Temas Direito - UERN · Boaventura de Sousa Santos. Reitor Pedro Fernandes Ribeiro Neto Vice-Reitor...

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Temasde

Direito Público

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Realização:

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Temasde

Direito Público

Temasde

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Revisão

Lauro Gurgel de BritoJailson Alves Nogueira

Inessa da Mota Linhares VasconcelosHumberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo

Capa e aRte

Luiz Eduardo Costa FirminoKenofe Tauã Santos Bezerra

DiagRamação

Amanda Veríssimo da Silva

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“Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioza; temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza“.

Boaventura de Sousa Santos

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ReitorPedro Fernandes Ribeiro NetoVice-ReitorFátima Raquel Rosado MoraisDiretora de Sistema Integrado de BibliotecasJocelânia Marinho Maia de OliveiraChefe da Editora Universitária – EDUERNAnairam de Medeiros e Silva

Conselho Editorial das Edições UERN

Emanoel Márcio NunesIsabela Pinheiro Cavalcante LimaDiego Nathan do Nascimento SouzaJean Henrique CostaJosé Cezinaldo Rocha BessaJosé Elesbão de AlmeidaEllany Gurgel Cosme do NascimentoIvanaldo Oliveira dos Santos FilhoWellignton Vieira Mendes

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sumáRio

Apresentação 6

Capítulo 1: A contribuição da nomeação de advogado “ad hoc” para o encarceramento da população negra 8 Francisca Amanda Lima Pires, Victoria Bica de Freitas e Bruna Barbosa Landim de Carvalho

Capítulo 2: Crianças no cárcere: uma solução inviável adotada no Brasil 26Isac Bruno Oliveira de Carvalho e Nara Lívia Carlos de Castro Pinheiro

Capítulo 3: Políticas públicas de redução de danos como alternativa à criminalização das drogas: uma avaliação de eficiência 40Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade

Capítulo 4: Corrupção ideológica dos valores e princípios da justiça restaurativa pelas facções criminosas 66Jailson Alves Nogueira e Lauro Gurgel de Brito

Capítulo 5: Direito à busca pela felicidade: perspectiva constitucional 92

João Batista D. de Medeiros Neto, Lucas Lima Silva e Sara Adna dos Santos Bessa

Capítulo 6: Ensino da constituição federal nas escolas brasileiras: uma capacitação para o pleno exercício da cidadania 110Francisco Edson de Medeiros Silva, José Augusto Lima da Silva e Leandro Rogério Nunes Mendes

Capítulo 7: O direito e a literatura: uma análise acerca dos direitos fundamentais no contexto do conto negrinha de Monteiro Lobato 124Dione Célida do Nascimento

Capítulo 8: Produção legislativa exacerbada como um dos elementos para o ativismo judicial e uma dificuldade para o direito 139Victor Rodrigues Bezerra Pontes

Capítulo 9: Transporte como direito social: da constituicionalização simbólica ao transconstitucionalismo 156Lauro Gurgel de Brito e Jailson Alves Nogueira

Capítulo 10: Dignidade da pessoa humana e a igualdade substancial 184Humberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo

Capítulo 11: Majoração da requisição de pequeno valor como alternativa à morosidade da prestação jurisficional: efeitos da lei estadual 210nº 10.166/2017 na 2ª vara da fazenda pública da comarca de Mossoró-RN para os credores maiores de 60 anosHildeglênia Thaísa Ferreira de Mendonça e Inessa da Mota Linhares Vasconselos

Capítulo 12: Educação e responsabilidade civil do estado ante o novo regime fiscal 230Ionara Maressa Macedo da Rocha e Rosimeiry Florêncio de Queiroz Rodrigues

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ApresentAção

O surgimento das universidades, a partir do ano 1150, com a fun-dação da universidade de Bolonha, possibilitou a construção de um mo-numental edifício do conhecimento, notadamente pela disseminação do pensamento crítico, que acabaria por ser o ponto de fusão para as grandes transformações sociais no curso dos acontecimentos. Foi o conhecimento científico, produzido pelas universidades,quepermitiu,v.g.,oaperfeiçoamentodarazãoe,porconseguinte,ali-bertação da sociedade do misticismo excessivo de outrora, que por mi-lêniosreduziuoconhecimentodosfenômenosdouniversoaoquehaviasido escrito nos livros sagrados. Os gregos antigos já alertavam para a necessidade do conheci-mento crítico, como instrumento de compreensão tanto dos aconteci-mentos naturais, quanto dos sociais. Por isso, separavam a gnose vulgar, dacientífica.Aoprimeiro,sentenciavaPlatão,cabiaameraopinião,acognição adquirida pela simples observação do espaço em sua volta, noqueelechamoudedoxa.Jáosegundo,buscavaidentificararealidadedascoisas,ou seja, identificaovalordoconhecimentoporviadeumjuízocrítico,queogênioplatônicodenominoudeepisteme. GiordanoBrunofazanálisesemelhanteaovaticinarqueoolharintelectualseriaoúnicocapazdedimensionaroinfinito,ouseja,com-preenderarazãodascoisasquenãoestãovisíveisaosimplessentido.Assim,avisãodointelectoeracapazdeultrapassarohorizontepróximo,campodealcancedoolhobiológico.EssaanálisedeBrunoidentificaoconhecimentocríticocomoochafarizdaverdadecientífica. O espírito acadêmico encontra na episteme de Platão ou no olhar intelectual de Giordano Bruno sua essência, sua plântula existencial, sua base de verdade. Nesse sentido, a Constituição Federal (1988) estabeleceu, por via de seu artigo 207, que as universidades “obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, estabelecendo, assim,osfundamentosdaeducaçãosuperioremterritórionacional. A lei deDiretrizes e Bases da Educação – Lei nº 9.394/96, a

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quemcouberegularaeducaçãonoBrasil,estabeleceu,emseuartigo43,asfinalidadesdaeducaçãosuperiornopaís,realçando,noincisoIII,quecabeasIES“incentivarotrabalhodepesquisaeinvestigaçãocientífica,visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e di-fusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive”. AFaculdadedeDireitodaUniversidadedoEstadodoRioGran-de do Norte, cumprindo sua complexa missão acadêmica, constituída a partirdacoalizãodevetoreshistóricos,científicos, jurídicosesociais,lançaapresenteobra,produzidapordocentesediscentesdocurso,como objetivo de apresentar o resultado dos estudos e pesquisas desenvolvi-dos no âmbito da faculdade. Olivroencontra-seestruturadoem12(doze)capítulos,tratandode temas variados e contemporâneos do direito, todos escritos a partir de reflexõesdeprofessoresealunosduranteaspreleçõessemanais,aden-sando, à dogmática, a análise crítica sobre a ciência jurídica. Aconcretizaçãodessedesafioémaisumpassonaconsolidaçãoda tri-dimensão do conhecimento crítico na Faculdade de Direito daUERN,tornandorealidadeoensino,aextensãoeapesquisa,aotempoemqueseconstituinofio-de-ariadnenaformaçãocientíficadacomuni-dadejurídicapóstera.

Os organizadores

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A contribuição da nomeação de advogado “ad hoc” para o encarceramento da população negra

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Francisca Amanda Lima Pires¹Victoria Bica de Freitas²Bruna Barbosa Landim de Carvalho³

1 Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected] Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected] Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected]

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Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a inconstitucio-nalidade da nomeação de advogado “ad hoc” e a forma como este ins-tituto contribui para que os indivíduos mais desfavorecidos socialmente não tenham acesso a uma defesa plena no trâmite de uma ação penal. IssocorroboraparaqueoSistemadeJustiçanãoparticipeativamenteno processo de solução dos problemas ligados à criminalidade, e sim paraqueelesirvademodeloinquisitorialparaapopulaçãonegra.Diantedisso,faz-senecessáriaumareflexãocríticaacercadesseinstituto,poiso direito à ampla defesa é um dos pilares doEstadoDemocrático deDireito.Emprincípio,oobjetivodapesquisafoianalisarseanomeaçãodo advogado de exceção contribui para a efetivação do direito à ampla defesa.Emseguida,procuramosverificaraformacomoestadefesacon-

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tribuiparainflaçãodapopulaçãocarceráriacompostaemsuamaioriapornegrosepobres.Ométodoaplicadoparaaproduçãodotrabalhofoiodocumental,bemcomobibliográficoeestatístico,baseando-seemumapesquisaquali/quantitativa.Nossoaporteteóricoseconduziráemauto-res, taiscomo:GilmarMendes,WlamyradeAlbuquerque,JúlioJaco-bo Waiselfisz,GilbertoMaringoni,entreoutros.Apartirdaanálisefeitasobreainfluênciadadefesa“ad hoc”paraoinflamentodapopulaçãocarcerária, chegamos à conclusão de que esta tem contribuição direta para o encarceramento da população negra, visto que, os indivíduos mais vulneráveis são compostos em sua maioria por negros e estes, devido à sua carência econômica, não temoportunizada a contrataçãodeumadvogado.

Palavras Chave: AdHoc,Encarceramento,PopulaçãoNegra.

Abstract: Thisworkaimstoanalyzetheunconstitutionalityoftheappoint-mentof lawyer“adhoc”andhowthisInstitutecontributes tosociallydisadvantaged individuals don’t have access to a full defense in the pro-cess of a criminal action. Corroborating so that the justice system does not participate actively in the process of solving the problems linked to the crime, for which he serves as inquisitorial model for the black population.Giventhis,itisnecessaryacriticalreflectionaboutthisIns-titute, because the right to ample defense is one of the pillars of the de-mocraticStateoflaw.Inprinciple,theobjectiveoftheresearchwastoexaminewhether the appointment ofAttorney effective exception theright to ample defense in your fullness. Then, we try to verify how this defencecontributestoinflationoftheprisonpopulationmadeupinyourblack and poor majority. The method applied for the production of the work was the documentary, as well as statistical and bibliographic, based onaqualitativeresearch/quantitative.Our theoreticalcontributionif itwill result inauthors,suchasGilmarMendes,WlamyradeAlbuquer-que, Júlio Jacobo Waiselfisz, Gilberto Maringoni, among others. From theanalysison the influenceof the“adhoc”Defensefor the inflationof the general population, we have come to the conclusion that this has direct contribution to the incarceration of the black population, the most vulnerable individuals are made in your black majority and these, due to

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your economic shortages, to obtain access to justice, are assisted by the publicdefender’sOfficewhichmakesthiskindofDefense.

Keywords: AdHoc.BlackPopulation.Incarceration.

INTRODUÇÃO Deacordocomagarantiadodevidoprocessolegal,todoserhu-mano tem o direito a uma defesa honesta, que garanta a ele todos os meios para que não seja punido injustamente, partindo do princípio do direitopenalmínimo.Entretanto,éimportantefrisarqueademandaju-diciáriaéelevadaeumadasformasencontradasparasuprirtaldemandafoi encontrada na defesa “ad hoc”, a qual, na tentativa de garantir o maior número de atendimentos processuais, consiste em nomear uma defesa de exceção para o ato, substituindo o advogado de origem, por motivos como o não comparecimento à audiência ou a falta de execução de atos que são essenciais ao processo. Visto isso, é importante lembrar que além da ampla defesa, aConstituiçãoFederalde1988emseuartigo5º,caput,afirmaaigualda-de de todos perante a lei, o presente artigo discute acerca da inconsti-tucionalidade do advogado “ad hoc”, o qual consiste na nomeação do advogado de exceção para alguns atos do processo, e no vínculo desse instituto com o encarceramento em massa da população negra. Dessemodo,partindodedadosestatísticosequalitativos,épos-sível que se faça uma ligação direta entre o instituto “ad hoc” e o núme-ro elevado de negros que estão encarcerados? O objetivo central do trabalho busca analisar se a nomeação do advogadodeexceção,defato,garantedemaneiraeficazodireitoàampladefesaeaoprincípiodaisonomia.Posteriormente,procuramosverificarde que modo esse instituo contribui para a clausura em massa da popu-laçãonegra,vistoque,essaéamenosfavorecidanoâmbitoeconômicoe social, sendo a que mais busca a defensoria pública, por conseguinte, sendo a mais atingida pelo instituto “ad hoc”. Apesquisatemocunhoquali/quantitativo,executadopormeiodeestudosdocumentais,bibliográficoseestatísticos,quevisam,emsuamaioria, compreender a realidade da população negra e comparar a rea-

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lidade material com a realidade formal, prevista na Constituição. Oaporteteóricoutilizadofoioqueversasobreatemáticacons-titucional (GilmarMendes), racial (Wlamyra deAlbuquerque), socio-lógica(JúlioJacoboWaiselfisz), entre outros autores que dialogam com temática. No primeiro momento, abordaremos acerca da importância de umadefesamaterialmenteeficaznarelaçãotríadeprocessual,juntocoma defesa da inconstitucionalidade do advogado “ad hoc”. Logo após,iremos tratar do encarceramento em massa da população negra, em seu aspectoestruturalequantitativo,edecomo,especificamente,essaspes-soas são as mais prejudicadas pelo sistema de defesa estudado.

INCONSTITUCIONALIDADE DA DEFESA “AD HOC” Historicamente, delimitou-se que o processo teria três figurasindispensáveis, e que sem uma delas, haveria uma afronta crassa à re-gulação da justiça e à perpetuação das garantias do individuo de, por exemplo,serresponsabilizadocriminaloucivilmenteatravésdeatosquenão o garantissem paridade das partes ou um processo justo. Esta“trindade”,pois,éumagarantiaconstitucionalqueemmui-torepresentaàsociedade,poisfoiconquistadaapósperíodossombrios.TendocomoexemploaIdadeMédia,ondeo ius puniendi era uma prer-rogativaparticulardoReiedeseusvassalos,aspenasaplicadaseramle-gitimadasatravésdoscritériosdemoralidadeadotadosautocraticamen-te,eembasadostambémemmísticasdaIgrejaCatólica,épocanaqualmuitoinocentesmorreramsempossibilidadedecontraditórioedefesa,garantiasmínimasprocessuaisque,naépoca,tornavam-segarantiasmí-nimas existenciais. Nestesentido,vê-seaimportânciadaexistênciadeumjuiznatu-ralaoprocesso,ouseja,quefoipré-constituídonosautosparaquepossajulgá-lo imparcialmente dispondo de todos os meios e atos processuais paratanto.Oartigo5°daConstituiçãodaRepúblicaFederativadoBra-silemseuincisoXXXVIIéenfáticoaotrazerquenãohaverájuízooutribunal de exceção, sendo tanto um princípio norteador da aplicação e interpretação dos diplomas legais, quanto um direito fundamental indi-vidualecoletivo,possuindoeficácia erga omnes.

