolver o réu em relação a ambos os crimes.

Des. Rogério Gesta Leal – Pedindo vênia ao Relator, acompanho a divergência instaurada.

Des. Newton Brasil de Leão – Presidente - Apelação-Crime nº 70063374003, Comarca de Pelotas: “POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO APELO, VENCIDO O RELATOR, QUE DAVA PARCIAL PROVIMENTO. REDATOR PARA O ACÓRDÃO O DES. IVAN LEOMAR BRUXEL.”

Julgador(a) de 1º Grau: GERSON MARTINS

A NOMEAÇÃO DE CARGOS EM COMISSÃO COMO CONFIGURADORA DE CRIME DE PREFEITO:

UM ESTUDO DE CASO1

Rogério Gesta Leal2

INTRODUÇÃO

Pretendo neste trabalho tratar do complexo tema que envolve a nomeação de pessoas para ocupar cargos de provimento em comissão na gestão pública em desrespeito às condições e possibilidades normativas inerentes à espécie, e como isto pode configurar crime de Prefeito, nos termos do art. 1º, inc. XIII, do

1 – Este artigo é o resultando de pesquisas feitas junto ao Centro de Direitos Sociais e Políticas Públicas,

do Programa de Doutorado e Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, e vinculado

ao Diretório de Grupo do CNPQ intitulado Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado

pelo Prof. Titular Dr. Rogério Gesta Leal, bem como decorrência de projeto de pesquisa intitulado

Patologias Corruptivas nas Relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: causas, con-

sequências e tratamentos.

2 – Rogério Gesta Leal é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,

Doutor em Direito. Prof. Titular da UNISC. Professor da UNOESC. Professor Visitante da Univer-

sità Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos

Aires. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM.

Membro da Rede de Direitos Fundamentais – REDIR, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, Bra-

sília. Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e

Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observa-

tório da Justiça Brasileira. Coordenador da Rede de Observatórios do Direito à Verdade, Memória e

Justiça nas Universidades Brasileiras – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Coordenador do Projeto de Pesquisa Internacional sobre Patologias Corruptivas.

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Rogério Gesta Leal

Decreto-Lei nº 201/19673, em especial a partir de um caso judicial decidido pela Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – RS.

Para tanto, vou fazer uma breve exposição do caso judicial referido, após o que vou tratar do instituto de direito público do cargo em comissão, para em seguida verificar quais os critérios legítimos e legais de nomeação para eles e em que medida o Poder Judiciário pode intervir nestas questões.

Ato contínuo, vou tratar do enquadramento do caso nos termos do Decreto--Lei ora referido e sua configuração como crime.

1. SÍNTESE DO CASO JUDICIAL

O caso judicial que vai servir de análise para este trabalho diz respeito aos fatos ocorridos entre os anos de 2009 e 2012, no Município de Jóia, Rio Grande do Sul, oportunidade em que o denunciado, na condição de prefeito municipal, nomeou e designou servidores contra expressa disposição de lei para ocuparem cargos de provimento em comissão, isto porque nenhum dos nomeados ou designados exerciam, efetivamente, atividade de direção, chefia ou assessoramento (próprios da espécie), já que não havia terceiros subordinados a eles, e exerciam funções típicas de execução na Administração Municipal.

Por exemplo, uma servidora foi nomeada para o cargo de chefe de setor, mas realizava atividades de faxina junto ao Conselho tutelar de Jóia; outro foi nomeado para o cargo chefe de setor, mas exercia atividade de limpeza nas ruas da cidade; outra servidora foi nomeada para cargo de chefe de setor de higiene e limpeza, mas exercia a função de recepcionista junto ao Poder Executivo; outra servidora foi nomeada para o cargo chefe de setor, mas era responsável pelo agendamento de exames junto à Secretária de Saúde; outra foi nomeada para cargo chefe de setor, mas realizava atividades de faxina junto ao prédio da Prefeitura; outro foi nomeado para o cargo de coordenador geral, mas exercia atividade de limpeza nas ruas da cidade; outra foi nomeada para cargo de auxiliar especial, mas exercia atividade de limpeza e recepcionista na Secretaria de Educação; outra foi nomeada para cargo de coordenador geral, mas era responsável pela entrega das fichas para atendimento médico junto à Secretaria de Saúde; outro foi nomeado

3 – Diz o dispositivo: Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao

julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

XIII - Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei.

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

para o cargo de chefe de setor, mas era responsável pela entrega de semente de milho armazenada no antigo prédio da prefeitura; e outro ainda foi designado para o cargo de supervisor geral, mas era o responsável pela ornamentação dos canteiros e corte de grama. Ou seja, todos exerciam atividades de execução típicas de servidores de carreira, e ainda sem qualquer demanda especial de direção, chefia ou assessoramento.4

2. A NATUREZA JURÍDICA-CONSTITUCIONAL DO CARGO EM

COMISSÃO NO BRASIL E AS CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES DE NO-

MEAÇÕES A ESTE TÍTULO PELOS AGENTES POLÍTICOS

É bom lembrar que os funcionários quando ingressam no serviço público brasileiro passam a ocupar um Cargo Público, conceituado como o lugar instituído na organização do funcionalismo, com denominação própria, atribuição específica e estipêndio correspondente, para ser provido e exercido por um titular, na forma estabelecida em lei. Não se confunde com função pública, pois esta é apenas a atribuição cometida a determinado agente público. Tampouco se confunde com emprego público, este regido pelas disposições da CLT.

Por outro lado, a partir da Constituição de 1988, o ingresso nos cargos públicos se dá, em regra, pela via do concurso público de provas e títulos (art. 37, II, CF/88), todavia, existem atribuições públicas que requerem de quem as exercem níveis particulares de confiança da autoridade que tem a competência para nomear, notadamente aquelas destinadas à direção, chefia e assessoramento de setores/órgãos da Administração, tratando-se de verdadeira exceção constitucional (art. 37, V, CF/88), ou seja,

Essa exceção constitucional exige que a lei determine expressamente quais as funções de confiança e os cargos de confiança que poderão ser providos por pessoas estranhas ao funcionalismo público e sem a necessi-dade do concurso público, pois a exigência constitucional de prévio con-curso público não pode ser ludibriada pela criação arbitrária de funções

4 – Conforme prova nos autos da Apelação-Crime nº 70063079768, julgada pela Quarta Câmara

Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Relator do processo o Des. Rogério

Gesta Leal, e julgadores os Desembargadores Newton Brasil de Leão e Ivan Leomar Bruxel, julgado

em 26 de fevereiro de 2015.

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Rogério Gesta Leal

de confiança e cargos em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que explica o regime de livre no-meação e exoneração que os caracteriza. (MORAES, 2003, p. 229).

Mas vou mais à frente! Para além dos avanços que se conseguiu no país proibindo o nepotismo, muitas vezes presente na nomeação destes cargos (veja-se a súmula vinculante nº 13/2008, do STF sobre o tema), mesmo em plena vigência da nova ordem constitucional, parece óbvio que qualquer ocupante de cargo em comissão (servidor público concursado ou não) tem que possuir qualificação e capacitação profissional compatíveis com as respectivas atribuições a serem assumidas, pois terão de desenvolver à comunidade serviços altamente qualificados de chefia, assessoramento ou direção não atendidos por cargos de provimento efetivo.

E mais, por tais razões, os próprios cargos em comissão criados previamente por lei precisam identificar muito bem que demandas vão atender, e que habilidades e competências está a se exigir de seus ocupantes que não podem ser preenchidas por cargos de provimento efetivo, consoante regra constitucional e ordinária do concurso público.

Quando não observadas estas diretrizes, o que se vê são cargos em comissão criados sem qualquer preocupação demarcatória de funções e atribuições de assessoramento, chefia ou direção, ou ocupados por pessoas que desempenham atividades meramente técnicas e operacionais, às vezes sem qualquer formação/qualificação pessoal e profissional para tanto.5

Inexiste, pois, aqui, conceito jurídico indeterminado sobre o que são cargos em comissão a ponto de autorizar uso ampliado, desproporcional e desarrazoado da discricionariedade administrativa do gestor público para nomear quanto e quem quiser a este título. A discricionariedade é vinculada à norma e ao sistema jurídico, levando em conta seus princípios e regras, constitucionais e infraconstitucionais, razão pela qual poderá a Administração Pública somente nomear pessoas que

5 – Em matéria jornalística, datada de 18 de julho de 2007, publicada no web site da Folha Online, é

noticiada a concessão pelo Governo Federal de reajuste de até 140% sobre a remuneração dos cargos

comissionados em órgãos federais da administração direta, indireta, autárquica e fundacional. A maté-

ria ainda faz referência ao número provável de cargos em comissão que seriam alcançados pelo reajuste:

25 mil postos no âmbito do Poder Executivo Federal, gerando um impacto orçamentário no montante

de 200 milhões de reais em 2007, e cerca de 470 milhões de reais em 2008. A notícia completa pode ser

acessada no link: http://folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u305225.shtml, Acesso em: 06 abr. 2015.

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

se mostrem capacitadas sob o ponto de vista profissional – pois é disto que se trata – para exercerem cargos com funções/atribuições de direção, chefia e assessoramento, as quais, por sua vez, têm suas tarefas bem delineadas por norma anterior que os criou.6

Isto é tão grave que o Supremo Tribunal Federal, através do RE nº 365368 AgR/SC, julgou inconstitucional a medida tendente à criação de cargos comissionados pela Câmara Municipal de Blumenau, eis que desprovidos de mínima fundamentação e justificação razoável, sustentando que, embora não caiba ao Poder Judiciário apreciar o mérito dos atos administrativos, a análise de sua discricionariedade seria possível para a verificação de sua regularidade em relação às causas, aos motivos e à finalidade que ensejam.

No caso de Blumenau o STF entendeu, acertadamente, ter ocorrido exagero por parte do legislador, desatendendo o princípio da proporcionalidade, haja vista que, dos 67 funcionários da Câmara de Vereadores, 42 exerceriam cargos de livre nomeação, e apenas 25 cargos de provimento efetivo. No ponto, não foi proporcional e razoável a medida legislativa coatada, pois deveria ter sido observada a relação de compatibilidade entre os cargos criados para atender às demandas do citado Município e os cargos efetivos já existentes.7

O mérito administrativo revelado nestes casos cuida da avaliação da conveniência e oportunidade relativas ao motivo e ao objeto da criação de cargos em comissão e da contratação de pessoas para estes cargos. O ato discricionário em tais casos defere ao agente público o poder de valorar os fatores constitutivos do motivo e do objeto demarcado na norma autorizadora da criação dos cargos e das razões da contratação para cada cargo, apreciando a conveniência e a oportunidade da conduta a ser praticada (CARVALHO FILHO, 2010, p. 136).8

Assim, os cargos em comissão, em que pese constituírem exceções justificáveis à regra do concurso público, reclamam motivação a bem do interesse público desde à formulação legislativa matricial, não podendo ser indiscriminadamente autorizados, isto é, não se afigura suficiente que esteja o cargo público classificado

6 – O STF disse há pouco sobre isto que se afigura totalmente inconstitucional a criação de cargos em

comissão para funções que não exigem o requisito da confiança para seu preenchimento. RE 376440

ED / DF - DISTRITO FEDERAL. EMB.DECL. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a):

Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 18/09/2014, Órgão Julgador: Tribunal Pleno

7 – Conforme Informativo STF nº 468.

8 – Ver também o texto “O princípio da razoabilidade: um limite à discricionariedade administrativa”, de Fábio

Pallaretti Calcini.

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Rogério Gesta Leal

como de direção, chefia ou assessoramento, cabendo ao poder judiciário, quando provocado, perquirir a real natureza das atividades criadas pela norma e exercidas pelo servidor investido no cargo em comissão, para então reconhecer ou não, a sua natureza comissionada, em nada configurando ativismo ou intervencionismo exacerbado da judicialização da política.9

E não se diga que os critérios à averiguação da razoabilidade, necessidade e proporcionalidade da criação de cargos em comissão e de suas nomeações se dão com extrema subjetividade por parte do gestor público ou do Judiciário, pois há elementos de densificação material dos seus requisitos, a começar:

Pelo afastamento das atividades que, decididamente, não possuem um grau mínimo de direção, chefia ou assessoramento. Pode-se exemplificar com atividades materiais, repetitivas, sem qualquer especialização, que não impliquem o exercício mínimo de parcela de autoridade e comando. O passo posterior deve ser dado com o socorro à acepção comum dos ter-mos utilizados. A peculiaridade verificada na redação do inciso é que os termos utilizados possuem significados aproximados, talvez complemen-tares, o que impede uma conceituação precisa. Com efeito, chefia evoca autoridade, poder de decisão e mando situado em patamar hierarquica-mente superior. O termo direção liga-se a comando, liderança, condução e orientação de rumos, gerenciamento. Já a expressão assessoramento pa-rece evolver uma atividade auxiliar especializada. (MOTTA, 2014, p. 837)

Recentemente o STF decidiu que não podem os cargos em comissão mascararem a natureza e funções de cargos que são próprios do Estado, dizendo respeito as suas demandas rotineiras, para as quais contam com estrutura de cargos e carreiras. Disse o Tribunal:

É inconstitucional o diploma normativo editado pelo Estado-membro, ainda que se trate de emenda à Constituição estadual, que outorgue a exercente de cargo em comissão ou de função de confiança, estranho aos quadros da Advocacia de Estado, o exercício, no âmbito do Poder Executi-vo local, de atribuições inerentes à representação judicial e ao desempe-

9 – Ver meu texto “Ativismo Judicial e Déficits Democráticos: algumas experiências latino-americanas e euro-péias”.

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

nho da atividade de consultoria e de assessoramento jurídicos, pois tais encargos traduzem prerrogativa institucional outorgada, em caráter de exclusividade, aos Procuradores do Estado pela própria Constituição da República. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Magistério da doutrina. – A extrema relevância das funções constitucionalmente reser-vadas ao Procurador do Estado (e do Distrito Federal, também), nota-damente no plano das atividades de consultoria jurídica e de exame e fiscalização da legalidade interna dos atos da Administração Estadual, impõe que tais atribuições sejam exercidas por agente público investi-do, em caráter efetivo, na forma estabelecida pelo art. 132 da Lei Fun-damental da República, em ordem a que possa agir com independência e sem temor de ser exonerado “ad libitum” pelo Chefe do Poder Executivo local pelo fato de haver exercido, legitimamente e com inteira correção, os encargos irrenunciáveis inerentes às suas altas funções institucionais.10

Em outra decisão recente do STF, este Tribunal teve oportunidade de dizer que a exigência constitucional do concurso público não pode ser burlada pela criação arbitrária de cargos de provimento em comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de confiança que dá azo ao regime de livre exoneração que os caracteriza. Daí se fazer imprescindível a demonstração concreta, mediante a descrição das atribuições do cargo em comissão pela lei criadora, possibilitando--se verificar se as atribuições de determinado cargo atendem à possibilidade de dispensa da cláusula constitucional do concurso público (CF, art. 37, II).11

E há outra perspectiva aqui que tem de ser destacada que diz com a que diferença entre atos jurídicos ordinários da vida civil e atos administrativos praticados pelo Estado – como é o caso da criação dos cargos em comissão

10 – ADI 4843 MC-ED-Ref / PB – PARAÍBA. REFERENDO NOS EMB.DECL. NA MEDIDA

CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. CELSO

DE MELLO. Julgamento: 11/12/2014, Órgão Julgador: Tribunal Pleno.

11 – Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 658.643. Julgamento na Segunda Turma do

STF, relatoria Ministra Carmen Lucia, originário de São Paulo, julgado em 02 de dezembro de 2014,

p. 03. No mesmo sentido: É inconstitucional a criação de cargos em comissão que não possuem caráter de asses-soramento, chefia ou direção e que não demandam relação de confiança entre o servidor nomeado e o seu superior hierárquico. ADI 3.602, Pleno, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJ de 7.6.11. No mesmo sentido:

AI 656.666-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 5.3.2012 e ADI 3.233,

Pleno, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJe 14.9.2007.

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Rogério Gesta Leal

(ato administrativo-legislativo), e a nomeação de pessoas para tais cargos (ato administrativo de gestão).

A natureza fundacional do ato jurídico enquanto elemento nuclear do objeto do conhecimento e da normatividade jurídica, desde os Romanos, sempre esteve ligado à ideia de manifestação da vontade e disponibilidade dos interesses envolvidos nesse ato, enquanto que o ato administrativo, na condição mesmo que preliminar de comportamento do Estado/governo, obedeceu (também em nível de história) uma outra lógica: a do Poder Político (não raro representante dos interesses comunitários)12.

De pronto, assim, pode-se perceber – ao menos no âmbito desta abordagem –distinção de natureza que pode ser destacada entre o ato jurídico e o ato administrativo, pois o primeiro tem como pressuposto constitutivo a deliberação de vontade de um sujeito de direito sobre objetos/interesses que podem receber destinação/finalidade consoante suas manifestações volitivas, desde que não violem norma jurídica válida e vigente. Enquanto isso, o ato administrativo conta com outro pressuposto de base, a saber, institucional, voltado à natureza do poder político e seu exercício13, a despeito de também estar vinculado à dicção normativa válida e vigente.

Tal distinção, todavia, não autoriza a tese de que carece de vontade os atos estatais administrativos. Pelo contrário, eis que o Estado exerce as suas funções através de manifestações de sua vontade, quer em relação a outras pessoas públicas, quer em relação aos particulares, pessoas de direito privado, e nesta qualidade se apresenta como parte nas relações jurídicas que daí decorrem.14

Entretanto, a vontade a que se refere o Estado vem já demarcada pelo interesse que a funda, autoriza e lhe dá legitimidade, a saber: o interesse público, aqui enquanto equivalente ao interesse da comunidade (corpo vivo de todos os cidadãos, e não de parte deles). Na perspectiva institucionalista do autor, tais interesses devem estar insertos no sistema jurídico vigente, constituindo um plexo de prerrogativas/direitos nominados de direitos subjetivos públicos (BONARD, 1979)15.

12 – A despeito dos índices e formas de exclusão social que isso, por vezes, implicava. Nesse sentido ver

o texto “Histoire du droit administrati”, de Ferdinand Dietrich Bordeau.

13 – Ver o texto “O pressuposto lógico do ato administrativo”, de José Roberto Pimenta Oliveira.

14 – Ver o texto “Teoria dos Atos Administrativos”, de Themístocles Brandão Cavalcanti.15 – Como quer o autor, “esses direitos se apresentam como resultado do enfrentamento que ocorre

entre interesses privados e interesses sociais, estabelecendo uma relação de prioridade entre os interesses

gerais sobre os individuais” (BONARD, 1979, p. 63).

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

Significa dizer que os atos administrativos – caracterizados aqui como estatais – se de um lado dizem respeito aos comportamentos oficiosos da Administração Pública, na condição de detentora do ius imperium, de outro lado, apresentam-se como condutas (omissivas ou comissivas), instrumentos e mecanismos necessários à persecução dos interesses públicos previamente dispostos pelas normativas institucionais – constitucionais e infraconstitucionais16.

Daí porque toma relevo a sindicabilidade destes atos administrativos pelo Poder Judiciário, flexibilizando o conceito ortodoxo e rígido da teoria dos freios e contrapesos tão festejada pela cultura jurídica ocidental. De tal sorte, o comportamento administrativo tipificado como ato oficioso não tem o condão de eternizar a medida levada ao cabo pelo Poder Público, mas o sujeita a revisibilidade pelo judiciário, nos termos do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal17.

Partindo-se, pois, do pressuposto de que o ato administrativo é sim manifestação da vontade condicionada estatal, e, por isso, apresenta-se como uma das modalidades de fato jurídico, quero sustentar que, por tratar-se de ação vinculada a determinados princípios e competências – normativos – , força é reconhecer que todas as exigências formais impostas àqueles atos dão-se nem tanto pelo fato de serem estatais, mas, fundamentalmente, para que possam ser controlados e responsabilizados, atentando-se sempre para o interesse protegido/perseguido.18

Por tais razões se fala nos pressupostos subjetivos e objetivos do ato administrativo, principalmente com o intuito de aferir-se quais os atores sociais que estão autorizados para praticarem tais atos (plano de validade) e com que procedimentos. No que diz respeito ao seu pressuposto subjetivo, mister é que se avalie a capacidade da pessoa jurídica que praticou o ato e se ela tem competência para tanto no momento da emanação do ato, caso contrário o ato será inválido. Já sobre o aspecto objetivo, avalia-se o momento anterior ao ato, onde se encontra a justificativa da sua necessidade.

Precisa-se perquirir ainda sobre a finalidade do ato, a saber, o bem jurídico objetivado por ele; o resultado previsto legalmente como corresponde a tipologia

16 – Tratei destes temas em meu livro “Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas”.

17 – Que dispõe: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

18 – Destacamos que é possível encontrarmos situações de fatos jurídicos administrativos, enquanto

ocorrência administrativa que independa de prévia manifestação formal da vontade estatal, como por

exemplo, a ocupação administrativa de propriedade privada para atender uma emergência envolvendo

segurança ou socorro público, provocado por inundações, terremotos, etc.

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do ato administrativo. A finalidade é prevista implícita ou explicitamente pela Lei e, sua alteração, implica desvio de poder, que rende ensejo à invalidação do ato.19

As previsões explícitas dizem respeito àquelas proposições insertas nas normas jurídicas vigentes tanto em nível de constituição como nos ordenamentos infraconstitucionais, destacando-se, de um lado, os seus aspectos descritivos – condição de validade, como é o caso das regras jurídicas; de outro lado, os princípios, explicitando seus aspectos prescritivos (deônticos), que servem de parâmetros/diretrizes fundamentais de interpretação e aplicação das demais normas jurídicas.20

Já as previsões implícitas dizem respeito às proposições normativas também insertas nos ordenamentos jurídicos, mas que se caracterizam mais por seus aspectos prescritivos – deônticos – do que descritivos, como o que diz respeito à indisponibilidade do interesse público. Enquanto tais, encontram-se dispersos ao longo do sistema jurídico sob comento, “sendo descobertos no interior de determinado ordenamento. E o são justamente porque neste mesmo ordenamento – isto é, no interior dele – já se encontravam, em estado de latência” (GRAU, 1991, p. 130).

Sobre o tema, há ainda a teoria dos motivos determinantes21, que se funda na consideração de que os atos administrativos, quando tiverem sua prática motivada (aferindo-se também o móvel do agente/ato administrativo), ficam vinculados aos motivos expostos, para todos os efeitos jurídicos. Mesmo os atos discricionários, se forem motivados, e a CF/88 o exige, ficam vinculados a esses motivos. Ora nada mais apropriado para o tema dos cargos em comissão, tanto no que diz com as suas criações como nomeações, vinculados que estão à ordem constitucional e infraconstitucional, em face da necessidade, respeito aos quadros de carreira e demandas ordinárias do Estado, às competências e atribuições determinadas pelas leis que os criam, e as qualificações de quem os ocupa!

O jurista italiano Guido Zanobini22 sustenta que, enquanto no direito privado o motivo se equipara a manifestação volitiva que dá vida ao ato jurídico inserto na vontade do agente, no direito público “os direitos ganham relevância,

19 – Neste sentido ver o texto “Trattato di Diritto Amministrativo”, de Sabino Cassese, e o livro “Introdu-zione ad un Corso di Diritto Amministrativo”, de Philippo Satta.

20 – Como é o caso dos Princípios Constitucionais insertos nos arts. 1º a 5º, mais os do art. 37, da

Constituição Federal de 1988.

21 – Ver o texto “Democracia, Jueces y Control de la Administración”, de Eduardo García de Enterría.

22 – Ver os clássicos trabalhos: (a) “Traité des Actes Administratif ”, de Michel Stassinopoulos; e (b) “Essai sur la notion de cause en droit administratif français”, de Georges Vedel.

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

pois devem estar conectados com o interesse da comuna e determinado fim público pontual” (ZANOBINI, 1984, p. 274).

De qualquer sorte, é possível sustentar que inexiste atuação administrativa válida desvinculada de situação de fato e/ou de direito que se encontra em sua base constitutiva, carente sempre de explicitação e fundamento.23

Mas como estes elementos administrativos se comunicam com o direito penal? Em face do argumento poderoso de Nelson Hungria, ao sustentar que a ilicitude é uma só, do mesmo modo, que uma só, na sua essência, é o dever jurídico. Não há falar em ilícito administrativo diverso do ilícito criminal. A separação entre um e outro atende critérios de conveniência e oportunidade afeiçoados à medida de interesse da sociedade e do Estado, que é variável no tempo e no espaço (HUNGRIA, 1958, pág. 315).

Volto ao caso concreto.

3. A SOLUÇÃO DO CASO CONCRETO

Como referi antes, o Ministério Público, na Comarca de Augusto Pestana, em data de 06 de agosto de 2013, ofereceu denúncia contra Jânio Ivan Andreatta, dando-o como incurso nas sanções do art. 1º, inc. XIII, do Decreto-Lei 201/1967, pela prática do seguinte fato delituoso:

Entre os anos de 2009 e 2012, no Município de Jóia, o denunciado Jânio Ivan Andreatta, na condição de prefeito municipal nomeou e designou servidores contra expressa disposição de lei.“Na oportunidade, o denunciado, na condição de prefeito municipal, no-meou Adriana de Fátima Vieira de Oliveira, Antônio Chaves da Costa, Claudete Brittes de Lima, Emanuele Eduarda Franco, Janete Antunes de Souza, João Chaves da Costa, Juliana Castro, Rejane Aparecida Ernan-des e Sebastião Siqueira, e designou Gilmar Boff Menegazzi, para cargos de provimento em comissão contra expressa disposição de lei, eis que nenhum dos servidores nomeados ou designados exerciam, efetivamente, atividade de direção, chefia ou assessoramento, já que não havia terceiros subordinados a eles, e exerciam funções típicas de execução na Adminis-tração Municipal (fls. 14, 17, 21, 25, 26, 29 e 30, 33, 41 e 45).

23 – Nesse sentido o trabalho “Erro e Ilegalidade do Ato Administrativo”, de André Gonçalves Pereira.

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“A servidora Adriana de Fátima Vieira de Oliveira foi nomeada para o cargo de chefe de setor (fl. 14), mas realizava atividades de faxina junto ao Conselho tutelar de Jóia; Antônio Chaves da Costa foi nomeado para o cargo chefe de setor (fl. 17), mas exercia atividade de limpeza nas ruas da cidade; Claudete Brittes de Lima foi nomeada para cargo de chefe de setor de higiene e limpeza (fl. 21), mas exercia a função de recepcionista junto à Prefeitura Municipal; Emanuele Eduarda Franco foi nomeada para o cargo chefe de setor (fl. 25), mas era responsável pelo agendamen-to de exames junto à Secretária de Saúde; Janete Antunes de Souza foi nomeada para cargo chefe de setor (fl. 28), mas realizava atividades de faxina junto ao prédio da Prefeitura; João Chaves da Costa foi nomeado para o cargo de coordenador geral (fl. 30), mas exercia atividade de lim-peza nas ruas da cidade; Juliana Castro foi nomeada para cargo de auxi-liar especial (fl. 33), mas exercia atividade de limpeza e recepcionista na Secretaria de Educação; Rejane Aparecida Ernandes foi nomeada para cargo de coordenador geral (fl. 41), mas era responsável pela entrega das fichas para atendimento médico junto à Secretaria de Saúde; Sebastião Siqueira foi nomeada para o cargo de chefe de setor (fl. 45), mas era res-ponsável pela entrega de semente de milho armazenada no antigo prédio da prefeitura; e Gilmar Boff Menegazzi foi designado para o cargo de supervisor geral (fl. 26), mas era o responsável pela ornamentação dos canteiros e corte de grama. Ou seja, todos exerciam atividades de execução típicas de servidores de carreira.

Regularmente processado o feito, foi proferida sentença, em data de 23 de setembro de 2014, julgando procedente a ação penal, para condenar o réu nas iras do art. 1º, inc. XIII, do Decreto-Lei nº 201/1967, à pena de 05 (cinco) meses de detenção, em regime aberto, substituída por uma pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviços à comunidade, à razão de uma hora de serviço por dia de pena.

Como efeito da condenação, o réu ficou inabilitado pelo período de 05 anos (cinco) anos para o exercício de cargo ou função pública, eletiva ou de nomeação, nos termos do art. 1º, § 2º, do DL 201/67.24

24 – Diz o art. 1º, § 2º: A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acar-

reta a perda de cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos, para o exercício de cargo ou função

pública, eletivo ou de nomeação, sem prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio

público ou particular.

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

Inconformado, interpôs recurso de apelação, sendo que em suas razões, postulou a absolvição, com fundamento no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal25, sustentando não ter havido prejuízo ao erário municipal, tampouco nomeação contra expressa disposição de lei.

Nas contrarrazões o Ministério Público postulou a manutenção da sentença condenatória, sendo que, no segundo grau de jurisdição, o Procurador de Justiça opinou pelo conhecimento e, no mérito, pelo desprovimento do apelo, ratificando as razões da denúncia.

É importante registrar que o réu, em termos de antecedentes, respondia na época a ação penal pelo delito inserto no art. 1º, inc. VIII, do Decreto-Lei n° 201/6726, ostentando sentenças condenatórias proferidas em processos envolvendo os delitos dos arts. 304, do Código Penal27, combinado com o arts. 90 e 92, da Lei nº 8.666/9328, e ainda o art. 67, da Lei nº 9.605/9829.

Há nos autos sobeja prova de que o denunciado, na condição de prefeito municipal, nomeou e designou servidores contra expressa disposição de lei, pois, providos para cargos em comissão, não exerciam, efetivamente, atividade de direção, chefia ou assessoramento, mas funções típicas de execução na Administração Municipal (faxina, limpeza e secretariado).

A materialidade e a autoria do delito restaram comprovadas através das provas documentais coligidas aos autos, especialmente pelas nomeações das pessoas referidas na inicial acusatória, realizadas pessoalmente pelo apelante no período compreendido entre os anos de 2009 a 2012.

25 – Diz o art. 386: O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que

reconheça: III - não constituir o fato infração penal.

26 – Diz o art. 1º, em seu inciso VIII, que é crime contrair empréstimo, emitir apólices, ou obrigar o

Município por títulos de crédito, sem autorização da Câmara, ou em desacordo com a lei.

27 – Diz o artigo 304, do Código Penal, que é crime Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou

alterados descritos nos arts. 297 a 302, do mesmo diploma legal.

28 – Dizem os art. 90 que é crime frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro

expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para

outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação; o art. 92 criminaliza a conduta de

admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contra-

tual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem

autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou,

ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade.

29 – Diz o art. 67 que é crime contra a administração ambiental conceder o funcionário público licença,

autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou servi-

ços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público.

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Os servidores nomeados pelo acusado para ocupar cargos em comissão exerciam atividades típicas da Administração Pública, portanto, deveriam obedecer à regra constitucional de acessibilidade de cargos públicos (concurso), o que configura o tipo penal previsto no art. 1º, inc. XIII, do Decreto-Lei 201/1967.

Doutrinariamente não há dúvidas de que o “prefeito que nomear livremente alguém para cargo público que, segundo a natureza de suas funções, deveria ser provido por servidor público concursado, mesmo sob falsa justificativa de ser cargo em comissão, incide na figura penal em exame” (PAZZAGLINI FILHO, 2009, p. 91).

Quanto ao elemento subjetivo do ilícito penal, exige-se o dolo, a vontade livre e consciente de frustrar concurso público, designando à nomeação (forma originária de investidura em cargo ou emprego público), servidor público ao arrepio da previsão legal. Em que pese inexista notícia nos autos acerca de eventual concurso público em vigor e preterição de candidatos aprovados, mesmo assim a conduta do denunciado atentou à lei e aos princípios de impessoalidade e moralidade administrativa, principalmente em face das nomeações absolutamente divorciadas das atribuições dos cargos em comissão sob comento ocupados.

Não se trata de mero desvio de função, uma vez que os agentes nomeados jamais exerceram atividades em consonância com o comando constitucional, sendo que as Portarias de nomeações representam verdadeira forma de mascarar de legal o que é absolutamente ilegal e afrontoso à lei, já que os servidores públicos estavam afeitos às atividades típicas e fixas da Administração, concernente à realização de serviços de limpeza de ruas, faxina em prédios, recepcionista, entrega de fichas a usuários e de semente de milho para agricultores, ornamentação de canteiros e corte de grama, além de, por certo, distantes de funções de direção, chefia e assessoramento.

Não havia sequer lei local que amparasse, ainda que de forma errônea, a conduta do réu, a cogitar-se em erro e ausência de dolo, culminando em atipicidade, no sentido do provimento das funções a serem realizadas através da designação de cargos comissionados.

Ademais, conforme constou da sentença proferida no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa (Autos nº 149/1.13.0000544-9), referente ao mesmo fato objeto da presente ação penal:

Em Jóia, a matéria é regulada pela Lei Municipal n. 455/93, que dispõe sobre o quadro de padrões e funções da administração direta, alterada pela Lei 506/94, a qual prevê ser de livre contratação os cargos de secretário municipal, coordenador de educação, coordenador, assessor jurídico, assessor especial de obras, supervisor

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geral, supervisor de ensino, chefe de setor, motorista executivo e auxiliar especial, nas quais não se enquadra nenhum dos casos referidos na inicial.Sequer consta a possibilidade no Regime Jurídico Único dos Servidores (Lei Mu-nicipal n. 1310/02) dita possibilidade.Somente se tivesse havido autorização legislativa para as contratações referidas, bem como a comprovação da necessidade e urgência é que não haveria a prática de ato de improbidade administrativa, situação aquela que não se verifica no presen-te. Nesse sentido, apelação criminal n. 70024757890, de 29/07/2010, do TJ/RS, e n. 70006512685, de 02/06/2005, do mesmo tribunal. (Grifos no original).

Portanto, verifica-se que a conduta descrita na denúncia configurou crime, diante da designação de servidores, não concursados, para o exercício de cargos de provimento efetivo, mascarada através do preenchimento ilegal de cargos públicos na forma de cargos comissionados, implicando transgressão não só ao texto constitucional, mas também à lei local.

A prova oral colhida mostrou-se suficiente a denotar que tinha o réu conhecimento do exercício de atividades estranhas às de direção, chefia e assessoramento pelos servidores indicados na inicial acusatória, conforme a transcrição constante do parecer ministerial, referindo a análise colhida em sede de contra-razões pela Promotora de Justiça, in verbis:

A testemunha Marcos Brenn, funcionário público concursado, relatou que nada sabe quanto à forma de contratação das pessoas referida na exordial. Porém, sabe que Adriana de Fátima Vieira de Oliveira trabalhou na Secretaria da Agricultura reali-zando trabalhos referentes à limpeza, bem como que a mesma em nenhum momento efetuou algum trabalho burocrático, mas simplesmente a limpeza do local. Acrescen-tou ainda, que a mesma foi contratada no período de administração do réu Jânio. Quanto à funcionária Janete Antunes de Souza, informou que a mesma igualmente realizava trabalhos de limpeza na sede da Prefeitura Municipal. Já em relação à Claudete Brittes de Lima, disse que lembra que a mesma trabalhava como recepcio-nista da Prefeitura (atendendo telefones, fazendo encaminhamento de pessoas, proto-colando documentos). Disse ainda que João Chaves da Costa trabalhava na limpeza das ruas, juntamente com Gilmar Boff Menegazzi, que trabalhava plantando flores, cortando grama, e nos trabalhos de embelezamento das ruas.A testemunha Maria Chaves da Costa, irmã de João Chaves da Costa, referiu que seu irmão trabalhava na Prefeitura desempenhando funções

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de limpeza de rua, recolhendo lixos e galhos de árvores. Igualmente seu outro irmão, Antônio Chaves da Costa, varria as ruas e carregava o lixo no carrinho de mão, sendo que nenhum dos dois tinha uma sala própria, subordinados, uma vez que ‘não eram chefes de ninguém’.O funcionário público municipal Oneide José Sassi disse que na época de 2009-2012 estava lotado na Secretaria de Agricultura do Município de Jóia, mesmo local em que Adriana de Fátima Viera de Oliveira realizava trabalhos de servente realizando limpezas gerais na secretaria. Informou que Adriana não era chefe de ninguém e que a mesma trabalhou um período na Secretaria de Agricultura e outro período na Secretaria de Educação, realizando limpezas em ambos os locais. Outrossim, confirmou que Antônio Chagas da Costa trabalhava limpando, capi-nando as ruas. Já em relação à Claudete Brittes de Lima, disse que a mesma foi re-cepcionista (atendimento de telefone, encaminhamentos de pessoas, protocolamento de documentos) e também trabalhou um tempo na limpeza. A funcionária Edna Schneider, por sua vez, trabalhava auxiliando na digitação na Secretaria de Agri-cultura e não lembra se a mesma realizava trabalhos de chefia. Quanto à Emanuele Eduardo Franco, mencionou que a mesma trabalhava na recepção da Secretaria de Saúde, sendo que encaminhava as pessoas para outros setores, agendava consultas e distribuía fichas. O funcionário Gilmar Menegazzi trabalhava com o “embeleza-mento” da cidade, plantando flores e cortando grama. Quanto à Janete Antunes de Souza, referiu que a mesma trabalhava como servente, assim como Juliana Castro, que começou como servente e depois trabalhou como recepcionista da Prefeitura. Disse que Maicon Abreu auxiliava o nutricionista do Município a distribuir as merendas para as Escolas, sendo que apenas executava os serviços. A testemunha Antônio Chaves da Costa (um dos funcionários contratados para ocupar um cargo em comissão na gestão do denunciado) relatou que trabalhava na Prefeitura fazendo limpeza de banheiros e ruas, sendo que não tinha subordinados. Em síntese, disse que realizava os seguintes trabalhos: limpeza de banheiros, limpe-za na frente da Prefeitura e da Secretaria de Saúde. Referiu que tinha carteira as-sinada com a Prefeitura e depois de um tempo foi contratado, mas não soube dizer o motivo de alteração da forma de contratação. Outrossim, informou que quem lhe passou suas atribuições foi Jorge Abreu, o qual era o Secretário de Administração na época em que Jânio era Prefeito.A testemunha Claudete Brittes de Lima (uma das funcionárias contratadas para ocupar um cargo em comissão na gestão do denunciado) relatou que foi contratada por Clóvis Poletto (o qual foi Prefeito durante um mandato tampão em Jóia, em

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razão de ter sido cassado o diploma do então eleito, Vilmar Hernandez). Informou que quando começou a trabalhar na Prefeitura, trabalhava fazendo limpeza. Disse que fez campanha política para Clóvis Poletto. Admitiu que nunca teve qualquer funcionário subordinado à sua pessoa e também nunca trabalhou com carteira assinada. Confirmou que fez campanha política para o réu Jânio no ano de 2008 (período de campanha eleitoral em que Janio saiu vencedor nas eleições). Informou que foi demitida antes do Jânio sair da Prefeitura, sendo que até mesmo no mo-mento em que foi demitida ainda trabalhava no serviço de limpeza.A testemunha Edna Isabel Schneider (uma das funcionárias contratadas para ocupar um cargo em comissão na gestão do denunciado) disse que foi contratada como su-pervisora (Cargo em Comissão) e trabalhava na Secretaria de Agricultura, no ano de 2009 e 2012. Confirmou que foi o próprio réu Jânio que a procurou para contratá-la. Informou que no ano de 2009 começou a trabalhar como secretária (recepcionista), sendo que atendia telefone, redigia contratos e demais trabalhos de secretariado. Outrossim, disse que era responsável por Adriana de Fátima Vieira de Oliveira, a qual era faxineira, e também por Marcos Brenn, o qual é técnico naquela Secretaria. (...)A testemunha Juliana Castro (uma das funcionárias contratadas para ocupar um cargo em comissão na gestão do denunciado) relatou que foi contratada para fazer limpeza, sendo que ficou trabalhando pelo período de 06 meses. Outrossim, disse que trabalhou na Secretaria de Educação como recepcionista e que não tinha nenhum subordinado, que ‘não mandava em ninguém’. Informou que Adriana de Fátima Vieira de Oliveira trabalhava na limpeza da Secretaria de Agricultura e que Claudete Brittes de Lima trabalhou na Prefeitura, mas não soube informar o cargo. A testemunha Roseleni Bolfe Drews relatou que é funcionária da Prefeitura há 27 anos e tem conhecimento de contratação de pessoas para cargo de confiança e, que na prática, exercem atividades rotineiras da prefeitura, sendo que isso sempre aconteceu e continua acontecendo. Informou que quando trabalhava no controle interno da Prefeitura, o Prefeito sempre foi orientado a realizar concurso público. Confirmou que sempre via Antônio Chagas da Costa executando serviços na praça (serviços de limpeza). Em relação aos demais cargos, como era de se esperar (eis que integrante do PP e candidata a vereadora no pleito de 2012, conforme certidão que segue) referiu que ‘não se lembrava’ qual a função que exerciam. (Grifos no original).

Não procede a alegação do réu de que não tinha conhecimento da imposição constitucional e legal, pois, se assim fosse, o preenchimento dos cargos

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teria sido realizado de acordo com as funções realmente a serem exercidas e que exprimissem a realidade e necessidade de provimento de cargos, sem necessidade de mascaramento e apadrinhamento político.

Como diz Carmen Lúcia Antunes Rocha, a nomeação de cargos em comissão cuida-se de situação excepcional no ordenamento jurídico brasileiro, que precisa ser compatibilizada com a impessoalidade, posta como princípio constitucional intransponível. “A confiança haverá de ser considerada em relação às condições de qualificação pessoal e à vinculação do agente escolhido com a função a ser desempenhada”. (ROCHA, 1999, p. 177).

O dolo de ferir o fundamento constitucional de acesso ao serviço público restou configurado e, por isso, a condenação foi mantida, não havendo que se perquirir o prejuízo material à Administração, por se tratar de crime formal, consumando-se com a publicação do ato de nomeação.30

Por todas estas razões é que o denunciado foi condenado.

REFERÊNCIAS

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30 – Neste sentido os seguintes julgados: HC 211.781/PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI,

QUINTA TURMA, julgado em 11/09/2012, DJe 18/09/2012; HC 107.939/BA, Rel. Ministro

FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24/11/2008, DJe 02/02/2009; Processo

Crime Nº 70006323661, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Gaspar

Marques Batista, Julgado em 19/05/2005.

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A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso

_____._____. Agravo de Instrumento n. 656.666-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes. Data de julgamento: 14.02.2012. Data de publicação: 05.03.2012. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1791615. Acesso em: 22.06.2015.

_____._____. ADI 3.233, Pleno. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Data de julgamento: 10.05.2007. Data de publicação: 14.09.2007. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=486692. Acesso em: 22.06.2015.

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QUAL O BEM JURÍDICO PENAL PROTEGIDO NO ÂMBITO DOS CRIMES DE LICITAÇÕES NO SISTEMA

JURÍDICO BRASILEIRO? 1

Caroline Fockink Ritt2

Rogério Gesta Leal3

INTRODUÇÃO

Neste texto pretende-se tratar do tema do bem jurídico penal tutelado no âmbito dos chamados crimes de licitação no Brasil, em especial os definidos na

1 – Este artigo é o resultando de pesquisas feitas junto ao Centro de Direitos Sociais e Políticas Públicas,

do Programa de Doutorado e Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, e vinculado ao

Diretório de Grupo do CNPq intitulado Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado pelo

Prof. Titular Dr. Rogério Gesta Leal, bem como decorrência de projeto de pesquisa intitulado “Patologias cor-

ruptivas nas relações entre estado, administração pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos”.

2 – Caroline Fockink Ritt é Mestre em Direito e Professora da UNISC, membro do Grupo de Pesquisa

Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado pelo Prof. Titular Dr. Rogério Gesta Leal,

bem como pesquisadora do projeto de pesquisa intitulado “Patologias corruptivas nas relações entre

estado, administração pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos”.

3 – Rogério Gesta Leal é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Dou-

tor em Direito. Prof. Titular da UNISC. Professor da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio

Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor

da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede

de Direitos Fundamentais-REDIR, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, Brasília. Coordenador

Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da

Magistratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasilei-

ra. Coordenador da Rede de Observatórios do Direito à Verdade, Memória e Justiça nas Universidades

Brasileiras – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

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Caroline Fockink Ritt e Rogério Gesta Leal

Lei de Licitações (nº 8.666/93, e suas alterações), a partir da problematização de alguns conceitos estruturantes dispostos nos tipos penais por ela enunciados.

Pretende-se problematizar perifericamente o conceito de bem jurídico penal na contemporaneidade, para então aferir em que medida se pode operar tal conceito no campo das licitações públicas no Brasil.

Combate e controle da corrupção nas licitações públicas evidenciam algumas das formas de garantir a boa gestão pública, principalmente nos aspectos de probidade, moralidade e eficiência de gestão.

1. O BEM JURÍDICO PENAL ENQUANTO DELIMITADOR DE

COMPORTAMENTOS PENALMENTE RELEVANTES DE PROTEÇÃO

A concretização do modelo de bem jurídico, precisamente o bem jurídico--penal, estabeleceu-se pelo abandono do ponto de partida individual do delito como lesão de um direito subjetivo em favor de uma ampliação a um bem jurídico não necessariamente subjetivo, por meio de progressivo processo de abstração da vítima individual. Este fato se operou ao se conceber a vida ou a propriedade da vítima concreta como objeto de ação, entendendo o bem jurídico “vida” e “propriedade” de modo meramente abstraído e institucionalizado em detrimento da vítima concreta.

Um dos primeiros autores a usar o termo bem jurídico penal foi Karl Binding, positivista, entendendo que o crime seria a lesão a um direito subjetivo do Estado, sendo o bem jurídico aquilo que a lei estabelecesse neste sentido (REALE JÚNIOR, 2009).

Numa linha mais sociológica-positivista, Von Lizt trouxe a compreensão de bens jurídicos como interesses sociais vitais, baseados em circunstâncias sociais concretas – não sendo, pois, meras decorrências do sistema jurídico, mas prévios, decorrentes de contexto social localizado no espaço e no tempo (HEFENDDHEL, 2007, p. 39 e seguintes).

A partir dos anos 1920, com o ideário neokantista, abandonou-se o viés liberal do bem jurídico, ressaltando-se a acepção teleológica, interpretando-o a partir do seu fim extraído dos valores comunitários. A partir de Hans Welzel, nos anos 1930, a delimitação do sistema delitivo não se dá mais ancorada no conceito de bem jurídico, mas no ontologismo finalista, ganhando destaque a consideração do desvalor da ação na análise delitiva (PRADO, 1997; SILVEIRA, 2003).

Veja-se que, apesar de Welzel não destacar em sua construção teórica o tema do bem jurídico, considera que ele se apresenta como interesse vital da comunidade e do indivíduo, tendo o mérito de ter retomado com o finalismo a centralidade

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

do conteúdo material deste bem, ensejando reflexões que problematizaram a legitimidade da intervenção jurídico-penal.

É no funcionalismo da década de 1970 que este debate sobre bens jurídicos ganha força enquanto concretizações de valores constitucionais relacionados aos Direitos Fundamentais. (TAVARES, 2002).

A evolução do conceito de dano até a noção de bem jurídico-penal teve por escopo a missão de proteção do indivíduo contra ataques ilegítimos do Estado na esfera da sua liberdade, ou seja, o bem jurídico-penal não só legitima a intervenção do Estado como impõe limites a sua atuação de tutela penal.

O bem jurídico funciona como padrão crítico apontando o que será adequado ou não para o estabelecimento da sanção criminal, em outras palavras trata-se na exata manifestação da subsidiariedade e ultima ratio do Direito Penal. Tal função crítica engloba tanto uma perspectiva que se pode chamar de negativo--preventiva (vinculativa do legislador penal, operando como limite a sua atividade legiferante), bem como a perspectiva axiológico-positiva, exaltando a importância protetiva do bem eleito.

Estes bens juridicamente conformados, a começar pela norma constitucional, constituem verdadeiros parâmetros valorativos a serem perseguidos pela República e Sociedade brasileira, revelando-se suficientes para o cumprimento das promessas da modernidade: emancipação, autonomia, liberdade e igualdade do homem, fundadas na sua capacidade de ser no mundo. A isto se encontram atrelados Estado e Sociedade. Porém, este senso comum não tem se revelado suficiente para promovê-los e concretizá-los, porque faltam adesões institucionais e sociais para tal desiderato. Para consegui-la de forma democrática, nada mais aconselhável do que o procedimento de compartilhar, coletivamente, normas e ações a ela voltadas, a começar pelas cognitivas e compreensivas sobre o universo posto ao enfrentamento: interesses comunitários, prioridades públicas, políticas públicas, gestão administrativa, visando a constituição de pactos semânticos e pragmáticos definidores destas realidades voltados ao consenso e entendimento (LEAL, 2010).

É a Constituição brasileira de 1988 que, desde seu título primeiro, elenca aqueles parâmetros valorativos fundamentais que pautam a organização do Estado e da Sociedade brasileira, deduzindo como fundamentos da República, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, etc. Essa mesma República tem, como objetivos, a construção de uma Sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as

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Caroline Fockink Ritt e Rogério Gesta Leal

desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Como lembra Bonavides (BONAVIDES, 1998, p. 176), princípios como estes fazem transparecer uma superlegalidade material e se tornam fonte primária do ordenamento. Esses princípios apresentam-se como efetivos valores elegidos pela comunidade política local e, enquanto tais, afiguram-se como a pedra de toque ou critério com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais elevada.

Estes elementos normativos é que se afiguram como delineadores de bens jurídicos constitucionais vinculantes, os quais, por sua vez, servirão para os efeitos de densificações formais e materiais negativo-preventivas e axiológico-positivas do bem jurídico penal.

De certa forma, a discussão sobre o bem jurídico penal tem acolhida no que se pode denominar de Teoria da Imputação Objetiva, enquanto forma de superação ou abandono de estruturas analíticas ontologistas para o apontamento da responsabilidade penal, em prol da admissão de um método normativo de imputação.

As diferentes construções sobre a imputação objetiva encontram ao menos dois pontos pacíficos na doutrina: o primeiro deriva de ser a imputação objetiva uma construção da escola funcionalista a qual concebe como ponto de partida que o sistema penal deve estar fundado em decisões político-criminais básicas explicitadas ou depreendidas da organização do Estado (ROXIN, 2008).

Já o segundo marco refere-se à criação de um risco juridicamente desaprovado, segundo Günther Jakobs. Para Jakobs, o crime é ato de infidelidade ao ordenamento jurídico, sendo a sanção resposta de reafirmação da vigência da norma vilipendiada pela prática ilícita (CALLEGARI; GIACOMOLLI, 2005).

A verdade é que o conceito de bem jurídico penal ainda é relevante, principalmente tomando-se em conta a importância de se ter parâmetros normativos claros tanto à proteção de interesses individuais, sociais e de Estado (constitucional e infraconstitucionalmente importantes sob o ponto de vista penal), como para estabelecer os limites de intervenção pública para fins de restrição da liberdade pela via da criminalização.

Esta é a compreensão de Hassemer e Muñoz Conde, ao sustentarem que a ideia de bem jurídico conduz a uma política criminal racional, eis que o legislador penal deve medir suas decisões com critérios justos e claros, utilizando-os ao mesmo tempo para sua justificação e crítica. Tudo que não tenha a ver com a proteção do

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

bem jurídico penal demarcado deve ser excluído do âmbito da proteção do Direito Penal (COSTA, 2005).

A partir destas brevíssimas reflexões se pode perguntar qual a demarcação que o sistema jurídico brasileiro faz do bem jurídico penal no âmbito da contratação pública e de seus certames eletivos? É o que passo a fazer.

2. QUAL O BEM JURÍDICO QUE O DIREITO PENAL QUER PRO-

TEGER NO ÂMBITO DAS LICITAÇÕES PÚBLICAS?

Para responder esta pergunta é preciso que se tenha claro como este sistema regula a matéria sob comento em geral, o que vem posto já nos termos do art. 37, XXI, da Constituição de 1988 (CF/88), ao determinar que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos temos da lei.

Por outro lado, o art. 3º, caput, da Lei Federal nº 8.666/1993, identifica alguns princípios jurídicos que são aplicáveis às licitações, a saber: (i) legalidade; (ii) impessoalidade; (iii) moralidade; (iv) igualdade; (v) publicidade; (vi) probidade administrativa; (vii) vinculação ao instrumento convocatório; e (viii) julgamento objetivo, evidenciando, pois, preocupação específica à regularidade dos procedimentos de contratação pública no país.

Como observa Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 380), caso não haja a observância aos ditames desses preceitos relevantes, a validade do processo de licitação fica comprometida, tornando-o vulnerável à sua desconstituição por razões de juridicidade pela autoridade administrativa ou judicial competente.

O que estamos querendo dizer é que há bens jurídicos constitucionais que ensejam a regulamentação pontual dos procedimentos negociais da Administração Pública, e são estes os do caput do art. 37, da CF/88, ou seja, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A violação de quaisquer destes bens jurídicos é tão grave que implica, por exemplo, responsabilidades administrativas (funcionais), civis (improbidade) e penais (sanções em face da liberdade). Daí que há várias regulamentações detalhando proteções a eles, e no caso das licitações públicas, objeto desta reflexão, a lei federal que a disciplina, e nela suas disposições penais, a serem enfrentadas em seguida.

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3. LICITAÇÕES E GARGALOS CORRUPTIVOS: DESAFIOS CON-

TEMPORÂNEOS

Especificamente no campo da contratação pública há gargalos corruptivos muito intensos, destacando-se neste particular os chamados crimes da licitação e dos contratos públicos, conforme os arts. 89 e seguintes, da Lei de Licitações e Contratos (nº 8.666/93). Isto é tão histórico que Delmanto e outros chegam a afirmar que é

nas licitações públicas que grande parte da corrupção do Brasil ocor-re, desde pequenas prefeituras e grandes contratações de Estados e da União. O assalto aos cofres públicos em nosso país encontra raízes histó-ricas, sendo um verdadeiro “câncer” nacional que aqui se instalou antes mesmo de o Brasil tornar-se independente de Portugal. (DELMANTO; DELMANTO; DELMANTO, 2014, p. 291)

No procedimento licitatório, várias são as ilegalidades passíveis de serem cometidas. Algumas delas espelham infrações administrativas, indicando a violação de normas internas da Administração, ao passo que outras, de maior gravidade, configuram-se como crimes, sujeitos às normas do Direito Penal. Em ambos os casos todo o sistema normativo referido anteriormente tem como inaceitável a impunidade. Uma vez cometida a infração administrativa ou praticado o delito, deve aplicar-se a respectiva sanção aos infratores. A diversidade de zonas em que se pode cometer infração permite a classificação das punições em sanções administrativas e sanções penais. Nesse aspecto, nunca é demais sublinhar que a aplicação de uma não afasta a outra, ou seja, pode o infrator ser punido com ambas as sanções cumulativamente. E porque isto? Pelo fato de que:

Lamentavelmente, os processos licitatórios têm se prestado ao perverso papel de veículos de corrupção e de fraudes no setor público, na medi-da em que as informações privilegiadas parecem constituir o principal instrumento de trabalho de empresas especializadas em assessorar tercei-ros que competem em certames licitatórios. Estes, por sua vez, passam a cumprir tarefas de blindagem formal de responsabilidades. Não precisa-mos lembrar as dívidas de campanha ou das alianças eleitorais na base de licitações fraudulentas, formalmente corretas substancialmente viciadas

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

por favorecimentos indevidos. Nem seria necessário recordar dos editais que direcionam vantagens e fecham o certame a determinados atores. Es-tas são os aspectos mais óbvios do problema, tradicionalmente focados. O procedimento licitatório transformou-se me rotineira blindagem para cometimento de ilícitos, não raro é de se reputar os processos de dispensa ou inexigibilidade até mais transparentes. (OSÓRIO, 2013, p. 288)

Por todos estes fatores, abordar a licitação implica o enfrentamento de institutos de direito público que estão incorporados no cotidiano da sociedade brasileira há muito tempo, eis que já se regulamentou a matéria com o Decreto nº 2.926, de 14 de maio de 1962, ocorrendo outras normativas sempre de menor impacto institucional e social até a edição da Lei nº 8.666/93, tornando a licitação obrigatória no âmbito da Administração Pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Especificamente aos aspectos penais licitatórios, antes da edição da Lei 8.666/93, qualquer conduta que fosse praticada em detrimento do erário público e da moralidade administrativa, com relação à contratação da Administração Pública, deveria encontrar tipicidade no Código Penal que, muitas vezes, era insuficiente para atribuir relevância penal ao fato ocorrido. Lembrando que as disposições que estavam no Código Penal eram, na maioria das vezes, esparsas, resumidas basicamente em três tipos penais, não dando resposta penal mais severa e adequada à conduta dos ofensores (OSÓRIO, 2013, p. 5-6).

O problema é que estes ofensores foram se aperfeiçoando e sofisticando suas práticas corruptivas em sede de licitações e contratações públicas, operando verdadeiros esquemas de associações criminosas e atuação em rede, envolvendo vários setores da iniciativa privada e pública, a ponto de, hodiernamente, ter-se a seguinte estatística policial envolvendo a matéria no Brasil:

A PF Polícia Federal (PF) investiga contratos da administração pública que somam R$ 15,6 bilhões em investimentos do Tesouro por suspeita de fraudes e corrupção. O acervo de negócios sob investigação com dinhei-ro da União atingiu marco histórico no desempenho da corporação em 2013. É a primeira vez que a PF divulga o mapeamento das investigações de crimes contra os cofres públicos. Há 12.870 inquéritos em curso em todo o País que apuram delitos dessa natureza — peculato, desvios, vio-lação à Lei de Licitações por cartéis e outros atos lesivos ao patrimônio

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público. Esse número representa quase 12% de todas as investigações da PF, que totalizam 108.822 inquéritos. A Região Nordeste é a mais afetada pela ação do crime organizado. Ela concentra 5.371 inquéritos, 41,7% dos procedimentos. A PF atribui essa demanda ao fato de a União desti-nar mais constantemente um maior volume de verbas para cidades e Esta-dos sob a tutela da carência e da exclusão. “É uma questão de proporcio-nalidade”, afirma a corporação. O Distrito Federal é onde a PF mantém sob suspeita contratos que manejam o maior volume de recursos: R$ 5,85 bilhões. O argumento é que Brasília aloja a rede de ministérios e autar-quias federais, fontes de dinheiro para projetos e programas de toda sorte e natureza que atendem a emendas parlamentares e pleitos de gestores estaduais e municipais4.

A lei de licitações trouxe, então, a tutela penal específica, prevendo condutas típicas próprias para aqueles que ofenderem a moralidade administrativa e outros bens jurídicos ligados diretamente com a matéria licitatória; condutas típicas possíveis de serem aplicadas desde o início da licitação até a sua finalização. Tal representou grande inovação e avanço na disciplina penal das contratações da Administração Pública (FREITAS, 2010, p. 8).

Outro aspecto a ser considerado consiste na aplicação do direito intertemporal. Alguns dos tipos penais previstos na Lei de Licitações constavam do Código Penal e de leis extravagantes. Estes tipos foram revogados pela nova lei, como foi o caso do art. 335 do Código Penal, revogado pelos artigos 93 e 95 da Lei 8.666/93. E também art. 326 do Código Penal revogado pelo art. 94 da Lei 8.666/93.

Caracterizando-se esta como lei especial, de modo que continuam vigentes as normas penais de caráter geral não absorvidas nos tipos relacionados naquele diploma. As regras gerais do Código Penal serão as regras gerais dos crimes licitatórios, salvo quando a própria Lei 8.666/93 estabelecer de forma diversa, como ocorre, por exemplo, quando estabelece efeitos automáticos da sentença penal condenatória, em seu art. 83 ou quando define o conceito de funcionário público ou servidor público, em seu art. 84, para fins licitatórios (FREITAS, 2010, p. 26).

4 – Ver no link: http://noticias.r7.com/brasil/policia-federal-investiga-contratos-publicos-que-somam-

-r-156-bi-27012014.

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

Observa-se que a contratação pública, quando desrespeita o que está estabelecido na Lei de Licitações facilita a ocorrência de comportamentos corruptivos, os quais, como fenômeno social complexo, surgem e se desenvolvem em proporção semelhante ao aumento do meio circulante e à interpenetração de interesses entre os componentes do grupamento. Sob esta ótica, os desvios comportamentais que infrinjam a normatividade estatal, ou os valores morais de determinado setor em troca de uma vantagem correlata, manifestar-se-ão como formas de degradação dos padrões ético-jurídicos que devem reger o comportamento individual nas esferas pública e privada.

Quando a corrupção encontra-se dispersa em todo o corpo político e mesmo tolerada pela comunidade, as pessoas mais necessitadas sofrem de forma mais direta com os efeitos disto, haja vista que as estruturas dos poderes instituídos se ocupam, por vezes, com os temas que lhes rendem vantagens, seja de grupos, seja de indivíduos, do que com os interesses públicos vitais existentes: hospitais públicos deixam de atender pacientes na forma devida por que são desviados recursos da saúde para outras rubricas orçamentárias mais fáceis de serem manipuladas e desviadas como prática de suborno e defraudação; famílias em situação de pobreza e hipossuficiência material não podem se alimentar porque os recursos de programas sociais são desviados para setores corruptos do Estado e da Sociedade Civil; as escolas públicas não têm recursos orçamentários à aquisição de material escolar em face dos desvios de recursos para outros fins, e os alunos ficam sem condições de formação minimamente adequadas (LEAL, 2013, p. 33).

O cerco à corrupção e desvios tornou-se meta prioritária da Polícia Federal. Desde 2011, a corporação já contabiliza 3 mil inquéritos contra prefeituras por mau uso de dinheiro público federal, principalmente nas áreas da saúde e da educação, destinatárias da maior fatia de valores porque são verbas carimbadas do Orçamento da União. Nesse cenário, os acusados são prefeitos e ex-prefeitos, enquadrados nos chamados “crimes de prefeitos”5.

Em 2013, a PF fez 487 prisões e conduções coercitivas no combate à corrupção. Desse contingente, 31 são servidores públicos. Só não é maior esse número porque recentes mudanças legislativas deram espaço para decisões judiciais que substituem ordens de prisão pelo afastamento cautelar dos servidores de suas atividades.

5 – Ver link: http://noticias.r7.com/brasil/policia-federal-investiga-contratos-publicos-que-somam-

-r-156-bi-27012014.

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Em face de tais contingências o direito penal deve cumprir sua função primordial que é a de garantir o desenvolvimento, paz e a justiça social, e quando se dirige ao espaço da gestão pública, tem como alvo os bens jurídicos acima demarcados e suas regulações negativo-preventivas e axiológico-positivas.

Delmanto com relação, especificamente, à Lei de Licitações, quando aborda as práticas corruptas, observa que:

E o Sistema Penal brasileiro, em que pese os esforços do legislador em editar a Lei n. 8.666/93, infelizmente não alcança, com a devida eficácia, essa criminalidade. Graças a imprensa livre e aos novos meios de inves-tigação, notadamente o de interceptação telefônica, uma parte da cor-rupção tem se tornado pública, estarrecendo a sociedade. Com os escân-dalos, as luzes voltam-se para o nosso Judiciário que, em razão da falta de estrutura diante do gigantesco volume de demanda por Justiça, além das falhas humanas de alguns de seus integrantes, não tem conseguido prestar jurisdição a contento, predominando a impunidade. Frustração da aplicação das nossas leis que também tem ocorrido diante dos abusos praticados por parcela da Polícia, do Ministério Público. Com efeito, tem sido comum processos penais envolvendo esses escândalos ser anulados pelas instâncias superiores do Judiciário, em função da falta de respeito à Constituição nessas investigações, frustrando ainda mais a já combalida população contribuinte. (DELMANTO; DELMANTO; DELMANTO, 2014, p. 291-292)

É sempre difícil fazer uma análise acerca de questões penais quando se parte do âmbito de outros ramos do Direito. Tal ocorre porque a ausência de conhecimentos próprios do Direito Penal acaba dificultando a compreensão e explicitação das regras. É obrigatória esta conjugação de estudos para assim evitar que o sancionamento penal acabe ficando desvinculado do referencial que dá a ele legitimidade, qual seja, de assegurar que a punição penal seja a resposta a condutas de extrema reprovabilidade. Assim,

a interpretação das regras penais da Lei 8.666 tem de vincular-se não apenas à construção dos tipos legais e dos diversos elementos do crime. Assim, torna-se necessário examinar os dados que evidenciam a reprova-bilidade da conduta e que é o único fundamento que autoriza a punição.

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Não se pode admitir que os crimes da lei de Licitações se relacionem apenas a dados materiais, fenômenos externos, a padrões objetivos de conduta. A punição penal depende da existência de conduta gravemente infringente aos valores consagrados pela sociedade. (JUSTEN FILHO, 2012, p. 1030).

Historicamente os dispositivos voltados à tutela da licitação sempre foram poucos e esparsos. Nunca houve preocupação legislativa de tratamento amplo e sistemático destinado a reprimir as possíveis e reprováveis condutas praticadas no âmbito de licitação. De modo igual não havia regramento específico visando repressão penal no âmbito da execução dos contratos administrativos.

Por outro lado, o combate à corrupção, principalmente nas licitações públicas é uma das formas de garantir a boa gestão pública, pautada pela eficiência, prestação de contas e demais princípios da administração pública, como legalidade e moralidade.

4. A CRIMINALIDADE PUNIDA NA LEI DE LICITAÇÕES

As disposições penais na Lei de Licitações são poucas se levarmos em consideração o universo de possibilidades delituosas que têm se forjado ao longo do tempo no particular.

A começar pelo art. 89, temos a criminalização da dispensa ou inexigibilidade da licitação fora das hipóteses previstas na norma, ou deixar de observar as formalidades pertinentes a tais possibilidades, com pena baixíssima, a nosso sentir, de três a cinco meses de detenção e multa, concorrendo à mesma pena aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.

A doutrina considera o crime previsto no art. 89 o mais recorrente em termos de responsabilidade penal, haja vista até as múltiplas situações que a própria lei criou para justificar a dispensa e exigibilidade, nos termos dos seus arts. 24 e 25 (FREITAS, 2010, p. 51).

É preciso ter presente, no entanto, que o delito só ocorre se o comportamento tipificado relacionar-se com as pessoas listadas no art. 85, da Lei, não se caracterizando para tal fim a hipótese de ofensa a bem jurídico que pertence a particular ou outra pessoa além das listadas no art. 85, a saber: União, Estados,

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Distrito Federal, Municípios, e respectivas autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações públicas, e quaisquer outras entidades sob seu controle direto ou indireto.

Observa-se que o crime quando praticado, poderá não gerar nenhuma consequência prejudicial ao patrimônio do ente contratante, pois o contratado pode ter oferecido preços de mercado ao serviço ou produto fornecido; ou, como é de praxe, a contratação direta indevida pode vir acompanhada de um superfaturamento de preços, de desvios de verba pública, de crimes de corrupção, dentre outros correlatos, casos em que, além da sanção civil estabelecida no art. 25, § 2º, da Lei 8.666/93, poderá ocorrer concurso de crimes do art. 89 com outras infrações penais que tenham ocorrido, como com o crime de peculato (art. 312, do Código Penal-CP), formação de quadrilha ou bando (art. 288, do CP), ou com alguma modalidade de delito prevista no Decreto-lei nº 201/67, que regula os crimes de responsabilidade de prefeito e vereadores.

É patente que as condutas descritas no art. 89 exigem qualidade especial do sujeito ativo, ou seja, ser servidor público, observado o que dizem os arts. 82 a 84, da Lei, o que não afasta a possibilidade de também ser praticada por aqueles que não detêm a qualidade exigida no tipo penal, para o sujeito ativo – desde que estejam em concurso de pessoas – coautoria e participação, – com aquele que possui esta qualidade.

Em outras palavras, o crime do caput tem como materialidade a conduta de promover a contratação direta ou indevida e pressupõe, sempre, para sua configuração, a qualidade de funcionário público. A conduta somente é consumada por um sujeito investido na condição de agente estatal e tendo a competência para deliberar sobre a ocorrência da contratação sem licitação. O parágrafo único, do art. 89, por sua vez, envolve a conduta de um particular, que pode, ou não, integrar os quadros de uma pessoa administrativa.

Mais do que nunca a experiência tem evidenciado que a realização concreta deste crime somente poderá ser por meio daquele servidor público que é o emissor da decisão final de dispensa ou inexigibilidade de licitação, ou daquele a quem diretamente se atribuir a formalidade relacionada à dispensa ou inexigibilidade. Outros servidores públicos poderão concorrer para tais condutas, mas apenas na qualidade de partícipes (como aquele que ratifica o ato de dispensa ou inexigibilidade).

Neste sentido:

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

No que tange à autoria, frise-se inicialmente que o delito de dispensa de licitação previsto no art. 89 da Lei 8. 666/93 caracteriza-se como “delito de infração dever”, segundo denominação empregada por ROXIN, que para a doutrina tradicional denomina-se crime especial. De acordo com a tese do penalista alemão, nos denominados crimes de infração de dever o domínio do fato não joga nenhum papel. O crucial é o descumprimento do dever legal de agir. Ou seja, o que fundamenta a autoria em tal cate-goria de delitos é a quebra do dever específico estipulado pelo legislador. Sempre será autor aquele que infringir o dever especial, pouco importan-do qual a real contribuição para a realização do fato delituoso.6

Observa-se que existe uma relação de dependência entre a consumação do crime do parágrafo único e do caput, do art. 89,7 isto porque somente pode haver a tipificação da conduta do particular contratado sem licitação (art. 89, parágrafo único) se for reconhecido que um agente estatal cometeu o crime de dispensar ou inexigir indevidamente a licitação (art. 89, caput).

Já nos termos do art. 90, da Lei de Licitações, vamos ter tipificado penalmente o comportamento de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação. Para tal conduta, a norma previu a pena de detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Neste caso, o sujeito ativo poderá ser tanto o particular que participa da licitação quanto o servidor público que intervir na fase interna ou externa da licitação, envolvendo claro concurso de agentes.

Para se configurar o crime não é necessário o desempenho de função pública ou a ocupação de cargo público, ou o exercício do mandato eletivo. Qualquer pessoa pode cometê-lo, pois não há vínculo subjetivo com o funcionário público.8

6 – AÇÃO PENAL Nº 2006.70.00.019925-8/PR. Documento eletrônico assinado por Nivaldo Bru-

noni, Juiz Federal, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Re-

solução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento

está disponível no endereço eletrônico http://www.jfpr.jus.br/gedpro/verifica/verifica.php, mediante o

preenchimento do código verificador 5148916v26 e, se solicitado, do código CRC 947C0F5B.

7 – HC nº 13.097/DF, 5ª T., rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 15/04.2010, DJe de 10.05.2010.

8 – Posição antiga do Superior Tribunal de Justiça, como se vê no HC nº 26.089, 5ª Turma, rel. Minis-

tro Gilson Dipp, j. em 06.11.2003, DJ de 1º.12.2003. TJRS –2012, fonte: www.tjrs.jus.br: 1.Número:

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Caroline Fockink Ritt e Rogério Gesta Leal

O tipo objetivo da primeira conduta – frustrar9– diz com o comportamento que impede a disputa no procedimento licitatório. Pode ser considerada quando o servidor público introduz cláusula no ato convocatório da licitação que tem como objetivo assegurar a vitória de um determinado licitante. Envolve também qualquer outra conduta praticada por algum sujeito privado (que participa ou não da licitação) e que disponha de poderes/atribuições, ou de condições materiais, para impedir a competição inerente à licitação.

A segunda modalidade delitiva, fraudar, envolve o ardil pelo qual o sujeito impede a eficácia da competição, referindo-se a Lei ao ajuste ou a combinação, ou seja, normalmente ocorre quando os licitantes “arranjam” acordo para determinar a vitória de um deles, sendo criminalmente reprováveis também os “acordos parciais”, nos quais os licitantes estabeleçam condições “paralelas” às que estão previstas no ato convocatório.

Não é necessário que ocorra a efetiva frustração ou fraude que comprometa a eficácia total da licitação, sendo suficiente que alguns aspectos do certame sejam atingidos, sendo que o crime aperfeiçoa-se inclusive quando o acordo destina-se a excluir da disputa participantes em potencial.

É de se notar que a invalidação do certame não exclui a configuração de crime10, sendo o dolo o específico, consistente na intenção de obter para si ou outrem vantagem, que consiste na adjudicação.

O art. 91, da Lei de Licitações, penaliza o patrocínio, direta ou indiretamente, de interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário, com pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

A reprovação de tal comportamento é justamente contra o servidor público, que em vez de promover as finalidades buscadas pelo Estado, acaba atuando em defesa de interesses de particulares, evidenciado a incompatibilidade entre a conduta do sujeito e os deveres funcionais que são inerentes a sua posição.