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Oreferidoartigotraztambémcomogarantiaqueninguémseráprocessado nem sentenciado por autoridade que não seja competente para tanto, ou, ainda que por autoridade competente, não poderá ser despoja-do de sua liberdade ou de seus bens sem que seja observado um processo legaldevido,ouseja,semaformaestabelecidapelaordemjurídica.Es-tes mandamentos constitucionais possuem um âmbito de proteção alar-gado,exigindoumaposturaderespeitonãosomentedaquelesquefazemparte da relação processual ou que atuem diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, abrangendo todos os sujeitos, instituições eórgãos,públicoseprivados,queexercem,diretaouindiretamente,fun-çõesqualificadascomoessenciaisàjustiça(MENDES,2017). Todas estas disposições constitucionais têm o condão de evitar arbítriosdoEstado,noexercíciodoseudireitodepunir,bemcomodaspessoas que o representam, durante a persecução penal. Sendoumprincípioconstitucionalimplícitoquedecorredoprin-cípiodojuiznatural,tem-seafiguradopromotornatural,queporserim-portanteàproteçãodosinteressesdifusosecoletivos,gozadeautonomiae independência equiparável, tendo o exercício da ação penal nos casos maisrelevantesecustososaoEstado.E,porisso,viu-seanecessidadedeserconcretizadaestaproteçãoemsujeitosdotadosdeindependência,ouseja,quenãoestejamsobcauteladeoutroórgãonaassunçãodeatribui-ções,quedeverãoserclaraseconhecidas.Alémdisso,emumatentativadesergarantidamaiortransparênciaeproteção,tantoaoEstadoquantoao jurisdicionado, vedou-se a indicação de acusador para atuar em casos específicos.TalestipulaçãosevêexpressanaCartaConstitucionalemseuartigo129Parágrafo2°e3°,ondeasfunçõesdoMinistérioPúbli-co só podem ser exercidas por integrantes da carreira, e seu ingressofar-se-á mediante concurso de provas e títulos, garantindo a isonomia e impessoalidade nas admissões. Diante exposto, resta a figura do defensor em relação à tríadeprocessual.Sendoelementaraesta,odefensoréoquegaranteaode-mandado em um processo judicial que este terá andamento devido, e que teráconsigoumaampladefesa.Semasuapresença,oprocessoénulodeplenodireito,poisnãohájustiçasemapossibilidadedecontraditó-rio.Paraestagarantia,oconstituinteversanoart.133queoadvogadoéindispensável à administração da justiça, e que este, nos limites legais, possui inviolabilidade em relação aos seus atos e manifestações no exer-

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cíciodasuaprofissão. Traz, ainda, que aDefensoriaPública é instituição essencial àfunçãojurisdicionaldoEstado,incumbindo-lheaorientaçãojurídicaeadefesa,emtodososgraus,dosnecessitados,naformadoart.5º,LXXIVedoArt.134daConstituiçãoFederal.Diantedessasnormas,éassegura-daagarantiadaplenitudedadefesa,poisestatemafinalidadedegarantirque haja um julgamento justo, e não arbitrário. TalpremissatambémseencontraemdiplomasinternacionaisaosquaisoBrasilésignatário,comoéocasodoPactoInternacionalSobreDireitosCivisePolíticosdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas,queemseuartigo14,garantequetodapessoaacusadadeumdelitoterádireitoa diversas garantias individuais e processuais mínimas, dentre elas a de apresentar-se em julgamento e a defender-se pessoalmente ou ser as-sistida por um defensor de sua escolha; a de ser informada, se não tiver defensor, do direito que lhe assiste a tê-lo e, sempre que o interesse da justiçaoexija,aquesejanomeadoumdefensoroficioso,gratuitamente,senãocarecerdemeiossuficientespararemunerá-lo(n. 3, “d”). Nessediapasão,dispõetambémaConvençãoAmericanadeDi-reitosHumanosdaOrganizaçãodosEstadosAmericanosemseuart.8º,§2º, “d”e “e”queédireitodoacusadodedefender-sepessoalmenteou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livrementeeemparticular,comseudefensor.Assimcomoédireitoirre-nunciávelodeserassistidoporumdefensorproporcionadopeloEstado,remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defenderelepróprionemnomeardefensordentrodoprazoestabelecidopela lei. Entretanto,apesardedeterminaçõesexaustivas,aocontráriodoocorridoemrelaçãoàvedaçãodepromotoresejuízesdeexceção,aCar-ta Constitucional não proíbe a possibilidade de nomeação de advogado de exceção ou comumente chamado “ad hoc”, que em tradução ipsis lit-terissignifica“paraoato”,sendoumafiguraamplamenteaceitaperanteosTribunaisSuperiores.Esteadvogadoédesignadopelojuízocomain-cumbência de prestar defesa quando o defensor constituído pelo acusado deixa de auspiciá-lo, seja faltando uma audiência, seja praticando um ato que não seria de sua incumbência. Nesse sentido, visa-se a concretização do princípio do devido processo legal. Entretanto, este princípio divide-se em dois outros, que

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severificanoseuviésformal,enoprincípiodaplenadefesa.Nocasodanomeação de advogado “ad hoc”,oprincipiosóépostoempráticapeloseuviésformal,poisqueéagarantiadetodosprocessaremeserempro-cessadosmediantenormasestabelecidaspreviamenteparatanto,ficandoo acusado carente de uma defesa materialmente e concretamente efetiva, que seria a defesa plena. Dessemodo, o direito de defesa não se resume a um simplesdireito de manifestação no processo, essa manifestação há de ser pro-veitosaecompetente,sendovérticedeumcontraditóriofundamentadoeaptoapromoverdebate.Pois,semumadefesaeficazrestaprejudicadaaefetivatutelajudicial,principalmenteseestaérequeridaemumprocessoda seara criminal, que pelo princípio da fragmentariedade, protege tão somente valores imprescindíveis para a sociedade. É prejudicada pelo motivo de ser árdua a defesa em um processo pelo qual não há conhecimento do teor dos autos, e sem maior endenta-ção com as partes da demanda. Ditoisto,éinequívocoodesequilíbrioprocessual,poisexistirãoasfigurasnaturaisdojuizedopromotor,queforampré-constituídasepossuemtotalsegurançanamatérianarrada,aopassoqueadefesaserámal exercida, por ter suas prerrogativas limitadas, agindo somente pro forma. Ou seja, quando se fere o princípio do devido processo legal na suaconcepçãodita“material”(dadefesaplena)tambémháocompro-metimento do princípio da paridade de armas, situação extremamente gravosaaoacusado.Sendoumaafrontaàsdisposiçõesconstitucionaisque são taxativas em relação ao devido processo legal ao acusado e o seu direito de defesa. Face ao exposto, torna-se demonstrado que não somente o direito aumjuizepromotornaturalénecessárioparaumaefetivaconcretizaçãododireitoàampladefesa,comotambémodireitoaumdefensornatural.Visto que, não há o que se falar em objetivação de um processo justo quandonãosetemprofissionaisentranhadosnoscasos,ouseja,quandoestes foram incluídos de modo a não ter um real conhecimento dos autos e das partes. Havendo,dessaforma,apenasaconcretizaçãoformaldodireitoàampladefesa,caracterizando,detodaforma,ainconstitucionalidadedanomeação do advogado “ad hoc”, em se tratando do art. 5°, parágrafo LIV (princípio do devido processo legal), como tambémuma afronta

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diretaaomandamentoquetrazaincumbênciadaDefensoriaPúblicadecumprirafunçãojurisdicionaldoEstado,ofertandoorientaçãojurídicaeadefesa,emtodososgraus,aosnecessitados(art.134).

ENCARCERAMENTO DA POPULAÇÃO NEGRA Considerando que os institutos processuais não existem em si mesmos,verticalizandoosseusreflexosmediataou imediatamentenomundofático,éimperativoquesejafeitaumaanálisecríticadequemodoeatéquepontoanomeaçãodoadvogado “ad hoc” tem a contribuir para as problemáticas sociais enfrentadas pelo Brasil, problema este conside-radopormuitossociólogosomaislatenteatualmente,queéasituaçãodonegroencarceradoetodoomacrosistemaqueservedeinvólucroaestefenômeno. Como sendo o último país a abolir a escravidão, oBrasil, atéhoje,contacomosefeitosnefastosdesta,eumdeleséasuaorganizaçãosobaégidedomitodaDemocraciaRacial,comideiailusóriaqueporsetratar de um povo miscigenado, todos os indivíduos atuariam sob bases iguais de representatividade e que ocupariam tambémde forma igualos espaços sociais. Contudo, de acordo com a historiadora Wlamyra de Albuquerque,emseulivro:Ojogodadissimulação–AboliçãoeCida-dania Negra no Brasil (2009), o racismo no Brasil tem diferença, pois, alémdesepautarporpráticaseintençõesdissimuladas,buscasilenciarsobreaquestãoracialaopassoqueapolitiza.NocontextodaAméricalatina,eprincipalmentenoBrasil,oracismoéumgrandeengodoparaa instituição de relações sociais igualitárias, apresentando-se sob forma estrutural,demodoquenãoháinstituiçãoquefiqueforadeummodus operandi de perpetuação da opressão à população negra. Levandoacabo todoessearcabouçohistóricoeaconsideradaideia de igualdade que precisava ser substancialmente difundida, a Cons-tituiçãodoBrasilafirmaemseuartigo5ºque“todossãoiguaisperantea lei, semdistinçãodequalquernatureza”equeapráticado racismoconstituicrimeinafiançáveleimprescritível,sujeitoàpenadereclusão,nos termos da lei. Posteriormente, vem editar uma lei para tratar dos crimesresultantesdepreconceitoderaçaoudecor,queéaLei7.716de5deJaneirode1989,comoobjetivodealcançardeformaespecíficao

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mandamentoconstitucionalnoquedizrespeitoàsuaclarificaçãoquantoa conceitos e penalidades. Em se tratandode legislação internacional ao qual oBrasil sesubmete,háaConvençãoInternacionalsobreaeliminaçãodetodasasformasdediscriminaçãoracialdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas.Con-venção esta em que os países membros convencidos de que a existência de barreiras raciais repugna os ideais de qualquer sociedade humana, se comprometem a adotar todas as medidas necessárias para eliminar rapi-damente esse tipo de discriminação em todas as suas formas, prevenindo e combatendo doutrinas e práticas racistas. Entretanto,apesardetodososavançosobtidos,comoapresençadediplomaslegaistratandoexclusivamentedamatéria,adiscriminaçãoracial ainda não foi superada, manifestando-se desde o imaginário da populaçãoaténasgrandesinstituiçõesquedividemopoder,noprópriosistemaderepressãoestatal,esuasfacetas,comoodiscursocriminoló-gico atual e a dinâmica da política criminal. E tal assertiva é de fácil compreensão coma breve análise dealguns dados a seguir apresentados: DeacordocomaPesquisaNacionalporAmostradeDomicílio,divulgadapeloIBGE(InstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística),em2015,osnegrosepardos representavam54%dapopulaçãobrasileira,massuaparticipaçãonogrupodos10%maispobreseramuitomaior:75%.Oquenosinfereéque,apesardeapopulaçãonegrasermaisvo-lumosa, essas pessoas não possuem representatividade no mercado for-maldetrabalho.SegundoosdadosapresentadospeloIBGE,em2016,mesmocompondo54%dapopulaçãobrasileiraemidadedetrabalhar,osnegrossomavam62,6%dosdesocupados.Alémdisso,aparticipaçãoemtrabalhosformaisdapopulaçãobrancaerade68,6%,ondeapopulaçãopretaoupardaaparececom54,6%.Entretanto,setratandodetrabalhossemCarteira deTrabalho e Previdência Social assinada, a populaçãopretaoupardaaparececommaioríndice21,8%,emcomparaçãocomapopulaçãobranca14,7%.Aconsequênciadiretadetaisíndiceséque,pornão terem participação ativa e em massa no mercado de trabalho, estas pessoas são relegadas a uma categoria de indivíduos que são invisibili-zadossocialmenteemercadologicamente. Ajustificaçãoparaissosedánofatode,apósaAboliçãodaescra-vaturaemmaiode1888,apopulaçãonegraantesescravizadafoiposta

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àprópriasorte,semumapolíticadetransiçãoparaoregimedetrabalholivre.Docontrário,paraocuparospostosdetrabalhoquesofreramredu-çãoemseusquadros,foramtrazidasaoBrasilmãodeobraEuropeia.Otrabalhoinformaleosubempregodesdeaquelaépocatêmcomomaioriaa população negra. Nesse sentido, foi criada uma dinâmica da não participação des-saspessoasnosgrandescentrosurbanos,poisforammarginalizadosin-clusivegeograficamente,dificultandosuaparticipaçãoemprojetosso-ciais,culturais,educacionaisedelazer,jáqueessasatividades,emsumamaioria, se concentram onde a população negra não tem acesso. Todos esses aspectos contribuíram para que fossem criados grandes nichos habitacionais nas grandes cidades, o maior deles são as favelas. Outro aspectodestefenômenoéainviabilizaçãodarepresentatividadedestaspessoas nas casas de poder e de participação política. DeacordocomoMapadoEncarceramento(2015),quantomaiscresce a população prisional no país, mais cresce a proporção de negros encarcerados, inferindo que tanto o encarceramento como as mortes vio-lentasnopaíssãofocalizadasnapopulaçãojovemenegra.Essascons-tatações denunciam uma seletividade etária e racial da política criminal no país. Nesse sentido, em números absolutos, em 2005 havia 92.052 negrospresose62.569brancos;considerando-seaparceladapopulaçãocarceráriaparaaqualhaviainformaçãosobrecordisponível,58,4%eranegra.Jáem2012havia292.242negrospresose175.536brancos,ouseja,60,8%dapopulaçãoprisionaleranegra. DeacordocomoFórumBrasileirodeSegurançaPública,acada100 vítimas de homicídio, 71 são pessoas negras.Com fenômeno dohiper encarceramento da população negra, somado ao fato de serem a parte da população que mais morre anualmente, tem-se que o povo ne-gro brasileiro não é somentemortofisicamente por conta de relaçõesinterpessoais,ourepressãopolicial,aconteceoutrotipodemorte,queéasimbólica,emqueasubjetividadedapessoaénegada,poisquandoal-guémadentraosistemaprisional,dificilmenteserápossívelreconstituirsua dignidade de modo pleno. Quantoàsprisõesquesãoefetivadas,segundooLevantamentoNacionaldeInformaçõesPenitenciárias(2017),oBrasiléoterceiroco-locadonorankingmundialdepaísesquemaisprendem.Eessasprisões,emsuamaioriasãosobmedidaprovisória.Ouseja,boapartedapopu-

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laçãocarcerária,atentando-seaofatodeque40%énegra,nãotevesuaprisão sob vistas de uma autoridade judicial mediante sentença transitada emjulgado.Porconseguinte,pode-seconstatarqueoSistemadeJustiçanão tutela esses indivíduos de forma adequada, pois que não possuem seuscasosatentamenteanalisadosporoutraautoridade,alémdapolicial,sendo uma afronta direta às garantias constitucionais supracitadas. Seaanálisetranscendeoparâmetroétnico,épossívelconstatarque,aindasegundooLevantamentoNacionaldeInformaçõesPeniten-ciárias (2017), os tipos penais que mais levam as pessoas ao encarcera-mentosãooscrimesderouboefurto,somando37%etráficodedrogas28%.Diantedisso, é admissível interligaropercentualdecrimesquemaisprendemcomassuas formasdecombate.Nocasodo tráficodedrogasaprincipalpolíticausadaparaseuconfronteéfeitademaneirarepressiva, carecendo o Brasil de vislumbrar as drogas como problema de saúde pública, de forma a implementar políticas públicas efetivas vol-tadas para esta área, bem como para a área da educação e de assistência socialcomobjetivoàconscientizaçãopopulacional. Alémdomais,apósotráficodedrogas,podemosperceberqueoCódigoPenalemsi,bemcomoaconsequenterepressãopolicialestãomais voltados à proteção de mercadorias, do que mesmo à bens mais ele-mentares,comoaintegridadefísicaeavida.EmsetratandodoCódigoPenal,essaafirmativasetornanítidaquandocomparamosalgunstipospenais e suas respectivas penalidades, por exemplo: o crime de lesão cor-poralemqueapenamáximaéde1anodetençãocomparadoaocrimedefurtoemqueapenamáximaéde4anosdereclusão,ondesuasformasqualificadastambémapresentampenasdesproporcionaisquandocompa-radas.Outroexemplo,ainda,éocrimederouboemqueapenamáximacominada chega a 10 anos de reclusão, ultrapassando, inclusive, a pena máximaparaocrimedelesãocorporaldenaturezagravíssimaqueéde8anos,ondebemjurídicotuteladoéindiscutivelmentemaiselementar. Quandosefalaemrepressão,umdadoinstiganteéqueoBrasilpossuiemmédia50milhomicídiosporano,esomente8%doscasossãosolucionados.Apontandoqueamaioriadestescasososseusresponsá-veisnãosãopunidos,numacomparaçãocomoscasosderouboqualifi-cado,queéosegundocrimequelevamaispessoasaseremencarceradasnoBrasil(WAISELFISZ,2011). Ainda,umapesquisarealizadapeloFórumdesegurançaPública

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(2017),constatou-sequeforam963mortesdebrancosporpartedospo-liciais, contra3.240mortesdenegros, evidenciandoquaseo triplodediferença entre essas mortes. Aoserfeitoodirecionamentoparaestesdoistiposdecrime,apolítica criminal do Brasil tem contribuído diretamente para o encarcera-mento da população negra, pois se estes tipos penais são mais cometidos porpobres,eamaioriapobrenoBrasiléexatamentenegracomoforaapresentado.EmestudorealizadopeloseconomistasJoãoPauloResen-deeMônicaViegasAndradeadesigualdadesocialtemumagrandein-fluêncianocometimentodecrimescontraopatrimônio.Deacordocomtestes,épossíveldelinearumpadrãodeatuaçãodavariáveldesigualdadede renda sobre os indicadores de criminalidade. Para os crimes contra a propriedade, os modelos empíricos apresentam melhor ajuste e revelam estimadoressignificativos,indicandoadesigualdadederendacomoumdos principais responsáveis pela dinâmica das infrações nos municípios com população superior a cem mil habitantes. Além do direcionamento subjetivo, há também um direciona-mentoobjetivo,queacontecemnasfavelas,ondeapopulaçãonegraémajoritária.Empesquisa,divulgadapeloInstitutodePesquisaEconô-micaAplicada(Ipea),acercadoretratodasdesigualdadesdegêneroeraça,entre1993e2007,opercentualderesidênciasqueseencontravamemfavelasousemelhantespassoude3,2%para3,6%,representandoumuniverso de 2 milhões de domicílios e pelo menos 8 milhões de pessoas. Considerando a distribuição de acordo com o chefe da família, tem-se que40,1%dessascasassãochefiadasporhomensnegros,26%pormu-lheresnegras,21,3%porhomensbrancose11,7%pormulheresbrancas.Deacordocomoestudo,essadistribuiçãomostraapredominânciadapopulação negra em favelas, o que reforça a sua maior vulnerabilidade social. Outro ponto analisado, referente à condição de habitabilidade da população,éoadensamentoexcessivo,ouseja,onúmeromuitograndedepessoasnaresidência,tambémnesseaspectoémarcanteadesigualda-dederaçaegênero.Seapenas3%dosdomicílioschefiadosporbrancosse encontram nessa situação, entre as famílias com chefes negros o per-centualmaisquedobra,chegandoa7%. Em contrapartida, em relação à escolaridade, o Data Popular,conformecitadopelaAssociaçãoPaulistadeFundações,apresentouquesomente 5% dos moradores da favela conclui o ensino superior e de 2002

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a2013onúmerodemoradoresda favelaquecursavamoensinofun-damentalcaiude35%para27%,osprincipaismotivosparaevasãodasescolassãoapobrezaeotrabalhoinfantil. Pelo fatodeoEstadonãoestarpresentenessas áreasdeoutraforma senão de maneira repressiva, a falta do acesso a direitos de sub-sistência, torna o meio da ilicitude uma alternativa mais promissora para esses indivíduos. Alémdaconfirmaçãofeitaacercadostipospenaisquemaisen-carceram e de que o enfrentamento desses crimes atinge, em sua maioria, apopulaçãonegra,aindahápossibilidadedeserfeitaoutraratificaçãonotocante à seletividade do direito penal brasileiro, quando se observa que os brancos têm mais acesso a penas alternativas do que os negros. Dadosdeumapesquisarealizadaem2014peloInstitutodePes-quisaEconômicaAplicada(IPEA)sobreaplicaçãodepenasemedidasal-ternativasnoBrasilmostramqueosistemapenaldoPaísémaisrigorosoquandotrata-sedenegros.São57,6%denegroscomprocessosnasvarascriminais,enquanto41,9%sãodebrancos.Porémasporcentagenssãoin-vertidasquandoanalisadososjuizadosespeciais,ondeaspenasalternati-vas são comuns, devido aos crimes de menor potencial ofensivo o qual o juizadotemcompetênciaparajulgar.Nesseâmbito,52,6%dosprocessosemtrâmitesãodebrancos,enquanto46,2%sãoderéusnegros.Então,édefácilconclusãoqueduranteasentença,osnegrosvãoparaomaisgravosodosregimes,queéofechado,relegandoessaspessoasaumam-bientecujadinâmicaécomandadaporumamalhacriminal,aprofundan-do-osnailicitudeedificultandoumasuperaçãodaexperiênciacriminal. Ligandoapolíticacriminalaoracismo,podemosvislumbrarqueosistemaprisionalfuncionacomoumdepósitodepessoasquesãoin-desejadassocialmente.Pois,deacordocoma teoriacriminológica,“apalavra-chaveparaoDireitoPenaléacriminalização,nãoocrime.Acriminalizaçãoincidediferentementesobcadaumdossetoresdasocie-dade, e pelos mecanismos interativos tende a se destinar à população historicamentedesfavorecida.” (RomanoMelo,2016, p.14).SendoumtraçoclarodasituaçãodonegrocriminalizadonoBrasil.Nesseínterim,resta constatado que o racismo no Brasil, principalmente se tratando de políticacriminal,atuacomaafirmaçãodequenegrosnãosãocorposqueimportam, pois estes são relegados à invisibilidade e a deslegitimação social.

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CONCLUSÃO Faceaoexposto,aofazerumacadeialógicaentreaquantidadede pobres que são negros, a sua vulnerabilidade social e a política crimi-naldopaís,podemosconcluirqueosistemapenal,alémdecorroborarpara a continuidade da repressão aos mais desfavorecidos socialmente, pobres-negros,submeteestesaumadefesaineficiente,pois,comovimosacima,amaioriadasprisõessãosobmedidaprovisóriaeamaiorpartedapopulaçãocarceráriaéconstituídapornegros. Diantedisso,tem-sequeadefesa“ad hoc”,alémdainconstitu-cionalidade em si, não está imune a essa política criminal racista, pois os indivíduos submetidos a tal defesa, que deveriam ser os assistidos pela defensoria pública, visto que esta deve garantir a defesa dos mais neces-sitados,sãopobres,consequentemente,negros,comovimosatravésdosdados supracitados. Ademais,adefesadeexceçãofereumdospilaresdoEstadoDe-mocráticodeDireito,bemcomoaigualdade,pois,nestecaso,tambémémeramenteformal,umavezqueoindivíduocompoderaquisitivoteráumadefesamaisqualificadadoqueaquelequesejadesfavorecidoso-cialmente.Exigindo,destemodo,umaatuaçãopositivadoEstadoenãoasuainércia. Dessaforma,podemosconcluirqueesseinstitutoprocessualten-de a contribuir para que não haja umamudança significativa dos nú-merosacimacitados,demonstrandoque,mesmoapósanosdeaboliçãoda escravatura, essas pessoas continuam a sofrer com novas formas de opressão e repressão institucionais e sociais. Alémdomais,necessáriaseriaumapropostadeemendaàconsti-tuição visando positivar a proibição da defesa “ad hoc”, assim como são proibidosjuízesepromotoresnãopré-constituídosnoprocesso,equili-brandoarelaçãotríadeprocessual,afimdegarantirumprocessomaiseficientepossível. Porfim,paraqueestecontextosealtereénecessárioqueodireitobrasileiro e seus respectivos tribunais assumam a sua responsabilidade na apreciação, não somente desse instituto processual, mas de tantos ou-trosconflitosdeinjustiçaslegitimadasestruturalehistoricamente.Esseexercíciode responsabilizaçãosópodeser feitoatravésdeumafasta-

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mentodaconcepçãoliberaldedireitoshumanos,bemcomoatravésdaconscientizaçãodequeosistemadejustiça temoseudeverperanteaaplicaçãoevigilânciadepolíticasqueminimizemtaisinjustiças.

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Crianças no cárcere: uma solução inviável adotada no Brasil..........................................................................

Isac Bruno Oliveira de Carvalho¹Nara Lívia Carlos de Castro Pinheiro²

1 Acadêmico em direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, ex-graduan-do em engenharia mecânica pela Universidade Federal do Rio Grande Do Norte, atualmente no 4º período no curso de Direito e estagiário no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, na Vara de Execuções Penais da Comarca de Mossoró-RN. 2 Acadêmica em direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, atualmente no 4º período no curso de Direito e estagiária no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, na Vara de Execuções Penais da Comarca de Mossoró-RN.

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Resumo: O presente artigo visa analisar a situação de mulheres lactantes e seus respectivos filhos encarcerados, sob uma visão constitucional,juntamenteaoEstatutodaCriançaedoAdolescente(ECA)levandoemconsideraçãooamparoquelhesénecessárioeoqueéfornecido.Ésa-bido que o cenário das prisões brasileiras se enquadra em uma situação nada satisfatória do ponto de vista das garantias fundamentais. Essasmulheres, enquanto mães, se encontram em situações degradantes, uma vezquenãolhessãoasseguradostodososamparosnecessáriosparaoacompanhamento pré-natal, pediátrico, nemmesmo nutricional, destaforma, tornando-senecessárioabordaressaproblemática. Inicialmenteé importante analisar os dados acerca da situação sanitária dos presí-diosbemcomodoacompanhamentomédicofornecido.Emseguida,serápropostoumestudodaproblemáticaàluzdaConstituiçãoFederal(CF)

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emconsonânciacomoEstatutodaCriançaedoAdolescente.Porfim,descreverasituaçãodeabandonoemqueessasmulhereseseusfilhosseencontramperanteafigurapaterna,torna-seumpontoextremamenterelevanteparaconfirmaroerrodolegisladoraodeixarqueessascriançase mães permaneçam em cárcere. Para que essa problemática tenha sido apresentada, foram expostos dados estatísticos sobre a população carce-rária feminina no país, advindos principalmente do Conselho Nacional deJustiça(CNJ)edoDepartamentoPenitenciárioNacional(DEPEN),bemcomoforamcitadososestudosdediversosautorescomo:JoséGa-brieldeLemosBrito, IngoWolfgangSarlet,AndreaRodriguesAmin,DráuzioVarella,entreoutros.Apartirdessesestudos,entende-sequeaatual forma de cumprimento de pena dessas mulheres merece uma reaná-lisemaissensívelehumana,demodoqueoEstadoconsigagarantirqueacriançagozedetodososDireitosquelhessãodestinados.