70045285145 Inteiro Teor: doc html; Tribunal: Tribunal de Justiça do RS; Seção: CRIME; Tipo de

Processo: Apelação-Crime; Órgão Julgador: Quarta Câmara Criminal; Decisão: Acórdão; Relator:

Constantino Lisbôa de Azevedo; Comarca de Origem: Comarca de Getúlio Vargas; (Apelação-Crime

Nº 70045285145, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Constantino Lisbôa de

Azevedo, Julgado em 19/01/2012); Publicação: Diário da Justiça do dia 27/01/2012.

9 – AgRg no Ag nº 983.730/RS, 5ª T., rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 26.03.2009,

DJe de 04.05.2009.

10 – RHC nº 18.598/RS, 5ª Turma, rel. Mina. Laurita Vaz. Julgado em 06.11.2007, DJ de 10.12.2007.

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

O patrocínio de que fala a Lei consiste na defesa, persecução, incentivo ou na criação de condições para a vitória de certo interesse privado em face da Administração, podendo ele ser direto ou indireto (o que demanda o dolo específico relacionado à instauração de licitação ou avença de contrato inválido), não sendo necessário que o sujeito defenda de modo formal o interesse de particular determinado. Todavia, a concretização do dispositivo penal só ocorrerá se a atuação do servidor resultar em licitação ou contratação que venha a ser invalidadas pelo Poder Judiciário. Se não existir licitação nem contratação, ou se a contratação for anulada pela própria Administração Pública, poderá, daí, configurar o crime previsto no art. 321 do CP.

O art. 92, da Lei, trata da situação em que se admite, possibilita ou se dá causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do adjudicatário, durante a execução dos contratos celebrados com o Poder Público, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade, observado o disposto no art. 121, da mesma norma, com sanção de detenção, de dois a quatro anos, e multa. O seu parágrafo único definiu que incide na mesma pena o contratado que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, obtém vantagem indevida ou se beneficia, injustamente, das modificações ou prorrogações contratuais.

Novamente aqui o sujeito ativo é o servidor público, sendo que o parágrafo único do tipo estende a punição ao particular beneficiado pela irregularidade, obviamente desde que tenha concorrido para a consumação da ilegalidade, tais como: a concessão de vantagens previstas na Lei, no ato convocatório ou no contrato, mas sem a presença dos requisitos necessários; a não observância da ordem de apresentação das faturas para efetivar o pagamento (situação em que há diversos particulares contratados pela Administração, os quais pleiteiam pagamento pelas prestações executadas), dentre outros.

Na espécie, o contratado será punido desde que concorra para a consumação da ilegalidade, o que não ocorrerá por mero pleito da vantagem – podendo eventualmente restar configurado outro crime; também não está prevista a modalidade culposa de comportamento, entretanto, o crime não se aperfeiçoa simplesmente pela presença dos aspectos “descumprimento da norma administrativa” e “atribuição de vantagem indevida ao licitante”, afigurando-se essencial que o descumprimento da norma administrativa seja orientado pela intenção de atribuir vantagem indevida ao licitante. Possível caracterizar o crime mediante dolo genérico.

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O art. 93, por seu turno, regula as penas para os casos de comportamentos que visem a impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório, na modalidade da detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, sendo considerado crime de natureza comum (não se exigindo que o sujeito ativo seja servidor público).

Veja-se que estes atos de impedimento e perturbação têm que estar vinculados diretamente com a licitação e de forma irregular, podendo ocorrer que algum interessado venha a impedir o andamento do certame com autorização judicial, ou que alguém faça protesto contra determinadas licitações para fins de manifestação da opinião, não envolvendo estes dois casos situações típicas de conduta criminosa – ao contrário. O que já não ocorre na hipótese da fraude praticada à realização da licitação, pois aí estará configurada a utilização de algum artifício ilegítimo para evitar o cumprimento do requisito legal ou dos efeitos do ato de licitação.

No art. 94, temos a conduta de devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório (dolo genérico), ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo, com pena de detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa, figurando aqui como sujeito ativo o servidor público, pois implica análise indevida do conteúdo da proposta entregue à Administração Pública (que passa a ter a sua guarda) no âmbito da licitação. Quando o artigo fala em proposta apresentada em procedimento licitatório é óbvio que está se referindo ao conteúdo do objeto do negócio jurídico que se pretende constituir, e não simplesmente, por exemplo, aos documentos de habilitação dos concorrentes.

Ao prever este art. 94 a conduta de possibilitar a terceiro o devassamento do sigilo está tratando da hipótese do concurso necessário de agentes, podendo envolver inclusive particulares, aliás, o que é possível até em face de delitos desta natureza, não raro, contar com redes associativas de criminalidade organizada. Por outro lado, se o terceiro se aproveita de oportunidade e, sem que o servidor público possua consciência do que se passa, devassa o sigilo, o tipo não se configura, podendo caracterizar, eventualmente, outro crime.

O art. 95, da Lei licitatória quer alcançar as condutas que visam afastar ou procuram afastar licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo (dolo genérico sem admitir a forma culposa), com apenamento de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, além da pena correspondente à violência, determinando que incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar em razão da vantagem oferecida.

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo do crime neste caso, inclusive o servidor público, basta que intente com sua ação eliminar da participação do certame alguém, tendo claro que os conceitos de violência, grave ameaça ou fraude são definidos pelo Direito Penal, podendo restar caracterizado aqui a regra do concurso material com o crime de violência.

Tenha-se em conta que a vantagem ofertada na espécie deve ser material e caracteriza o crime desde que seja oferecida como meio de retirar o terceiro da participação na licitação, deixando de ocorrer o crime se a não participação não tiver relação com a vantagem obtida, sendo que a desistência de participar, quando o sujeito for convencido de obter vantagem, está tipificada no parágrafo único.

O art. 96 resolveu criminalizar a fraude de licitação, em prejuízo da Fazenda Pública, instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente (dolo genérico), nas seguintes modalidades: (a) elevando arbitrariamente os preços; (b) vendendo, como verdadeira ou perfeita, mercadoria falsificada ou deteriorada; (c) entregando uma mercadoria por outra; (d) alterando substância, qualidade ou quantidade da mercadoria fornecida; (e) tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato.

A despeito de tantas e graves possibilidades fraudatórias da licitação, com altíssimos prejuízos à Fazenda Pública e mesmo Sociedade, diretos e indiretos, a pena prevista é a de detenção, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, figurando como sujeito ativo qualquer pessoa que participar de procedimento licitatório ou de contratação direta.

Importa lembrar que a fraude, aqui, se refere à finalidade da licitação, que é a de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, mediante disputa entre os particulares. Assim, resta englobado, de um lado, a frustração desta intenção de disputa; de outro, a utilização de meio ardiloso que conduz a Administração a um equívoco.

Há alguns problemas neste dispositivo penal que geralmente são argüidos, dentre os quais o que diz com a possibilidade do particular/fornecedor/licitante decidir elevar os seus preços na apresentação da proposta ao Poder Público, mesmo que os tenha praticado usualmente com valores menores. Isto caracterizaria a situação típica referida neste artigo? Em que medida não pode o fornecedor administrar seus preços com regras que lhe aprouver? Se a Administração considerar que os preços são muito altos ou até abusivos, deverá rejeitar a proposta

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Caroline Fockink Ritt e Rogério Gesta Leal

e valer-se dos instrumentos jurídicos cabíveis, inclusive e, se for o caso, promovendo a desapropriação mediante prévia e justa indenização.11

Já o caso da alínea II, do art. 96, tem-se a situação em que a Administração receberá mercadoria falsificada ou deteriorada quando selecionar proposta de fornecimento de mercadoria verdadeira e perfeita. O crime aperfeiçoa-se não por defeito na formulação da proposta, mas por um descompasso entre a proposta e a execução.12

A hipótese da alínea III, do mesmo artigo, é muito usual no cotidiano da Administração Pública, por vezes até em face de desorganização de fornecedores e do próprio Poder Público, que dão vezo a entrega de uma mercadoria por outra, o que detectado e sem prejuízo ao interesse público, restaurando-se a ordem das coisas, não caracteriza delito algum.

Já a modificação da substância, da qualidade ou da quantidade da mercadoria (inciso IV) tem implicações gravosas igualmente não só ao erário público, mas fundamentalmente aos interesses da comunidade que seria atendida por tais mercadorias (DELMANTO; DELMANTO; DELMANTO, 2014, p. 323-324).

E, finalmente, com a previsão do inciso V, do art. 96: “tornando, por qualquer modo, injustamente, mais onerosa a proposta ou a execução do contrato” (DELMANTO, 2014, p. 324) que, para uma corrente da doutrina, é considerada inconstitucional, enquanto que para outra deve se ter muita “cautela” em sua análise. Sobre o tema, observa Marçal Justen Filho (2012, p. 1.047) que “a previsão do inc. V é inconstitucional. Ofende os princípios da legalidade e da tipicidade. Não é compatível com a Constituição estabelecer que constituirá crime a prática de qualquer conduta danosa à Administração (art. 5º, inc. XXXIX).

Delmanto, por sua vez, argumenta que:

o inciso V merece cautela ao ser analisado, pois... é passível de inconsti-tucionalidade. Na realidade, cabe ao Estado a decisão de aceitar ou não

11 – Ver Apelo nº 70024943094, cuja ementa é: APELAÇÃO - CRIME. LICITAÇÃO PÚBLICA.

Art. 96 da Lei 8.666/93. (Apelação-Crime Nº 70024943094, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de

Justiça do RS, Relator: Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, Julgado em 18/09/2008); Data de

Julgamento:18/09/2008; Publicação: Diário da Justiça do dia 01/10/2008.

12 – TJ-RS - Apelação-Crime: ACR 70043058130 RS APELAÇÃO-CRIME. FRAUDE EM LICITA-

ÇÃO. ART. 96, INCISO II, DA LEI 8.666/93.

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Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro?

quando uma proposta não está de acordo com o valor de mercado...O particular estipula o valor que quiser, sabendo do risco de não ser esco-lhido pela Administração Pública. (DELMANTO, DELMANTO; DEL-MANTO, 2014, p. 324).

Já para Jessé Torres Pereira Júnior o dispositivo é aplicável (PEREIRA JÚNIOR, 2009, p. 932-933).

Resolveu por bem o art. 97, da Lei de Licitações, criminalizar a conduta de admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo, atribuindo pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, alcançando ainda na mesma pena aquele que, declarado inidôneo, venha a licitar ou a contratar com a Administração (parágrafo único), descrevendo, assim, crime próprio do servidor público no caput e ampliando o enquadramento de sujeito ativo para qualquer pessoal no parágrafo único. Há evidente necessidade de dolo específico aqui, exigindo-se a ciência por parte do sujeito ativo de que fora imposta a declaração de inidoneidade a alguém para que fique configurado o crime.

Veja-se que, se um licitante inidôneo foi admitido à licitação que é extinta, por qualquer motivo, não há crime; tampouco o há quando a sanção imposta encontra-se sujeita a questionamento na via administrativa ou judicial, ou se o sujeito participou da licitação em virtude de liminar judicial que, posteriormente, venha a ser revogada. Nesta linha de reflexão, pode-se sustentar que não é reprovável a conduta do sujeito que comparece de boa-fé para disputar certame público ignorando que lhe fora imposta uma sanção de inidoneidade. Da mesma forma, não pode se reputar consumado o crime se os membros da Comissão de Licitação desconheciam a situação do particular.

O art. 98, da Lei, por sua vez, vem tipificar a conduta de obstar, impedir ou dificultar, injustamente, a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, suspensão ou cancelamento de registro do inscrito, atribuindo pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

O elemento subjetivo se dá pela intenção de prejudicar a Administração ou de produzir vantagem para si ou para outrem, não alcançando o tipo a hipótese de condicionar a inscrição ou a alteração do registro a uma vantagem indevida – tal configuraria o crime de concussão. Na espécie, o agente não visa a obter vantagem, mas acarretar prejuízo ao particular ou a beneficiar terceiros, trazendo potencial prejuízo para a Administração.

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CONCLUSÃO

As sanções penais previstas para os crimes na Lei de Licitações são severas, bem mais severas, aliás, do que as previstas em tipos idênticos de leis penais anteriores. Como adverte Justen Filho, pode-se questionar a natureza das penas adotadas na nova legislação em face de um pressuposto descompasso entre o espírito da nova legislação e os princípios para os quais se volta o Direito Penal, isto porque ela poderia ter utilizado mais amplamente sanções de cunho pecuniário ou restritivas de direito e deixar em segundo plano as penas privativas de liberdade. É que as condutas reprimidas apresentam danosidade e grau de reprovabilidade valorados como de extrema gravidade e, atualmente, seria muito negativo se o criminoso pudesse livrar-se da cadeia através do pagamento de importâncias em dinheiro. A Lei determinou, como regra, a incidência da multa, mas cumulada com pena privativa de liberdade.

É possível afirmar, com certa “tristeza” que a ordem natural das coisas indica que temos um longo e tortuoso caminho a percorrer. O combate à corrupção não há de ser fruto de mera produção normativa, mas sim, de um resultado da aquisição da consciência democrática, como também de uma lenta e paulatina participação popular. Isso permitirá a contínua fiscalização das instituições públicas, reduzirá a conivência e, pouco a pouco, depurará as ideias daqueles que pretendem ascender ao poder. Observa que com isso a corrupção poderá ser atenuada, pois eliminada ela nunca será.

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O DOLO COMO ELEMENTO SUBJETIVO NO ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E A NECESSIDADE

DE SUA CONSTATAÇÃO ATRAVÉS DE UMA CONGRUENTE E SOFISTICADA PROVA DO FATO

Mauro Evely Vieira de Borba1

Um dos temas mais polêmicos relacionados à improbidade administrativa é, indubitavelmente, a discussão acerca do elemento volitivo que deve mover a conduta do agente público para que se caracterize a grave patologia funcional objeto deste estudo.

A Lei de Improbidade Administrativa, 8.429/92, estabelece, em seus artigos 9º, 10 e 11, as hipóteses de improbidade administrativa, qualificando-as por meio dos bens jurídicos violados (enriquecimento ilícito, lesão ao erário e aos princípios constitucionais).

Os atos que causam lesão ao erário serão punidos, de acordo com a lei, em quaisquer ações dolosas e/ou culposas, conforme previsão expressa do artigo 10.Nos outros dois dispositivos, artigos 9º e 11, não se faz qualquer menção ao elemento subjetivo, havendo, no tocante à questão da modalidade culposa, entendimentos doutrinários e pretorianos em todos os sentidos, recrudescendo, ainda mais, a insegurança jurídica que permeia a dogmática especializada no tema.

O foco do presente trabalho não é a culpa, mas sim o dolo como elemento subjetivo caracterizador do ato de improbidade, notadamente a necessidade de sofisticação probatória congruente desse elemento como pressuposto da improbidade.

1 – Mestre em Direito (Ufsc/Unisc); Doutor em Direito (Ufrgs), Juiz em Porto Alegre.

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Mauro Evely Vieira de Borba

No dizer de Fazzio Júnior (2012), o dolo como elemento subjetivo da conduta não se confunde à antevisão do resultado; envolve o elemento intencional de causação do resultado. Segundo Nucci (2006), são suas características, a abrangência (deve envolver todos os elementos do tipo); a atualidade (deve estar presente no momento da ação, não existindo dolo subsequente nem dolo antecedente) e a possibilidade de influenciar no resultado: é indispensável que a vontade do agente seja capaz de produzir o evento típico.

Herança da Lei Bilac Pinto, o dolo aparece no contexto da improbidade administrativa, não apenas como artifício indutor de engano que beneficia o agente, mas como consciência da ilicitude do ato que pratica e assunção de seus resultados. O componente má-fé é expressivo nas condutas inscritas na Lei 8.429/92.

Aliás, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, caminham no sentido de que a responsabilização por ato de improbidade administrativa carece de demonstração de má-fé do agente público, já que ilegalidade e improbidade nem sempre são sinônimos.

Reale (2003) traça paralelo entre o dolo exigido para a configuração do improbo e o dolo (má-fé), que vicia o negócio jurídico, tornando-o anulável.

No Direito Civil, dolo é uma espécie de vício de consentimento, carac-terizada na intenção de prejudicar ou fraudar um outro. É o erro induzi-do, ou proposital, daí surgindo a ideia da má-fé. Note-se que o exame a respeito da má-fé estará presente, na relação jurídica, quando ausente a boa-fé (conceito negativo). Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstra-to, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a expe-riência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas consequências.Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta: a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direi-tos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o conven-cimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

Martins Costa, ‘a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado’. Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé obje-tiva, é assim entendida como noção sinônima de ‘honestidade pública’. (Grifos próprios).

A improbidade administrativa, embora cuide de responsabilização de natureza civil, necessita da configuração de um elemento subjetivo semelhante àquele do Direito Penal, ou seja, dolo e culpa. Note-se que a Lei 8.429/92, ao tratar do assunto, constou a expressão conduta dolosa ou culposa e, não, agir com dolo ou má-fé, confirmando a premissa ora adotada. Não se trata, pois, de boa-fé subjetiva ou objetiva.

É importante analisar, neste momento, o entendimento jurisprudencial acerca do elemento subjetivo que deve pautar a conduta do agente público, para que lhe sejam aplicadas as sanções atreladas ao ilícito de improbidade por violação aos princípios informativos da Administração (art. 11 da Lei n. 8.429/92).

Na 2ª Turma do STJ, era sedimentado o entendimento de que seria dispensável, para fins de configurar a modalidade de improbidade prevista no art. 11, qualquer análise sobre o elemento subjetivo da conduta funcional. Em outros termos, a mera violação aos princípios regentes da Administração, por si só, já caracterizava a prática de ato ímprobo, existindo, assim, uma verdadeira responsabilidade funcional objetiva2.

Em suma: esta grave infração ético-institucional poderia ser imputada ao agente público, ainda que restasse comprovado que ele não agiu com dolo nem com culpa.

Diametralmente oposto era o entendimento sufragado pela 1ª Turma do STJ, haja vista que esta sempre considerou indispensável a demonstração do dolo do agente, para que se lhe imputasse a prática da modalidade de improbidade administrativa disciplinada no art. 113.

2 – Dispensando a existência de dolo ou culpa para a configuração das infrações descritas no art. 11,

cite-se: “Basta a simples ilicitude ou imoralidade administrativa para restar configurado o ato de impro-

bidade” (REsp n. 631.252/PR, Rel. Min. Castro Meira, 2a Turma, j. 19/08/2008, DJU 11/09/2008).

Ainda nesse sentido: REsp n. 737.279/PR, Rel. Min. Castro Meira, 2ª Turma, DJe 21/05/2008; REsp

n. 915.322/MG, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, j. 23/09/2008, DJe 27/11/2008.

3 – Nesse exato sentido: REsp n. 511.095/RS, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 04/11/2008, DJe 27/11/2008; REsp n. 734.984/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 18/12/2007, DJe 16/06/2008;

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Colocando um fim à insegurança jurídica que plasmava o tema, a 2ª Turma, no REsp n. 765.212/AC, relatado pelo Min. Herman Benjamin, julgado em 02/03/2010, publicado no DJe de 23/06/2010, alterou o seu entendimento, aderindo expressamente à posição que já era adotada pela 1ª Turma. Reconheceu--se, pois, a incompatibilidade entre a imputação de responsabilidade objetiva e o regime garantista que deve permear o Direito Punitivo, na esteira do disposto no art. 37, § 6º da Constituição Federal que expressamente exige a presença de culpa ou dolo por parte do servidor público para que seja possível o manejo de ação regressiva pelo ente estatal. Assim sendo, uma vez consagrada a responsabilidade funcional subjetiva para a hipótese de simples ressarcimento ao erário, que não se confunde com a imposição de punição, “maiores e melhores razões existem para fundamentar a culpabilidade como princípio constitucional, limitando todo o Direito Punitivo do Estado” (OSÓRIO, 2005).

Com supedâneo nesses argumentos, desde então, a 1ª Seção do STJ (composta pela 1ª e 2ª Turmas) passou a firmar, o entendimento de que a existência da improbidade prevista no art. 11 exige a presença de “dolo genérico”4, seja na espécie “dolo direto” (representação e vontade de produção do resultado querido), seja na espécie “dolo eventual” (aceitação do risco de produção do resultado). Desta forma, por meio do “dolo genérico”, dispensou-se a comprovação da intenção específica do agente de violar princípios administrativos, bastando a constatação de que ele haja consentido em atuar em determinado sentido.

Portanto, é fundamental frisar que, hodiernamente, no que tange especificamente ao art. 11 da Lei n. 8.429/92, encontram-se completamente superadas tanto a tese da responsabilidade objetiva quanto aquela que pregava a possibilidade de configuração de improbidade administrativa culposa. Ora, isto se deve, por um lado, à exigência de desonestidade como elemento constitutivo da improbidade e, por outro, à necessidade de aproximação entre os dois braços do Direito Punitivo, aplicando-se ao Direito Administrativo Sancionador os princípios informativos do Direito Penal, sobretudo o princípio da responsabilidade exclusivamente subjetiva e o princípio da legalidade estrita. Ademais, aplicam-se

REsp n. 939.142/RJ, Rel. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 21/08/2007, DJe 10/04/2008; REsp n. 480.387/SP,

Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, j. 16/03/2004, DJ 24/05/2004.

4 – Nesse sentido: EREsp n. 479.812/SP, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, 1ª Seção, j. 25/08/2010,

DJe 27/09/2010; EREsp n. 654.721/MT, Rel. Ministra Eliana Calmon, 1ª Seção, j. 25.8.2010,

DJe 01/09/2010; REsp n. 951.389/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, 1a Seção, j. 06/06/2010,

DJe 04/05/2011.

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

ao art. 11, in totum, as considerações tecidas acerca da existência de um verdadeiro “silêncio eloquente restritivo” no art. 9º, caput. Nesse sentido, cita-se fragmento do voto da Min. Denise Arruda, no REsp n. 875.163/RS, de sua relatoria, 1ª Turma, j. 19/05/2009, DJe 01/07/2009: “na ausência de menção expressa ao elemento subjetivo ‘culpa’, os arts. 9º e 11º só incidirão na presença de dolo”.

Se, por um lado, a fixação do entendimento no sentido da necessidade da presença do dolo como elemento subjetivo caracterizador da improbidade nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92 diminuiu o nível de insegurança jurídica que havia, por outro a tese vitoriosa no leader case (REsp n. 765.212), trouxe o risco de esvaziamento do avanço trilhado, ao consagrar o dolo genérico como satisfatório para identificar a presença do elemento volitivo caracterizador do ato improbo.

No aludido aresto, ministro Herman Benjamin, relator, reformulou sua posição, aderindo ao entendimento de que apenas o dolo poderia levar à configuração do ato de improbidade. Segundo o magistrado, embora “[...] continue acreditando ser tecnicamente válida e mais correta” a tese de que “[...] os atos de improbidades coibidos pelo art. 11 da Lei 8.429/92 podem se configurar por dolo ou culpa na realização da conduta”, “[...] no terreno pragmático, a exigência de dolo genérico, direto ou eventual, para o reconhecimento da infração ao art. 11, não trará maiores prejuízos à repressão à imoralidade administrativa”.

Assim, o ministro concluiu pela ocorrência de ato de improbidade, pois o dolo (“vontade de realizar fato descrito na norma incriminadora”) estaria presente na conduta do gestor que realiza promoção pessoal, “[...] desvirtuando a finalidade estrita da propaganda pública, a saber, a educação, a informação e a orientação social, o que é suficiente a evidenciar a imoralidade”.

Embora a fundamentação do voto tenha acolhido a tese da indispen-sabilidade do dolo na configuração do ato de improbidade, não houve exame do contexto que revelaria a vontade do agente em alcançar o resultado proibido, concluindo-se pela improbidade por não ser “tolerável olvidar um princípio constitucional da magnitude da impessoalidade e a vedação contida no art. 37, § 1º, da Constituição da República”. E esse entendimento reformou o acórdão do Tribunal de Justiça que havia entendido pela ausência da comprovação do dolo do agente político.

O mesmo raciocínio, segundo o ministro relator, seria aplicável em relação à contratação de servidor sem concurso público, uma vez que o dolo decorreria da “inequívoca obrigatoriedade do certame (art. 37, II, da Constituição da República). É dolo in re ipsa.”

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A adoção do entendimento esposado no julgado, no entanto não serenou parte da doutrina, haja vista a consequência óbvia de esvaziamento do dolo como elemento subjetivo e o ressurgimento, na prática da responsabilidade objetiva.

Nesse sentido Cammarosano e Pereira (2014):

O “dolo genérico”, ao menos como aplicado no precedente em análise, blindaria o julgador do dever de motivar sua decisão a partir do contexto fático. Isto é, “no terreno pragmático”, significaria suficiente o descum-primento patente da lei para constatar a improbidade. Em outras pala-vras, a mera violação a norma, em relação a qual não se pode alegar des-conhecimento, atestaria a conduta ímproba.Percebe-se o perigo de o aplicador da norma ignorar o dever de moti-vação da decisão, o qual, no juízo de aplicação normativa, está adstrito às peculiaridades fáticas do caso, sem o que não se realiza o direito, ao menos na perspectiva do Estado Democrático de Direito.

A crítica, a nosso ver, está correta. A adoção do dolo genérico como caracterizador do elemento subjetivo, pode levar à situação apontada pela doutrina. O dolo que caracteriza o elemento subjetivo na improbidade, não pode ser o genérico.

A subsunção do agente às hipóteses da Lei nº 8.429/92 reclama a pre-sença de dolo e culpa. Sobre o vínculo subjetivo que liga o agente ao fato ilícito, Nelson Hungria (1959, p. 112) lembra que ‘somente com a averi-guação in concreto desse nexo subjetivo se pode atribuir ao agente, para efeito de punibilidade, uma conduta objetivamente desconforme com a ordem ético-jurídica, ou reconhecer sua incidência no juízo de reprova-ção...’. Estendendo esse fundamento penal para o plano dos atos de im-probidade, para que se considere um ato como passível de sofrer sanções, não é suficiente a existência da conexão causal objetiva (entre a ação [ou omissão] e o resultado) nem sua subsunção típica (em um artigo da LIA). É imprescindível a culpabilidade (culpa lato sensu) do agente público. Não se pune com fulcro na responsabilidade objetiva. O mínimo de responsa-bilidade por ato de improbidade administrativa é a culpa (dolo e culpa), uma vez que nulla poena sine culpa. (Fazzio Júnior, 2007, p. 80. Grifos no original).

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

Além disso, o operador não está desobrigado de sua missão de demonstrar a “culpa” latu sensu do autor do fato.

A utilização da responsabilidade civil como meio de reparação ou de ressarcimento de danos em cada caso concreto depende da presença de diversos elementos, sem os quais o agente não pode ser obrigado a res-ponder pelos prejuízos sofridos pelo lesado. Não há discordância quanto ao fato de que quem pratica um ato – ou deixa de fazê-lo, quando tinha o dever de praticá-lo – do qual resulta dano a outrem deve repará-lo. Em outras palavras, há, de certo modo, consenso quanto à obrigatória pre-sença dos elementos fato, dano e nexo de causalidade como pressupos-tos inafastáveis da responsabilidade civil. Resta, ainda, a culpa, elemento cujo estudo é indispensável à compreensão do instituto. Esse elemento é relativo à ligação do agente com a situação fática que dá origem à obriga-ção de indenizar. (SAMPAIO, 1998).

Pereira (1990) assevera que “Em dois sentidos deve-se entender o conceito de culpa: em um, mais amplo, abrange tanto o dolo quanto a culpa propriamente dita; e, no outro, contém somente esta última”.

Garcia, em obra que escreveu com Alves (2008) discorre:

No direito moderno, assume ares de dogma a concepção de que não é admissível a imputatio juris de um resultado sem um fator de ligação psíquica que a ele vincule o agente. Ressalvados os casos em que a res-ponsabilidade objetiva esteja expressamente prevista no ordenamento jurídico, é insuficiente a mera demonstração do vínculo causal objetivo entre a conduta do agente e o resultado lesivo. Inexistindo um vínculo subjetivo unindo o agente à conduta, e esta ao resultado, não será possível demonstrar ‘o menosprezo ou descaso pela ordem jurídica e, portanto, a censurabilidade que justifica a punição (malum passionis ob malum actionis)’. (Grifos no original).

Imprescindível a lição de Fragoso (1982):

O que se pretende afirmar é que não mais subsiste qualquer presunção júris de dolo (dolus in re ipsa), própria do direito medieval: o componente

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psíquico indispensável à configuração do delito deve ser positivamente demonstrado. Como diz Gianturco, La prova indiziaria, 1958, 08, é indis-pensável não se contentar com as aparências e descer intus et in oute no ânimo do delinquente, em que não é possível penetrar, se não por meio de ilações e conjecturas, que defluem das modalidades peculiares e das circunstâncias do fato, bem como a conduta do réu, antecedente, conco-mitante e subsequente ao crime.

Exige-se, portanto, a presença do dolo na conduta do agente, sem o qual não se admite a responsabilização do agente, bem como é inequívoca a necessidade de demonstração, no caso concreto, da existência do dolo, até por que, no sistema do Estado Democrático de Direito instituído na e pela Constituição de 88, os atos judiciais devem necessariamente ser motivados, sob pena de nulidade.

A questão que se põe e que se ocupa esse trabalho é a da constatação desse elemento subjetivo.

Como já aludido supra, a improbidade administrativa, embora cuide de responsabilização de natureza civil, necessita da configuração de um elemento subjetivo semelhante àquele do Direito Penal, ou seja, dolo e culpa. Nesse contexto é preciso ter presente que o ordenamento jurídico penal, adotou, para a definição do conceito de crime (com reflexos, obviamente, na discussão do dolo) da Teoria Finalista da Ação, que desloca o dolo e a culpa do terreno da culpabilidade para o campo do tipo penal. Em face disso, considerado o crime como fato típico e antijurídico, o primeiro elemento é a conduta dolosa ou culposa.

No dizer de Reale (1998):

Todo agir é um conduzir-se. Toda ação é fruto de uma escolha, e toda escolha é fundada em valores que se põem como fim de agir. O homem age voltado para um resultado ou, por outras palavras, segundo uma ‘intencionalidade significativa’. O resultado almejado é reflexo de uma valoração que constitui o motivo do agir, conscientemente reconhecido como tal. [...] Concluindo: o dolo integra a ação, é parte de um todo onto-logicamente indecomponível, não podendo estar fora de seu ente real por força de exigências metodológicas. Todo o comportamento é, em suma, teleológico e axiológico. A intencionalidade integra a ação.

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

A ação finalista se dirige à produção de um resultado intencional. Nessa linha, se o agente público presta contas, ou não, de gastos com recursos públicos, agiu com dolo de praticar, ou não, a conduta. Se as prestou, fê-lo porque o quis (intenção de fazer e produzir o resultado) e o mesmo se diz na hipótese de deixar de prestá-las (intenção de não fazer a ação). Não há qualquer objetividade, muito menos a responsabilidade objetiva, em tal exemplo, já que o elemento subjetivo – dolo ou culpa – encontra-se na ação ou omissão do autor.

A vontade do agente público, assim, está em praticar a conduta descrita no tipo (apropriar-se de bem público em proveito próprio, frustrar procedimento licitatório, realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares, dentre outras). Se tal prática caracteriza ou não ato de improbidade administrativa, sê-lo-á por força da subsunção do fato à norma, ou, em outras palavras, a lei é quem dirá se a conduta é caracterizadora ou não de improbidade.

O elemento subjetivo não é o fator de definição da improbidade, mas, sim, a própria norma. Dolo e culpa deverão ser analisados no momento da ação ou da omissão do agente, conforme repetidamente destacado. A caracterização da improbidade será determinada pela lei.

A identificação desse elemento subjetivo, contudo, não obedece a uma relação direta com a existência da ação, dizendo de outro modo, a prova da ação, não implica, necessariamente, a prova (existência) do dolo. A prova do elemento psicológico normativo, a prova da intenção do agente, da “vontade do agente”, O chamado “elemento subjetivo”, ou seja, dolo, deve ser analisado por meio do exame objetivo de fatos.

Dolo é a vontade livre e consciente de agir no sentido da prática do típico (da norma tipificada). Se a norma diz que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade [...]” o ato, a ação do agente público no sentido de violar esses deveres evidencia o dolo de sua conduta, ou seja, para se provar dolo e culpa, faz-se necessária a prova da ação (conduta) do agente. Demonstrando-se que o autor praticou o ato, presume-se que o tenha feito dolosamente, ou seja, agiu por vontade própria, de forma livre e consciente, a fim de atingir determinado resultado.

Dito desta forma parece simples. Sempre que o agente público violasse aqueles deveres, estaria agindo com dolo.

Uma reflexão apressada poderia levar à errônea conclusão de que, como o dolo está na ação, sempre que o agente agir, pratica a conduta tipificada na norma

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e consequentemente estará caracterizado o dolo, contudo, nem sempre o resultado era o desejado pelo agente, porque nem sempre ele age com a intenção de praticar o ilícito, embora venha a praticá-lo. Isso nos remete ao ponto de partida: necessidade de aferir-se a intenção do agente no momento da sua ação.

Como ainda não é possível entrar na psique de quem pratica o ato, se pode mapear essa intenção através da exteriorização da conduta do agente, o que se faz pelo do exame da prova do fato, através de múltiplas variáveis (ex. consciência do ilícito - no caso das bibliotecárias de Ibirubá (Ap. Cível 70057008088, 3ª CCiv, TJRS, que será analisada mais adiante) não havia a consciência da ilicitude, logo não havia dolo e, por conseguinte, não havia o fato típico; ou coação, funcionário que cumpre ordem expressa de seu superior hierárquico, erro, etc.). Como o dolo se situa na ação (teoria finalista), ou seja, no fato, não havendo dolo, não haverá (fato) tipo, mas o inverso nem sempre é verdadeiro, eis que pode haver dolo e o fato não ser típico, face às múltiplas variáveis (encontradas na jurisprudência como causas de absolvição: ausência de prejuízo, irrelevância do fato etc.) que também intervêm nesse estágio de exame do fato concreto.

Assim, admitindo-se hipoteticamente que o agente público (de pequeno município do interior) frustrou a licitude de concurso público, ou deixou de prestar contas quando deveria fazê-lo, a prova relativa ao elemento subjetivo de sua ação não se limitará à simples demonstração de agiu e que sua ação resultou na frustração do certame (ou violação da norma garantidora de sua licitude), ou na não prestação das contas. Como dito supra, a prova objetivará o exame da exteriorização da conduta do agente, o que se faz pela análise minuciosa da prova do fato, através de múltiplas variáveis (ex. consciência do ilícito; isto é, sabia, ou não, se tinha, ou não prévio conhecimento de que seu ato implicaria na quebra da licitude do certame, ou se tinha, ou não ciência da obrigação – de prestar as contas; coação, se o agente público, funcionário cumpria, ou não, ordem expressa de seu superior hierárquico; se agiu, ou não por força de erro, ou simulação, etc.).

Reforçando, reafirma-se que a prova da exteriorização da conduta do agente, logo do elemento subjetivo de sua ação, logo do dolo e logo do fato (porque como visto o dolo está no antecedente, i.e. na ação), por óbvio, não se limitará à prova simples da violação da norma (que protege a licitude do concurso ou que obriga o agente a prestar contas). Dizendo numa frase, para a caracterização do dolo na espécie, há que se provar o fato e todas as suas circunstâncias.

O diferencial que se propõe é, justo referente à questão da prova desse dolo. Para fugir do argumento sedutor de que “improbidade não é mera ilegalidade”

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

(o que cria enorme obstáculo para caracterização da improbidade tipificada no art. 11), há que se ter um cuidado extremo com a prova do dolo (e, consequentemente, do fato típico concreto), analisando-se com afinco e profundidade as circunstâncias de exclusão e/ou caracterização do dolo e do fato, justificando-se motivadamente as escolhas e conclusões. Com isso se afasta outro argumento de peso no emasculamento da improbidade do art. 11 que é a questão da vedação da Responsabilidade Objetiva. Por ela, classicamente, a questão probatória não é plena, no sentido de que não se perquire eventuais causas justificadoras da ação, bastando a constatação do nexo de causalidade entre o dano e a ação.

Aqui, o que se propõe não é isso. Aqui a extensão da prova é plena, examinando-se a conduta e eventuais causas justificadoras, com o que também se afasta aquele temor manifestado por parte da doutrina, de um esvaziamento do elemento subjetivo na caracterização do dolo nas hipóteses de improbidade administrativa do art. 11 da Lei 8.429/92, na medida em que o operador jurídico poderia restringir seu foco probatório a um componente objetivo: a prova material da existência da norma prescritiva da conduta e sua consequente violação pelo agente.

Já se disse que o objeto da prova nessa concepção proposta, não se restringe a essa prova somente. Trata-se de uma prova plena do fato e de suas circunstâncias. Além disso, ao se propor a plenitude da prova, examinando-se a conduta e eventuais causas justificadoras, se está, também dizendo que o operador (no caso o juiz) destinatário dessa prova, há que ter um papel de relevo nesse contexto.

Nunca é demasiado lembrar que no modelo de Estado Democrático de Direito, concebido na e pela Constituição Federal é possível sustentar-se que há – ou deveria haver – um sensível deslocamento do centro de decisões, do foco de tensão social, do Legislativo e Executivo para o Judiciário. Desse modo, as inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo, passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição de 88 que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.

O Estado Democrático de Direito depende(ria) muito mais de uma ação concreta do Judiciário do que de procedimentos legislativos e administrativos. Claro que tal afirmação deve ser relativizada, porque não se pode esperar que o Judiciário seja a solução (mágica) dos problemas sociais. Porém, não se pode olvidar que a Constituição optou por um Estado intervencionista, visando a uma sociedade mais justa, com erradicação da pobreza e promoção da dignidade da pessoa.

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Como diz Leal (2000), os sistemas constitucionais deste final de século, encarecem o papel do juiz “[...] que passa a desempenhar um papel relevantíssimo na garantia efetiva e eficiente dos direitos consagrados no plano constitucional e onde se incluem os princípios referente à Administração Pública”.

O Estado Democrático de Direito, na sua superação normativa em relação às demais formas de Estado conhecidas, não se contenta com a formalidade da existência, quer a concretude da substância. Esse Estado não quer apenas o Direito posto, quer o Direito posto a serviço da igualdade material, a serviço da transformação social, mormente numa realidade tão injusta como a brasileira. O Estado Democrático de Direito quer um Direito efetivo e quer, também, juízes com tal condição. O juiz não pode esquecer que tem compromisso com os princípios da República brasileira, notadamente com a realização dos princípios contidos no artigo 3o da Constituição, por isso aceita-se a intervenção judicial em assuntos da administração pública, quando forem lesados ou ameaçados interesses público.

Pois a sofisticação probatória congruente do elemento subjetivo, que se propõe, também vai possibilitar ao juiz um desempenho mais eficaz, de uma postura (muitas vezes) de mero aplicador da lei, para um protagonismo efetivo na medida que lhe impõe uma participação e controle maiores da prova do elemento subjetivo e por conseguinte do fato típico, possibilitando-o que seja não um juiz de teses prontas, mas um juiz do caso concreto.

Em relação ao tema do elemento subjetivo caracterizador do da improbidade, proceder-se-á a seguir na análise de julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS, que trataram do tema em comento.

Importa salientar que para tanto foram pesquisados e analisados setenta e um (71) julgados no período de 01/01/2013 a 31/12/2014, utilizando-se como filtros de pesquisas as palavras e/ou expressões: IMPROBIDADE ADMINIS-TRATIVA – ELEMENTO SUBJETIVO – ART. 11 – LEI n. 8.429/92.

Constatou-se em todos os casos pesquisados um fiel alinhamento à orientação hegemônica, tanto da doutrina, quanto da jurisprudência, referente ao tema. Dos setenta e um (71) julgados pesquisados, quatro (4) foram trazidos à colação, em razão de suas adequações e pertinências ao objeto do presente trabalho.

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. O Ministério Público ingressou com a presente ação, imputando aos réus a prática de atos de improbidade administrativa previstos no artigo 10,

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caput, e artigo 11, caput, todos da Lei nº 8.429/92. Alega o autor que as rés Regina Arlete Trein e Ambrozina Portella Ponsoin separaram livros, revistas e dicionários que entendiam dever ser inutilizados, totalizando vinte caixas de material. Destaca que, no mesmo contexto fático, as corrés Lia Mara e Cledeci compareceram na Biblioteca Municipal e autorizaram o descarte e a venda dos livros para a empresa de reciclagem Comércio de Sucatas Geller, com lesão ao erário apurada em R$ 252,00. ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA DO ART. 10, CAPUT, DA LEI Nº 8.429/92. A configuração do tipo do art. 10 da LIA é a ofensa le-siva ao patrimônio público financeiro, e sua configuração depende da presença dos seguintes requisitos: ação ou omissão ilegal do agente pú-blico no exercício de função pública, derivada de má-fé, desonestidade (dolosa ou culposa) e causadora de lesão efetiva ao Erário. Em que pese a inobservância pelas rés do art. 17, II, da Lei nº 8.666/93, que dispõe obrigatoriedade de avaliação prévia e licitação para a alienação de bens públicos móveis, e a presença de dano ao erário apurada em R$ 252,00, não se verifica a intolerável incompetência administrativa ou desones-tidade no agir das rés, isto é, não estão presentes o dolo ou culpa grave que compõem o elemento subjetivo do art. 10 da Lei nº 8.429/92. ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA DO ART. 11, CAPUT, DA LEI Nº 8.429/92. O art. 11 da Lei da Improbidade Administrativa tem aplicação residual (cláusula de reserva), isto é, incide somente quando não configurados os tipos legais dos artigos 9º e 10 do mesmo diploma legal. Deve-se ter presente, todavia, que nem toda violação do Princípio da Legalidade implica a incidência do art. 11 da Lei nº 8.429/92. Con-forme adverte Pazzaglini Filho, se tal premissa fosse verdadeira, qualquer ação ou omissão do agente público contrária à lei seria alçada à catego-ria de improbidade administrativa, independentemente de sua natureza, gravidade ou disposição de espírito que levou o agente público a praticá--la. Consoante orientação do Eg. Superior Tribunal de Justiça: “Não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensá-vel, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10”.

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No caso dos autos não há dolo eventual ou genérico de atentar contra os princípios da Administração Pública. Tal circunstância é constatável das conclusões da Comissão aludidas, que, dentre outras considerações, entendeu pela necessidade imediata de uma Comissão de Descarte - a qual se presume que até então não existia - e depósito da arrecadação da venda do material de descarte junto à Tesouraria do Município, do que não se afasta substancialmente o proceder das rés. Pode-se concluir, portanto, que houve meras irregularidades funcionais no agir das rés, contudo, não se configurou desvirtuação da finalidade pública do agir das servidoras, afastando a incidência do art. 11, caput, da Lei de Im-probidade Administrativa. APELOS PROVIDOS. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. (Apelação Cível Nº 70057008088, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Leonel Pires Ohlweiler, Julga-do em 04/12/2014).

Na cidade de Ibirubá-RS, o Ministério Público ajuizou Ação Civil Pública por Atos de Improbidade Administrativa” contra quatro servidoras do Município, para apurar a prática de atos de improbidade administrativa, traduzidos no descarte e alienação indevidos de grande quantidade de material escolar, a maior parte intacto e sem uso, da Biblioteca Municipal de Ibirubá durante o mês de junho de 2009. A acusação era de lesão ao patrimônio público municipal (R$ 250,00), bem como atentado contra o Princípio da Legalidade ao descartarem indevidamente, ou seja, sem respaldo legal, livros, revistas e dicionários do acervo da Biblioteca Municipal.

A defesa das rés objetivou em resumo: 1) Os livros descartados eram inservíveis e não eram considerados material permanente, de acordo com a Lei nº 4.320/64 c/c o art. 18 da Lei Federal nº 10.753/03, que instituiu a Política Nacional do Livro, sendo possível o seu descarte; 2) Ausência de prejuízo ao erário, uma vez que os alfarrábios descartados foram vendidos por R$ 252,00 para o reciclador, tendo sido adquiridos livros novos no valor de R$ 140,00. Assim, na hipótese de manutenção da sentença condenatória, deveria ser valor de R$ 112,00, que é a respectiva diferença; 3) Não tinham intenção de auferir lucro de forma que o ato não compromete a moralidade nem atinge o erário, saindo do raio de abrangência da Lei nº 8.429/92; 4) Ressalvam que a violação de princípios a que se refere o art. 11 da Lei de Improbidade não pode ser atribuída a quem não tinha consciência destes nem intenção de fraudá-los.

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A ação em 1º grau foi julgada procedente, condenando as rés pela prática dos atos de improbidade dos arts. 10, “caput” e 11 “caput” da Lei 8429/92, ao ressarcimento do dano causado mais multa fixada. Não se tem os argumentos da sentença que foi reformada pelo acórdão em estudo.

O que se extrai do aresto, para além das teses já consagradas em nível de doutrina e jurisprudência, ou seja, de que “Não se pode confundir improbidade com simples ilegalidade. A improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja dolosa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10” etc, foi o fato de o julgado reconhecer, ainda que a latere a possibilidade de dolo genérico para a configuração da improbidade tipificada no art. 11 “caput” da LIA; bem como o fato de realizar, tal como proposto no presente trabalho, acurado e percuciente exame probatório do elemento psicológico, que, como já visto está no tipo e prova--se através da exteriorização da conduta do agente no sentido da prática do fato típico, ou seja se prova através das circunstâncias do fato e que no caso foram bem analisadas no voto do relator, que concluiu pela ausência do elemento volitivo na conduta das rés, que não tiveram a intenção de violar nenhum princípio ou norma da administração, porque não tinham a consciência da ilicitude, nem a intenção de obter lucro em detrimento da Administração, ou seja, não tinham má-fé.

AGRAVO RETIDO E APELAÇÃO. DIREITO PÚBLICO NÃO ES-PECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MUNICÍPIO GARIBALDI. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 11 DA LEI Nº. 8.429/92. AGIR ÍMPROBO DOS RÉUS. NÃO COMPROVAÇÃO. AGRAVO RETIDO. CERCEAMENTO DE DEFSA. INOCORRÊNCIA. Não há cerceamento de defesa quando o juiz indefere pedido que se mostra des-necessário ao deslinde da controvérsia. No caso dos autos, a reprodução de DVD em audiência não era mesmo necessária. Agravo retido despro-vido. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SANÇÕES DE CARÁ-TER REPRESSIVO DA LIA. RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA DO AGENTE QUE NÃO SE ADMITE. A improbidade administrativa não se confunde com mera ilegalidade, mormente ante o caráter repres-sivo das sanções aplicadas pela Lei nº 8.429/92. A configuração do ato ímprobo depende da prova do elemento subjetivo da conduta do agente

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público, não se admitindo a sua responsabilização objetiva. Não compro-vado que os apelados praticaram a conduta prevista no artigo 11, I, da LIA, tampouco o dolo genérico de violar os princípios que regem a Administração Pública, o juízo de improcedência da demanda se impu-nha, devendo ser mantido. AGRAVO RETIDO E APELO DESPROVI-DOS. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70060429636, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Denise Oliveira Cezar, Julgado em 30/10/2014).

Trata-se de ação civil pública fundada na prática de ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público contra o Vice-Prefeito de Garibaldi e também contra dois advogados da cidade, em virtude de ter o primeiro, valendo-se da autoridade do cargo de Prefeito em exercício, patrocinado direta e indiretamente os interesses de determinada família no que se refere à aprovação de projeto de obra de construção civil em prédio antigo do Município de Garibaldi. Os demais réus teriam pactuado ou aquiescido com as condutas ímprobas imputadas ao, dando “o suporte necessário para que não transparecesse a vinculação entre eles mantida, litigando em juízo em polos distintos”.

A ação foi julgada improcedente tanto em 1º quanto em 2º grau, porque não comprovado o dolo. No que interessa ao estudo, muito embora o acórdão tenha repisado as teses consagradas relativamente a esse tipo de improbidade (impossibilidade de responsabilidade objetiva, mera ilegalidade não a caracteriza, necessidade de prova do elemento volitivo), afirmou, a latere, a possibilidade de dolo genérico para a configuração da improbidade na espécie. De outro lado, em consonância com o proposto neste trabalho, constatou-se o acurado e percuciente exame probatório do elemento psicológico.

APELAÇÃO CÍVEL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 11, CAPUT, DA LEI Nº 8.429/92. MONITORA DE ABRIGO. UTILIZA-ÇÃO DE VIOLÊNCIA FÍSICA E VERBAL, COMO TÉCNICA DE DISCIPLINA, CONTRA MENORES INTERNOS. NÃO-COMPRO-VAÇÃO. Para configuração do agir ímprobo perpetrado com base no art. 11, da Lei de Improbidade Administrativa, exige-se o elemento sub-jetivo, o dolo, ou seja, a vontade livre, consciente e deliberada em agir de forma atentatória aos princípios da Administração, incorrendo em ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade,

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

legalidade e lealdade às instituições. Condutas bastante graves imputadas à servidora estadual que não restaram suficientemente comprovadas, ine-xistindo a prova do dolo em utilizar de violência e agressividade contra os adolescentes internos de instituição assistencial, sendo impositivo o desprovimento das apelações. POR MAIORIA, APELAÇÕES DES-PROVIDAS. (Apelação Cível Nº 70043071000, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 08/08/2013).

Na cidade de Uruguaiana, o Ministério Público ajuizou ação civil pública contra servidora estadual, narrando, em síntese, que a demandada de forma reiterada utilizou de violência e agressividade contra crianças e adolescentes abrigados nos estabelecimentos de proteção nos quais exerceu o ofício de monitora, objetivando a condenação da demandada por prática do ato de improbidade administrativa previsto no art. 11, caput, da Lei nº 8.429/92, aplicando-lhe as sanções previstas no artigo 12, inciso III, do mesmo diploma legal (perda da função pública, suspensão dos direitos políticos e multa civil). A ação foi julgada improcedente em 1º grau e em 2º a relatoria originária estava reformando a sentença para condenar a ré por improbidade administrativa nos termos da inicial, contudo prevaleceu o voto divergente do revisor e relator para o acórdão que apontando falhas, irregularidades e contradições na prova, manteve o juízo de improcedência do 1º grau. O julgado não apresentou divergência do entendimento dominante na espécie em relação ao elemento subjetivo, no entanto evidenciou o trabalho esmerado e efetivo do revisor/relator no exame preciso da prova, no sentido do que foi destacado no presente trabalho.

ADMINISTRATIVO. ATOS DE IMPROBIDADE. ARTIGO 11, CAPUT, LEI Nº 8.429/92. ATO DE IMPROBIDADE E DOLO OU CULPA. AUSÊNCIA DO ELEMENTO VOLITIVO. As infrações à pro-bidade administrativa, capituladas no artigo 11, caput, Lei nº 8.429/92, reclamam dolo, componente anímico este afastado da conduta do em-bargado, afastado das funções de Prefeito Municipal quando das irregu-laridades envolvendo procedimento licitatório, somente vindo a praticar, posteriormente, atos praticamente de formalização ou execução do que já se apresentava irreversível. Não criou a Lei de Improbidade sistema pu-nitivo tendo por base responsabilidade objetiva, descabendo ver-se ação

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ímproba quanto a fatos verificados durante o afastamento do Prefeito Municipal, que somente veio a praticar atos de formalização. (Embargos Infringentes Nº 70059819128, Décimo Primeiro Grupo Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 27/06/2014).

Trata-se de Embargos Infringentes visando à manutenção do voto divergente que na câmara condenou Prefeito Municipal por improbidade administrativa, juntamente com outros, por terem participado de simulação fraudulenta de licitação. Em suma, o Ministério Público ajuizou ação de improbidade sustentando ser a licitação tipo convite nº 010/2006, do Município de Ametista do Sul, jogo de cartas marcadas em prol da demandada Pedreira M. J. O. Ltda., evidenciado isso em já ter a prestação de serviços de 2.000 metros lineares de perfuração e detonação na Rua Pedro de Castro e Getúlio Vargas visando à realização da “Expopedras” antes, até, de iniciado o processo licitatório. Na Câmara, o Prefeito restou absolvido, porque não provado o dolo, mas condenados os demais que participaram do simulacro. O voto divergente manteve a condenação dos demais envolvidos e acrescentou a do Prefeito. O julgamento na Câmara entendeu que o Prefeito não foi responsável pelo início da licitação, embora tenha assinado o termo de homologação e adjudicação. Entendeu que “... Prefeito Municipal homologou a licitação e assinou o contrato, sem que tivesse conhecimento sobre irregularidades e questões técnicas, ausente demonstração de que o mesmo tenha participado, de alguma forma com a simulação promovida, não tendo o autor feito a devida comprovação neste sentido, não observando o ônus probatório que lhe é imposto, à luz do que dispõe o artigo 333, I, do CPC”. Já o voto dissidente sustentou não se poder afastar a participação de Paulo Mezzaroba, Prefeito Municipal, por incogitável estivesse este alheio à irregular contratação de obra de exponencial relevo para a comunidade de Ametista, sendo dele, ainda, a subscrição do termo de homologação e do próprio contrato administrativo. Destaca-se do voto divergente: “Ocorre que o demandado, a despeito de não ter iniciado o processo administrativo licitatório, firmou o termo de homologação e adjudicação em 08/03/2006 (fl. 73), autorizou a emissão do empenho parcial do valor à empresa vencedora do certame também em 08/03/2006 (fl. 74), e também assinou o contrato administrativo sobre o qual se trata nos autos na mesma data (fls. 75-77). Ainda, constou como responsável na súmula do contrato publicado no periódico de circulação no Município.

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

Neste ponto, vale repisar a evidente impossibilidade de que a obra iniciada em 08/03/06 tenha sido concluída em 16/03/2006, mormente considerando o prazo de realização acordado de 30 dias. A ilação é confortada pela prova testemunhal.

Por outro lado, não se pode ignorar que as obras contratadas se destinavam ao mais importante evento promovido pela cidade – ‘Expopedras’ –, de evidente interesse da comunidade, e principalmente do Poder Executivo Municipal.

Aliás, conforme consta no site do Município, “A principal atividade econômica do município com aproximadamente 75% do movimento é o Setor Mineral com a extração de pedras preciosas e semi-preciosas, como a Ametista, Topázio, Ágata e outras”.

Com efeito, não vejo como afastar o conhecimento do Prefeito Paulo Mezzaroba sobre as circunstâncias envolvidas na contratação que firmou, também pelo pequeno porte do município, com população de 8.440 habitantes (informação também disponibilizada no site).

Em outras palavras, não me parece crível que num pequeno Município, e às vésperas do mais importante evento municipal de ocorrência bienal, o Prefeito não tenha qualquer conhecimento da simulação praticada na contratação de obras destinadas ao próprio evento.

Reunidas e bem ponderadas tais circunstâncias, não vejo como afastar a responsabilidade do Prefeito Paulo Mezzaroba, mas condenar apenas os demais réus. Os elementos de convicção obrigam solução inversa, pois são suficientes a evidenciar a atuação dolosa também do Prefeito, que detinha pleno domínio das circunstâncias tanto na ocasião em que homologou e adjudicou a licitação, como na que assinou a contratação e autorizou a emissão de empenho parcial”.

Não obstante, mantida a divergência, a maioria votou com o relator, que manteve a absolvição do Prefeito, entendendo não ser possível reconhecida participação dolosa no simulacro, por, ao retornar, ter assinado atos que nada mais representavam formalização de realidade a que não dera causa, sendo excessivo exigir-lhe a revogação do procedimento licitatório ou deixasse de pagar serviços já realizados. Ressaltou, ainda, a exigência legal de comprovação do elemento subjetivo, no caso o dolo (art. 11) para a configuração da improbidade.

Ainda que se possa questionar a tese vencedora, nos termos precisos do voto divergente (não ser crível que num pequeno Município, e às vésperas do mais importante evento municipal de ocorrência bienal, o Prefeito não tenha qualquer conhecimento da simulação praticada na contratação de obras destinadas ao

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próprio evento), as possibilidades conclusivas do caso concreto, numa perspectiva extensiva do elemento subjetivo do caso, certamente a conclusão seria outra, eis que a hipótese se ajusta à caracterização da modalidade culposa; contudo, a discussão a respeito da concepção extensiva da culpa como elemento subjetivo na configuração da Improbidade Administrativa, a partir de uma adequada compreensão dos bens jurídicos tutelados na LIA, será objeto de reflexão futura.

Concluindo, fixado o entendimento que reclama a presença do elemento subjetivo à caracterização da improbidade administrativa, tem-se necessidade de sua constatação. Para tanto, não se pode perder de vista que a improbidade administrativa, embora cuide de responsabilização de natureza civil, necessita da configuração de um elemento subjetivo semelhante àquele do Direito Penal, ou seja, dolo e culpa. Sendo assim, é preciso ter presente que o ordenamento jurídico penal, adotou, para a definição do conceito de crime (com reflexos, obviamente, na discussão do dolo) da Teoria Finalista da Ação, que desloca o dolo e a culpa do terreno da culpabilidade para o campo do tipo penal. O dolo está, pois, na ação.

A identificação do dolo, contudo, não obedece a uma relação direta com a existência da ação. Dizendo de outro modo, a prova da ação, não implica, necessariamente, a prova (existência) do dolo. A prova do dolo não se limitará a simples prova da ação. A constatação do elemento subjetivo exige uma prova acurada. Necessário que a perquirição desse elemento subjetiva seja feita através de uma sofistica e congruente análise do fato típico. Há que se ter um cuidado extremo com a prova do dolo (e, consequentemente, do fato típico concreto), analisando--se com afinco e profundidade as circunstâncias de exclusão e/ou caracterização do dolo e do fato, justificando-se motivadamente as escolhas e conclusões, com o que não só se afasta eventual temor de um esvaziamento do dolo como elemento subjetivo na caracterização nas hipóteses de improbidade administrativa do art. 11 da Lei 8.429/92, bem como se propõe para o operador/destinatário (no caso o juiz) um papel de relevo nesse contexto, tal qual se lhe exige o Estado Democrático de Direito.

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O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato

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Mauro Evely Vieira de Borba

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II – ANÁLISE DA VIOLAÇÃO DOS

INTERESSES DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA NO ÂMBITO DA

CONTRATAÇÃO PÚBLICA

FUNDAMENTOS SUBJETIVOS UTILIZADOS NAS ABSOLVIÇÕES DOS AGENTES PÚBLICOS EM

INFRAÇÕES DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: UMA ANÁLISE DOS ARGUMENTOS VAZIOS

NA JURISPRUDÊNCIA1

Caroline Müller Bitencourt2

Eduarda Simonetti Pase3

INTRODUÇÃO

Deste modo se hão os povoadores, os quais por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos sejam, tudo pretendem levar a Portugal [...]. E isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam a terra,

1 – O presente artigo é fruto dos debates “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre

o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade: Causas,

Consequências e Tratamentos”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, como trabalho

referente à bolsa de iniciação científica do CNPq, sob a orientação da Professora Dra. Caroline Müller

Bitencourt, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em

Políticas Públicas – CIEPPP.

2 – Doutora em Direito pela UNISC. Especialista em Direito Público. Professora do PPGD – Mestrado

e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, da disciplina Teoria do Direito. Profes-

sora da graduação pós-graduação lato sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul. Coordenadora do

grupo de pesquisa, “A decisão jurídica a partir do normativismo e suas interlocuções críticas”, vincula-

do ao CNPq. Advogada. E-mail: [email protected].

3 – Graduanda do Curso de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Iniciação Cien-

tífica do CNPq (PIBIC ano 2014/2015). E-mail: [email protected].

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Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase

não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída. Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular4.

A analogia de Frei Vicente do Salvador em História do Brasil (1627) coaduna-se com os objetivos deste breve estudo, vez que fenômenos de má gestão pública são frequentes em toda civilização.

O combate à improbidade administrativa exige certos passos, como por exemplo, a necessidade de se permear nas searas da conceituação da improbidade; a delimitação do seu regime jurídico; também o fortalecimento das estruturas investigatórias e processantes; o desenvolvimento de bases de dados científicos que possibilitem avaliar a eficiência e a atuação das instituições fiscalizadoras e, inclusive, a investigação sobre a forma como são tratadas as questões atinentes a improbidade pelo Poder Judiciário.

É nesse último ponto, que a presente pesquisa debruçará seus esforços. Isto é, investigar e apontar criticamente os argumentos utilizados nas absolvições em sede de segundo grau de jurisdição de atos que em um primeiro momento estariam aptos a incidir nas condutas descritas como ímprobas da Lei de Improbidade Administrativa, nº 8.429/92, aqui identificada como “LIA”. A matéria sobre improbidade pode apresentar um vasto espectro em análises e categorias de estudo, ao se ler a temática a partir da seara de decisões judiciais. Porque a análise dessas decisões possibilita criar uma classificação para as mesmas, tomando-se por base as figuras ali envolvidas, qual a conduta da improbidade analisada, qual o resultado para aquelas decisões, entre outras.

De outra forma, parte-se da problemática em identificar os argumentos subjetivos presentes nos julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, os quais são utilizados como fundamentos das teses dos magistrados, em benefício de agentes públicos para não condenação pelas condutas ímprobas previstas na Lei nº 8.429/92, os quais se passou a denominar como “argumentos vazios”, na medida em que afastam a aplicabilidade da lei em prol de argumentos “não jurídicos” com o intuito de abrandar ou mesmo isentar de suas possíveis condenações.

Nesse sentido, dividiu-se em três momentos o objetivo da presente investigação: i. primeiro, identificar o que o Tribunal considera como conduta

4 – Citado por Eduardo Diatahy B. de Menezes em Dossiê século XXI: os 500 anos exigem nosso autodesco-brimento.

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Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência

passível de desconfiguração de ato de improbidade e qual a justificativa para assim decidir; ii. segundo, se é possível estabelecer um padrão de absolvições para uma determinada conduta-objeto, diante dos precedentes; iii. e, por fim, discorrer sobre quais as implicações que tais decisões refletem na gestão para com a res publica.

A discussão sobre improbidade administrativa coaduna-se com os debates realizados no âmago do grupo de pesquisa de Rede de Estudos sobre Patologias Corruptivas, uma vez que a corrupção, aqui interpretada não somente na sua esfera penal, mas, sobretudo como um fenômeno multifacetado e complexo, o qual importa abranger inclusive as condutas ímprobas previstas no arcabouço normativo da LIA.

Os acórdãos analisados foram coletados no website www.tj.rs.jus.br, no espaço Jurisprudência, por meio da guia Pesquisa de Jurisprudência. Utilizou-se a ferramenta de busca avançada, para delimitar o lapso temporal da pesquisa em um ano, tendo sido selecionados, desta forma, acórdãos julgados entre 24.09.2013 e 24.09.2014.

Para a análise dos julgados, algumas raias utilizadas necessitam ser mencionadas e explicadas a fim de indicar e clarear a metodologia de pesquisa e análise, isto é, demonstrar o padrão de busca que resultou nos documentos que serão citados e analisados. Há ainda que se salientar a existência de limites de investigação de um estudo empírico, sobretudo, perante a impossibilidade de exaurimento dos julgados.

Assim, ilustradamente, o preenchimento dos campos para a pesquisa quantitativa da área de busca avançada se deu da seguinte forma: Tribunal: Tribunal de Justiça do RS; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; Ementa5; Seção: Cível6; Tipo de processo: Todos7; Número: Nenhum; Comarca de origem: Nenhuma; Tipo de decisão: Acórdão; Data de julgamento: Nenhuma; Data de publicação: 24/09/2013 até 24/09/2014; Procurar resultados: com todas as palavras: improbidade administrativa; com a expressão: ação civil pública; com qualquer uma das palavras: nada; sem as palavras: nada; Classificar: por data decrescente.

5 – Visto que, a alternativa, que seria busca por inteiro teor filtraria acórdãos que possuíam apenas

referência à temática, com busca na esfera cível.

6 – Porque o filtro do TJ/RS ao selecionar também a seção crime reporta para os crimes de corrupção

ativa e passiva, os quais não são objeto do presente estudo. Por isso da utilização da expressão improbi-

dade administrativa como “sinônimo” de corrupção.

7 – Porque ao selecionar um tipo de processo específico, o filtro não corresponde com o número real de

ações, muitas vezes zerando a busca.

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Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase

A metodologia, portanto, desenvolve-se em dois momentos: no primeiro, uma dimensão quantitativa, na qual são selecionados os acórdãos, na forma anteriormente descrita, julgados pelo TJ/RS; o segundo momento, por sua vez, de dimensão qualitativa, consiste na análise das decisões, realizando-se uma triagem que visa identificar dentre as decisões de absolvições (apelações e embargos infringentes) os critérios e recursos discursivos utilizados pelos desembargadores para a desconfiguração da conduta-objeto que prima facie afrontariam o dever de probidade, sendo passíveis da aplicação das sanções previstas no artigo 12 da LIA. Também, neste segundo momento, buscar-se-á discorrer acerca das implicações teórico-práticas que tais argumentos guardam para com o tratamento da corrupção lato sensu.

Trata-se, portanto, de um recorte feito para delinear as perspectivas perfilhadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em casos de improbidade administrativa. A eleição de fundamentos prevalecentes implica não em uma exposição detalhada de todas as decisões e todos os seus argumentos, mas na elucidação através de apontamentos e citações dos elementos “não jurídicos” com maior preponderância para fundamentar os acórdãos de absolvição. A partir disto, almeja-se contribuir com um diagnóstico e a evidenciação de formas alternativas para tratar o problema das patologias corruptivas.

Pode-se, desde já indicar que a pesquisa identificou como argumentos que se destacaram nos julgados analisados, a necessária comprovação do elementos subjetivo (dolo) para configuração de improbidade decorrentes de uma interpretação restritiva sobre a configuração da corrupção consistente em não considerar a ilegalidade como improbidade a partir da análise do conjunto probatório; bem como a inaptidão do gestor público como argumento de desconfiguração de improbidade administrativa.

1. DAS IMPRESSÕES QUANTITATIVAS DA PESQUISA

Das ferramentas de pesquisa utilizadas, assim descritas na introdução anterior, obteve-se o resultado de 211 (duzentos e onze) acórdãos, todos referentes a ações civis públicas por ato de improbidade administrativa, julgadas no período de 24.09.2013 e 24.09.2014.

Desse número, pode-se ainda ilustrar que 85 são apelações, 07 (sete) são embargos infringentes, 81 (oitenta e um) são agravos (contados juntos os de instrumento e internos) e 30 (trinta) são embargos de declaração. Tais documentos somam o total de

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Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência

203 (duzentos e três) acórdãos. Há que se referir que as demais 08 (oito) decisões dizem respeito à dois documentos que estavam indisponíveis no sistema de busca eletrônico (os quais não puderam ser analisadas); uma exceção de suspeição; um reexame necessário; uma ação rescisória; e três apelações, as quais não eram referentes a Ação Civil Pública. Assim, ilustradamente:

Números Preliminares

Como o presente estudo tem por objetivo analisar os argumentos tidos como subjetivos para a fundamentação das decisões que culminaram em absolvições dos réus, analisaram-se tão somente as apelações e os embargos infringentes por tratarem do mérito das ações. Esporadicamente serão utilizados os argumentos de outras espécies de ação, inclusive decisões condenatórias, para fins de ilustrar e analisar os argumentos, oportunidade em que o leitor será advertido.

Observou-se ainda que, no primeiro grau, 36 (trinta e seis) documentos eram decisões não condenatórias e 49 (quarenta e nove) eram condenações. Para o presente estudo interessam, sobretudo, as decisões em que se deu a absolvição

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Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase

dos acusados, total ou parcial, sem que as decisões condenatórias sejam excluídas, visto que a sua análise interessa para identificar a diferença de entendimento e a existência dos argumentos aqui denominados “vazios”.

Decorrente disto, das 36 (trinta e seis) decisões não condenatórias, 13 (treze) foram objeto de algum tipo de reforma e 23 (vinte e três) foram mantidas em seus termos no Tribunal, ou seja, mantida a absolvição de 1º Grau. Das 49 (quarenta e nove) condenações em 1º grau, 28 (vinte e oito) sofreram alguma reforma no Tribunal, enquanto 21 (vinte e uma) permaneceram inalteradas.

Desta forma, analisaram-se 23 apelações em que os réus foram absolvidos integralmente, isto é, não restando qualquer espécie de sanção aos mesmos. Também, foram objeto de análise as 28 (vinte e oito) apelações que tiveram condenações em sede de 1º grau e que tiveram alguma reforma (para beneficiar os réus) pelo Tribunal, somando ao final o total de 51 (cinquenta e uma) decisões apelativas com algum tipo de benefício aos réus, seja total ou parcial. Ainda é possível ilustrar que dos 28 (vinte e oito) acórdãos onde houve alguma reforma pelo Tribunal, 10 (dez) foram completamente reformadas, não restando qualquer forma de sanção aos acusados; 12 foram parcialmente reformadas, ou porque diminuída a sanção fixada em 1º grau ou porque afastado algum acusado ou conduta descrita; 3 sofreram reformas parciais onde houve a majoração da sanção estabelecida em sede de sentença; 2 decisões houve reforma parcial mista, isto é, existindo litisconsórcio passivo, deu-se a majoração da sanção de algum dos acusados e a minoração ou absolvição de outro; e uma reforma de decisão que havia extinguido o feito, o qual foi retomado. E, por fim, 3 (três) dos 7 (sete) embargos infringentes tiveram o julgamento em favor dos réus.

Assim, ilustradamente:

Absolvições em 1º Grau

Mantidas pelo Tribunal

Condenações em 1º Grau com reforma

pelo TribunalEmbargos Infringentes

23 28 7

Reforma Total 10 Reforma pró-

-defesa3

Reforma parcial pró-defesa 12

Reforma mista 2

Outras 4

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Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência

O que já se pode perceber, a partir dos dados elencados até aqui é que em sede de 1º Grau ocorrem mais condenações aos réus que são acusados de praticar atos de improbidade administrativa, enquanto em sede de 2º Grau de Jurisdição, seja total ou parcialmente, o Tribunal tem reformado as decisões condenatórias, isentando totalmente ou reformando de forma parcial em favor dos réus. Em outros termos, das 85 apelações, 49 destas foram com sentenças condenatórias em 1º Grau, sendo que apenas 21 dessas condenações foram mantidas pelo Tribunal, enquanto 28 sofreram alguma alteração. E das 36 decisões não condenatórias em 1º Grau, 23 foram mantidas em seus termos.

Considerando-se os dados obtidos a partir da metodologia anteriormente descrita, abre-se a possibilidade de se realizar uma leitura das decisões encontradas, podendo-se então, adentrar no objetivo do texto, qual seja, investigar os argumentos subjetivos utilizados pelo Tribunal de Justiça gaúcho na fundamentação das decisões de absolvição, seja por reforma da sentença monocrática ou mesmo pela sua manutenção, tomando-se por matriz a teoria da argumentação jurídica.

2. O QUE SE CONSIDERA UM ARGUMENTO VAZIO SOB A ÓTI-

CA DO DISCURSO

Para tratar de argumentos, não há outro caminho senão se discutir a partir da ética do discurso8. Compreende-se o processo de decisão judicial como um ato de comunicação por ter nele uma ação humana e, em se tratando de decisão jurídica que, diga-se, cria uma norma para o caso concreto, tem-se a obrigatoriedade de um discurso racional e, por isso, exige-se fundamentação segundo a ótica do discurso como condição de validade. Ainda, se a decisão é ligada por esses processos deliberativos que buscam racionalmente um juízo de validade e legitimidade levam a aplicação do direito, acredita-se ser imprescindível observar em momentos distintos esse processo de formação da pretensão de universalidade da norma, para a posteriori e a partir de uma situação específica ter-se uma decisão que vise à satisfação de um conflito entre as partes. Logo, entende-se, sim, ser necessária a observação dos distintos momentos de busca de normatividade, em discursos de fundamentação e discursos de aplicação (BITENCOURT, 2013, p. 194-195).

8 – Tratar-se-á aqui da ética do discurso principalmente a partir de Habermas e alguns de seus inter-

locutores.

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Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase

Explicando de outra maneira, Reck (2006), analisando a distinção entre os discursos de fundamentação e aplicação, ensina que os discursos corresponderiam à racionalidade prática em dois estágios: o primeiro é a imparcialidade, que se expressa em um procedimento de justificação que se projeta para o futuro e para todos a partir de situações imagináveis, mas nessa operação não consegue dar conta de todas as situações concretas que dela serão originadas diante da norma justificada; a segunda trata do fato que a impossibilidade da previsão de todos os casos futuros é constitutiva para a própria norma; logo, é bom para a comunidade que nos casos concretos o olhar esteja voltado para as pretensões que, em um primeiro momento, foram pensadas de forma generalizada, tendo em vista razões de imparcialidade, tomadas como aplicação do princípio da universalização: daí porque o sistema de Günther e Habermas ser estruturado duplamente, vez que é necessário mais um processo de generalização, agora voltado a todas as situações relevantes possíveis da situação, regidas por um juízo de “aplicabilidade” (BITENCOURT, 2013, p. 195).

A decisão, portanto, deve ultrapassar os marcos de sua faticidade. Caso se pretenda uma reflexão mais sofisticada, esta terá de passar pelo teste do princípio da universalização. A busca do argumento9 que convence passa por uma perspectiva reflexiva que envolve a problemática das proposições assertóricas e não-assertóricas. Enquanto que em problemas referentes à verdade (assertóricas - certezas sensíveis) é necessário, além de um vínculo com um mundo objetivo, uma situação de fala que se assemelhe à ideal, nas questões práticas esses critérios são menos rigorosos; porém, ainda assim pautam os parâmetros de uma decisão racional e capaz de gerar emancipação (BITENCOURT, 2013)10.

9 – Uma teoria da linguagem pode levar em conta a autorreferência e a forma da proposição e conside-

rá-las equivalentes, a partir do momento em que ela não se orienta mais semanticamente pela compre-

ensão das proposições, mas pragmaticamente, pelos proferimentos através dos quais os falantes se en-

tendem mutuamente sobre algo. A fim de entender-se sobre algo os participantes não precisam apenas

compreender as proposições utilizadas nos proferimentos: eles têm de ser capazes de se comportar uns

com relação aos outros, assumindo o papel de falantes e ouvintes – no círculo de membros não partici-

pantes de sua (ou de uma) comunidade lingüística. As relações recíprocas e interpessoais determinadas

pelos papéis dos falantes tornam possível uma auto-relação que não precisa mais pressupor a relação

solitária do sujeito agente ou cognoscente sobre si mesmo enquanto consciência prévia. A autorreferên-

cia surge de um contexto interativo. (HABERMAS, 1990, p. 33).

10 – A “verdade” de proposições descritivas significa que os estados de coisas enunciados “existem”,

enquanto as “correções” das proposições normativas refletem o caráter obrigatório dos modos de agir

prescritos (ou proibidos). Kant pretende fazer justiça a esse saber epistêmico e saber prático distinguin-

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Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência

Resumindo: os discursos devem ser lidos separadamente porque, tanto o

fator da limitação temporal, quanto o fator da limitação das informações, são

fundamentais para que aconteça a institucionalização das decisões jurídicas.

A questão central da diferenciação: se por um lado estes discursos oferecem

uma abordagem filosófica da racionalidade prática, o que rege os discursos

de fundamentação é voltado à otimização do interesse de todos oferecendo

apenas razões, enquanto que o discurso de aplicação, tomando consciência da

complexidade fática, procura escolher a melhor norma e a melhor interpretação,

proporcionando coerência ao ordenamento, mas considerando as perspectivas dos

particulares que devem manter relação com a estrutura geral das expectativas já

postas pelos discursos de fundamentação (BITENCOURT, 2013, p. 197). “Isso

ocorre porque a própria pretensão de validade normativa pode se desdobrar nestas

duas orientações”. (RECK, 2006, p. 147).

Os discursos de fundamentação11 buscam realizar a validade das normas,

uma forma de fundamentar a norma geral baseando-se não em um caso concreto,

mas sim no paradigma de fundo que determina seu modo de interpretação e

fundamentação para o juízo de validade. Logo, dizer que uma norma valha

parcialmente prima facie significa afirmar que ela foi fundamentada de modo apenas

imparcial. No discurso de fundamentação não há como se pensar na especificidade

de um caso concreto, o que não significa construir juízos de validade “fora” da

história, pois os paradigmas condicionam qualquer interpretação. Há muito já se

sabe que não há interpretação desconectada dos fatos em geral, porque o intérprete

está inserido na história (BITENCOURT, 2013).

do, relativamente a faculdade de conhecer e desejar, uso teórico de um uso prático da razão. Embora

a razão teórica seja produtiva em um sentido transcendental, a razão prática tem uma força “Legisla-

dora” num outro sentido, num sentido construtivo, como podemos dizer com Rawls. A pressuposta

unidade de um mundo, espontaneamente gerado, de objetos da experiência possível unifica a multipli-

cidade de conhecimentos empíricos, enquanto o “reino dos fins” projetado pela razão prática indica a

maneira como os sujeitos agentes devem, pela autodeterminação inteligente de sua vontade, gerar ou

construir um mundo de relações interpessoais bem-ordenadas – “uma república universal segundo as

leis da virtude”. (HABERMAS, 2004, p. 269-270. Grifos no original).

11 – Importa referir que Habermas trata de discursos de Justificação no mesmo sentido e conotação que

Klaus Günther se refere aos discursos de fundamentação.

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Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase

Dessa forma, tanto Habermas quanto Günther12, ao analisarem os discursos de justificação (ou fundamentação) explicam que neste, os participantes, com base no paradigma de fundo, imaginam todas as possibilidades ou circunstâncias nas quais são dadas as características pressupostas pelo conteúdo da norma, pois é a diversidade de aplicação que se produz o material para que se possa atribuir à validade da norma, função do discurso de fundamentação (BITENCOURT, 2013, p. 199).

Nos discursos de aplicação, como uma das espécies de discursos jurídicos, é preciso examinar se se pode encontrar sua aplicação em uma situação concreta, que ainda não foi prevista no processo de fundamentação. Outrossim, se uma norma é válida prima facie (o que significa dizer que ela foi fundamentada de modo imparcial) para que a decisão seja válida em um caso concreto é necessária a aplicação imparcial, pois é a adequação que garante a atenção à singularidade da norma, fazendo o papel de examinar quais situações ou descrição do estado de coisas são significativas para a interpretação da situação de um caso singular controverso e qual das normas válidas aplicável prima facie adequada à situação, onde se busca aprender e descrever todas as possíveis características significantes. A interpretação que conduz o discurso de aplicação que busca levantar e descrever a situação de fato para o juízo de adequação da norma não pode desconsiderar as condições de aplicação dessa norma, que foi considerada dentro de um paradigma de fundo na formulação dos discursos, de fundamentação que atribuíram validade aquela norma geral (BITENCOURT, 2013).

Por intermédio da confrontação com novas experiências em situações de aplicação, aprendemos a reconhecer normas até então considera-das adequadas na inadequação relativa, e a mudá-las em vista de sinais

12 – Diz que: “Para a fundamentação é relevante exclusivamente a própria norma, independentemente

de sua aplicação em cada uma das situações. Importa se é do interesse de todos que cada um observe

a regra, visto que uma norma representa o interesse comum de todos e não depende de sua aplicação,

mas dos motivos que conseguimos apresentar para que ela tenha de ser observada por todos como uma

regra. Em contraposição, para a sua aplicação cada uma das situações é relevante, não importando se

a observância geral também contempla o interesse de todos. Em vista de todas as circunstâncias espe-

ciais, o fundamental e se e como a regra teria de ser observada em determinada situação. Na aplicação

devemos adotar, “como se estivéssemos naquela situação”, a pretensão da norma de ser observada por

todos em toda situação (isto é, como uma regra), e confrontá-la com cada uma de suas características.

(GÜNTHER, 2004, p. 69-70).

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característicos recém-descobertos ou interpretados de modo diferente. Como, certamente, nunca conseguiremos descobrir todos os sinais ca-racterísticos, uma “lacuna” permanecerá, mesmo quanto reconhecermos, na situação, uma norma como adequada e representante de um interes-se comum. Porém, a dramaticidade dessa indefinição estrutural, a qual acabamos de apontar acima, reduz-se se diminuirmos a sua extensão e incorporarmos a possibilidade de tal lacuna nas nossas reflexões práticas, mediante uma combinação de fundamentações racionais e de aplicações feitas com sensibilidade. (GÜNTHER, 2004, p. 73).

O que caracteriza então os discursos de aplicação é a tentativa de, aqui sim, considerar todas às características de uma situação em relação a todas as normas que poderiam remeter a elas. Como o que se busca é a imparcialidade da aplicação, coerentemente busca-se realizar a adequação entre todas as características do fato e todas as normas envolvidas no caso. Por derradeiro é que se diz que o que determina se uma norma é ou não adequada ao caso é a aplicação e, para que se determine se algo é ou não adequado é necessário a concreção (GÜNTHER, 2004). Dessa forma, não estaria incorreto afirmar que para ética do discurso as razões não contêm apenas uma dimensão de validade, mas também uma dimensão de aplicação enquanto razões de concreção da norma (BITENCOURT, 2013, p. 206).

Quando se pensa em controle dos discursos de aplicação, sabe-se que sua função é justamente levar a norma geral para ser aplicada em uma situação específica, sendo assim, se a ideia da aplicação é materializar a fundamentação, ter-se-á que demonstrar a ação praticada e qual a previsão legislativa se mostra adequada para a satisfação do bem jurídico protegido pela Lei de Improbidade Administrativa, o que se fará ante uma situação específica.

Nesse sentido, em Bitencourt sobre o controle jurisdicional de políticas públicas, tem-se que:

ter-se-á que escolher qual a política pública será adequada para a satisfa-ção da demanda social, o que se fará ante uma situação específica. Pois bem, se pensar no exemplo anterior da saúde, o exemplo em termos de aplicação seria assim: a esfera pública decidiu privilegiar a saúde pública com determinada prioridade, contudo na escolha de qual política pública adequada entre tantas as opções e necessidades existentes, optou-se por investir em uma política pública de vacinação. Indiscutível a legitimidade

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da escolha, no entanto, imaginemos que, em pleno surto da gripe A no Rio Grande do Sul, o Estado decida investir um dispêndio alto de valor na compra de vacinas contra a febre amarela, cujo índice de incidência é baixíssimo ou quase zero naquele Estado. (BITENCOURT, 2013, p. 211).

A questão volta à ideia de adequação da conduta, então, não apenas o procedimento e o paradigma de fundo merecem ser observados, mas pressupõem uma série de outros enlaces que necessitam apresentar uma coerência argumentativa para justificar a sua escolha. Tudo isso para dizer que, em se tratando de discursos de aplicação as formas de controle serão outras, que aqui se prefere chamar de controle das lógicas ou enlaces argumentativos que o Poder Judiciário em tese é especializado, que ligaram tanto a situação fática como o conteúdo da dogmática, ou seja, necessitam observar a faticidade e a validade do direito enquanto buscam visualizar o caminho da própria fundamentação (BITENCOURT, 2013, p. 211).

“Dito isso, prefere-se observar os possíveis argumentos que devam ser observados quando da escolha de qual aplicação é mais adequada para satisfazer a demanda em questão, e o quanto estes espaços não podem ficar em aberto para não haver um eterno retorno à fundamentação”. (BITENCOURT, 2013, p. 211).

Dito isso, os “argumentos vazios” nas decisões dos julgadores dos Tribunais, sob a ótica da teoria do discurso, são aqueles que não conseguem na aplicação (que é o discurso especializado do julgador), reconduzir aos discursos de fundamentação (discurso especializado do legislador), logo, não consegue reconstruir o caminho até a esfera pública. No momento que o ato decisório se desconecta dos interesses que emergem da esfera pública, esses o presente trabalho denominará como “argumentos vazios”.

3. A INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA SOBRE A CONFIGURAÇÃO

DA CORRUPÇÃO: DA “MERA ILEGALIDADE” A NECESSÁRIA COM-

PROVAÇÃO DO DOLO OBSERVADAS A PARTIR DO CONJUNTO PRO-

BATÓRIO

Ao se permear pelas entrâncias da administração pública, importa reconhecer que neste ambiente o poder é concedido pelo povo ao gestor, como forma de representatividade. Assim, o uso regular do poder pelo agente público é elementar da atividade pública. Acima disso, representa um dever para alcançar os

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fins objetivados pelo direito. Ocorre que muitos destes que possuem, mesmo que transitoriamente esta condição, a investem e empregam como fonte inesgotável de aquisição, usufruto, distribuição e transmissão de regalias. Veem um modo de se obter vantagens ilícitas para si ou para outrem, como um meio de distribuir favores. Por fim, exercem o poder de forma abusiva. Fazem-no muitas vezes, em concurso com pessoas físicas e jurídicas de direito privado, motivo pelo qual os esforços legislativos para inibir tais situações não soam como novidades, isto é, não é de hoje a preocupação legislativa com o fenômeno da imoralidade administrativa.

Daí porque se dizer que a corrupção é um dos fatores da crise de governabilidade, fato que coloca em risco inclusive a própria democracia. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1995, p. 110-112) assevera que a corrupção ora é inspirada pela busca de vantagens materiais indevidas (corrupção-suborno), ora pela concessão de privilégio particular (corrupção-favorecimento), bem estimulada nas sociedades em que não há uma efetiva separação entre o público e o privado, e, por fim, pode atingir o fundamento último da legitimidade do sistema (corrupção--solapamento).

Mariano Pazzaglini Filho (1998) adverte que ao se reestruturar o Estado por meio de uma reforma administrativa, não se pode desprezar uma necessária sintonização com os princípios da legalidade e da moralidade administrativas.

Nesse sentido, adverte Wallace Paiva Júnior (2002, p. 5) que “o fenômeno não se verifica tão-somente no plano da ilegalidade, pois também a legalidade é campo fecundo para a corrupção”. Não se limitando a isso, segue o autor referindo que “a permanente fixação de relações jurídicas com terceiros proporciona o desvio de interesses, especialmente quando é rotina a Administração Pública não honrar no prazo devido suas obrigações” (2002, p. 5), configurando-se assim uma espécie de mercado de favores legais.

Pontes de Miranda (1987, p. 254), a seu turno, afirmava que “a impunidade, havendo leis é mais grave do que a impunidade por não se terem leis”. Manoel Ferreira Filho (1995, p. 121), por sua vez, observa que o problema da corrupção “não está no nível do estabelecimento das leis, mas no nível da efetividade dessas leis”. Tal posição é possível de se adotar, considerando-se o fato da existência de uma determinada “tolerância” da sociedade com o fenômeno, vez que parece faltar o senso de observância à legalidade e de responsabilidade social, que como se verá adiante, pode, em determinadas ocasiões, mesmo que não observado o princípio da legalidade pelo gestor público, não incidir em improbidade administrativa, embora expressamente se reconheça a irregularidade.

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Entrementes, sendo as leis mecanismos tão indispensáveis para a prevenção, controle e tratamento do fenômeno conhecido como corrupção, é imprescindível também que se somem esforços por meio de uma autêntica vontade política no seu propósito, de forma a se oferecer eficientes meios de luta contra a improbidade administrativa.

Daí ser possível coadunar-se ao pensamento de Wallace Paiva Júnior (2002, p. 9) no sentido de que contribui para uma cultura de improbidade “o comportamento comodamente omissivo dos órgãos públicos responsáveis pela preservação e repressão da improbidade administrativa”, o que tornam as leis de sutil ou nula eficácia social. E é nesse aspecto o principal objetivo do presente trabalho, isto é, identificar junto à jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos casos de absolvições, qual (is) o (s) fundamento (s) construído (s) pelos magistrados nessa busca pela eficiência legal no que tange à prevenção, controle e combate à improbidade administrativa.

Mas para que um pensamento possa ser formulado, é preciso ressalvar que sendo um tribunal composto por vários magistrados e por várias câmaras, nas quais os profissionais são formados por correntes e vieses muitas vezes antagônicos, será possível encontrar decisões que conflitem já na forma de interpretação da LIA. E é aqui que os argumentos serão considerados como subjetivos, uma vez que se para se ter um discurso universal e racional, a partir da ótica da teoria do discurso, necessita-se objetivar consensos e essa objetivação ocorre de forma argumentativa, de acordo com essas regras, para que sejam tidos como corretos ou verdadeiros, porque racionalmente fundados; uma vez os argumentos sendo discursivamente racionais, poderão ser tidos como universais.

Primacialmente, é necessário descrever e demonstrar as variáveis encontradas já no tangente a interpretação da LIA dentro do mesmo Tribunal. Ora estar-se-á diante de uma leitura voltada a interpretação com conotação penal, onde nesses casos estarão presentes os institutos ligados ao Direito Penal, e ora estar-se-á diante de uma interpretação preponderantemente civil-administrativa da LIA, fazendo-se predominar assim, elementos concernentes ao Direito Administrativo e Civil.

Nos Embargos Infringentes nº 70060372661, o Relator do processo, Des. Newton Luís Medeiros Fabrício do 1º Grupo Cível, externa a sua visão civil--administrativa da Lei de Improbidade, desvinculando-a totalmente da esfera penal:

Primeiramente, esclareço que a ação de improbidade administrativa tem natureza civil e, apesar de serem rigorosas, as sanções estabelecidas pela Lei nº 8.426/1992 não tem natureza penal.

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Com efeito, esta ação não tem como pressuposto a prática de um crime, como alegado pelos embargantes. A conduta ímproba nem sempre está relacionada à prática de um delito, não possuindo qualquer relação com eventual propositura de ação penal. Vale lembrar, inclusive, que, dentre os atos de improbidade administrativa elencados pela Lei nº 8.429/1992, constam aqueles que atentam contra os princípios da administração pú-blica, os quais não representam o cometimento de uma conduta crimi-nosa. Assim, a ação de improbidade administrativa não contempla o mesmo rigor exigido à ação penal, apesar de atribuir aos réus diversas prerro-gativas, tendo em vista a gravidade das penas aplicáveis, as quais não atingem apenas o seu patrimônio. (Grifos próprios).

Corrobora este entendimento o Des. Irineu Mariani da 1ª Câmara Cível, na Apelação nº 70057375594 de sua relatoria, ao referir que: “As alegações de defesa também, pouco mais pouco menos, em essência se repetem, inclusive quanto às absolvições criminais, o que não merece acolhida porque são distintas as esferas (CF, art. 37, § 4º; Lei 8.429/92, art. 12, caput)”. (Grifos no original).

Da mesma forma, o Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro da 22ª Câmara Cível, no julgamento da Apelação nº 70060386224, ao refutar as teses levantadas pela defesa, categoricamente expressou que em sede de improbidade administrativa não cabe a aplicação do princípio da insignificância, sendo, pois de aplicação restrita ao Direito Penal.

É inaplicável o princípio da insignificância no âmbito da improbidade administrativa, tratando-se de instituto afeto ao Direito Penal.O princípio da moralidade administrativa comporta unicamente duas soluções: o ato o agride ou não o agride; noutras palavras, é probo ou ímprobo. (Grifos próprios).

Já a leitura da LIA numa perspectiva criminalista, pode ser percebida com os votos a seguir citados exemplificativamente. No julgamento dos Embargos Infringentes pelo 1º Grupo Cível, de relatoria da Des. Laura Louzada Jaccottet de nº 70057923492, extrai-se que para haver condenação em sede de improbidade administrativa, há que se ter a prova inequívoca do ato.

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Da análise dos autos, verifico merecem guarida os três embargos infrin-gentes, eis que não caracterizada, modo inequívoco, a prática de atos ímprobos por parte dos embargantes. A prova produzida nos autos restou analisada adequadamente na sentença recorrida e no voto vencido, indi-cando fragilidade probatória acerca de improbidade no caso concreto. (Grifos próprios).

Entrementes, há que se referir que a LIA não está vinculada aos princípios da esfera penal. Mas mais uma vez é possível perceber o conflito entre posições dentro de uma mesma Câmara, na continuidade do voto da Eminente Desembargadora ao fundamentar da seguinte forma:

(...) não há nos autos prova do agir, doloso ou mesmo culposo dos réus, tampouco prova de conduta desonesta ou de má-fé, a configurar ato de improbidade adminis-trativa. E, com efeito, não há falar em punir o Administrador se não evi-denciada, demonstrada, comprovada a presença do elemento subjetivo do agente (Grifos no original).

Não obstante, a Desembargadora valeu-se do voto vencido da Apelação Cível nº 70048076434, de relatoria do Desembargador Carlos Roberto Logefo Caníbal, a qual deu causa para os Embargos Infringentes, que também possui entendimento favorável a suposta natureza penal da LIA.

Há que se ressaltar que a condenação de agentes políticos à prática de improbida-de administrativa é gravíssima, e deve vir embasada em prova que não deixe ne-nhuma dúvida quanto ao cometimento do ato ímprobo. Conforme doutrina de Waldo Fazzio Junior, “a má-fé é premissa do ímprobo. Por isso, a ilega-lidade só adquire status de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração pública coadjuva-da pela má-fé do administrador. A improbidade administrativa, mais que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade.” (Grifos no original).

E aqui, salta aos olhos o principal argumento dos desembargadores para sustentarem os votos de absolvições, de que a mera ilegalidade não configura necessariamente a improbidade, precisando assim, da prova (inequívoca) do dolo

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e da má-fé no agir do réu. No ponto, acredita-se que não pode operar a fuga da lei, mas sim a fuga “para” a lei e assim, valer-se de mecanismos hermenêuticos que possibilite o enfrentamento do mérito do fato jurídico, considerando-se todas as técnicas de interpretação, ao ponto de concluir-se pela existência ou não do ato jurídico. Nesse sentido,

A resposta está na interpretação do fato e não na exclusão da lei, cujo sentido faz do combate à improbidade (essa última compreendida na vertente social de forma de corrupção) instrumento de tutela de direi-tos fundamentais e de legitimação do Estado Democrático de Direito. (MARTINS, 2014, p. 194).

Ainda nos mesmos Embargos Infringentes, perfilha-se ao entendimento normativo penal da LIA, o Desembargador Carlos Roberto Logefo Caníbal, onde, além de manifestar seu posicionamento acerca da natureza jurídica da norma, fundamenta o seu decisium em passagens e argumentos subjetivos/pessoais, ao referir que:

Naquela época por um período atuei na área criminal mais efetiva-mente que quando Juiz no Interior, onde eu era um Juiz generalista, e eu me lembrava de que havia uma grande dificuldade na aplicação dessa legislação pelos Juízes em geral, porque temos nas mãos uma legislação absolutamente sem técnica. Ela tem alguns dispositivos, mas ela não tem, por exemplo, uma profundidade doutrinária que eu trazia da área criminal para conjugar com aspectos de mesma na-tureza sançanatória e penal, que se tem na essência nesta Lei de Im-probidade Administrativa. Comecei a construir questões exigindo a prova, pelo Ministério Público, da presença do elemento subjetivo do injusto típico administrativo, porque, a meu ver, é absolutamente integrador dessa disposição normativa, muito embora ela não diga isso, o que o nosso Código Penal atual diz, com a reforma de 1984. (Grifos próprios).

Não obstante, no julgamento da Apelação nº 70060454048, o referido Desembargador, ao aludir acerca da inexistência de prova inequívoca do agir ímprobo dos réus, exara a seguinte alegação:

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[...] Isso sempre me causou espécie porque nós temos uma norma que se assemelha a uma norma penal, sancionatória. Em função das reformas que tivemos a partir de 84, instituiu-se, por exemplo, a presença necessá-ria da evidente demonstração de elemento subjetivo, o dolo.[...]Com certeza, a prova do elemento subjetivo do injusto típico adminis-trativo também é absolutamente necessária, trazendo conceitos do nosso Direito Penal, porque, se não fizermos isso, nós não conseguiremos julgar questões que têm essa natureza com o objetivo final precípuo de realizar justiça. (Grifos próprios).

Como será demonstrado, esse antagonismo presente nas interpretações acerca da natureza jurídica da LIA é que, sensivelmente justifica uma decisão conter argumentos subjetivistas ou não. Não porque a corrente que entende a Lei de Improbidade como instituto atinente ao Direito Penal e suas imbricações não merece prosperar, até porque prevalece no Direito Brasileiro o princípio do livre convencimento motivado das decisões judiciais, onde o magistrado irá valorar as provas ali constantes de acordo como entender adequado ao caso; entretanto, devendo basear-se em critérios jurídicos e matrizes teóricas próprias, mas sim porque, partindo-se do pressuposto do conjunto probatório presente nos autos e não de provas isoladas, necessitam estar presentes a racionalidade e a universalidade na forma do discurso, para que proporcionem a esse discurso jurídico a legitimidade da legislação e que seja possível a controlabilidade das decisões judiciais, de forma também a favorecer a imparcialidade do discurso, objetivando-se, outrossim, atender aos requisitos indispensáveis para uma democracia concreta e para a solidez de um Estado de Direito.

Não obstante a isso, é importante mencionar que das percepções a que foi possível se chegar a partir da análise dos acórdãos é de que existe uma tendência, frise-se, tendência, por parte dos desembargadores que possuem a visão normativa--criminal da LIA de que, não estando as provas objetivamente e especificadamente claras demonstrando o agir ímprobo do réu, opta-se pela absolvição, justificando--se assim a falta ou a fragilidade das provas ou a proporcionalidade da conduta para com a sanção, ainda que se reconheça a ilegalidade.

Outro ponto que revela a fragilidade de determinadas decisões é a consideração da pessoa do réu, isto é, tratando-se de ações que envolvam no polo passivo administradores públicos, tende-se a absolvê-los quando o conjunto de

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provas não for claro isoladamente. Assim, o julgador, implicitamente, considera a figura do sujeito que está no polo passivo da demanda e desconsidera ou abranda o ato praticado, limitando o bem jurídico protegido pela LIA, que é a proteção da moralidade e a probidade administrativa. O que será abordado no tópico seguinte.

Já no que se refere à visão civil-administrativa da Lei de Improbidade Administrativa, percebe-se que a leitura do conjunto probatório ocorre de maneira articulada, isto é, de forma a se considerar todos os dados e fatos colhidos na instrução encadeados, visando-se priorizar o cuidado para que as penas não sejam aplicadas desproporcionalmente à conduta praticada, mas que em última instância se proteja efetivamente o bem jurídico ali descrito, a partir dos seus princípios e da Constituição Federal, sem que se pese quem é o sujeito que está sendo processado e sim qual foi a sua ação ou omissão.

Nesse sentido, se manifestou o Desembargador Newton Luís Medeiros Fabrício, na Apelação nº 70060217189, de sua relatoria, a qual tratava do desvio de verba recebida pelo Município da Defesa Civil do Estado para implemento em áreas atingidas por um vendaval, ao referir que: “Importa referir que o bem jurídico tutelado pela lei de improbidade administrativa é a moralidade administrativa, mediante a aplicação de sanções de natureza civil, as quais não possuem a mesma carga coativa das sanções penais”.

E assim, em outro processo, desta vez nos Embargos Infringentes nº 70060372661, o referido Desembargador, acerca do conjunto probatório aduz que:

Da mesma forma, a existência de decisões proferidas por este Tribunal de Justiça, bem como pelo Superior Tribunal de Justiça, absolvendo os réus em julgamentos de casos análogos, não impede a condenação dos réus na hipótese dos autos. Ora, cada ação de improbidade administrativa, ainda que tratando dos mesmos fatos, possui o seu conjunto probatório, ca-bendo ao julgador sopesar os fatos e provas e, de acordo com o seu livre convencimento, decidir motivamente (sic) a questão. A eventual absolvi-ção por ausência de provas em uma ação civil pública, por óbvio, não será estendida às demais. (Grifos próprios).

Aqui, tratava-se do pagamento de valores a um Oficial de Justiça por um Escritório de Advocacia, consideradas pelo Tribunal como “propina”, que gerou o enriquecimento ilícito do auxiliar judiciário (art. 9º da LIA) e reconheceu a ofen-sa aos princípios da administração pública por parte do escritório de advocacia

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(art. 11 da LIA). Mesmo que as provas, de forma isolada, não permitissem a conclusão de que aqueles valores, de fato, teriam sido pagos ao Oficial para que agilizasse o cumprimento dos mandados judiciais, pela leitura encadeada das provas, o Tribunal entendeu pela condenação.

Já no caso dos Embargos Infringentes nº 70057923492 já citados anteriormente, tratava-se de possível fraude em uma licitação para compra e instalação de lombadas eletrônicas em determinado Município, envolvendo o Prefeito, Procurador-Geral do Município, sua esposa e as empresas licitantes com destaque para a empresa que se sagrou vencedora do processo licitatório.

Venceu a posição de que o conjunto probatório era frágil e de que não havia prova inequívoca do dolo e da má-fé, embora destacado pelos dois votos divergentes (a favor do reconhecimento da improbidade) de que pela análise conjunta das provas ficava demonstrado o agir doloso dos réus (conluio), e por consequência era forçoso o reconhecimento da improbidade administrativa configurada pelo direcionamento de licitação. O que, na prática não ocorreu.

Nesse sentido, enfatiza Toledo (2005, p.50. Grifos no original) que “é um equívoco, portanto, deduzir, da existência e necessidade de valorações, uma abertura indiscriminada para convicções morais subjetivas. Isso só ocorreria se não houvesse qualquer maneira de objetivar essas valorações”. E essa objetivação mencionada pela autora, deve-se dar na construção das decisões judiciais, no momento da apresentação sistemática das condições do fato, dos argumentos e critérios utilizados para a fundamentação e das regras em que estão baseadas, a fim de se voltar ao discurso de justificação (fundamentação) através do discurso de aplicação.

Nesse sentido ainda, a Apelação nº 70060594512, de relatoria do Des. Ricardo Torres Hermann, da 2ª Câmara Cível, na qual o ato analisado era a de dispensa indevida de licitação para reformas em máquinas do Município. Na ação, foi reconhecida a ilegalidade da conduta da Administração Pública em não licitar os serviços, mas não foi considerada configurada a improbidade administrativa por parte dos gestores, devido ao fato de não ter sido demonstrado o dolo por parte do agente e ser uma conduta habitual naquele Município.

À primeira vista, portanto, as provas indicam estarmos diante de hipó-tese de dispensa indevida de licitação. Não se pode afirmar, contudo, tenha o réu praticado atos de improbidade, que pressupõem não apenas a ilicitude da conduta, mas a existência de dolo ou culpa grave, além de,

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na hipótese do art. 10, da Lei de Improbidade Administrativa – LIA (Lei 8.429/92), prejuízo ao erário. [...]No caso concreto, a prova produzida dá conta de que a contratação de oficinas mecânicas sem licitação, para realização de reparos nos veículos de propriedade do Município, era praxe na localidade desde as gestões anteriores, consoante se extrai do depoimento de Valmor Francisco Soletti (fls. 1176/1177), ex-prefeito de Progresso. (Grifos próprios).

Na Apelação nº 70060386224, de relatoria do Desembargador Carlos Eduardo Zietlow Duro, da 22ª Câmara Cível, na qual se analisavam os atos imputados a um motorista da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, que pediu o reembolso de uma despesa feita com táxi em horário em que o empregador não autorizava a utilização do meio de transporte pelos empregados (conduta 1); a falsificação/adulteração de uma nota fiscal para ser reembolsado de valor maior do que o efetivamente despendido pelo servidor (conduta 2); e na não devolução de diárias recebidas anteriormente a realização de viagem não usadas pelo servidor, visto ter retornado antes do previsto (conduta 3).

Quanto ao fato da despesa com o táxi em horário não autorizado pelo empregador e quanto a falsificação da nota fiscal, entendeu o Desembargador se tratar de meros ilícitos civis, embora tenha sido demonstrado e entendido na sentença de 1º Grau a alteração dolosa por parte do demandado de uma das notas fiscais adulteradas, dispondo deste modo:

Concluiu a sentença: “Por outro lado, considerando-se que era de seu conheci-mento o valor gasto durante a viagem (pois foi quem efetuou o pagamento), bem como de que recebeu (como reembolso) quantia a maior, sem nada referir, reco-nheço que houve dolo na sua conduta, cometendo ato de improbidade adminis-trativa, por enriquecimento ilícito, prejuízo ao Erário (art. 9º e 10 LIA) e afronta aos Princípios da Administração Pública (art. 11 LIA). No que tange à restituição da quantia, apenas a nota fi scal nº. 16501 contempla carimbo de “ATESTO de recebimento”. Então, deverá o requerido restituir a diferença de R$ 30,00 (R$ 45,00 – R$ 15,00)” [...].Relativamente à adulteração da nota fiscal nº 16.501, assim como no uso do táxi, entendo pela ausência de demonstração de conduta dolosa sufi-ciente configurar ato ímprobo, tratando-se de mero ilícito civil.

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[...]Por estes fundamentos, dou parcial provimento à apelação do réu para afastar o reconhecimento da prática de atos de improbidade administra-tiva quanto aos fatos de utilização de táxi em desacordo com as regras empregador e adulteração da nota fiscal nº 16.501 [...]. (Grifos no ori-ginal).

Já para o fato da não devolução dos valores de diária não utilizados na viagem, entenderam os desembargadores se tratar de improbidade administrativa configurada.

Considerando o conjunto fático-probatório, não há como ser afastada a conclusão de que o demandado, quanto à não devolução de diárias re-cebidas a maior, agiu com dolo, gerando prejuízo ao erário em relação a tais valores que, embora não expressivos, ensejam restituição, inaplicável o princípio da insignificância ou bagatela, incorrendo em ato de improbi-dade, nos termos da Lei nº 8.429/92.

Entrementes, na própria fundamentação da configuração de improbidade na não devolução das diárias antecipadamente recebidas, o Eminente Desembargador, valeu-se de decisões do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que:

[...] é inconcebível uma conduta que, apesar de configurar patente e voluntário desvio de finalidade, ofenda “só um pouco” a moralidade. O princípio da moralidade deve ser objetivamente considerado (na linha do que modernamente se apregoa para o princípio da boa-fé objetiva), dele admitindo-se apenas uma de duas soluções: ou o ato não agride o princípio (tanto por ser a conduta fiel ao princípio da legalidade ou por se caracterizar como mera irregularidade administrativa) ou é imo-ral – tertium non datur. Isso quer dizer que o princípio da moralidade administrativa, por sua centralidade no ordenamento jurídico brasileiro, não admite relativização, pois descabe falar em semiprobidade, meia pro-bidade ou quase probidade. A conduta é proba ou não é. Ponto final. (Grifos no original).

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Ainda citando o precedente do STJ, o Desembargador enuncia:

Se o juiz, mesmo que implicitamente, declara ímproba a conduta do agen-te, não lhe é facultado – sob o influxo do princípio da insignificância – evi-tar o juízo de dosimetria da sanção, se para tanto o que pretende é, por inteiro, excluir (e não apenas dosar) as sanções legalmente previstas.

E ainda:

O dano, no terreno do Direito da Improbidade Administrativa, não é avaliado exclusivamente sob a ótica patrimonial, mas, com muito maior apelo, sob a égide social e moral. Para que um desvio administrativo seja considerado insignificante (= mera irregularidade administrativa), deve ser valorado quantitativa e qualitativamente. Trata-se de exame que deve ser amplo e minucioso, sob pena de transmudar-se a irregulari-dade administrativa banal ou trivial, noção que legitimamente suaviza a severidade da Lei da Improbidade Administrativa, em senha para a impunidade, business as usual.É nesse sentido que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, em seu Recurso Especial, defende que “não raras vezes os atos, ditos imorais, mas que não geram repercussão econômica, são mais graves do que aqueles que lesionam financeiramente a administração pública, porquanto a moralidade e a honestidade são conceitos axioló-gicos que repercutem perante a sociedade, que exige da administração pública a probidade de seus agentes”. (Grifos próprios).

O que se busca demonstrar aqui é que ao mesmo tempo em que não foi reconhecida a improbidade nos atos do recebimento do ressarcimento da despesa com táxi em desacordo com as regras do empregador (conduta 1), bem como com a adulteração de nota fiscal para receber reembolso maior do que o efetivamente gasto pelo servidor (conduta 2), por considerar apenas um ilícito civil (mera irregularidade administrativa), tem-se a fundamentação em sentido contrário. No presente caso, embora tenha havido condenação, é evidente a não correlação entre os fundamentos utilizados para reforma em favor do acusado a fim de desconsiderar a improbidade das condutas 1 e 2 para com a fundamentação para a consideração da conduta 3 como ímproba.

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Ademais, conforme enfatiza Campos (1987, p. 10):

(...) Si la obligación no se cumple, si no se puede compeler a que se cumpla, si el incumplimiento irreparable no se sanciona, el derecho insatisfecho queda burlado. (...) La misma supremacia que nos sirve para decir que los derechos que la constituición reconoce alcanzan el nivel máximo de ella, nos lleva a afirmar que las obligacioones que imponetienen identico rango y, por conseguiente, cuando se deja de cumplir um deber que la constitui-ción manda cumplir, o se hacelo que la constituición obliga a no hacer, aparece una violación a la constituición y a su supremacia.

Portanto, o patrimônio público e a moralidade administrativa assim o são compreendidos como direitos fundamentais de dimensão solidária, pela nova ordem constitucional, fato este que obriga a todos e, sobretudo, aos atores públicos, a conservação e obediência às suas construções normativas de grandeza maior (MARTINS, 2014).

O que se buscou demonstrar no presente tópico deste breve estudo foi que os argumentos da necessária comprovação do elemento subjetivo (dolo) para ter configurado agir ímprobo dos agentes envolvidos no caso; o argumento da fragilidade do conjunto probatório estão intrinsecamente ligados podendo ser percebidos de forma conjunta, ao passo também, que vão ao encontro da interpretação normativo criminal da LIA. Não obstante, que esta visão restrita ao Direito Penal justifica a posição exarada em inúmeros julgados no sentido de que:

A improbidade administrativa constitui ilegalidade qualificada pelo in-tuito malsão do agente, que atua sob impulsos eivados de desonestidade, malícia, dolo ou culpa grave, não se coadunando a Lei n. 8.429/92 com a punição de meras irregularidades administrativas ou transgressões dis-ciplinares. (Apelação Cível nº 70058364282).

Ou seja, embora presente a ilegalidade, se não houver a intuito subjetivo do agente em agir de forma ilegal ou irregular, não se configura a improbidade administrativa, noutros termos, “nem toda ilegalidade se constitui em ato de improbidade administrativa”.

Assim, o interpretar da Lei de Improbidade Administrativa a partir do viés civil-administrativo, com uma perspectiva de cunho observacional de todos os

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elementos do processo, produz como efeito teórico/prático oposto ao resultado das lentes normativo criminal. Isto, pois, o primeiro entendimento abstrai-se dos institutos tangentes ao Direito Penal de forma a prevalecer uma maior intolerância às ações praticadas em contrariedade a moralidade administrativa, presente nos três dispositivos legais da LIA que trazem as tipificações de condutas ímprobas, ou seja, artigos 9º, 10 e 11, respectivamente. Desta forma, portanto, o discurso de aplicação conseguindo retornar ao discurso de justificação (fundamentação).

Por conta disso, os julgadores têm a sua atenção colocada, exclusivamente, nos cidadãos, na Administração Pública e na sociedade de forma ampla, vez que possuem clara a distinção das esferas de responsabilidades, ou seja, entendem que a aplicação da LIA aos casos de improbidade administrativa deve se orientar para a máxima proteção do interesse público e defesa da moralidade administrativa, desvinculando-se dos elementos a serem considerados nas responsabilização administrativa ou penal (discurso de aplicação imparcial). Diferentemente do que ocorre com a interpretação penal, onde os réus, embora as condenações, caso ocorressem, sejam na esfera de responsabilidade civil, não deixam de ser o cerne do processo. De outra forma, uma vez existindo a possibilidade de análise do fato nas esferas cível, administrativa e penal, de forma independente, cada instituto possui instrumentos próprios para avaliar a culpabilidade lato sensu, presente no caso. Com a promulgação da Constituição de 1988 e com a posterior entrada em vigor da Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92), deu-se o fortalecimento axiológico de um sistema jurídico de combate e enfrentamento à corrupção e estancamento da impunidade, e elegeram-se aí novos paradigmas para concretizar tal objetivo, especialmente a observação da moralidade administrativa.

Assim, a existência do conjunto probatório inequívoco sobre cada nuance da conduta descrita pelo órgão acusador, bem como a necessária comprovação do elemento doloso, que, por si só já denuncia a dificuldade em se precisar se houve a intenção do agente, justamente por ser “elemento subjetivo”, devem permanecer na seara criminal, onde ali serão avaliadas e sopesadas, no momento que a conduta também estiver sendo julgada na seara criminal, caso haja a respectiva tipificação penal.

É preciso que se esclareça ainda que, não se identificou argumento único (padrão) para casos de absolvição ou de condenação. Entrementes, o que se percebeu foram as diferenças de resultados existentes de acordo com cada linha de interpretação e os meios que foram utilizados para se decidir, uma vez que possuem, como já anteriormente mencionado, institutos e premissas próprias,

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que, conforme mais fortes em cada julgador, servem de base para fundamentar e, portanto, decidir as demandas ali apresentadas.

Assim, como já se consegue concluir, a fragilidade do conjunto probatório, cerne do presente tópico para demonstrar a subjetividade de determinados argumentos de decisões judiciais parte da concepção de necessidade da total e plena reconstrução fática do ato de improbidade, sob pena de absolvição total. Mas um aviso é importante. Não se quer aqui dizer que em toda e qualquer ação levada ao Poder Judiciário que envolva questões tangentes ao assunto de improbidade administrativa tenha que haver condenação. Ao que se refere ao conjunto probatório, por exemplo, não havendo provas da improbidade, é lógico que não se pode admitir condenação, pois em toda e qualquer demanda que não se sustente minimamente com provas, não se pode impor sanção alguma.

Diferente disso é dizer que as provas são frágeis. Isto, pois, para se afirmar que o conjunto probatório de uma demanda é frágil, o julgador, obrigatoriamente terá que exercer um juízo de valor acerca do seu objeto. Porque não se discute a existência ou inexistência de provas, mas sim se aquelas provas são forte o bastante para sustentarem uma condenação. No momento em que essa valoração é feita, observou-se influências externas aos ditames lógicos discursivos, e por consequência, a incidência de absolvições.

Exemplo disso é claramente extraído da Apelação Cível nº 70058364282, da 22ª Câmara Cível, de relatoria da Desembargadora Marilene Bonzanini, onde em momento de seu voto exara a sua convicção pessoal de entendimento divergente do aplicado na decisão, mas que por força do entendimento majoritário, decide de forma oposta ao que entende:

Não obstante entendimento pessoal inicialmente divergente, o enten-dimento jurisprudencial majoritário tem consignado que nem toda ile-galidade se constitui em ato de improbidade administrativa, de forma que a irregularidade administrativa de cumulação de cargos, embora passível de sanções próprias, não pode ser abrangida dentro das condutas proscri-tas pela Lei n. 8.429/92. (Grifos próprios).

No presente caso, a demanda versava acerca de suposto ato de improbidade praticado pelo Vereador Presidente da Câmara Municipal do Município de Gramado em virtude de acúmulo de funções (Assessoria de Liderança Partidária na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul). Em sede de primeiro

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grau, deu-se a condenação, quando o magistrado entendeu ter incurso o réu no art. 11, I, da Lei nº 8.429/92, oportunidade em que aplicou as sanções previstas por seu art. 12, III. Ou seja, para que se condene alguém com incurso no artigo 11, é imprescindível que esteja demonstrado e presente o agir doloso do réu, isto é, o elemento subjetivo. Para o magistrado de 1º grau, estava. Já para o Tribunal, embora se tenha admitido a ilegalidade e o agir contrário aos ditames da Administração Pública, por não se presumir dolo em sede de improbidade administrativa, isentou--se de forma absoluta o réu de pena.

Na hipótese concreta dos autos, restou incontroverso que, no período cor-respondente a abril de 2010 a outubro de 2011, o réu exerceu cumulativa-mente o seu cargo de agente político (Vereador) e o seu cargo de servidor público (Assessoria de Liderança Partidária na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul), sendo certo que a nomeação para o cargo em comissão no Legislativo Estadual se deu em março de 2010. (...) Ocorre que, consoante iterativa jurisprudência do STJ, “em sede de ação de im-probidade administrativa da qual exsurgem severas sanções o dolo não se presume” (REsp n. 939.118/SP, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe 1º/3/11), de sorte que não se pode condenar às penalidades comina-das no art. 12 da Lei n. 8.429/92 na presente hipótese. (Grifos próprios).

Tratado, portanto, de três dos principais argumentos utilizados pelos desembargadores para fundamentar as suas decisões, isto é, a restrição dada a LIA acerca dos elementos necessários para a configuração da corrupção, no que tange a necessária comprovação do elemento subjetivo (dolo) a partir do conjunto probatório frágil e a sua ligação com a interpretação de ilegalidade e improbidade. O que se buscou evidenciar é que, uma vez que se consideram argumentos fundantes de uma decisão, estes prescindem de uma construção concatenada dos fatos conjuntamente a uma hermenêutica que possibilite adentrar ao mérito desses fatos e seus reflexos no mundo jurídico, para que tenham um suporte sustentável em seu raciocínio e resultado.

3. INAPTIDÃO E DESCONHECIMENTO LEGAL DO GESTOR

PÚBLICO COMO FUNDAMENTO DE ABSOLVIÇÃO

O presente tópico poderia estar incluso no capítulo anterior, visto que o tema aqui abordado é consequência das considerações tecidas anteriormente, uma

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vez que, como será observado, a justificativa da inaptidão ou desconhecimento legal do gestor público como argumento de absolvição decorre, especialmente, das premissas de que mera irregularidade não configura improbidade e da necessidade da demonstração do elemento subjetivo do agente. De outra forma, uma vez reconhecida a ilegalidade cometida pelo gestor público, se essa ilegalidade não for qualificada pelo agir doloso, estará o administrador público isento de qualquer sanção, tendo em vista que, em determinados julgados se tem expresso que a lei de improbidade administrativa não tem por objetivo punir o administrador inapto, mas tão somente o desonesto, ou seja, em determinados julgados, tem-se como fundamentação de que o administrador, caso desconheça a legislação que regula a matéria que foi praticado o ato ilegal, não poderá ser punido. Ou porque a LIA não pune o gestor inapto ou porque na inaptidão não comporta o elemento subjetivo.

Entretanto, optou-se por tratar a matéria em tópico exclusivo, tendo em vista a angústia que gera o fato de a moralidade administrativa, bem como a legalidade, em determinadas situações, serem desconsideradas, sobretudo, em decorrência da consideração da pessoa do réu.

Analisaram-se assim, as decisões em que constavam como polo passivo gestores públicos. Por conta disso, é nesse ponto que o princípio da discricionariedade administrativa é trazido a efeito, uma vez que, embora atualmente a implementação dos poderes discricionários tenha atenuado a rigidez do princípio da legalidade, apresentando-se, portanto, como um limite regulador no confronto entre liberdade e autoridade, de modo a existir inúmeras espécies de reserva de lei, essa reserva ainda que possível, deve estar coadunada com o Estado Democrático de Direito, uma vez que exige a observância dos limites substanciais impostos pela Constituição Federal, ou seja, se a lei deve respeito as prescrições constitucionais sobre o tema, muito mais um ato de natureza jurídica discricionário.

Ou seja, elencando-se o princípio da discricionariedade administrativa como forma a se justificar uma absolvição em sede de processo judicial e não administrativo, por uma aparente inaptidão do sujeito ao qual se disponibilizou a representar todo um conjunto de pessoas, no mínimo, causa estranheza.

A fim de exemplificar com as decisões coletadas na pesquisa aqui apresentada, traz-se a análise a Apelação nº 70056807449, da 22ª Câmara Cível, na qual foi relatora a Desembargadora Marilene Bonzanini, onde defendeu a caracterização da improbidade administrativa, e teve a divergência dos demais desembargadores (Des. Carlos Eduardo Zietlow Duro e Desembargadora Denise Oliveira Cezar) pela inexistência de improbidade na conduta.

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No caso, analisava-se a contratação de 51 (cinquenta e uma) pessoas pelo ex-prefeito de Gramado Xavier, com caráter emergencial, sendo que ainda permaneciam pessoas a serem chamadas de concurso público anterior, ainda vigente. Em sede de 1º Grau, se deu a condenação do réu, por se entender estar configurada a improbidade administrativa. Da mesma forma, entendeu a relatora que restou vencida:

Pois bem.No caso, não há dúvida quanto à ocorrência da ilegalidade, qual seja, a contratação de funcionários sem a observância de concurso público e fora das situações que admitem a contratação emergencial de servidores.Andou bem a sentença quanto ao ponto, afirmando com razão o ma-gistrado singular que conforme demonstrado pelo Ministério Público na tabela das fls. 05/08 dos autos, vários servidores foram contratados de forma “temporária” para exercer atividades típicas e permanentes da Administração, como, por exemplo, médicos, assistentes sociais, operador de máquinas, técnico em enfermagem, psicólogo, professor etc., sem caracterizar necessidade temporária de excepcional interesse público. Além disso, foram contratados servidores para o preenchimento de vagas para as quais havia candidatos aprovados em concurso público, ferindo as disposições do art. 37, II e IX da Constituição Federal. As Leis Municipais invocadas pelo requerido são todas inconstitucionais, pois a contra-tação precária de servidores somente é admissível em situações excepcionais, não abrangendo a execução de funções permanentes que se situam dentro de um campo de previsibilidade e ao alcance do planejamento do gestor da coisa pública, nos exa-tos termos em que sustentou o parquet na petição inicial. (Grifos no original).

Não obstante a isso, houve ainda a discussão acerca da constitucionalidade das leis que teriam autorizado a contratação e a relatora cuidou de trazer os posicionamentos divergentes acerca do fato, no sentido de existirem entendimento de que “alguns tendem não reconhecer a ilegalidade do ato, porquanto o agente público estaria agindo amparado e obrigado pela legislação”. Entretanto, foi categórica ao dizer que no caso era “inviável, no entanto, a aplicação de tal entendimento, considerando que ao tempo das admissões discutidas nos autos o demandado já detinha conhecimento da declaração de inconstitucionalidade das referidas leis”. Deixando claro, outrossim, que no caso, o princípio da discricionariedade administrativa é limitado por força, sobretudo, da Constituição

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Federal, demonstrando a configuração do elemento subjetivo por parte do gestor:

Agindo desta forma, contrariando de forma clara o posicionamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização das contas da Fazenda Pública e em evidente afronta à vontade da Constituição Federal, inclusive contra-tando servidores para funções para as quais já existiam candidatos apro-vados em concursos públicos, não há dúvida de que o demandado agiu com dolo, ainda que não na forma direta, incorrendo em violação aos princípios da Administração Pública.

Entrementes, dos dois votos divergentes, destaca-se o voto do Desembargador Carlos Eduardo Zietlow Duro, onde trata a questão com singeleza e aduz a não necessidade de o gestor público ter o conhecimento acerca do que refere a Constituição em relação a necessidade de concurso público para provimento de cargos, quando não existentes os casos de contratação excepcional, bem como que a LIA não tem por objetivo punir o administrador despreparado e sim apenas o desonesto.

Concernentemente ao mérito, deve ser considerado que o simples fato de haver a nomeação de funcionários para o exercício de cargo em comissão fora das hipóteses de direção, chefia e assessoramento, por afronta ao artigo 37 da Constituição Federal, ou fora das hipóteses de contratação emergencial por si só, não caracteriza a ocorrência de ato ímprobo, na forma do art. 11 da Lei 8429/92, porque o ato, apesar de não atender a preceito constitucional, não significa que necessariamente seja ímprobo, havendo a necessidade de que o agente tenha agido com dolo, visando à pratica do ato lesivo ao ente público sob pena de, não demonstrada a in-tenção do agente, conforme antes narrado, o ato será ilegal mas não ím-probo porque a lei visa punir o administrador desonesto e não o inepto. (...)Ademais, conveniente lembrar que a nomeação, em tais condições, nada mais é do que um ato administrativo que depende de interpretação constitucional, não sendo exigível do administrador público a correta interpretação da norma constitucional.(Grifos próprios).

O argumento aparece mais uma vez, em outra decisão, desta vez na Apelação nº 70052757481, julgada pela 21ª Câmara Cível, de relatoria do Desembargador Francisco José Moesch. Na presente ação discutia-se a contratação de cinco

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servidores (4 para assessor legislativo e 1 para limpeza) por parte do Presidente do Legislativo do Município de São Francisco de Paula, novamente com base em leis municipais que já tinham sido declaradas inconstitucionais. Na decisão de 1º Grau restou elencado pelo juiz singular que “o cumprimento do dispositivo constitucional não depende da declaração de inconstitucionalidade de lei municipal editada em desacordo com a Constituição”. E que “o próprio demandado é responsável não apenas pelas nomeações em desacordo com a Constituição, mas também pela edição da lei inconstitucional, na qualidade de Vereador Municipal e Presidência da Câmara de Vereadores”, embora a iniciativa legislativa tenha sido do então Prefeito à época dos fatos.

Entretanto, no presente caso, não houve a absolvição do acusado, mas sim o reconhecimento da afronta ao artigo 11 da LIA e o consequente reconhecimento da improbidade administrativa. A condenação não se deu em razão das nomeações, mas sim porque ficou evidente, segundo se extraiu do julgado, a má-fé do réu em tentar usar de meios aparentemente legais para encobrir a ilegalidade nas contratações. E é aí que o argumento de que a Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o gestor ou agente inapto foi utilizado. O relator, durante o seu voto menciona que “impende ressaltar que a improbidade administrativa busca atingir o administrador desonesto e que age com má-fé e não o inapto”.

Embora tenha havido a condenação, o que se objetiva destacar é a incidência do argumento de que, uma vez cometida uma irregularidade por conta de suposto desconhecimento legal, caso não se tenha taxativamente convencido o Tribunal acerca da externalização do dolo do agente, embora ferindo regra básica de Direito Administrativo e Constitucional, não se haverá reconhecido o agir ímprobo, vez que não cabe no conceito de improbidade administrativa a inaptidão do agente ou gestor público.

Por fim, e apenas a título exemplificativo, o argumento da inaptidão do gestor público também se faz presente no julgamento da Apelação nº 70058159534, da 21ª Câmara Cível, que teve como relator o Desembargador Arminio José Abreu Lima Da Rosa. No presente caso, a situação analisada versava acerca da celebração de convênios entre o Município de Santa Maria (autorizados pelo ex-prefeito e o então prefeito à época) para com os dois clubes de futebol da cidade, os quais tinham por objeto utilizar a verba destinada nos referidos convênios para a promoção da campanha de Educação Fiscal do Município aos frequentadores dos jogos, promoção de campanha de arrecadação de agasalhos e alimentos durante os jogos e cedência das instalações dos clubes para eventos esporádicos realizados pelo Município.

Segundo o órgão acusador, as verbas destinadas por meio dos convênios não tinham por objetivo a promoção elencada no parágrafo anterior, mas sim, servir

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como “mistificação de transferência de recursos públicos para clubes de futebol endividados, sabidamente vocacionado numerário para amortização de débitos com jogadores e outros débitos dos clubes, o que se espelharia, lisamente, em noticiário da imprensa”. Nas próprias manifestações dos réus, foram admitidas “meras irregularidades formais na prestação de contas”, e desvio da finalidade das verbas, mas que não havia prova do superfaturamento.

Assim, manifestou-se o juízo a quo já em sede de liminar, o que posteriormente apenas foi transcrito pelo Tribunal:

Rejeito a ação, no entanto, porque inexistiu ato de improbidade dos réus (art. 17, §8º da Lei 8.429/92). A imputação se cinge à celebração, em si, dos Convênios pelas partes, que o Ministério Público entende como inadequada. Ocorre que a Lei de Improbidade Administrativa não se destina a punir o administrador inepto ou mesmo incompetente, mas sim o ímprobo e desonesto.(Grifos próprios).

Ademais, ainda acerca da manifestação do Tribunal no caso:

A execução de tais convênios decorreu num quadro de manifesto descontro-le, o que se espelha em notas fiscais relativas a gastos inteiramente divorcia-dos com a sua finalidade, como refeições (fls. 42, 45, 52, 75 a 76), compras em supermercados (fls. 483 a 510), pagamento a jogadores (fls. 654 a 680), diárias de hotel (fls. 740 a 747), reparos em chuteiras e assim por diante.

Restaram, ao final, absolvidos os acusados, sob o argumento de que não houve provas suficientes acerca da intenção em beneficiar os clubes demandados, bem como não ter sido demonstrado o agir doloso dos réus, visto que, em tese, estariam agindo sob a égide de leis municipais.

O que se depreende do presente tópico é que o argumento da “inaptidão ou desconhecimento legal” do gestor público ganha espaço nas fundamentações das decisões quando em determinadas situações, o órgão acusador, que detém o ônus probatório, não consegue demonstrar ou convencer acerca da caracterização da ilegalidade qualificada pelo agir doloso. Mas não a inexistência de provas e sim pela sua “fragilidade”. Em outros termos, desonesto; embora se admita e se reconheça expressamente a irregularidade e a ofensa, sobretudo, aos princípios da Administração Pública.

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Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência

Assim, embora existam críticas acerca da utilidade de um estudo aprofundado de uma teoria da argumentação jurídica em países em subdesenvolvimento ou periféricos, isto é, que ainda trabalham para se firmarem como, de fato, Estados Democráticos de Direito, em razão dos inúmeros fatores que influenciam e dificultam esse caminho, entende-se que através de uma efetiva observação dos critérios e da objetivação de metas é que esses Estados podem se regrar para lograr êxito em seus ideais de institucionalização de uma democracia forte.

Há ainda que se firmar a observância dos procedimentos de argumentação, não apenas em uma ou em outra instância ou apenas na esfera pública, mas sim desde a esfera particular. É por meio dessa busca de um interesse comum, e como já anteriormente falado, interesse de correção nas ações judiciais, nas leis, normas, instituições, entre outras, que se vai caracterizar e, portanto, fundamentar a validade de um discurso e assim, possibilitar o seu controle.

CONCLUSÃO

A pesquisa teve por objetivo principal um diagnóstico e análise sobre a improbidade administrativa, tendo como embasamento a jurisprudência do Tribunal de Justiça Gaúcho. A partir disso, os dados analisados foram coletados no site do Tribunal com as raias de pesquisa descritas na introdução deste estudo.

Buscou-se, portanto, analisar as decisões e verificar a fragilidade nos discursos de aplicação, a partir da ótica da teoria do discurso, oportunidade em que se pactuou semanticamente como sendo “argumentos vazios” aqueles discursos que não conseguem na aplicação reconduzir aos discursos de fundamentação, isto é, não conseguindo reconstruir o caminho até a esfera pública. Desta forma, denominou de “vazios”, os argumentos que no momento do ato decisório se desconectaram dos interesses que emergem da esfera pública.

Assim, partindo-se da análise dos dados coletados, identificou-se os argumentos com maior predominância nas decisões de absolvição, identificando--se a restrição dada a LIA acerca dos elementos necessários para a configuração da corrupção, no que tange a necessária comprovação do elemento subjetivo (dolo) a partir do conjunto probatório frágil e a sua ligação com a interpretação de ilegalidade e improbidade, bem como a inaptidão ou desconhecimento do gestor público.

Sabe-se da limitação fática da análise detalhada de todas as decisões coletadas. Entretanto, tal limitação não prejudica o mérito do presente trabalho, pois a sua pretensão é diagnosticar e analisar os elementos argumentativos

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Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase

predominantes, o que se fez através de uma análise exemplificativa das decisões, justificada por meio da citação dos acórdãos que mais atendiam a proposta inicial.

Assim, não foi pretensão do trabalho dizer se uma decisão foi dada de forma correta ou não, mas sim, analisá-las sob a ótica da teoria do discurso e, a partir daí lembrar que a função do discurso de aplicação é a de levar a norma geral para ser aplicada em uma situação específica, no caso, os atos de improbidade administrativas levados à análise do Poder Judiciário através das Ações Civis Públicas analisadas. Ou seja, se a LIA objetivou a proteção da moralidade e probidade administrativas, nos discursos de aplicação analisados, ter-se-ia que se demonstrar o caminho percorrido pelo julgador para se chegar a exclusão ou inclusão do fato a norma geral. Assim, indicou-se os discursos de aplicação que, em tese, não fizeram o retorno ao discurso de justificação (fundamentação) de forma totalmente exitosa.

A interpretação que conduz o discurso de aplicação que busca indicar e descrever o fato para o juízo de adequação da norma não pode desconsiderar as condições para a satisfação do bem jurídico protegido pela Lei de Improbidade Administrativa, o que se fará ante uma situação específica.

Portanto, as informações trazidas, possuem o propósito principal de contribuição para com o estudo da improbidade administrativa e das patologias corruptivas, ainda que não possua um viés totalmente crítico mas, descritivo e analítico. Espera-se ter-se atingido o objetivo de propiciar condições para o debate sobre como ocorre o enfretamento da corrupção (aqui entendida em seu sentido lato) pelo Poder Judiciário, em especial, pelo judiciário gaúcho.

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TERCEIROS CONDENADOS EM AÇÕES CIVIS PÚBLICAS POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA:

UMA ANÁLISE DOS CASOS CONCRETOS1

Eduarda Simonetti Pase2

Janriê Rodrigues Reck3

INTRODUÇÃO

A corrupção como tema sociológico, político e filosófico, demanda reflexões das mais diversas matizes e influências, perpassando especialmente pelo aspecto histórico, quando então se percebe que até nos documentos da mais remota antiguidade são encontradas notícias atinentes a sua ocorrência.

Assim, depreende-se que não apenas o agente público (no sentido legal da expressão) concorre para a produção e reprodução de condutas que afrontem o patrimônio público de modo a alimentar o fenômeno de má gestão que se encontra instaurado nos Estados Democráticos, sobretudo, no Brasil.

1 – O presente artigo é fruto dos debates do “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa

sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e Sociedade:

Causas, Consequências e Tratamentos”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo

as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas –

CIEPPP.

2 – Graduanda do Curso de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul. Bolsista de Iniciação Cien-

tífica do CNPq sob a orientação da Professora Dra. Caroline Müller Bitencourt. E-mail: eduarda.

[email protected].

3 – Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor da Graduação, Mestrado e Doutora-

do, da Universidade de Santa Cruz do Sul. Procurador Federal. E-mail: [email protected].

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Eduarda Simonetti Pase e Janriê Rodrigues Reck

O autor, o sujeito ativo próprio do ato de improbidade administrativa é o agente público. Entretanto, muitas vezes este agente público comete o ato ímprobo em parceria, isto é, em conluio com terceiro (particular ou agente público estranho às funções públicas por aquele exercidas).

Assim, está-se diante da corrupção sistêmica, onde a participação do terceiro na execução dos atos corruptivos provoca danos globais, com efeitos nefastos não só para o Estado, mas inclusive na economia, quando o suborno para a facilitação de cartéis e monopólios dos mais diversos tipos ocorrem, por exemplo. Outrossim, no campo do meio ambiente, quando a corrupção e atuação deficiente (ou induzida através do pagamento de propina pelo interessado) dos órgãos públicos no controle da emissão de poluentes, desmatamentos ocorrem, todos com efeitos futuros ou até mesmo imediatos na qualidade de vida. E também, a título de exemplificação, a corrupção produz efeitos na saúde, com gastos desnecessários e desperdícios, com contratações dirigidas a distribuidores de medicamentos, com contratos de gestão ineficientes (que visem beneficiar o contratado) para a administração e gestão de hospitais públicos, dentre tantas outras situações.

São nessas circunstâncias que a inserção do terceiro partícipe ganha forma.E uma vez havendo a necessidade de aumentar o espectro das formas de controle dos meios destruidores do patrimônio público, é que a Lei nº 8.429/92, dando seguimento ao processo de amadurecimento da cidadania instaurado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, inseriu no seu artigo 3º, a possibilidade da punição de forma solidária do terceiro coautor da conduta incidente em umas das hipóteses de improbidade previstas na lei, podendo-se, sobretudo, aplicar-lhes, no que couber, as sanções expressas no artigo 12 da referida lei.

E é nesse viés que o presente trabalho debruça seus esforços, isto é, i) investigar a figura do terceiro partícipe como coautor do ato de improbidade administrativa, indicando os efeitos e consequências decorrentes da crescente participação de particulares na contribuição para a malversação da coisa pública, ii) diagnosticar que tipo de improbidade pode incidir um terceiro e, uma vez ocorrendo a incidência, iii) evidenciar a necessidade de também sancionar a sua participação como forma de diminuir a impunidade tão presente no que tange a gestão pública.

Tanto é assim que é evidente que a proibição de subornos ou propinas no setor público é a principal e clássica medida contra a conduta corrupta e ímproba envolvendo figuras alheias aos quadros de servidores públicos, embora, em alguns casos, existam opiniões entendendo que seria necessário equiparar o quantum

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Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos

recebido pelo agente, ao menos a efeito de enquadrar sua responsabilidade em um nível adequado. Tal entendimento decorre, por conseguinte, da ala da doutrina que interpreta a lei de improbidade administrativa como uma lei de natureza penal e não civil-administrativa, a qual não nos perfilamos.

Entende-se, ademais, que não só o administrador público é que possui o dever de zelar pela não malversação da coisa pública. Qualquer pessoa tem esse direito, mas, sobretudo, o dever de atender aos ditames legais de respeito e guarda para com o patrimônio público, especialmente o particular que possui interesse em contratar com a Administração Pública. Isto, pois, deve realizar a oferta do seu produto de forma justa e equânime, exercendo o seu direito de fiscalização dos contratos administrativos, por exemplo.

Para que fosse possível a propositura do presente objeto de estudo, buscou-se investigar na jurisprudência, especificadamente na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como se dá o trato para com terceiros réus em ações civis públicas por ato de improbidade administrativa. O levantamento de acórdãos foi feito no website www.tj.rs.jus.br, no espaço Jurisprudência, por meio da guia Pesquisa de Jurisprudência. Utilizou-se a ferramenta de busca avançada, objetivando-se delimitar o lapso temporal da pesquisa em um ano, tendo sido selecionados, desta forma, acórdãos julgados entre 24.09.2013 e 24.09.2014.

Ainda, para analisar os julgados, alguns limites utilizados precisam ser aclareados e explicados, a fim de indicar e justificar a metodologia de pesquisa e análise, ou seja, demonstrar o padrão de levantamento de dados que resultou, portanto, nos documentos que serão citados e analisados. Não obstante, é preciso referir que se trabalhou conscientes da existência de limites de investigação que possui um estudo empírico, mormente, ante a impossibilidade de se exaurir o número de julgados.

Desta forma, demonstrativamente, o preenchimento dos campos para a pesquisa quantitativa da área de busca avançada se deu da seguinte forma: Tribunal: Tribunal de Justiça do RS; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; Ementa4; Seção: Cível5; Tipo de processo: Todos6; Número: Nenhum; Comarca

4 – Visto que, a alternativa, que seria busca por inteiro teor filtraria acórdãos que possuíam apenas

referência à temática, com busca na esfera cível.

5 – Porque o filtro do TJ/RS ao selecionar também a seção crime reporta para os crimes de corrupção

ativa e passiva, os quais não são objeto do presente estudo. Por isso da utilização da expressão improbi-

dade administrativa como sinônimo de corrupção.

6 – Porque ao selecionar um tipo de processo específico, o filtro não corresponde com o número real de

ações, muitas vezes zerando a busca.

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Eduarda Simonetti Pase e Janriê Rodrigues Reck

de origem: Nenhuma; Tipo de decisão: Acórdão; Data de julgamento: Nenhuma; Data de publicação: 24/09/2013 até 24/09/2014; Procurar resultados: com todas as palavras: improbidade administrativa; com a expressão: ação civil pública; com qualquer uma das palavras: nada; sem as palavras: nada; Classificar: por data decrescente.

Das ferramentas de pesquisa acima descritas, obteve-se o resultado de 211 (duzentos e onze) decisões, todos referentes a ações civis públicas por ato de improbidade administrativa. Desses 211 acórdãos, para a efetivação do presente trabalho, elegeram-se 2 (dois) acórdãos onde se deu a condenação de terceiros, nos termos do art. 3º da LIA. O critério de seleção foi estabelecido para que se oportunizasse a análise de um número maior de informações dentro de cada acórdão, isto é, priorizaram-se acórdãos que tratassem de formas de improbidade diferentes, que envolvesse particulares pessoas físicas e também pessoas jurídicas e, principalmente que abordassem as duas formas de participação, isto é, indução e concorrência por parte do terceiro externo à Administração Pública.

Desta forma, os acórdãos selecionados para serem trabalhados foram: Apelação nº 70059571232; Apelação nº 70042567016 (bem como seus embargos de declaração, de nº 70058304718).

Trabalha-se, portanto, com uma metodologia que se divide em dois momentos, quais sejam: primeiramente, tem-se uma dimensão de pesquisa quantitativa, isto é, de levantamento de dados onde foram coletados os acórdãos, conforme anteriormente descrito. Num segundo momento, a pesquisa apresenta um caráter qualitativo, etapa esta que consiste na eleição dos critérios considerados para a seleção dos três acórdãos e sua posterior análise, para ao final, propiciar ao estudo o debate acerca das implicações teórico-práticas que a figura do terceiro ocupa na Lei de Improbidade Administrativa e no cenário de práticas corruptivas.

1. O TERCEIRO NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

SOB A ÓTICA DA ÉTICA E INTERESSE PÚBLICOS

Buscar-se-á no presente tópico abordar a figura do terceiro no âmbito da improbidade administrativa, isto é, a previsão legal da possibilidade de se alcançar pessoas externas à administração pública com as sanções cabíveis nos casos de improbidade configurada. Para tanto, não se faz uma descrição pura e simples do terceiro como sendo aquela figura externa a administração pública apenas. Parte-se em um primeiro momento da explicação dos interesses, que, como observa Hume

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Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos

(2001, p.535) “é a amarra das paixões e dos vícios, sobretudo porque oferece a confiança necessária na regularidade futura da conduta dos homens”.

Há que se ter em mente as diversas conotações que o termo interesse adquiriu durante toda a história do homem. Filgueiras (2012, p.131) lembra que “a etimologia da palavra interesse, em seu sentido moderno, remete à ideia de lucro ou, em outras palavras, aos benefícios obtidos por meio de transações comerciais”. Entretanto, é importante esclarecer que a palavra interesse na dimensão da política ou da administração pública, é um conceito que envolve muito mais os seus aspectos morais do que propriamente uma transação comercial (FILGUEIRAS, 2012).

Nesse sentido é que se pode afirmar que a conotação da expressão interesse mudou com a passagem do antigo ao moderno (mundo) e que deixou de ser considerada em sentido negativo, ao qual era vinculado à própria ideia de corrupção, momento em que se tornou um elemento positivo da ação do indivíduo. Disso decorre a ideia de Hirschman (1979) ao afirmar que a relação de interesses “é inerente à modernidade capitalista, que só pode admitir a democracia como regime político”. Mas não se trata de qualquer democracia. Trata-se de uma democracia que permite ao seus indivíduos racionais e egoístas que a formam na modernidade, representarem os seus interesses na esfera pública. Daí a conclusão de Filgueiras (2012, p.134) que “a relação entre interesse e corrupção só pode ser pensada no plano dos regimes democráticos”.

Pode-se, assim, apontar como componente central da conduta corrupta a deslealdade, a qual se caracteriza na atuação contrária aos interesses da sociedade, nos quais a sua defesa está depositada por meio de um ato de vontade de quem legitimamente deles é titular, isto é, o agente público. E nesse ponto é que concorre para a corrupção na vida pública a cumplicidade privada, externalizada por meio do interesse.

Assim é que o terceiro adentra na improbidade administrativa e na atual legislação brasileira, a Lei nº 8.429/92 representa importante avanço no enfrentamento da matéria, já que como anteriormente informado, na Lei que a antecedia, qual seja, Lei nº 3.502/58 a participação dos terceiros alheios à Administração Pública na prática de atos corruptivos não era punida, o que gerava uma constante e significativa sensação de impunidade, já que somente se punia as condutas corruptas praticadas por servidores públicos.

Entretanto, embora a previsão da figura do terceiro na lei de improbidade administrativa tenha significado importante avanço para o aprimoramento e amadurecimento da democracia brasileira, pois como aduz Leal (2013, p.48),

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Eduarda Simonetti Pase e Janriê Rodrigues Reck

considerando-se que um dos elementos que se tornam essenciais para a constituição de um Estado Moderno nos moldes Contemporâneos “é a formação de uma administração burocrática em moldes racionais”, e que esse processo de formação se pautou na substituição, ainda que de forma gradativa “de um funcionalismo não especializado e regido por orientações mais ou menos discricionárias, por um funcionalismo especificamente treinado e politicamente orientado com base em regulamentos (normas) racionais”, não é suficiente para esgotar o problema do interesse privado projetado na esfera pública.

É necessário,

na democracia contemporânea, que o Poder esteja moldado por uma das formas mais apuradas de racionalidade que é a LEI, eis que a história tem demonstrado que foi possível manipular e mesmo privatizar o proces-so legislativo nas democracias representativas, inexistindo, em algumas normas de regulação social, adesão da soberania popular. (LEAL, 2013, p.49. Grifos no original).

Para que a legitimidade da legalidade não seja manipulada de forma a inviabilizar o exercício democrático, antes mesmo dos mecanismos de controle, faz-se necessário entender que terá legitimidade, a legalidade instaurada a partir do consenso sobre a validez dos conteúdos da lei. E, considerando-se que os seus conteúdos são mutáveis, entende-se ser um critério importante e racional que possibilita o controle dessa legitimidade, o consenso e os procedimentos ligados a ele, por óbvio, estando fundamentados nos parâmetros vinculantes, sejam constitucionais ou infraconstitucionais.