Palavras Chave: ConstituiçãoFederal.Crianças.Lactante.Pena.Presi-diárias.Saúde.

Abstract: Thisarticleaimstoanalyzeofsituationlactatingwomenandtheirrespective children incarcerated, under a constitutional vision, along withtheStatuteoftheChildandtheAdolescent(ECA).Itisknownthatthe scenario ofBrazilian’s prisonsfit an unsatisfactory situation fromthe point of view of the fundamental guarantees. These women while mothers are in degrading situations, once they are not guaranteed all the necessary support for prenatal, pediatric or even nutritional moni-toring.Inthisway,makingitnecessarytoaddressthisissue.Initially,itisimportanttoanalyzethedataonthehealthsituationoftheprisonsaswell as the medical monitoring provided. Then will be proposed a stu-dy of the problem the light of the Federal Constitution (CF) in accordance withtheThestatuteoftheChildandAdolescent.Finally,todescribethesituation of abandonment in which these women and their children are facedwith the father afigurebecomesan extremely relevantpoint toconfirmtheerrorofthelegislatortoletthesechildrenremaininprison.So that this problem has been presented in themost appropriatewaypossible, statistical data on the female prison population in the country, mainly from the National Council of Justice (CNJ) and the National Pe-

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3 Preconiza que somente o condenado poderá responder pelo fato praticado, pois a pena não poderá passar da pessoa do condenado.

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nitentiaryDepartment(DEPEN),aswellasthestudiesofseveralauthorssuchasJoséGabrieldeLemosBrito,IngoWolfgangSarlet,AndreaRo-driguesAmin,DráuzioVarella,amongothers.Fromthesestudies,itisunderstood that the current form of punishment of these women deserve amoresensitiveandhumanreanalysissothattheStatecanensurethatthechildenjoysalltheRightsthataredestinedtothem.

Keywords: Children.FederalConstitution.Health.Lactating.Penalty.PresidingOfficers.

Introdução Esteartigoapresentaaproblemáticadepresaspreventivasesen-tenciadas que são, ao mesmo tempo, lactantes dentro de ambientes pri-sionais. Foi necessário enquadrar esse tipo de questão, tanto com concei-tos e princípios que a Constituição Federal aborda, quanto os aspectos biológicosesanitáriosquepõememriscoasaúdedasmesmasedeseusfilhos. Oobjetivodesteartigoédemonstrarcontradições/irregularida-des existentes entre os princípios e normas constitucionais e o caso con-cretodaslactantesdosistemapenitenciáriobrasileiroedeseusfilhos.Inicialmentefaz-senecessárioanalisardadosacercadasituaçãosanitá-ria,bemcomodoacompanhamentomédicodentrodoambientecarcerá-rio,trazendoumaperspectivaConstitucionalarespeitodoprincípiodaintranscendência da pena³ objetivando mostrar ao leitor o cenário em que as crianças encarceradas se encontram. SerápropostotambémumestudodaproblemáticadentrodaLeiMaioremConsonânciacomoEstatutodaCriançaedoAdolescente,oqual trará a visibilidade de que direitos garantidos a Criança estariam sendosuplantadoscomanormatizaçãovigente. Outrossim,éválido tambémdescrevera situaçãodeabandonoemquemãesefilhosseencontramperanteafigurapaterna,sendoessaquestão discutida sob a análise da mulher se tornar a única responsável

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principal do seu descendente, devendo exercer o papel de educadora com a obrigação de não o deixar a margem da sociedade e consequentemente torna-lo mais propício a criminalidade. Apesquisaserárealizadapormeiodeumestudoteóricosobreoassuntoemquestão,utilizandocomobasenormativaaConstituiçãoFederal,oEstatutodaCriançaedoAdolescenteeoCódigodeProcessoPenal,alémdevisõesdeautoresqueversamsobreoSistemaPenitenciá-rioeocumprimentodepenadelactantes(JoséGabrieldeLemosBrito),o olhar acerca da diferença de gênero acentuada no âmbito carcerário (DráuzioVarella),bemcomoautoresqueabordamoDireitopropriamen-tedito(IngoWolfgangSarleteAndreaRodriguesAmin),comointuitode coletar informações relevantes acerca da problemática.

CRIANÇAS NO CÁRCERE: UMA SOLUÇÃO INVIÁVEL ADOTADA NO BRASIL SegundolevantamentosfeitospeloConselhoNacionaldePresasGrávidaseLactantes,órgãocriadopeladeterminaçãodaMinistraCár-menLúciaediretamenteligadoaoConselhoNacionaldeJustiça(CNJ),durante o ato jurídico do Habeas Corpus coletivo(HC143.641/SP),empublicação feita em janeiro de 2018, constatou que havia 622 presasgrávidas ou lactantes no sistema penitenciário nacional, cumprindo elas sentençasjudiciaisouprisõespreventivas.Entreelas,haviacercade249detentaslactantes,cujaspenitenciáriastambémalbergaramosfilhosdasmesmas,sendoquenemtodosospresídiosdecustódiasãoexclusivosparaabrigarmulheres/criançasnessasituação.Ouseja,menoresquees-tavam cumprindo a pena juntamente com suas genitoras e sob a tutela do Estado.Dianteexposto,AjuízaauxiliardapresidênciadoCNJAndre-maradosSantosfalaque:

Ascriançasnãotêmnadaavercomocrimequesuasmãescometeram. Temos de lembrar que a vida delas está em jogo, pois nem todas as mulheres possuem condições processuais paraestarememprisãodomiciliar.Asunidadesdevemgaran-tirassistênciamédicamínimaaofilhoeàmãe,acessoaopré--natal,porexemplo.(AgênciaCNJdeNotícias,25/01/2018)

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O que reforça o questionamento sobre crianças vivendo dentro de ambientes prisionais.

A SITUAÇÃO SANITÁRIA DO CÁRCERE Emboraasituaçãoentrejaneiroejulhode2018,segundoames-mapesquisa,tenhaamenizadonotocanteàquantidadedebebêsqueresi-dem em Complexos Penitenciários junto às mães, ainda há crianças nes-sa situação desfavorável, com acesso limitado às assistências prestadas peloEstado.Semoacessocorretoàsaúde,principalmente,avidadosmesmosestarãocomprometidas.SegundooMinistériodaJustiça,nosdados apontados em agosto de 2017, expõem que:

8605 profissionais de saúde estão cadastrados noCadastroNacionaldeEstabelecimentosdeSaúde(CNES)nosistemaprisional.Noentanto,apenas1.112sãomédicos.

Considerandoque, noBrasil, há cercade607731presos, há aproporçãode546,5detentosparaumúnicomédicoatender,demonstran-do,assim,queoEstadonãopossuiacapacidadedetutelarcomdigni-dade nem os detentos que custodia, menos ainda bebês de presidiárias, cujasaúdeébemmaisdebilitada.Nãoésóquestãodesaúde,hátambémoutras necessidades que devem ser observadas para garantir uma boa qualidade de vida aos mesmos. SegundooestudiosodosistemapenitenciáriobrasileiroJoséGa-brieldeLemosBrito,emsuaobraAsmulherescriminosaseseuTra-tamentoPenitenciário,de1943,citaqueaprevisãoqueexisteempe-nitenciárias do Brasil, como o Complexo Penitenciário de Bangu, por exemplo, situações que permitem o cárcere de bebês junto às mães ape-nadaséequiparávelàprerrogativa legalpresentenoCódigoRocco,oCódigoPenaldaItáliaFascista,de1930.Nelaestavacontidaaprevisãodepermanênciadosfilhosdedetentascomasmãesemprisõesnospri-meiros anos de vida da criança. Diante exposto, é possível acionar dispositivos constitucionaisque se enquadram na problemática em questão, principalmente, o Princí-piodaIntranscendênciadaPenaImposta,asseguradanoart.5°,XLV,da

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ConstituiçãoFederal.Otextoconstitucionaldiz:

Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contraelesexecutadas,atéo limitedovalordopatrimôniotransferido.

Ou seja, somente o condenado responderá pelo fato praticado, maisninguém,poisapenadevepermanecernapessoadocondenadoepor ela deverá ser cumprida as respectivas sanções judiciais. Nos casos em questão, manter bebês de presidiárias junto a elas nocárcereéumaclaraviolaçãodoprincípiofundamentalqueaConsti-tuição assegura anteriormente dito, demonstrando uma verdadeira con-tradição existente entre o texto normativo e o caso concreto. Além disso, segundo os presentes dados prestados pelo CNJ,dentre1478presídiospresentesnoBrasil,apenas32%possuiunidadesfemininase3%dasmistas(queabrigampresoshomensemulheres)têmberçáriosoucentrosdereferênciamaterno-infantil.Nãosóisso,somente5%dasunidadesfemininascontamcomcreches.Parademonstraraindamais a gravidade dessa situação, em março de 2018, o CNJ publicou in-formações sobre as inspeções feitas nos Centros Penitenciários que cus-todiam gravidas e lactantes. No tocante:

Emalgunspresídios,elassequeixaramdaofertademarmitascom alimentos podres, em outros, a completa falta de assis-têncianutricional,médicaepré-natal.Umdosprincipaispro-blemas constatados pela equipe do CNJ foi a falta de regis-troevacinaçãodebebês.NoDistritoFederal,porexemplo,quatro bebês não haviam recebido a dose devida da vacina chamada BCG, que previne a tuberculose.

Diante da situação exposta, podemos constatar que, noBrasil,não há, de fato, presídios adaptados para esse tipo de situação, e sim uma improvisação do espaço prisional, criado primariamente para homens, quepassouareceberasapenadasemquestão.SegundoaautoraSantaRita(2007,p.75):

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[...]a mulher quando inserida no contexto de privação de li-berdadeapresentaumasériedeparticularidadesqueserela-cionamcomàssuasprópriascondiçõesbiogenéticas:o“sermãe”; o período de gestação; a fase de lactação, a separação dosfilhosquenascememambientesintramuroseextra-mu-ros, para citar algumas.

Ou seja, os presídios em si não são apropriados para o cumpri-mento de pena de mulheres lactantes, bem como suas particularidades.

VISÃO NORMATIVA/PRINCIPIOLÓGICA Tomandocomobaseo art. 5°,L,daConstituiçãoFederal: “àspresidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer comseusfilhosduranteoperíododeamamentação”.Entretanto,essascondições asseguradas pela Carta Magna devem ser dignas e que evitem aviolaçãodaintegridadedobebê/criança.Mas,levandoemcontaasin-formaçõesacimaexpostas,vê-seaverdadeirainviabilidadedecustódiadessas crianças em ambiente prisional, sendo assim, aplicado o disposi-tivo de forma a ser considerada incorreta. Outrodispositivoquesefaznecessárioapontar,éoEstatutodaCriançaedoAdolescente,onde,emseuart.15,dizque:

Acriançaeoadolescentetêmdireitoàliberdade,aorespeitoe à dignidade como pessoas humanas em processo de desen-volvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e so-ciais garantidos na Constituição e nas leis.

OqueremeteafaladeIngoWolfgangSarlet,aodefiniradignidadedapessoa humana como:

...a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que ofazmerecedordomesmorespeitoeconsideraçãoporpartedoEstadoedacomunidade, implicando,nestesentido,umcomplexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degra-dante e desumano, como venham a lhe garantir as condições

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existenciaismínimasparaumavidasaudável,alémdepropi-ciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinosdaprópriaexistênciaedavidaemcomunhãocomosdemaissereshumanos.(INGOSARLET,2001,p.60).

Em análise, é uma violação de tal artigo normativo o relativocárcere do menor junto à mãe em presídios, já que este, em um centro que priva a liberdade, prejudica o exercício de atividades fundamentais queasleisgarantemaomenor,comoporexemplo,olazer,presentenoart.6°,daCF,queversasobreosDireitosSociais,bemcomoàliberdade,direito existente no art. 227 caput daLeiMaior,oqualserefereaodeverdafamília,dasociedadeedoEstadoperanteacriança,oadolescenteeojovem. Retomando a pesquisa realizada pelo CNJ, percebe-se que háumdéficitdeacompanhamentonutricionaladequadoaessasdetentas,econsequentementeaosseusfilhos.SegundoAndréaRodriguesAmin,nolivroCursodeDireitodaCriançaedoAdolescente(2010,p.32)“Asaú-depelaalimentaçãoéumarealidade.Promoverumanutriçãoadequadasignificaprevenirdoençasdecorrentesdedesnutrição,carênciadealgumnutrienteouobesidadeinfantil”.Dessaforma,seanutriçãoadequadaéa base para o bom desenvolvimento, a permanência destes, encarcerados em ambiente totalmente inadequado a sua estadia, torna-se algo inaceitá-vel,umavezqueapenadeveseraplicadaunicamenteassuasgenitoras. Éprecisoatentar-setambémaquestãodorecém-nascidoporta-dordenecessidadesespeciais.Assuntopoucoabordado,masdenature-zarelevante,éoolharhumanizadodolegisladorfrenteàpossibilidadedessasmãesdaremaluzacriançascomalgumtipodedeficiência.Sãoclaros os motivos que tornam inviável a permanência das genitoras nos presídios, umavezque aqueles dotadosdeberçários já possuemumaestruturaprecáriaeésabidoqueoEstadonãotemamenorcondiçãodeproporcionaratendimentomédicoetratamentosespecíficosaosdeficien-tes. Ademais,oECA,emseuart.18, cita: “Édeverde todosvelarpela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamentodesumano,violento,aterrorizante,vexatórioouconstrange-dor”. Osprimeirosanosdevidadeumjovemsersobcustódiaemuma

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penitenciáriapassaaserconstrangedorparaomesmo,umavezquenin-guémquerteralembrançadoiníciodasuainfânciadentrodeumaprisão,sendo que, em situações convencionais, estes poderiam ter recordações de momentos em família e em lugar adequado, sendo assegurados seus direitos e garantias fundamentais. Ter desenvolvimento mediante um ce-nárioinapropriadofez-setraumático/tormentosoemumperíododavidatãoimportanteedelicado,fazendocomqueapena,defato,ultrapasseafiguradaapenada,entrandoemdesconformidadecomoPrincípioCons-titucionaldaIntranscendênciadaPena. Tendo em vista os questionamentos anteriormente apontados no texto,énotórioqueprecisamser implantadasnovasmedidasparatra-tarocasoemquestão.Inicialmente,emanalogiaaoart.318,V,doCPP,ondedizque:“Poderáo juizsubstituiraprisãopreventivapeladomi-ciliarquandooagente formulhercomfilhodeaté12 (doze)anosdeidade incompletos”, deveria este dispositivo ser estendido às mulheres sentenciadasaoregimefechado.Comisso,caberiaaoJuízodeExecuçãoPenaleaosmembrosdoMinistérioPúblicoacompanharoscasosqueseenquadram nessa problemática, aplicando a pena de forma regular e que possibilite a criação das crianças por suas mães condenadas.