O que se quer dizer é que, no que tange a Administração Pública e suas relações com terceiros estranhos ao seu quadro de servidores e demais pessoas equiparadas, os seus atos, sejam eles de qualquer espécies, para que não sejam passíveis de desvios, no sentido de manipular o meio para buscar um fim ilícito, é importante a justificação através do consenso e dos seus procedimentos vinculados, como por exemplo, quando refere Leal ao considerar comunicativas as interações em que as pessoas envolvidas, sejam elas físicas ou jurídicas, põem-se “de acordo para ordenarem seus planos de ação e de vida, sendo que o acordo alcançado em cada caso mede-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez de suas intenções e projetos – fundadas estas em valores constitucionalmente albergados” (LEAL, 2013, p. 51). Assim, não havendo essa

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Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos

justificação, por meio deste consenso entre os atores, quando esses planos de ação e de vida não sofrerem argumentação válida, no sentido de fundamentarem-se nos valores constitucionalmente albergados, é que incide a prática ilícita por parte do terceiro, participante das relações com a Administração Pública (induzindo ou concorrendo), voltando os seus interesses para esta.

Nesse sentido:

Enquanto que no agir social estratégico os sujeitos atuam uns sobre os outros para ensejar o atendimento de interesses meramente pessoais ou corporativos, independentemente dos aspectos comunitários e univer-sais envolvidos (gerando a ética instrumental, viciada no seu processo constitutivo e finalístico, eis que manipuladora dos diálogos e decisões políticas); no agir social comunicativo (...) – fundador da ética discursiva e responsável – um é motivado racionalmente pelo outro à ação de ade-são a projetos e demandas comunitariamente ajustadas (gerando a ética emancipadora de condutas que pretendem constituir ações civilizatórias de liberdade e igualdade dos sujeitos sociais, a partir do reconhecimento das diferenças de cada qual). (LEAL, 2013. p.53. Grifos no original).

Mas ainda não basta que o sistema esteja posto e que seja observado formalmente no cerne das relações sociais e institucionais, especialmente da Administração Pública. Mostra-se primordial atentar para a forma procedimental e programática como tais relações comportamentais ocorrem. Isto, pois, na gestão pública, por exemplo, no cotidiano de quem a forma, podem essas pessoas (físicas ou jurídicas) atuarem de forma lícita e juridicamente, entrementes, de forma isolada, podem estar “atendendo interesses muito mais privados do que públicos, individuais do que coletivos, econômicos do que sociais”7 (LEAL, 2013, p. 54).

É por isso que se afirma que, além de ser dever dos poderes estatais velar pela estrita observância dos ditames legais e fundamentais dos atos administrativos em geral, toda e qualquer pessoa, seja física ou jurídica, possui o dever e direito de também atentar para a observância de tais premissas, sob pena de violar seriamente o sistema jurídico regulador das regras de constituição e ordenação social, tanto pela via da ação, como da omissão (LEAL, 2013).

7 – Novamente aqui a teoria da ética discursiva vai ajudar a enriquecer a abordagem sobre as condições

e possibilidades democráticas da Administração Pública (LEAL, 2013, p. 54).

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Eduarda Simonetti Pase e Janriê Rodrigues Reck

Assim, uma Administração Pública que se queira ética, embora desafiador, deve priorizar a busca por mecanismos de fundamentação, de ação e de estabelecer/reestabelecer a paridade entre autonomia privada e autonomia pública, com base na teoria do discurso da democracia.

Nesse sentido, portanto, a participação do terceiro, no que tange a lei de improbidade administrativa, na dicção legal8, ocorre por indução ou concurso para a prática do ato de improbidade administrativa. Da mesma forma, sempre que, sob qualquer forma, direta ou indireta, auferir benefício ilícito está passível de sanção.

Sobre o tema observa Marcelo Figueiredo que, “o terceiro, o particular, aquele que não é servidor ou agente público, segundo a lei, somente poderá ser co-autor ou participante na conduta ilícita” (FIGUEIREDO, 2000, p.34-35). A interpretação nesse sentido ocorre de forma lógica, porque de fato, quem dispõe efetivamente dos meios e condições para a realização das condutas materiais, sejam elas positivas ou negativas, é o agente ou servidor público, uma vez que é dele o poder de praticar o ato lesivo. Entrementes, o que vislumbra o artigo terceiro é que, embora seja o agente ou servidor público quem esteja com melhores formas de atuar ou não atuar para praticar a lesividade, isso não impede que o “particular ou terceiro seja mentor intelectual da ação de improbidade, seja o verdadeiro ‘gerente’ dos atos ilícitos” (FIGUEIREDO, 2000, p.34-35). Nesse ponto, a lei é objetiva e clara, isto é, para os terceiros, as figuras de incidência limitam-se a duas ações: induzir ou concorrer.

As formas indicadas no texto do artigo terceiro podem ser explicadas da seguinte forma:

Indução é o ato de instigar, sugerir, estimular, incentivar agente público a praticar ou omitir ato de ofício caracterizador de improbidade admi-nistrativa. O concurso é atividade de auxílio, de participação material na execução por agente público de ato de improbidade administrativa. Auferir benefício é tirar proveito patrimonial, direto ou indireto, de ato ímprobo cometido por agente público, seja ajustado previamente com este, seja sem associação ilícita, agindo, nesse caso, o terceiro, de má-fé, ciente da improbidade cometida, dela se locupletando. (PAZZAGLINI FILHO, 2002, p.25. Grifos próprios).

8 – Lei nº 8.429/93, Art. 3º As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo

não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie

sob qualquer forma direta ou indireta.

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Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos

A extensão da lei aos particulares considera a participação no ato de improbidade administrativa – que se dá por meio da indução ou da concorrência – e a auferição de benefício que decorre do ato praticado.

Nessa linha, Jacintho de Arruda Câmara salienta a título exemplificativo que,

um particular que tenha praticado ato de improbidade em conjunto com agente público (como na hipótese de celebração de contrato de locação a preço inferior ao mercado em virtude de conluio – art. 10, IV) será al-cançado pela lei. Esta participação, é claro, depende da intenção, do dolo, da má-fé do particular. No outro caso, quando se fala do benefício aufe-rido está se pretendendo atingir aqueles que, mesmo não participando da prática do ato (lembre-se que na celebração de contratos o particular participa efetivamente da prática do ato), tenha ‘dolosamente’ recebido, direta ou indiretamente, benefício em função da improbidade (como na hipótese de, em razão de recebimento de propina, agente público tenha frustrado a licitude de processo licitatório – art. 10, VIII). (CÂMARA, 2001, p.209).

Portanto, a participação de terceiro, expressamente estabelecida com agente público para a prática por ato de improbidade administrativa, que aufira ou não, vantagem ilícita dele decorrente, ou mesmo sem combinação prévia, mas valendo-se indevidamente de ato ímprobo executado, tendo ciência da improbidade administrativa e da ilicitude do benefício por ele alcançado, configura ato de improbidade administrativa impróprio, e o terceiro, que assim agir, consequentemente, fica sujeito a todas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa, com exceção, é obvio, da sanção de perda da função pública, caso não seja também agente público.

O beneficiário, estranho aos quadros da Administração Pública, devido a sua condição se torna responsável de forma solidária pelo ressarcimento do dano causado à Administração Pública, pois também extraiu do dano efeitos positivos na sua órbita de interesses, de modo que, aproveitou-lhe da lesão ao interesse público. “Havendo nexo etiológico entre o seu benefício e o ato de improbidade administrativa, será cabível a imposição das sanções respectivas” (MARTINS JÚNIOR, 2002, p. 290).

Como já expressado, a lei não pune apenas o que se beneficiou do ato de improbidade, seja de forma direta ou indiretamente, pois não faz distinção. Pune

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também aquele que induziu ou concorreu, de qualquer forma, para a prática do ato. Não obstante, por força do artigo 6º9 da Lei de Improbidade, uma vez havendo benefício por parte do terceiro, também este deverá perder em favor do erário os bens ou os valores que ilicitamente acresceu ao seu patrimônio. A regra não se limita ao beneficiário. O partícipe, ou seja, aquele que induziu ou concorreu, no caso de que, ainda que por simulação tenha adquirido bem que seja produto de enriquecimento ilícito, deverá restituir.

Uma vez que se sancione terceiros alheios aos quadros da Administração Pública por atos de improbidade administrativa praticados, não se pode ter a expectativa de que a ética pública e a ética privada estejam dissociadas completamente uma da outra, já que como mencionado, a lógica dos interesses consideram os fatores culturais e comportamentais dos indivíduos. E, como o sistema capitalista só encontra guarida nas democracias como regimes políticos e que a relação entre interesse e corrupção só pode ser pensada no plano dos regimes democráticos, haverá a figura do terceiro externo à Administração Pública agindo conjuntamente com o agente projetando o seu interesse a ser realizado dentro da seara pública. É o que passa a ser demonstrado empiricamente através da análise dos julgados coletados a partir da metodologia descrita preliminarmente.

2. EM QUE MOMENTO E QUAL TEM SIDO O OBJETO PREPON-

DERANTE NA CONDENAÇÃO DE TERCEIROS: UMA ANÁLISE CON-

CRETA DAS APELAÇÕES Nº 70059571232 E Nº 70042567016

O acórdão nº 70042567016 trata-se de uma apelação cível julgada pela Terceira Câmara Cível do TJ/RS, de relatoria do Desembargador Nelson Antônio Monteiro Pacheco, tendo como Comarca de Origem a de Pelotas. Os apelantes são Fernando Stephan Marroni, ex-prefeito do Município de Pelotas e o Diretor da empresa Antônio Erasmo Rodrigues Matias Me, Antônio Erasmo Rodrigues Matias.

Na ação, na qual houve a condenação dos réus, o Ministério Público buscava a declaração de improbidade da conduta praticada pelos réus e a consequente condenação no artigo 12, III, da Lei nº 8.429/92, pelo fato de terem firmado termo de uso de bem público do imóvel situado em Pontas da Serra, Capão do Leão, para

9 – Lei nº 8.429/92, Art. 6º No caso de enriquecimento ilícito, perderá o agente público ou o terceiro

beneficiário os bens ou valores acrescidos ao seu patrimônio.

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fim de exploração do solo para extração de minerais, sem respeitar os ditames da Lei nº 8.666/93.

Segundo se depreende da leitura do acórdão, o próprio relator em momento de seu voto, assim se expressa:

De fato, da leitura do termo de concessão se verifica que a motivação do corréu Fernando Stephan Marroni, ex-Prefeito Municipal de Pelotas foi beneficiar o empresário Antonio Erasmo Rodrigues Matias, na medida em que não oportunizou a outras empresas manifestação de interesse na exploração da atividade extrativista.(...) A propósito, voltando à hipótese dos autos, tenho que restou comprovada a prática de atos ímprobos pelos réus em decorrência de fraude em lici-tação de exploração de atividade extrativista de minérios, mostrando-se correta a sentença de parcial procedência.

A decisão do juízo a quo reconheceu a participação do réu Antônio, nos termos do art. 3º da LIA, ao expressar que “a conduta do demandado Antônio, por sua vez, embora não sendo ele agente público, merece ser sancionada na forma do disposto no art. 3.° da Lei n.º 8.429/92”.

A ilegalidade (nos termos do acórdão – qualificada pelo agir doloso dos réus) ocorreu já no momento anterior a efetivação da contratação pública da exploração da atividade pela empresa do réu Antônio, oportunidade em que o gestor público dispensou imotivadamente a licitação por, em tese, tratar-se de permissão de uso de bem público. Aqui, entender-se-á por contratação pública, o que trabalham Bitencourt e Reck (2014, p.287-288):

Assim, a contratação pública é uma sucessão de decisões, decisões estas que formam unidades processuais, e estas unidades processuais formam um processo maior. Cada uma destas decisões são decisões “possíveis”, isto é, em potência, não necessariamente ocorrendo, mas inseridas nos jogos de linguagem da lei. As decisões relacionam-se umas com as outras, formando novamente unidades. É importante dizer que tanto estas de-cisões quando as unidades formadas pelos conjuntos de decisões são decisões regradas pelo ordenamento jurídico. Deste modo, tem-se como contratação pública esta sucessão de decisões jurídicas que são regradas

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pelo ordenamento. Como são diferentes decisões, tem-se diversas regras diferentes. Novamente o conceito de rede é importante, uma vez que cada decisão, cada unidade processual e o processo todo de contratação públi-ca estarão regidas por diferentes normas, e submetendo-se a diferentes processos de controle.

Ocorre que o termo celebrado entre as partes, segundo restou entendido tanto pelo juízo a quo, como pelo juízo ad quem, tratava-se de concessão de exploração de uso público, sendo necessária portanto a realização do certame licitatório, uma vez que a atividade não está abrangida pelas hipóteses legais de dispensa ou inexigibilidade de licitação, o que não ocorreu. Noutros termos, “a controvérsia reside, portanto, na definição da obrigatoriedade ou não da realização de procedimento licitatório para a consecução do ato, assim na verificação de existência de dolo na conduta dos requeridos”.

Assim, os argumentos utilizados pelos réus em suas defesas, foram no sentido de que o termo era de permissão e não concessão de uso de bem público, como constava no nome do documento. Entretanto, da análise do termo tanto pelo juízo de primeiro grau, como de segundo, concluíram que o termo utilizado para formalizar o uso real do bem público pela empresa do réu, na realidade, não se amolda, com perfeição, a nenhuma das figuras jurídicas existentes no ordenamento jurídico pátrio, embora a atividade exigisse termo de concessão de exploração. Nesse sentido, “o que pode a autoridade municipal é conceder a licença para a exploração da área objeto da lavra, não assim dispensar a licitação para a concessão do bem público à exploração mineral”.

Assim, embora verifique-se figura híbrida, o ato amolda-se à concessão de uso: contrato administrativo, sinalagmático, comutativo, realizado in-tuito personae e que faculta ao particular a utilização privativa do bem público, a fim de que a exerça de acordo com a sua destinação. Ressalve-se, a propósito, que a ausência de registro da concessão não pos-sui o condão de afastar a qualificação do instituto.Destaque-se, ainda, que a impropriedade técnico-jurídica do ato ques-tionado não pode, agora, servir de motivo justificador para que seja o instrumento enquadrado na figura jurídica que melhor convém aos requeri-dos - permissão de uso, pois dispensaria licitação consoante alguma doutrina.Ademais, refira-se que presente estivesse a motivação social na ação praticada

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Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos

pelos réus, conforme afirmaram em suas respostas, estar-se-ia diante de concessão de direito real de uso, e não permissão, sendo, para a primeira, necessária a licitação.

Não obstante a isso, destacou o juízo ad quem que mesmo que o ato firmado pelos demandados fosse considerado permissão de uso, a necessidade da licitação in casu ainda se faria presente, vez que deveria ter sido assegurado o tratamento isonômico aos administrados.

Ainda no mesmo linear, manifestou-se o Desembargador Eduardo Delgado, revisor do processo, o qual corroborou o entendimento dado pelo relator.

Na esteira do asseverado pelo e. Relator, a dispensa ou inexigibilidade de licitação para a delegação do uso de bem público carece de motivação legítima, tal qual o instrumento de concessão. A exceção à regra reclama cabal demonstração da dispensa ou inexibilidade.Neste sentido afigura-se arbitrário o impedimento de outros interessados para contratarem com o poder público, seja para o uso do bem imóvel público, seja para o exercício da atividade de extração de minerais – pois em franca ofensa ao disposto na Lei nº 8.666/93, e ao art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal.Além do mais, não evidenciado interesse público na finalidade da con-cessão de uso havida, tampouco na opção pela afronta à Lei nº 8.666/93. Em especial diante da indicação de 8 ou 9 empregados registrados pela empresa ANTÔNIO ERASMO RODRIGUES MATIAS ME

Daí porque indagar-se da possibilidade de voltar os olhos ao dever de lidar com o interesse público a partir de um aspecto objetivo, isto é, o gestor público, ao aceitar a responsabilidade de gerir a coisa pública, não teria deveres de conduto aos quais recebe uma imputação em caso de não cumprimento ou afronta ao interesse público? Valendo-se mais uma vez de Bitencourt e Reck,

Importaria aqui saber os motivos que o levaram a se afastar do interesse público (se foi ele simplesmente um “mau” gestor ou alguém que se be-neficiou de situações ilícitas?). Todas estas reflexões inserem-se em um contexto de pluralidade semântica e contínuo abandono do espaço públi-co em favor do privado, ou, ainda em observações mais radicais, porém

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altamente coerentes, o progressivo declínio da noção de público em favor de um privado (enquanto sentimento, enquanto família e propriedade, etc.) que se expande e invade as considerações públicas (SENNETT, 2011). (BITENCOURT; RECK, 2014, p.282-283).

Assim, partindo-se do pressuposto da contratação pública como processo e de que a validade do contrato ou ato administrativo é expressada a partir de diferentes dimensões, como por exemplo, competência, forma e validade, pode--se afirmar que a finalidade da contratação pública é, portanto, a satisfação do interesse público. Daí porque a partir de tal dimensão, a satisfação do administrado deve ocorrer em todos os momentos do contrato (visto como processo). Outrossim, é possível dizer que hodiernamente, o perfeito cumprimento do contrato “se exaure no adimplemento da obrigação principal, haja vista a necessidade de se observar tal princípio da primazia do interesse público antes, durante e depois da realização contratual” (BITENCOURT; RECK, 2014, p.286).

Já o acórdão nº 70059571232, trata-se de uma apelação cível julgada pela 22ª Câmara Cível do TJ/RS, de relatoria do Desembargador Carlos Eduardo Zietlow Duro, tendo como Comarca de Origem a do Município de Três Passos. Os apelantes são João Pedro Ferreira de Campos, Lotário Real, Valmir Aquiles Fouletto, Comércio De Produtos Elétricos CS LTDA. e Ulisses Vanderlei Costa, tendo como interessados o Município de Bom Progresso e apelado o Ministério Público do Estado. O Tribunal, à unanimidade, deu parcial provimento ao apelo do réu João Pedro Ferreira de Campos (ex-prefeito) e negou provimento ao apelo de Valmir Aquiles Fouletto, Comércio de Produtos Elétricos CS LTDA e Ulisses Vanderlei Costa.

O presente acórdão traz três casos de improbidade reconhecida envolvendo figuras externas aos quadros da Administração Pública, sendo que os três casos são decorrentes de um fato específico, qual seja, a simulação de comissão de licitação no Município de Bom Progresso, por parte do então prefeito à época dos fatos, o réu João Pedro Ferreira de Campos. A falha na comissão de licitação gerou a ausência de controle dos processos licitatórios, onde as decisões se concentravam na pessoa de João Pedro (ex-prefeito) e do então Secretário da Administração (falecido em 1998), a qual teria propiciado a prática de oito licitações simuladas, das quatorze que foram realizadas no ano de 1996.

Das oito licitações fraudadas, o acórdão trata de três, as quais passam a ser explicadas brevemente, sendo identificadas a partir de agora no texto, cada qual

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da seguinte forma: 1º fato: o caso onde os envolvidos são João Pedro (ex-prefeito) e Lotário Real (terceiro); 2º fato: o caso onde os envolvidos são João Pedro (ex-prefeito) e Valmir Aquiles Fouletto (terceiro) e; 3º fato: o caso onde os envolvidos são João Pedro (ex-prefeito) e Ulisses Vanderlei Costa, sócio-gerente da empresa Comércio de Produtos Elétricos CS LTDA (terceiro).

O réu João Pedro Ferreira de Campos foi sancionado nos termos do art. 9º, IX e art. 11, caput, da Lei nº 8.429/92 e de forma solidária aos demais réus Lotário, Valmir, Ulisses e Comércio de Produtos CS LTDA. O réu Lotário Real (mecânico), Valmir Aquiles Fouletto e Ulisses Vanderlei Costa tiveram suas condutas enquadradas no art. 10, incisos I e VIII, da Lei nº 8.429/92. A empresa Comércio de Produtos Elétricos CS LTDA foi enquadrada no art. 10 da Lei nº 8.429/92. Todos os réus externos aos quadros de servidores da Administração Pública foram condenados, além de outras sanções, de forma solidária com o réu João Pedro (ex-prefeito) ao ressarcimento integral do dano10.

Desta forma, consistiu o 1º fato na simulação de processo licitatório na modalidade carta-convite para reforma de um micro-ônibus, onde se deu a participação na forma de concorrência por parte do terceiro Lotário Real (mecânico) para com o então ex-prefeito, réu João Pedro. Nos termos do acórdão:

Em fevereiro de 1996, o ex-Prefeito Municipal JOÃO PEDRO FERREI-RA DE CAMPOS e LOTÁRIO REAL, reboquista contratado para a prestação de serviço, frustraram a licitude de processo licitatório para a realização de reforma em um micro-ônibus pertencente ao órgão públi-co, incorporando João Pedro R$ 3.300,00 a título de renda pública, me-diante simulação, havendo um simulacro de licitação com Carta-Convite nº 03/96, para reforma geral da lataria do micro-ônibus da Prefeitura,

10 – A apelação teve parcial provimento ao apelo do réu João Pedro, resultando o seguinte disposi-

tivo: As demais penas aplicadas a JOÃO PEDRO, assim como as sanções impostas aos demais réus,

LOTÁRIO, VALMIR, ULISSES e COMÉRCIO DE PRODUTOS CS LTDA., restam mantidas, por-

que adequadas às condutas praticadas. Por estes fundamentos, dou parcial provimento à apelação do

réu JOÃO PEDRO FERREIRA DE CAMPOS para reduzir a penalidade de suspensão dos direitos

políticos a oito anos e a penalidade de proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefí-

cios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa

jurídica da qual seja sócio majoritário, ao prazo de oito anos, bem como para afastar a multa equiva-

lente a nove vezes o valor do acréscimo patrimonial e para a redução da multa a seis vezes o valor da

remuneração mensal de janeiro de 1996, devidamente atualizada pelo IGP-M. (Grifos no original).

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incluindo material, mão-de-obra e pintura geral, com aparente legalida-de, enquanto o fim era de apropriação, acordando Lotário com João Pe-dro o valor de R$ 1.500,00, somente para serviço, sem material, e não os R$ 4.800,00 constantes na proposta, havendo irregularidades nas demais cotações, bem como nas assinaturas dos convites, realizado o julgamento das propostas pelo demandado João Pedro e Pedro Bueno F. da Cruz, que sequer era membro da Comissão. Expôs que a nota fiscal nº 013, emitida por Lotário no valor de R$ 4.800,00, referente a serviço e material, permi-tiu a João Paulo a emissão de notas de empenho de R$ 4.800,00, emitin-do dois cheques, endossados, recebendo Lotário sua parte, R$ 1.500,00, em dinheiro. (Grifos no original).

É interessante referir que mesmo com a aparente legalidade da comissão de licitação (pois existia formalmente), a improbidade ocorreu e que “até mesmo a forma eleita pelo legislador como meio para se inibir que ocorra os direcionamentos de licitações, quando existente mesmo a intenção de fraudar e obter vantagem, dar-se-á um jeito”.

O 2º fato, por sua vez, não difere muito do primeiro. A simulação se deu também na simulação de licitação para se sagrar vencedora o réu Valmir Aquiles Fouletto. A licitação na modalidade carta-convite tinha por objeto o conserto de uma patrola do mesmo município. Além da simulação, deu-se o superfaturamento dos valores dos serviços prestados. Interessante notar que, em depoimento do próprio réu Valmir, este afirma que “iniciou o conserto em 02/01/1996, tendo entregue o veículo consertado em 12/01/1996, quando foi emitida a nota fiscal constante nos autos”. Outrossim, que “quando do término da licitação o serviço já estava praticamente concluído” e “que para ganhar a concorrência foi solicitada a assinatura de outras duas empresas dessa cidade que ofereceram preços superiores para que sua empresa fosse a vencedora”.11

Também o réu Valmir participou na forma de concorrência da prática dos atos ímprobos descritos no acórdão:

11 – Em verdade, pelo que se infere das palavras do acusado, houve uma dispensa material de licitação, embora uma fraudulenta competição tenha sido simulada posteriormente, pois na data da abertura do processo licitatório seu vencedor já era conhecido e estava executando o serviço. Portanto, a bem da verdade, não havia licitação, mas a convalidação de um ajuste entre o Prefeito e o denunciado Valmir. (Grifos no original).

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Valmir, por sua vez, ao coletar as assinaturas dos demais supostos licitantes, comprovadamente concorreu para a perpetração da dispensa ilegal da licita-ção, pois sua conduta tratou de dar aparentes ares de legalidade ao ajuste formata-do com o Prefeito, o que significa ser devida sua condenação, nos exatos termos do art. 89, parágrafo único da Lei de Licitações. (Grifos no original).

Dessa forma, segundo se extrai da leitura da decisão, o superfaturamento do serviço, de acordo com a cotização real feita pela perícia, corresponde ao valor de R$ 6.055,00, uma vez que o orçamento acostado aos autos que corresponderiam aos reais gastos somariam o valor de R$ 2.275,00. Assim, por conta da comunhão de vontades dos réus João Pedro e Valmir, desviou-se do patrimônio público ilicitamente, embora tenha se dado forma legal aos atos, o valor de R$ 6.055,00.

O 3º fato, por sua vez, trata-se da simulação de licitação também na modalidade de carta-convite, a qual tinha por objeto a implantação de sistema simplificado de abastecimento de água em certa localidade do Município de Bom Progresso. O objeto da contratação foi o fornecimento de materiais para a implantação do sistema. Ficou provado que os réus agiram de forma ímproba, vez que os valores foram repassados ao réu Ulisses Vanderlei Costa, sócio-gerente da empresa Comércio de Produtos Elétricos CS LTDA (terceiro), sem que os materiais contratados tivessem sido entregues nas condições formalmente acordadas, isto é, quantidade e qualidade dos produtos.

É o que se extrai do julgado:

Portanto, num ato de falsidade ideológica, o Prefeito Municipal enviou prestação de contas à Secretaria da Saúde, atestando, no relatório, que os recursos foram in-tegralmente aplicados na instalação do sistema simplificado de água da localidade de Lajeado Pessegueiro (...), anexando as notas de empenho nºs 757/96 e 886/96. (...) Ademais, os cheques nºs 708114 e 708116 utilizados para o pagamento dos materiais foram emitidos nominalmente em nome do fornecedor, que os endossou em branco, e abaixo do endosso contêm a assinatura do sacador do dinheiro, o Sr Prefeito Municipal (...) Os fatos e documentos comprovam que houve prejuízo de R$ 4.075,00 relativo ao material não aplicado na obra, devendo este valor ser ressarcido ao erário.”, fls. 36-37. (Grifos no original).

Descritos sumariamente os casos de que tratavam as Apelações nº 70042567016 e 70059571232, respectivamente, pode-se voltar ao tema proposto no capítulo

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anterior, para se perceber como, na prática a projeção do interesse privado sobre o interesse público ocorre, nas diferentes modalidades de participação do terceiro externo à Administração Pública em concorrência ou indução ao agente público. Ainda que, prima facie o ato pareça dotado de legalidade. É por isso, por exemplo, que a Lei de Improbidade buscou proteger o interesse público ao ponto de prever a possibilidade de sanção, inclusive, de figuras alheias à Administração Pública, como é o caso dos terceiros aqui trabalhados.

É por isso também que, deve-se ter sempre presente que não apenas o gestor ou servidor público possuem deveres públicos, mas que o particular também exerça o seu dever de observar e respeitar o interesse público, não buscando a sua realização particular a partir de negociações com a Administração Pública. Desta forma, não podendo prosperar o entendimento defendido por Osório de que “embora o particular possa ser enquadrado, em coautoria, como partícipe ou beneficiário, de improbidade, nas modalidades aqui descritas, não se pode ignorar o conjunto de diferenças entre os deveres públicos e particulares” (OSÓRIO, 2013, p.287).

CONCLUSÃO

O presente estudo procurou abordar a figura do terceiro externo à Administração Pública beneficiário direto ou indireto, que concorre ou induz à prática de atos de improbidade administrativa, a partir da concepção da teoria do interesse e da ética pública sobre a leitura do artigo terceiro da Lei nº 8.429/92. Não se objetivou esgotar o tema, nem tampouco limitar o instituto ora analisado a concepção trazida no texto, mas sim contribuir para o estudo das patologias corruptivas e a sua relação com os enlaces sociais.

Neste sentido, é possível dizer que a regra do artigo terceiro da Lei de Improbidade Administrativa contribuiu de forma significativa para o combate à corrupção (ainda que tal medida não seja suficiente), ao possibilitar a sanção do terceiro beneficiário puramente, sem que se faça exigência a evidenciação da efetiva participação no ato, ante as dificuldades encontradas na prática para a demonstração do liame subjetivo entre a figura externa aos quadros da Administração Pública e o agente público. Daí porque se punir o terceiro que se beneficia de forma direta ou indireta ou que induza ou concorra para a prática corruptiva. De outra forma, uma vez se verificando o caráter espúrio da conduta do agente público, basta que se comprove que o terceiro usufrui de tal conduta para que seja alcançado pelas sanções da Lei de Improbidade.

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Foi possível constatar, outrossim, que a fraude corruptiva entre terceiro e agente público se deu no momento da realização da licitação, embora no caso da Apelação nº 70059571232 os três casos analisados fossem decorrência da ilicitude já da comissão de licitações, o que não inviabiliza em nenhum momento, sancionar os réus envolvidos, pois cabalmente demonstrado e provado a ciência de todos acerca da ilicitude das propostas e da forma de celebração dos contratos administrativos.

Daí a importância da percepção da contratação pública como processo formado por fases trazida por Bitencourt e Reck (2014), no sentido de a descrição das fases da contratação ajudar na análise das diferentes barreiras ou entraves que existem dentro da contratação, objetivando facilitar a construção de uma noção de tempo para a contratação, com início, meio e fim. Já a ideia de contrato enquanto processo ajuda, por outro lado, a identificar as diferentes unidades funcionais que existem dentro da contratação pública.

E, uma vez que o contrato público tem por finalidade atingir algum benefício público e não privado a partir do estabelecimento de direitos e deveres (obrigações) recíprocas entre os contratantes, pode-se também afirmar que, dentro de um grande processo de contratação, irão ser encontrados diferentes processos que também serão regidos por diferentes funções. E são essas funções que conectarão as decisões, dando-lhe assim, unidade. Tais decisões implicam nas unidades que são formadas pela escolha ou eleição de alternativas justificadas a sua escolha e a sua eleição no memento.

E essa justificação terá legitimidade quando não for manipulada de forma a tornar inviável o exercício democrático. Daí porque haver referido anteriormente que se faz necessário entender que a decisão ou a escolha será legítima a partir da legalidade instaurada com base no consenso sobre a validez dos conteúdos, não só da lei, mas das suas implicações.

O que se quer dizer é que, no que tange a Administração Pública e suas relações com terceiros estranhos ao seu quadro de servidores e demais pessoas equiparadas, os seus atos, sejam eles de qualquer espécies, para que não sejam passíveis de desvios, no sentido de manipular o meio para buscar um fim ilícito, é importante a justificação através do consenso e dos seus procedimentos vinculados.

Assim, não havendo essa justificação, por meio deste consenso entre os atores, quando esses planos de ação e de vida não sofrerem argumentação válida, no sentido de fundamentarem-se nos valores constitucionalmente albergados, é que incide a prática ilícita por parte do terceiro, participante das relações com a

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Administração Pública (induzindo ou concorrendo), voltando os seus interesses para esta.

Isto, pois, a improbidade administrativa se revela, por exemplo, no emprego da negociação na gestão pública, que perpassa desde o auferimento do administrador ou terceiro de ganhos patrimoniais ilícitos (como demonstrado com as decisões analisadas), concessão de favores, benefícios ou privilégios especiais, atendimento de pedidos de particulares (quando se efetua a indução), desvio ou aplicação ilegal de verbas públicas (com o superfaturamento), até a deturpação do exercício ilegal ou ineficiente das funções públicas com real afronta aos princípios constitucionais que regem a Administração Pública, onde, de fato, se efetiva a fusão indevida do “meu” com o “nosso”.

REFERÊNCIAS BITENCOURT, Caroline Müller. RECK, Janriê Rodrigues. A construção de

categorias de observação do contrato público e suas relações com a corrupção a partir de uma perspectiva processualista. In: DELPIAZZO, Carlos E. LEAL, Rogério Gesta (Coord.). Ética pública y patologías corruptivas. Montevideo: Mosca, 2014, p. 279-300.

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QUAIS AS MODALIDADES MAIS INCIDENTES DE CONDENAÇÃO PELA LEI DE IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA: ENRIQUECIMENTO ILÍCITO, DANO AO ERÁRIO OU INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA? POSSÍVEIS CONCLUSÕES

Cynthia Gruendling Juruena1

Denise Bittencourt Friedrich2

INTRODUÇÃO

O presente artigo parte da problemática sobre qual tem sido na Lei de Improbidade Administrativa o dispositivo que mais tem incidido e fundamentado as condenações por improbidade. Dito de outra forma, as condenações por improbidade no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul têm maior incidência a modalidade do enriquecimento ilícito, do dano ao erário público ou do descumprimento de princípios da administração pública?

1 – Mestranda em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade

de Santa Cruz do Sul – UNISC, com bolsa Capes (PROSUP) tipo II. Integrante do Grupo de Pesquisa

“Espaço local e inclusão social”, coordenado pelo Prof. Pós-Doutor Ricardo Hermany. Integra o Proje-

to de Pesquisa Internacional “Patologias Corruptivas”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal

e também participa do Grupo de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas”, sob coordenação

da Professora Pós-Doutora Marli Marlene Moraes da Costa. E-mail: [email protected]

2 – Doutora em Direito pelo PPGD da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora de Direito Admi-

nistrativo da Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante do Projeto de Pesquisa Internacional sobre

Patologias Corruptivas, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. E-mail: [email protected]

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Cynthia Gruendling Juruena e Denise Bittencourt Friedrich

Nesse sentido, dividiu-se em dois momentos o objetivo da presente investigação: 1) primeiramente, identificar a maior incidência – do dispositivo e do inciso – nas condenações por improbidade administrativa; 2) após, discorrer sobre as possíveis causas e fundamentos do padrão que a investigação dos julgados demonstrou.

Dessa maneira, o trabalho teve por escopo fazer, primeiramente, breves considerações doutrinárias acerca dos dispositivos 9, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa para, depois, elucidar os resultados dessa pesquisa jurisprudencial e demonstrar quais são os tipos mais incidentes dessa legislação (o artigo com maior incidência e o inciso de cada artigo) e quais são os principais argumentos utilizados pelos magistrados para fundamentar essas decisões.

1. AS MODALIDADES DE CONDENAÇÃO PREVISTAS PELA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: BREVES CONSIDERAÇÕES

Improbidade vem do latim improbitate, que significa desonestidade, que no âmbito do Direito Administrativo está associado à conduta do agente público. Sob esta perspectiva a Constituição Federal inaugurou o uso desta expressão para regular, no parágrafo 4º do artigo 37, as sanções cabíveis para os agentes públicos que incidirem nas práticas classificadas como ímprobas. Tais práticas foram reguladas na chamada Lei de Improbidade Administrativa - LIA - (Lei Federal n. 8.429/92), que disciplinou a matéria obedecendo ao referido dispositivo constitucional, e reservou três artigos (artigo 9º, 10 e 11) para descrever exemplificativamente as condutas tidas como ímprobas para fins de sancionar o agente público.

Referente ao agente público, é importante frisar que a LIA equiparou-o, no artigo 2º, a “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”. Não satisfeita com a amplitude deste artigo, no artigo seguinte ampliou o alcance da lei para “àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”. Disso conclui--se que o rol de sujeitos que podem ser condenados por atos de improbidade

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

administrativa é bastante expressivo, fato que reflete a preocupação do legislador em reprimir os atos que atentem contra a moralidade na gestão pública, situação que, notadamente, é uma entre tantas outras medidas de combate à corrupção na esfera pública3.

Os atos que são contemplados na lei como ímprobos são atos que importam o enriquecimento ilícito (artigo 9º), atos que causam prejuízo ao erário (artigo 10) e atos que atentam contra os princípios da administração pública (artigo 11). Importante advertir que estes dispositivos representam um rol exemplificativo de condutas consideradas ímprobas, pois antes de iniciar a descrição das diversas condutas transcritas em incisos, o legislador sempre utilizou a expressão “notadamente”, para evidenciar que outras situações não descritas na LIA podem ser reprimidas pelo Direito por serem classificadas como ímprobas.

Antes de entrar na descrição dos referidos artigos, cabe advertir que o artigo 11 não será objeto de estudo aqui, pois a ele foi reservado o espaço de um artigo apartado, que seguirá a este na presente obra.

Referente aos atos que importam enriquecimento ilícito, estes seriam “quando o agente público [...] aufere dolosamente vantagem patrimonial ilícita, destinada para si ou para outrem, em razão do exercício ímprobo do cargo, mandato, função, emprego ou atividade na administração pública” (PAZZAGLINI, 2011, p. 43). A partir desta definição ressalta-se que o recebimento de vantagem econômica independe do respectivo prejuízo ao erário, ou seja, basta que o agente público (ele próprio, e não terceiro) tenha um aumento patrimonial pelo exercício indevido de suas atribuições junto à administração pública direta ou indireta, já atende a um dos requisitos para a incidência da LIA.

Outro elemento importante que deve estar presente para configurar o caso do artigo 9º refere-se ao animus do agente público, que deve ser uma ação ou omissão dolosa. Embora o artigo em análise não seja expresso, a doutrina e a jurisprudência4 têm majoritariamente entendido desta forma, razão pela qual não se admite nem

3 – Existem medidas, como, por exemplo, a denominada Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/13) que

dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a

administração pública, nacional ou estrangeira, que pretende combater a corrupção pela imposição de

sanções ao corruptor, pessoa jurídica de direito privado.

4 – Isso pode ser verificado, por exemplo, no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial

nº 2014/0032391-8.

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a responsabilidade objetiva do agente no desempenhar do seu mister; tampouco admite-se a culpa para ser responsabilizado por improbidade administrativa, de forma que é possível afirmar que todas as modalidades escritas como espécies de enriquecimento ilícito só poderão ser verificadas se provado o dolo do agente.

Por óbvio, deve ser evidenciado o nexo causal entre o exercício das competências e atribuições que decorrem do cargo, emprego, função, mandato, etc., e o enriquecimento ilícito. Isso é importante, pois pode haver o enriquecimento do agente, porém, sem que tenha decorrido diretamente do exercício das atribuições públicas, situação em que ele será sancionado pelas normas de natureza meramente civis (artigo 884 e seguintes do Código Civil) e/ou penais (artigo 155 e seguintes do Código Penal).

Não só pelo artigo 9º, mas também pelos outros dois artigos que descrevem as condutas ímprobas, acaba se tornando difícil, para não dizer impossível, a condenação por ações e omissões culposas. Esta é a lição de Prado (2001, p. 38), para quem, embora o artigo 10 preveja a possibilidade culposa, “muitas hipóteses, por sua própria formulação, deixam evidente a essencialidade do dolo. Isso ocorre, aliás, com a maioria das hipóteses [...]”. Ainda que em alguns casos a culpa possa ensejar a responsabilidade, não é qualquer culpa, há de se ter uma culpa grave que chega muito próxima à forma dolosa. Neste sentido, a posição do STJ (2015):

Em se tratando de improbidade administrativa, é firme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “a improbidade é ile-galidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente. Por isso mesmo, a jurisprudência do STJ considera indispensável, para a caracterização de improbidade, que a conduta do agente seja do-losa, para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave, nas do artigo 10. (Grifo próprio)

Em razão disso, a doutrina e a prática dos tribunais praticamente aniquilou a aplicação da LIA em casos culposos ou mesmo diante da responsabilidade objetiva do agente (nos artigos que a lei não prevê culpa ou dolo), restando quase que exclusivamente, a apreciação da intenção (dolo) do agente.

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

Cabe tecer alguns breves comentários a respeito do artigo 10 da LIA. De imediato destaca-se que trazem situações independentemente da obtenção de vantagem econômica ao agente. O ponto central sobre o que deve recair nestes casos é a efetiva lesão ao erário público. Por isso é correto afirmar que não é exigido que o agente público se beneficie pela conduta ímproba, o que é levado em conta é o prejuízo que os cofres públicos sofrem, e este prejuízo pode ser em proveito do agente ou de um terceiro que não tenha vínculo com o Poder Público. Além disso, a LIA se refere ao prejuízo ao erário público, que tem uma conotação material, economicamente apreciado, que representa uma espécie da categoria mais ampla patrimônio público, este de caráter material e imaterial (PAZZAGLINI, 2011).

Diverge desta ideia Costa (2000, p. 84) para quem a descrição do artigo 10 da LIA descreve um delito predominantemente de perigo, razão pela qual “os tipos de improbidade administrativa por dano ao erário consumam-se, ainda que não ocorra esse efetivo prejuízo ao patrimônio público, porque o objetivo primaz de tal repressão é a moralidade administrativa.”

Ocorre que esta posição só seria razoável se não tivesse a lei previsto o artigo 11, no qual a conduta descrita como ilícita refere-se a atentar contra os princípios administrativos. Sendo assim, para se verificar a incidência do artigo 10, necessariamente tem que haver prejuízo ao erário, pois se este não puder ser verificado, o agente pode ainda ser acusado de improbidade administrativa com base no artigo 11.

Feita está rápida explanação, a seguir passa-se para a análise do objeto central desta pesquisa: quais os casos (incisos) que mais condenam por improbidade administrativa na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

2. ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: QUAIS SÃO AS MODALIDADES MAIS INCIDENTES?

Expostas algumas considerações doutrinárias acerca dos dispositivos 9°, 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa, explanar-se-á a metodologia utilizada para a realização da análise jurisprudencial. Após abordar a metodologia de análise, serão trazidos os resultados encontrados com tal investigação.

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Cynthia Gruendling Juruena e Denise Bittencourt Friedrich

Para análise dos julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, algumas balizas utilizadas necessitam ser explicitadas a fim de clarear a metodologia de análise; ou seja, demonstrar o padrão de busca que resultou nos julgados que aqui serão analisados numericamente e conteudisticamente. Salientando-se sempre os limites de investigação de um estudo empírico, especialmente, diante da impossibilidade de esgotamento dos julgados em sua esfera qualitativa.

Primeiramente, elucida-se que a pesquisa realizada segue o padrão de data de busca o do dia 24 de setembro de 2013 a 24 de setembro de 2014, considerando--se a data de publicação no site do www.tjrs.jus.br, selecionando pesquisa de jurisprudência e depois busca avançada. Passa-se agora a simplesmente elucidar o preenchimento dos campos para realizar a pesquisa quantitativa: no campo destinado a palavras-chave: digitou-se improbidade administrativa e ação civil pública; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; pesquisa por Ementa (porque ao selecionar também, inteiro teor, o filtro buscaria todos os documentos que houvesse algum dos artigos 9º, 10 ou 11 de outras legislações, bem como traria todos os documentos a que houvesse referência para a lei de improbidade); Seção: cível (visto que testado também a seção crime com resultados irrelevantes); Tipo de Processo: Todos (porque ao selecionar um tipo de processo específico, o filtro não corresponde com o número real de ações, muitas vezes zerando a busca). Número: nenhum; Comarca de Origem: nenhuma; Data de julgamento: nada; Data de publicação: 24/09/2013 a 24/09/2014. No campo procurar resultados: com todas as palavras: improbidade administrativa; Com a expressão: ação civil pública; Com qualquer uma das palavras: nada; Sem as palavras: nada; Expressão na busca livre: improbidade administrativa “ação civil pública”; Classificar: por data decrescente. Optou-se pela escolha dos números obtidos pelo filtro improbidade administrativa “ação civil pública”, vez que se entende atender melhor ao questionamento. O filtro encontrou 212 acórdãos. Assim, quantitativamente a pesquisa encontrou 212 acórdãos.

Fez-se necessária a leitura de cada julgado, a fim de separá-los por condenação, ou seja, art. 9º, 10 ou 11 da Lei 8.249/92. Também houve muitos casos onde a condenação foi calcada por mais de um dos artigos ou incisos da Lei de Improbidade Administrativa. Além disso, foram obtidos 114 agravos e embargos de declaração onde não havia o mérito para ser analisado ou não havia a

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

menção do artigo da LIA em que houve condenação anteriormente. Ainda, houve a descaracterização de improbidade administrativa em 37 dos julgados e 2 (dois) julgados encontravam-se indisponíveis no site - não haviam sido digitalizados -, o que impossibilitou a análise dos mesmos. Dessa forma, foi possibilitada a pesquisa, efetivamente, em 59 condenações e 37 acórdãos onde houve a descaracterização de improbidade administrativa, totalizando 96 resultados passíveis de análise qualitativa. Abaixo, seguem os gráficos para uma melhor visualização sobre as condenações por esses dispositivos.

Tipos Incidentes da LIA

No gráfico acima, houve 6 (seis) condenações somente pelo artigo 9º (14% dos resultados), 10 condenações somente pelo artigo 10 (23%) e 28 condenações somente pelo artigo 11 (63%). Ou seja, a maior parte das condenações da Lei de Improbidade Administrativa, analisando os acórdãos onde houve somente a condenação por um dos dispositivos, é pela inobservância aos princípios dispostos nesta legislação.

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Cynthia Gruendling Juruena e Denise Bittencourt Friedrich

Dispositivos cominados da LIA

Já o gráfico acima exposto ilustra as condenações por dispositivos cominados da Lei de Improbidade Administrativa. Houve 7 (sete) condenações pelos artigos 9º e 11 (47%), 2 (duas) condenações pelos artigos 9º e 10 (13%), 5 (cinco) condenações pelos artigos 10 e 11 (33%) e 1 (uma) condenação por todos os artigos (7%). Dessa forma, a pesquisa jurisprudencial apontou para um maior número de condenações envolvendo o artigo 11 da legislação, artigo esse que engloba os princípios da Administração Pública. Das 69 condenações obtidas com a análise jurisprudencial, 45 delas envolviam o artigo 11 (seja condenação somente por esse artigo ou cominado com outro).

Analisando-se as condenações pelo artigo 9º (sejam elas somente pelo artigo 9º ou não, o que totaliza 19 condenações), observou-se que o inciso onde há maior incidência é o inciso I, que envolve a prática de propina.5 Das 18 condenações por

5 – I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem

econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem

tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente

das atribuições do agente público.

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

esse dispositivo, 8 delas foram por esse inciso, um número bastante expressivo. Ainda, obteve-se com essa pesquisa um resultado de 4 (quatro) condenações pelo inciso XI6 (sendo que duas dessas quatro condenações foram pelos incisos XI e XII7, cumulativamente). Houve uma condenação pelo artigo 9º, IV8 e uma pelo inciso IX9. As outras 4 (quatro) condenações foram calcadas somente no caput do dispositivo em tela.

Curioso ressaltar que no artigo 10 houve condenação pelos mais variados incisos, não se concentrando tanto em poucos incisos, como foi o caso do artigo 9º. Cabe ainda ressaltar que em muitos casos o réu era condenado pela prática de mais de um dos incisos (ou também ocorria de cada um dos réus do processo ser condenado por um dispositivo diferente). Das 25 condenações pelo artigo 10 (sendo elas somente por esse dispositivo ou cumulativamente com os demais), observou-se que o inciso onde há maior incidência na condenação é o inciso XII10. Como este é o inciso do artigo 10 com o maior número de condenações, merece uma atenção especial. Em um dos acórdãos, o magistrado relator do caso trouxe importante descrição da conduta tipificada nesse inciso, trazendo um trecho da lição de Marcelo Figueiredo:

[...] ‘fechar o cerco’ da atividade ilícita, proibindo que o agente público facilite, de qualquer forma, o enriquecimento ilícito de terceiros. Como é de curial conhecimento, nenhum agente público ímprobo permitirá ou concorrerá para que ‘terceiro’ se enriqueça ilicitamente sem que haja adredemente preparado um verdadeiro plano de ação ilícita; o que se convencionou denominar, na linguagem leiga e popular, de ‘esquemas’. Assim, o dispositivo procura assegurar e abranger também a ação do agente que, por qualquer meio, em co-autoria ou participação, elege

6 – XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes

do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei.

7 – XII - usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das

entidades mencionadas no art. 1° desta lei.

8 – IV - utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material de qualquer

natureza, de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades mencionadas no art. 1° desta lei, bem

como o trabalho de servidores públicos, empregados ou terceiros contratados por essas entidades.

9 – IX - perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de

qualquer natureza.

10 – XII - permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente.

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terceiro para ele não figurar ostensivamente como o autor do ilícito. É óbvio que a lei sanciona o comportamento de todos os envolvidos na prática da improbidade administrativa que leva ao enriquecimento ilícito e, consequentemente, à lesão ao erário público. (FIGUEIREDO, 1995, p. 58).

Das 25 condenações, 10 foram por esse inciso acima descrito, um número bastante expressivo. O artigo 10, VI, o qual prevê sanção para quem realiza operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceita garantia insuficiente ou inidônea, também teve um número expressivo de condenações: 7 (sete). Logo atrás desse inciso, está o artigo 10, inciso VIII, com 6 (seis) condenações. Este é um importante inciso, que prevê a licitude do processo licitatório, e aplica uma sanção para o servidor que frustrá-lo ou dispensá--lo indevidamente. O artigo 10, I11 teve 5 (cinco) condenações.

Com 3 (três) condenações, houve o artigo 10, incisos III12, V13 e XI14. Grande parte das pessoas pensam que o superfaturamento (conduta enquadrada no artigo 10, V) é uma prática bastante comum em nosso país, o que deveria gerar maior número de condenações. Contudo, dos 212 acórdãos encontrados nessa pesquisa, surpreendentemente só há 3 (três) condenações por essa prática. Já com apenas 2 (duas) condenações, identificou-se o artigo 10, incisos II15, X.16 Ainda, houve alguns acórdãos onde as condenações foram calcadas somente no caput do dispositivo em análise.

O artigo 11 não será objeto de maior estudo do presente artigo. Isso pois o artigo “Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade

11 – I - facilitar ou concorrer por qualquer forma para a incorporação ao patrimônio particular, de pes-

soa física ou jurídica, de bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades

mencionadas no art. 1º desta lei.

12 – III - doar à pessoa física ou jurídica bem como ao ente despersonalizado, ainda que de fins educati-

vos ou assistências, bens, rendas, verbas ou valores do patrimônio de qualquer das entidades menciona-

das no art. 1º desta lei, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie.

13 – V - permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao

de mercado.

14 – XI - liberar verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes ou influir de qualquer

forma para a sua aplicação irregular.

15 – II - permitir ou concorrer para que pessoa física ou jurídica privada utilize bens, rendas, verbas ou

valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei, sem a obser-

vância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie.

16 – X - agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à

conservação do patrimônio público.

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS”, que encontra-se neste livro, versa aprofundadamente sobre esse dispositivo.

Como a pesquisa não é de cunho meramente quantitativo, e sim também de cunho qualitativo, ou seja, analisar os argumentos utilizados pelos magistrados para condenar ou não, expor-se-á aqui alguns dos principais argumentos. Assim, passada essa pesquisa mais aprofundada nos incisos dos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa que possuem maior recorrência, analisar-se-á alguns dos argumentos que são utilizados pelos magistrados para condenar – ou não – os agentes públicos.

O artigo 10 é o único dos dispositivos dessa legislação em que é admitida tanto a forma culposa quanto a dolosa, e essa é uma argumentação recorrente nos acórdãos analisados. Para Alexandre de Moraes (2002), a Lei n. 8.429/92 consagrou a responsabilidade subjetiva do servidor público, exigindo o dolo nas três espécies de atos de improbidade (artigos 9º, 10 e 11) e permitindo em uma única espécie - artigo 10 - também a responsabilidade a título de culpa. Dessa forma, os tipos contidos no artigo 10 caput da lei, bem como seus incisos, todos referentes a atos que causam danos ao erário, dispensam a demonstração de dolo do agente, sendo possível a imputação na forma culposa. Ainda, já está pacificado o entendimento de que se houver a boa-fé do servidor público, não incorrerá o mesmo nos dispositivos 9º e 11 tipificados pela Lei de Improbidade Administrativa.

Trazido em um dos acórdãos analisados, e fazendo referência ao dolo e a culpa das espécies da lei, este trecho demonstra o entendimento:

Realmente, como não poderia deixar de ser, a improbidade administra-tiva, como delito disciplinar requesta, como elemento subjetivo de sua configuração, que haja, no mínimo, a voluntariedade do agente público, subjetividade esta que, mesmo não se confundindo como dolo (direto ou eventual), extrema-se substancialmente da conduta culposa em sentido estrito (negligência, imprudência ou imperícia), pois que, na conduta li-vre e voluntária, concebe o agente a realização de um plano eticamente reprovável, o qual não se contemporiza com a mera culpa, que carece de tal liberação volitiva, preordenada à concessão de vantagem pessoal ou de terceiro, em detrimento da Administração Pública. (COSTA, 2000, p. 24. Grifo próprio).

Desta forma, analisando as condenações feitas com base no artigo 10 da LIA, pode-se perceber que um dos principais fundamentos e discussões

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dos magistrados é acerca da culpa e do dolo, e que já está pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento de que somente o dispositivo 10 da Lei de Improbidade Administrativa prevê essas duas modalidades, possuindo o agente a responsabilidade por omissão e negligência.

Além disso, os magistrados dão especial enfoque ao conjunto probatório, que busca demonstrar se houve o dolo ou a culpa. Isto porque, além de indicar a conduta culposa ou dolosa, pelas provas trazidas se pode comprovar se houve má--fé ou não do agente.

Na apelação cível número 70043408863, referente à prática de atos ímprobos que recairiam no artigo 9°, caput e inciso I (pagamento de propina), a apelação foi desprovida. Este caso refere-se a um escritório acusado de pagamento de propina aos oficiais de justiça, a fim de que agilizassem o cumprimento de diligência judicial. Entretanto, os magistrados afastaram a condenação por improbidade administrativa, pois não restou demonstrado acerca do elemento subjetivo na conduta do servidor em praticar ato ímprobo, ou, ainda, quanto ao cumprimento prioritário dos mandados apontados e ao prejuízo às demais determinações judiciais envolvendo outros processos.

Na apelação cível número 70045674405, o Ministério Público sustenta que a prova produzida demonstrou que os réus Idio e Fernando concorreram diretamente para a incorporação ao patrimônio particular da ré B&R Estacionamentos de rendas e valores pertencentes à Fundação Hospital Centenários, permitindo que esse enriquecesse ilicitamente em detrimento do ente público. Contudo, os magistrados entenderam nesse caso que não houve redução ilícita de patrimônio pertencente ao erário público e tampouco enriquecimento de particulares. Ademais, os magistrados ressaltam que não se constata a conduta reveladora de má-fé ou de falta de ética dos agentes públicos a justificar a configuração do ato ímprobo de atentado contra os princípios da administração pública.

Referente à ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, que resultou na apelação cível número 70054294145, houve ato de improbidade administrativa na administração da Companhia Industrial e de Desenvolvimento Urbano S.A. – CIDUSA. Havia irregularidades administrativas, por exemplo, as pedras eram doadas a particulares, e não comercializadas, sem nenhum registro fiscal correspondente à entrega. Informou que se apurou que de janeiro de 1993 a novembro de 1996 houve um desvio de 7.165m3 de pedra brita da produção da CIDUSA, o que equivale a um déficit de R$ 211.510,80. Dos 7.165m3 de pedra brita desviada, 3.959 m3 foram apenas no ano de 1996, ano de campanha eleitoral.

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

Dos 4 (quatro) réus que haviam apelado dessa sentença – que foram condenados pela prática referente ao dispositivo 10 da LIA – 3 (três) deles foram condenados pela forma culposa e 1 (um) deles pela forma dolosa. Entretanto, foram atribuídas as mesmas penas para os quatro. Dessa forma, os magistrados decidiram de acordo com os princípios da suficiência e proporcionalidade, não podendo ser punidos igualmente em se tratando de condutas distintas, afastando a penalidade de suspensão dos direitos políticos quanto aos demandados Pedro, Jorge e Ivo (que agiram culposamente). O apelo do réu que agiu de forma dolosa foi desprovido. Interessante analisar a condenação pelo artigo 10, que é o único que comporta tanto a conduta dolosa quanto culposa, e a maneira como o relator conduziu o voto. Ele traz, em um trecho, que “a razoabilidade decisional não pode ser perdida de vista, sob pena de se cometer injustiças inconcebíveis”. Por isso entendeu que a sanção de quem incorreu de forma culposa, havendo a responsabilidade dos agentes por omissão e negligência, deveria ser menor do que a sanção do réu que agiu dolosamente.

Na apelação cível número 70055181945, o réu Fábio alega que, por deter cargo em comissão, apenas cumpria ordens e era subordinado. Essas alegações, entretanto, não foram exitosas, tendo em vista que como agente público, na prestação de atividade administrativa, tinha o dever constitucional de se pautar pela ética, ou seja, sem violar os padrões institucionalizados no Direito Administrativo de Moralidade. Desta forma, as diversas atribuições do cargo público ocupado pelo réu, descritas no Anexo da Lei Municipal n. 2.4681/88, devem ser compreendidas a partir destas diretrizes de probidade administrativa referidas.

Referente à pena restou-se demonstrado nos mais diversos acórdãos que o ressarcimento integral do dano e a perda da função pública são aplicados sem qualquer gradação; enquanto que a multa civil é aplicada conforme a espécie do ato de improbidade administrativa. Ademais, a reparação do dano é sempre obrigatória, ou seja, aquele que causar dano ao Erário tem o dever de repará-lo, recompondo o patrimônio do lesado, para que este retorne ao estado em que se encontrava antes da prática do ato lesivo. Ainda, no tocante à perda da função pública, não importa que o apelante não se encontre mais naquela função para que essa seja uma das sanções impostas.

Outro caso interessante que os magistrados descaracterizam a improbidade administrativa foi na apelação de número 70058890468. Neste caso, entretanto, havia o conjunto probatório de que os réus incorreram na prática de ato que resultou em prejuízo ao Erário. Neste caso foi utilizado veículo público para fins

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Cynthia Gruendling Juruena e Denise Bittencourt Friedrich

particulares, para a realização de uma viagem para o litoral de Santa Catarina, em que estavam presentes servidores municipais e seus familiares. O Ministério Público ressalta que a ocorrência material dos fatos está devidamente comprovada nos autos, principalmente através de provas documentais que acompanham a inicial, produzidas no inquérito civil nº 00889.00001/2010. Contudo, os magistrados afastaram a improbidade administrativa sob a alegação de que não há provas de que tenham agido com dolo ou má-fé, de modo a obter vantagens indevidas, ou a prejudicar a administração pública, pois empréstimos desse gênero eram praxe no município. Neste acórdão, havia o conjunto probatório, entretanto, os magistrados entenderam que as provas não demonstravam se os réus haviam agido com dolo ou má-fé, diante da prática reiterada desses atos na cidade.

No caso exposto acima, percebe-se que há uma falta de treinamento dos agentes públicos, por não terem conhecimento de que tais práticas são de interesse privado, devendo, entretanto, os agentes da Administração Pública direta ou indireta sempre visarem o interesse público. Caso fossem ampliadas as instruções aos agentes, seria mais difícil que eles alegassem e provassem que não sabiam que a prática afetava o interesse público.

Dessa forma, passadas as breves exposições doutrinárias acerca dos dispositivos da LIA e após a análise jurisprudencial quantitativa e qualitativa, pode--se analisar alguns dos argumentos utilizados pelos magistrados para a condenação ou descaracterização de improbidade administrativa.

CONCLUSÃO

Com a pesquisa jurisprudencial realizada nos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, obteve--se resultados quantitativos e qualitativos que propiciaram um embasamento substancial para o presente trabalho.

Dos 212 acórdãos obtidos, primeiramente realizou-se a divisão dos mesmos pelos dispositivos, separando-os quando houve a condenação por um ou mais de um dos artigos 9º, 10 e 11 da legislação. Assim, alcançou-se o resultado de que o dispositivo 11, referente à inobservância dos princípios da Administração Pública, da Lei de Improbidade Administrativa era a modalidade mais incidente de condenação. Realizada a pesquisa quantitativa, encontrou-se a resposta que embasou a confecção do presente trabalho, que buscava encontrar o tipo mais incidente na LIA.

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Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões

Entretanto, realizou-se ainda uma análise qualitativa nos acórdãos, para descobrir por que se davam ou não as condenações pelos dispositivos e quais eram os principais argumentos utilizados pelos magistrados para condenar ou descaracterizar a improbidade. Dos fundamentos mais encontrados nos 212 acórdãos, ressalta-se a culpa, o dolo e a boa-fé do servidor público. Isso porque quando está presente a boa-fé do agente, mesmo que haja prejuízo de bem ou interesse público – não incorrerá nos dispositivos 9º e 11, que só preveem a forma dolosa da conduta ímproba.

Interessante ressaltar que o dispositivo 11, mesmo prevendo somente a forma dolosa, foi ainda o artigo dessa legislação que maior número de condenações teve. Esse resultado surpreendeu, pois não imaginou-se que a prática de inobservância dos princípios da Administração Pública possuísse número tão expressivo de condenações.

Cabe ainda destacar que os magistrados não decidem os casos de maneira uniforme, não havendo um argumento condutor para incidência ou não dos julgados em improbidade administrativa. Isto se dá por se tratarem de casos distintos que versam sobre três diferentes condutas ímprobas (dos artigos 9º, 10 e 11) e pela possibilidade de forma culposa em apenas uma delas. O único argumento em comum nas decisões seria o do dolo e da culpa, mas isto já se encontra pacífico na jurisprudência e na doutrina.

Ainda, pode-se perceber que em muitos casos não houve condenação por improbidade administrativa pelo fato de não ter sido demonstrada a má-fé do agente público, mesmo tendo o conjunto probatório indicando que houve ato ímprobo. Dessa forma, na maioria dos acórdãos os agentes públicos tentaram comprovar que houve boa-fé, a fim de que houvesse a descaracterização de improbidade.

REFERÊNCIAS

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Cynthia Gruendling Juruena e Denise Bittencourt Friedrich

_____._____. Apelação cível nº 70045674405. Relator: Heleno Tregnago Saraiva. Data de Julgamento: 23/10/2013. Data de publicação: 19/11/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1863350. Acesso em: 28 set. 2014.

_____._____. Apelação cível nº 70054294145. Relator: Carlos Roberto Lofego Canibal. Data de julgamento: 11/12/2013. Data de publicação: 27/01/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2200567. Acesso em: 28 set. 2014.

_____._____. Apelação cível nº 70055181945. Relator: Leonel Pires Ohlweiler. Data de julgamento: 29/05/2014. Data de publicação: 20/06/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=786414. Acesso em: 28 set. 2014.

_____._____. Apelação cível nº 70058890468. Relator: Ricardo Torres Hermann. Data de julgamento: 30/04/2014. Data de publicação: 09/05/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=586957. Acesso em: 28 set. 2014.

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PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa comentada. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

OS PRINCÍPIOS QUE FUNDAMENTAM AS CONDENAÇÕES POR IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA PELO ARTIGO 11/LIA: UMA ANÁLISE A PARTIR DA JURISPRUDÊNCIA DO TJRS

Karine Silva dos Santos1 Ricardo Hermany2

INTRODUÇÃO

Preliminarmente, importa que se estabeleça a conexão que esse artigo possui com o trabalho, também presente nessa obra, denominado “quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao erário ou inobservância dos princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões”. Assim, apresenta-se como um desdobramento deste, pois, a partir dos resultados obtidos na investigação sobre qual modalidade havia condenado em maior número dentro da jurisprudência do TJRS, realizou-se o exame desta, através dos casos correspondentes, de forma autônoma.

1 – Acadêmica do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Bolsista de IC na modalida-de PROBIC/FAPERGS. Integrante do Grupo de Pesquisa Estado, Administração Pública e Sociedade – Gestão Local e Políticas Públicas e Patologias Corruptivas. E-mail: [email protected] – Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003), com Pós-doutorado em Direito pela Universidade de Lisboa (2011). Professor da graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito – Mestrado/Doutorado - da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professor da Graduação na Fundação Educacional Machado de Assis – FEMA. Chefe do Departamento de Direito da UNISC e Pesquisador do Grupo de Pesquisa Estado, Administração Pública e Sociedade; coordenador do grupo de estudos Gestão Local e Políticas Públicas – UNISC. E-mail: [email protected].

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Karine Silva dos Santos e Ricardo Hermany

Assim, o presente trabalho tem como objetivo geral realizar a análise jurisprudencial em torno de uma modalidade específica de improbidade administrativa, adentrando, com isso, em seu problema principal, que reside em verificar qual tem sido o posicionamento decisório do TJRS frente aos casos de condenação por atos que atentam contra os princípios da Administração Pública – artigo 11 da LIA. Elegeu-se como objetivos específicos indicar qual desses princípios fundamentou número maior de condenações e fazer uma análise descritiva sobre as condutas em que restou comprovada sua violação, verificando a possibilidade de apontar o enquadramento legal (incisos do artigo) considerado pelos julgadores.

Como questões de pesquisa, duas abordagens, das quais o entendimento se mostrou essencial para o desenvolvimento das etapas principais, estas baseadas nos casos concretos, foram feitas. Primeiramente, atentou-se para as especificidades, dentro da lei, da modalidade de improbidade administrativa que consta no artigo 11 da LIA; em um segundo momento, e após o primeiro objetivo específico ter sido alcançado, foram expostas algumas considerações sobre o princípio que esteve presente no maior número de decisões condenatórias – o qual, adianta-se, corresponde ao princípio da moralidade. Nessas duas dimensões, fundamentou--se teoricamente, para o estudo da modalidade específica, nos comentários sobre a norma feitos por Pazzaglini Filho e, para tornar conhecidas algumas discussões sobre o princípio da moralidade, em Giacomuzzi, o qual filia-se àquela que é conhecida, dentro da doutrina e da jurisprudência, como a terceira corrente sobre a moralidade administrativa – que veicula a boa-fé na atuação da Administração Pública.

Metodologicamente, visões doutrinárias foram utilizadas para embasar as questões de pesquisa e a análise jurisprudencial foi utilizada para dar resposta ao problema principal e possibilitar o alcance dos objetivos especificamente determinados. Em relação à apresentação dos resultados, optou-se por fazê--la em forma de panoramas, os quais procedem da fase de exame quantitativo e qualitativo3 das decisões que compunham a amostra analisada.

Justifica-se a pesquisa pela necessidade do estudo, vista a grande repercussão que tem tido e seus reflexos na vida cotidiana, da temática das patologias corruptivas e a escolha do tema da improbidade por ser típica e tradicional prática

3 – Nesse sentido, foram utilizados os significados comumente atribuídos a essas palavras: quantitativo

como indicativo de quantidade (apresentação do número de casos em que houve a condenação pela

inobservância dos princípios da Administração Pública) e qualitativo sob o aspecto da qualidade do

conteúdo (apresentação da análise do mérito dos julgados).

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

efetivadora (LEAL, 2013) do fenômeno da corrupção; a escolha de um de seus desmembramentos, utilizando os julgados correspondentes ao artigo 11 da LIA, se deu pela grandiosidade, em termos de discussões e importância, que o tema dos princípios constitucionais assume dentro da Administração Pública.

1. CONCEITOS E REQUISITOS INDISPENSÁVEIS PARA CARAC-

TERIZAÇÃO DE ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA QUE

ATENTAM CONTRA OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Dispõe o artigo 11 da LIA que constitui improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública qualquer conduta, seja ela comissiva ou omissiva, que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Percebe-se que a redação do artigo não transcreve os princípios elencados constitucionalmente no artigo 37, mas, nas palavras de Pazzaglini Filho (2011, p. 100),

a circunstância de constar dele a expressão violação da legalidade elucida, sem dúvidas, que o preceito compreende a transgressão dos demais prin-cípios constitucionais que instruem, condicionam, limitam e vinculam a atuação dos agentes públicos, posto que, [...] do exame dos princípios cons-titucionais da Administração Pública, estes servem para esclarecer e expli-citar a conteúdo do ‘’princípio maior ou primaria da legalidade”. Ademais, a afronta ao “dever de honestidade” corresponde a violação do princípio da moralidade, e ao “dever de imparcialidade” a ofensa ao princípio da impessoalidade.

Para que seja reconhecida a improbidade administrativa por inobservância aos princípios, é necessária a existência de prática violadora de princípio constitucional regulador em razão de atuação em comportamento funcional ilícito, onde o agente público atua com má-fé, desonestidade ou falta de probidade; a modalidade aceita somente conduta dolosa.

Importa observar que a doutrina majoritária, e a mesma linha podemos encontrar em decisões dos tribunais4, consagra o artigo em exame como soldado

4 – Dentro da amostra de julgados analisada, essa questão foi bem exposta na Apelação Cível n° 70058271883.

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Karine Silva dos Santos e Ricardo Hermany

de reserva, a ser utilizado nos casos onde a prática não se enquadra nas demais modalidades (enriquecimento ilícito – art. 9º e lesão ao erário – art. 10) dispostas na LIA. Esse entendimento observa que a transgressão a princípio da Administração Pública já se encontra nas denominadas normas principais. Assim, em virtude do que preleciona o princípio da subsidiariedade5, há a absorção da conduta secundária. Dessa forma, observa-se que o artigo 11 da LIA é considerado como norma de aplicação residual.

Destaca-se que o caput do artigo traz a noção geral das condutas que se enquadram como ímprobas por violação dos princípios da Administração Pública e seus incisos, de forma exemplificativa, trazem, para direcionar o entendimento da modalidade e elucidá-la, as práticas correspondentes mais comuns. Isso se depreende da inserção feita pelo legislador da palavra notadamente ao final da redação do caput.

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Para melhor compreensão da análise feita para obtenção dos resultados buscados dentro dos objetivos específicos, faz-se necessária a descrição da metodologia utilizada: assim, a partir do padrão de pesquisa que resultou em 212 julgados, em 41 casos existia a correspondência com a perspectiva condenatória pelo artigo 11 da LIA que era buscada.6

Além dos princípios mencionados no artigo 11 da LIA, que bem correspondem aos elencados no artigo 37 da CF e, por consequência, aos referidos no artigo 4° da LIA, outros princípios apareceram de forma recorrente nos julgados; entretanto, como os mesmos não possuíam íntima ligação com a temática abordada no trabalho, não sendo, pela falta de pertinência, relevantes para ela, foram excluídos7.

Observou-se certa dificuldade no momento em que, quando visto o inteiro teor de cada julgado, era preciso apontar o princípio que serviu de fundamento para a sentença condenatória pelo artigo 11 da LIA. Isso porque, por vezes, não

5 – Lex primaria derogat legi subsidiariae.6 – A justificativa para o fato de não se detalhar os filtros de pesquisa dessa fase preliminar que resultou

nesses 212 julgados é reiterada ao se remeter ao artigo, também presente nessa obra, denominado Lei de

Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao erário ou inobservância dos princípios

da Administração Pública? Possíveis conclusões, por ser o presente trabalho, como um desdobramen-

to dentro da temática, uma fase posterior a ele.

7 – Foram os seguintes: razoabilidade e proporcionalidade, devido processo legal, suficiência e insig-

nificância.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

havia conformidade entre os desembargadores8 na decisão sobre qual princípio havia sido violado no caso concreto. Assim, para que essa falta de uniformidade não servisse de obstáculo para a análise jurisprudencial, foi preciso estabelecer um critério de ordem, muito simples, mas de grande auxílio na tarefa de apresentar, em números, os resultados alcançados.

Assim, a primeira busca pela referência ao(s) princípio(s) se deu na ementa, por sua relação com a presumida concordância entre os entendimentos expostos nos votos. Em casos onde nela não foram encontrados os princípios, e ressalte-se que esses significaram uma minoria, a busca passou, nessa ordem, ao relatório, para casos onde ficou decidida a manutenção do posicionamento do Juiz de primeiro grau, ao voto do relator, quando os julgadores estivessem em acordo e ao voto vencedor, quando a discordância, em algum sentido, resultou na apresentação do desenvolvimento de mais de um voto.

Em relação às condenações por outras modalidades que constavam no julgados analisados, destaca-se que, para que os direcionamentos tomados permanecessem circunscritos ao problema principal e aos objetivos dele decorrentes, elas não foram analisadas de forma específica; apenas do ponto de vista informativo, importa ressaltar que na maioria das vezes a conjugação de modalidades, apresentada no contexto do panorama geral da análise, não correspondeu à condenação do mesmo demandado. De qualquer forma, na descrição das condutas, a primazia está na modalidade do artigo 11 da LIA, visto ser esse o alvo de estudos.

Considerando todos os tipos de processos em que houve condenações pelo artigo 11 da LIA, 41 no total, combinadas ou não com outra modalidade, obteve--se o que segue: o princípio da moralidade foi o que mais apareceu nas sentenças condenatórias, 17 vezes, sendo sua violação principal motivação para as condenações, quando inclusive foi, por vezes, utilizado isoladamente para fundamentar decisões; o princípio da impessoalidade aparece 10 vezes; o princípio da legalidade aparece 9 vezes; o princípio da imparcialidade aparece 2 vezes; o princípio da lealdade aparece 5 vezes; o princípio isonomia da aparece 3 vezes; o princípio da eficiência aparece 2 vezes; o princípio da honestidade aparece 3 vezes; o princípio da publicidade aparece 2 vezes; o dever de boa-fé 3 vezes. Dessa amostra, em 5 casos não foi possível determinar qual princípio fundamentou a condenação, pois não foram feitas menções específicas, e nem mesmo, de forma geral, se havia sido amparada

8 – Sobre a matéria, o CNJ disponibiliza, em seus atos normativos, orientações para quando da ocorrên-

cia dessa falta de adesão reciproca entre os julgadores, demonstrando, com isso, a relevância da questão.

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Karine Silva dos Santos e Ricardo Hermany

nos princípios referidos no artigo 37 da CF ou nos deveres que constam no artigo 11 da LIA (o que pode ser justificado pelo acesso ao disponível apenas no site do TJRS; assim, trabalhou-se somente com o que foi discutido em segundo grau de jurisdição).

3. APROXIMAÇÕES SOBRE O PRINCÍPIO DA MORALIDADE

ADMINISTRATIVA

Necessário, para melhor compreensão do princípio que fundamentou número maior de condenações nos casos de improbidade administrativa por atentado contra os princípios da Administração Pública, fazer uma abordagem de características essencialmente relevantes para o entendimento do princípio da moralidade administrativa. Importa ressaltar que, dentro dos casos concretos esquadrinhados, não foi levantada, pelos julgadores, discussão doutrinária sobre o princípio da moralidade e aspectos a ele correspondentes. Entretanto, entendeu-se como fundamental que fossem tecidas algumas considerações, não objetivando principiar um novo debate acadêmico sobre questões de profundidade conceitual, visto ser o presente trabalho voltado para a análise jurisprudencial, mas sim para a contextualização do referido princípio nas hodiernas vivências.

Assim, inicialmente, importa ressaltar que entre a Moral e o Direito existem diferenciações básicas necessárias para o posterior entendimento das situações onde o princípio da moralidade foi invocado aos casos jurídicos. Somente a norma jurídica tem coercibilidade com previsão institucionalizada (sendo, segundo Kelsen (2006), da comunidade jurídica o monopólio da coerção); surge, então, a necessidade de a moralidade ser inserida no ordenamento jurídico. Dessa forma, ainda que a intenção jurídica seja precedida pela Moral, somente a moralidade positivada tem eficácia e produz efeitos jurídicos.

Em outras palavras, o Direito pode observar – e frequentemente o faz – a Moral e, de acordo com os seus próprios critérios – que são jurídicos –, decidir por se adaptar ou não àquilo que foi observado. [...] Em resumo, o sistema do Direito pode observar normas morais e reflexões éticas e decidir transformá-las em normas jurídicas. (GARCIA, 2014, p. 2)

De tal forma, pode-se dizer que essa moralidade, que traz seu cumprimento exigido no disposto pelo Direito positivado, bem traz relação com o princípio da

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

segurança jurídica: não se poderia esperar que se modificasse conforme os padrões da moral comum fossem alterados.

Segundo Santos (2011, p. 57), Direito e Moral

não se confundem, mas são dois conceitos que se harmonizam, e, juntos, possuem o condão de regular a vida em sociedade, norteando as relações privadas e, especialmente, as relações entre Estado e Sociedade e os atos dos agentes públicos [...].

A dita moral juridicizada9, ou seja, a moralidade inserida no ordenamento jurídico, serve de autodefesa para o Estado Democrático de Direito e tem como função o controle dos atos do agente público, pois não basta que exista a atuação em conformidade legal, pois o comportamento juridicamente aceito pode ser imoral na medida em que, se desprendendo da ética correlacionada aos conceitos administrativos, é utilizado para favorecer ou desfavorecer alguém (como no ato aparentemente válido, mas sem vínculo entre seus motivos e a finalidade legítima da competência). Ainda, segundo Garcia (2014), a juridicidade de alguns conceitos tidos como morais lhes é conferida pela base em critérios jurídicos e quando comunicam sobre o que é lícito e ilícito, e não sobre o que é bom ou mal, deixam de ser pertinentes ao sistema Moral.

Parece ser indiscutível é que a moralidade administrativa não é a mesma moralidade comum; não há moral jurídica fora do Direito e violar a moralidade administrativa é violar o próprio Direito (COMARROSANO, 2006).

Dentre os diversos direcionamentos dados ao princípio da moralidade, considerou-se como sendo a mais adequada para o presente estudo uma corrente que tem ganhado adesão entre a doutrina e a jurisprudência. Assim, considera-se, sendo esse posicionamento amparado em Giacomuzzi (2002), que a moralidade administrativa traz, sendo algo de fácil percepção, o dever da boa-fé para a Administração Pública. Sobre as correntes doutrinárias em questão, segundo Garcia (2014, p. 8),

a mais consistente é que considera que o princípio jurídico da moralidade administrativa acarreta para a Administração Pública o dever de agir com boa-fé, lealdade e transparência, respeitando as expectativas legítimas

9 – Conceito atribuído por Márcio Cammarosano.

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geradas nos administrados. As demais correntes pecam por confundir a moralidade administrativa com outros princípios, como legalidade substan-cial, impessoalidade, interesse público, proporcionalidade e/ou razoabilidade.

Sobre a importância da constitucionalização explícita da moralidade, em referência ao artigo 37, e sua condução ao enquadramento em atos de improbidade, Martins Júnior (2006, p. 45) destaca que

transcende o aspecto patrimonial justamente para a prevalência do senso Moral no exercício de uma função pública, resgatando os valores éticos amesquinhados ao longo dos tempos, instituindo, atualmente, tratamen-to mais adequado na luta contra a improbidade pela censura dos danos morais à sociedade ao lado de atos lesivos ao erário ou de enriquecimento ilícito de agentes públicos.

Bastante comum é a tentativa de apontar as aproximações e diferenças existentes entre moralidade administrativa e improbidade administrativa. Não existe definição, no ordenamento jurídico, da expressão improbidade administrativa; contudo, não há dúvidas, pela sua previsão, de que se trata de conceito constitucional. Certo é que, na tentativa de ao menos delimitá-la para que se possa ter uma linha que, de forma mais aceitável, retire ao menos parte da abstração do termo, ao fim se esbarra na ideia de moralidade administrativa. É reconhecida a complexidade da tarefa de diferenciá-las, pois ambas, conforme leciona Di Pietro (2006), estão ligadas à ideia de honestidade na Administração Pública. Ainda assim, para o desenvolvimento dessa pesquisa, optou-se por considerar a improbidade administrativa como uma imoralidade qualificada10 e, desta forma, ainda que nem toda imoralidade administrativa constitua ato de improbidade, toda improbidade administrativa ofende a moralidade administrativa11. Assim corresponde o posicionamento majoritário da doutrina, que considera a probidade como derivada da moralidade administrativa.

10 – E nesse sentido, cf. José Afonso da Silva – Curso de Direito Constitucional Positivo. “O texto

constitucional alude à moralidade administrativa e à probidade. Expressões distintas, contudo derivadas

ontologicamente. A probidade, no conceito constitucional, é forma qualificada de moralidade adminis-

trativa” (FIGUEIREDO, 2004, p. 47).

11 – Está bem localizada nesse ponto, em se tratando da moralidade administrativa, a questão de ser a

norma contida no artigo 11/LIA considerada soldado de reserva das demais modalidades.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

Por mais impreciso, vago ou indeterminado que alguém possa julgar um conceito atribuído à moralidade administrativa, visto o caminho sinuoso que deve ser percorrido para a aproximação dele, julga-se correta a ideia de que, como afirmou Moreira (2000), a dificuldade de se definir um princípio não pode gerar a sua inaplicabilidade.

Esclarecidos esses pontos, finaliza-se a abordagem sobre o princípio da moralidade com o destaque para a importância de que os agentes públicos, investidos em suas funções, estejam, em toda e qualquer conduta, orientados por padrões que não desprezem o sentido ético ao qual os atos administrativos devem estar atrelados. Isso porque, e essa direção parece ser a mais acertada, comumente adere-se, para o viés administrativo, à ideia de que a moralidade se relaciona com a busca constante do atendimento ao interesse público (OLIVEIRA, 1999).

4. ANÁLISE DESCRITIVA DAS CONDUTAS QUE, SEGUNDO O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, VIOLARAM O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

1) Apelação cível nº 70037992203, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da moralidade, da impessoalidade, da legalidade e da isonomia, onde os agentes incorreram no artigo 11, I/LIA.

Abertura de concurso público mediante o edital nº 04/97 sob responsa-bilidade do ex-Prefeito Municipal. Aprovação de candidatos com paren-tesco (irmãos do ex-Prefeito) e participação do Secretário da Adminis-tração na comissão do concurso e como candidato, que viola o princípio da impessoalidade o qual deve ser obedecido pela administração a teor do disposto no artigo 37 da CF-88. Realização de provas do concurso por outro irmão do ex-Prefeito. Participação de candidatos que tiveram favorecimento na realização de provas.

Trata-se de caso onde o certame serviu para legitimar o desvio de função de pessoas que já trabalhavam na Prefeitura, havendo vínculo entre o então Chefe do Executivo Municipal, o Hospital – do qual o mesmo era diretor – e os candidatos aprovados no concurso público. Entre estes, que no resultado final se encontraram nas primeiras colocações – visto ter sido pequeno o número de vagas abertas –, estavam os irmãos do Prefeito e o Secretário-Geral da Administração, o qual

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realizou a prova sem ter sido previamente exonerado – o que foi comprovado pela sua participação na Comissão do Concurso, fazendo parte do processo de elaboração e assinando os editais de abertura e homologação do resultado. O esquema contou com o auxílio de um examinador da prova, que também teve parente seu aprovado.

2) Apelação cível nº 70049489750, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da impessoalidade e da moralidade, onde o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA.

No caso concreto, o desvio de finalidade atribuído ao Decreto nº 11.321/ 2008 refere-se ao fato de o requerido ter desapropriado área de proprieda-de de sua família, com valor indenizatório que superior a média praticada pelo mercado à época, beneficiando-a irregularmente, ferindo o princípio da impessoalidade e da moralidade administrativa. Tem-se ainda em discussão o fato de que a desapropriação da referida área, visando a doação para empresa que iria realizar implantação de atividade industrial no local, também possuía como objetivo, em segundo plano, a valoriza-ção dos terrenos adjacentes, de propriedade da família do Prefeito, repre-sentando um negócio lucrativo para esta.

Trata-se de caso onde foi observado o desvio de finalidade do ato administrativo, visto que o decreto de desapropriação de terras no município de São Borja possuía latente falta de objetividade, em razão da indivisão (objeto juridicamente impossível) da propriedade. Assim, houve discussões dentro desse caso que se direcionaram para a verificação de existência (objeto lícito e possível em conformidade com a lei) e validade (relação finalidade e natureza) do ato. Discutiu-se, também, a possibilidade da ocorrência de superfaturamento no preço das terras, mas a mesma foi posta de lado após a demonstração de que a quantia bem correspondia às flutuações de mercado na época, visto ser lote em área valorizada. Entretanto, a compra das terras com boa localização foi justificada pela instalação de um grande frigorífico no local, o que não ocorreu – sendo assim, foi afastada a veracidade da alegação de que a desapropriação serviria para fomentar a atividade industrial na região.

3) Apelação cível nº 70036915163, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da honestidade, da lealdade e da moralidade ao ente público, onde o agente incorreu no artigo 11, I/LIA.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

Atos ímprobos praticados pelo coordenador da política de assistência farmacêutica do município de Vacaria. Entrega de medicação a pessoa já falecida. Assinatura de recibo pela cônjuge do de cujus, ex-usuário de fármacos do centro médico de Vacaria. Prova dos autos que aponta para a prática de ato ímprobo pelo servidor público ocupante de cargo em comissão, pelo fato de não cumprir com seu dever legal e agir em desvio de finalidade.

Trata-se de caso onde o agente público atuou em desvio de finalidade e em inobservância de seu dever legal. Foram comprovadas, por meio de assinaturas de recibos, as saídas de medicamentos do Centro Médico de Vacaria, do qual a responsabilidade pelo devido controle era do farmacêutico, em favor de pacientes já falecidos; assim, restou consolidada a intenção de burlar o sistema administrativo de distribuição de fármacos. O referido farmacêutico visitou a casa dos familiares dos antigos usuários do serviço para pedir que os recibos de entrega de medicamentos continuassem sendo assinados, sob alegação de que estes seriam repassados a pessoas que precisavam do tratamento, mas que, por questões burocráticas, não conseguiam ter acesso a ele. Mas, assim, os medicamentos não foram entregues às famílias dos falecidos, e nem mesmo restou comprovado que teriam sido repassados a essas pessoas que necessitavam. Ressaltou-se que doar para pessoa física bens do patrimônio da Administração Pública, sem observância das formalidades legais e regulamentares aplicáveis à espécie, configura improbidade administrativa. O conjunto de provas demostrou que o agente atuou em descumprimento de seus deveres, pois não zelou, o que deveria ser feito pela ocupação de cargo público de provimento em comissão, pelo devido controle das movimentações dos medicamentos no Centro Médico Municipal, o que correspondia às suas atribuições funcionais.

4) Apelação cível nº 70056217250, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, do princípio da moralidade, onde os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA.

Consoante narrativa contida na inicial, Revelino solicitou e recebeu em favor de Alencar, mediante “comissão” de valor ignorado, o montante de R$ 8.000,00 de Lucíola Patrícia Bastos Martins. A vantagem foi percebi-da em razão da função exercida por Alencar (vereador municipal), a fim de que não propusesse projeto de lei objetivando restringir a atividade

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comercial de estabelecimento de jogos com máquinas eletrônicas (fl. 03). Não houve o repasse do montante, em decorrência de prisão em flagrante de Revelino.

Trata-se de caso de negociação para evitar processo legislativo. Situação em que houve condenação criminal dos réus por corrupção passiva (delito de natureza formal, que se consuma com a simples solicitação da vantagem indevida). Exigência de propina feita por vereador municipal para não aprovar projeto de lei destinado a prejudicar o funcionamento de estabelecimentos que envolviam salas e máquinas de jogos. A transação foi comunicada à autoridade competente pelas pessoas interessadas no ramo e das quais estava sendo exigido o valor monetário; as negociações foram acompanhadas pela Polícia Federal, que, na situação oportuna, efetuou o flagrante.

5) Apelação cível nº 70056483969, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da moralidade, da legalidade e da eficiência, onde os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA.

[...] já se percebe nítido desvirtuamento da hipótese específica de dispensa de licitação, na medida em que a contratação se deu totalmente às avessas do regramento legal que rege a contratação na esfera da Administração Pública, notadamente porque se tratou de verdadeira operação de compra e venda de equipamentos de informática – hardware e software –, com ale-gada “instituição” que não preenchia, forma adequada, os requisitos legais.

Caso em que houve evidente burla do procedimento licitatório, inclusive com a aquisição de equipamentos superfaturados e em quantidade acima da necessária. A contratada não preenchia os requisitos do artigo 24, XIII da Lei de Licitações pela demonstração de que não se tratava efetivamente de instituição destinada a prestar projetos de pesquisa, de ensino ou de desenvolvimento institucional; também não poderia ter, pelo pouco tempo de existência, reputação inquestionável e, pelos valores percebidos, não se pode aceitar a alegação de que não possuía fins lucrativos. A nulidade do contrato que estabeleceu a situação já havia sido comprovada por ação popular e foi mantida em grau de apelação.

6) Apelação cível nº 70044029098, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, do princípio da moralidade e dos deveres de boa administração, lealdade e boa-fé, onde os agentes incorreram no artigo 11, I /LIA.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

[...] houve a prática de atos de improbidade pelos réus, [...] ocupantes do cargo de Guarda Municipal, ao tentarem a prática do crime de furto in-vadindo a propriedade do Centro Administrativo municipal e com o uso de escada e arrombamento de janela, tentaram adentrar no prédio fora do horário de serviço. Crime que só não se consumou em vista da atuação dos guardas municipais que exerciam atividades no momento dos fatos. Flagrante que ensejou a prisão temporária dos réus e o processamento criminal que embora tenha tido sentença condenatória, teve a absolvi-ção dos réus em grau recursal. Instauração de processo administrativo disciplinar que ensejou a suspensão dos servidores [...]. Comunicação de posterior exoneração informada pelos réus nos depoimentos na fase ins-trutória.

Trata-se de caso onde agentes públicos – guardas municipais – no horário de folga, invadiram o Centro Administrativo Leopoldo Petry, sede do governo do Município de Novo Hamburgo, em tentativa de furto, a qual somente não se consumou por circunstâncias alheias à vontade dos agentes. Ambos tiveram voz de prisão dada por colegas da Guarda Municipal, que faziam a ronda noturna no local, e foram detidos, tendo sido lavrado auto de prisão em flagrante, com a apreensão de petrechos próprios para a consumação do crime. Restou comprovado o interesse na conduta delituosa pela demonstração de que no prédio, no andar em que os réus adentraram, funcionava a tesouraria e o setor de arrecadação, e, no andar de baixo, havia caixas eletrônicos. Ainda assim, os agentes foram absolvidos, em segundo grau, por falta de provas. Caso em que os réus também causaram prejuízo ao erário, pois, na tentativa de consecução de seus objetivos, quebraram uma janela do local. Em relação aos princípios violados, ficou entendido, conforme se extrai do voto do relator, Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco, que “o fato de os réus não estarem no horário de trabalho no momento dos fatos não afasta o seu dever de zelar pelos bens da Administração Pública para a qual trabalhavam e os remunerava”.

7) Apelação cível nº 70051814788, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, do princípio da moralidade administrativa, onde a agente incorreu no artigo 11, caput e inciso II/LIA.

A prova dos autos demonstra que a ré Josemary atuou como Procuradora do Município de Tramandaí em diversas execuções fiscais movidas con-

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tra empresas de propriedade de seu marido e de sua mãe, ocasiões em que deixou de informar o endereço correto das executadas. [...] Ausência de prova de dano ao erário, impossibilitando a condenação das rés Apeka e Apekury com base na culpa presumida. Ausente demonstração de dolo das pessoas jurídicas demandadas.

Trata-se de caso em que as provas dos autos demonstraram que a ré atuou como Procuradora do Município de Tramandaí em execuções fiscais movidas contra empresas com as quais possuía vínculos, já que, além da relação familiar, a demandada era também procuradora delas, oportunidade na qual deveria se declarar impedida de agir contra tais pessoas jurídicas. O favorecimento se deu nas ocasiões em que deixou de informar o endereço correto das executadas. Nesse caso não foi demonstrado prejuízo ao erário, pois não houve atuação da ré na Procuradoria durante todo o prazo prescricional.

8) Apelação cível nº 70055025761, onde restou configurada a violação, conforme o disposto no voto do relator, do princípio da moralidade administrativa, onde o agente incorreu no artigo 11, III/LIA “Desta feita, tendo em vista que o réu valeu-se de sua condição de servidor público para apropriar-se de dinheiro público é ínsito o reconhecimento da violação dos princípios que regem a Administração Pública”.

Trata-se de caso onde houve desvio de verbas pelo tesoureiro da FASC, alterando o destino do dinheiro que correspondia aos montantes que deveriam ser recebidos pelos fornecedores e dos valores que se encontravam guardados em cofre. Levantou-se a questão, e assim ficou decidida, da legitimidade passiva de herdeiros para a cobrança de multa civil aplicada. Isso porque o agente foi condenado, tendo em vista que, mesmo alegando que pagava fornecedores com seu próprio dinheiro e depois apenas ressarcia-se com o dinheiro da FASC, ficou clara a irregularidade cometida quando observada a falta de qualquer procedimento administrativo para tanto.

9) Apelação cível nº 70058271883, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da moralidade, da imparcialidade, da legalidade e da lealdade às instituições, onde os agentes incorreram no artigo 11, I /LIA.

[...] encaminhamento de projetos de lei à Câmara de Vereadores visando ao custeio do IV Fórum de Juventude Políticas do MERCOSUL, sem

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

esclarecer que se tratava de evento organizado pela juventude do Partido dos Trabalhadores, com caráter nitidamente ideológico e partidário.

Trata-se de desvio de finalidade do pedido de custeio, pelos cofres públicos, de evento que possuía, conforme provas dos autos, cunho político e partidário. A conduta ímproba do então Prefeito Municipal de São Leopoldo se deu no momento em que induziu ao erro os vereadores, pois, quando do encaminhamento do projeto de lei à Câmara, se omitiu da verdadeira intenção do evento, sob justificativa de criação de políticas públicas para a juventude. O cunho partidário ficou bem demostrado na divulgação do evento (folder com logo do partido e com a informação de que a organização estava sob a responsabilidade da juventude do partido) e o cunho ideológico em sua realização (já que as temáticas abordadas eram voltadas para a agenda dos militantes de esquerda e foram convidados a participar apenas partidos aliados e agremiações de mesma ideologia do partido; entidades e representantes dos demais segmentos da comunidade local não foram convidados). Essa discussão foi remetida ao aspecto constitucional por justamente conflitar com um dos fundamentos da República Federativa do Brasil: o pluralismo político (art. 1º, V, da CF).

10) Apelação cível nº 70056612583, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, onde os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA.

Malferimento às regras de licitação. Por todo o exposto, depreende-se do contexto probatório presente nos autos, que o demandado Luis Car-los Repiso Riela incorreu nos atos de improbidade previstos no artigo 10, caput (duas vezes), e inciso X (uma vez), e no artigo 11, caput (sete vezes), da Lei nº 8.429/92, porquanto causou lesão ao erário, ensejando perda patrimonial ao Município de Uruguaiana, enquanto Prefeito Muni-cipal, com liberação ilegal de verbas públicas, negligência na arrecadação de impostos e violação aos princípios da legalidade, moralidade e impes-soalidade, norteadores da Administração Pública, bem como evidenciada a responsabilidade do demandado, porquanto como ordenador de despe-sas, lhe competia averiguar a correção e lisura de todos os fatos aqui.

Trata-se de caso onde dez fatos foram apontados como ímprobos, os quais se relacionam, especialmente, à licitação feita em modalidade convite sem

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comprovação do chamamento de três concorrentes, beneficiando uma única empresa, portanto; aos pagamentos dos preços integrais contratados antes das entregas acertadas e da conclusão das obras; ao fato de se ter permitida a inclusão, no objeto da licitação, do fornecimento de materiais e serviços sem previsão das respectivas quantidades; à negligência na arrecadação de tributos que possibilitou que vultosa soma acabasse prescrita e ao fato de o ex-Prefeito não ter deixado disponibilidade orçamentária suficiente para o pagamento de despesas empenhadas em seu mandato. Especificamente em relação ao princípio da moralidade, não houve observância, sem justificativa plausível para tanto, das exigibilidades de ordem cronológica para a realização dos pagamentos dos credores, o que demostra o favorecimento de alguns em detrimento dos demais.

11) Apelação cível nº 70057595977, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, onde o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA.

Malferimento às regras de licitação. [...] Comete ato de improbidade administrativa, tipificado no art. 11, caput, da Lei n. 8.429/92, o ex-Prefeito Municipal que efetua compra de material escolar para es-colas municipais sem processo licitatório e sem processo de dispensa de licitação.

Trata-se de caso onde as formalidades legais estabelecidas com o propósito de preservar o Patrimônio Público não foram observadas, sendo condenado o antigo Chefe do Executivo Municipal por ter autorizado a compra, sem o prévio e devido procedimento licitatório, ou mesmo sua dispensa, de materiais escolares, em valor global de R$51.765,70. O Prefeito agiu, portanto, em desacordo com o preconizado no artigo 37, XXI da CF e no artigo 2º da Lei de Licitações, violando, assim, os princípios norteadores da Administração Pública.

12) Apelação cível nº 70052712312, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios descritos no artigo 37 da CF, onde os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA.

Pagamento de propina efetuado por escritório de advocacia a Oficial de Justiça, a fim de agilizar o cumprimento de mandado judicial de seu in-teresse, inclusive oscilando o valor conforme o resultado da diligência. Recebimento indevido pelo serventuário da justiça.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

Trata-se de caso onde existia recebimento de propina, por parte de Oficial de Justiça – condenado por enriquecimento ilícito –, para agilização e cumprimento de mandados de reintegração de posse e de busca e apreensão. Essa gratificação indevida era oferecida por Escritório de Advocacia – que teve sócios e advogados condenados por atentado contra os princípios da Administração Pública – que tinha interesse no eficaz e célere cumprimento dos mandados, que bem são atividades típicas desse agente. Conforme se extrai do voto do relator, Des. Irineu Mariani, corresponde a um tipo de demanda recorrente no Judiciário gaúcho, inclusive sendo comuns os réus em diversos processos. A rede de corrupção foi oficializada com a emissão, pelo Escritório Matriz, de uma circular informativa que tabelava e uniformizava os valores – diferentes da tabela de custas oficial – que seriam repassados para o Oficial de Justiça em forma de contraprestação. A importância percebida era diferenciada pelo êxito ou pela negativa no cumprimento do mandado e o dito adiantamento de custas, conforme alegado pelo Escritório, não coube ao caso, pois, justamente por essa diferenciação, os valores eram pagos posteriormente.

13) Apelação cível nº 70057551814, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, onde o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA.

Comete ato de improbidade administrativa, tipificado no art. 11, caput, da Lei n. 8.429/92, o então Diretor Geral da Fundação Hospitalar São José, do Município de Cambará do Sul, que nomeou cargos em comissão fora dos casos de Chefia, Direção e Assessoramento Superior, violando o disposto no inciso V do art. 37 da CF.

Trata-se de caso em que houve prática fraudulenta que acarretou indevida dispensa de concurso público, com clara demonstração de desvio de finalidade de atos administrativos. O então Prefeito Municipal de Cambará do Sul nomeou para cargos em comissão pessoas para atuar em funções meramente executórias, ou seja, atividades que dispensariam vínculo de confiança. Os nomeados exerciam funções corriqueiras e burocráticas, sem que existisse qualquer relação com as denominações de cargos previstas em portaria específica. Os mesmos, ainda que não tivessem feito campanha política no período eleitoral ou fossem filiados, passaram a contribuir, através de desconto em seus vencimentos, com o partido do Prefeito. Ainda que tenha sido alegado que as contribuições ocorriam de forma

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espontânea, ficou comprovado que as nomeações tinham o escopo de conseguir financiamento ao partido – o que possivelmente não aconteceria quando da existência de concursados, pelo caráter de menor vulnerabilidade, para a realização das tarefas (de servente, de auxiliar administrativo e de operário) que eram as executadas.

14) Apelação cível nº 70052688124, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, que, excepcionalmente, foi complementada com o voto vencedor, dos princípios da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, onde o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA.

Recebimento de objeto com características diversas das exigidas pelo edi-tal. Inobservância dos artigos 43, inciso IV, 44 e 45 da Lei n. 8666/93, bem como, dos princípios da isonomia entre os licitantes. [...] Vê-se, portanto, que a conduta imputada a Cláudio Fernando Brayer – Prefeito Municipal – resta perfeitamente comprovada pelos documentos e demais elementos constantes dos autos, configurando verdadeiro ato de impro-bidade administrativa, em razão da inobservância das disposições legais atinentes ao julgamento objetivo das propostas e da vinculação ao edital, assim como, aos princípios que devem reger a administração, especial-mente, o da moralidade e impessoalidade.

Trata-se de caso onde houve responsabilização da empresa que venceu a licitação e de seus sócios, além da condenação, pela violação aos princípios que devem direcionar o agente público, do ex-Prefeito Municipal de Santa Vitória do Palmar. Deveria ter sido oferecida nova oportunidade a outro licitante de fazer proposta que possuísse objeto com as mesmas características daquele entregue pela empresa vencedora. Além disso, levantou-se a questão de que a municipalidade, conforme artigo 76 da Lei de Licitações, deveria ter rejeitado o produto ou exigido sua devida adequação. Mesmo com a ocorrência de condenação, ficou entendido que o Prefeito e a contratada não agiram em conluio.

15) Apelação cível nº 70042567016, onde restou configurada a violação, conforme o disposto no voto vencedor, dos princípios da publicidade, da moralidade e da impessoalidade, onde os agentes incorreram no artigo 11, I/LIA.

Termo de concessão de uso firmado pelo ex-prefeito e o diretor da empre-sa concessionária para o fim de exploração de extração de reservas mine-

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rais (pedras) de imóvel localizado em Pontas da Serra – Capão do Leão. Ato administrativo entabulado sem processo licitatório prévio. Violação à Lei nº 8.666/90 e aos princípios da Administração Pública.

Trata-se de caso de inobservância do disposto na Lei de Licitações para a concessão de uso de bem imóvel público, sendo atribuída a improbidade administrativa ao ex-Prefeito e à empresa concessionária de jazida mineral. O termo de concessão de uso de bem imóvel público foi firmado através de ato unilateral e precário, levantando-se a discussão, por impropriedade documental, se era caso de permissão de uso (dispensaria a licitação) ou de concessão de direito real de uso (torna necessária a licitação). Restou configurada a improbidade pela comprovação que se visava fim proibido em lei e por se ter deixado de praticar ato de ofício, frustrando a licitude do procedimento licitatório, que nesse caso nem mesmo chegou a existir.

16) Apelação cível nº 70050101898, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, dos princípios da legalidade, da moralidade e da honestidade, onde os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA.

CONCURSO PÚBLICO. INOBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. [...] A improbidade admi-nistrativa se caracteriza pela conduta antiética do agente do Poder Públi-co, na condução da ‘coisa pública’, desviando-se dos princípios da legali-dade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Trata-se de caso onde ocorreram diversas irregularidades em concurso público, as quais levaram a condenações por improbidade: do ex-Prefeito de Coqueiros do Sul e do sócio da empresa que realizou a prova. Bastante sintético é o inteiro teor desse julgado, o que dificultou a precisão dos fatos ocorridos. Entretanto, depreende-se do relatório que existiram aspectos problemáticos em questões que envolviam as formalidades do concurso: na (falta de) realização do sorteio entre os candidatos empatados; na aplicação de provas práticas para alguns cargos; na falta de aplicação de determinadas disciplinas nas provas para cargos específicos e na homologação das inscrições. Além disso, a contratação da empresa foi feita de forma irregular, houve omissão na prestação de esclarecimentos ao Tribunal de Contas do Estado e aprovação de pessoas próximas (mesmo partido político, servidores contratados emergencialmente e parentes) ao agente público.

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Todas essas irregularidades acabaram por fazer necessária a realização de um novo concurso.

17) Embargos infringentes nº 70060737863, onde restou configurada a violação, conforme o disposto na ementa, do princípio da moralidade, onde os agentes incorreram no artigo 11, I e II /LIA.

Exigência econômica para omitir ato de ofício. Conduta que se amolda aos artigos 9º, inciso X, e 11, incisos I e II, ambos da lei nº 8.429/92. [...] amplamente comprovado que o embargado e o delegado de polícia uniram-se para exigir vantagem indevida de cooperativa, consistente no pagamento de R$ 100.000,00, a fim de que fosse adotada linha investiga-tiva, em relação àquela associação, que lhe fosse favorável, enquadram-se nos atos ímprobos do art. 9º, inciso X, bem como nas descritas no art. 11, I e II, ambos da Lei de Improbidade Administrativa.

Trata-se de caso de ocorrência de embargos infringentes pelo disposto na primeira parte do artigo 530 do Código de Processo Civil. Situação na qual os agentes foram condenados, na esfera penal, por crime de concussão. O Delegado de Polícia se dispôs a conduzir inquérito policial, recebendo alta quantia em dinheiro como contraprestação, de forma mais favorável aos investigados. Em conjugação de esforços e comunhão de interesses, atuou o advogado, militante na comarca, que intermediou as negociações12. Assim, com o contato inicial feito pelo delegado e a conduta sendo impulsionada pelo advogado, os dirigentes da cooperativa que foi informada da abertura do inquérito levaram a questão ao Ministério Público. Dessa forma, por meio de interceptações telefônicas, todo andamento das negociações foi monitorado, e quando da data, hora e local marcados para o recebimento de uma primeira parcela, o que foi efetivamente feito, houve uma intervenção policial que prendeu o intermediador em flagrante e apreendeu a quantia. A conduta somente não teve a finalização pretendida por circunstâncias alheias à vontade dos agentes. Quando do momento de apelação da sentença, ficou entendido que, por falta desse efetivo

12 – Sobre a condenação baseada no artigo 11 da LIA, o Des. Marco Aurélio Heinz apresenta en-

tendimentos que divergem da doutrina majoritária sobre a modalidade por apresentar uma noção de

improbidade impossível, pretendendo descaracterizar a conduta do advogado: “Restaria a figura do

art. 11 – proteção à moralidade pública –, que é ato de improbidade impossível, porque, não sendo

funcionário público, ele não pode praticar. Isso atenta contra a natureza do art. 11, que não comporta

coautoria. Claro que só o funcionário público pode praticar atentado à moralidade pública [...]”.

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recebimento e pela ausência de desfavor à Administração Pública, era improcedente a ação civil pública em relação ao advogado e foi declarado extinto o feito em relação ao delegado, em razão de seu falecimento; nesses embargos infringentes ficou entendido que o que não houve foi apenas o aproveitamento pessoal do valor.

CONCLUSÃO

Conforme se depreende do artigo 11 da LIA, a improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública compreende a conduta funcional, seja ela comissiva ou omissiva, violadora de princípios reguladores, sendo que a prática deve demostrar que o agente público atuou, de forma dolosa, com ausência de boa-fé, probidade e honestidade.

Quando da fase preliminar de análise jurisprudencial, analisando a amostra de julgados referente às condenações baseadas na modalidade em estudo, o primeiro objetivo específico foi alcançado ao se identificar qual havia sido o princípio que fundamentou número maior de condenações. Para melhor visualização do panorama já apresentado, os índices de todos os princípios mencionados no universo analisado (41 julgados) podem ser exibidos na seguinte representação gráfica:

Princípios

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Nesse aspecto, acredita-se que esse resultado não se deu tão somente pela ideia abrangente a qual se pode chegar quando da busca da conceituação do princípio da moralidade ou ainda pela sua ampla aplicação dentro dos casos de improbidade administrativa – a imoralidade qualificada –, mas sim pela sua relação com a necessidade de que os agentes públicos atuem visando a administração honesta e regida pela boa-fé. Entretanto, apenas pode ser tecida a hipótese nesse direcionamento, pois, conforme já referido, nos julgados não foi levantado o debate com amparo doutrinário sobre as razões de ser o ato considerado violador do princípio em destaque.

Na análise descritiva das condutas que geraram condenações pelo artigo 11/LIA, observou-se o que segue: 1 - Situação em que concurso público serviu para legitimar desvio de função de pessoas ligadas ao Prefeito Municipal, afrontando os princípios da moralidade, da impessoalidade, da legalidade e da isonomia, onde os agentes incorreram no artigo 11, I/LIA; 2 - Caso em que foi observado desvio de finalidade de ato administrativo, quando da existência de decreto de desapropriação que, pelo objeto juridicamente impossível, possuía latente falta de objetividade. Pela violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade, o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA; 3 - Circunstância onde o agente público, farmacêutico responsável pela Centro Médico municipal, atuou com intenção de burlar o sistema de distribuição de medicamentos, restando comprovado o desvio de finalidade, além da inobservância de seu dever legal. Pela afronta aos princípios da honestidade, da lealdade e da moralidade ao ente público, o agente incorreu no artigo 11, I/LIA; 4 - Oportunidade em que vereador municipal, com auxílio de intermediador, exigiu propina para evitar processo legislativo que poderia prejudicar estabelecimentos que trabalhassem com máquinas e salas de jogos. Pela afronta ao princípio da moralidade, os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA; 5 - Ocasião onde o procedimento licitatório foi burlado através de fraudes ao disposto na Lei de Licitações em operação que envolveu compra e venda de equipamentos de informática. Pela violação dos princípios da moralidade, da legalidade e da eficiência, os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA; 6 - Feito onde guardas municipais tentaram furtar pertences que estavam na sede do governo municipal, o que somente não se consumou por circunstâncias alheias ao que era pretendido pelos agentes. Pela inobservância do princípio da moralidade e dos deveres de boa administração, lealdade e boa-fé, os agentes incorreram no artigo 11, I/LIA; 7 - Situação em que a procuradora do município moveu execuções contra empresas, com as quais possuía vínculos, de forma fraudulenta.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

Pela violação ao princípio da moralidade administrativa, a agente incorreu no artigo 11, caput e inciso II/LIA; 8 - Caso em que tesoureiro da FASC deixou de observar o procedimento administrativo necessário para pagamento de despesas e posteriores reembolsos, alterando destino do dinheiro. Pela afronta ao princípio da moralidade administrativa, o agente incorreu no artigo 11, III/LIA; 9 - Ocasião em que o então Prefeito Municipal induziu ao erro vereadores para que fosse concedido custeio, pelos cofres públicos, de evento organizado pelo partido, com evidente cunho político, em nítido desvio de finalidade. Pela violação aos princípios da moralidade, da imparcialidade, da legalidade e da lealdade às instituições, os agentes incorreram no artigo 11, I /LIA; 10 - Oportunidade em que ocorreram diversas fraudes em procedimento licitatório, com irregularidades na contratação e execução e no pagamento dos serviços, havendo alteração na ordem de cumprimento do pagamento de fornecedores durante o governo do ex-Prefeito Municipal. Pela inobservância dos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA; 11- Circunstância em que as formalidades legais que visam proteger o patrimônio público não foram observadas pelo então Prefeito Municipal, não tendo sido estabelecido o devido procedimento licitatório para compra de materiais escolares. Pela inobservância dos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA; 12 - Ensejo em que houve conluio entre Oficial de Justiça e Escritório de Advocacia, que teve sócios e advogados condenados por violação dos princípios que regem a Administração Pública, para, mediante propina, a agilização e o célere cumprimento de mandados. Pela afronta aos princípios descritos no artigo 37 da CF, os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA; 13 - Caso onde houve indevida dispensa de concurso público, por meio de prática fraudulenta que partiu do então Prefeito Municipal, e nomeação para cargos comissionados que serviram para financiamento partidário. Pela afronta aos princípios da legalidade, da moralidade e da impessoalidade, o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA; 14 - Feito onde a Administração Pública aceitou receber objeto com caraterísticas diversas das previstas em edital, momento em que o então Prefeito Municipal deveria observar o artigo 76 da Lei de Licitações. Pela violação dos princípios da isonomia, da moralidade e da impessoalidade, o agente incorreu no artigo 11, caput/LIA; 15 - Ocasião onde não se observou a Lei de Licitações, não tendo sido realizado o devido procedimento para a concessão de uso de bem imóvel público, tendo sido condenados o ex-Prefeito Municipal e a empresa que explorava jazida mineral. Pela afronta aos princípios da publicidade, da moralidade

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Karine Silva dos Santos e Ricardo Hermany

e da impessoalidade, os agentes incorreram no artigo 11, I/LIA; 16 - Oportunidade onde ocorreram diversas irregularidades nas formalidades necessárias para a realização de concurso público, sendo inclusive aprovados candidatos próximos ao ex-Prefeito Municipal. Pela violação dos princípios da legalidade, da moralidade e da honestidade, os agentes incorreram no artigo 11, caput/LIA; 17 - Situação onde Delegado e advogado, para condução do procedimento de forma mais favorável, contataram investigados em inquérito policial para exigir propina. Pela afronta ao princípio da moralidade, os agentes incorreram no artigo 11, I e II /LIA.

Sobre essa questão específica do detalhamento das condutas que geraram condenações, não se pode afirmar, em virtude de atos muito diversos entre si e pelas especificidades de cada caso, que existe um padrão claro de condutas ímprobas que geram condenação por violação à moralidade administrativa, acompanhada, ou não, de outros princípios. O que se pode apresentar é a indicação de questões mais recorrentes, já previsíveis de antemão, de onde destaca-se a ocorrência de burlas a procedimentos administrativos, sejam eles licitatórios ou de concursos públicos, e de desvios de finalidade.

Quanto ao enquadramento legal quando do julgamento pela condenação, parece que não se encontra, por parte dos julgadores, grande necessidade de apontar em qual dos incisos do artigo 11 da LIA o agente incorreu; dessa maneira, pode-se compreender que eles são meramente exemplificativos. Para melhor visualização, novamente, recorre-se à representação gráfica:

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

Deduz-se que essa situação decorre do fato de a indicação do inciso não interferir nas sanções aplicáveis. Contudo, não se pode pretender retirar a importância da presença desses incisos no texto legal, pois bem se prestam a direcionar o entendimento a que condutas o legislador se referia para cada modalidade quando da criação da LIA.

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Karine Silva dos Santos e Ricardo Hermany

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_____._____. Apelação Cível nº 70042567016. Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco. Data de Julgamento: 26/09/2013(i). Data de publicação: 20/01/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1958792.

_____._____. Apelação Cível nº 70050101898. Relator: Alexandre Mussoi Moreira. Data de Julgamento: 18/12/2013(j). Data de publicação: 18/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2267462.

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_____._____. Apelação Cível nº 70058271883. Relator: Marilene Bonzanini. Data de Julgamento: 27/02/2014(b). Data de publicação: Diário da Justiça do dia 10/03/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=214023.

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_____._____. Apelação Cível nº 70057595977. Relator: João Barcelos de Souza Junior. Data de Julgamento: 16/04/2014(d). Data de publicação: 29/04/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=504795.

_____._____. Apelação Cível nº 70052712312. Relator: Irineu Mariani. Data de Julgamento: 28/05/2014(e). Data de publicação: 05/06/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano= 2014&codigo=659980.

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Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS

_____._____. Embargos Infringentes nº 70060737863. Relator: Marilene Bonzanini. Data de Julgamento: 19/09/2014(g). Data de publicação: 17/10/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1624144.

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DOS ARGUMENTOS/CRITÉRIOS PREPONDERANTES UTILIZADOS EM ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PARA A REFORMA/MANUTENÇÃO DE DECISÕES DE 1º GRAU EM AÇÕES CIVIS PÚBLICAS POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA1

Augusto Carlos de Menezes Beber2

Luiz Egon Richter3

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como escopo um diagnóstico e breve crítica da jurisprudência gaúcha no que tange às reformas ou manutenções de decisões acerca da matéria de improbidade administrativa, veiculadas por meio de ação civil pública. A partir dessa perspectiva quer-se investigar, no âmbito do Poder

1 – O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de

grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pú-

blica e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério

Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em

Políticas Públicas – CIEPPP.

2 – Graduando do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista do Pro-

grama de UNISC Iniciação Científica (PUIC). E-mail: [email protected]

3 – Doutorando em Direito. Mestre em Desenvolvimento Regional. Especialista em Direito Consti-

tucional pela UNISC e Especialista em Direito das Coisas pela Unisinos. Professor da graduação da

Universidade de Santa Cruz do Sul, titular da disciplina de Direito Administrativo. Registrador Público.

E-mail: [email protected]

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Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter

Judiciário gaúcho, se existe um padrão decisório nos casos escolhidos, e, em caso positivo, descobrir quais os argumentos e/ou critérios que embasam suas decisões, tanto condenatórias quanto absolutórias em ações civis públicas de improbidade administrativa, observando-se especialmente quando o Tribunal de Justiça reforma e quando ele mantém a sentença proferida em 1º grau. Em outras palavras, quer-se saber o seguinte: quando o Tribunal de Justiça reforma as decisões, que elementos ele usa para modificar o decisum?

Partindo dessa proposta, este trabalho desenvolve-se a partir de um estudo realizado em dois momentos: no primeiro, são identificados os elementos reformadores preponderantes a partir da jurisprudência. No segundo, apresenta--se uma breve crítica baseada na dogmática jurídica que possibilita a comparação entre o que mostra a jurisprudência e o que fala a teoria do direito.

Assim, adianta-se que a análise jurisprudencial levou, no primeiro momento, a considerar duas espécies de construção teórica: argumentos e critérios. Apesar de tênue, tentar-se-á sustentar sua diferença a partir da separação entre reformas parciais e totais realizadas pelo Tribunal de Justiça. À nível semântico, conforme Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2010), argumento, do latim argumentu, indica raciocínio, indício ou prova pela qual se tira uma consequência ou dedução. Neste sentido, Antonio Houaiss (2010, p. 64) afirma que argumento “é raciocínio que conduz à dedução de algo.” Critério, por outro lado, do grego kritérion e do latim criteriu, é aquilo que serve de base para comparação, julgamento ou apreciação, entendido também como caráter, norma ou modelo que serve para a apreciação de um objeto (FERREIRA, 2010). Segundo Houaiss (2010), critério é norma de avaliação e escolha, sendo, por exemplo, a base para uma decisão.

A separação dos elementos justificadores (identificados na jurisprudência) entre critérios e argumentos se faz pelo fato de haver, nas decisões judiciais, fundamentações desenvolvidas em diferentes graus. Como o objetivo deste trabalho é descobrir quais são os elementos embasadores das reformas, essa divisão se apresenta como uma classificação prévia dos elementos que sustentam as decisões dos magistrados. Entende-se preliminarmente que os critérios, conforme definição acima, possuem uma ordem mais objetiva, de incidência direta sobre o resultado das decisões. Argumentos, de outra forma, exigem uma construção mais complexa, exatamente por serem raciocínios realizados pelo julgador, que pretende levar aos demais ao convencimento sobre sua tese. Portanto, ao longo deste trabalho, ora alguns elementos se assemelharão mais a critérios, haja vista sua incidência de caráter mais objetivo, ora como argumentos, dependendo da forma como são

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

apresentados nas decisões. Posteriormente, retomar-se-á esta separação a partir da crítica à jurisprudência, onde se fará uma reflexão sobre a sustentação dessa divisão.

De igual maneira, é mister destacar que, em sede de decisão judicial, tem--se consagrado hoje, tanto por dispositivos constitucionais quanto por estatutos e diplomas infraconstitucionais o chamado princípio do livre convencimento4, o que, em uma curta conceituação, permite aos magistrados a livre apreciação racional das provas e circunstâncias do caso concreto para o fim de emanar a decisão mais adequada para cada situação. O princípio do livre convencimento, somado à garantia do duplo grau de jurisdição5, permite o surgimento de uma multiplicidade de decisões, diversas em suas matizes, devido às diferentes perspectivas de apreciação dos casos-objeto dos processos judiciais. Portanto, a partir da janela do livre convencimento e do duplo grau de jurisdição é possível apanhar um leque de decisões sobre a mesma matéria, proferidas em diferentes instâncias, e, desse modo, analisar seus fundamentos, semelhanças e diferenças.

O debate sobre improbidade administrativa vem ao encontro das discussões realizadas no bojo do grupo de pesquisa de Rede de Estudos sobre Patologias Corruptivas, haja vista que a corrupção, aqui vista não somente em sua esfera normativo-criminal, mas como um fenômeno de diversas faces, abrange também as condutas ímprobas que aparecem na forma da Lei de Improbidade Administrativa.

Alerta-se desde já que o tema da improbidade pode ensejar uma extensa diversidade de análises e categorias de estudo, ao levar a temática para a seara das decisões judiciais. Podem-se classificar as decisões quanto aos sujeitos envolvidos, quanto à conduta-objeto da improbidade, quanto ao resultado das decisões, etc. O presente texto, entretanto, centrar-se-á na categorização e estudo das

4 – Segundo Wabier e Talamini, o princípio do livre convencimento motivado, positivado no ordena-

mento jurídico processual no art. 131, do CPC, encontra respaldo na ideia de que, ao realizar a fun-

damentação de suas decisões, o juiz buscará expor as razões de seu convencimento de forma clara, de

maneira que tantos outros que tiverem acesso e lerem a decisão tendam a chegar na mesma decisão que

o julgador chegou (WAMBIER; TALAMINI, 2014).

5 – O duplo grau de jurisdição, chamado por Araken de Assis de princípio do duplo grau na unidade

do processo, “é o direito de provocar outra avaliação do seu alegado direito, de ordinário perante órgão

judiciário diverso e de superior hierarquia” (ASSIS, 2014, p. 83). Segundo Wambier e Talamini, este

princípio nasceu de uma preocupação com o abuso do poder pelos magistrados, entendido, dessa for-

ma, como garantia fundamental de boa justiça (WAMBIER; TALAMINI, 2014).

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Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter

decisões sobre improbidade administrativa conforme os critérios e/ou argumentos utilizados para fundamentar os acórdãos proferidos pelo TJRS.

As decisões judiciais analisadas foram coletadas no dia 28.09.2014, no website www.tj.rs.jus.br, no link Jurisprudência, por meio da guia Pesquisa de Jurisprudência. Foi utilizada a ferramenta de busca avançada, a fim de delimitar o espaço temporal da pesquisa em um ano, selecionados, portanto acórdãos julgados entre 24.09.2013 e 24.09.2014. A abrangência da pesquisa se limitou a ementa (visto que, a alternativa, que seria busca por inteiro teor, filtraria acórdãos que possuíam apenas referência à temática), com busca na esfera cível. O restante das abas não foi alterado (órgão julgador, relator, tribunal, tipo de processo, comarca de origem, etc.)6

A metodologia de pesquisa, portanto, possui dois grandes núcleos: no primeiro, uma dimensão quantitativa, a qual contempla os acórdãos selecionados na forma acima descrita, julgados pelo TJRS, no qual há uma identificação de quantas decisões foram julgadas no período, quais os recursos que foram apreciados, quem foram os agentes legitimados e quantas condenações e absolvições ocorreram em 1º e 2º grau de jurisdição. O segundo momento, de dimensão qualitativa, consiste na leitura e análise exemplificativa dessas decisões, a fim de identificar quais foram os elementos preponderantes usados para reformar a decisão do juiz singular.

Trata-se, em linhas gerais, de um recorte realizado para delinear as perspectivas adotadas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em casos de improbidade administrativa. A eleição de critérios/argumentos preponderantes implica não em uma explanação detalhada sobre todas as decisões e todos os elementos decisórios, mas na demonstração por meio de apontamentos e citações (e aqui se revela a perspectiva do pesquisador-observador) dos critérios/argumentos mais usados para fundamentar as decisões de condenação ou de absolvição. Assim, considerando os dados levantados e a crítica desenvolvida ao final, espera-se colaborar com o propósito de diagnóstico e a descoberta de vias alternativas para contribuir para o enfrentamento do problema da corrupção.

6 – Na data da coleta das decisões, o sistema de busca de jurisprudência do Tribunal utilizava as fer-

ramentas apontadas neste texto. Hoje, devido a algumas atualizações do site, o leque de opções de

busca é diferente, com ferramentas e campos de busca parcialmente distintos daqueles apontados nesta

pesquisa.

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

1. DO RECORTE TEMPORAL E QUANTITATIVO ACERCA DOS

JULGADOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE

DO SUL SOBRE O TEMA DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Dos meios de pesquisa utilizados, mencionadas na introdução supra, utilizou-se como termo de busca na caixa com todas as palavras a expressão “improbidade administrativa” (sem aspas), e na caixa com a expressão o correspondente “ação civil pública” (sem aspas). Como resultado, foram encontrados 211 acórdãos, todos referentes a demandas julgadas no período de 24.09.2013 e 24.09.2014.

Deste total, foram contabilizadas oitenta e cinco (85) apelações; oitenta (80) agravos (de instrumento e interno); sete (07) embargos infringentes e trinta (30) embargos de declaração. Destes, somam-se 202 acórdãos. As demais nove decisões importaram em três apelações e um agravo que não estavam relacionados com este estudo; uma ação rescisória; um reexame necessário, uma exceção de suspeição e duas decisões indisponíveis eletronicamente, que não puderam ser analisadas.

Tratando-se de uma análise que visa à identificação de critérios/argumentos de reforma de decisões em sede de ação civil pública por atos de improbidade administrativa, é importante salientar que a análise exaustiva de toda espécie recursal mostra ser dispendiosa em relação ao objetivo final deste trabalho. Haja vista que, primacialmente, apenas os recursos de apelação e os embargos infringentes possuem uma carga recursal que devolve toda a matéria julgada para nova decisão, possibilitando, por conseguinte, uma releitura da lide, foram estes os recursos prioritariamente analisados.

Os agravos, tanto internos quanto aqueles interpostos na forma de instrumento foram apreciados apenas de forma a identificar a mais incidente matéria neles versada, abaixo descrita. Os embargos de declaração, por sua vez, haja vista sua própria natureza aclaratória – sem o condão, ordinariamente, de modificar o decisum – foram analisados na medida em que receberam efeito infringente.

Das 85 apelações, 37 foram interpostas pela acusação, 34 pela defesa e, em 14 casos, foram interpostas por ambos os polos. No primeiro grau, foram contabilizadas 36 decisões não condenatórias e 49 condenações. Das 36 decisões não condenatórias, 13 foram objeto de algum tipo de reforma e 23 foram mantidas

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Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter

em seus termos no Tribunal. Das 49 condenações em 1º grau, 28 sofreram alguma reforma no Tribunal, enquanto 21 permaneceram inalteradas.7

Das 28 decisões de condenação que foram reformadas em sede de apelação pelo Tribunal, 10 foram completamente reformadas, não restando qualquer tipo de sanção para os acusados; 12 sofreram reformas parciais, no sentido de minorar a sanção aplicada ou excluir algum acusado ou conduta do dispositivo; 3 foram reformas parciais que majoraram a sanção estabelecida na sentença; 2 decisões contiveram reformas parciais mistas, por exemplo, com a majoração da sanção de algum acusado enquanto outro recebia uma minoração ou era absolvido; e uma reforma de decisão que havia extinguido de plano o feito, o qual foi retomado.

As reformas parciais agravantes, apesar de poucas, se deram por duas maneiras: ou por majoração ou por ampliação do número de sanções. Por exemplo, no julgamento da apelação de número 70057375198, o Tribunal entendeu pela reforma da decisão do juízo a quo, para ao cabo dar parcial provimento ao apelo do Ministério Público, que pleiteava incluir nas sanções aplicadas a pena de multa, proibição de contratar com o Poder Público e a suspensão dos direitos políticos. O Tribunal entendeu que, diante da gravidade dos fatos, restava necessário conceder parcial provimento ao recurso do Parquet:

Pela especificidade do caso e em face do perfil econômico da ré frente ao contexto, uma simples estagiária, já havendo imposição pecuniária, não há razão para a inclusão de multa, cabendo acrescer à penalidade apli-cada à ré tão somente a suspensão dos direitos políticos pelo prazo de oito anos, bem como a proibição de contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indi-retamente, pelo prazo de dez anos, com vistas à concreta expiação moral pelos atos ímprobos praticados (BRASIL 2014, grifo nosso).

Por outro lado, as reformas parciais atenuantes (que são em número quatro vezes maior do que as reformas parciais agravantes) têm o condão de excluir

7 – O termo reforma aqui representa, num primeiro momento, tanto as decisões que foram modificadas

em sua totalidade quanto as decisões parcialmente modificadas. Ainda, ao afirmar que existem 13

decisões que foram objeto de reforma no Tribunal, sendo estas condenações em 1ºgrau, não importa

dizer que estas reformas sejam necessariamente para a não condenação dos réus, tanto que, há reformas

totais, parciais condenatórias e parciais absolutórias.

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

sanções ou dirimi-las. É o caso da apelação de número 70056612583, na qual o Tribunal entendeu pela reforma da sentença, a qual condenou o acusado ao ressarcimento integral do dano, à aplicação de multa civil no valor de 20% do dano sofrido pela administração, à suspensão dos direitos políticos pelo prazo de 3 anos e ainda na proibição de contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios ou incentivos, direta ou indiretamente pelo prazo de 5 anos.

Entendo que a pena de multa deve ser reduzida para duas vezes a re-muneração percebida à época, tendo em vista a absolvição quanto ao 9º fato e levando-se em conta a razoabilidade que deve orientar o julga-dor quanto à aplicação de penas pecuniárias. Isso porque, em havendo a presença de fatos incidentes nos arts. 10 e 11 da LIA, tenho como melhor balizador a multa civil prevista para o art. 11 (art. 12, inciso III, da LIA), pois esta leva em consideração a natureza jurídica do servidor público e está mais alinhada com a própria percepção de seus ganhos. Quanto às demais sanções aplicadas, julgo-as adequadas e em conformidade com os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e suficiência, bem como de acordo com o disposto no art. 12 da Lei n. 8429/92 e no art. 37 da Constituição Federal. (BRASIL 2014, grifo nosso).

O que se percebe com a leitura dos acórdãos é que seguidamente as decisões de reforma parcial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul têm como fundamentação (preponderantemente) a proporcionalidade e a razoabilidade. Assim, como no julgado acima exposto foi reduzida a multa, o Tribunal também atenua a condenação determinada na sentença, ao excluir condenações antes impostas, como na apelação de número 70060386224:

Isto porque as penalidades elencadas no art. 12 da Lei nº 8.429/92 não ensejam obrigatória aplicação cumulativa, no próprio “caput” constan-do que podem incidir isolada ou cumulativamente, cabendo considerar, repito, extensão do dano causado e ao proveito patrimonial obtido pelo agente, não se admitindo a aplicação de penalidades desproporcionais ao ato praticado, devendo cumprir a pena com sua dúplice função, pedagógica e punitiva, havendo justa proporção entre a sanção e o ilí-cito [...] Por estes fundamentos, dou parcial provimento à apelação do réu para afastar o reconhecimento da prática de atos de improbidade

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Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter

administrativa quanto aos fatos de utilização de táxi em desacordo com as regras empregador e adulteração da nota fiscal nº 16.501, mantendo, no entanto, as respectivas condenações de ressarcimento dos danos ao erário, no entanto, a título de reparação por responsabilidade civil, e nego provimento à apelação da autora (BRASIL 2014, grifo nosso).

Note-se que a proporcionalidade se insurge de forma preponderante e quase objetiva, haja vista que sua incidência modifica (ou mesmo mantêm, dependendo do caso) o resultado dos julgados, havendo em si a qualidade de norma, observada reiterada e reiteradas vezes. O princípio da proporcionalidade, dessa forma, não determinou condenações ou absolvições, mas o “equilíbrio entre a sanção imposta e o direito aplicado”. Assim, a proporcionalidade foi utilizada em uma série de acórdãos, nos quais modificou-se a sanção segundo o entendimento do julgador, que, na maioria das vezes, se insurgia contra uma sanção dita “desproporcional”.

No entanto, mais uma vez, a justa proporção entre a sanção e o ilícito autorizam o afastamento da multa equivalente a nove vezes o valor do acréscimo patrimonial e para a redução da multa a seis vezes o valor da remuneração mensal de janeiro de 1996, devidamente atualizada pelo IGP-M, penalidade que ficará melhor ajustada aos fatos, considerando-se que houve a determinação de ressarcimento ao erário relativamente aos ganhos indevidos (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Assim, de forma panorâmica, das 85 apelações, cerca de 33 corroboraram com a pretensão dos acusados, não declarando qualquer tipo de condenação e cerca de 51 decisões envolveram algum tipo de sanção aos mesmos, considerando que a decisão da apelação de número 70055635825 não condenou nenhum acusado, entretanto, também não os isentou de pena, haja vista que foi atacada sentença que julgou improcedente a pretensão acusatória de plano, sendo reformada pelo Tribunal (BRASIL, 2014).

Os embargos infringentes, conforme Wambier e Talamini (2014, p. 708), “são um recurso cabível quando não são fruto de unanimidade acórdãos que julgam apelação ou ação rescisória”, sendo interpostos com o objetivo de que prevaleça o voto vencido. Da busca realizada, foram localizados sete acórdãos julgados em sede de embargos infringentes: desse total, dois acolheram a tese levantada pelo voto divergente, reformando totalmente a decisão; quatro mantiveram o resultado proferido na apelação e um reformou parcialmente a decisão atacada.

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

Em linhas gerais, seis dos acórdãos proferidos em sede de apelação apresentaram condenações aos acusados, enquanto um absolveu os mesmos. Este, por sua vez, foi mantido em seu teor pelo grupo cível enquanto julgamento dos embargos; uma das condenações foi relaxada (parcialmente) pelos desembargadores, duas foram totalmente afastadas e três foram mantidas em seus termos. Sendo assim, do julgamento dos embargos infringentes, quatro acórdãos possuíram condenações e três contiveram absolvições.

Os recursos de agravo são via de regra8 destinados à reforma de decisões interlocutórias, incidentes ao processo, as quais não importam na resolução do mérito da lide ou ao encerramento do processo. Os agravos interpostos analisados a partir da busca jurisprudencial versaram quase absolutamente sobre a decisão singular que recebeu a inicial e deu prosseguimento à ação. De forma marcante, mas não tão expressiva, encontraram-se também agravos sobre o decreto de indisponibilidade dos bens dos acusados, que os mesmos buscaram levantar pela via recursal. Quanto ao recebimento da inicial, utilizou-se preponderantemente o postulado in dubio pro societate para afastar as pretensões que visavam o não recebimento da acusação, conforme explícito pelo desembargador-relator no julgamento do agravo de número 70055502967:

Assim, correta a decisão que recebeu a inicial e determinou o proces-samento da ação civil pública de improbidade administrativa, a fim de instruir-se o feito e, caso comprovados os atos de improbidade, condenar os requeridos nas sanções pertinentes. Outrossim, destaca-se que, nesta fase processual, vige o princípio in dubio pro societate (BRASIL, 2013).

Os embargos de declaração, apesar de ter sua natureza recursal controversa, doutrinariamente têm como seus objetivos esclarecer ou integrar a decisão impugnada, para fins de que esta se torne completa e inteligível (WAMBIER; TALAMINI, 2014). Por não serem meio viável para impugnar a matéria de direito já decidida, os embargos não possuem alta relevância para análise deste estudo. Destaca-se, contudo, que dos trinta embargos de declaração computados na

8 – Art. 522, CPC: Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de 10 (dez) dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua intervenção por instrumento.

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pesquisa, três tiveram extraordinariamente efeito modificativo, também chamado de efeito infringente. É o caso dos acórdãos de número 70057595803 (excluiu o dolo de um dos acusados, eximindo-o de sanção), 70056851009 (absolvição da pena de ressarcimento integral do dano) e 70056461635 (suspendeu o andamento da ação, até a prolação de nova decisão).

Apesar de a Lei da Ação Civil Pública prever várias hipóteses de legitimados para o ingresso da ação9, nas decisões coletadas é nítida a atuação preponderante do Ministério Público. Em regra, portanto, o Parquet esteve atuando na defesa da tutela dos direitos protegidos por meio da ação civil pública, sendo, por vezes, acompanhado pelo Estado ou pelo Município.10 Entretanto, já dispõe a lei que, nos casos em que o Ministério Público não intervir como parte, atuará este como fiscal da lei. Como exemplo, tem-se o julgamento da apelação de número 70060386224, em que a UERGS (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul) figurou como autora da ação e o MP como custos legis.

A partir dos dados coletados, somados às divisões e categorizações feitas, percebe-se que, de forma ampla e geral, nas decisões de reforma parcial, existe a incidência preponderante do princípio da proporcionalidade, o qual foi utilizado tanto em casos de reformatio in pejus (reforma agravante da situação) quanto em casos de reformatio in melius (reforma atenuante da situação), sendo o último o caso a reforma parcial de maior incidência.

A proporcionalidade aqui classifica-se preliminarmente como critério de decisão, pois, impreterivelmente ela é quase indiscriminadamente utilizada pelos julgadores em sentenças ou acórdãos. O julgador observa a sanção dada em 1º grau, e, se não entende adequada, altera-a com base na proporcionalidade. Desse modo, respondendo parcialmente o questionamento proposto nesta introdução, tem-se que, a partir da jurisprudência, o Tribunal de Justiça, quando

9 – Segundo consta no art. 5º da Lei 7.347/85: Tem legitimidade para propor a ação principal e a ação

cautelar: I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, o Estado, o Distrito Federal

e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V – a

associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei

civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio

ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étni-

cos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

10 – É o caso dos embargos infringentes de número 70059194803, em que atuaram MP e Município e

da apelação de número 70055025761, em que atuaram MP e FASC (Fundação de Assistência Social

e Cidadania).

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

reforma parcialmente as decisões do 1º grau, observa preponderantemente o princípio da proporcionalidade, cujo efeito pode ser tanto agravante quanto atenuante das sanções.

Outros critérios foram utilizados para reformas parciais, contudo, sempre utilizados ao lado da proporcionalidade. É o caso, por exemplo, de reforma de decisão condenatória contra litisconsórcio passivo, na qual se reduz a condenação de um dos acusados, a partir da esfera da proporcionalidade e da razoabilidade, haja vista que as provas dos autos não forneceram um acervo consistente para o mesmo grau de condenação para todos os litisconsortes.

Assim como a proporcionalidade é o critério mais utilizado pelo Tribunal nas reformas parciais, tem-se, por outro lado, construções mais desenvolvidas que são utilizadas preponderantemente nas reformas totais dos julgados. Veja-se: se, para reformar parcialmente uma decisão, o Tribunal se utiliza da proporcionalidade; para modificar totalmente o decisum este passa a reconstruir as premissas sob as quais se fundaram a decisão do 1º grau. Para isso, contudo, critérios (ou sua ideia) mostram-se ferramentas ineficazes. Portanto, as reformas totais, assim dizendo, são calcadas por estruturas argumentativas mais complexas, utilizadas pelos julgadores que, conforme sua convicção, amparados pela garantia do livre convencimento motivado, modificam a decisão em um todo, ora para reverter absolvições, ora para reverter condenações. É o que se verá, exemplificadamente, no tópico a seguir.

2. DOS ARGUMENTOS PREPONDERANTES: O QUE O TJRS TEM

USADO NA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES SOBRE IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA

Considerando os resultados descritos no item anterior, teve-se que, quando o Tribunal de Justiça reformou parcialmente uma decisão proferida em 1º grau, ele preponderantemente utilizou o princípio da proporcionalidade, acompanhado ou não de outro subsídio. Entretanto, nas decisões em que não houve um reajuste da sanção, mas sim seu completo afastamento ou imposição, a proporcionalidade cedeu lugar para outro tipo de construção, em que, utilizando-se de proposições em cadeia os julgadores firmaram cada qual um entendimento sobre a correta aplicação da Lei de Improbidade Administrativa para cada caso concreto. Portanto, tratando-se de reformas totais das sentenças, preferiu-se utilizar aqui a expressão argumentos, tendo em vista que a completa absolvição ou condenação precisou

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de um raciocínio mais complexo, voltado ao convencimento dos demais pares julgadores.

Preliminarmente, observou-se que, em sede de decisões do TJRS, os argu-mentos utilizados estavam coadunados de acordo com a linha de entendimento de cada desembargador a respeito da natureza da Lei de Improbidade Administrativa. Nestes termos, foram identificadas duas linhas: uma, defendendo uma aplicação da lei de forma mais vinculada às diretrizes do sistema penal, e outra vinculada a uma aplicação voltada para a esfera cível/administrativa. A identificação das linhas de entendimento, nesse caso, é elemento necessário para que se entenda porque alguns argumentos são utilizados em algumas situações, e, mesmo em casos muito semelhantes, não. Portanto, far-se-á uma breve explanação sobre a natureza jurídica da LIA, para então, de maneira apenas exemplificativa, elencar os argumentos preponderantes nas decisões proferidas em sede de improbidade administrativa.

2.1 Da natureza jurídica da LIA

Dos julgados selecionados para análise, pode-se perceber que neles há uma divergência acerca da natureza jurídica da Lei de Improbidade Administrativa. Ocorre que, câmaras ora percebem os dispositivos da lei como sancionadores de natureza penal ou próxima a ela, ora entendem os dispositivos como elementos de natureza civil/administrativa.

De fato, as duas correntes interpretativas levam, na prática, a resultados diametralmente opostos: quando a LIA é aplicada numa perspectiva penal, a tendência (frisa-se, tendência) é absolver o réu na hipótese de ausência de prova inequívoca de conduta ímproba. Por outro lado, quando a LIA é aplicada numa perspectiva civil-administrativa, a tendência é aplicá-la com maior rigor, ou seja, há um juízo mais severo em termos de conjunto probatório, o que acarreta mais condenações.

Exemplificando a primeira hipótese – aplicação da LIA numa perspectiva penal –, traz-se o acórdão de nº 70057923492, que tem por objeto recurso de embargos infringentes, em que os réus foram absolvidos em primeiro grau e condenados, embora não unânimes em sede de apelação. O voto do Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal demonstrou preocupações com a severidade das sanções da lei:

Estou acompanhando a Relatora, ressaltando que a condenação de agentes políticos pela prática de atos de improbidade administrativa é

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gravíssima, não raro mais grave que uma condenação penal criminal. Portanto, a nosso ver, deve vir sempre embasada em prova que não dei-xe nenhuma dúvida quanto à autoria e ao cometimento desses atos de improbidade administrativa (BRASIL, 2014, grifo nosso).

É esse também o entendimento esposado pelo Des. Eduardo Kraemer, quando cita o precedente oriundo do Agravo de Instrumento de nº 70050726108, julgado em 13/12/2012 pela vigésima câmara cível do Tribunal:

Improbidade não é mera ilegalidade. A LIA não acata a responsabiliza-ção objetiva do agente público, sendo indispensável a demonstração da prática de conduta capitulada como ímproba de forma dolosa ou culposa. As sanções previstas na Lei nº 8.429/92 têm caráter repressivo, com feição de natureza penal, havendo rigor na tipificação e no exame das condutas ali descritas (BRASIL, 2013, grifo nosso).

Da mesma forma procedeu a Desa. Denise de Oliveira Cezar, relatora no julgamento da apelação nº 70059601021: “Em função de seu caráter repressivo e das sanções que aplica, a Lei de Improbidade identifica-se com o Direito Penal, sendo rígida a tipificação das condutas previstas na lei que rege a matéria” (BRASIL, 2014).

A prática da leitura da LIA como instituto repressivo de natureza penal, admitindo-se ou não, modifica o conteúdo da sentença ou acórdão. Quando o juiz faz uma interpretação da norma dessa forma, tende a estender garantias aos sujeitos que normalmente são aplicadas somente no juízo criminal. Há, portanto, uma preocupação maior em não punir o agente em situações de dúvida ou incerteza quanto à exatidão da conduta. Dessa forma, o que se revela é um rigor maior quanto ao enquadramento dos atos cometidos nos dispositivos da lei, somado com um exame também rigoroso quanto à avaliação do agir do sujeito. Por consequência, as aplicações preponderantes das sanções previstas na LIA somente são impostas em face de um conjunto probatório cristalino que viabilize a condenação. 11

11 – O juízo penal, por ser a ultima ratio do Estado, reveste-se de procedimentos e garantias para que as repressões penais sejam aplicadas somente àqueles que praticarem o ilícito. Com isso, consagra-se o famoso princípio in dubio pro reo, o qual, em seu conteúdo, determina que, havendo dúvida, não se condena, se absol-ve. Assim, transplantar o raciocínio criminal para a LIA implica em uma condenação somente em termos de

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Por outro lado, posições como a do Des. Newton Luís Medeiros Fabrício, relator da apelação de nº 70060217189, vão de encontro à leitura da LIA na perspectiva penal, o que se consubstancia na argumentação destacada, quando o magistrado discorreu sobre a aplicação do princípio da insignificância:

Importa referir que o bem jurídico tutelado pela lei de improbidade administrativa é a moralidade administrativa, mediante a aplicação de sanções de natureza civil, as quais não possuem a mesma carga coativa das sanções penais (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Também assim se posicionou o Des. Carlos Eduardo Zietolw Duro, no julgamento da apelação de nº 70060386224, ao tomar por suas as palavras do então Desembargador, atual Ministro do STJ, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino:

O princípio da insignificância não tem aplicação no âmbito da improbi-dade administrativa por ser instituto próprio do Direito Penal, decorrente da sua natureza de intervenção mínima “ultima ratio”. A Lei de Improbi-dade não possui essa mesma natureza, devendo ser regida pelo princípio da legalidade, que determina sejam apurados todos os atos “contra legem” [...] (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Assim, colacionou as palavras do ministro:

Em outras palavras, o Direito Penal só se importa com condutas mais graves praticadas pelo homem, razão pela qual o processo penal possui carga negativa igualmente gravosa. Na seara do Direito Administrativo, não se pode aplicar o princípio da insignificância, mas, pelo contrário, incide o princípio da intolerância a qualquer ato contra legem, especial-mente quando resultantes em ofensa à moralidade pública. (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Interpretar a LIA com lentes cíveis/administrativistas, a partir de uma perspectiva observacional, acaba tendo o condão de gerar o efeito inverso daquele

acervo probatório consistente, o qual não permite dúvidas quanto ao agir do réu, pois, na existência dessas, o dever do Estado seria absolver o mesmo.