O ABANDONO NO CÁRCERE FEMININO, BEM COMO A FUNÇÃO DA MULHER COMO CHEFE DE FAMÍLIA O cumprimento de pena privativa de liberdade por mulheres se diferenciadoshomensnãosónoladofisiológico,mastambémnoladosocial.ConformeditopelomédicoeautorDráuzioVarella,emseulivro“Prisioneiras”, publicado em 2017, aponta que a maior diferença entre um homem e uma mulher quanto ao cumprimento de pena na cadeia éoabandono.Segundoomesmo,umagrandeprovadissoéagrandediferença existente entre o número de visitas íntimas recebidas por um detento do sexo masculino, em comparação a uma detenta do sexo femi-nino.Paraomesmo,aausênciadevisitaíntimafazolaçoexistenteentreaspresaseseuscônjugesseperdercompletamente.Nãosetrataapenasdesatisfaçãosexual,mastambémcomoformademanutençãodelaçosfamiliares.

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Aquestãotambémultrapassaoladodasvisitasíntimas.Afamíliabrasileira, em sua maioria, abomina com mais facilidade a mulher presa. Como se a prisão tivesse uma conotação sexual para as mulheres. Com isso, entes da família e do meio social que pertencia à presidiária que está cumprindo pena em regime fechado, por exemplo, a abandona em detrimentodesuacondiçãocomotransgressora.Essasituaçãoébastantediferente com relação aos homens que cumprem pena no fechado, onde em dias de visita, suas esposas, pais e amigos passam a frequentar os presídios para vê-los. Aindanessesentido,atravésdapesquisadesenvolvidapeloDe-partamentoPenitenciárioNacional,noLevantamentoNacionaldeInfor-maçõesPenitenciáriasdoanode2016,otráficodedrogaséresponsávelpor62%doencarceramento feminino.Alémdisso,amaioriadasmu-lheresenvolvidascomotráficoentraramporintermédiodeseuscom-panheiros, e acabam abandonadas quando presas.Asmulheres presaspor tráfico, emgeral,não sãoprotagonistasdaaçãocriminosa, e sim,ocupam um papel secundário. Quando sentenciadas pela ação crimino-sa, o então companheiro a abandona, recrutando outra secundária para amovimentaçãodotráfico,deixando-aabandonadacompletamentenopresídio. Todoessecontextodeabandonoédefundamentalimportânciapara o questionamento de que a mulher passa a assumir a condição de chefedefamília,alémdeadquiriraresponsabilidadedecriarseufilhosolitariamente. Como será possível a criação de uma criança por uma mãequeseencontraatrásdasgradesenãopossuininguémparaauxilia--la?Deixaracriançapresaseráaformamaisadequada? Nessescasosconcretos,abasefamiliarétotalmentedesestrutura-da com o cumprimento de pena de regimes cujas mães estão custodiadas naspenitenciáriasdopaís.Comisso,épossívelaferirqueodesamparosofridopelosfilhosduranteocumprimentodepenadamãe,casosejamseparados, torna a criança mais suscetível a ser uma transgressora da lei. O que seria uma política de prevenção da criminalidade, deixando a mãe custodiada, passa a ser um fator desencadeador da do mesmo. Enocasodemanteracriançajuntoàmãeempenitenciárias,cujoambienteétotalmenteinapropriadoparaosseuscuidados,poderápre-judicar o seu desenvolvimento como pessoa, psicologicamente falando, alémdesofrerriscosdesaúde.

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Emdecorrênciadisso, éde fundamental importância a criaçãode novas medidas para o encarceramento feminino, que não considere apenas a maternidade e gestação, mas integrá-la em políticas de resso-cializaçãopelotrabalho,estudo,ouporoutrosmeiosmaishumanizados,quepossibiliteareingresso,alémdacriaçãodeseusfilhos. No tocante à argumentação exposta, entende-se que a melhor forma para o cumprimento da pena, nessas situações, poderia ser por meiodaprisãodomiciliarmediantemonitoramentoeletrônico,fixandoumprazoinicialdeacordocomcadacaso,verificandoposteriormentea necessidade de prorrogação (processo de individualizaçãoda pena).Nessas situações que envolvem lactantes e gestantes é importante tersensibilidade e a máxima aproximação de cada caso, não se podendo normatizarumprazoespecíficonoCódigoparaenglobartodasassen-tenciadas/preventivas.JáqueoDireitoéumaciênciahumana,nãoseriaadequadoenquadrarpessoasemumestadodetantadelicadezaaocensogeral que a lei cobre. Dianteoexposto,asmedidasqueoBrasiladotaatualmentecomrelação as lactantes sentenciadas ou presas preventivas ainda não resol-vemintegralmenteaproblemática.Entende-seentãomaisviável,nessescasos,arealizaçãodeprisãodomiciliarcomousodetornozeleiraeletrô-nica como forma de ter maior controle sobre as mães durante o cumpri-mentodesuapenasemdeixarqueacriançagozedosseusdireitos.Dessaforma,éimprescindívelumolharmaissensívelehumanoporpartedosmembros do funcionalismo público, sejam eles, principalmente, os inte-grantes do legislativo e do judiciário, para enquadrar os casos concretos emformashumanasdecumprimentodepena,equenãointerfiramnavida de mais brasileiros que venham a nascer.

CONCLUSÃO Esteartigobuscouanalisarasituaçãocarceráriademulhereslac-tantes,bemcomoadeseusfilhosencarcerados,sobavisãoconstitucio-nal,acrescidadasnormaspresentesnoEstatutodaCriançaedoAdoles-cente(ECA). Tendo como base o primeiro objetivo do texto, apresentado como uma análise da situação sanitária a que são submetidas as detentas lac-

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tanteseseusrespectivosfilhos,temosumacomprovaçãoclaradasitua-çãodegradantedentrodospresídios.DiantedasinformaçõesdivulgadaspeloMinistériodaJustiçaepeloConselhoNacionaldeJustiça,expõeque, no Brasil, não há condições mínimas para abrigar uma criança em presídio,tantopelaausênciadeassistênciamédica,quantopelasques-tões de infraestrutura. Com relação à pontuação, todos esses aspectos tiveram uma breve análise sobre o direito, com o objetivo de reforçar a oposição entre a norma e a realidade. Emseguida,foiiniciadaaanáliseconstitucional,juntamentecominterpretaçõesdasnormaspresentesnoEstatutodaCriançaedoAdo-lescente.Dianteoexposto,épossívelconferirasdiversascontradiçõesentreprincípios,comoodaIntranscendênciadapena,anormativabrasi-leira e o caso concreto existente. Porfim, há retratadono texto a situaçãode abandono emqueas mulheres encarceradas são submetidas pelo meio familiar, afetivo e social.Nessa situação, fica evidente o papel damulher como a chefefamiliar, bem como a impossibilidade de assumir tal papel em virtude do cárcere. Foi exposta a verdadeira adversidade sofrida pelas mulheres que cumprem pena em presídios, acrescida da necessidade de novas medidas alternativas para a sanção penal. Aqui, foramapresentadosmeiosquepoderiamsolucionar essaproblemática,entreelesousodetornozeleiraseletrônicas.Alémdisso,houve a instigação para que os legisladores e membros do judiciário dis-cutam mais sobre o tema e tenham um olhar mais sensível e justo sobre a situação.

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Políticas públicas de redução de danos como alternativa à criminalização das drogas: uma avaliação de eficiência

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Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade¹

1 Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduado em Direito pela Uni-versidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Advogado.

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Resumo: Asdrogasseconsubstanciamemumsérioriscoàsaúdedaspes-soas,razãopelaqualpolíticaspúblicasforamelaboradasnosentidodemitigar suaoferta,demandaedanosque lhes sãoassociados.Aabor-dagemestatalse fundaprincipalmentenacriminalizaçãodascondutasrelacionadasàssubstânciaspsicotrópicas.Paralelamente,foramelabora-das políticas de redução de danos, nas quais se tratam as consequências do uso de drogas, alternativamente (mas não opostamente) à persecução criminal.Importante,então,avaliaraeficiênciadessasmedidas,emumaponderaçãoentreoesforçodispendidopeloEstadoeosresultadosobti-dos,sempreemcontraposiçãoàeficiênciadapolíticadecriminalizaçãodas drogas.

Palavras-chave:Drogas.Reduçãodedanos.Eficiência.

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Abstract: Drugsconstituteaseriousrisktopeople&#39;shealth,whichiswhy public policies have been designed to mitigate their supply, demand and damages associated with them. The state approach is based mainly onthecriminalizationofconductrelatedtopsychotropicsubstances.Atthe same time, harm reduction policies have been developed, which ad-dress the consequences of drug use, alternately (but not oppositely) to criminalprosecution.Itisimportant,therefore,toevaluatetheefficiencyof these measures, in a weighting between the effort expended by the Stateandtheresultsobtained,alwaysincontrapositiontotheefficiencyofthepolicyofcriminalizationofdrugs.

Keywords: Drugs.Harmreduction.Efficiency.

1 INTRODUÇÃO

Umavezqueasdrogasrepresentamriscoàsaúdeeincolumidadepública, bens fundamentais que integram a noção de dignidade da pessoa humana, políticas estatais foramelaboradas no sentido de reduzir suaoferta,demandaedanosque lhessão inerentes.Proibirecriminalizaroconsumoecomercializaçãodassubstânciasconsideradas ilícitaséaabordagemutilizadapeloEstadocomopromessadecumprirtaisobjeti-vos. Entretanto,nãoobstanteaescassezdepolíticascujofocosedêa partir da compreensão do problema da saúde pública decorrente do consumo de drogas, as poucas existentes são dignas de estudo, tais como descriminalização,diversificação,intercâmbiodeseringas,tratamentosmédicoscomfoconaprescriçãoousubstituiçãodedrogas,hábeisquesão a mitigar o risco de morte por overdose e exposição às doenças rela-cionadas com o uso de estupefacientes. Sãoaschamadaspolíticasdereduçãodedanos,emqueométodonão é o combate às drogas, senão às suas consequências. Importante,pois,conhecê-laseaferiraeficiênciadessaspolíticaspúblicas.Paratan-to, se levará em conta a implementação de medida alternativas à crimina-lizaçãonaSuíça,Holanda,Uruguai,Grã-BretanhaePortugal,bemcomoos resultados delas decorrentes.

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2 AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Reconhecidaanecessidadederesolverumproblemapúblico,to-mada em apreço as várias soluções possíveis, selecionada e praticada algumas delas, o Estado avalia de que forma tal política pública estálaborando.Essaavaliaçãotambémérealizadaporváriosoutrosatores,interessados na efetividade das políticas públicas em apreço, os quais tambémseenvolvemnoquepertineaofuncionamentoeefeitosdasres-pectivas ações governamentais, com o desiderato de expressar seu apoio ouoposiçãoou,ainda,decobrarmudanças(HOWLETT,2013). Dessa forma,o conceitodeavaliaçãodepolíticaspúblicasdizrespeito,demodogeral,aoestágiodoprocessoemqueseverificacomouma ação governamental, de fato, está se desempenhando no mundo real.Relaciona-secomaavaliaçãodosmeiosquesãoempregadoseosobjetivosquesãoounãoatendidos(HOWLETT,2013). Submetidaàavaliação,oproblemaeassoluçõesenvolvidasemtornodaspolíticaspúblicaspodemserintegralmenterepensadas.Emca-sos tais, o ciclo pode voltar ao estágio da montagem da agenda ou, ou mesmooutrosecundário,como também,ainda,emumareformulaçãoprofundadoproblema,incluindoatéatotaldescontinuidadedapolítica(HOWLETT,2013). No âmbito das politicas públicas, podem ser avaliados os seus processos,quantoaosmétodosorganizacionais,oesforço,noquetocaaquantidade de insumos (inputs) do programa, o desempenho, em relação aos produtos do programa (outputs),eficiência,sobreoscustosdapolíti-capúblicaeeficácia,quantoàadequação,implementação. Aavaliaçãodaspolíticaspúblicasdereduçãodedanossedaránocampodaeficiência,numaponderaçãoentreoesforçodispendidopeloEstadoeosresultadosobtidos,sempreemcontraposiçãoàeficiênciadapolíticadecriminalizaçãodasdrogas.

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3 RESULTADOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REDUÇÃO DE DANOS A principal política pública dirigida amitigar os danos decor-rentes do uso de drogas tem uma abordagem jurídico-penal: trata-se da criminalizaçãodasdrogas.Mais recentemente, têmsurgidoumanovaforma de enfrentar o problema de saúde e segurança pública, decorrentes do uso de substâncias entorpecentes. Trata-se das políticas de redução de danos.