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

apontado na perspectiva do Direito Penal. Incide sobre os casos uma maior intolerância aos atos cometidos em desfavor da moralidade administrativa, contidos nas figuras dos arts. 9º, 10 e 11 do diploma da improbidade. Dessa forma, os juízes voltam a atenção outrora focada exclusivamente nos réus, para a sociedade e a gestão da Administração Pública como um todo. Entendem, ainda implicitamente, que, havendo a possibilidade de condenação nas três esferas de responsabilidade (cível, penal e administrativa), a aplicação da LIA deve ser orientada para a máxima proteção do interesse público. A constituição de provas inequívocas sobre cada aspecto da conduta, do elemento subjetivo e da proporção do dano são matérias, portanto, que na seara criminal hão de ser avaliadas, se houver tipificação criminal incidente.

Dito isso, quer-se minimamente demonstrar a premissa de que as diver-gências quanto a adoção das linhas de entendimento elencadas se reflete nos argumentos adotados pelos julgadores. Não há argumento utilizado de forma exclusiva para condenação ou absolvição; entretanto, cada linha interpretativa tem por corolário lógico a incidência de determinadas premissas que, unidas numa cadeia argumentativa (pois estas não se firmam de maneira isolada) formam a base para fundamentar as decisões judiciais. Isso implica dizer que, apesar de categoricamente separados, os argumentos funcionam apenas coletivamente, e, apesar de agirem preponderantemente de uma forma ou de outra (dependendo do caso concreto e da interpretação dada à lei), podem transitar tanto em decisões absolutórias quanto condenatórias. Sua identificação, portanto, possui função eminentemente didática.

2.2 Do argumento da fragilidade do conjunto probatório

Corroborando com a linha de argumentação/interpretação da natureza penal da LIA, encontra-se o argumento da fragilidade de conjunto probatório, o que, na maioria dos casos, implica dizer não existir prova robusta nos autos que dê precisão a uma decisão condenatória, o que na prática implica em absolvição. Este argumento divide-se em duas formas: a ausência de provas quanto à materialidade do ato ímprobo (o que é matéria dos agravos de decisão de recebimento da inicial) e a ausência de provas quanto ao elemento subjetivo do réu, analisado no item seguinte. Em juízo de condenação, assim se identifica a fala do Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal, no julgamento da apelação de nº 70056901929:

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A condenação de agentes políticos à prática de improbidade administra-tiva é gravíssima, e deve vir embasada em prova que não deixe nenhuma dúvida quanto ao cometimento do ato ímprobo (BRASIL, 2014, grifo nosso).

No julgamento da apelação de nº 70058731118, foi confirmado pelo Des. Almir Porto da Rocha Filho o entendimento proferido pelo julgador de 1º grau, Juiz de Direito Fernando Carneiro da Rosa Aranalde, no sentido de que, frente a um conjunto probatório frágil, apesar de composto por vários meios de prova (seja testemunhal, documental, etc.), não há viabilidade para um juízo de condenação. Assim entendeu o juiz na sentença proferida:

Não bastasse, a fragilidade do conjunto probatório não ampara o reco-nhecimento de comportamento desonesto por parte dos réus. Impossí-vel dizer-se, pelos elementos constantes nos autos, que agiram de má-fé, de modo imoral a dilapidar o patrimônio municipal (BRASIL, 2014, gri-fo nosso).

A fragilidade do conjunto probatório surge como construção argumentativa na medida em que resgata a premissa de uma necessidade de plena recomposição fática do ato ímprobo para haver uma condenação. Note-se a diferença: a ausência de provas é obviamente entendida como fundamento de qualquer absolvição, haja vista que, em qualquer processo não há sanção sem elementos que fundamentem a aplicação do direito sancionatório. Ocorre que, a fragilidade, por outro lado, exige um juízo de valor sobre o conjunto probatório, uma vez que, inequívoca sua existência, os elementos justificadores devem se voltar para dizer se este é forte o suficiente para emitir juízo de condenação, ou se este é demasiado frágil, o que acarreta na improcedência das ações civis públicas.

2.3 Do argumento do elemento subjetivo

O argumento do elemento subjetivo está intimamente relacionado com o argumento da fragilidade probatória. Sem dúvida alguma, ele é um dos argumentos que mais figura na justificação das decisões sobre matéria de improbidade. De forma sucinta, ele exige que, para configuração da improbidade administrativa, comprove-se que o acusado teve um agir doloso ou culposo em relação ao fato

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ocorrido. Majoritariamente, a conduta culposa só é admissível na forma do art. 10, restando aos demais tipos (art. 9º e 11) a exigência de prova robusta da conduta dolosa do agente. No julgamento do agravo de número de número 70049458987, o voto do Des. Eduardo Kraemer demonstra claramente esse entendimento:

Há que se referir que para aplicação das medidas previstas na Lei de Improbidade, em especial quando se imputa violação aos Princípios da Administração Pública (art. 11), o exame da intenção do agente é me-dida que se impõe, sob pena de afronta ao princípio da razoabilidade, pois somente a ação dolosa ou eivada de má-fé se afigura apta a ca-racterizar improbidade administrativa, o que não restou evidenciado (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Dentre os vários casos em que o argumento do elemento subjetivo foi empregado, figura o julgamento dos embargos infringentes de número 70057923492, no qual percebe-se a tendência do Tribunal em absolver os acusados quando não há prova robusta nos autos que sustente a alegação do elemento subjetivo doloso destes, elemento esse necessário para a configuração de ato improbo. A premissa absolutória assenta-se no postulado “a improbidade administrativa, mais do que um ato ilegal, deve traduzir, necessariamente, a falta de boa-fé, a desonestidade”. O voto do Des. Carlos Roberto Lofego Caníbal no julgamento dos embargos acima mencionados resume esse entendimento:

[...] A partir daí o STJ começou a exigir a prova do dolo para que se pudesse realizar um juízo de desvalor de conduta, mesmo que hou-vesse prova da materialiade da improbidade, mas se passou a exigir a demonstração do que a doutrina e a jurisprudência hoje dizem, do elemento subjetivo da má-fé, da ausência de boa-fé. São elementos de ordem técnica, muito elaborados pelos eminentes Ministros e da doutri-na, com os quais se chega a esse manancial de integridade jurisdicional, e com mais segurança o cidadão pode ser exposto a uma ação de impro-bidade administrativa. Isso dá segurança inclusive para nós, Juízes, para a realização de uma prestação jurisdicional (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Dessa forma, são reiteradas as vezes em que se encontram acórdãos fundados no argumento do elemento subjetivo. Em outra ocasião, reitera o Desembargador

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Lofego Caníbal tal argumento, como no caso da apelação de número 70060454048, na qual o julgador defende a necessidade da comprovação do elemento subjetivo do acusado nos autos:

Com certeza, a prova do elemento subjetivo do injusto típico adminis-trativo também é absolutamente necessária, trazendo conceitos do nos-so Direito Penal, porque, se não fizermos isso, nós não conseguiremos julgar questões que têm essa natureza com o objetivo final precípuo de realizar justiça (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Assim, conforme mencionado, as figuras dos artigos 9º e 11 viriam a exigir provas do agir doloso dos acusados, enquanto a culpa somente é possível na forma do art. 10. Esta interpretação, por sua vez, sofre uma ou outra variação, acrescentando na culpa a modalidade gravosa, como se observa no voto da Desa. Marilene Bonzanini, no julgamento dos embargos infringentes de número 70054526066:

Para a caracterização do ato ímprobo, é matéria uníssona na doutrina e jurisprudência do STJ, a necessidade de demonstração do elemento subjetivo, sendo indispensável a verificação da ocorrência de dolo ou culpa na conduta do agente. Nos casos previstos nos arts. 9º e 11º da supracitada norma, exige-se a comprovação do dolo para a tipificação da conduta. Já na situação disposto no art. 10º, necessária a caracteri-zação de culpa grave (BRASIL 2014, grifo nosso).

A desembargadora, dessa forma, também sustenta a tese de que a configuração da improbidade administrativa imprescinde de comprovação do elemento subjetivo dos acusados. Assim se manifestou a referida julgadora, no julgamento da apelação de número 70058364282:

Para a definição do ato de improbidade administrativa mostra-se impres-cindível a presença do elemento subjetivo na conduta do agente pú-blico, dolo ou culpa, já que inadmissível a hipótese de responsabilidade objetiva (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Dessa maneira, esse é um argumento que ordinariamente vai ao encontro da linha de pensamento que interpreta a Lei de Improbidade Administrativa por meio

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

do Direito Penal. O argumento do elemento subjetivo, nestes termos, tem sido aplicado em decisões de condenação somente na presença de indubitável prova da má-fé nos autos. De forma exemplificativa, pode-se citar o julgamento da apelação de número 70057150955, na qual o Tribunal de Justiça condenou servidora em cargo em comissão e o prefeito municipal por haver desvio de função pública e burla a concurso público, revertendo a absolvição concedida em 1º grau, pelo fato de que, para o Tribunal, restou devidamente caracterizado o dolo exigido pelo art. 11, I e V da LIA. Ou seja, a soma de prova inequívoca do agir doloso dos agentes com a necessária exigência do elemento subjetivo caracterizador da improbidade ensejaram uma decisão condenatória.

Entretanto, o argumento do elemento subjetivo, dissociado de provas caracterizadoras, tem gerado, em maior parte, uma série de decisões absolutórias na jurisprudência. É o caso, por exemplo, da matéria julgada na apelação de número 70058890468. Neste julgado, servidores públicos municipais utilizaram veículo da Secretaria Municipal de Saúde para realizar uma viagem ao litoral de Santa Catarina como forma de contraprestação pelos serviços voluntários prestados com a decoração natalina da cidade. Ainda que reconhecida a irregularidade das condutas, não foi identificado dano ao erário, vantagem patrimonial dos acusados ou sequer violações aos princípios da Administração Pública. Além disso, ficou reconhecido o agir isento de má-fé dos servidores, amparado pela prática da Administração de ceder ônibus a grupos de pessoas, o que resultou na não-configuração da improbidade. Assim se manifestou o relator do caso, Des. Ricardo Torres Hermann:

De fato, ao emprestar um ônibus da Secretaria de Saúde do município para um grupo de servidores e familiares realizarem uma excursão para a praia, os réus agiram de forma equivocada. Contudo, não vislumbro dolo ou má-fé da parte dos envolvidos, que, a meu ver, não agiram de modo a obter vantagens indevidas, ou a prejudicar a administração públi-ca (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Com isso, várias decisões absolutórias são mantidas ou mesmo decisões condenatórias são reformadas, haja vista o entendimento da necessária comprovação do dolo ou da culpa. Dessa forma, o argumento do elemento subjetivo tem sido preponderantemente usado em casos de reforma total das sentenças proferidas em 1º grau, assim como nas manutenções de decisões que seguem a sua linha de raciocínio.

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2.4 Do argumento do interesse público

O argumento do interesse público tem como fundamento a primazia da moralidade administrativa, o qual tem o condão de afastar qualquer entendimento favorável à aplicação do princípio da insignificância, independentemente de haver dano ao erário no valor de dez, cem ou um milhão de reais. A alta relevância da moralidade e da probidade administrativa são argumentos que os desembargadores usam para tomar decisões que, em um jogo de interesses e princípios eminentemente privados, não tomariam. Explica-se: com este argumento, entende-se que, não importando o valor ou o dano causado pelo ato dito ímprobo, o que se fere com a conduta desonesta não é o dinheiro, a moeda, mas a moralidade administrativa, de inestimável valor. O interesse público, como argumento, tem inclusive o condão de justificar a possibilidade de o juiz requerer a dilação probatória de ofício, conforme se extrai do acórdão de número 70061351417, que julgou desprovido agravo de instrumento da defesa, nos seguintes termos:

É cabível a intimação do autor da ação civil pública por atos de improbi-dade administrativa sobre o interesse na produção de provas, observada a possibilidade de o Magistrado fazê-lo de ofício, ausente preclusão pro judicato, tampouco prejuízo.

Envolvendo a causa interesse público, não se vincula o julgador a im-pulso das partes, podendo assumir iniciativa probatória, mitigando o princípio dispositivo e preservando a livre investigação das provas pelo Juiz, que é o destinatário da prova (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Entendimento esse também é sedimentado na hipótese de liminar de indisponibilidade de bens decretada no bojo de ação civil pública por ato de improbidade administrativa, conforme decisão proferida no julgamento do agravo de número 70060169067, no qual foi acolhido o voto do relator, Des. Francesco Conti:

Havendo indícios de prática de atos de improbidade administrativa, possível a concessão de medida liminar para decretar a indisponibili-dade de bens dos requeridos, independentemente de comprovação da efetiva intenção de transferência ou dilapidação do patrimônio, conforme entendimento sedimentado no STJ. A finalidade é de garantir a eficácia

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de eventual condenação à indenização ao erário, na hipótese de proce-dência do pedido, atendendo ao interesse público em ver o dano repa-rado (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Da mesma forma, o interesse público figura como peça ímpar nas decisões de recebimento da inicial de ação civil por ato de improbidade, conforme voto do Des. Ricardo Torres Hermann, na apelação de número 70058648775:

Começa que, em se tratando de ação civil pública, na dúvida, deve-se pos-sibilitar o processamento, notadamente porque está em jogo o interesse público, sendo certo que a verificação do enquadramento, ou não, dos fatos narrados como ato de improbidade, é questão de mérito e, portanto, incapaz de levar ao indeferimento da inicial (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Discorridos quais são os argumentos preponderantes utilizados nas decisões coletadas, chama-se novamente a atenção para o fato de que, na qualidade de argumentos, estes exigem uma construção em cadeia que dê suporte ao seu raciocínio. Assim, por sua essência construtivista, estes podem figurar tanto em decisões condenatórias quanto em absolutórias, agindo primacialmente de maneira conjunta. Ainda, os argumentos, por comporem uma linha de pensamento que leva a uma dada decisão, diferentemente dos critérios12, podem, pelo princípio do livre convencimento, transitar pelas decisões do 1º e do 2º grau. Desse modo, apesar de, por sua complexidade, inibirem uma análise quantitativa consistente, sua identificação qualitativa permite um reexame crítico dos posicionamentos adotados pelos juízes, exemplificado no tópico seguinte.

3. BREVES CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A APLICAÇÃO DO

PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O presente tópico deste texto tem o propósito de realizar uma curta reflexão sobre como o princípio da proporcionalidade tem sido aplicado pelo TJRS nos

12 – Com isto se quer dizer que a jurisprudência tem demonstrado que a proporcionalidade é norma a

ser observada em toda decisão, não cabendo a nenhum julgado a possibilidade de um resultado despro-

porcional. Assim, ela é aplicada por todos os julgadores, no soar de seu entendimento. Os argumentos

aqui discriminados, por outro lado, por possuírem matéria mais controversa, exigem um maior número

de premissas, sendo ora aplicados, ora não.

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casos de improbidade administrativa. Uma vez identificada a proporcionalidade como elemento incidente expresso (ou seja, mencionado no julgado) na maioria dos acórdãos reformadores selecionados, uma crítica ao modelo de aplicação da proporcionalidade se faz necessária.

A proporcionalidade está inserida no âmago da técnica de ponderação de princípios, vindo de uma discussão anterior sobre a diferença entre regras e princípios. Não adentrando profundamente neste viés, cujo debate é de proporções monográficas, adota-se como premissa a distinção (amplamente criticada) entre regras e princípios apresentada por Alexy. Apesar de ambos estarem situados em nível deontológico, inseridos na categoria de norma jurídica, regras e princípios possuem diferenças em seu modo de aplicação. Enquanto as regras são aplicáveis de forma tudo-ou-nada, os princípios obrigam que algo seja realizado na maior medida do possível, de acordo com as circunstâncias fáticas do caso concreto. Regras são, portanto, mandamentos definitivos, enquanto que princípios são considerados mandamentos de otimização (FERNANDES, 2010). Assim, se em um conflito entre regras uma excluirá a aplicação da outra (por meio de critérios pré-definidos), quando ocorre a chamada colisão de princípios, os mesmos não são afastados, mas ponderados, com base na proporcionalidade.

A estrutura da proporcionalidade se desenvolve por meio de três postulados: 1) adequação; 2) necessidade e 3) proporcionalidade em sentido estrito. A adequação representa um dever de caráter negativo, eliminando meios inadequados na medida em que seleciona os meios mais aptos para alcançar a finalidade pretendida. A necessidade surge então como dever de, entre os meios adequados pré-selecionados, escolher aquele que for menos gravoso a um direito fundamental. Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito representa a análise do resultado da relação do meio empregado e a afetação desvantajosa que ele produz (BITENCOURT, 2013).

Assim, partindo-se da teoria na qual a proporcionalidade está estrutura, resta claro que não basta apenas invocar a “proporcionalidade” ou “desproporcionalidade” entre meios e fins para justificar uma decisão (tanto em sede judicial quanto administrativa). A ponderação de princípios é um processo argumentativo, por consequência, orientado por uma matriz discursiva. No que toca à pesquisa jurisprudencial realizada em sede de matéria de improbidade, isso implica dizer que, uma vez que o Tribunal decida majorar ou minorar sanções por meio do princípio da proporcionalidade, este deve argumentar utilizando os postulados adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito para satisfazer as condições do princípio. Segundo Gavião Filho (2011, p. 315):

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A ponderação é argumentativa. As regras da argumentação prática geral e da argumentação jurídica são decisivas para a racionalidade da pon-deração. Elas autorizam a formulação das regras próprias das razões da ponderação. O pressuposto é que a argumentação é uma atividade guiada por regras. Essa formulação está assentada na filosofia da linguagem e na teoria do discurso. Como a linguagem é uma atividade guiada por regras e a argumentação é uma atividade lingüística (sic), então a argumentação depende de regras.

Portanto, é um equívoco aplicar a técnica da ponderação sem uma necessária importação conjunta da teoria da argumentação jurídica. É nesse sentido que se constrói a crítica à proporcionalidade tal qual é aplicada pelos tribunais brasileiros. A legitimidade do uso da proporcionalidade não advém de uma incidência aleatória (e em qualquer caso), onde tudo se justifica pela proporcionalidade, mas pelo atendimento de condições discursivas pré-definidas.

Em Theorie der juristhischen Argumentation: Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristhischen Begründung, Alexy apresenta o que entende ser uma argumentação jurídica racional. Influenciado principalmente pela obra de Habermas, Alexy entende ser o discurso jurídico um caso especial do discurso prático geral, portanto, limitado pela dogmática, pela lei e pelos precedentes (ALEXY, 2013).

Assim, a teoria de Alexy, fundada sob o prisma de uma razão discursiva, encontra também (e principalmente) amparo teórico na Filosofia da Linguagem do século XX. Por conseguinte, a teoria da argumentação parte de uma situação discursiva ideal para de maneira analítica determinar sua forma na realidade. A partir disso, o que Alexy realiza é uma sistematização das regras discursivas a serem observadas pelos falantes durante a prática argumentativa.

Para o autor, as regras que regem o discurso prático racional geral são, dentre outras, chamadas de regras fundamentais, de razão, de carga da argumentação, de fundamentação e de transição (TOLEDO, 2005). As formas e regras que se apresentam ao discurso jurídico, especificadamente, na classificação de Alexy são chamadas de justificação interna e de justificação externa (TOLEDO, 2005).

As regras de justificação interna dizem respeito à lógica do discurso. Trata-se do correto encadeamento entre as assertivas discursivas que leva à uma conclusão racional dos falantes. Para a teoria da argumentação jurídica, quanto mais o discurso jurídico desenvolver etapas que levem ao consenso fundado dentro do curso da justificação, mais correto ou racional ele se apresentará (TOLEDO, 2005).

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As regras de justificação externa se ocupam da verificação das premissas discursivas, seguindo as regras da argumentação prática racional geral e as regras da argumentação empírica, dogmática, da interpretação, do uso dos precedentes e da observância das formas especiais de argumentos jurídicos (TOLEDO, 2005).

Dito isso, se a aplicação do princípio da proporcionalidade está sujeita a padrões discursivos (como de fato está), deve, portanto, atender aos pressupostos da argumentação racional para se tornar legítima. Por conseguinte, a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito deve ser obedecida em sua ordem. Quando, num primeiro momento, trouxe--se o princípio da proporcionalidade na forma de critério, nada mais fez-se do que identificar a partir dos julgados qual era o elemento mais utilizado para reformar as decisões. Assim, a proporcionalidade, na forma como se apresentara, era muito mais uma ferramenta de aplicação direta sustentada por alguns critérios do que uma construção argumentativa, voltada para uma comprovação racional da decisão.

Eis aqui a crítica à aplicação: partindo-se do plano prático e do plano teórico chega-se a uma compreensão absolutamente distinta do princípio da proporcionalidade. Se por um lado existe um amplo acordo (não verbalizado) de que a proporcionalidade deve ser observada em toda e qualquer decisão do Poder Judiciário, por outro, esse constante aplica-aplica demonstra um completo esquecimento do caráter argumentativo do referido princípio, que precisa ser construído observando-se os seus postulados.

Demonstrar a observação aos requisitos da proporcionalidade é exigência discursiva, tanto para trazer racionalidade à decisão proferida quanto para sujeita-la a critérios de correção racional. Infelizmente, esta é uma prática ainda míngua quando se reporta às decisões emitidas em termos de ação civil pública por improbidade administrativa, servindo a proporcionalidade mais como recurso retórico de adesão do que meio de comprovação racional.

CONCLUSÃO

O objetivo principal deste trabalho é um diagnóstico relacionado ao tema da improbidade administrativa, tendo como base a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Para melhor análise, foram coletadas decisões no website do Tribunal de Justiça, veiculadas por meio de ação civil pública, estipuladas dentro do período de um ano.

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Fazendo-se uma análise a partir da jurisprudência, tentou-se classificar os subsídios utilizados pelos julgadores em dois padrões: critérios e argumentos. O primeiro, de dimensão mais objetiva, foi inicialmente identificado preponde-rantemente nas reformas parciais de decisões, reduzindo ou aumentando as sanções impostas. Os argumentos, por sua vez, foram identificados preponderantemente nas reformas totais das decisões, reconstruindo ou confirmando os raciocínios presentes nas sentenças.

Entretanto, o estudo realizado a partir da jurisprudência permitiu perceber que, nesse sentido, a mencionada classificação possui altas limitações fáticas. Primeiramente, a atuação dos critérios e argumentos nunca se deu de forma isolada. Os argumentos construíram decisões a partir de suas premissas e os critérios moldaram essas decisões. Por outro lado, a distinção deles com base em sua natureza e aplicação está calcada apenas em razões didáticas, eis que ora um subsídio pode ser entendido como argumento, ora como critério. A proporcionalidade, por exemplo, se a crítica realizada estiver correta, se assemelharia mais a um argumento, eis que precisa de um suporte discursivo maior do que sua mera invocação.

É evidente que a dimensão deste trabalho não permite uma análise detalhada de cada um dos 211 acórdãos resultantes da pesquisa. Contudo, pelo fato de que, a pretensão exposta é um diagnóstico dos elementos preponderantes, nada se perde com uma análise exemplificativa das decisões, fundamentada por meio de apontamentos dos acórdãos.

Quantitativamente, pode-se afirmar que não existe larga diferença entre o número de decisões condenatórias e não condenatórias, tomando como base os recursos de apelação. Isso pode se dar por vários fatores. Primeiro, cada julgador pode decidir conforme seu entendimento, desde que o fundamente racionalmente. Segundo, a multiplicidade de variáveis de cada caso permite a existência de um leque muito elevado de situações a serem julgadas, o que implica em várias condutas diferentes que têm que ser julgadas. Por fim, como cada julgador possui livre convencimento motivado, e, cada câmara possui julgadores de diferentes entendimentos, logo, as decisões podem ser tão variadas quanto seus elementos, dependendo do órgão a que foram distribuídas.

Os apontamentos realizados, portanto, apesar de terem cunho mais descritivo do que crítico, propriamente ditos, tem o propósito de contribuir com o diagnóstico da improbidade administrativa – o qual se espera ter alcançado – propiciando condições para que haja um debate sério e eficaz sobre o tratamento dado pelo Poder Judiciário aos atos ímprobos, pautado primacialmente pela informação.

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REFERÊNCIAS

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_____._____. Apelação cível nº 70055635825. Relator: Laura Louzada Jaccottet. Data de julgamento: 02/07/2014. Data de publicação: 14/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=978354. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Agravo de Instrumento nº 70055502967. Relator: João Barcelos de Souza Junior. Data de julgamento: 09/10/2013. Data de publicação: 15/10/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1763131. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Embargos Infringentes nº 70057923492. Relator: Laura Louzada Jaccottet. Data de julgamento: 05/09/2014. Data de publicação: 25/09/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1398165. Acesso em: 28/09/2014.

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Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa

_____._____. Agravo de Instrumento nº 70050726108. Relator: Denise Oliveira Cezar. Data de julgamento: 13/12/2012. Data de publicação: 22/01/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2012&codigo=2347522. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Apelação cível nº 70060217189. Relator: Newton Luís Medeiros Fabrício. Data de julgamento: 24/09/2014. Data de publicação: 06/10/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1525551. Acesso em: 28/09/2014.

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_____._____. Apelação cível nº 70056901929. Relator: Carlos Roberto Lofego Canibal. Data de julgamento: 11/06/2014. Data de publicação: 01/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=862496. Acesso em: 28/09/2014.

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_____._____. Agravo de Instrumento nº 70049458987. Relator: Eduardo Kraemer. Data de julgamento: 13/08/2014. Data de publicação: 20/08/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1232689. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Embargos Infringentes nº 70057923492. Relator: Laura Louzada Jaccottet. Data de julgamento: 05/09/2014. Data de publicação: 25/09/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1398165. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Apelação cível nº 70060454048. Relator: Sergio Luiz Grassi Beck. Data de julgamento: 20/08/2014. Data de publicação: 15/09/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1306220. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Embargos Infringentes nº 70054526066. Relator: Marilene Bonzanini. Data de julgamento: 15/08/2014. Data de publicação: 15/09/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1209087. Acesso em: 28/09/2014.

_____._____. Apelação cível nº 70058364282. Relator: Marilene Bonzanini. Data de julgamento: 24/07/2014. Data de publicação: 28/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1111076. Acesso em: 28/09/2014.

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Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter

_____._____. Apelação cível nº 70057150955. Relator: Irineu Mariani. Data de julgamento: 03/09/2014. Data de publicação: 12/09/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1382024. Acesso em: 28/09/2014.

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O NEPOTISMO NAS CONDENAÇÕES E ABSOLVIÇÕES NA AÇÃO CIVIL PÚBLICA E IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA: CRITÉRIOS E CASOS DE INCIDÊNCIA

Rafael Santin Brandini1

Ramônia Schmidt2

INTRODUÇÃO

Os contornos sociais e econômicos que os dados acerca da corrupção expõem a cada dia, revelam a crise que perpassa a Administração Pública brasileira, bem como a gravidade e extensão de seus reflexos junto à sociedade.

Dada a seriedade e reincidência das práticas corruptivas, bem como o inconformismo de toda a sociedade para com esta triste realidade, ainda saltam

1 – Mestrando em Direito do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direitos Sociais e Políticas

Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, na linha de pesquisa Constitucionalismo

Contemporâneo. Advogado. E-mail: [email protected].

2 – Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da

UNISC, vinculada a linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo Especialista em Direito

Processual Civil pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Graduada em Direito pela Uni-

versidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Pesquisas “Estado, Administração

Pública e Sociedade – Patologias Corruptivas”, vinculado ao PPGD da UNISC, coordenado pelo

Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. Advogada. E-mail: [email protected].

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Rafael Santin Brandini e Ramônia Schmidt

aos olhos e se repetem as notícias dando conta da contratação de familiares no setor público, denominada nepotismo.

A fim de verificar a existência ou não de uma provocação ao Poder Judiciário acerca de tal prática, procedeu-se a uma pesquisa junto ao site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (http://www.tjrs.jus.br), buscando identificar os contornos e critérios utilizados para fins de condenação ou absolvição.

A pesquisa foi realizada junto ao campo específico de pesquisa jurisprudencial, delimitando como critério temporal o interregno entre 24 de setembro de 2013 e 24 de setembro de 2014, considerando a data de publicação das decisões. Junto ao campo destinado às palavras ou termos a serem pesquisados, inseriu-se a palavra “nepotismo”.

Para fins de compreensão, apresenta-se o preenchimento dos campos da pesquisa quantitativa realizada: i) no o campo destinado a palavras-chave, digitou--se: nepotismo; ii) órgão julgador: todos; iii) relator: todos; iv) seção: cível e criminal; v) tipo de processo: todos; vi) número: nenhum; vii) comarca de origem: nenhuma; viii) data de julgamento: nada; ix) data de publicação: 24/09/2013 a 24/09/2014; x) no campo “procurar resultados”: com todas as palavras: nepotismo; com a expressão: nada; com qualquer uma das palavras: nada; sem as palavras: nada; expressão na busca livre: nepotismo “nepotismo”; xi) classificar: por data decrescente.

O resultado obtido com a busca realizada nos termos e parâmetros acima apresentados foi de um total de vinte acórdãos3.

A fim de possibilitar a identificação dos critérios utilizados pelo Poder Judiciário no julgamento da prática de nepotismo, excluíram-se do objeto de análise deste artigo, aquelas decisões que não tratam de análise meritória final – na medida em que a inclusão de decisões interlocutórias não permitiria vislumbrar a efetiva utilização dos critérios de julgamento, eis que se tratam de julgados cujos processos ainda não sentenciados – chegando-se a um total de seis decisões a serem examinadas.

Por fim, esclarece-se que um acórdão dentre esses seis resultados antes apontados, trata especificamente do nepotismo cruzado, o qual será analisado em um específico tópico deste artigo, em razão das características peculiares desta prática de nepotismo.

3 – Processos n° 70059256479, 70059369389, 70057381006, 70059024109, 70057212482, 70055698708,

70056257538, 70056817703, 70056411994, 70056401359, 70056697493, 70057780462, 70057098170,

70056735103, 70061655056, 70061232575, 70061151445, 70061130290, 70056858780, 70056176951.

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O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência

Traçados os limites da pesquisa realizada, bem como os dados quantitativos a serem analisados, proceder-se-á agora primeiramente a uma rápida conceituação do termo “nepotismo”, e, posteriormente à análise dos critérios utilizados pelo Tribunal para fins de condenação ou absolvição pela prática de nepotismo.

1. O NEPOTISMO NA VISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

CONCEITUAÇÃO

Considerando que tem por pretensão o presente trabalho, a apresentação de uma visão objetiva acerca dos critérios utilizados pelo Poder Judiciário no julgamento dos casos envolvendo a prática de nepotismo, utilizar-se-á também para fins de compreensão e conceituação do nepotismo o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca de tal prática.

Assim, no julgamento da Medida Cautelar em Ação Declaratória n. 12-6/DF, lê-se junto ao voto do Ministro Carlos Britto, as margens definidoras do que se pode conceber por nepotismo:

Traduzido este no mais renitente vezo da nomeação ou da designação de parentes não-concursados para trabalhar, comissionadamente ou em fun-ção de confiança, debaixo da aba familiar dos seus próprios nomeantes. Seja ostensivamente, seja pela fórmula enrustida do ‘cruzamento’ (situação em que a autoridade recruta o parente de um colega para ocupar cargo ou função de confiança, em troca do mesmo favor).

Trata-se, pois, do ato do agente público de atribuir ao seu familiar, através do uso de seu cargo, não apenas a facilitação de acesso ao serviço público, mas sim a imediata investidura no cargo ou comissão.

Conforme lembra o Ministro, trata-se da conduta contrária aos princípios administrativos, em especial os princípios da impessoalidade, da eficiência e da igualdade.

Deste modo, indica, que em via oposta ao que indica o patrimonialismo secular que perpassa a Administração Pública brasileira, já não mais se pode admitir que a facilitação do ingresso de parentes junto ao serviço público.

Mais uma vez, como bem aponta o Ministro Carlos Britto, em seu já mencionado voto junto à medida Liminar em Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 12-6/DF, o resultado ou conseqüência prática do nepotismo,

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Rafael Santin Brandini e Ramônia Schmidt

vai além de garantir o emprego a diversas pessoas de uma mesma família: acaba por dar causa a uma “[...] uma super-afetação de renda, poder político e prestígio social”.

Ou seja, um mesmo núcleo familiar acaba por concentrar por vezes o poder de diversos setores administrativos de um mesmo Município ou Estado, o que no transcorrer dos tempos acaba por criar um sistema de blindagem - decorrente da alta concentração de renda e prestígio já alcançados.

Deste modo, a edição da Resolução n. 07 do Conselho Nacional de Justiça e da Súmula Vinculante n. 13 do Supremo Tribunal Federal, com a delimitação daquilo que se compreende por nepotismo, corresponde a uma das formas de combate à corrupção.

Uma vez delineado o conceito do nepotismo e identificada a sua utilização na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, abordar-se-á no próximo capítulo as práticas de nepotismo julgadas em segunda instância pelo ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no período de 24 de setembro de 2013 e 24 de setembro de 2014.

2. O NEPOTISMO SEGUNDO O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ES-

TADO DO RIO GRANDE DO SUL

O nepotismo, como já antes referido, mostra-se como uma das práticas corruptivas mais arraigadas no Brasil, de modo que, mais do que meramente transformar a administração pública em um cabide de empregos familiar, possibilitou a criação de uma elite política e social, em razão da concentração de cargos e acesso privilegiado aos recursos públicos.

Entretanto, a criação da Resolução n. 07 do Conselho Nacional de Justiça e Súmula Vinculante n. 13 do Supremo Tribunal Federal, mostram que a sociedade brasileira já não mais se admite tal prática corruptiva, exigindo por parte do Poder Judiciário a tomada de decisões e a criação de normas indicadoras de condutas passíveis de repreensão.

Assim, a presente pesquisa buscou identificar, mediante a análise de julgados do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, quais os critérios utilizados para fins de absolvição ou condenação pela prática de nepotismo.

Esclarece-se, mais uma vez que, dentre os resultados obtidos com a metodologia antes apontada, excluíram-se aqueles em que não ocorreu análise meritória final, na medida em que se tratariam de informações não seguras para

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O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência

fins de uso na presente pesquisa – a qual visa apresentar dados objetivos acerca dos critérios usados para fins de condenação ou absolvição nas acusações de nepotismo.

2.1 Critérios de absolvição

Perante a temática delimitada foram identificados dois acórdãos que, ao analisarem o mérito das possíveis práticas de nepotismo, decidiram pela absolvição dos réus. Assim, passa-se a analisar, individualmente, cada acórdão, relevando-se aos critérios fundamentadores dos julgados.

O primeiro acórdão trata da Apelação Cível n. 70057212482, julgada pela Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça gaúcho, na data de 26 de março de 2014. As razões recursais, propostas pelo réu, e então Prefeito Municipal, se insurgem contra a sentença, proferida pelo Juízo da origem na Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público, que o condenou por ato de improbidade administrativa decorrente da nomeação de seu sobrinho para a função de Tesoureiro Municipal.

O recurso foi provido de forma unânime, porém, os critérios absolutórios nos votos da Relatora e do Revisor divergem. A primeira (Desa. Laura Louzada Jaccottet), com amparo na prova produzida, entendeu que a função de Tesoureiro exercida pelo sobrinho do Réu, embora não fosse propriamente a de Secretário Municipal, a esta se equivaleu, pois o mesmo era responsável pela Secretaria da Fazenda local, e a relação hierárquica vincula-se tão somente ao Prefeito Municipal. Logo, a Relatora em seu voto concluiu pelo caráter eminentemente político do cargo exercido e em debate, razão pela qual, amparando-se e citando decisões do Supremo Tribunal Federal4, não vislumbrou no caso concreto qualquer violação aos termos da Súmula Vinculante n. 13 do STF por parte da autoridade ré.

O Revisor (Des. Ricardo Torres Hermann), por sua vez, não entendeu que a função em comento se equipara a cargo político, mas votou pela absolvição por considerar que não restou comprovado nos autos o dolo na conduta em questão, o que afasta a configuração do ato de improbidade administrativa capitulada no artigo 11 da Lei n. 8.429/92. A Desembargadora Presidenta (Lúcia de Fátima Cerveira), acompanhou o voto do Relator.

Já o segundo acórdão trata-se da Apelação Cível n. 70056401359, julgada pela Vigésima Segunda Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na data de 03 de outubro de 2013. As razões recursais, propostas pelo

4 – Reclamações n. 16.363, 14.316, 14.223, 12.478, 6.938, 6.702 e 6.650.

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Rafael Santin Brandini e Ramônia Schmidt

Ministério Público, insurgem-se contra a sentença, proferida pelo Juízo da origem, que absolveu os Réus – nove Vereadores –, perante a Ação Civil Pública por atos de improbidade administrativa – nomeação de servidores com vínculo de familiaridade para o exercício de função junto a respectiva Casa Legislativa.

O recurso por ora abordado foi improvido de forma unânime, através dos seguintes critérios absolutórios: a) ausência probatória de elementos a configurar o dolo na contratação dos servidores (familiares); b) inaplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13 do STF, uma vez que as contratações do caso em tela são anteriores à edição da Súmula citada; c) por se tratar de funções nomeadas por vereadores a Súmula Vinculante n. 13 não alcança os cargos políticos.

2.2 Critérios de condenação

Da mesma forma em que foram abordados os julgados absolutórios concernentes a atos de nepotismo, passa-se a analisar os critérios fundamentadores das quatro decisões condenatórias de mérito identificadas ante a temática delimitada. Destaca-se que o quarto acórdão condenatório identificado trata de situação configuradora de “nepotismo cruzado”, razão pela qual será melhor estudo no item subsequente, já que oportuna uma breve conceituação.

O primeiro Acórdão a ser analisado diz respeito à Apelação Cível n. 70056697493, julgada pela Primeira Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na data de 03 de outubro de 2013. A interposição recursal foi proposta ante o inconformismo com a sentença de primeiro grau que julgou procedente a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público, em decorrência do ato de Prefeito Municipal, com a aderência da Chefe do Departamento de Recursos Humanos do mesmo município, que nomeou o filho do mesmo para cargo comissionado.

De forma unânime, a Câmara deu parcial provimento ao recurso, atenuando a pena de proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário para cinco anos, porém mantendo a condenação.

Os fundamentos condenatórios se ostentaram nas seguintes razões: a) refutou-se a tese de defesa que sustentava a inexistência de norma de vedação do nepotismo em âmbito municipal através do artigo 20, § 5º, da Constituição Estadual do Estado do Rio Grande do Sul, que veda a contratação de cônjuges,

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O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência

companheiros ou parentes até o segundo grau para ocuparem cargos em comissão, bem como com amparo no artigo 37 da Constituição Federal de 1988; b) Quanto à alegação de que não se aplicaria a Súmula Vinculante n. 13 ao presente caso, por ser ela posterior à admissão contestada, também não foi acolhida, pois entenderam os julgadores que tal entendimento sumular apenas sedimenta um sentido já pacificado acerca da matéria, motivo pelo qual não há de falar em sua retroatividade ou irretroatividade; c) julgaram no sentido de que no caso de prática de nepotismo, é desnecessária a prova de prejuízo ao erário para configurar a improbidade administrativa, haja vista que decorre da violação dos princípios que norteiam a Administração Pública, em especial o princípio da impessoalidade, da moralidade e da legalidade.

O segundo acórdão versa sobre a Apelação Cível n. 70057098170, julgada pela Segunda Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na data de 20 de novembro de 2013. A origem trata-se de recurso, interposto pelo Ministério Público, em face da sentença de origem que, nos autos da Ação Civil Pública Declaratória de Nulidade de Ato Administrativo, julgou parcialmente procedente a pretensão.

A origem fática concerne à mantença da efetivação da esposa de Vice--Prefeito Municipal ao cargo comissionado de Diretora de Creche municipal.

Por maioria – votos do Relator Des. João Barcelos de Souza Júnior e do Revisor Des. Heleno Tregnago Saraiva, a Câmara julgadora entendeu pela majoração da condenação, amparando a tese condenatória nos seguintes critérios: a) incontestável a ocorrência fática de nepotismo, vedada pela Súmula Vinculante n. 13 do Supremo Tribunal Federal; b) O fato da esposa do Vice-Prefeito ter sido provida por livre nomeação antes mesmo da gestão deste, não tem o condão de afastar a ocorrência de nepotismo, pois entenderam os julgadores que a súmula vinculante n. 13 impede a manutenção de parentes na máquina pública, tendo em vista que o verbete alcança as situações futuras, em que a autoridade nomeante não pode nomear, nas situações ali constantes, parentes e cônjuges, igualmente e com maior razão não podem os gestores mantê-los na Administração Pública. O contrário seria admitir o nepotismo, ou seja, a institucionalização da família na Administração Pública.

Por fim, o terceiro acórdão analisado diz respeito à Apelação Cível n. 70056735103, julgada pela Segunda Câmara Cível, do Tribunal de Justiça gaúcho, na data de 20 de novembro de 2013. A interposição recursal foi proposta pelo Município, irresignado com a sentença de parcial procedência da Ação

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Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público, que declarou a nulidade do ato de nomeação de Secretário Municipal de Educação e determinou sua pronta exoneração, por ser sobrinho do Secretário Municipal de Obras, Habitação, Trânsito e Transportes, o que configura o nepotismo. Em suas razões recursais o Município aduziu que a vedação de contratação de parentes até o terceiro grau não se aplica aos cargos de natureza política, tais como o de Secretário Municipal.

Em julgamento a Câmara por maioria – votos do Relator Des. João Barcelos de Souza Júnior e do Revisor Des. Heleno Tregnago Saraiva –, entendeu por negar provimento ao apelo, mantendo a condenação através seguintes critérios decisórios: a) não vislumbram qualquer hipótese de afastamento da caracterização do nepotismo, tendo em vista a afronta aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade, decorrente do ato de nomeação para o cargo de Secretário Municipal da Educação, sendo sobrinho de outro ocupante de cargo político - Secretário Municipal de Obras; b) com amparo no julgamento do Agravo de Instrumento n. 70051067338 do TJ/RS, entenderam que o exercício de cargos políticos por pessoas que mantenham laços familiares com autoridades públicas não exclui necessariamente a configuração da prática de nepotismo, ou seja, não afasta a incidência da Súmula Vinculante n. 13 do STF.

2.3 Nepotismo cruzado: critérios condenatórios

Conforme acima destacado, perante a temática delimitada foi identificado um acórdão condenatório versando sobre a prática de nepotismo cruzado. Assim, passa-se a uma breve conceituação de nepotismo cruzado e, após, à analise dos critérios fundamentadores da condenação.

A Súmula Vinculante n. 13 do Supremo Tribunal Federal prevê em seu texto a ocorrência do nepotismo cruzado no caso de “ajuste mediante designações recíprocas”, ou seja, deve haver a troca de favores com nomeação para cargos.

Tão logo, o nepotismo cruzado afigura-se quando dois agentes públicos empregam familiares um do outro como troca de favor. É imperiosa a ocorrência da reciprocidade de favores para a configuração da espécie proibida pela Súmula Vinculante.

O acórdão versando sobre o caso de nepotismo cruzado trata da Apelação Cível n. 70057780462, julgada pela Primeira Câmara Cível, do Tribunal de Justiça gaúcho, na data de 30 de janeiro de 2014. As interposições recursais foram propostas, por dois funcionários municipais/cargos comissionados, contra

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O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência

sentença, que julgou procedente a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público, decretando a nulidade do ato de nomeação dos mesmos junto à Empresa de Comunicação Municipal, por ficar demonstrado a prática de nepotismo cruzado.

Em análise as razões recursais a Câmara julgadora, unanimemente, desproveu os apelos, mantendo a condenação sentencial de origem. Os critérios utilizados à certeza da configuração do nepotismo cruzado foram os seguintes: a) os elementos probatórios colhidos aos autos demonstraram que a nomeação dos demandados para os cargos de direção da empresa pública municipal (Companhia de Informática), configura nepotismo, visto que são filhos de Vereadores do Município; b) a prova testemunhal e documental demonstrou que houve “troca de favores” com a indicação dos cargos de diretor para filhos de vereadores de partidos políticos específicos; c) Destacou-se o desprovimento, por parte dos réus, de conhecimentos técnicos a justificar a nomeação a cargo de diretores de empresa pública de informática.

3. ANÁLISE CRÍTICA DOS CRITÉRIOS DECISÓRIOS APRE-SENTADOS

Como se viu nos itens anteriores, as decisões sob análise se utilizaram de diferentes critérios a fim de julgarem pela condenação ou absolvição pela prática de nepotismo.

Tais motivos, no entanto, revelam uma dissonância de critérios e entendimentos dentro do mesmo órgão julgador, conduzindo por vezes em decisões não unânimes e baseadas em argumentos de ordem principiológica e não objetiva, quando não contraditória.

Entendeu-se, assim, a título de exemplificação que, mesmo nos atos sob análise anteriores à edição da Súmula Vinculante n. 13 do Supremo Tribunal Federal, é vedada a prática do nepotismo e a mesma é passível de condenação judicial.

Argumentou-se, pois, que, mesmo ante a inexistência de expressa orientação vinculativa, já se encontrava sedimentado o entendimento jurisprudencial pela vedação do nepotismo – de modo que não cabível a tese de inaplicabilidade da norma em razão de critério temporal.

Todavia, quando da análise dos critérios que conduziram à absolvição de outro acusado, verifica-se que dentre os argumentos utilizados está a inaplicabilidade da Súmula Vinculante n. 13 às situações ocorridas anteriormente à sua edição.

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Percebe-se, pois, que, dependendo o acórdão a ser analisado pelo pesquisador, um mesmo argumento é utilizado de forma contraditória e indicado como fundamento para resultados opostos.

Ou seja, não é possível extrair da análise jurisprudencial procedida a certeza, ou menos, um forte indício, que permita fazer concluir pela aplicabilidade ou inaplicabilidade da Súmula n. 13 aos casos que lhe são anteriores.

Da mesma forma, compreendeu o Tribunal que, para fins condenatórios, não se faz necessária a prova de danos ao erário público na prática do nepotismo, na medida em que se trata de uma ação contrária aos princípios que norteiam a Administração Pública – com especial destaque aos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade.

Ou ainda, julgou-se pela incidência da Súmula Vinculante n. 13 mesmo nos casos que envolvam a nomeação de parentes para cargos políticos – que são preenchidos por livre nomeação.

Entretanto, da análise dos julgados que entenderam pela absolvição, acima referidos, é possível extrair que em um dos votos (e o qual prevaleceu no julgamento), utilizou-se o argumento de que não se configura prática de nepotismo nas nomeações que envolvam cargos políticos.

Ou seja, um mesmo argumento é usado por um mesmo Tribunal em sentidos e em finalidades totalmente diversas. Ora serve de justificativa para a absolvição, ora serve de fundamentação para a condenação.

Deste modo, compreende-se que, mais do que condenar ou absolver por razões de ordem meramente técnica, é clara a intenção dos julgadores de moralizar a Administração Pública, buscando outros critérios que permitam identificar a prática de nepotismo em diversos atos, impedindo o engessamento do sistema.

CONCLUSÃO

Da análise da pesquisa procedida, cujos elementos centrais foram acima abordados, é possível perceber a tentativa do Poder Judiciário em atuar positivamente no combate à corrupção, através da edição de Súmulas Vinculantes e Resoluções que buscam identificar e caracterizar o nepotismo enquanto prática corruptiva.

Acerca da atuação específica do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, nos casos objetos da presente pesquisa, extrai-se que as decisões se pautam pela pretensão de moralização da Administração Pública, atreladas, no entanto, aos critérios formais e materiais, que por vezes conduzem ao afastamento da condenação.

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O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência

Extrai-se, assim, que a atenção do judiciário está voltada para o combate ao nepotismo, cuja atuação em conjunto com a sociedade brasileira, revela-se um dos mecanismos mais eficazes em impedir o uso da Administração Pública para fins de expansão de poder nas relações de parentesco.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 07, de 18 de outubro de 2005. Disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e de servidores investidos em cargos de direção e assessoramento, no âmbito dos órgãos do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_07.pdf. Acesso em: 02 fev. 2015.

_____. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

_____. Lei n. 8.429, de 02 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 02 fev. 2015.

_____. Supremo Tribunal Federal. MC/AD n. 12-6/DF. Relator Ministro Carlos Britto. Disponível em: http://www.stf.gov.br. Acesso em: 03 mar. 2015.

_____._____. Súmula Vinculante n. 13. Disponível em: http://www.stf.gov.br. Acesso em: 03 mar. 2015.

_____. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível n. 70057212482. Relatora Laura Louzada Jaccottet. Julgado em 26/03/2014. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=378334>. Acesso em: 03 mar. 2015.

_____._____. Apelação Cível n. 70056401359. Relator Carlos Eduardo Zietlow Duro. Julgado em 03/10/2013. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1725665>. Acesso em: 03 mar. 2015.

_____._____. Apelação Cível n. 70056697493. Relator Sergio Luiz Grassi Beck. Julgado em 03/09/2014. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1390387>. Acesso em: 03 mar. 2015.

_____._____. Apelação Cível n. 70057780462. Relator Luiz Felipe Silveira Difini. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=79351>. Acesso em: 03 mar. 2015.

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_____._____. Apelação Cível n. 70057098170. Relator João Barcelos de Souza Junior. Julgado em 20/11/2013. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2060243>. Acesso em: 03 mar. 2015.

_____._____. Apelação Cível n. 70056735103. Relator João Barcelos de Souza Junior. Julgado em 20/11/2013. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2061090>. Acesso em: 03 mar. 2015.

ÂMBITOS DE RESPONSABILIDADE DE SERVIDOR PÚBLICO DO PODER JUDICIÁRIO EM AÇÃO

CIVIL PÚBLICA NO RIO GRANDE DO SUL: UM ESTUDO DE CASO CONCRETO DAS

APELAÇÕES 70057782294, 70055576037 E 70054719489

Ianaiê Simonelli da Silva1

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher2

INTRODUÇÃO

A corrupção é um fenômeno patológico que se encontra em todos os países do mundo, sendo em alguns com mais intensidade do que em outros. No Brasil, atualmente, há uma maior publicização, principalmente através da mídia, acerca de diversos atos corruptivos, ocorridos nos sistemas executivo, legislativo e judiciário.

1 – Ianaiê Simonelli da Silva é Advogada e Mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Uni-

versidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), na qual foi Bolsista do Programa BIPSS - Bolsas Institucio-

nais para Programas de Pós-Graduação da Universidade de Santa Cruz do Sul, RS, Edital 01/2014.

É integrante do grupo de pesquisa Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração

e Sociedade: causas, consequências e tratamentos, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta

Leal. E-mail: [email protected]

2 – Jonathan Augustus Kellermann Kaercher é Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz

do Sul (UNISC) e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado

da Universidade de Santa Cruz do Sul/RS – UNISC (2015-2016) com Taxa da Capes. É integrante

do grupo de pesquisa Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Administração e Sociedade:

causas, consequências e tratamentos, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal. E-mail:

[email protected]

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Ianaiê Simonelli da Silva e Jonathan Augustus Kellermann Kaercher

Neste contexto, serão trabalhados no presente artigo, apenas os atos corruptivos ocorrentes no poder judiciário, de forma mais exata, um estudo de caso concreto com condenações de oficiais de justiça em ação civil pública no Rio Grande do Sul.

O poder judiciário brasileiro, em regra, exerce dois importantes papeis, sendo o primeiro, em sua função típica, denominado de jurisdição. Dessa forma, se pode auferir que se trata do denominado “poder-dever”, em que a prerrogativa parte do pressuposto de participar dos conflitos em interesse sobre cada caso em concreto, em que se interfere através de um processo judicial, com a aplicação de normas gerais e abstratas, em que se busca transformar os resultados das ações em lei, ou seja, o fenômeno da coisa julgada material. Já o segundo papel do poder judiciário é o administrativo, eis que trata de assuntos internos e participa, de forma eventual, do poder legislativo, sendo alguns casos por meio de iniciativa de leis.

Nessa linha, pode ser citado o funcionalismo público, como um dos grandes mecanismos precursores de fomentação do poder judiciário, haja vista que os servidores públicos exercem um dos papeis mais importantes perante a administração pública, qual seja, dar andamento nas atividades do Estado, devendo agir sempre com ética, zelo, transparência e obediência às normas e regras, ora estabelecidas na lei. No entanto, ocorrem de forma significativa, vários desvios de função por meio destes servidores públicos, os quais aceitam praticar atos contrários à boa administração pública, para satisfazer seus interesses próprios, ou seja, atuar em atividade corruptiva.

Nessa baila, para todos os atos corruptivos praticados por funcionário público, há sanções legais, as quais surgem com a finalidade de reprovar conduta contrária ao desempenho funcional do Estado. Dentre estas sanções legais, podemos citar os crimes praticados por funcionários públicos contra a administração pública, os quais estão dispostos do artigo 312 ao artigo 327, todos do Código Penal, as sanções previstas no artigo 37 da Constituição Federal, as sanções previstas na Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990, as sanções previstas na Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e as sanções previstas na Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992.

1. COMO SE DÁ A CORRUPÇÃO (IMPROBIDADE ADMINISTRA-

TIVA) NO FUNCIONALISMO PÚBLICO

Entre várias disfunções que ocorrem no serviço público, a mais inquietante é a improbidade administrativa de agentes e funcionários, haja vista ser um assunto

299

Âmbitos de responsabilidade de servidor público do Poder Judiciário em Ação Civil Pública no Rio Grande do Sul: um estudo de caso concreto das Apelações 70057782294, 70055576037 e 70054719489

com muita notoriedade em face de sua difusão e redifusão midiática tradicional (OSÓRIO, 2010). A improbidade administrativa, em conjunto com o princípio da moralidade, cumpre a função dogmática, pedagógica, além de coibir abusos do administrador público, em que aparece como alternativa jurídica para vir a se enfrentar o grave problema da corrupção (FIGUEIREDO, 2008).

Vários autores constitucionalistas e administrativistas, para delimitarem o conceito de improbidade, procuram estabelecer o entendimento de probidade e a sua relação com o termo “moralidade”, trazendo diferenças e acreditando que a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa, com algumas particularidades (MELO, 2008). Senão vejamos:

[...] numa primeira aproximação, improbidade administrativa é o de-signativo técnico para a chamada corrupção administrativa, que, sob diversas formas, promove o desvirtuamento da Administração Pública e afronta os princípios nucleares da ordem jurídica (Estado de Direito, Democrático e Republicano), revelando-se pela obtenção de vantagens patrimoniais indevidas às expensas do erário, pelo exercício nocivo das funções e empregos públicos, pelo tráfico de influência nas esferas da Administração Pública e pelo favorecimento de poucos em detrimento dos interesses da sociedade, mediante a concessão de obséquios e privi-légios ilícitos (FILHO; ROSA; JÚNIOR, 1999, p. 39).

Assim, é conveniente relembrar a origem da palavra “probidade”, tem seu nascimento no latim probus (pro + bho – da raiz bhu, nascer, brotar), trazendo o conceito de algo que brota bem, ou seja, que possui boa qualidade. Ostenta outros significados, tais como retidão de conduta, honradez, lealdade, integridade, virtude e honestidade (MELO, 2008). Na lição de Di Pietro, moralidade e improbidade administrativa, não devem ser analisadas tão somente pela legalidade formal, mas também por meio de um campo interpretativo em princípios.

Quando se exige probidade ou moralidade administrativa, isso significa que não basta a legalidade formal, restrita, da atuação administrativa, com observância da lei; é preciso também a observância de princípios éti-cos, de lealdade, de boa fé, de regras que assegurem a boa administração e a disciplina interna na Administração Pública (Di Pietro, 2005, p. 709).

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Através desses conceitos, se percebe que a improbidade não é um assunto inovador na atualidade, tampouco exclusivo do Brasil. A improbidade é uma patologia que deve ser não só prevenida, mas também combatida, por meio de uma mudança na mentalidade e passividade da sociedade, bem como da adoção de um sistema que seja contido por meios eficazes, a fim de se punir através daqueles que desrespeitam a res pública e os valores ditos consagrados através de um Estado Democrático de Direito (MELO, 2008).

A sobrevivência do Estado Democrático de Direito impõe, necessaria-mente, a proteção da moralidade e da probidade administrativa nos atos administrativos em geral, exaltando as regras de boa administração e extirpando da gerência dos negócios públicos agentes que ostentam ina-bilitação moral para o exercício de funções públicas. Bem percebe Fábio Medina Osório que a sobrevivência do Estado Democrático de Direito exige um ‘combate duro e sistemático aos casos de corrupção e improbi-dade administrativa’ (JUNIOR, 2001, p. 02).

Nessa linha, em diversos modelos comparados, “a improbidade já é tida como espécie de má gestão pública que comporta atuações dolosas e culposas” (OSÓRIO, 2010, p. 41). Pressupõe desrespeito aos deveres de imparcialidade e de lealdade às instituições. No que diz respeito ao dever de imparcialidade, se pode dizer que decorre a partir de certa necessidade da autoridade assegurar determinado tratamento aos usuários do serviço público, de forma a não tolerar privilégios ou até mesmo discriminações. Com relação ao dever de lealdade, pode ser delimitado a partir de duas conotações teóricas, em que a primeira significa a fidelidade aos interesses públicos primários sobre coletividade e compromisso sobre a boa gestão do patrimônio público (SARMENTO, 2002).

Nesse mesmo sentido, a lealdade também importa em dar-se o devido respeito ao segredo profissional, à reserva sobre informações obtidas em âmbito estritamente funcional. Assim, existem algumas situações em que os agentes públicos atuam como guardiões de informações ditas sigilosas (SARMENTO, 2002). Em questões éticas, entende Osório, como uma norma exposta ao denso e complexo relacionamento com os valores e as instituições da opinião pública e da comunidade jurídica.

[...] Daí a advertência: nosso caminho vai da ética ao direito, do geral ao particular, com ênfase na análise de modelos aproximados. Não se

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trata aqui de ética abstrata, descomprometida com a realidade cultural de nosso país, mas de normas éticas expostas ao denso e complexo contato com o mundo dos valores e das instituições, da opinião pública e da co-munidade jurídica, com suas consequências inevitáveis (OSÓRIO, 2010, p. 41-2).

Nesse âmago, a noção jurídica, no âmbito do direito administrativo, em questões de boa administração ou até mesmo de gestão pública, mormente o seu oposto, a má gestão pública, partem de uma origem teórica, que descreve a moralidade administrativa num sentido funcionalmente embasado sobre o ideário da boa gestão pública, de forma independente sobre os resultados ostensivos programados pelo direito legislado (OSÓRIO, 2010). Assim:

[...] disse que existia uma moralidade administrativa segundo a qual o administrador ficava vinculado a regras de conduta inerentes à disciplina interna da Administração Pública, o que significava a obediência neces-sária a pautas de boa administração, transcendendo as minúcias ou previ-sões expressas nas regras legais (OSÓRIO, 2010, p. 42).

Subentende-se, assim, que é possível buscar determinados vestígios sobre a espécie de boa Administração Pública nas culturas ocidentais, no entanto, é no âmbito da pós-modernidade que surge a exigência de forma ético-normativa através da mudança da administração burocrática sob o modelo gerencial, de modo que se “[...] aumentam os níveis de responsabilidade pessoal dos agentes públicos, suas liberdades, espaços discricionários e balizamentos éticos ligados a vetores de eficiência e de boa gestão” (OSÓRIO, 2010, p. 43).

Assim, o conteúdo denominado de “boa administração”, baliza ser mais político, cultural e econômico do que precisamente jurídico, haja vista o Poder Judiciário conseguir obter certa imposição de eficiência administrativa através de sentenças ou acórdãos (OSÓRIO, 2010). Nesse contraponto, o direito administrativo não é criado com a intenção de regular e subjulgar interesses e direitos dos cidadãos aos do Estado, mas é um direito que decorre para regular a conduta do Estado e para mantê-lo interligado às disposições legais.

O Direito Administrativo não é um Direito criado para subjulgar os in-teresses ou os direitos dos cidadãos aos do Estado. É, pelo contrário, um

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direito que surge exatamente para regular a conduta do Estado e mantê-la afivelada às disposições legais, dentro desse espírito protetor do cidadão contra descomedimentos dos detentores do exercício do Poder Estatal. Ele é, por excelência, o Direito defensivo do cidadão – o que não impede, evi-dentemente, que componha, como tem que compor, as hipóteses em que os interesses individuais hão de se refletir aos interesses do todo, exata-mente para a realização dos projetos de toda a comunidade, expressados no texto legal. (MELLO, 2012, p. 47-8. Grifo no original).

Assim, o devido lugar da lei no regime democrático, nesse contexto, pode resultar de forma deslocada, haja vista não ser fonte absoluta de legitimidade do Estado, nem instrumento inócuo, mormente inútil perante os atores judiciais. Logo, será necessário redefinir os atores políticos, no interior destes pressupostos ditos republicanos e democráticos indispensáveis.

A improbidade administrativa é uma espécie de imoralidade administra-tiva qualificada, eis uma noção jurídica que poderia nascer do senso co-mum. [...] a improbidade sempre foi tida como sinônimo de desonra do homem público, numa perspectiva etimológica. Em realidade, essa pato-logia pode ser vista de ângulos muito distintos, porém todos reconduzin-do ao universo da honra funcional e da imoralidade administrativa, como especialização de uma imoralidade mais ampla (OSÓRIO, 2010, p. 77).

Além disso, se pode auferir que a maior parte destas normas de ética pública, ora vigentes em sociedades civilizadas e politicamente organizadas, trazem o reconhecimento de pautas ditas gerais, em que há domínios específicos, que estão concentrados e imputados, variando, assim, tipos e requisitos, em consonância com as classes de agentes atingidos (OSÓRIO, 2010).

Ressalta Osório (2010) que é análogo certo nível de degradação dos valores, ditos éticos nas Administrações Públicas, em que parece que a questão se solidifica na corrupção, em que esta constitui somente um, podendo ser até mais grave, dos atentados sobre a ética em que poderá envolver-se um servidor público. Porém, de certo modo, existem outros que ante a generalidade daquela ficam relegados ao esquecimento ou até mesmo as práticas administrativas.

Nessa baila, caso queira regenerar a vida pública ou caso queira confrontar a seriedade com a tarefa de elaborar uma Administração Pública, não se deve suscitar

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a dita desconfiança e receio de alguns administrados, mas que se possa servir de exemplo à execução privada, sendo necessário que não seja limitado a sancionar ao desagradável mundo da corrupção e, para lembrar-se de outros deveres elementares (OSÓRIO, 2010).

O dever de probidade administrativa não se confunde com algum genéri-co dever de probidade moral dos agentes públicos e particulares [...]. Aos agentes públicos se assegura o supremo direito à imoralidade, dentro de limites mais estreitos, é certo. Daí a incorreção da tese de que busca iden-tificar na improbidade uma imoralidade comum (OSÓRIO, 2010, p. 78).

De fato, não se pode deixar de lembrar que os agentes públicos são submetidos a dado regime jurídico de direito público, de forma mais severa e rigorosa. Nesse sentido, pode ser afirmado que se trata de um regime estatutário, em que a vida pessoal desses funcionários se torna restringida, em formas variáveis (OSÓRIO, 2010).

Nesse sentido, o dever de probidade dos agentes públicos, no que tange ao tratamento da coisa pública, bem como de representante do Estado, seja na prestação de serviços ou na execução de funções públicas, fica restrito na tutela da Administração Pública brasileira, em que caberá proteger as diretrizes fundamentais do Estado Democrático de Direito, em que se orienta o tratamento da res publica como um todo, alcançando frontalmente os agentes públicos (OSÓRIO, 2010).

Destarte, a improbidade parte de uma derivação de imoralidade administrativa, porém, nem toda a imoralidade constituirá a improbidade administrativa. É correto afirmar que o dever de probidade parte de uma concepção de ética institucional ao setor público, em que se traduz certo ponto de encontro de normas éticas e jurídicas, consoante os limites da segurança e da capacidade de serem assumidas nas decisões dos operadores de direito (OSÓRIO, 2010).

A moral administrativa impõe que os agentes públicos observem não só a legalidade formal, mas sobre certas regras éticas que se transformam junto ao ambiente institucional, tornando-se, assim, obrigatórias, bem como juridicamente relevantes, além de outras normas que em conjunto com a legalidade, teriam por dever funcionar como parâmetro básico da Administração Pública, integrando o conteúdo implícito das leis (OSÓRIO, 2010).

Nesse ínterim, pode se afirmar que a moral administrativa exerceu, em suas origens, a chamada dupla funcionalidade, ou seja, de um lado expressou o

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ideal da legalidade substancial da administração pública, em que se desafiou o legalismo vigente à época. Por outro lado, foi (re) introduzida a necessidade de valorar as regras existentes, de modo a impulsionar o futuro da chamada legalidade substancial, desafiando, assim, os métodos hermenêuticos que estão usualmente empregados (OSÓRIO, 2010).

Ademais, novos métodos interpretativos se tornaram consolidados, bem como pacificados, aceitando clássicas contribuições sobre moralidade administrativa, sempre por baixo da categoria que se denominou de legalidade substancial, categoria essa que se reconfigura e se remodela a partir da influência da moralidade. Logo, a partir de um ângulo subjetivo, o dever de obediência da moralidade administrativa será incluído no campo da responsabilidade pessoal dos agentes públicos. Assim, se pode dizer que a imoralidade administrativa é qualificada pela lei como improbidade, dando lugar à responsabilidade dos funcionários públicos (OSÓRIO, 2010).

Após trabalhar com a questão estratégica da improbidade administrativa, busca-se também trabalhar com os principais atores dessas ilicitudes no âmbito da administração pública, quais sejam os agentes públicos. Com isso, se percebe que a prática do suborno é uma das patologias corruptivas mais antigas de que se tem notícia. Assim, por muito tempo, vários doutrinadores buscam considerar que o enriquecimento ilícito pode ser reconhecido como a única expressão da improbidade administrativa (SARMENTO, 2002).

Nesse sentido, a concepção de vantagens financeiras indevidas em razão de exercício de cargo, mandato, função ou emprego público é a primeira demonstração do enriquecimento ilícito. Observa-se, que será necessário estabelecer a relação entre enriquecimento ilícito e exercício de qualquer cargo ou função, mormente a prática de dado ato que causou este locupletamento do agente público. Entende-se que o enriquecimento ilícito demonstra a prática de ato comissivo ou até mesmo omissivo, de funcionário público, de forma a beneficiar a si próprio ou a terceiros. O ponto primordial em análise é a percepção de vantagem patrimonial, que consiste em bens, direitos, ou valores. Já de forma geral, causará prejuízos de maneira direta aos cofres públicos, como desvios de verbas estatais, caixa dois, peculato e superfaturamento de obras ou até mesmo de serviços que são consequências diretas de improbidade (SARMENTO, 2002).

O enriquecimento ilícito do agente público provoca dano à moralidade administrativa e, independentemente, pode causar dano patrimonial à

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Administração Pública. Via de regra, caracteriza-se pelo recebimento de vantagem econômica indevida em razão do exercício de cargo, emprego ou função pública. Não é necessário que o agente público exija ou solicite a vantagem econômica; basta, para caracterizar o enriquecimento ilícito, que ele a receba, pouco importando se adveio de oferta, solicitação ou exigência (MARTINS JÚNIOR, 2001, p. 186).

Dessa forma, é necessário atentar para a questão de que tanto o corrompido como o corruptor são peças indissociáveis na questão da improbidade administrativa. Ambos estão conspirando em desfavor da moralidade, bem como o patrimônio público, sendo passíveis de idêntica sanção. No entanto, a co-responsabilização é muito rara no Brasil, em que o enriquecimento ilícito decorre de abuso do cargo, emprego ou função pública, em que a condição de funcionário atende ao instrumento para a prática da improbidade administrativa. Logo, o agente ímprobo recebe lucros pessoais, causa certos prejuízos ao erário e implica a qualidade dos serviços públicos (SARMENTO, 2002).

Nesse diapasão, se ressalta também a questão de recebimento indevido de comissão, percentagem, gratificação ou presente, em que a instigação que o suborno exerce sobre o funcionário público é um dos temas mais contundentes de críticas. A vantagem econômica vem a se materializar através de móveis, imóveis, semoventes, ações, títulos negociáveis no mercado financeiro, dinheiro, veículos ou até mesmo qualquer bem passível de valor econômico, a qual é entregue à autoridade ímproba a título de comissão (SARMENTO, 2002).

Deste modo, o caso de improbidade não estará vinculado à prática de ato administrativo concreto, haja vista que o que se pune são as relações decorrentes de funcionários e grupos empresariais privados, os quais envolvem questões sobre o Estado. Quando se recebe algum valor expressivo, se interfere na atuação do agente público, de forma que o servidor fica sujeito a certas pressões externas, bem como tentando romper o compromisso de lealdade aos interesses da coletividade. Ademais, o pagamento de certas comissões faz supor que a autoridade está a serviço de interesses econômicos privados, dispondo, assim, de poderes inerentes ao cargo com a finalidade de vir a favorecer pretensões de financiadores (SARMENTO, 2002). Em sendo assim, busca-se evitar que certos gestores da coisa pública sucumbam às benesses que são proporcionadas por certos grupos econômicos privados, de forma a distanciar-se dos padrões morais, ora exigidos para a obtenção de certas obtenções ilícitas (SARMENTO, 2002).

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Portanto, serão trabalhados casos de atividade corruptiva, praticados por oficiais de justiça em três casos distintos, em conjunto com o mesmo escritório de advocacia, ora denominado de M. L. Gomes Advogados Associados, mormente o esclarecimento de como se desencadeavam os atos ímprobos, bem como a participação de demais envolvidos nesta organização ilícita, permeada e fomentada através do suborno financeiro.

2. SERVENTUÁRIOS DA JUSTIÇA E O COMETIMENTO DE CRI-

MES: UMA ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS

Como exposto anteriormente, a improbidade administrativa consiste na prática de ato contra os princípios administrativos, incluído à desonestidade e deslealdade. Importa salientar que a conduta praticada, via de regra, por agente público, e, nos casos analisados, oficiais de justiça, que no desempenho de sua função, atuam inversamente às normas positivas e a princípios administrativos, sendo tratada como ímproba.

Assim, a Lei n° 8.429/1992, em três seções, exemplifica os atos considerados como ímprobos, dividindo-os entre os que importam em enriquecimento ilícito (artigo 9º), causam lesão ao erário (artigo 10) e infringem os princípios da Administração Pública (artigo 11).

Pretende-se nesse capítulo fazer uma breve análise da jurisprudência do Tribunal do Rio Grande do Sul, que julgou casos de improbidade administrativa praticada por serventuários da justiça, especificamente, oficiais de justiça, no desempenho de suas funções.

O caso tratado no Acórdão nº 70055576037 é proveniente de Ação Civil Pública por improbidade administrativa praticada por oficial de justiça, que traz o fato de determinado escritório de advocacia pagar para agilizar o cumprimento do mandado de busca e apreensão em que seu cliente era parte interessada.

De acordo com o Desembargador Relator do presente acórdão restou comprovado nos autos o fato de que fora realizado depósito em favor do Oficial de Justiça, através da conta corrente de um terceiro. Para o Desembargador, o conjunto fático probatório (prova documental e testemunhal) foi suficiente para comprovar o dolo na conduta do escritório, cuja finalidade era premiar o serventuário da justiça.

Em sua decisão a Quarta Câmara Cível julgou ao réu servidor público, aplicando-se as sanções previstas no art. 9º, caput, combinado com o art. 12, inciso I,

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da Lei 8.429/92, enquanto aos demais réus, as previstas no art. 11, caput, combinado com o art. 12, inciso III, ambos da mesma Lei 8.429/92. Sendo que para o terceiro envolvido foi extinta a punibilidade em decorrência de falecimento do mesmo.

No que tange aos argumentos que foram trazidos pelos desembargadores, importa destacar que o Desembargador Relator à vista dos fatos narrados na denúncia, comprovados pela farta documentação e pelos depoimentos, entendeu que efetivamente houve a prática do ilícito pelos apelados.

Além disso, que o ato apurado nestes autos, tido como ilícito, na esfera civil é tipificado como improbidade administrativa, disciplinada pela Lei nº 8.429/92. Afirma, também, que tal conduta se estende a terceiros, ainda que não sejam agentes públicos, caso concorram para a prática da improbidade ou obtenham, de alguma forma, benefício direto ou indireto do ato.

No que tange ao dolo, afirma que “Está muito claro na espécie que o elemento subjetivo (o dolo), não foi comprovado em relação ao agente público, o mesmo não se podendo afirmar em relação aos demais réus, que institucionalizaram mediante manual de diretrizes e procedimentos, com validade interna corporis, no escritório, a pulverização em nível nacional da prática de premiação aos oficiais de justiça pelas diligências realizadas em ações do interesse de seus clientes”.

De forma que a conduta do servidor público, não reclama a pena de demissão, mas em conformidade com as demais câmaras do Tribunal, o oficial de justiça deveria ser condenado ao pagamento de multa civil no valor de três (3) vezes a vantagem financeira obtida indevidamente, atualizada pelo IGP-M desde o recebimento do valor, acrescido de juros moratórios de 1% a partir da citação, por incurso no art. 9º, caput, combinado com o art. 12, inciso, I, ambos da Lei nº 8.429/92.