3.1 O PROGRAMA DE REDUÇÃO DE DANOS NA SUÍÇA Tome-se,inicialmente,oexemplodaSuíçaque,nofinaldadéca-da de 1980, passou por um período de preocupante crescimento nas taxas deconsumodedrogasinjetáveis.Aomesmotempo,tambémcresciaonúmerodeinfectadospelovírusHIV.Buscandomitigaroproblemadeincolumidade pública que se instalava, adotou-se como medida o enga-jamentodosetordasaúdepúblicaparalidarcomaquestão,emvezdacriminalizaçãodousuário. Atéoadventodaaids,aSuíçamatinha,emrelaçãoàsdrogas,umapolíticaconservadora,fundadanacriminalizaçãoeforterepressãopolicialsobreusuáriosetraficantes(KILLIASeAEBI,2000),namaisperfeitaacepçãodaguerracontraasdrogas.ComoavançodoHIVeinerente contaminação a partir do compartilhamento de seringas por usu-ários de drogas, a postura coercitiva deu lugar às ações focadas na saúde do adicto. Emboranão tenhadescriminalizadoousoe a comercializaçãodedrogas,ogovernosuíçocriousalasdeinjeçãosegura,ondealémdeterassistênciasocial,ousuáriopodefazerusodedrogasinjetáveis,semrecorreratraficantesousesubmeteraoriscodeconsumirentorpecenteimpuro. No mesmo local o poder público distribui seringas descartáveis e, desde 1992, o viciado (atendidas algumas condições) pode ser subme-tidoaotratamentodeprescriçãodeheroína,reduzindoassimosriscosinerentes ao consumo.

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Asaçõesfocadasnareduçãodosdanoscausadospeloconsumode drogas injetáveis, no caso da Suíça, seguiram o princípio do low--threshold,consistentenaestratégiadequeosusuáriosalvodestasaçõesnão encontravam altas exigências para obter os serviços de tratamento. Não se exigiu, por exemplo, que o indivíduo deixasse de consumir deter-minado entorpecente para ingressar no programa, embora a abstinência fosse um objetivo a ser alcançado. Damedidadesubstituiçãoeprescriçãodeheroína2, resultou con-siderávelimpactonaprocuraclandestinaporesseopióide,umavezqueaaçãofocounosviciadosproblemáticos(querepresentamde10%a15%do total) e, embora em menor número em relação aos demais usuários, sãoresponsáveispelamaiorpartedademanda(30%a60%).Deigualsorte,ademandaporoutrasdrogastambémexperimentoureduçãoemdecorrência do programa3. Com efeito, observando-se o comportamento do usuário integra-do ao programa, a partir dos dados coletados pela polícia suíça, durante os seis primeiros meses de tratamento, o consumo de heroína diminui, emmédia,sessentaeoitoporcento,emcomparaçãocomosseismesesanterioresàintervenção.Quandoacomparaçãoéestendidaaosperíodosdevinteequatromesesanteseapósaadmissãonoprograma,areduçãoédesetentaeumporcento(KILLIASeAEBI,2000). Cercade43%dosviciadosemheroínaadmitidosnoprogramadesubstituição de drogas tinham, nos seis meses anteriores ao tratamento, atuadocomo traficantedamesma substânciapara sustentodoprópriovício.Duranteosseisprimeirosmesesdetratamento,essenúmerohavia

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2 A prescrição de heroína costuma a funcionar melhor que a substituição por metadona, uma vez que esta, embora menos insegura, não satisfaz a dependência psicológica, vez que não ocasiona prazer.3 Esses fatos são relatados por Martin Killias e Marcelo F. Aebi (2000, p. 88): “Assim, a substituição da heroína tende a atingir especialmente usuários problemáticos, ou seja, os consumidores pesados. E, assumindo que três mil viciados representem entre dez a quinze por cento dos usuários de heroína na Suíça, não parece irreal especular que eles representam entre trinta a sessenta por cento da procura pela droga no mercado ilegal. [...] A pergunta a ser realizada é como o mercado irá reagir a uma queda na demanda de tais proporções. Umapossível estratégia seria a promoção de novas drogas, ou aquelas que são atualmente menos populares na Suíça, como a cocaína. É difícil avaliar se essas estratégias serão bem sucedi-das, uma vez que o deslocamento dos efeitos é sempre difícil de estudar, seja qual for a ofen-sa a ser evitada e quais podem ser os possíveis crimes ‘alternativos’. Os dados recolhidos até agora tendem a mostrar, no entanto, um declínio do consumo de heroína não prescrita e, também, de outras drogas ilícitas” (traduzido do inglês para o português).

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decrescido para 10%; e 6% após doze meses de ingresso no projeto(KILLIASeAEBI,2000). KilliaseAebi(2000,p.96)concluemseuestudocientíficoacer-cadosresultadosdapolíticadereduçãodedanosnaSuíçaasseverandoque o programa de prescrição de heroína foi responsável por afastar seus pacientesdapráticadecrimesrelacionadosaotráficodedrogaseafetaroprópriomercadoilegaldereferidoopióide:

TheSwissheroinprescriptionprogramwastargetedathar-d-core drug users with very well established heroin habits. These people were heavily engaged in both drug dealing and other forms of crime. They also served as a link between importers, fewofwhomwereSwiss, and the—primarilySwiss—users.Asthesehard-coreusersfoundasteady,le-gal means for addressing their addiction, they reduced their illicit drug use. This reduced their need to deal in heroin and engage in other criminal activities. Thus, the program had three effects on the drug market:- It substantially reduced the consumption among the hea-viest users, and this reduction in demand affected the viabi-lity of the market.-Itreducedlevelsofothercriminalactivityassociatedwiththe market.-Byremovinglocaladdictsanddealers,Swisscasualusersfounditdifficulttomakecontactwithsellers.4

NãoobstanteosavançosnaspolíticaspúblicasdedrogasnaSu-íça,em2004oparlamentodaquelepaísrejeitouadescriminalizaçãoda

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4 “O programa suíço de prescrição de heroína teve como alvo os usuários pesados de dro-gas, habituais no consumo daquele estupefaciente. Essas pessoas estavam fortemente en-volvidas no tráfico de drogas e outras formas de criminalidade. Também serviam como uma ponte entre importadores (alguns suíços) e usuários (principalmente suíços). Como esses usuários pesados encontraram um meio legal para tratar sua dependência, reduziram seu uso de drogas ilícitas. Isso reduziu sua necessidade de negociar heroína e participar de ou-tras atividades criminosas. Assim, o programa obteve três efeitos sobre o mercado de drogas:- Reduziu substancialmente o consumo entre os usuários mais pesados, afetando a viabili-dade do mercado.- Reduziu os níveis de outras atividades criminosas associadas ao mercado ilícito.- Uma vez removidos os viciados e traficantes locais, os usuários casuais suíços encontraram dificuldades de fazer contato com os vendedores” (traduzido do inglês para o português).

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maconha e, em 2008, seus eleitores, consultados em plebiscito, embora aprovando as medidas de redução de danos, se pronunciaram contra a legalizaçãodoscanabinoides.

3.2 A PREVENÇÃO PELA DIVERSIFICAÇÃO NA GRÃ-BRETANHA OReinoUnido,noanode1999, implementoupolíticapúblicade prevenção ao uso de substâncias entorpecentes, consistente em um programa que oferece aos usuários problemáticos de drogas, que tenham cometidos delitos, tratamento à dependência em substituição da pena, o quefezreduziroíndicedereincidência. Com essa medida, considerando o grupo de adictos adeptos do programa,onúmerodeprocessoscriminaisapresentoudecréscimode48%, tomando por base os anos prévios e posteriores ao tratamento(MILLAR,JONES,et al., 2008) . O tratamento terapêutico temocondãodereduzirapopulaçãocarcerária, ao desviar do sistema prisional o indivíduo que, de apenado, converte-seempacientedosserviçosdesaúde.Emboraexistamcrimescujapenanãopossasercomutadaemtratamento,fazendo-senecessárioo cumprimento da pena em penitenciária, parte da sanção pode ser cum-prida em liberdade, condicionada ao ingresso no programa. Pode-sedizerquemedidasdessanaturezaapresentam-secomoalternativaviável, coincidindocomoqueClausRoxin (2001,p.466-467)definiupor“diversificação”–importanteconsignar:

Nashipótesesemqueadescriminalizaçãonãoépossível -como no furto -, poder-se-ão evitar as desvantagens da crimi-nalizaçãoatravésdealternativasàcondenaçãoformalporumjuiz.Taismétodosdediversificaçãosãoutilizadosemquan-tidadeconsiderávelnaAlemanha,poisotribunaletambémoministériopúblicopodemarquivaroprocessoquandosetratar de delitos de bagatela em cuja persecução não subsista interesse público; tal arquivamento pode ocorrer inclusive no âmbitodacriminalidademédia,seoacusadoprestarserviçosúteisàcomunidade(comopagamentosàCruzVermelhaouareparação do dano). EstesmétodosdediversificaçãosãoutilizadoshojenaAle-

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manhaemquasemetadedetodososcasos, tendoreduzidoconsideravelmenteaquantidadedepunições.[...]estaespé-cie de reação a delitos deve ser um elemento essencial do direito penal do futuro.

Assim,naGrã-Bretanha,amedidaalternativadecomutarpenaem tratamento de saúde, visando a mitigar os efeitos da adicção, resultou na redução do índice de crimes relacionados ao consumo de drogas, da população carcerária e dos gastos estatais com a persecução penal. Mos-trou-se,portanto,eficazàtuteladaincolumidadepública.

3.3 A REDUÇÃO DE RISCOS NA HOLANDA EmboraaHolandaseja lembradacomoparadigmaàdescrimi-nalizaçãodasdrogas,navanguardadaspolíticaspúblicasacercadama-téria,arealidadeéoutra.Acannabis éaúnicasubstânciaentorpecente,proscritapelacomunidadeinternacional,cujavendaétoleradanaquelepaís–issomesmo,emlocaisespecíficos(coffee shops) e em pequena quantidade5.Acomercializaçãoirregulardesseestupefacientecontinuaaserconsideradacondutacriminosa.Porisso,nãosepodesequerdizerqueamaconhaélegalizadanaHolanda6. Naverdade,apolíticaantidrogasholandesaésimilaràquelaado-tadanaSuíçae,emmuitosaspectos,émenosliberalqueaportuguesa.Não obstante, das medidas alternativas adotadas pelos países baixos re-sultam relevantes avanços para saúde e incolumidade pública. NaHolanda,apolíticadereduçãodedanosadotacomomedidaso intercâmbio deseringas, prescrição de metadona e heroína como tra-tamento da dependência, manutenção de salas de consumo de drogas e acompanhamentomédico. Aprescriçãodaheroína,comomedidadetratamento,reduziuospequenos delitos e perturbações da ordem pública, e teve efeitos positi-

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5 O coffee shop não pode vender mais que cinco gramas de maconha, por vez, para a mesma pessoa; não pode comercializar outras drogas; e não pode vender à turistas, nem a menores de dezoito anos.6 A própria posse da maconha, ainda que para consumo, se não se der nos locais desti-nados ao uso, implica em contravenção penal, punível com multa.

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vosnasaúdedaspessoasquelutamcontraadependência(COMISSÃOGLOBALDEPOLÍTICASSOBREDRGAS,2011). Nãoexisteumprogramaqueatendaespecificamenteousuáriodecocaína–comoaprescriçãomédicadasubstância,porexemplo.Assim,paraessetipodeentorpecente,aHolandaapresentaumconsumomédioligeiramenteacimadamédiadocontinenteeuropeu:poucomaisde5%dosholandesesadultosjáfizeramusodecocaína,sendoquequasedoispor cento a utilizaram recentemente.À título ilustrativo, nos EstadosUnidosdaAmérica,cercadequatorzeemeioporcentodapopulaçãocom mais de 12 anos de idade já experimentaram cocaína. Quanto à situação holandesa, em relação ao consumo de cocaína eseusderivadosentreapopulaçãoadulta(15a64anosdeidade),im-portante observar os dados comparativos, elaborados pela Netherlands National Drug Monitor(2011,p.64):

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Tabela 1 - Uso de cocaína entre a população adulta. Comparativo entre Holanda e outros países europeus

Conforme dados apresentados pela Netherlands National Drug Monitor(2011,p.80),noquepertineaousodeopióides,objetoprincipaldasmedidasdereduçãodedanosadotadaspelaHolanda,quandocon-siderado o número de usuários problemáticos (que desenvolvem vício, doenças, comportamento violento ou distúrbios), tem-se que, ao longo

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dotempo,houvesignificativodecréscimo:

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7 A lei holandesa considera “drogas pesadas” aquelas que apresentam “riscos inaceitá-veis” à sociedade, enumerando, dentre outras, heroína, cocaína, anfetaminas, LSD e ecstasy.

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Amesma demonstração de eficiência da política holandesa deredução de danos se tem ao comparar sua situação atual, em relação ao número de usuários problemáticos de “drogas pesadas”7, com outros pa-íses do continente europeu, ainda de acordo com a Netherlands National Drug Monitor (2011, p. 82):

Gráfico 1 - Usuários problemáticos de opióides em Amsterdã (1985 a 2009), por origem

Tabela 2 - Comparativo de usuários problemáticos de drogas pesadas entre países europeus

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Os dados ora consignados semostram importantes não só porrevelaremaposiçãoprivilegiadadaHolandaquandosetratadonúmerorelativo de usuários problemáticos das substâncias entorpecentes mais perigosas, decorrente de suas medidas focadas na saúde do indivíduo. O quehádemaissignificativonomencionadoéoresultado,justamente,nonúmero de usuários problemáticos. É que o número de usuários comuns de determinada droga, que não desenvolvem vício, doenças, comportamento violento et coetera, relacionados ao uso em si, não se apresenta tão importante quanto o nú-mero de consumidores problemáticos, cuja adicção tem o condão de ma-cular diretamente a saúde e incolumidade pública. Assim,qualquermedidaquevenhaareduzironúmerodeusu-áriosproblemáticos,mesmoqueproduzaincrementonoíndicedecon-sumidoresnãoproblemáticos,deveser tidaporeficaznocombateaosdanos decorrentes das drogas. Outro avanço, a partir do programa de intercâmbio de seringas, na qual o governo troca aquela já usada por uma nova, e a prescrição médicademetadonaeheroína,reduziramsignificativamenteainfecçãoporHIVdecorrentedousoinadequadodedrogas8. Emsíntese,oprogramadereduçãodedanosadotadopelaHo-landasemostroueficienteemreduzironúmerodeusuáriosdeopiói-des, os danos à saúde decorrentes do consumo de drogas, o número de mortes por overdose9eonúmerodeinfecçõesporHIVdecorrentesdousoinadequadodeentorpecentes.Alémdisso,aoassegurartratamento

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8 Nesse aspecto é o relatório da Netherlands Institute of Mental Health and Addiction (2011, p. 91): “Ao longo desse estudo, verificou-se uma queda acentuada no percentual de usuários de drogas soropositivos nos últimos 20 anos, em especial, quanto aos jovens (com menos de 30 anos de idade). A incidência de novos diagnósticos entre dependentes de dro-gas injetáveis caiu de 8,5% no ano de 1986 para 0% em 2000, com um ligeiro aumento em 2005, quando dois usuários de drogas injetáveis foram diagnosticados portadores de HIV. Desde então, até o ano de 2009, nenhuma nova infecção pelo HIV foi registrada. O declínio na transmissão do HIV entre usuários de drogas pode ser parcialmente explicado pela dimi-nuição no compartilhamento de injeção, agulha e seringa, embora o comportamento sexual de alto risco ainda persista. A diminuição de novos casos de HIV entre usuários de drogas se contradiz em relação a um ligeiro aumento nos casos de HIV entre homens que têm relaçõessexuais com homens. Para este grupo, o risco sexual continua aumentando. A participação em dois programas de fácil acesso, o programa metadona e o programa de intercâmbio de seringas reduzem as chances de infecção pelo HIV (e hepatite C)” (traduzido do inglês para o português).9 A Holanda tem o menor número de óbitos por overdose da Europa.

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adequado aos adictos, possibilitou o enfrentamento do vício a partir de uma postura fundada na dignidade da pessoa humana. Dessa forma, emboranão se apresente comosubstitutoao tra-tamento penal das drogas, sua política de redução de danos revela-se medidaalternativamaiseficientequeacriminalização.

3.4 A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO EM PORTUGAL E SUAS MEDIDAS DE REDUÇÃO DE DANOS EmPortugaloconsumodedrogascontinuaproscrito10, mas des-de1ºdejulhode2001,emrazãodoadventodaLei030/2000,aaquisi-ção, posse e consumo de qualquer substância entorpecente deixou de ser tratadaatravésdaultima ratio da norma penal. Por forçade referida lei (PORTUGAL,2000),ouso,aaquisi-çãoeadetençãoparaconsumopróprio11 de substâncias estupefacientes ilícitasconstituemcontraordenação,infraçãodenaturezaadministrativasujeita àmulta.O julgamento é realizadopor umcolegiado, formadopor assistentes sociais,psicólogose juristas, intituladoComissãoparaaDissuasãodaToxicodependência,vinculadoaoMinistériodaSaúdeportuguês. De qualquer forma, a própria multa não poderá ser aplicada se o infrator solicitar a assistência de serviços de saúde, públicos ou privados, garantindo-se o sigilo sobre o tratamento. Segundo Fernando Henrique Cardoso (2011) , no momento em que descriminalizou as substâncias entorpecentes, Portugal quebrou um paradigma. Ao invés de insistir em medidas repressivas ineficazes, quan-do não claramente contraproducentes, optou por políticas mais cidadãs e eficientes, fundadas na dignidade da pessoa humana. A lógica da despenalização adotada por Portugal coincide com

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10 A legalização não é possível em virtude dos tratados internacionais aos quais Portugal, como tanto outros países, se obriga a combater as drogas. Essa ponderação pode ser encon-trada em Domosławski (2011).11 Assim considerada a quantidade que não exceda o necessário para o consumo médio individual durante o período de dez dias, segundo a lei, para a cannabis, vinte e cinco gra-mas; haxixe, cinco gramas; cocaína, dois gramas; heroína, um grama; LSD ou ecstasy, dez comprimidos.

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aquelapreconizadaporClausRoxin(2001),segundooqualestaépos-sível em dois sentidos: 1) eliminando-se dispositivos penais que não se-jamnecessáriosàmanutençãodapazsocial,comocomportamentosqueatingemsomenteamoral,areligião,opoliticamentecorretoeopróprioagressor, sem causar danos à sociedade; e 2) quando, ainda que haja possibilidade de lesão à sociedade, não se possa atingir o mesmo grau de tutela por meio de medidas outras que não a norma penal. O exemplo oferecidopeloautor,acercadasegundacircunstância,tambémcoincidecomomóveldodesígnioportuguês:

Umtalcaminhofoiencetadopelodireitoalemão,porexem-plo, ao secriarem infrações de contra-ordenação. Assim,distúrbios sociais com intensidade de bagatela - pequenas infraçõesde trânsito, barulhonãopermitidoou incômodosà comunidade - não são mais sujeitos à pena, e, sim, como infrações de contra-ordenação, somente a uma coima (Gel-dbusse). O direito penal do futuro tem aqui um extenso cam-po - especialmente as numerosas leis extravagantes - para a descriminalização.(ROXIN,2001,p.466)

Alémdisso,apartirdadescriminalizaçãoquantoaousodedro-ga,opoderpúblicopôdeimplementar,deformamaisincisiva,progra-mas de intercâmbio de seringas e agulhas, prescrição de metadona em substituiçãoàheroína,tratamentopsiquiátrico,psicológicoeassistênciasocial. SenaSuíçaaadesãoaosprogramasdereduçãodedanossedáemrazãodoprincípiodo low-threshold, em Portugal ocorreu de forma maiseficienteaindapormeiodadescriminalização.Umavezqueocon-sumodedroganãoécrime,osusuáriosnãosesentemintimidadosouconstrangidos em procurar ajuda estatal, mesmo quando desejam apenas a prescrição da metadona e não têm planos para se curar do vício. Assim,aadesãonoprogramadereduçãodedanosemPortugaltemsidomaisrepresentativaquenaHolandaouSuíça,deformaque,em2010, “cerca de quarenta mil toxicodependentes submeteram-se a trata-mento”(DOMOSłAWSKI,2011,p.32)naquelepaís. Como resultado, embora se tenha constatado ligeiro incremento

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noíndicedeadultosafazerusodesubstânciasilícitasemPortugal,asmedidasalternativastiveramocondãodereduzir:onúmerodedelitosrelacionados às drogas entre usuários problemáticos e adolescentes; o volume de recursos gastos na estrutura policial, nos estabelecimentos prisionais e nos processos judiciais; o número de óbitos relacionadoscomousodeopióidesedoençasinfecciosas;eademandaporheroína(HUGHESeSTEVENS,2010). Pode-se citar, ainda, como resultado positivo da política de re-duçãode danos implementadaporPortugal, o decréscimodonúmerode pessoas infectadas porHIV emdecorrência do uso inadequado dedrogasinjetáveis.Noano2000,ocorreram2.758novosdiagnósticosdepessoasinfetadascomovírusHIV,dasquais1.430eramconsumidoresdedrogas,52%dototal.Jáem2008,onúmerodenovosdiagnósticosfoide1.774,dosquais352eramconsumidoresdedrogas,oequivalentea22%(DOMOSłAWSKI,2011).Essatendênciadequedamantém-seatéos dias atuais. Outro aspectodignodemençãodiz respeito ao comportamen-todademandapordrogasapósadescriminalizaçãodoconsumo.Espe-rava-seumacréscimo significativononúmerodeusuários, oquenãoocorreu.Oincrementofoiincipienteparaamaioriadasdrogas(MALI-NOWSKA-SEMPRUCH,2011)ebasicamentecircunscritoaosadultos(HUGHESeSTEVENS,2010). Na verdade, a pequena variação no consumo de estupefacientes emPortugal,apósadescriminalizaçãodouso,nãosemostradiferenteda realidade de outros países europeus que ainda consideram delito tal conduta, demonstrando que a inovação legal promovida naquelepaís,alémderepresentaravançonasáreaspenitenciáriaejudicial,nãofoi responsável por qualquer incremento nos índices relacionados ao consumo de drogas ilícitas. É o que se pode inferir da tabela seguinte, conforme estudo ela-boradoporHugheseStevens(2010,p.1007)numaanálisecomparativaentreasituaçãodePortugal,EspanhaeItália,quantoaoconsumoilícitodesubstânciasentorpecentesporindivíduoscomidadeentre15e64,nosanos de 2001 e 2007.

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Oquadrotambémnãoédiferentequandosetemcomoparâme-troosdemaisEstadosdaUniãoEuropeiaeseusíndicesdeconsumodedrogas estupefacientes.Dadescriminalizaçãoquanto àpossede subs-tâncias ilícitas entorpecentes para uso pessoal em Portugal não decorreu qualquerimpactonegativonosíndicesdeconsumoilegal(HUGHESeSTEVENS,2010). Portanto, deve-se reconhecer que em Portugal, assim como na Holanda,Grã-BretanhaeSuíça,asmedidasalternativasàcriminalizaçãosemostrarammaiseficientesà tutelarasaúdee incolumidadepúblicaque a norma penal, tanto por alcançarem um melhor resultado, como por sermenoscustosaaoEstadoeaosdireitosfundamentais.

3.5 A EXPERIÊNCIA DO URUGUAI Deformabem-humoradaecomevidenteduplosentido,JoséAl-berto Mujica Cordano, o Pepe Mujica, entãoPresidentedaRepúblicaOrientaldoUruguai,afirmouque“viveréexperimentar”(BBC,2014)elegalizouamaconhaemdezembrode2013. EmborasejarecenteaexperiênciadoUruguai,oquepraticamen-teinviabilizaaferirseuimpactonasaúdeesegurançapública,alémdeestar circunscrita à cannabis, o modelo adotado merece atenção do mun-do, mostrando-se alternativa viável às políticas criminais empregadas na proscrição das drogas. Declarandode interessepúblico as ações tendentes aproteger,promoveremelhorarasaúdepúblicadapopulaçãoatravésdeumapo-líticaorientadaaminimizarosriscosereduzirosdanosdoconsumodecannabis; que promovam a adequada informação, educação e prevenção

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Tabela 3 - Percentual da população adulta de Portugal, Espanha e Itália que fizeram uso de droga nos doze meses anteriores à pesquisa, em 2001 e 2007

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sobre as consequências e efeitos prejudiciais associados com o consumo, assim como o tratamento, reabilitação e reinserção social dos usuários problemáticosdedrogas(URUGUAY,2013),oEstadopassouaexercerocontrole(antesentregueaonarcotráfico)earegulaçãodasatividadesde importação, exportação, plantio, cultivo, colheita, produção, aquisi-çãoaqualquertítulo,armazenamento,comercializaçãoedistribuiçãodecannabiseseusderivados,deformadiretaouporintermédiodeinstitui-çõesdevidamenteautorizadas. Oobjetivodeclaradoéprotegeroshabitantesdaquelepaíscontraosriscosqueimplicaovínculodousuáriocomocomércioilegal,bus-cando,medianteaintervençãodoEstado,atacarasdevastadorasconse-quênciassanitárias,sociaiseeconômicasdousoproblemáticodesubs-tânciaspsicoativas,assimcomoreduziraincidênciadonarcotráficoedocrimeorganizado. Para tanto, criou-se o Instituto de Regulación y Control del Can-nabis (IRCCA),cujafunçãoéregularasatividadesdeplantio,cultivo,colheita,produção,elaboração,armazenamento,distribuiçãoevendadecannabis,alémdepromovereproporaçõestendentesareduzirosriscose danos associados com o uso problemático da droga. Dessaforma,passouaserautorizadooplantio,ocultivoeaco-lheitadomésticosdemaconha,desdequeparaoconsumopessoal(ve-dado aos menores de 18 anos) ou compartilhado no domicílio, assim entendidocomoaté6plantasdecannabis, não excedendo o produto da colheitaa480ganuais. ComadevidaautorizaçãodoPoderExecutivoesobocontroledo Instituto de Regulación y Control del Cannabis(IRCCA),tambémsepermite a atividade de plantio, cultivo e colheita para clubes de usurários (entre15a45membros),cujalavouranãopodeexcedera99plantas,limitando-seaobtercomoprodutodacolheitaummáximodearmazena-mentoanualproporcionalaonúmerodesócioseconformeaquantidadeque se estabeleça em contrato ulterior para o uso não medicinal da maco-nha. Medidaimportanteprevistanalei(URUGUAY,2013),dizres-peitoàoutorgadelicençaàsfarmáciasparavendademaconhaparafinsnão medicinais, o que atenderia ao público usuário não afeito ao plantio, cultivo e colheita, nem associado aos clubes credenciados. Em qualquer caso, restou proibida, por quaisquermeios, toda

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forma de publicidade, promoção, auspício ou patrocínio da maconha re-creativa. Osefeitosimediatosdalegalização,claramentesentidosnoUru-guai,correspondemaofimdonarcotráficodamaconha,humanizaçãoedesestigmatizaçãodousuário,menosriscosedanosrelacionadosaousodessaespecíficadroga. No entanto, o impacto na saúde e segurança pública, de modo ge-ral,sempresensíveisnolongoprazo,aindanãopôdesermensuradocomacuidadecientífica,sobretudoporserrecenteamedidadelegalização. Oque jásepodeafirmar,comsegurança,équea liberaçãodamaconhanaquelepaísnãosefezacompanharemacréscimosubstantivonoconsumodessadroga.Estudoatual,promovidopelaJuntaNacionaldeDrogas(URUGUAY,2015),órgãovinculadoàPresidênciadoUru-guai,revelaque9,3%dapopulaçãoadultausoumaconhanosúltimos12meses(dadosde2014),emcomparaçãoa8,3%em2011,omenorau-mentoidentificadoem14anos.Ouseja,omaissérioargumentocontraalegalização,odoincrementodouso,nãoseconfirmounocasouruguaio. Assim,importantequeaComunidadeInternacionaleosEstadossoberanosacompanhemdepertoacorajosaexperiênciadoUruguai,delaapreendendo os novos aspectos para o enfrentamento da questão.