Em relação aos apelados, membros da sociedade de advocacia, entendeu o Tribunal que devessem suportar solidariamente a multa civil de valor igual a vinte vezes o valor pago ao agente público, com atualização monetária pelo IGP-M desde o pagamento indevido, acrescido de juros moratórios mensais de 1% a partir da citação, bem como à proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos, como incursos no art. 11, caput, combinado com o art. 12, III, ambos da Lei 8.429/92.

O Des. Relator traz em sua argumentação conclusões de um julgamento proferido pela Primeira Câmara Cível acerca da improbidade administrativa no que tange à culpa ímproba, uma vez que deve ser considerado o fato típico

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e a culpabilidade observando que, em relação à improbidade do enriquecimento ilícito, basta o enriquecimento em si, rigorosamente, responsabilidade objetiva, ao menos em relação à perda do acréscimo ilícito e ao ressarcimento integral do dano.

Já o Des. Revisor, divergiu do voto do desembargador mencionado anteriormente, manifestando-se pela confirmação da sentença que julgou improcedente a ação civil pública por improbidade administrativa. Salientando que houve um único e exclusivo depósito efetuado na conta do Oficial de Justiça algum tempo depois que o mandado de busca e apreensão de veículo, já havia sido devolvido ao Cartório, conforme comprovação contida nos autos.

No entendimento do Desembargador Revisor, não há sustentação probatória eficiente para a convicção de que possa ter havido alguma adesão – ou, menos ainda, solicitação – consciente e voluntária dos apelados para a percepção de vantagem sabidamente indevida e que, enfim, possa fazer evidenciar a presença do indispensável dolo necessário à caracterização do ato de improbidade como tal definido no art. 9º da Lei 8.429/92.

De modo que a efetivação de um único depósito bancário efetuado pelo escritório de advocacia que patrocinava a ação de busca e apreensão, não pode extrair evidência suficiente acerca de eventual ajuste ou conluio entre os apelados e os advogados da causa e, menos ainda, qualquer intenção de privilegiar o cumprimento do mandado em questão; julgando assim pelo desprovimento da apelação.

O Desembargador Presidente acompanhou o voto do Relator.Com relação ao segundo caso, tratado no Acórdão nº 70057782294 é

proveniente de Ação Civil Pública por improbidade administrativa praticada por oficial de justiça, que traz o fato de determinado escritório de advocacia pagar para agilizar o cumprimento do mandado de reintegração de posse em que seu cliente era parte interessada.

De acordo com os argumentos suscitados pela Desembargadora Relatora não vislumbrou a conduta dolosa necessária para a caracterização do ato ímprobo, haja vista que não pareceu razoável concluir que um único depósito realizado na conta da demandada, seja suficiente para caracterizar a conduta ímproba. Principalmente, se forem considerados os demais elementos de convicção disponibilizados.

Sendo que para a Relatora há necessidade de demonstração do elemento subjetivo, sendo indispensável à verificação da ocorrência de dolo ou culpa na conduta do agente. Nos casos previstos nos artigos 9º e 11º da Lei nº 8.429/92,

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exige-se a comprovação do dolo para a tipificação da conduta. Já na situação disposto no art. 10, necessária à caracterização de culpa grave.

Em sua decisão a Vigésima Segunda Câmara Cível, por maioria, julgou, a ré, servidora pública aplicando-se as sanções previstas no artigo 12, I, da Lei nº 8.429/92 e à perda do cargo, além de suspensão dos direitos políticos por 03 anos; enquanto aos demais réus, às sanções previstas no artigo 12, inciso I, da Lei n.º 8.429/92, suspensão dos direitos políticos por 03 anos, salvo a Sociedade de Advogados, que recebeu multa civil de duas vezes o valor do acréscimo patrimonial, corrigido monetariamente pelo IPCA a contar do pagamento e acrescido de juros de 1%, a contar da citação, proibição de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos, a contar do trânsito em julgado, e ao pagamento das custas processuais.

Quanto aos argumentos que foram trazidos pelos desembargadores, importa destacar que a Desembargadora Relatora destacou em consideração final no sentido de que os valores foram devolvidos pela servidora assim que percebidos, após o retorno das férias regulamentares. E, por outro lado, os elementos também permitiram a ilação de que o ágil cumprimento do mandado ocorreu justamente pela proximidade das férias, no intuito de evitar o acúmulo de serviço.

Além disso, os demais elementos de convicção disponibilizados afastam a caracterização da conduta dolosa da agente, de modo que integrou os fundamentos objetivamente reunidos pela criteriosa sentença da Juíza de origem.

Reunidas tais considerações, não viu como atrelar a conduta da Oficial de Justiça ao depósito em questão, o que revelaria seu dolo no cumprimento do mandado em questão. O ponto determinante, portanto, encontra-se na impossibilidade de concluir haver ciência inequívoca do depósito e de sua motivação. Ou, em outras palavras, o nexo de causa e efeito entre o depósito e o ato providenciado pela ré, negando provimento ao apelo.

Já a Desembargadora Presidente e Redatora, entendeu que é fato incontroverso que a Apelada, recebeu no desempenho de suas atribuições na qualidade de oficial de justiça, do escritório de advocacia a quantia de R$ 300,00, sem previsão legal, apenas pelo exercício das suas funções, ou seja, o cumprimento de mandado de reintegração de posse por ele patrocinada. Com efeito, o inquérito civil verificou que a sociedade de advogados depositou, por meio do cheque o referido valor na conta de titularidade do oficial de justiça.

Para a Desembargadora tal quantia corresponde à vantagem indevida, pelo exercício das suas funções, visto que não corresponde nem a sua remuneração

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paga pelo Estado do Rio Grande do Sul nem às despesas de condução a serem antecipadas pela parte autora.

Afirmou que a restituição voluntária dos R$ 300,00 para o escritório de advocacia, cerca de três anos após o recebimento do valor e sem correção monetária, não o exonera da responsabilidade pela prática do ato ímprobo, já que somente efetuado depois da instauração dos procedimentos de investigação. Sendo que, a incorporação de tal verba ao seu patrimônio, associada ao cumprimento de mandado em ação patrocinada pelo referido escritório, é prova robusta da conduta, no mínimo culposa da Apelada. Trata-se de quantia que não é por si irrisória e nem à luz dos seus vencimentos, que pudessem passar despercebidas na movimentação da sua conta corrente.

Com relação à argumentação sobre improbidade administrativa em si, a Desembargadora Presidente e Revisora traz julgados de outras Câmaras do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, bem como, julgados do Superior Tribunal de Justiça, sem adentrar de forma contundente no mérito do ato ímprobo.

Por fim, o terceiro caso, tratado no Acórdão nº 70054719489 é proveniente de Ação Civil Pública por improbidade administrativa praticada por oficial de justiça, em que traz o fato de que o escritório de advocacia M. L. Gomes – Advogados Associados pagou para agilizar o cumprimento do mandado de busca e apreensão em que seu cliente era parte interessada.

Desse modo, o escritório de advocacia da M. L. Gomes – Advogados Associados, com matriz na Cidade de São Paulo e filiais em diversas Capitais, inclusive em Porto Alegre, instituía para os Oficiais de Justiça, gratificações ilícitas, em face de processos ajuizados por instituições financeiras que vinham a objetivar busca e apreensão de veículos automotores, em razão de inadimplência, ora de contrato de leasing, ora de alienação fiduciária.

Em decorrência da combinação inescrupulosa supra, entre os dias 1º e 6-7-99, foram depositados R$100,00 na conta-corrente do oficial de justiça, junto ao Banrisul, por meio de um cheque, do Banco Bradesco, emitido pela M. L. Gomes – Advogados Associados. Para o Desembargador, o conjunto fático probatório (prova documental) foi suficiente para comprovar o dolo na conduta do escritório, cuja finalidade era premiar o serventuário da justiça.

No que tange ao julgamento pela presente câmara, qual seja, a Primeira Câmara Cível, mencionou o Desembargador Relator que houve um consenso unânime sobre a rejeição da tese da regularidade, ou seja, de que não se trata de um ato regular. Assim, a divergência veio a pairar sobre a questão do dolo e a partir daí

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soluções diversas, ora condenatórias, no sentido da caracterização da improbidade, ora absolutórias, no entendimento de a irregularidade não ultrapassar os lindes das infrações administrativas, por óbvio no que se relaciona aos servidores públicos.

Dentro do entendimento condenatório, então, consolidou-se a compreensão, com base no princípio da suficiência, da não perda da função pública, ao qual o Desembargador Relator aderiu, por questão de política judiciária, cujo objetivo é, em circunstâncias especiais, ampliar para além-processo outro princípio, qual seja o do tratamento paritário, é dizer, solução igual aos que se envolveram no mesmo conjunto de fatos, ainda que em demandas diversas. Com isso, o servidor público estaria sujeito às mesmas sanções legais que os demais réus, de forma a não vir a perder o cargo.

Auferiu, ainda, o Relator que não pode, com base nesse princípio – que não está previsto em norma legal –, aderir à absolvição, pois, com a devida vênia dos Desembargadores de 1º e 2º Graus que optaram por esse entendimento, sempre votou pela condenação, e assim se posicionou a Câmara, haja vista os precedentes originários, citados pelo eminente Des. Henrique Osvaldo Poeta Roenick, na Ap 70 022 812 580, julgada em 26-3-08.

No que se refere à culpa ímproba, referiu ainda o Relator, que a improbidade administrativa, pelas suas características punitivas, segue basicamente os princípios do direito repressivo em geral, dentre eles, o fato típico e a culpabilidade, no caso, culpa ímproba, se valendo observar que, em relação à improbidade do enriquecimento ilícito, basta o enriquecimento em si, quer dizer, rigorosamente, responsabilidade objetiva, pelo menos em relação à perda do acréscimo ilícito e ao ressarcimento integral do dano (Lei 8.429/92, arts. 9º e 12, I).

A culpabilidade, aí, vem a ser a consciência da ilicitude, a qual integra a própria conduta. Quer dizer, cabe ao acusado provar a excludente da falta de consciência da ilicitude. Tal não fosse, nesse tipo de ocorrência, não há exigir flagrante probatório. É da sua natureza a prática longe do olhar alheio e de preferência nas sombras da noite, de sorte que à convicção da conduta ilícita basta reunir conjunto de indícios objetivos congruentes num mesmo rumo.

Ademais, no presente caso, pode-se dizer que há o próprio flagrante probatório, tendo em conta a existência do cheque ao Oficial de Justiça, devidamente compensado em sua conta no Banrisul, à evidência do pagamento sem qualquer relação com as custas processuais. Ainda, ao grupo extraneus, no caso, composto por advogado e funcionário de escritório de advocacia, era sabido e ressabido ser irregular o pagamento de vantagem extra ao Oficial de Justiça, seja a

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que título for, e no caso o foi, sem a menor dúvida, para que fosse dada prioridade, houvesse empenho e fosse agilizado o cumprimento do mandado, desimportando que, eventualmente, não tenha atrasado o cumprimento de outros mandados, visto que não descaracteriza o ilícito.

E o mesmo se diga do intraneus, no caso, o Oficial de Justiça. Sabe o que pode e o que não pode cobrar, o que pode e o que não pode receber. Pode-se tolerar enganos no cálculo segundo a Tabela, jamais o recebimento de valores nela não previstos. Então, aderiu o Desembargador Relator pela política judiciária, ao princípio da suficiência (sanções alternativas, e não cumulativas), hoje consagrado também no caput do art. 12 (redação da Lei 12.120/09), daí decorrendo aos meirinhos a não perda da função pública, e a todos os demandados a não suspensão dos direitos políticos.

De acordo com os demais Desembargadores, que acompanharam o Relator no voto, julgou pelo provimento do recurso.

Nesses termos e, considerando que as penas são apenas patrimoniais, proveu em parte a apelação, para: (a) condenar o réu Vanderlei Corrêa dos Santos, por incurso no art. 9º, caput, e inciso I, c/c art. 12, I, da Lei 8.429/92, à perda do valor acrescido ilicitamente ao seu patrimônio, e à multa civil de três vezes o total acrescido, com atualização monetária pelo IGP-M desde cada recebimento, mais juros moratórios mensais de 0,5% antes da entrada em vigor do atual Código Civil, e de 1% depois, aquele (valor acrescido ilicitamente) a partir do recebimento (STJ, Súm. 54), e esta (multa civil) a partir da citação; e (b) condenar os demais réus (Dalton Jesus Carvalho Martins, Leandro Kasper, João Antônio Belizário Leme e M. L Gomes – Advogados Associados), por incursos no art. 11, caput, c/c o art. 12, III, da Lei 8.429/92, à multa civil individual e igual a três vezes o total da propina, com atualização monetária pelo IGP-M desde o alcance da propina, bem assim, a partir da citação, juros moratórios mensais de 0,5% antes da entrada em vigor do novo Código Civil, e de 1% depois; e (c) relativamente às custas, respondem todos os réus solidariamente.

CONCLUSÃO

Inicialmente é possível concluir-se que a prática de improbidade administrativa é de fato algo que está conciso nos alicerces da administração pública de forma contínua e inacabada, em que o Estado e a população são os maiores prejudicados, haja vista estar diante de uma grave situação que

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Âmbitos de responsabilidade de servidor público do Poder Judiciário em Ação Civil Pública no Rio Grande do Sul: um estudo de caso concreto das Apelações 70057782294, 70055576037 e 70054719489

descumpre com a finalidade do ordenamento jurídico e fere todo um sistema sociopolítico.

Nessa linha, a corrupção é uma patologia que se perpetua como um fenômeno complexo, em que não há um único meio ou modelo ideal para compreendê-lo e combatê-lo. Logo, uma maior transparência e uma maior conjugação de esforços sociais entre o Estado e a sociedade se transformam numa política pública capaz de prevenir e combater os atos ilícitos enraizados em nosso sistema estatal.

No que tange à análise das decisões, se percebe o quão são variados os ângulos de visão e as percepções e argumentações de cada um dos desembargadores, haja vista que os posicionamentos divergem de modo a se ter o questionamento como um alvo disposto à fomentação. E é a partir desses questionamentos que o poder judiciário busca encontrar a melhor solução para as lides, através de entendimentos que se entrelaçam de forma a conceber o julgamento mais adequado aos casos em concreto.

No que se refere às argumentações críticas por parte das câmaras, se pode auferir que os magistrados, de antemão buscaram analisar as provas fático--probatórias para então se verificar a existência da prática ilícita por parte dos demandados. Assim, as principais argumentações pairaram sobre as afirmações de que os oficiais de justiça não tinham como não perceber os depósitos em suas contas, haja vista não se tratarem de valores irrisórios, bem como o conhecimento de que este escritório de advocacia, já vinha a praticar estas ilicitudes de forma corriqueira em vários estados brasileiros há muitos anos, ao ponto de já haverem constituído uma tabela circular com valores, como forma de premiação aos serventuários pela agilidade de seus serviços. Ressalta-se, também, que os valores variavam em decorrência de total ou parcial cumprimento.

As conexões e semelhanças entre os três casos partem do pressuposto de que é o mesmo escritório de advocacia, que pratica as mesmas infrações, quais sejam de pagar propinas para oficiais de justiça darem preferência no cumprimento de mandados, de forma a chamar a atenção pelo fato de que este tipo de ato já estava ocorrendo há muito tempo, reunindo várias pessoas em vários estados e com uma tabela de valores que circulava publicamente, demonstrando que há operadores do direito despreocupados com a ética e a moral pública, de modo a infringirem a lei, haja vista estarem adeptos ao fato de que em nosso país tudo pode acontecer, sem haverem punições.

Ao contrário disso, o Brasil demonstra que está cada vez mais preparado com mecanismos e instrumentos de combate à corrupção, em que a legislação em conluio com a transparência jurídica se tornam ferramentas capazes de captar atos corruptivos e os transpor à publicidade e à punição aos infratores da lei.

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Ianaiê Simonelli da Silva e Jonathan Augustus Kellermann Kaercher

REFERÊNCIAS

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MELO, Debora Fernandes de Souza. Improbidade administrativa. Disponível em <http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/33320/improbidade-administrativa-debora-fernandes-de-souza-melo>. Acesso em: 28 mar. 2015.

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PIRES, L. M. F. et al. Corrupção, ética e moralidade administrativa. Belo Horizonte: Editora Fórum LTDA, 2008.

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_____._____. Apelação Cível Nº 70057782294, Vigésima Segunda Câmara Cível. Relator(a): Maria Isabel de Azevedo Souza. Data do julgamento: 27/02/2014. Data de publicação: 10/03/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=213898. Acesso em: 25 set. 2014.

_____._____. Apelação Cível Nº 70054719489, Primeira Câmara Cível. Relator(a): Irineu Mariani. Data do julgado: 03/09/2014. Data de publicação: 11/09/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1389591. Acesso em: 25 set. 2014.

WIKIPEDIA. Poder judiciário do brasil. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Poder_Judici%C3%A1rio_do_Brasil. Acesso em: 21 mar. 2015.

A AÇÃO POPULAR E O CONTROLE SOCIAL DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA: DEFININDO O QUE TEM

SIDO OBJETO DE AÇÃO POPULAR EM RELAÇÃO À PRÁTICA DE ATO CORRUPTIVO

Caroline Müller Bitencourt 1

Cláudia de Barros Gehres 2

INTRODUÇÃO

O presente trabalho versará sobre a ação popular como um mecanismo de controle social dos atos corruptivos praticados nas contratações públicas no Estado do Rio Grande do Sul. Para além de um estudo bibliográfico, o presente artigo buscará na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, os subsídios necessários para as observações de como esta ação tem sido manuseada visando o controle da contratação pública no tocante a prática de atos corruptivos.

O problema que conduz o presente trabalho é: quais alegações têm motivado às ações populares no estado do Rio Grande do Sul e quais vêm sendo aceitas na jurisprudência? A ação popular tem sido manuseada como forma de coibir

1 – Doutora em Direito pela UNISC. Especialista em Direito Público. Professora do PPGD – Mestrado

e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, da disciplina Teoria do Direito. Profes-

sora da graduação pós-graduação lato sensu da Universidade de Santa Cruz do Sul. Coordenadora do

grupo de pesquisa, “A decisão jurídica a partir do normativismo e suas interlocuções críticas”, vincula-

do ao CNPq. Advogada. E-mail: [email protected].

2 – Graduanda e bolsista de Iniciação Científica na Universidade de Santa Cruz do Sul. Email: clau-

[email protected].

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Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres

e controlar a prática de atos corruptivos praticados pela administração pública, especialmente na contratação?

O objetivo é desvelar o que efetivamente tem sido objeto de ação popular em se tratando de controle de atos corruptivos na contratação pública, para identificar se a mesma é um instrumento eficaz de controle social. A hipótese é que a ação popular é um meio extremamente interessante em termos legislativos/normativos para o controle da administração pública por parte de seus administrados, mas que, efetivamente, não vem recebendo a devida importância no manuseio dessa ação visando coibir tais práticas, sendo utilizada timidamente.

Para viabilizar essa proposta optou-se em dividir o trabalho em três etapas: primeiramente, discorrer brevemente sobre uma exposição geral da Lei da Ação Popular, com ênfase ao conceito de patrimônio público e suas conexões com o controle social sobre atos corruptivos. Posteriormente, buscar-se-á identificar quais os casos mais incidentes de corrupção na contratação pública atacáveis via ação popular e; por último buscar-se-á discutir de forma geral a obtenção ou não no êxito de tal ação. Nas considerações finais, a partir da análise dos dados coletados na jurisprudência do Estado do Rio Grande do Sul no período de investigação, procurar-se-á apontar se a ação popular tem sido ou não um meio efetivo de controle social na contratação pública contra a prática de atos corruptivos.

Cabe referir qual a metodologia de pesquisa empregada na busca das jurisprudências que serão objeto de análise, em outras palavras, os métodos e procedimentos de busca utilizados a fim de se chegar aos documentos adequados à investigação.

A pesquisa foi realizada no dia 20 de agosto de 2014, tendo como padrão de busca o prazo de um ano (de 20 de agosto de 2013 a 20 de agosto de 2014) à data de publicação no site do www.tjrs.jus.br. Selecionou-se a opção pesquisa de jurisprudência e depois “busca avançada”. Quanto ao preenchimento dos campos de busca, digitou-se: no campo destinado a palavras-chave: ação popular; Órgão Julgador: Todos; Relator: Todos; pesquisa por Ementa (pois a opção “inteiro teor” traria resultados sem “ação popular” na ementa, e que, portanto, não se tratariam deste tipo de ação); Seção: Todas; Tipo de Processo: Todos; Número: nenhum; Comarca de Origem: nenhuma; Data de julgamento: nenhuma; Data de publicação: 20/08/2013 a 20/08/2014. No campo Procurar resultados: Com todas as palavras: “ação popular” (sempre com aspas); Com a expressão: nenhuma; Com qualquer uma das palavras: nenhuma; Sem as palavras: nenhuma; Expressão na busca livre: ação e popular; Classificar: por data decrescente.

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

O filtro encontrou setenta e seis acórdãos e treze monocráticos3. Assim, seguiu-se à leitura dos documentos individualmente, a fim de eliminar àqueles que não correspondessem aos questionamentos da pesquisa e classificar os demais de acordo com as alegações dos autores e as decisões do Tribunal.

Concluída a classificação quantitativa dos documentos encontrados, passa-se ao estudo qualitativo, observando o ocorrido nos casos, a fim de se construir uma interpretação sobre o uso da ação popular no Estado do Rio Grande do Sul4.

Dentre os oitenta e nove documentos encontrados, alguns não se encaixaram no perfil desejado para fins de estudo, de modo que foram excluídos trinta e três. Os critérios de exclusão foram: não se tratar de ação popular e apenas fazer referência a este mecanismo e; não conter explanação acerca do caso concreto ou conter poucos detalhes, impossibilitando a compreensão dos fatos e/ou a determinação do ato motivador da ação. Dentre os arquivos excluídos estavam: uma Ação Cautelar de pedido de documentos para fins de ajuizamento de futura Ação Popular; quatro Mandados de Segurança; duas Ações Civis Públicas e uma Ação Anulatória que citam a Ação Popular como a ação que deveria ter sido usada em tais casos; um Processo de Execução, uma Ação Civil Coletiva, duas Ações Coletivas, cinco Ações Civis Públicas nas quais a Lei da Ação Popular foi aplicada analogamente; uma Ação Rescisória na qual usou-se um Artigo da Lei da Ação Popular; três ações de cumprimento de sentença de ação popular; seis ações cujos arquivos não continham a motivação, uma ação de direito público não especificado na qual mencionou-se ação popular anterior, sem detalhá-la e ainda; cinco acórdãos pouco detalhados ou cujos temas não se enquadravam à proposta desta pesquisa. Restando assim, sessenta e um documentos para análise. Alguns destes arquivos tratavam da mesma ação popular, de modo que foram descritos em conjunto no mesmo parágrafo – por isso tem-se o número de quarenta e seis casos transcritos ao longo de quarenta e seis parágrafos, já que alguns destes discorrem sobre mais de um acórdão (BRASIL, 2013-2014).

Dito isso, dar-se-á início ao estudo, buscando ainda que brevemente estabelecer premissas basilares para a observação da Lei da Ação Popular.

3 – Cabe ressaltar que recebem o nome de “acórdão” sentenças coletivas dos Tribunais Superiores e de

“monocrático” as decisões proferidas por um único magistrado.

4 – Deve-se ressaltar que foram analisadas as motivações das ações populares e suas respectivas proce-

dências, independente de ser este – ou não – o principal tema em discussão no acórdão.

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Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres

1. A AÇÃO POPULAR, O CONCEITO DE PATRIMÔNIO PÚBLICO E

SUAS CONEXÕES COM O CONTROLE SOCIAL DE ATOS CORRUPTIVOS

O presente tópico abordará o conceito de ação popular na doutrina, a sua aplicação e adequação e seus legitimados.

Conceitualmente, a ação popular é o meio pelo qual qualquer cidadão pode buscar a anulação/declaração de nulidade de ato da Administração Pública que atente contra o patrimônio público. Para Siqueira Jr., “a ação popular é o instrumento de direito processual constitucional colocado à disposição do cidadão como meio para sua efetiva participação política e tem por finalidade a defesa da cidadania” (SIQUEIRA JR., 2011, p. 521). Maria Sylvia Zanella di Pietro (2012, p. 863) a define como:

[...] a ação civil pela qual qualquer cidadão pode pleitear a invalidação de atos praticados pelo poder público ou entidades de que participe, lesivos ao patrimônio público, ao meio ambiente, à moralidade administrativa ou ao patrimônio histórico e cultural, bem como a condenação por per-das e danos dos responsáveis pela lesão.

A autora (PIETRO, 2012, p. 863) também menciona os pressupostos da ação popular:

Além das condições da ação em geral – interesse de agir, possibilidade jurídica e legitimação para agir –, são pressupostos da ação popular: 1. qualidade de cidadão no sujeito ativo; 2. ilegalidade ou imoralidade praticada pelo Poder Público ou entidade de que ele participe; 3. lesão ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. (DI PIETRO, 2012, p. 863).

Cidadão é “o brasileiro, nato ou naturalizado, que está no gozo dos direitos políticos, ou seja, dos direitos de votar e ser votado”. O artigo 1°, § 3°, da Lei n° 4.717/65 determina a comprovação da cidadania, para ingresso em juízo, mediante a apresentação do título eleitoral (DI PIETRO, 2012, p. 863).

Outro pressuposto, assinalado por Justen Filho é o uso da ação popular em casos de ofensa à moralidade administrativa, o que configura um conceito jurídico indeterminado. Simplificadamente, o autor afirma “que a moralidade administrativa

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

consiste num conjunto de imposições éticas norteadoras do exercício da função administrativa, impositivas dos deveres de lealdade e de honestidade na gestão dos recursos e no exercício das competências” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 778).

A ideia da ação popular, arguida pelo povo em defesa de seus interesses, é uma forma de exercício da democracia. Cabe citar alguns autores que falam sobre a relação entre ação popular e soberania popular, bem como da finalidade desta ação. Hely Lopes Meirelles (2010, p.756-757) menciona a ação popular como “um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros, no gozo de seus direitos cívicos e políticos” que visa defender interesses da comunidade, beneficiando direta e imediatamente o povo, e não apenas o autor popular. Os fins da ação popular são “preventivos e repressivos da atividade administrativa lesiva do patrimônio público, assim entendidos os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético ou histórico” (MEIRELLES, 2010, p. 756-757).

Para Marçal Justen Filho (2005, p. 776),

a ação popular é um instrumento processual de controle objetivo da regu-laridade da atividade administrativa. Sua existência deriva da concepção de que todo e qualquer cidadão é investido do dever-poder de participar do processo de fiscalização da regularidade dos atos administrativos. Sua existência está prevista no art. 5°, LXXIII, da Constituição e disciplinada na Lei n. 4.717/65, com inúmeras alterações posteriores.

O autor também a considera “uma garantia inerente ao sistema democrático, instituída como meio de propiciar a participação popular no controle da atividade administrativa” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 776), já que a ação popular permite a legitimação de qualquer cidadão para questionar atos administrativos, ampliando a participação popular na vida comunitária e integrando a sociedade e o Estado. “Essa natureza justifica um regime jurídico próprio e peculiar, diferenciado em face dos demais instrumentos processuais” (JUSTEN FILHO, 2005, p. 776).

Já Alexandre de Moraes trata da relação da ação popular com a democracia ao classificar tal ação como um exercício de soberania popular e a equiparar a outros institutos como o direito de sufrágio, direito de voto em eleições, plebiscitos e referendos, a iniciativa popular de lei e o direito de organização e participação de partidos políticos, etc. Tais institutos permitem ao povo fiscalizar o Poder Público, com base no princípio da legalidade e no conceito de res pública (MORAES, 2012).

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Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres

Compreendido o conceito de ação popular, qual seu propósito, quem pode argui-la e como tais conceitos se relacionam, cabe a seguir explanar sobre quais bens devem ser tutelados e quais os atos anuláveis. Di Pietro (2012, p. 865) traz redação acerca do conceito de patrimônio público protegido via ação popular:

Quanto ao patrimônio público, abrange, nos termos do artigo 1° da Lei n° 4.717/65, o da União, Distrito Federal, Estados, Municípios, entidades autárquicas, sociedades de economia mista, sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, empresas públicas, serviços sociais autônomos, instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de 50% do patrimônio da União, Distrito Federal, Estados, Municípios, e de quais-quer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos.

Assim como Hely Lopes Meirelles (2010, p. 548-549), que conceitua o patrimônio público como aquele “formado por bens de toda natureza e espécie que tenham interesse para a Administração e para a comunidade administrada”.

Di Pietro (2012, p. 864) traz definições relevantes acerca de quais são os atos nulos e quais são anuláveis por meio de ação popular:

A Lei n° 4.717/65, embora definindo os atos nulos (art. 2°) e os atos anulá-veis (art. 3°), dando a impressão de que exige demonstração de ilegalidade, no artigo 4° faz uma indicação casuística de hipóteses em que considera nulos determinados atos e contratos, sem que haja qualquer ilegalidade, como, por exemplo, no caso de compra de bens por valor superior ao corrente no mer-cado, ou a venda por preço inferior ao corrente no mercado. Trata-se de hipó-teses em que pode haver imoralidade, mas não ilegalidade propriamente dita.

Ainda sobre a natureza legal da ação popular, deve-se ressaltar que “nossa ação popular constitucional é de natureza desconstitutiva e condenatória, veiculada num processo de conhecimento” (MANCUSO, 2001, p. 75). Como esclarece Mancuso (2001, p. 85):

Em decorrência da anulação do ato lesivo a tais interesses difusos, se pedirá a condenação dos responsáveis e bem assim dos eventuais beneficiá-rios do ato lesivo, ao ressarcimento devido. Cuida-se, pois, de um pedido a um tempo constitutivo-negativo e condenatório, cabendo lembrar que

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

também se admite o pedido cautelar, para a hipótese da lesão virtual ou iminente; no princípio da ubiqüidade (sic) da justiça está compreendida a tutela judicial em face da “ameaça” ao direito (dano virtual) e não so-mente ante um histórico de “lesão” (dano ocorrido): CF, art. 5°, XXXV. Ainda, o art. 34 da Lei 6.513, de 20.12.1977, acrescentou um § 4°. ao art. 5° da Lei 4.717/65, nestes termos: “Na defesa do patrimônio público caberá a suspensão liminar do ato lesivo impugnado”. (Grifos no original).

Por fim, após a descrição vista acerca do procedimento técnico da ação popular, segue-se a tratar da relação entre a ação popular e o controle social e seu uso no combate à corrupção.

A importância dada à ação popular, principalmente devido ao fato de ser uma ação genuinamente democrática, torna-se visível nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello, que refere-se a ela como a providência judicial realmente temida pelos administradores, por, em caso de procedência, condenar os infratores ao pagamento de perdas e danos (MELLO, 2012).

Também, percebe-se a relevância da ação no tocante ao controle de corrupção, tema sobre o qual disciplina Medauar (2012, p. 412): “o tema do controle também se liga à questão da visibilidade ou transparência no exercício do poder estatal, sobretudo da Administração, inserida no Executivo, hoje o poder hegemônico” e “relaciona-se em profundidade com o tema da corrupção. Certo é que, mais efetivos se mostrassem os mecanismos de controle sobre a Administração, menor seria o índice de corrupção” (MEDAUAR, 2012, p. 412).

A descrença generalizada a respeito dos mecanismos de controle sobre a Administração, que levaria ao imobilismo ou niilismo, deve ser substituí-da justamente por mais estudos e debates sobre o tema, na busca de maior efetividade dos controles, inclusive com a criação de novos mecanismos ou a melhoria dos atuais (MEDAUAR, 2012, p. 413).

Apesar de comumente a ação popular ser concebida como uma forma de soberania popular como forma de participação do cidadão sobre a coisa pública, o que a caracteriza é justamente a incidência do controle, uma vez que, seu objetivo é impedir ou desconstituir uma ação que venha a lesar patrimônio público, tomado aqui, em seu sentido mais amplo. O fundamento então é o controle e não necessariamente a participação, pois não se trata de decidir na ação popular e sim de controlar uma decisão.

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Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres

No plano teórico, indiscutivelmente, a ação popular é uma ação apta ao controle social de atos corruptivos por constituírem lesão ao patrimônio público. Resta saber se, na prática, efetivamente a mesma tem sido manuseada com tal finalidade e, se em termos numéricos quantitativos possui significativa importância enquanto ação constitucional destinada também a tal finalidade.

A seguir, serão expostos os dados quantitativos da pesquisa, que trazem um reflexo do exercício da soberania popular no Rio Grande do Sul, no que tange ao combate da corrupção.

2. IDENTIFICANDO QUAIS ATOS TÊM SIDO COMBATIDOS ATRAVÉS DE AÇÃO POPULAR COMO FORMA DE CONTROLE SO-CIAL DA CORRUPÇÃO NO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Neste tópico abordar-se-á quantitativamente os casos de procedência e improcedência nos julgados, demonstrando quais as matérias tem sido objeto de ação popular e, se as mesmas têm relação com a prática de atos corruptivos. Quanto à procedência da ação, esta foi declarada em quatro ações5.

Outras duas ações tiveram resultados parcialmente procedentes, nas quais o Tribunal, a partir das alegações e das provas trazidas aos autos, entendeu que alguns dos atos “denunciados” de fato eram ilegais ou traziam prejuízos ao erário e outros não.

Foram apresentados vícios/defeitos processuais/formais em catorze ações, sendo dez extintas sem resolução de mérito (três devido à ausência de uma ou mais condições da ação, quatro por ausência de um dos requisitos/pressupostos processuais, duas por inadequação da via eleita, uma petição indeferida por ser inepta); duas extintas com resolução de mérito (devido à prescrição)6 e; um recurso prejudicado, devido à perda do objeto, pois o mesmo pedido já fora ajuizado e julgado anteriormente.

Em quinze ações o Tribunal entendeu que não houve ilegalidade ou lesão ao patrimônio público. Sendo que, em cinco casos o ato que a parte autora pretendia impugnar não era ilegal e nem continha irregularidades e nos outros dez, as ilegalidades alegadas não foram comprovadas.

Ainda há de se dizer que onze ações seguem em andamento.Os gráficos abaixo ilustram – respectivamente – as porcentagens relativas aos

tipos de decisão encontrados nos acórdãos e às questões que as fundamentaram:

5 – Há de se ressaltar que em um desses casos a ação popular não era a ação principal em pauta no

acórdão. Tal acórdão – juntamente com os demais – será explanado no próximo capítulo.

6 – Ver artigos 267 e 295 do Código de Processo Civil.

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

Figura 1 - Decisões dos acórdãos

Figura 2 - Fundamentação das decisões

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3. UMA ANÁLISE SOBRE A PROCEDÊNCIA OU IMPROCEDÊN-

CIA DOS PEDIDOS DAS AÇÕES POPULARES

Descrever-se-á suscintamente cada um dos casos encontrados, incluindo a motivação da ação popular, a decisão do Tribunal e o resultado de cada ação. Em sequência aleatória, são estes os casos examinados:

1) Na ação nº 70036255149, a autora alega ter sido a primeira colocada em concurso público e não ter sido nomeada em detrimento de outro candidato. Tais fatos foram comprovados, tal como a existência de vagas inocupadas para o respectivo cargo – o que configura o direito da autora. O Tribunal deu procedência ao pedido.

2) O acórdão nº 70056997083 trata-se de aumento no número de servidores públicos detentores de cargos de confiança. Os autores alegam não haver justificativa para tal mudança, entretanto, o Tribunal não vê configurada ilegalidade. Todos os servidores nomeados nesta condição foram afastados após o ajuizamento da ação popular, o que excluiu seu objeto. Desta forma, a ação foi declarada extinta sem resolução de mérito, contudo, novamente entende-se que houve o combate desejado ao ato lesivo.

3) Na ação popular de Nº 70056964059, o autor pleiteia a anulação de determinada contratação para cargo público temporário, a qual foi feita sem concurso público e, portanto, em desacordo com as leis municipais. Para o Tribunal, tal situação, por si só, não configura ilegalidade, de modo que negam o pedido de antecipação dos efeitos da tutela e pedem provas, se existirem, de ato ilícito ou lesivo, como pode-se observar a seguir:

Além disso, nos termos do art. 37, incs. I e IX, da CF/88 as contrata-ções temporárias visam ao atendimento de situação emergencial que reclame a adoção de providências imediatas no âmbito administra-tivo. Vale dizer, não representa qualquer ilegalidade a ser de plano visualizada.Os atos administrativos possuem presunção de legitimidade, motivo que determina a comprovação pelo recorrente de suas alegações a fim de que pudesse obter a liminar requerida. [...]No caso dos autos, não é possível visualizar de plano a suposta ilega-lidade apontada pelo agravante, mostrando-se imprescindível a dilação

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probatória e a instauração do contraditório, a fim de melhor elucidar os fatos expostos na inicial (BRASIL, 2014).

4) Ação popular (nos 70059757518 e 70058995994) cujo objeto era “o reco-nhecimento da nulidade da escolha de examinadores de habilitação para a condução de veículos automotores, sem licitação”, em contrato mantido pelas partes passivas, houve parcial provimento, visto que, no primeiro requerimento, a ação foi declarada extinta sem resolução de mérito, devido ao abandono das partes. Constatando a ausência de intimação de tais partes, o Tribunal desconstituiu a extinção e requereu as intimações não feitas anteriormente.

5) Ação popular encontrada no acórdão n° 70058028986 e no monocrático nº 70055479984, na qual a autora busca a anulação de contratação pública efetuada sem o rito de concurso público. No caso concreto, o Tribunal entendeu que a autora agiu em interesse individual e não coletivo, o que afasta o interesse de agir coletivo necessário neste tipo de ação e caracteriza carência da ação. Também foi reconhecida a prescrição administrativa. Melhor compreensão acerca do caso pode ser obtida através da leitura do trecho abaixo (voto do presidente e relator, Nelson Antonio Monteiro Pacheco):

[...] a autora pretende com o ajuizamento desta ação popular a anula-ção de ato de provimento de cargo de Oficial do Registro de Imóveis da 6ª Zona de Porto Alegre, uma vez que alega não ter sido efetuada sob o rito de concurso público, onde a consequência seria a disponibilidade desta vaga para o concurso de Nomeação/Remoção aberto por meio do edital nº 05/2008 (fls. 15/16), no qual ela estava inscrita e participou se-gundo relatado na petição inicial. Aparentemente, com esta ação popular a apelante pretende tutelar o pa-trimônio publico e a probidade da administração pública. Porém, exame mais acurado demonstra que sua pretensão é tutelar interesse individual, de caráter privado, direto subjetivo próprio, na medida em que postula a nulidade do ato administrativo de remoção de Miguel de Oliveira Figueiró ao Registro de Imóveis da 6º Zona de Porto Alegre, abrindo a consequente vacância para poder participar desta vaga mediante concurso público. Portanto, a apelante pretende proteger direito pessoais mediante ação po-pular que tem como escopo primordial salvaguardar o interesse público. Assim, desvirtuou o seu uso e sua natureza, sendo, pois, por isso, patente a sua carência de ação popular.

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6) O acórdão seguinte (nº 70058521048) contém poucos detalhes acerca do objeto da ação popular, que menciona apenas ser a impugnação de cargo de assessor jurídico, decretado por lei municipal. Nesta ação foi declarada a prescrição: “O fundamento da sentença é o transcurso do prazo de cinco anos entre a criação do cargo em comissão de assessor jurídico, pela lei municipal editada em 1994 e regulamentada pelo Decreto n. 1.125/94, e o ingresso da demanda”.

7) Na ação de nº 70056257538, visou-se exonerar a esposa do prefeito municipal do cargo de Secretária Municipal da Fazenda. Acolhida primeiramente, a decisão foi alterada no acórdão vislumbrado, no qual o Tribunal entendeu não haver o alegado nepotismo, por não se tratar de cargo político. Cabe transcrever um trecho do voto do Des. Alexandre Mussoi Moreira:

O tema discutido na demanda não está pacificado no Supremo Tribunal Federal, conforme razões expostas pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, quando do julgamento do Ag. Reg. na Medida Cautelar na Reclamação 6650-9.

Eis a observação do Ministro Ricardo Lewandowski:

Eu me permitiria fazer uma pequena observação. Por ocasião do julga-mento do leading case que levou à edição da Súmula 13 estabeleceu-se que o fato de a nomeação ser para um cargo político nem sempre, pelo menos a meu ver, descaracteriza o nepotismo. É preciso examinar caso a caso para verificar se houve fraude à lei ou nepotismo cruzado, que pode-ria ensejar a anulação do ato.[...]Como se vê, não resta caracterizado o nepotismo com base nos prin-cípios contidos no art. 37, “caput”, da Constituição Federal, já que inaplicável a Súmula Vinculante nº 13 do STF quando o alegado ne-potismo envolve cargo político, restando excluída a aplicabilidade dos referidos princípios, sendo, portanto, de todo descabida a concessão de liminar para suspensão do ato de nomeação da esposa do Sr. Pre-feito Municipal de Coronel Bicaco, do cargo de Secretária Municipal da Fazenda.

Portanto, restou indeferida a ação popular por entender que tal situação não configura ilegalidade e nem mesmo imoralidade.

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8) O caso seguinte é tratado nos acórdãos nº 70059820878 e nº 70059781898. Busca-se a anulação de determinadas leis municipais – Leis Municipais de Bagé nº 5.172/12 - que dispunha sobre a fixação do subsídio mensal do Prefeito e do Vice-Prefeito - e nº 5.173/12 - que versava acerca do subsídio mensal dos Secretários Municipais e do Diretor-Geral do DAEB e foram promulgadas em ano eleitoral. No primeiro, o Tribunal entendeu que tais leis efetivamente violaram disposições da Lei da Responsabilidade Fiscal, no tocante à alteração de subsídio de agentes públicos e, por isso, decretou a suspensão destas. No arquivo subsequente, apesar do apelo da parte passiva e alegação de que não houve danos ao erário, a decisão manteve-se, sobre os mesmos argumentos do anterior.

9) No acórdão nº 70057663296, discute-se a possibilidade de conexão entre uma ação popular e uma ação civil pública por pretenderem ambas a defesa de determinado bem público, como pode-se observar em um trecho deste acórdão:

Dentre outros pedidos, foi requerido (fl. 53):1) anular a licença de instalação que foi expedida pela Secretaria do Meio Ambiente do Município de Canoas, RS, em favor da empresa Goldesztein Cyrela Empreendimentos Imobiliários atinente a operação imobiliária a ser empreendida na Avenida Guilherme Schell, nº 6270, Centro.2) desconstituir o fracionamento da área originária, atualmente composta de dois (02) lotes, objetos das matrículas nº 90.054 e 90.055, bem como a expedição de ofício ao registro de Imóveis de Canoas noticiando o retor-nando do “status quo ante”.

Em ambas as ações foi arguida, ainda, a nulidade das licenças concedidas, sob a alegação de não terem sido realizados estudo de impacto ambiental e estudo de impacto de vizinhança. Sobre a ação popular, o acórdão trazia poucas informações, apenas mencionava o pedido de proteção ao patrimônio histórico, cultural e ambiental do imóvel, que não poderia ser objeto de pretendido desmembramento. O Tribunal deu procedência ao pedido de conexão entre as duas ações.

10) Ação (nº 70058401779) que visa revogação/cancelamento definitivo de reajuste na tarifa do transporte coletivo urbano. Devido à ausência da citação de uma das partes – o autor citou o município e a entidade que disponibiliza o serviço de transportes, mas não citou o prefeito que estabeleceu o reajuste –, o Tribunal solicitou que o fizessem. Antes disso, entendem que a questão não pode ser apreciada e pedem que o autor providencie a citação, caso contrário a ação será extinta.

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11) Autores (nos 70057367344 e 70040667388) pleiteiam a suspensão de todos os atos administrativos referentes à construção de novo prédio destinado à Câmara de Vereadores, bem como às obras e a reinstalação de praça pública que ocupava tal espaço anteriormente, pois argumentam:

[...] a existência de omissões, consistentes em fraude a preceito consti-tucional cometida em 23/09/2005, pelo Município, ao promulgar a Lei nº 7.414, para transformar imóvel objeto da matrícula nº 13.904 do Livro nº 2 de Registro Geral do RI de Lajeado, de bem de uso comum em bem de uso especial. Afirma que o entendimento exposto contraria preceito constitucional consubstanciado no caput e inciso XII do art. 29 da CF. Sustenta omissão na apreciação da questão da nulidade da Lei Municipal de Lajeado – RS, nº 7.414, de 23 de setembro de 2005, e na apreciação do preceito legal expresso no inciso I, do art. 33, da Lei Estadual nº 9.519, de 21 de janeiro de 1992, que instituiu o Código Florestal do RS. Suscita contradição na alegação de que nenhuma nulidade existiu no procedi-mento de licitação, resultando omissão quanto às questões de nulidade expostas desde a inicial. Aventa omissão também no que se refere às questões alusivas ao Projeto de Construção de Novo Prédio da Câmara Municipal de Vereadores de Lajeado, como a Legislação Municipal de Lajeado. Sustenta fraude ao disposto no inciso II do art. 37, da CF, ao in-ciso V do art. 6º, incisos I e §2º do art. 7º, estes da Lei nº 8.666/93. Ainda, sustenta omissão sobre a nulidade dos atos e contratos firmados para a instalação do prédio da Câmara de Vereadores, por fraude à lei, em deso-bediência ao art. 6º, IX c/c art. 7º, da Lei nº 8.666/93, bem como fraude à Lei nº 7.650/06, em especial ao art. 1º e incisos I, II, III, IV, V, VI e VII do art. 2º. Por fim, sustenta omissão na apreciação da questão relativa à coibição de uso de explosivos no local e das nulidades das inúmeras plan-tas alusivas à construção do prédio destinado à Câmara de Vereadores.

No acórdão vislumbrado, apontam omissão e obscuridade na decisão anterior, que negou o pedido efetuado. O Tribunal não acolheu os embargos, visto que entendeu não haver obscuridade ou omissão e demonstrar-se a intenção dos autores em rediscutir a matéria, o que não é possível. Em um segundo acórdão acerca do caso – que deve ser na verdade, a decisão anterior –, as partes autoras atacam a desafetação do bem público e sua alteração para bem especial, alegação

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que não foi acolhida, visto que o procedimento utilizado (autorização por meio de lei municipal) é suficiente para tanto. Também não foram demonstradas as alegadas ilegalidades na construção da Câmara de Vereadores, bem como o prejuízo à coletividade devido à destruição da praça pública – que foi substituída por parque construído em outro local, ou qualquer irregularidade no processo licitatório. Por estas razões, foi improcedente a ação.

12) A ação (nos 70047577150 e 70053786851) visa impugnar ato que teria concedido ilegalmente benefícios a magistrados em detrimento do patrimônio público. Destaca o Tribunal, que tal ação dirige-se contra “quase integralidade do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul”. Segundo o Tribunal, o que ocorreu foi a ausência de inclusão de auxílio-moradia em determinado ato acerca das remunerações dos magistrados. Decisão posterior ordenou que fosse feita a inclusão de tal benefício, e é esta inclusão que tenta o autor impugnar. Porém, no acórdão presente o que se discute é se caberia a antecipação dos efeitos da tutela para tal caso, o que o Tribunal entendeu não merecer acolhimento, pois não estão presentes os requisitos – urgência e ilegalidade comprovada.

13) Na ação popular nº 70058542796, o Tribunal esclarece que, na verdade, a ação dirige-se à anulação de determinada alienação de bem público imóvel, feita pelo município com dispensa de licitação e autorizada por lei municipal. A apelante pede a extinção do processo sem julgamento de mérito, por não demonstrar a inicial, qualquer existência de ato lesivo ou ilegalidade e que a parte autora pretendia declaração de inconstitucionalidade de lei. Ocorre que tal lei não pode contrariar disposições de legislação federal e da Constituição, que exigem o procedimento licitatório. Desta forma, o Tribunal entende que a ação popular mostra-se adequada para a pretensão inicial e determina que prossiga a demanda.

14) Ação popular (nos 70056978240, 70054887542 e 70054426523) imposta Francisco Rafael Gonçalves visando a declaração de ilegalidade de cláusulas constantes em contrato de empréstimo firmado entre o Estado do Rio Grande do Sul e Banco Industrial e Comercial S/A e Antônio Brito. Pede a parte autora também, que o banco seja condenado a ressarcir aos cofres públicos os valores recebidos indevidamente em função das cláusulas alegadas ilegais. O autor:

Diz que o Banco Cidade foi incorporado ao Banco Alvorada, daí a le-gitimidade deste último. Aduz que o Estado contratou com o réu nos seguintes termos: “contrato de empréstimo mediante abertura de cré-dito fixo por antecipação de receita orçamentária (aro), no valor de

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R$ 10.000.000.000,00 (dez milhões de reais) em 27 de setembro de 1995”. Informa que foram observadas as seguintes irregularidades: Taxa Anbid, Capitalização de Juros e Encargos Moratórios, razão do ajuizamento da presente ação popular com a intenção de ressarcimento ao Erário. Dis-corre a respeito. Pede pela procedência, para que seja declarada a ilegali-dade da Taxa Anbid, da capitalização de juros e dos encargos moratórios, com o ressarcimento aos cofres públicos.

Entretanto, tal demanda foi extinta (como se pode observar na trans-crição abaixo), em razão de ocorrida a prescrição quinquenal prevista na Lei 4.717/65.

Portanto, a conclusão a que se chega é que: (a) a pretensão de invalidade/nulidade de atos/contratos ilegais e lesivos ao Erário prescreve em cinco anos, nos termos do art. 21 da Lei nº 4.717/65 ou mesmo art. 23 da Lei nº 8.429/92; (b) a pretensão ressarcitória veiculada em ação popular igualmente prescreve em cinco anos, à exceção dos atos ilegais e lesivos ao Erário que tenham natureza de improbidade administrativa, os quais são imprescritíveis, a teor do que dispõe o art. 37, §5º combinado com §4º, da Constituição Federal.[...][...] estou votando por negar provimento ao apelo, confirmando a senten-ça que extinguiu a lide pela prescrição, haja vista tratar-se de ato/contrato supostamente ilegal ou lesivo ao Erário cuja natureza não diz com impro-bidade administrativa, única hipótese, pois, como se viu, de imprescritibi-lidade da pretensão ressarcitória.

Ainda no mesmo caso, uma apelação teve outro entendimento acerca da prescrição. Sustentou o Tribunal, que as ações que tenham por fim o ressarcimento ao erário são imprescritíveis como disposto na Constituição Federal, de modo que determinou-se o retorno da ação aos autos:

Ainda que a Lei Ordinária preveja a prescrição da ação popular, dada à interpretação que se confere ao dispositivo constitucional, hierarquica-mente superior e aplicável ao caso, é de se reconhecer a imprescritibilida-de da ação. Vale citar, ainda, que a norma inscrita na Constituição não faz

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distinção entre procedimentos, ação civil pública ou popular, mas apenas res-salva as ações que, por sua natureza, versem sobre ressarcimento do erário.

15) Na ação nº 70059368704, buscava-se declaração de nulidade de compra de imóvel pela prefeitura, por superfaturamento (porque teria sido adquirido por valor muito superior ao de mercado) e diversos outros vícios. O autor pedia ainda, ressarcimento de eventuais danos causados ao erário municipal. O acórdão relata diversas provas periciais, e a conclusão do Tribunal de que não houve o alegado superfaturamento, visto que os resultados acerca do valor do imóvel foram variados – sendo alguns semelhantes ao número gasto pela prefeitura e outros não. Assim sendo, a ação foi declarada improcedente e o prefeito isento de ressarcir ao erário municipal.

16) O autor da ação nº 70059726604 pretendia a declaração de nulidade de lei municipal acerca do regime de previdência social do município, pois tal lei não levaria em conta estudo de impacto financeiro sobre as finanças do município. Para o Tribunal, é caso de extinção do feito sem resolução de mérito, pois o autor não citou qualquer ato ilegal ou lesivo, apenas declarou a nulidade. Também demonstra-se incabível a ação popular para discutir lei em tese.

17) Foram encontrados três acórdãos (nos 70059363648, 70059330092 e 70059326348) acerca de uma ação visando a suspensão dos efeitos de determinadas leis municipais que criaram cargos em comissão e funções gratificadas e outras duas fixando subsídio de agentes públicos, por ofenderem à disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal, como vê-se em trecho do voto do Des. Ricardo Torres Hermann:

[...] tais leis foram editadas com inobservância do lapso temporal previsto no art. 21, parágrafo único, da Lei Complementar nº 101/20007, ou seja, 180 dias antes do final do mandato, lembrando que foram editadas em 03-10-2012. De outro lado porque os documentos das fls. 598 e 600 evidenciam que foram extrapolados todos os limites previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal para gastos com pessoal. (Grifos no original).

7 – Art. 21. É nulo de pleno direito o ato que provoque aumento da despesa com pessoal e não atenda:

I - as exigências dos arts. 16 e 17 desta Lei Complementar, e o disposto no inciso XIII do art. 37 e no

§ 1º do art. 169 da Constituição;

II - o limite legal de comprometimento aplicado às despesas com pessoal inativo.

Parágrafo único. Também é nulo de pleno direito o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal expedido

nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do respectivo Poder ou órgão referido no art. 20.

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A primeira decisão suspendeu as leis, a fim de prevenir eventuais danos ao patrimônio público. Nas duas decisões seguintes não houveram alterações, mantendo-se as leis suspensas.

18) Caso (nº 70034155309) em que se buscou a anulação de atos decorrentes de contrato já declarado nulo em ação popular anterior. Ocorre que, o ente público não tinha competência administrativa para firmar tal contrato. Em consequência, os efeitos do contrato nulo, demonstram-se também nulos.

19) Autores da ação de nº 70057513665 pedem a suspensão de determinada obra pública, por não estar de acordo com a legislação municipal no tocante à altura permitida por lei. Entretanto, à época do início da obra, a lei era outra e quanto a esta não há ofensa. Portanto, a suposta ilegalidade não se configura, visto que a obra está de acordo com a lei vigente em seu período de realização.

20) A parte autora ajuizou a ação popular nº 70046863411 em face do município e de empresa privada, alegando que a empresa estaria usando local público sem autorização e impossibilitando o livre acesso e deslocamento através de tal local. Para o Tribunal, não há provas de lesividade ao patrimônio público, portanto resta improcedente o pedido.

21) Ação popular (nº 70057401135) imposta contra o município e entidade pública acerca de irregularidades em obra pública. A parte autora declara que não houveram os devidos cuidados na realização de obra em local reservado à preservação ambiental. Porém, as provas trazidas aos autos, não apenas não traziam as alegadas irregularidades por parte dos réus, como demonstravam a correta fiscalização dos procedimentos e da situação do local.

22) Trata-se de ação (nº 70059803742) visando a anulação de contratos emergenciais de prestação de serviços de transporte escolar sem o devido processo de licitação, na qual, o Tribunal entendeu estar o autor agindo em interesse próprio, porquanto que, “se sentiu preterido ao ver findado o seu vínculo contratual com o Município e não ter sido convidado a participar de reunião que definiu as diretrizes da contratação temporária do transporte escolar municipal para o ano de 2013”. Deste modo, a ação foi extinta pela ausência de uma das condições da ação – o interesse de agir, que neste caso, deveria ser coletivo e não individual.

23) Pedido de antecipação de tutela (nº 70047244298) ao efeito de suspender imediatamente os efeitos de leis municipais que aumentaram os subsídios dos agentes políticos. Para o Tribunal, houve violação à parágrafo único do artigo 21, da LC n.º 101/2000, que “prevê a nulidade dos atos que importem em aumento

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das despesas de pessoal se expedidos nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular do Chefe do Executivo”. Desta forma, foi decretada a suspensão das leis municipais.

24) No acórdão nº 70047244298, a parte autora busca a cessação imediata de nomeações para determinados cargos de confiança municipais, criados por lei municipal, bem como a consequente exoneração dos nomeados de seus cargos. Porém, segundo o Des. Eduardo Delgado, tal caso já foi objeto de uma ação popular anterior, já tendo sido decidido pelo Tribunal, de modo que perdeu-se o objeto do presente recurso, e este resta prejudicado.

25) Na ação nº 70057493371 discute-se a competência do Tribunal para o julgamento da demanda. Quanto à motivação da ação popular, tem-se que:

A ação popular restou ajuizada em face do Estado do Rio Grande do Sul e Banco do Brasil S.A., contra ato lesivo praticado pelo Banco do Brasil S.A. acerca de contrato firmado entre o Estado do Rio Grande do Sul e a Instituição Financeira, observando-se ilegalidades no tocan-te a correção da TBF, capitalização dos juros, bem como os encargos moratórios.

26) Ação (nº 70057456253) atacando contratos realizados pelo município sem licitação, na qual a autora pede a antecipação dos efeitos da tutela, por demonstrar-se já na inicial a presença de irregularidades. Tal pedido foi deferido, em reforma à decisão anterior, que o negara, bem como definido o prazo de 20 dias para o município contestar a decisão.

27) Embargos de declaração (nº 70057752453 e nº 70050219534) nos quais a parte autora alega haver omissão ou obscuridade na decisão anterior, no tocante à parcela de culpabilidade de cada réu. Para o Tribunal, tal alegação não merece acolhida, e a rediscussão da matéria não pode ser feita nesta modalidade de ação – tal intuito demonstrou-se na alegação. Quanto ao fato motivador da ação popular, o autor aponta inúmeras irregularidades cometidas pelo prefeito – abertura de crédito, com verba destinada à compra de equipamentos e criação ilegal de empresa– ao firmar contratos administrativos que tiveram, inicialmente, decisões diversas.

28) A ação popular de nº 70057548190 tem como objetivo o ressarcimento, aos cofres públicos municipais, de valores despendidos pelo município em ocasião de pagamento de danos materiais sofridos por vereadores que não puderam assumir a legislatura desde o início. Tal demanda foi extinta devido ao fato de seu pedido

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ser apenas condenatório e não declaratório – e em seguida, condenatório, ou seja devem constar ambos, em se tratando de ação popular.

29) Caso (nº 70048327118) em que o autor alegava ser ilegal o pagamento de URVs’ aos servidores do Tribunal de Contas do Estado, entretanto, não foram preenchidas as condições da ação. Incapacidade do pólo passivo configurada, visto que o autor ajuizou a ação contra o Tribunal de Contas do estado, ao invés de fazê--lo contra o Estado do Rio Grande do Sul e também não denominou corretamente os servidores públicos visados. Foi determinada a emenda da inicial, mas ainda assim, não foi feita a devida correção, de modo que ação foi extinta. No acórdão presente, não houve alteração da decisão original.

30) Ação (nº 70055183156) visando a anulação de norma que determinou pagamento à membros do Ministério Público, que o autor entendeu ser ofensiva à ordem constitucional, por conceder vantagens “sem a prévia dotação específica e sem qualquer autorização por força da lei de diretrizes orçamentárias”. O Tribunal julgou extinto o feito, de acordo com o Art. 267, IV do CPC8.

31) O acórdão Nº 70057523540 é um recurso interposto pelo prefeito municipal a fim de cancelar a suspensão de leis municipais – que dispunham acerca do aumento do subsídio de agentes políticos e eram que segundo o autor, não haviam seguido as devidas normas para sua aprovação – imposta na ação popular. Para o Tribunal, as leis não tem nenhuma irregularidade em seu procedimento legal e não ensejaram nenhum dano ao patrimônio público. Entretanto, não houveram provas que demonstrassem necessária alteração da decisão anterior.

32) O autor moveu a ação popular de nº 70053601928 a fim de anular das leis municipais que tratam de “desafetação de área pública, transformação em bem dominial e autorização para sua permuta na forma e condições que especifica” e alteração no “parcelamento do solo de parte de Balneário de Atlântida, desafetando e autorizando o Poder Executivo a permutar com empresas” privadas as áreas públicas que especifica na forma como descreve na inicial. Decidiu o Tribunal que a perícia técnica realizada e as demais provas produzidas, não demonstram as ilegalidades apontadas – ocorrência de dano ambiental, superfaturamento da alienação da área de terras e da permuta pelos serviços, e ocorrência de prejuízos ambientais e urbanísticos –, portanto, improcedente a ação popular.

8 – Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: IV - quando se verifi car a ausência de pressu-postos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo. No caso concreto, houve o entendi-mento de que os fatos e argumentos levantados pelo autor não levavam à conclusão de qualquer irregularidade.

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33) O nº 70056773864 é uma ação popular visando “impedir o repasse de parte dos depósitos judiciais ao caixa único do Estado”. O Tribunal entendeu ser o objeto da ação inadequado para ser decidido em ação popular, por se tratar de inconstitucionalidade de lei estadual. Também afastou o pedido de conexão entre as ações, por não estarem presentes os requisitos legais para tanto, inclusive estando uma já decidida. Tal ação foi extinta de ofício por inadequação da via eleita.

34) Na ação de nº 70056761042 o autor busca a anulação de votação de projeto de lei que não teria cumprido a determinação do número mínimo de vereadores e o prazo de convocação necessários para tal feito. Entretanto, tais alegações não foram comprovadas, improcedendo a demanda.

35) Trata-se de ação popular (nº 70055095293) onde o autor sustenta “ilegalidade do contrato administrativo que alterou, aumentando, a participação societária da autarquia municipal em empresa pública, o que, segundo demandante, acarretou prejuízo ao erário, pois tornou a autarquia responsável subsidiária por dívidas trabalhista e previdenciárias”. Para o Tribunal, as provas trazidas aos autos não possibilitam a observação de ilegalidades ou lesões ao patrimônio público, sendo portanto, improcedente a ação.

36) Ação popular (nº 70056164551) visando a suspensão de contrato administrativo acerca de implantação de serviços de estacionamento pago, entre o município e empresa privada, por conter erro em relação ao local do estacionamento. Em decisão anterior, foi deferida a tutela antecipada, visto que a ampliação feita pelo prefeito acerca do local atingido pelo contrato, resulta em ilegalidade. No presente acórdão, o Tribunal entendeu que o contrato não causará lesão ao erário e também não há prova de que o Município sofrerá prejuízo, apesar da alteração imprevista. Desta forma, alterou a decisão inicial, removendo a tutela antecipada e dando improcedência à ação.

37) No caso do nº 70056525694, o objeto é a declaração da nulidade de contrato de prestação de serviços de transporte escolar firmado pelo prefeito municipal com empresa privada, com irregularidades licitatórias – trata-se de dispensa de licitação e de formulação de aditivo ao contrato de concessão de transporte coletivo urbano – e a devolução dos valores despendidos com o contrato, sem participação do ex-prefeito. No monocrático presente, em reexame da ação, há o entendimento de que de fato, não há que se falar em devolução ao erário, visto que não houve comprovação de dano ao patrimônio, sendo portanto, improcedente tal pedido.

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38) Ação popular (nº 70056129380) solicitando que o município seja compelido à diminuir o valor da tarifa do transporte coletivo, a qual foi extinta sem resolução de mérito, por ausência de um dos requisitos para a demanda, visto que a ação popular não serve para tal pedido.

39) Na ação de nº 70054031406, o agravante promoveu ação popular, investindo contra o loteamento de área urbana em locais pertencentes ao município, sem observação à legislação vigente. De modo que

[...] verifica-se que o agravante promoveu ação popular, investindo contra o loteamento de área urbana nas localidades de 1º de Maio, Vicentinos 1 e 2, pertencentes ao Município de Sarandi. Alegou que chegou ao seu co-nhecimento o fracionamento da área urbana sem observação à legislação vigente. Postulou a suspensão de todas as licenças ambientais expedidas em favor dos referidos loteamentos; suspensão de todos os procedimentos ambientais até que seja realizado estudo de impacto ambiental; anula-ção das licenças expedidas pela Secretaria Municipal de Meio Ambien-te; acompanhamento pela FEPAM do devido licenciamento ambiental; paralisação da atividade na área citada, bem como recuperação da área degradada.

No acórdão vislumbrado, discute-se a legitimidade passiva das partes. Entendeu o Tribunal que: a FEPAM não tem legitimidade passiva, visto que não concedeu as referidas licenças, e sim o município e; quanto à construtora, deve ser melhor investigada a questão atinente à sua responsabilização pelos eventuais danos, portanto deve permanecer no pólo passivo da ação. Sendo assim, prossegue a ação.

40) No caso nº 70056059207, pretende o autor compelir o Estado do Rio Grande do Sul e o DAER à fiscalização em determinada rodovia, a fim de evitar acidentes. A petição foi declarada inepta e indeferida, pois tal objeto não atende aos pressupostos necessários para ajuizamento de ação popular.

41) Ação (nº 70052484045) para suspender a realização de leilão público, concernente à venda de bens tidos como inservíveis à Administração. Entendeu o Tribunal não ser possível o pedido de antecipação de tutela, devido ao risco de irreversibilidade, além de esgotar o objeto da ação. Observando-se a época do pedido, sugere o Tribunal que o destino de tais bens seja decidido pela próxima Administração.

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42) A ação nº 70055288419 foi extinta sem julgamento do mérito, na qual se sustentava a ilegalidade e imoralidade de emenda à lei municipal, em razão de inobservância ao devido processo legislativo. Assim sendo, a ação popular não é a via adequada para tal objetivo, e sim a ação direta de inconstitucionalidade.

43) Na ação nº 70054991765, a parte autora ajuizou ação popular contra o Município, pessoas físicas e empresa privada para declarar a nulidade de atos administrativos de licenciamento e instalação de posto de combustíveis. Segundo a demandante, a obra estaria em desconformidade com a legislação municipal no que tange à local autorizado para sua realização; irregularidades no registro do protocolo do requerimento do Estudo de Viabilidade Urbanística no Sistema de Gerenciamento de Processos Administrativos e o cadastro técnico municipal, que teriam sido feitos após o advento da Lei Municipal; também defende a parte que não há existência de direito adquirido; e que a licença concedida fere o princípio da igualdade. Inicialmente, foi deferida a liminar para sustar as obras, a qual foi revogada após pedido do município. Na decisão interior, julgou-se procedente a ação popular, e os réus foram condenados ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, além de suscitarem-se decisões acerca de questões processuais trazidas por alguns réus e pelo autor. No presente acórdão, a decisão foi a seguinte:

[...] não se conhece do agravo retido de interposto pela empresa e dos recursos de apelação interpostos por partes de ofício, exclui-se da lide pela ilegitimidade passiva ad causam partes e dá-se provimento aos re-cursos para (a) extinguir o processo pela ilegitimidade passiva ad causam relativamente a partes e (b) extinguir a ação sem resolução de mérito pela perda do objeto e pela impossibilidade jurídica do pedido. Diante da su-cumbência recíproca, deixa-se de condenar os demais Réus ao pagamen-to das custas e honorários advocatícios.

44) A ação popular nº 70054394903 é um recurso que pretende impugnar a condenação a pagamento dos supostos danos acarretados aos cofres públicos, em razão de realização de transporte coletivo pela demandada empresa de transporte. Tem-se, portanto, que resta transitada em julgado a determinação da sentença de que a empresa privada deixe de explorar o serviço de transporte coletivo. Quanto ao contrato primeiramente citado, demonstrou-se ilegalidade no tocante à prorrogação deste sem licitação, autorizada por lei municipal, além de

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que, nas disposições “constantes do Termo de Contrato da Concessão em pauta, que inexistia qualquer previsão relativamente à possibilidade de prorrogação do mesmo, daí, também, mostrar-se eivado de vício de ilegalidade o ato entabulado pelos demandados”. Ainda esclarece o Tribunal que “nessa perspectiva, reconhecida a ilegalidade do ato de prorrogação da concessão, e sabendo-se que a inexistência de improbidade administrativa não afasta, por si só, a possibilidade de reconhecimento da existência de prejuízo ao erário, passa-se a apreciar os demais elementos de prova constantes dos autos”. Apesar de tais verificações, e de provas testemunhais relativas à precariedade dos serviços disponibilizados pela empresa e demais irregularidades, o Tribunal entendeu não estar configurado dano ao erário, e reformou a sentença anterior a fim de afastar a condenação de ressarcimento. Como pode-se ver na transcrição abaixo retirada do acórdão, os magistrados não se convenceram acerca da ocorrência das alegadas ilegalidades, absolvendo os réus.

Ressalte-se, que não se está aqui afastando o reconhecimento da necessi-dade de realização de procedimento licitatório prévio para a efetivação da concessão em pauta, o que afrontaria diretamente o disposto no art. 175 da Constituição Federal, mas apenas se reconhece a não comprovação dos alegados prejuízos sofridos pelo erário municipal, ante a manutenção do serviço de transporte público concedido à empresa Sociedade Trans-portes União dos Cotistas Ltda.

45) O acórdão nº 70046309142 trata de ação de improbidade administrativa, que julga matéria já discutida em sede de ação popular anterior. Quanto à ação popular, tem-se que: teve seu pedido acolhido, com a declaração de nulidade dos contratos administrativos firmados pelo Município com as empresas privadas, e a determinação de que os valores despendidos devem ser ressarcidos, solidariamente, pelos réus em favor do erário. Já na presente ação, comprovou-se a alegada fraude ao processo licitatório na contratação de diversas empresas e na compra de equipamentos para determinado evento municipal, além da concessão irregular de benefícios a uma das empresas e o descumprimento de serviços contratados. Decidiu-se pela parcial procedência da ação, condenando as empresas com penas de multa e impossibilidade de contratação com o Poder Público por período determinado.

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46) Ação popular nº 70055556799, movida a fim de suspender a “veiculação em rádio e televisão de toda a publicidade do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em que aparecem a imagem ou locução, ou ambas, dos Agentes Políticos que o administram, inclusive o programa “Terra Gaúcha”, e condenar os agentes públicos a ressarcir o erário dos prejuízos causados a serem apurados em liquidação, por tratar-se de “propaganda nitidamente promocional [...] às custas do Estado do Rio Grande do Sul [...]”. A ação foi parcialmente procedente, visto que o Tribunal entendeu que algumas das imagens constantes nas propagandas de fato visavam a promoção pessoal de determinado agente público, o qual foi condenado a ressarcir aos cofres públicos.

CONCLUSÃO

À primeira vista nota-se até mesmo em termos meramente numéricos que não é significativo o número de demandas de ação popular, se comparada, por exemplo, com o número de ações civis públicas neste mesmo período. Diante da dificuldade vislumbrada em encontrar ações que se enquadrassem ao presente projeto – devido ao limitado número de processos envolvendo ação popular e principalmente, ao combate efetivo a atos corruptivos – percebe-se o desconhecimento em relação à finalidade e aos requisitos de aplicação da ação popular. É notável ainda, a quantidade de improcedências e ações extintas (com e sem resolução de mérito), por não atender muitas delas aos pressupostos formais para a ação, especialmente no tocante ao objeto da demanda, como é o caso da insistência de utilização da ação popular para discutir o controle de constitucionalidade de leis municipais.

Na jurisprudência analisada, encontram-se casos variados de corrupção na contratação pública, prevalecendo exageradamente nenhum tipo penal. Os temas vislumbrados nos quarenta e seis casos expostos são: anulação de leis (dez casos); contratação de serviços públicos pela Administração Pública (quatro casos); irregularidades na realização de obras públicas e em locais considerados como patrimônio público (dez casos); irregularidades na contratação ou no decorrer do exercício de servidor público (onze casos) e; irregularidades em contratos realizados com a Administração Pública (onze casos).

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O gráfico abaixo demonstra os dados supracitados:

Figura 3 - Casos de corrupção denunciados

De modo geral, ante esta pesquisa quantitativa, pode-se observar ante a jurisprudência coletada no Tribunal de Justiça, que a ação popular ainda é utilizada de forma muito tímida por parte dos cidadãos no controle social da administração pública, muitas vezes com motivações casuísticas, e não em face do acompanhamento e fiscalização dos cidadãos em relação ao interesse e proteção do patrimônio público. Note-se que em um universo de quase quintos municípios do Rio Grande do Sul e dos milhares de atos praticados por cada um dos entes, o número de ações não é significativo, sem falar é claro, que muitas dessas não se tratavam de controle de atos corruptivos.

Observa-se o quão no âmbito teórico é uma legislação evoluída e potencialmente importante para o controle social de atos corruptivos, mas que, no âmbito prático há muito ainda que concretizar para que se possa afirmar que

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tal ação efetivamente cumpre seus pressupostos constitucionais de remédio para a proteção do patrimônio público.

REFERÊNCIA

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

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_____._____. Apelação Cível nº 70056978240. Relator: Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil. Data de Julgamento: 23/07/2014. Data de Publicação: 04/08/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1106249

_____._____. Apelação Cível nº 70059368704. Relator: Francesco Conti. Data de Julgamento: 16/07/2014. Data de Publicação: 30/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1056701

_____._____. Apelação Cível nº 70060037827. Relator: Eduardo Uhlein. Data de Julgamento: 16/07/2014. Data de Publicação: 07/08/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1054273

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_____._____. Apelação Cível nº 70058191941. Relator: João Barcelos de Souza Junior. Data de Julgamento: 11/06/2014. Data de Publicação: 23/06/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=861077

_____._____. Apelação e Reexame Necessário nº 70046863411. Relator: Matilde Chabar Maia. Data de Julgamento: 29/05/2014. Data de Publicação: 12/06/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=787392

_____._____. Apelação Cível nº 70055629380. Relator: Leonel Pires Ohlweiler. Data de Julgamento: 29/05/2014. Data de Publicação: 20/06/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=786417

_____._____. Apelação Cível nº 70056245111. Relator: Alexandre Mussoi Moreira. Data de Julgamento: 07/05/2014. Data de Publicação: 14/05/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=621815

_____._____. Apelação Cível nº 70058995994. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 30/04/2014. Data de Publicação: 07/05/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=588399

_____._____. Apelação Cível nº 70058521048. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 16/04/2014. Data de Publicação: 23/04/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=525286

_____._____. Apelação nº 70057548190. Relator: Denise Oliveira Cezar. Data de Julgamento: 13/02/2014. Data de Publicação: 19/02/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=28932

_____._____. Apelação Cível nº 70048327118. Relator: Ricardo Torres Hermann. Data de Julgamento: 18/12/2013. Data de Publicação: 20/01/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2260912

_____._____. Apelação Cível nº 70056398266. Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza. Data de Julgamento: 12/12/2013. Data de Publicação:

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

16/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2230875

_____._____. Apelação Cível nº 70056483969. Relator: Irineu Mariani. Data de Julgamento: 11/12/2013. Data de Publicação: 03/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=747244

_____._____. Apelação Cível nº 70054294145. Relator: Carlos Roberto Lofego Canibal. Data de Julgamento: 11/12/2013. Data de Publicação: 27/01/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2200567

_____._____. Apelação Cível nº 70057298085. Relator: Almir Porto da Rocha Filho. Data de Julgamento: 11/12/2013. Data de Publicação: 14/02/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2213988

_____._____. Apelação Cível nº 70057297699. Relator: Almir Porto da Rocha Filho. Data de Julgamento: 11/12/2013. Data de Publicação: 14/02/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2213981

_____._____. Apelação Cível nº 70055183156. Relator: Irineu Mariani. Data de Julgamento: 09/12/2013. Data de Publicação: 18/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2198789

_____._____. Apelação Cível nº 70055479984. Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco. Data de Julgamento: 04/12/2013. Data de Publicação: 12/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1758936

_____._____. Apelação e Reexame Necessário nº 70056525694. Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro. Data de Julgamento: 29/11/2013. Data de Publicação: 03/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1866498

_____._____. Apelação Cível nº 70056069685. Relator: Miguel Ângelo da Silva. Data de Julgamento: 27/11/2013. Data de Publicação: 02/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2098988

_____._____. Apelação Cível nº 70036255149. Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco. Data de Julgamento: 14/11/2013. Data de Publicação:

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Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres

18/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2031029

_____._____. Apelação Cível nº 70050219534. Relator: Agathe Elsa Schmidt da Silva. Data de Julgamento: 13/11/2013. Data de Publicação: 26/11/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2019976

_____._____. Apelação Cível nº 70055556799. Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza. Data de Julgamento: 24/10/2013. Data de Publicação: 01/11/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1879551

_____._____. Apelação Cível nº 70040667388. Relator: Eduardo Kraemer. Data de Julgamento: 24/10/2013. Data de Publicação: 30/10/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1877992

_____._____. Apelação Cível nº 70056129380. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 02/10/2013. Data de Publicação: 09/10/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1734101

_____._____. Apelação Cível nº 70041571050. Relator: Angela Terezinha de Oliveira Brito. Data de Julgamento: 19/09/2013. Data de Publicação: 01/10/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1708216

_____._____. Apelação Cível nº 70054426523. Relator: Eugênio Facchini Neto. Data de Julgamento: 27/08/2013. Data de Publicação: 11/09/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1465248

_____._____. Apelação Cível nº 70054991765. Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza. Data de Julgamento: 22/08/2013. Data de Publicação: 27/08/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1443359

_____._____. Apelação Cível nº 70046309142. Relator: Ricardo Torres Hermann. Data de Julgamento: 14/08/2013. Data de Publicação: 23/08/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1374056

_____._____. Apelação Cível nº 70054394903. Relator: Luiz Felipe Silveira Difini. Data de Julgamento: 07/08/2013. Data de Publicação: 20/08/2013.

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1327635

_____._____. Conflito de Competência nº 70055840276. Relator: Agathe Elsa Schmidt da Silva. Data de Julgamento: 28/08/2013. Data de Publicação: 04/09/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1475130

_____._____. Embargos de Declaração nº 70060330024. Relator: Sergio Luiz Grassi Beck. Data de Julgamento: 09/07/2014. Data de Publicação: 21/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=1009380

_____._____. Embargos de Declaração nº 70060019445. Relator: Sergio Luiz Grassi Beck. Data de Julgamento: 06/06/2014. Data de Publicação: 26/06/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=842094

_____._____. Embargos de Declaração nº 70059757518. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 04/06/2014. Data de Publicação: 04/08/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=951898

_____._____. Embargos de Declaração nº 70058394248. Relator: Laura Louzada Jaccottet. Data de Julgamento: 26/03/2014. Data de Publicação: 28/03/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=356910

_____._____. Embargos de Declaração nº 70057752453. Relator: Agathe Elsa Schmidt da Silva. Data de Julgamento: 26/02/2014. Data de Publicação: 28/02/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=195579

_____._____. Embargos de Declaração nº 70057367344. Relator: Eduardo Kraemer. Data de Julgamento: 28/11/2013. Data de Publicação: 03/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2123070

_____._____. Embargos de Declaração nº 70055445274. Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco. Data de Julgamento: 26/09/2013. Data de Publicação: 07/10/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1697341

_____._____. Embargos Infringentes nº 70054347232. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 16/08/2013. Data de Publicação: 07/10/2013.

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Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres

Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1436617

_____._____. Reexame Necessário nº 70059803742. Relator: Sergio Luiz Grassi Beck. Data de Julgamento: 11/07/2014. Data de Publicação: 15/08/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=719116

_____._____. Reexame Necessário nº 70059726604. Relator: Ricardo Torres Hermann. Data de Julgamento: 02/07/2014. Data de Publicação: 16/07/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=977316

_____._____. Reexame Necessário nº 70057401135. Relator: Laura Louzada Jaccottet. Data de Julgamento: 21/05/2014. Data de Publicação: 27/05/2014. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2014&codigo=719415

_____._____. Reexame Necessário nº 70053601928. Relator: Arno Werlang. Data de Julgamento: 04/12/2013. Data de Publicação: 11/12/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2162671

_____._____. Reexame Necessário nº 70056761042. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 13/11/2013. Data de Publicação: 18/11/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=2004393

_____._____. Reexame Necessário nº 70056997083. Relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa. Data de Julgamento: 06/11/2013. Data de Publicação: 11/11/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1964858

_____._____. Reexame Necessário nº 70055095293. Relator: Luiz Felipe Silveira Difini. Data de Julgamento: 30/10/2013. Data de Publicação: 19/11/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1894284

_____._____. Reexame Necessário nº 70056059207. Relator: Marco Aurélio Heinz. Data de Julgamento: 25/09/2013. Data de Publicação: 03/10/2013. Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1680117

_____._____. Reexame Necessário nº 70055288419. Relator: Luiz Felipe Silveira Difini. Data de Julgamento: 07/08/2013. Data de Publicação: 20/08/2013.

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A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo

Disponível em: http://www1.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento_att.php?ano=2013&codigo=1329825

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular: Proteção do Erário, do Patrimônio Público, da Moralidade Administrativa e do Meio Ambiente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2012.PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. São Paulo: Editora

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O ASSÉDIO MORAL NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, DIGNIDADE HUMANA E IMPROBIDADE

ADMINISTRATIVA: QUESTÕES HERMENÊUTICAS SOBRE A EFETIVIDADE DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Leonel Pires Ohlweiler1

INTRODUÇÃO

A Administração Pública, hodiernamente, sofre a influência de um fenômeno da era moderna, a razão instrumental, em que o exercício das competências administrativas é erigido com a lógica dos postulados da eficiência econômica. Muito embora alguns efeitos positivos, tal ideal determina, por vezes, o exagero no exercício do poder hierárquico. Em outro contexto, os agentes políticos criam situações degradantes para os servidores públicos, resultado do modo individualista e arbitrário como compreendem a atividade administrativa. Este artigo é o resultado de investigação realizada a partir de precedente importante do Superior Tribunal de Justiça no qual houve a reforma de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, e a confirmação da sentença de procedência da ação civil pública proposta pelo Ministério Público.

O tema é polêmico, considerando as complexas questões sobre moralidade administrativa, dignidade humana, assédio moral e a aplicação do artigo 11

1 – Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Desembargador do TJRS.

Professor de Direito Administrativo no Unilasalle/CANOAS/RS, membro do Conselho de Adminis-

tração do TJRS, 2014/2015. E-mail: [email protected].

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Leonel Pires Ohlweiler

da Lei nº 8.429/92, especialmente em virtude de divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre os elementos para caracterizar a conduta do agente público como ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração Pública.

Inicialmente, o acórdão proferido por ocasião do julgamento do REsp 1.286.466-RS será detalhado, bem como compreendido no âmbito das decisões proferidas no 1º Grau de Jurisdição e no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Após, os temas da dignidade humana e do assédio moral serão examinados, partindo-se do pressuposto de que o conteúdo não surge de instâncias metafísicas, mas das próprias relações intersubjetivas ou daquilo que Ronald Dworkin referia, do conjunto de práticas da comunidade política. Destaca-se que a dignidade humana ocupa um importante papel hermenêutico no regime jurídico dos servidores públicos, funcionando como autêntico padrão hermenêutico. Relativamente ao assédio moral, serão examinados alguns aspectos da institucionalização doutrinária e jurisprudencial, evidenciando-se um conjunto de indicações normativas de como os servidores públicos devem ser tratados, isto é, a partir de critérios de autonomia, liberdade, respeito e cuidado.

A última parte desta investigação problematiza as condições de possibilidade de compreender o assédio moral como ato de improbidade administrativa, especialmente do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, considerando os termos da fundamentação utilizada no acórdão do STJ em exame.

Constitui-se em pesquisa voltada não apenas para observar o modo de compreensão do assédio moral como ato de improbidade administrativa pela jurisprudência, mas de questionar as condições objetivas de conferir maior efetividade ao artigo 37, § 4º, da Constituição Federal, sob uma perspectiva hermenêutica, na qual a dignidade do servidor público e o dever de probidade nas relações com agentes públicos hierarquicamente superiores ocorrem de forma transparente.

1. O ASSÉDIO MORAL COMO ATO DE IMPROBIDADE ADMINIS-

TRATIVA: O CASO DO CASTIGO DA SERVIDORA PÚBLICA

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento recente do Recurso Especial nº 1.286.466-RS, em 03 de setembro de 2013, examinou o interessante tema sobre o assédio moral no serviço público, bem como a caracterização de ato de

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

improbidade administrativa previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92. O acórdão foi assim ementado:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDA-DE ADMINISTRATIVA. ASSÉDIO MORAL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 11 DA LEI 8.429/1992. ENQUADRAMENTO. CONDUTA QUE EXTRAPOLA MERA IRREGULARIDADE. ELEMENTO SUBJETIVO. DOLO GE-NÉRICO. 1. O ilícito previsto no art. 11 da Lei 8.249/1992 dispensa a prova de dano, segundo a jurisprudência do STJ. 2. Não se enquadra como ofensa aos princípios da administração pública (art. 11 da LIA) a mera irregularidade, não revestida do elemento subjetivo convincente (dolo genérico). 3. O assédio moral, mais do que provocações no local de trabalho - sarcasmo, crítica, zombaria e trote -, é campanha de terror psicológico pela rejeição. 4. A prática de assédio moral enquadra-se na conduta prevista no art. 11, caput, da Lei de Improbidade Administrati-va, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferi-mento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém. 5. A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e/ou afastar da atividade pú-blica os agentes que demonstrem caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida. 6. Esse tipo de ato, para configurar-se como ato de improbidade exige a demonstração do elemento subjetivo, a título de dolo lato sensu ou genérico, presente na hipótese. 7. Recurso especial provido.

O caso iniciou com a propositura da ação de improbidade administrativa pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul contra o Prefeito do Município de Canguçu na época, acusando-o de violar os princípios constitucionais da Administração Pública, pois se valeu do cargo público de Prefeito Municipal para vingar-se de servidora pública municipal, titular do cargo de provimento efetivo de auxiliar administrativo, obrigando-a a permanecer “de castigo” na sala de reuniões da Prefeitura Municipal por determinado período de tempo. Conforme consta na sentença de 1º grau (Processo nº 042/1.06.0002612-6), o réu agiu por motivo de vingança, eis que a servidora pública levou ao conhecimento do Ministério Público a existência de dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria dos

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Leonel Pires Ohlweiler

Servidores Públicos. Outrossim, a servidora relatou que o réu ameaçou de colocá--la em disponibilidade, bem como ter-lhe concedido, sem solicitação, férias por um período de trinta dias. Este fato, inclusive, ensejou matéria jornalística e a instauração de uma Comissão Especial na Câmara Municipal de Canguçu. Diante destes fatos, nos termos da petição inicial da ação de improbidade administrativa, o réu violou os princípios constitucionais da Administração Pública, especialmente os princípios da legalidade e impessoalidade.

Ainda, nos termos do que consta na sentença de primeiro grau, o réu sustentou a tese de que o fato descrito na petição inicial da ação de improbidade administrativa constitui-se em fato atípico, pois não há como configurar no caso concreto a conduta prevista no artigo 11 da Lei nº 8.429/92.

O Juiz de Direito da Comarca de Canguçu, no entanto, entendeu configurado o ato de improbidade administrativa, eis que o fato imputado estava devidamente comprovado por meio de provas documentais. Alude a juntada de reportagens jornalísticas sobre o fato, indicando não se tratar de caso isolado no Município, pois o Chefe do poder Executivo agiu de forma semelhante por pelo menos cinco vezes. Ao prestar depoimento na Comissão Especial da Câmara de Vereadores, a servidora confirmou o conteúdo da petição inicial. O réu determinou que permanecesse sentada no seu gabinete e, posteriormente, na sala de reuniões, sendo que o “castigo” foi presenciado por diversas pessoas. Durante a instrução processual estes fatos foram devidamente comprovados.

Ao final, o Juiz de Direito entendeu configurado o ato de improbidade administrativa previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, na medida em que o Prefeito Municipal valeu-se indevidamente do exercício do cargo público. Basicamente foram dois os fundamentos jurídicos da procedência dos pedidos: (a) ao agir por motivo de vingança, afastando a servidora pública do exercício de suas atividades, violou os princípios da Administração Pública, especialmente o da impessoalidade, na medida em que agiu desvinculado da finalidade pública que deve nortear todos os atos praticados por agentes públicos; bem como (b) violou a moralidade administrativa ao punir a servidora pública que agiu no exercício de um direito, qual seja, levar ao conhecimento do Ministério Público uma dívida do Município de Canguçu com o fundo de pensão dos servidores públicos. Relativamente ao “castigo”, aduziu o Juiz de Direito que o réu não poderia adotar esta prática, valendo-se da “ascendência funcional”, sendo que exerceu sua competência administrativa de forma odiosa e incidiu na prática de abuso de poder. Em virtude estes fatos, a ação civil pública foi julgada procedente, condenando o

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

réu à suspensão dos direitos políticos por três anos; ao pagamento de multa civil de cinco (5) vezes o valor da remuneração percebida à época do fato e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

Houve recurso da sentença de primeiro grau, Apelação Cível nº 70029359379, julgada pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cujo acórdão foi assim ementado:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE IMPROBIDADE. ATO ATENTATÓ-RIO AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PUNI-ÇÃO INDEVIDA A FUNCIONÁRIO MUNICIPAL. INEXISTÊNCIA DE ATO DE IMPROBIDADE PARA OS FINS DA LEI Nº 8.429/1992. Conforme abalizada doutrina, a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa, que mereceu consideração especial da Constituição, que pune o ímprobo com a suspensão de direitos políti-cos. Consiste no dever de o funcionário, no exercício de suas funções, servir a Administração com honestidade, sem se aproveitar dos poderes e facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem. Não é qualquer falta funcional que dá ensejo à condenação nas penas da Lei da Improbidade. No caso, a indevida punição de funcionário não guar-da qualquer relação com a moralidade administrativa prevista no art. 11 da Lei nº 8.429/1992. Improcedência da demanda. Apelação provida. (Apelação Cível Nº 70029359379, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Julgado em 01/04/2010).

Ao fundamentar a improcedência da ação de improbidade administrativa, mencionou-se que os fatos descritos na petição inicial não guardam relação com a moralidade administrativa descrita no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, eis que o ato de improbidade administrativa relaciona-se com as condutas não apenas ilegais, mas dolosas e culposas no sentido de lesar o patrimônio público, ou tirar proveito para si ou para outrem. Assim, em virtude de não haver a prática de ato de improbidade administrativa, a sentença de 1º grau foi reformada.

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, inconformado com a decisão do Tribunal de Justiça, recorreu para o Superior Tribunal de Justiça, e ensejou o julgamento do citado Recurso Especial nº 1.286.466, conforme referido inicialmente.

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2. DIGNIDADE HUMANA E O ASSÉDIO MORAL NA ADMINIS-

TRAÇÃO PÚBLICA

2.1 Dignidade Humana no Regime Jurídico dos Servidores Públicos

A decisão do Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa, em virtude de fatos que configuraram assédio moral, remete para o debate sobre a importância do princípio da dignidade humana no Direito Administrativo e, de forma mais específica, no regime jurídico dos servidores públicos. Não se pretende aqui retomar os debates intensos sobre os diversos fundamentos e significados da dignidade humana2, mas sempre é relevante não olvidar o contributo de Kant, cujo labor filosófico coloca o homem no centro da elaboração do conhecimento, bem como destaca a impossibilidade moral de considerá-lo meio para os outros, pois é um fim em si mesmo, eis que é um ser racional, conforme refere de forma explícita na Fundamentação da Metafísica dos Costumes:

Ahora yo digo: el hombre, y en general todo ser racional existe como fin en si mismo, no solo como médio para usos cualesquiera de esta o aquella voluntad; debe en toda sus acciones, no sólo las dirigidas a sí mismo, sino las dirigidas a los demás seres racionales, ser considerado siempre al mis-mo tiempo como fin. (KANT, 2005, p. 116).

Também, na esteira do pensamento deste autor, a pessoa assim é chamada porque sua natureza funciona como elemento de distinção, no sentido de que como fim em si mesmo, não se pode utilizá-la como meio e, portanto, limita-se todo capricho, erigindo-se como digna de respeito (KANT, 2005).3 Muito embora as diversas críticas que são formuladas à fundamentação de Kant, há efetivamente questões importantes na sua teorização, como a negação de objeto para o homem, bem como a circunstância segundo a qual aquele que viola os direitos do homem, o utiliza como simples meio.

2 – Sobre esta questão ver a obra de Ingo Wolfgang Sarlet - Dignidade da Pessoa Humana na Constituição Federal.3 – Corolário, Kant (2005, p. 116. Grifos próprios) refere o seguinte imperativo: “obra de tal modo que uses la humanidad, tanto en tu persona como en la persona de cualquier outro, siempre como un fin al mismo tiempo y nunca simplemente como un médio.”

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

O respeito que o homem deve ao outro, a partir de Kant, não é algo a ser imposto pela violência, mas “situado, naturalmente, em termos de conteúdo, a meio caminho entre um dever jurídico e outro dever de virtude, o do amor ao próximo” (SEELMAN, 2005, p. 46). O homem, desta forma, seria não apenas dotado de razão e de vontade, mas capaz de atuar sob o império da liberdade. Segundo Gregório Peces-Barba Martinez “la concepción formal de Kant, que basa la dignidad en la autonomia como postulado de la razón, tiene el gran valor de conectar dignidad, libertad, autonomía y moralidad, edifício que desde entonces se mantendrá como explicación básica de esta dignidad humana” (PERCES-BARBA MARTINEZ, 2003, p. 57).

A concepção kantiana de dignidade humana exerceu grande influência no modo como o Direito realizará a leitura desta questão. Um bom exemplo disto é o texto de Ignácio Gutierrez Gutiérrez sobre a matéria, destacando a interdição da instrumentalização do homem como algo inerente à dignidade humana (GUTIERREZ GUTIÉRREZ, 2005). A partir daí surgem inúmeros entendimentos sobre o significado da expressão dignidade humana. A herança kantiana será crucial para pautar o debate sobre a questão da autonomia ética do ser humano, partindo-se do pressuposto segundo o qual tal autonomia seria algo intrínseco à ideia de dignidade. Com efeito, se a pessoa é por definição racional, ela é livre, e, por consequência, dotada de dignidade.

Considerando outra perspectiva4, ultrapassando-se a questão da dignidade do homem fundada na razão, compreende-se a importância de superar a vinculação a um fundamento de caráter metafísico, vislumbrando a pessoa como homem formador de mundo, como alude Ernildo Stein (2003, p. 16), cujo acesso somente ocorre por meio da linguagem. Na medida em que a linguagem é constitutiva de mundo exige-se a postura do diálogo, sendo importante, para a dignidade do homem, considerar que este habita um mundo com os outros. Trata-se de condição existencial que remete para a necessidade de adotar um modo de ser com respeito e cuidado, eis que as relações intersubjetivas nas quais o homem acontece deverão desenvolver-se de modo a impedir que ocorram práticas capazes de velar os sentidos de humanidade partilhados ao longo da construção do Estado Constitucional. Aqui, as virtudes construídas historicamente na comunidade são

4 – Adota-se aqui os pressupostos construídos pela Nova Crítica do Direito de Lênio Luiz Streck, um

dos autores responsáveis pela problematização do pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg Ga-

damer no Direito, especialmente nas obras Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito e Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas.

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importantes, pois possibilitam a descrição do sentido das instituições e práticas sociais capazes de desvelar o modo de ser no mundo a partir de indicações de dignidade do homem. Este olhar do princípio da dignidade parte do pressuposto trabalhado pelo Constitucionalismo Contemporâneo de que fala Lênio Luiz Streck, especialmente na obra Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, sendo importante destacar alguns tópicos para o debate futuro sobre o tema. De plano, efetivamente, o princípio da dignidade humana não pode constituir-se em uma espécie de álibi hermenêutico (STRECK, 2012, p. 40), para utilizar a expressão do autor, de modo à autorizar decisões carregadas de subjetividade, no sentido de arbitrárias/discricionárias.

O princípio da dignidade humana não retira seu conteúdo de instâncias metafísicas, como natureza, religião ou razão, mas do modo de ser das relações intersubjetivas existentes na moralidade política da comunidade, o que determina a impossibilidade de construir-se o sentido de dignidade humana a partir da livre apreciação do aplicador (STRECK, 2012), pois é fundamental na compreensão aquilo que foi erigido, vivenciado como dignidade na comunidade política do Estado Democrático de Direito, conforme menciona Lênio Luiz Streck sobre a normatividade assumida pelos princípios:

Ao contrário, ela retira seu conteúdo normativo de uma convivência in-tersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade política da comunidade. Os princípios, nessa perspectiva, são vivenciados (‘faticiza-dos’) por aqueles que participam da comunidade política e que determina a formação comum de uma sociedade. (STRECK, 2012, p. 57).

Ainda na esteira desse autor, concorda-se com a sua concepção no que tange às relações entre Direito e Moral (STRECK, 2012, p. 226). Relativamente ao princípio em exame, é crível dizer: na medida em que os princípios institucionalizam a moral no Direito, a dignidade humana, sob esta perspectiva, caracteriza-se como um ideal de vida boa para a comunidade, com indicações (de sentido) institucionalizadas historicamente, de autonomia, respeito, liberdade, igualdade, e cuidado.

É elucidativo o entendimento de Ingo Wofgang Sarlet sobre dignidade humana, após percuciente análise de uma perspectiva jurídico-constitucional:

Assim sendo, temos por dignidade humana a qualidade intrínseca e dis-tintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implican-do, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais míni-mas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participa-ção ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (SARLET, 1988, p. 73).

Como aludido, a questão da dignidade humana, considerando as condições de possibilidade de compreensão, é altamente complexa e foge da finalidade espe-cífica deste estudo aprofundar o debate, pois se pretende focar a discussão nos desdobramentos do princípio constitucional da dignidade humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal) no regime jurídico dos servidores públicos, sempre com este olhar hermenêutico. Trata-se de princípio fundamental do exercício das competências administrativas, mas na acepção de fundar algo, de indicar condições de possibilidade para que a Administração Pública exerça sua atividade voltada para salvaguardar no caso concreto a autonomia, o respeito, a liberdade e o cuidado com o cidadão. Cada uma destas indicações comporta uma gama de debates e desdobramentos interessantes, pois qual o sentido da autonomia a partir da história institucional do Estado Democrático de Direito? Igual indagação pode ser feita relativamente ao respeito e a liberdade. De qualquer modo, restrito ao campo de investigação deste breve estudo, não se pode olvidar que a Administração Pública brasileira deve fundar-se ontologicamente para instituir um Estado Democrático de Direito, inclusive nas relações com os servidores públicos. Sem aderir totalmente ao entendimento de Ronald Dworkin, no livro Justiça para Ouriços, há uma questão importante debatida pelo autor sobre a dignidade humana relacionar-se hermeneuticamente com as questões do respeito e da autenticidade (DWORKIN, 2012, p. 211)5, bem como a circunstância de que a dignidade humana tem sido distorcida, em virtude de utilizações abusivas, muitas vezes para simplesmente conferir uma carga emocional ao debate. Contextualizando o tema no horizonte de sentido das relações entre Administração Pública e servidores públicos, é crível dizer que no cotidiano destas relações as competências administrativas devem ser

5 – Sobre o tema ver também Luís Roberto Barroso - A Dignidade Humana no Direito Constitucional Con-temporâneo. A Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial.

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exercidas de modo a garantir a autonomia dos servidores, ou seja, de construir um espaço institucional em que realize suas atribuições com respeito às indicações da Constituição Federal e dos demais textos normativos que erigem uma concepção de vida boa para a comunidade, pois antes de tudo o servidor é também um agente da comunidade política e responsável por construir esta vida boa (DWORKIN, 2012, p. 268-269). Mas, especialmente, é crucial desenvolver a questão do respeito, pois a Administração Pública deve dar importância objetiva para a vida dos servidores públicos, adotando a postura institucional de não prejudicar e não causar danos.

Assim como em relação a todos os cidadãos, o Poder Público tem a obrigação, como refere Ronald Dworkin, de tratar todos com igual preocupação e respeito (DWORKIN, 2012, p. 330). É claro que tais indicações abstratas não fogem daquilo que o autor refere diversas vezes: o conceito de dignidade humana é interpretativo, impondo-se a interpretação com base nas práticas da comunidade política para indicar as ações que caracterizam violação. No âmbito da história institucional, vale a referência de Ronald Dworkin: “Nenhuma nação que considere que algumas pessoas são de raça inferior ou que permite a humilhação e a tortura por divertimento pode afirmar que reconhece uma concepção inteligível da dignidade humana” (DWORKIN, 2012, p. 344).

Portanto, a dignidade humana aparece no Direito Administrativo, e de forma mais específica no âmbito do regime jurídico dos servidores públicos, considerando este horizonte de tradição histórica, de que o homem deve possuir condições existenciais de ser o que ele é, melhor dizendo, na sua humanidade de ser no mundo que exige autonomia, respeito, liberdade e cuidado. A Administração Pública, prioritariamente, deverá assumir a postura de criar tais condições para fazer acontecer o “Cuidado Existencial”. A partir do paradigma aqui trabalhado, compreender a dignidade humana no Direito Administrativo6 importa considerar no seu processo de concretização o cuidado como existencial. A Administração Pública tem como tarefa guardar o servidor público de todo e qualquer tipo de exploração, de entificações que lhe velem a dignidade. Estas são as razões pelas quais alguns dos institutos tradicionais deste ramo do Direito deverão ser repensados.

Os poderes administrativos somente justificam-se na medida em que promoverem tais indicações construídas historicamente e contextualizados no Estado Constitucional. Os atos administrativos, mais do que meras declarações do

6 – Sobre as repercussões de tal teoria de base no campo do Direito ver Lênio Luiz Streck - Hermenêutica Jurídica e(m)Crise; uma exploração hermenêutica da construção do Direito.

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

Estado, são atos de interpretação e a dignidade humana funciona como barreira de sentido, devendo necessariamente ingressar no processo de applicatio7. Logo, não há ato administrativo sem compreensão hermenêutica. Similares repercussões da dignidade humana poderão ser examinadas, o que foge aos propósitos deste breve estudo, relativamente ao processo administrativo, ao tema da contratação administrativa, dos serviços públicos, etc. No entanto, é sempre válida a advertência de Ronald Dworkin, deve-se ter a preocupação de evitar os abusos de linguagem e as distorções de sentido quando se fala de dignidade humana.

Portanto, o texto do inciso III do artigo 1º da Constituição Federal não deve ser compreendido imerso apenas no âmbito da lógica-formal, pois, como bem destacou Ernildo Stein (2004, p. 114):

[...] sabemos que os conceitos sempre têm mais atrás de si do que simples-mente serem funções, ou serem signos. Eles vêm carregados por elemen-tos de valor, de validade, e este caráter de valor ou validade é que faz com que os conceitos não sejam simplesmente abstratos, todos eles formais e abstratos, mas faz com que eles tenham uma certa carga valorativa.

Laborar com a dignidade humana no Direito Administrativo exige por parte dos operadores uma justificação dos seus elementos de referência, da história institucional, do sentido que é construído no mundo da vida do Direito, proibindo utilizações injustificadas ou arbitrárias da dignidade humana. Por outro lado, não há como, a priori, fundar metafisicamente um discurso objetificador sobre a dignidade humana, mas apenas indicar elementos de sentido, até porque não se pode fazer tudo no Direito Administrativo com a bandeira da dignidade humana. Na segunda parte desta pesquisa, o tema referente à dignidade humana será considerado como referência hermenêutica fundamental para compreender o assédio moral, objeto deste estudo sobre a decisão referida do Superior Tribunal de Justiça.

2.2 Assédio Moral e a Dignidade dos Servidores Públicos

O regime jurídico dos servidores públicos, configurado como um conjunto de direitos e deveres, deve ser compreendido a partir do sentido do

7 – Expressão utilizada por Hans-Georg Gadamer dm Verdad y Método I. Fundamentos de una hermenêu-tica filosófica.

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chamado Constitucionalismo Contemporâneo, ultrapassando-se o modo de ser patrimonialista que durante muito tempo foi a característica marcante da Administração Pública brasileira, como destaca Carmen Lúcia Antunes Rocha (1999, p. 117). Como aduz a atual ministra do Supremo Tribunal Federal deve-se entender em termos a afirmação segundo a qual o regime jurídico dos servidores públicos depende de uma decisão política do legislador, pois não há como vislumbrar o conteúdo de direitos e deveres dos servidores públicos fora da Constituição Federal:

Dito de outra forma, tem-se que o regime jurídico do servidor público tem a sua natureza determinada por um conjunto de elementos que se extraem do subsistema constitucional da Administração Pública e que advém do condicionamento desta em razão de seus fins, de sua persona-lidade e de sua competência. (Rocha, 1999, p. 118).

O dever de respeito à dignidade dos servidores públicos é inerente à relação jurídica estabelecida entre Administração e o conjunto de agentes públicos. No caso ora em exame, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 1.286.466, no qual houve a imposição de um castigo, consistente em afastar o servidor do exercício de suas atividades durante três dias, permanecendo todo este período de castigo na sala de reuniões da Prefeitura Municipal, conforme referido no voto da Ministra Eliana Calmon, configurou assédio moral. A questão do assédio moral no âmbito da Administração Pública tem sido tema de investigações interessantes, que retratam exatamente o tema dos reflexos da violação da dignidade do servidor público. Segundo Alexandre Pandolpho Minassa (2012, p. 115):

Entende-se por assédio moral um processo malicioso que manipula a pes-soa envolvida mediante o desprezo pela sua liberdade, dignidade e persona-lidade, com o único intuito de aumentar o poder do agressor por meio da pura eliminação de todos os obstáculos presentes no seu percurso até o topo.

Como menciona o autor, o assédio moral é designado por meio de diversas expressões, como harassment, bullying, whitleblowers, mobbing, sendo que esta última foi uma das primeiras expressões utilizadas, exatamente, para identificar a conduta agressiva dos animais reunidos em grupo e que expulsavam o animal considerado como intruso. Sobre o tema também vale a referência de Maria Gentile (2009, p. 03):

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Si trata di un termine di largo uso in etiologia per descrivere il comporta-mento agressivo di un animale del branco nei confronti di un altro mem-bro del grupo, oppure di un capo isolato, per allontanarlo. (...)Il termine to mob deriva, a sua volta dall’espressione latina ‘mobile vul-gus’, che indica il movimento della gentaglia che aggredisce qualcuno. Nella sua sinteticitá la locuzione inglese è apparsa in grado di descrive-re quelle particolari forme di degenerazione dei rapporti interpersonali nell’ambito lavorativo, le quali si concretizzano in una sorta di aggressio-ne sistematica posta in essere nei confronti di um soggetto, direttamente per opera del datore di lavoro o dei suoi preposti o anche da parte di colleghi della vittima medisima, che provocano un progressivo disadatta-mento lavorativo di quest’ultima.8

Trata-se, portanto, de conduta que afeta a dignidade do servidor público, repetindo-se por um período de tempo e quando é direcionado com o intento de incidir sobre a vítima do assédio moral, relativamente aos aspectos de sua personalidade, como respeito, integridade psíquica, liberdade, autonomia, etc. O assédio moral é praticado no âmbito da Administração Pública com a finalidade de induzir condutas por parte do servidor-vítima consistentes em exoneração ou até requerimento de aposentadoria, na medida em que cria um ambiente de trabalho muito difícil de conviver, pois o servidor é exposto cotidianamente às tentativas de desestabilização emocional e profissional (MINASSA, 2012, p. 129).

Muito embora não exista unanimidade entre os autores quanto aos requisitos necessários para configurar o assédio moral, destacam-se via de regra (a) o conflito deve desenvolver-se no ambiente de trabalho; (b) a ação ofensiva ocorre durante algum período de tempo, alguns meses; (c) desnível entre os antagonistas, encontrando-se a vítima em uma posição constante de inferioridade; (d) intenção de perseguição em relação à vítima do assédio moral como bem recorda Maria Gentile (2009, p. 07). De qualquer modo, não configuram assédio moral condutas isoladas e que também são capazes de causarem danos aos aspectos da personalidade do servidor público.

8 – No mesmo sentido refere Maria Bovino: “Più precisamente per mobbing s’intende una forma di violenza psicologica che si exercita sul posto di lavoro, attraverso gli attachi del datore di lavoro o degli stessi colleghi di lavoro.” (Il Mobbing Dalla Scienza ala Giuris-prudenza), In: www.diritto.it/docs/34076-il mobbing, ISSN 1127-8579, publicado em 17/10/2012. Acesso em: 02 mar. 2014.

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O assédio moral pode ser praticado pelo superior hierárquico, quando se denomina como vertical, ou entre colegas, identificado como assédio moral horizontal, conforme Maria Bovino:

Il mobbing verticale è quello gerarchico. In questo caso gli sono perpetrati dal datore di lavoro o dai dirigenti dell’azienda, verso uno o più dipen-denti per constringerli a dare le dimissioni. Nella stragrande maggioranza dei casi gli altri colleghi stanno a guardare o per cosiddetto ‘quieto vive-re’, o perché semmai sperano di trarne vantaggio professionalmente. Il mobbing verticale si articola in tanti comportamenti vessatori e continui, a volte subdoli, ma che a lungo andare, le stime parlando di 6 mesi – 1 anno -,provocano una situazione di grave disagio psico-fisico nel soggeto mobbizzato. (BOVINO, 2012, p. 05-06).

No caso do Resp nº 1.286.466-RS, o Superior Tribunal de Justiça argumentou sobre a existência de danos à dignidade do servidor público em virtude, inclusive, da existência de ação indenizatória movida pela vítima do assédio moral contra o agente político, cuja sentença foi de procedência. Efetivamente, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao julgar a Apelação Cível 70012479150, manteve a sentença que julgou parcialmente procedente o pedido de indenização formulado contra o agente político, Prefeito do Município de Canguçu, ao pagamento de indenização por danos morais no valor de trinta salários mínimos. Consta no acórdão que a servidora pública sentiu-se humilhada pela conduta praticada, consistente em permanecer durante alguns dias sem ocupação em sala da Prefeitura Municipal, comprovando o castigo aplicado, além de declarações em jornal sobre os fatos. O reconhecimento do ilícito praticado fundamentou-se na prática de atos que causaram transtornos à servidora pública e influenciaram no seu equilíbrio psicológico.

Tal linha de fundamentação aproxima a prática do assédio moral com o tema da violação da dignidade do servidor, sendo que a dignidade aqui, conforme destacado no item anterior, compreende-se como reconhecimento da importância objetiva da vida do servidor público, impondo-se à Administração Pública o dever de não depreciar o valor da vida humana em todos os seus aspectos, como destaca Ronald Dworkin, (2012, p. 295) pois como refere o jusfilósofo, nenhuma nação que permita a humilhação pode afirmar que reconhece uma concepção inteligível de dignidade humana.

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Maria Gentile, ao examinar a tutela de proteção às vítimas de assédio moral, reflete sobre uma das primeiras sentenças que tratou do tema em relação à Administração Pública GENTILE, 2009, p. 78) do Tribunal di Tempio Pausania, sentenza n. 157/2003, na qual se debateu as relações tensas entre servidora e administração, com a alegação de ser submetida a procedimento disciplinar por motivos fúteis, além de ter negada a possibilidade de trabalhar no desempenho específico de suas atividades de agente di pubblica sicurezza, pois colocada para exercer sua atividade em lugar separado dos serviços da polícia municipal, em uma espécie de porão (MASTINO, 2014). O tribunal reconheceu a prática do assédio moral, mobbing, condenando a Administração Pública ao pagamento de indenização pelos danos causados, após uma longa fundamentação para reconhecer a existência de uma conduta de perseguição em relação à vítima do assédio, destacando a necessidade desta conduta ocorrer de forma repetida, prolongando--se por um período considerável de tempo, alguns meses, e dos distúrbios de ordem psicológica causados.

Na medida em que a dignidade humana é um conceito interpretativo, deve-se destacar que possui um caráter hermenêutico deontológico, ou seja, assume uma normatividade que influencia na própria concepção do exercício das competências administrativas, inclusive no exercício da prerrogativa de impor sanções disciplinares aos servidores públicos. Como refere Lenio Luiz Streck, em relação aos princípios jurídicos, “são eles os marcos que permitem a compreensão da história institucional do direito – por isso – eles expressam de modo complexo o momento hermenêutico do direito” (STRECK, 2012, p. 560).

O mesmo vale para o assédio moral, os diversos conceitos devem ser entendidos como conceitos interpretativos e muito mais do que definir um espaço semântico de compreensão, impõe-se discutir sobre sua aplicação no caso, a partir dos deveres de integridade e coerência. Considerando as questões até agora suscitadas, o Superior Tribunal de Justiça, no caso em exame, assumiu a postura de proteger a história institucional da dignidade do servidor público, na qual adquiriu relevância para o julgamento o dever de respeito, proibindo o exercício do poder disciplinar que importe práticas vexatórias e humilhantes, como deixar de castigo dentro de uma sala de reuniões da sede da Prefeitura Municipal um agente público, sem ocupação e com a precípua finalidade de impor-lhe sofrimento.

No entanto, nem toda violação da dignidade do servidor público importa prática do assédio moral. Em nome da dignidade humana não se pode admitir uma espécie de álibi hermenêutico, como refere Lênio Luiz Streck, para compreender

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qualquer violação como prática de assédio moral: a partir de sua própria institucionalização surgem indicações de sentido, mas que atribuem importância ao tempo, ou seja, a repetição, o conjunto de atos reiterados por parte da Administração Pública, atos capazes de causar degradação, desrespeito, humilhação, etc. São elementos importantes para indicar a prática do assédio moral.

Aqui se exige da decisão judicial especial dever de justificação, especialmente pra demonstrar que este conjunto de atos praticados pelo agente público hierarquicamente superior distancia-se daquilo que deve ser vivenciado como ideal de uma vida boa em termos de relação jurídica-administrativa com o servidor público. Outro ponto importante é que esta prática prolongou-se no tempo, elemento crucial como inclusive destacado na citada sentença proferida pelo Tribunal di Tempio Pausania. Com efeito, o que caracteriza assédio moral não pode decorrer da esfera de subjetividade do julgador, mas originar-se da história institucionalizada pela doutrina e jurisprudência, guardando os deveres de integridade e coerência.

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça há decisões recentes enfrentando o tema do assédio moral, mas algumas esbarrando na impossibilidade de reexaminar a prova dos autos, nos termos da Súmula nº 07 do STJ. No julgamento monocrático do ARESP nº 331128, Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 09/12/2013, o agravo interposto foi improvido, mantendo-se a decisão que negou seguimento ao recurso especial interposto pelo Município de Cabo de Santo Agostinho, condenado ao pagamento de indenização por assédio moral. Também versando sobre assédio moral na Administração Pública, o julgamento do REsp 1387608, Min. Hermann Benjamin, j. 14/10/2013, AREsp 344025, Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 09/08/2013 e AREsp 249215, Min. Castro Meira, j. 21.11.2012.

No Supremo Tribunal Federal, por sua vez, há decisão interessante proferida por ocasião do julgamento do AI 807909, Rela. Minª Cármen Lúcia, j. 25.08.2010, na qual manteve a decisão de origem. O caso também versava sobre o tema do dever de indenizar, sendo que a sentença de primeira instância considerou que o Presidente de uma Câmara de Vereadores causou sofrimento e humilhações passíveis de indenização pecuniária. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo manteve a decisão, referindo que estava configurada a ação do agente público no sentido de valer-se da superioridade hierárquica e, no intuito de punir e desestabilizar psicologicamente o autor tratou o servidor público de maneira constrangedora.

Tais indicações jurisprudenciais confirmam o que até então foi referido sobre o assédio moral na Administração Pública: nesses casos há exercício das competências

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

administrativas de modo ilegítimo, ou seja, a atividade administrativa erigida sobre as bases de um Estado Democrático de Direito (artigo 1º da Constituição Federal) funda--se normativamente sobre determinados pressupostos (princípios deontológicos), como o dever de respeito aos servidores públicos, relativamente à sua integridade psíquica, física e moral. Com efeito, o exercício de qualquer poder administrativo em desacordo com tais referências práticas de como administrar bem é capaz de permitir a aplicação de determinadas sanções ao autor do assédio moral, como o dever de indenizar, até sanções de caráter penal e administrativo (GENTILE, 2009, p. 116), conforme as circunstâncias do caso. De qualquer modo, o debate sobre o assédio moral é uma discussão no horizonte do mundo prático do Direito Administrativo, para utilizar a expressão de Lênio Luiz Streck, isto é, o modo como será construída a gestão administrativa, especialmente dos servidores públicos.

3. A ILEGITIMIDADE ADMINISTRATIVA DO ASSÉDIO MORAL: UMA QUESTÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA?

3.1 Administração Pública e (Im)Probidade Administrativa

A questão do assédio moral na Administração Pública relaciona-se com a própria legitimidade do exercício das competências administrativas, como mencionado anteriormente, o que também remete para o debate sobre as relações entre Direito Administrativo e moral. Trata-se de tema há muito discutido na Teoria do Direito e no próprio Direito Administrativo, impondo-se destacar o entendimento segundo o qual muito embora não exista separação, é fundamental coibir eventuais posturas de correção do Direito pela moral, fundadas especialmente em subjetividades e decisionismos, tanto na órbita da Administração Pública quanto do controle jurisdicional9. Não é por outra razão que historicamente debate-se sobre a autonomia da moralidade administrativa, enquanto princípio, ou se não há simplesmente um problema de legalidade, especificamente no que tange à existência de vícios dos atos administrativos.10

Considerando tudo que até aqui foi exposto, é crível sustentar que o assédio moral situa-se neste quadro do dever de bem administrar a coisa pública, consistente

9 – A questão tem sido abordada em diversas obras, como Percorsi Ermeneutici Di Filosofia Del Diritto de Danie-

le M. Torino Cananzi e Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas de Lênio Luiz Streck.

10 – Sobre o tema ver A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública: O conteúdo dog-mático da Moralidade Administrativo de José Guilherme Giacomuzzi.

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na materialização do princípio republicano de agir com ética, probidade, boa--fé, cuidado e respeito relativamente aos servidores públicos. Portanto, impõe-se uma postura de vigilância hermenêutica para evitar decisionismos neste campo, adquirindo importância a justificação das decisões jurídicas.

A moralidade administrativa, artigo 37, “caput”, da Constituição Federal, institucionaliza no exercício das competências administrativas o controle relativamente aos padrões de honestidade, combate aos atos de corrupção e arbitrariedades dos agentes públicos, como refere Juarez Freitas (2013, p. 74):

Segundo este princípio constitucional, estão vedadas condutas eticamente transgressoras do senso moral de honestidade, a ponto de não compor-tarem condescendência ou leniência. Exige-se uma ‘atuação segundo pa-drões éticos de probidade, decoro e boa-fé’. Não se confunde, é certo, a mo-ralidade pública com o repulsivo moralismo, este último intolerante, imoral e não universalizável, por definição. O princípio determina que se trate a outrem do mesmo modo honesto pelo qual se aprecia ser tratado, isto é, de modo virtuoso. O ‘Outro’, aqui, é a sociedade inteira, motivo pelo qual o princípio da moralidade exige que, fundamentada e intersubjetivamente, os atos, contratos e procedimentos administrativos sejam esquadrinhados e controlados à base do dever de a Administração Pública observar, com pronunciada objetividade os referenciais valorativos da Constituição.

A moralidade administrativa, sob a perspectiva hermenêutica adotada neste breve estudo, impõe aos agentes públicos, relativamente às relações com os servidores públicos, o dever de bem exercer as competências e poderes administrativos, seja no campo da hierarquia ou da disciplina, com cuidado e respeito, como alude o autor acima mencionado, o que à evidência, coíbe a prática do assédio moral vertical na Administração Pública, pois coloca em cheque a própria dignidade do servidor. Na medida em que tal conduta ilegítima, que se prolonga no tempo, relaciona-se com o exercício de competências e poderes administrativos, constitui-se materialização de regras jurídicas, pois nas relações intersubjetivas com os seus servidores não se admite atuação da Administração Pública fora de padrões normativos11. Este

11 – Sobre o debate das relações entre moralidade administrativa e legalidade, ver o trabalho de A Mora-lidade Administrativa e a Boa-fé da Administração Pública: O Conteúdo Dogmático da Moralidade Administrati-va, de José Guilherme Giacomuzzi, no qual o autor faz uma análise interessante sobre o entendimento

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O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo

tópico é crucial para evitar tentativas, como já mencionado, de subjetivismos ou correções morais do Direito Administrativo.

No âmbito da improbidade administrativa, exige-se dos agentes públicos o dever de administrar com honestidade, lealdade e cuidado a coisa pública, eis que como menciona Wallace Paiva Martins Júnior, “improbidade, em linhas gerais, significa servir-se da função pública para angariar ou distribuir, em proveito pessoal ou para outrem, vantagem ilegal ou imoral, de qualquer natureza e por qualquer modo, com violação aos princípios e regras presidentes das atividades na Administração Pública [...]” (MARTINS JÚNIOR, 2001, p. 113).12

Também é importante destacar que o tema da improbidade administrativa ocupa o cenário da história institucional brasileira há muito tempo, com previsão desde as Constituições republicanas sobre a responsabilidade do Chefe de Estado, bem como no plano infraconstitucional pela Lei 1.079/50, inicialmente focando o tema com relação ao comportamento pessoal do administrador, até a necessidade de coibir o enriquecimento ilícito no exercício das funções públicas (OSÓRIO, 2013, p. 99). De qualquer modo, não se pode olvidar este aspecto de compreender--se o dever de probidade como importante virtude constitucional do Estado Republicano e Constitucional, relacionada com a má gestão pública, como refere Fábio Medina Osório (2013, p. 97 e 102).

O artigo 11 da Lei nº 8.429/92 disciplina que constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, além das condutas específicas previstas neste dispositivo legal. Trata-se de texto normativo efetivamente capaz de gerar problemas na aplicação e algumas perplexidades, pois não se trata de um ilícito voltado para coibir o enriquecimento ilícito do agente público, propósito este marcante na história institucional da improbidade administrativa brasileira, bem como não se cogita aqui dos casos de atos ímprobos que importam prejuízo ao Erário.

segundo o qual a ideia de moralidade administrativa foi concebida em torno do controle da legalidade

administrativa.

12 – Deve-se destacar o entendimento de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves (2014, p. 183), no

sentido de que a improbidade administrativa não está “superposta à imoralidade, tratando-se de con-

ceito mais amplo que abarca não só componentes morais como também os demais princípios regentes

da atividade estatal [...]”. Tais autores ainda aludem que é perfeitamente possível atos de improbidade

administrativa que não sejam propriamente desonestos.

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No entendimento de Juarez Freitas (2013, p. 157) a configuração desta espécie de ato de improbidade administrativa relaciona-se com “(a) a grave violação ao senso médio superior de moralidade e (b) a inequívoca intenção desonesta do agente”, sendo imprescindível a violação da moralidade e de um ou mais princípios, materializada por ação ou omissão, transgredindo-se os deveres lá citados de retidão e lealdade, como bem destaca o autor. Já Fábio Medina Osório (2013, p. 116) refere o seguinte:

O mais importante é observar a interconexão entre os deveres públicos em comento, pois daí derivará o plexo valorativo conducente à improbi-dade. A mera alegação de violação à legalidade não é condição suficiente, por si só, para embasar imputação de improbidade. O raciocínio acusa-tório haverá de lastrear-se num conjunto significativo de deveres públicos violados, que culminem na ilegalidade, de sorte a alcançar o conteúdo proibitivo da LGIA, e tal cenário só é perceptível a partir de uma funda-mentação explícita do órgão estatal acusador.

Conforme Emerson Garcia (2014, p. 392), o descumprimento da legalidade pode caracterizar a figura descrita no artigo 11 da Lei 8.429/92, como menciona de forma expressa:

Assim, de lege data, afigura-se tarefa assas difícil aceitar o entendimento de que probidade se identifica com moralidade e que o simples descum-primento da lei, ainda que observado um critério de proporcionalidade, não pode caracterizar a improbidade. A Lei n. 8.429/92, mantendo-se em harmonia com o texto constitucional, não estabeleceu distinção ou hierarquia entre os princípios da legalidade e da moralidade, sendo in-jurídica a atividade do intérprete que ignore o texto constitucional e a norma que o regulamentou, culminando em concluir que a não adstrição do agente público à lei não configura a improbidade. (Grifos no original).

Mais uma vez, na linha de investigação aqui adotada, impõe-se, ainda que de forma breve, examinar aspectos da coerência e integridade das decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o ponto. No julgamento do RESP nº 1.414.1933-RJ, 1ª Turma, j. 26/11/2013, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, examinou-se a prática de ato de improbidade administrativa de agente político que intercedeu

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perante autoridade policial para liberação de preso, a fim de comparecer ao enterro de familiar. Na ocasião preponderou a tese segundo a qual o artigo 11 da Lei nº 8.429/92 gerou alguma confusão entre os conceitos de ilegalidade e improbidade, pois segundo os Ministros não se deve concluir que toda ilegalidade determina um juízo de improbidade administrativa. Assim, a decisão foi no sentido de não reconhecer a prática de improbidade, considerando a ausência de dolo na conduta do ex-prefeito em intervir na liberação de preso para comparecimento em enterro de sua avó, pois não se demonstrou a manifesta vontade omissiva ou comissiva de violar princípio constitucional regulador da Administração Pública.

Na trilha desse entendimento, segundo o qual a espécie de ato de improbidade administrativa em análise exige a configuração do dolo, ainda que genérico, da manifesta vontade de realizar a conduta contrária aos deveres funcionais, vale citar o REsp 135.509, 2ª T., Rela. Ministra Eliana Calmon, j. 10/12/2013, REsp 1.377.703, 2ª T., Ministro Herman Benjamin, j. 03/12/2013, e REsp 1320.315, 2ª T., Ministra Eliana Calmon, j. 12/11/2013.

Em contrapartida, destaca-se um conjunto de decisões do Superior Tribu-nal de Justiça que estabelecem premissas diversas para caracterizar o ato de improbidade administrativa do citado artigo 11, como o REsp 1.186.192, 1ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 12/11/2013, por meio do qual examinou--se a conduta de um Prefeito Municipal acusado de aplicar indevidamente recursos públicos e locupletar-se ilicitamente mediante publicação de matéria jornalística com nítido intuito de autopromoção disfarçada de publicidade pública, realizada em determinado periódico jornalístico. O Relator inicia uma linha de argumentação sustentando a impossibilidade conceitual de confundir ilegalidade e improbidade administrativa, na linha já presente em outros precedentes daquele tribunal. Aduz de forma expressa: “toda a aplicação cega e surda desse dispositivo (art. 11 da Lei 8.429/92, caput) leva, sem dúvida alguma, à conclusão judicial (e mesmo quase à certeza ou à convicção judicial) de que toda ilegalidade é ímproba e, portanto, o seu autor (da ilegalidade) sujeita-se às sanções previstas para essa conduta.” Complementa o raciocínio, com o entendimento segundo o qual no artigo 11, da citada lei, a conduta sempre deve ser dolosa, por mais complexa que seja a demonstração desse elemento, e nunca considerada apenas do ponto de vista objetivo. Neste caso julgado, o STJ julgou improcedente a ação de improbidade administrativa, pois não houve a demonstração do elemento volitivo do agente público, isto é, o dolo de ofender os princípios da Administração Pública, para o ato de improbidade administrativa do artigo 11.

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Outro precedente sobre o tema e digno de nota, o REsp nº 1.383.649, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, j. 05/09/2013, no qual foi examinada a conduta de Secretário Estadual da Infraestrutura que utilizou conta diversa daquela estabelecida em convênio, a fim de movimentar recursos financeiros oriundos da União para a execução das obras de duplicação da Adutora do Rio São Francisco. Na motivação do acórdão consta a referência de que os precedentes do STJ orientam-se no sentido da necessidade do dolo genérico para configurar ato de improbidade administrativa por ofensa a princípio da administração. A conclusão foi da impossibilidade de extrair qualquer referência deste elemento subjetivo, considerando a posição adotada desde a sentença de primeiro grau do comportamento do réu, pois não denota intenção vil, desonesta ou corrupta, além da impossibilidade de o STJ examinar o conjunto de provas, por força da Súmula 07.

No julgamento do REsp nº 1.248.529, 1ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 03/09/2013, foi examinado um caso de ato de improbidade administrativa praticado por agentes públicos na contratação irregular de servidores públicos, com o intuito de regularizar a situação de servidores contratados temporariamente. Aqui também se adotou como premissa que eventuais ilegalidades formais ou materiais, cometidas por agentes públicos não se convertem automaticamente em atos de improbidade administrativa, caso não se identifique a vontade deliberada e consciente de agir, ou seja, excluindo-se a possibilidade de improbidade administrativa meramente culposa no caso do artigo 11 da Lei nº 8.429/92. Por fim, a conclusão do julgado foi de que não tendo sido associado à conduta do réu o elemento subjetivo doloso, ou seja, o propósito desonesto, não se pode falar em cometimento de ato de improbidade administrativa, embora seja claro que houve patente ilegalidade.

Considerando tais entendimentos do Superior Tribunal de Justiça, verifica--se recalcitrância e incerteza relativamente aos elementos normativos do caso, suficientes para determinar ou não a prática de ato de improbidade administrativa do artigo 11 da Lei nº 11.429/9213, especialmente com relação ao elemento subjetivo da conduta ímproba, impondo-se problematizar tal aspecto para o caso em exame sobre a configuração de ato de improbidade administrativa pela prática de assédio moral.

13 – A recalcitrância na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foi muito bem identificada por

José Guilherme Giacomuzzi (2013, p. 317).

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3.2 O Assédio Moral como Ato de Improbidade Administrativa no REsp

1.286.466/RS

Relativamente à análise do conteúdo do REsp 1.286.466, de plano destaca-se a possibilidade de uma conduta do agente público, caracterizada como assédio moral, também configurar ato de improbidade administrativa prevista no artigo 11 da Lei n° 8.429/92, mas desde que mantida a coerência e integridade com as indicações mencionadas nos itens anteriores, além do próprio sentido constitucional de improbidade, nos termos do artigo 37, § 4º, CF. A partir de tudo que foi exposto, é crível defender o entendimento segundo o qual o texto normativo citado, ao indicar a violação de princípios da Administração Pública e de deveres como honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, pode abarcar condutas que atentam contra a dignidade dos servidores, com algumas especificidades capazes de caracterizar assédio moral. Mas há efetivamente alguns riscos, como mencionado na jurisprudência do STJ, especialmente a prática de decisionismos ou de utilizar concepções de moralidade com a finalidade de correção das regras específicas do Direito Administrativo.

Por ocasião do julgamento, a Ministra Eliana Calmon estabeleceu algumas premissas do seu raciocínio, após transcrever o conteúdo do artigo 11 aduziu:

Sobre o referido dispositivo, já assentou esta Corte que a tipificação des-sas condutas independe da ocorrência de prejuízo ao erário. Também se pondera neste Tribunal Superior, que nem toda ilicitude é, por si só, ato de improbidade. Ficam de fora do conceito de ato ímprobo as meras irregularidades, não revestidas do elemento subjetivo convincente, que, segundo pacificado nesta Casa se trata de dolo genérico ou lato sensu, consubstanciado na consciência da ilicitude. Dentro deste cenário her-menêutico, cabe a análise dos fatos imputados ao réu na presente ação.

Relativamente à comprovação dos fatos, até em virtude da Súmula nº 07, o STJ adotou as referências constantes na própria sentença de 1º grau que julgou procedente a ação de improbidade administrativa, indicando, portanto, os seguintes elementos e que constam na transcrição de parte da motivação: 1) o réu utilizou-se da função de Prefeito Municipal para vingar-se da servidora pública municipal, obrigando-a a permanecer de castigo na sala de reuniões da prefeitura; 2) o réu agiu por motivo de sentimento de vingança, pois a servidora pública teria levado ao

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conhecimento do Ministério Público Estadual a existência de dívida do Município com o Fundo de Aposentadoria dos Servidores Públicos; 3) o réu ameaçou colocar a servidora em disponibilidade, bem como lhe concedeu, sem solicitação, férias de trinta dias; 4) em entrevista jornalística o réu admitiu o fato e disse que “três dias foi muito pouco para ela”.

Considerando tais elementos de fato, a conclusão do acórdão foi de nítida configuração do assédio moral, com os seguintes motivos:

O assédio moral, mais do que apenas provocações no local de trabalho – sarcasmo, crítica, zombaria e trote -, é uma campanha de terror psicológi-co, com o objetivo de fazer da vítima uma pessoa rejeitada. O indivíduo é submetido a difamação, abuso verbal, comportamento agressivo e tra-tamento frio e impessoal. Esses elementos, se não todos, estão presentes na hipótese.

Deve-se destacar que efetivamente, considerando tais questões de fato, é crível concluir violação da dignidade humana pelo agente político no caso julgado pelo STJ, partindo-se do pressuposto de vislumbrá-la como conceito hermenêutico, na linha do defendido por Ronald Dworkin e explicitado na primeira parte da pesquisa. Adota-se aqui o entendimento de que as competências administrativas, no âmbito do Constitucionalismo Contemporâneo, devem ser exercidas com o propósito de garantir o respeito e a liberdade dos servidores públicos. A conduta do Prefeito, com certeza, duplamente olvidou tais indicações normativas, desrespeitando a servidora ao colocá-la de castigo e com evidente propósito de vingança, adotando prática vexatória. Como já mencionado, a Administração Pública tem como objetivo guardar o servidor público de todo e qualquer espécie de exploração, de entificação que vele a sua dignidade.

Segundo refere Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 73), sobre a dignidade da pessoa humana:

O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dig-

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nidade da pessoa humana e esta(a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.

A configuração do assédio moral, por sua vez, é questão de grande complexidade, exigindo-se um nível maior de justificação, pois na medida em que não há “partículas morais”, como mencionado por Ronald Dworkin, impõe-se a explicitação das indicações que melhor explicam o que é o assédio moral, qual o seu propósito e se, no caso concreto, houve conduta do agente público capaz de caracterizar esta prática. O pressuposto para compreender o assédio moral é a ilicitude de toda e qualquer conduta desenvolvida com o objetivo de manipular o servidor público, implementada mediante atos de desprezo pela dignidade, liberdade e personalidade, como referido por Alexandre Pandolpho Minassa (2012, p. 115).

Como já aludido em item anterior, o reconhecimento do assédio moral passa pelo debate sobre (a) a realização de uma conduta no ambiente de trabalho; (b) a intencionalidade da conduta do sujeito que pratica o assédio moral, (c) a repetitividade da conduta ofensiva e a duração no tempo, sendo que para alguns no mínimo seis meses, (d) desnível entre os envolvidos, no qual a vítima encontre-se em posição constante de inferioridade; (e) configuração do assédio moral conforme desenvolvimento de fases sucessivas e o (f) intento de perseguição (GENTILE, 2009, p. 6-7).

No caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, constata-se a necessidade de maior justificação quanto à caracterização da prática nominada de assédio moral, em que pese o julgado partir do pressuposto de já existir no âmbito da responsabilidade civil decisão do Poder Judiciário condenando o agente público, Prefeito Municipal, ao pagamento de indenização pelo mesmo fato, humilhar a servidora pública obrigando-a a permanecer durante três dias sem ocupação em sala de reuniões da Prefeitura Municipal, bem como em razão de declarações proferidas em veículo de comunicação. Mas não se pode olvidar, não é toda violação da dignidade humana que caracterizará a prática do assédio moral. O dever de justificação é crucial para salvaguardar a própria autonomia14 do Direito Administrativo, detectando-se insuficiência no caso em exame.

De qualquer modo, justifica-se a caracterização do assédio moral no caso, permanecendo o debate sobre a circunstância do período temporal de

14 – Sobre o dever de preservar a autonomia do Direito ver a obra Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica de Lênio Luís Streck.

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repetitividade da conduta ofensiva. É crível compreender que não é possível, como alguns autores italianos, estipular um período (absoluto) mínimo, necessário para a caracterização do assédio moral. Um dos elementos fundamentais deste ilícito é o exercício de competência administrativa em sentido oposto aos propósitos da própria Administração Pública, por exemplo, a partir das indicações do artigo 1º da Constituição Federal. É evidente que nem toda violação da indicação normativa da dignidade humana configura o assédio moral, mas por outro lado reiterar a prática ofensiva por um período de três dias, como no caso em julgamento, é suficiente para o reconhecimento da conduta como tal. A dimensão do tempo não deve ser objetificada, mas considerada na sua devida importância, ou seja, o tempo é aquele suficiente na situação concreta para atribuir um sentido de durabilidade à conduta vexatória perpetrada pelo autor do assédio moral, na medida de sua gravidade, o que só ocorre no âmbito do próprio caso.

Mais uma vez assiste razão a Lênio Luiz Streck (2012, p. 179) quando defende que os princípios materializam-se a luz do caso, não sendo possível compreender a violação de um determinado princípio a partir de entificações abstratas de sentido. Na linha deste mesmo autor, a decisão judicial sobre assédio moral na Administração Pública exige complexa justificação de modo a explicitar o desprezo do agente público que pratica o ilícito, em relação à história institucional do Direito Administrativo, além da regra normatizando a questão em julgamento, institucionalizada pelo princípio da dignidade humana.

Muito embora o acórdão em exame do Superior Tribunal de Justiça não faça referência, até em virtude de sua competência constitucional de velar pela legislação federal, a questão da configuração do assédio moral no âmbito da Administração Pública do Município exige o debate sobre a articulação de sentido da regra de competência do agente público, no caso, Prefeito Municipal. O texto normativo que confere ao Prefeito a representação administrativa do Poder Executivo, além da atribuição de exercer a direção superior da Administração Pública Municipal, deve ser vislumbrado exatamente dentro da história institucional da dignidade humana, na medida em que é vedado exercer a função pública por motivos de vingança e com práticas vexatórias, humilhantes e degradantes da personalidade dos servidores públicos. O princípio da dignidade humana cumpre exatamente o papel de iluminar o texto normativo – regra de competência – no horizonte de sentido das virtudes constitucionais do Estado Constitucional de Direito (artigo 1º, CF).

A questão mais intrincada no julgamento reside na possibilidade ou não de compreender o assédio moral, no caso concreto, como ato de improbidade

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administrativa prevista no artigo 11 da Lei Nº 11.429/92. No intuito de justificar a decisão, assim consta no acórdão do REsp 1.286.466:

A questão é saber se o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa também abrange atos como o presente, configuradores de assédio mo-ral. A Lei 8.429/92 objetiva coibir, punir e/ou afastar da atividade pú-blica todos os agentes que demonstrem pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida. A partir dessas premissas, não te-nho dúvida de que comportamentos como o presente, enquadram-se em atos atentatórias aos princípios da administração pública, pois violam os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às institui-ções, em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferi-mento à impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém. Ademais, consoante já mencionado, está absolutamente caracterizado o elemento subjetivo na hipótese, a título de dolo genérico.

Esse foi o cerne da motivação do acórdão. As decisões judiciais estão inseridas no horizonte de sentido do Estado Constitucional, como já mencionado, inclusive a partir do significado da regra do artigo 93, inciso IX, CF, segundo a qual se exige a fundamentação. Com razão Lênio Luiz Streck quando destaca a importância do “dever fundamental de justificar as decisões”, mencionando que no Estado Democrático de Direito, mais do que fundamentar uma decisão é necessário justificar o que foi fundamentado, constituindo-se em elemento hermenêutico pelo qual se manifesta a compreensão do fenômeno jurídico. No entendimento do autor:

Portanto, por este princípio, é possível discutir a aplicação do direito a par-tir da historicidade de cada ato hermenêutico-interpretativo, isso porque o dever de fundamentar significa uma blindagem contra historicismos e a-historicidades. Com efeito, a historicidade da compreensão se apresenta como elemento fundamental do dever de fundamentação das decisões e, ao mesmo tempo, como pressupostos do princípio do direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada. (STRECK, 2013, p. 341).

Conforme já mencionado, o Superior Tribunal de Justiça possui diversos precedentes examinando o artigo 11 da Lei nº 8.429/92, mas com incertezas

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hermenêuticas sobre a sua caracterização na situação concreta, especialmente no que tange ao dolo, dificultando sobremaneira a necessária reconstrução da história institucional dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública. A situação, inclusive foi muito referida por José Guilherme Giacomuzzi (2013, p. 317-318), ao destacar, após exame dos precedentes daquele tribunal, que não se sabe ao certo o que significa dolo “eventual”, “genérico” ou “específico”.

É crucial examinar a situação concreta, de modo a justificar (hermeneuticamente) a compreensão do ato do agente público como ato de improbidade administrativa previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, especialmente a partir do descumprimento específico e doloso dos deveres funcionais de lealdade às instituições, imparcialidade, honestidade e legalidade. Não é suficiente para uma resposta adequada a alusão solta ao descumprimento de tais deveres, impondo-se a contextualização prática do agir administrativo e do próprio elemento subjetivo. Como já referido, o argumento de princípio exige cuidados redobrados para não impor decisões judiciais marcadas de subjetivismos, sendo que as regras funcionam como materializações de sentidos principiológicos, e, portanto, devem figurar na fundamentação. Ademais, o sentido (conteúdo hermenêutico) do princípio jurídico exige profundo diálogo com a tradição – doutrina, jurisprudência, textos normativos –, caso contrário figurará mais no horizonte da retórica vazia.

O artigo 11, inciso I, da Lei nº 8.429/92, contém uma regra importante sobre condutas que configuram ato de improbidade, qual seja, “praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência”, constituindo-se na vetusta figura do desvio de finalidade. Sobre o dispositivo, vale a seguinte referência:

O desvio de finalidade, além de nulo (desde 1965), simplesmente tornou--se igualmente passível de outras sanções, que podem chegar à perda do cargo e suspensão de direitos políticos. E não há qualquer dificuldade em ver que um ato desviado de sua finalidade fere a “honestidade, imparcia-lidade e legalidade”, conforme dito no caput do art. 11. (GIACOMUZZI, 2013, p.314).

O exercício de competência administrativa, com a deliberada intenção de vingar-se de servidora pública, colocando-a em situação vexatória de “castigo”, pelo prazo de três dias, dentro de uma sala, sem qualquer exercício de atividade

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funcional, além de ameaças sobre colocá-la em disponibilidade, com explícita admissão da conduta por meio de jornal de grande circulação, indica a efetiva prática de desvio de finalidade, pois o agente público sempre deve agir para realizar virtudes constitucionais e não submeter o servidor público à violação da autonomia, dignidade e cuidado.

No entanto, a caracterização do ato de improbidade administrativa do artigo 11 da Lei nº 11.429/92, em virtude da prática de assédio moral, exige justificativa mais qualificada do que aquela utilizada na decisão comentada do STJ, pois o elemento subjetivo (dolo genérico) impõe um conjunto probatório indicando a vontade livre e consciente do agente público ao praticar a conduta objetiva do ato de improbidade administrativa, no caso em análise, a partir do contexto de práticas continuadas que importam tratamento vexatório, discriminatório ou preconceituoso em relação aos servidores públicos (MARTINS JÚNIOR, 2001, p. 226-227).

Registre-se, por fim, a importância do trabalho hercúleo de explicitar os critérios utilizados para bem configurar a prática do assédio moral na Administração Pública e as hipóteses de violação do dever de probidade administrativa, individualizando regras e deveres funcionais olvidados pelo Administrador Público.

CONCLUSÃO

O Superior Tribunal de Justiça, com a decisão proferida por ocasião do julgamento do REsp 1.286-4-RS, ao condenar um agente político pela prática de ato de improbidade administrativa, em virtude de assédio moral contra servidora pública, restabeleceu a sentença proferida por juiz de 1º grau, que julgou procedente a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público. Com efeito, manteve-se a aplicação das sanções previstas no artigo 12, inciso III, da Lei nº 8.429/92, de suspensão dos direitos políticos pelo prazo de três anos, pagamento de multa civil de cinco vezes o valor da remuneração percebida à época do fato e a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.

A decisão possibilitou o debate sobre tema ainda pouco explorado no Direito Administrativo, qual seja, o exercício da competência administrativa e a prática do assédio moral na Administração Pública.

Não há como desvincular da história institucional do Direito Administrativo o dever constitucional dos agentes políticos de respeito, cuidado e práticas que

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preservem a liberdade e dignidade dos servidores públicos. Inserido neste contexto, o assédio moral assume a proporção de um conjunto de práticas ocorridas no âmbito do serviço público, que, como no caso julgado pelo STJ, originando-se do administrador em relação aos servidores hierarquicamente inferiores, articula-se como um conjunto de comportamentos vexatórios e contínuos, provocando danos de ordem psicológica ou física na vítima de assédio.

É crível admitir o exercício da competência administrativa com desvio de finalidade e violando os deveres de imparcialidade, legalidade, honestidade e lealdade às instituições, conforme o artigo 11, “caput” e inciso I, da Lei nº 8.429/92.

No entanto, o assédio moral não pode ser utilizado sem o pressuposto básico do dever fundamental de justificar as decisões judiciais, sob pena de abrir o campo para subjetivismos, permitindo o ingresso da moral no Direito Administrativo como elemento de correção. Na mesma trilha, a caracterização do assédio moral como ato de improbidade administrativa. Não há dúvida da necessidade de construir uma tradição hermenêutica sobre tema tão significativo para o Estado Democrático de Direito, inclusive por força do próprio § 4º do artigo 37 da Constituição Federal. Mas, deve-se ter um conjunto de critérios seguros sobre probidade administrativa, permitindo aos agentes públicos o devido respeito à coerência e integridade das indicações jurisprudenciais, doutrinárias e normativas, pois somente assim o exercício da atividade administrativa deve ser capaz de institucionalizar um ideal de viver bem, fundado nas virtudes constitucionais de autonomia, respeito, liberdade e cuidado com os servidores públicos.

REFERÊNCIAS

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ORGANIZADORES:DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER |CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CAROLINE RITT | CLÁUDIA DE BARROS GEHRES |CYNTHIA JURUENA | DENISE FRIEDRICH | DIÓGENES V. H. RIBEIRO | EDUARDASIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | IVAN LEOMAR BRUXEL | JANRIÊ RECK| JAYME WEINGARTNER NETO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER |KARINE SANTOS | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | MAURO EVELYVIEIRA DE BORBA | NEREU GIACOMOLLI | NEWTON BRASIL DE LEÃO | RAFAEL BRANDINI| RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL

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