4 EFICIÊNCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REDUÇÃO DE DANOS Considerando que saúde e incolumidade pública são bens prote-gidospelaordemconstitucional,cumpreindagar:épossíveltutelartaisbens,deformatãoeficientequantoanormapenal,pormeiosalternati-vos? ImportagrifarqueasmedidasadotadaspelosgovernosdaSuíça,HolandaeGrã-Bretanhanãoseopõemàcriminalizaçãodassubstânciasentorpecentes,tantoemrelaçãoaotráfico,quantoaouso.Noquepertineàs políticas públicas desenvolvidas em Portugal, mesmo com a descrimi-nalizaçãoaoníveldousuário,osestupefacientescontinuamproscritoseonarcotráficopermanecesendoatividadedelitiva.AdescriminalizaçãodamaconhanoUruguai,porseuturno,éexperiênciaespecífica,limitadaa um único tipo de droga, além de ser muito recente. Entretanto, os resultados apresentados naqueles países demons-

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tramqueavançarmaisépossível.Aspolíticasalternativasdereduçãodedanosdeveriamseapresentarnãocomoaçãoparalelaàcriminalização,mas como verdadeira oposição e substituição ao tratamento penal dado às drogas. Issoporqueasmedidasalternativasláexperimentadas,nosentidoda mitigação dos problemas de saúde e incolumidade pública decorren-tes do uso inadequado de drogas, embora ainda tímidas e limitadas pela cogente12 proscrição das substâncias entorpecentes, apresentam grau de eficiênciamaiorqueanormapenalutilizadaparaomesmofim. Pode-seconcluirqueacriminalizaçãodassubstânciasentorpe-centesémenoseficienteàtuteladosbensconstitucionais(saúdeeinco-lumidade pública) que as políticas de redução de danos. Custam mais ao Estado,emtermoseconômicos,eaocidadão,emrazãodaprópriatutelapenal,enãoobtémosmesmosresultados.Aexperiênciatemdemonstra-do isso. Dopontodevistafinanceiro,osmuitosrecursoseconômicosdis-pendidosemrazãodaguerracontraasdrogas,cujofundamentolegaléacriminalização,poderiamserdirecionadosaprogramasdeprevençãoetratamento.Lidarcomaquestãodasdrogasnoâmbitodaeducação,temsemostradomaisprodutivoqueumaabordagemretributiva,denaturezapenal. Prover medidas de redução dos riscos, em contraposição à incri-minação, equivale a garantir dignidade à pessoa humana13.

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12 Em razão dos tratados internacionais.13 Nesse sentido, com ênfase na eficiência econômica, defende Thomas C. Rowe (2006, p. 228): “Deveríamos realocar as verbas atualmente utilizadas na ‘guerra contra as drogas’ focada nas interdições, para programas de tratamento e prevenção. A interdição envolve a eliminação do fluxo de drogas ilícitas, dos campos de cultivo ou dos laboratórios em que elas são fabricadas para o usuário/comprador na rua. Não temos feito um bom trabalho nesse sentido e, em minha opinião, não temos nenhuma razão para pensar que vamos fazer. Pre-venção, em grande parte, dependente da educação - usada para convencer as pessoas a não experimentar drogas perigosas. Cada viciado em potencial que optar por não usar droga reduzirá a sobrecarga na sociedade. Este é certamente o modo mais eficiente do uso dos fundos públicos. Essa abordagem também minimiza o dano decorrente das drogas. Forne-cer o tratamento adequado àqueles que já estão usando drogas também seria muito mais produtivo, em termos de redução do impacto do abuso de drogas ilícitas, do que tentativas maciças de interdição. Afinal, quando menos pessoas usam uma determinada substância, o tráfico dessa substância tende a diminuir naturalmente, sem qualquer esforço especial por parte do público em geral ou da aplicação da lei. Em outras palavras, atacando a demanda torna-se susceptível de resolução o problema da interdição. Enquanto continuarmos a gastar fortemente na interdição continuaremos apenas a desperdiçar dinheiro” (traduzido do inglês para o português).

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Na mesma linha de raciocínio, com ênfase na dignidade da pes-soahumana,pode-seafirmarqueaspolíticasdedrogasdevemsebase-ar no respeito aos direitos humanos e na preservação da saúde pública. Faz-senecessáriopromoverofimdaestigmatizaçãoemarginalizaçãodas pessoas que usam drogas e daqueles que estão envolvidos nos níveis mais baixos de seu cultivo, produção e distribuição. É imperativo tratar osdependentes(porrazõesdevíciooueconômicas)deestupefacientescomopacientesenãocomocriminosos(COMISSÃOGLOBALDEPO-LÍTICASSOBREDROGAS,2011).Aindanamesmasériedepensa-mento,comoviésdaracionalidade:

Deestemodo,ladrogaesfundamentalmenteunaformadehuida.Intentaralejarladrogadelindividuomedianteunaleyrepresiva,esunasoluciónindirecta:sehadereformarlaes-tructurasocialylaarquitecturavitalyeducacióndelindivi-duo, haciendo desaparecer las motivaciones que conducen al consumo ‘abusivo’ de droga; motivaciones eminentemente personales que al coincidir en gran número de individuos per-mitecontemplarladrogadiccióncomounfenómenosocial.Elhombrebebecomoconsecuenciadesunaturaltendenciaalestadoartificialprogresivodefelicidad,seguridad,eufo-riaybienestar.Lasustanciaestáalserviciodelhombre,esmediodealivioycomunicaciónsocial,materiacreadoradesueños que permite un alejamiento necesario de las formas depensaryvivircotidianas.(ESCUDEROMORATALLAeFRÍGOLAVALLINA,1996)

Pode-se afirmar também, em juízo prognóstico14 , que os pro-gramasdereduçãodedanosseriambemmaiseficazesemumambientedelegalizaçãodasdrogas.Aproscriçãodosestupefacientesimpedesuaprescriçãoparafinsnãoterapêuticos,aindaquepromovidapeloEstado15.

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14 Se a necessidade pode ser inferida em prognose para limitar os direitos fundamentais, o mesmo é permitido para afastar a incidência de norma incriminadora ante a perspectiva de medida menos gravosa aos direitos do cidadão.15 A esse respeito: “muitos países ainda reagem perante às pessoas dependentes de drogas com prisão e estigmatização. Na realidade, a dependência de drogas é uma comple-xa condição de saúde que tem uma combinação de causas - sociais, psicológicas e físicas (incluindo, por exemplo, difíceis condições de vida, uma história de trauma pessoal ou pro-

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Éque,portraficantesoupeloPoderPúblico,ademandapordro-gasserásempresuprida.Sepeloúltimo,mitiga-seosriscosinerentesaoconsumoetem-seaoportunidadedetrataroadicto.Aregulação,jápre-sente em relação ao álcool e o tabaco, mesmo se aplicada de forma mais rígida, apresenta-se como meio alternativo, menos gravoso que a norma penal.Ocontroledaproduçãoedistribuiçãotambémseapresentacomoalternativa à proscrição das drogas. A regulação (meioalternativo)semostramaisadequadaqueaclandestinidade do consumo e da distribuição das drogas, própria daproscrição. É nesse sentido, embora reconhecendo que a legalizaçãodas substâncias entorpecentes possa incrementar o número de usuários e adictos,queThomasC.Rowe(2006,p.2637)suscitapesquisarealizadapela University of Maryland, tambémcitadaporMikeGray (1998,p.291),naqualosestudantesdeensinomédiorelataramqueamaconhaémaisfácildeseradquiridaquebebidasalcoólicas:

Oneoftheclassicargumentsagainstlegalizationisthatifadrugwerelegal,thenmoreandmorepeoplewoulduseit.Itisverydifficulttorefutethisargumentwhenweconsiderthewidespreaduseofalcoholandtobacco.However,whenwelook deeper into that criticism, what seems to worry people most is that youths, or teenagers, will be using dangerous drugs at higher and higher rates, creating a nation of addicts. Apartialanswertothatparticularargumentisfoundinasur-veydoneby theUniversityofMaryland[…].Highschoolstudents reported themostdifficult drug toobtainwasnotmarijuanabutalcohol(notthatalcoholisallthatdifficulttoobtain). Why would marijuana be easier to get than a drug that virtually permeates our society? The answer is obvious: alcohol distribution is controlled through government-regu-lated businesses, but those who control the distribution of

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problemas emocionais). Tentar lidar com esta situação complexa mediante sobretudo penas severas é ineficiente - pode-se conseguir um sucesso muito maior por meio do acesso a uma gama de serviços de tratamentos de eficiência comprovada. Os países que trataram os cida-dãos dependentes de drogas como pacientes que necessitam de tratamento, ao invés de cri-minosos a serem encarcerados, obtiveram resultados extremamente positivos em termos de redução do crime, melhorias da saúde e superação da dependência” (COMISSÃO GLOBAL DE POLÍTICAS SOBRE DROGAS, 2011, p. 6).

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marijuana are not so constrained16.

No entanto, descriminalizar as substâncias estupefacientes, tanto emrelaçãoaouso,quantoemrazãodaproduçãoedacomercialização,oumesmoconsiderar inconstitucional a proscrição penal das drogas, demanda ponderar sobre que políticas públicas poderiam ser implementadas para mitigar os pro-blemas de saúde e segurança pública relacionados com o consumo. Não atenderia ao interesse público, consubstanciado principalmente nosaspectossanitáriosedesegurança,simplesmentelegalizaroudescrimina-lizartodasassubstânciasestupefacientes,quantoaoconsumo,produçãoeco-mercialização,semaimplementaçãodemedidasalternativaseficazesamitigarsubstancialmente os riscos que lhe são inerentes. Ou seja, a regulamentação haveria de ser concomitante à liberação. Nesseaspecto,érazoávelafirmarqueaComunidadeInternacio-naleosEstadossoberanostêmlargaeexitosaexperiênciaemcontrolare regulamentar drogas perigosas, sem a necessidade de proscrevê-las ou criminalizá-las.Álcooletabacosãoosexemplosmaisenfáticos. Aliberaçãodasdrogas,atualmentetidaporilícitas,poderiaseracompanhadadeumasériederestriçõesque,nãoobstantelimitarali-berdadedouso,produçãoecomercialização,talqualjáocorrecomasbebidasalcoólicasecomofumo. Quanto ao usuário, o consumo de estupefacientes, atualmente ilegais,ficariarestritoaosambientesprivados,adstritoaorecônditodaintimidade, não sendo permitido em locais públicos ou de livre acesso. Odescumprimentodessaimposiçãoimplicariaeminfraçãodenaturezaadministrativa. Com menor rigor e extensão, tal limitação já se impõe ao cigarro. Não seria permitido desenvolver algumas atividades sob o efeito

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16 “Um dos argumentos clássicos contra a legalização é que na medida em que droga se torna legal, mais e mais pessoas passam a usá-la. É muito difícil refutar este argumento quando consideramos o uso generalizado de álcool e tabaco. No entanto, quando analisamos mais profundamente essa crítica, o que parece preocupar mais as pessoas é o fato de que jovens ou adolescentes estariam usando drogas perigosas a preços cada vez mais altos, deforma a criar uma nação de viciados. Uma resposta parcial para este argumento em particu-lar encontra-se em uma pesquisa feita pela Universidade de Maryland […]. Estudantes se-cundaristas relataram que a droga mais difícil de obter não é a maconha, mas, o álcool (não que álcool seja tão difícil de obter). Por que maconha seria mais fácil de conseguir do que uma droga que praticamente permeia nossa sociedade? A resposta é óbvia: a distribuição de álcool é controlada por meio de empresas sujeitas à regulação pública, o que não ocorre comaqueles que controlam a distribuição da maconha” (traduzido do inglês para o português).

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de substâncias entorpecentes, como dirigir, trabalhar et coetera, cuja in-fração estaria sujeita às mesmas cominações legais inerentes às bebidas alcoólicas. Noquepertineàproduçãoecomercialização,asrestriçõesqueseimpõemàindústriafarmacêutica,debebidasalcoólicasedofumosãoexperiênciasaptasaconduziraelaboraçãodeummarcoregulatórioparaos estupefacientes. Ocontroledacomposiçãoepurezadasdrogasentorpecentespo-deria ter por parâmetro àquela já exercida sobre a indústria farmacêutica. Assimcomoacontececomoálcooleotabaco,avendaseriaproibidaparacriançaseadolescentes.E,talqualocigarroealgunsmedicamen-tos, a propaganda não seria permitida. Aproduçãoecomercializaçãonãoregulamentarseriaproibida,como jáocorre comasbebidasalcoólicas, fumoemedicamentos.Noentanto,talqualálcoolecigarro,nãoseriaumproblemasério,faceaodesestímulo à atividade clandestina provocado pela queda nos preços, decorrentedalivreconcorrênciaedalegalizaçãoemsi,oqueafastariaocrimeorganizadodessaatividade. Asistemáticadetributaçãopoderiaterporbaseàquelacominadaàindústriatabagista,responsávelporrecolherU$133bilhõesemimpos-tos,anualmente,nomundo.Destes,menosdeU$1bilhãosãoatualmenteempregadosemmedidasantitabagistas(WHO,2011).Osrecursospro-venientes da arrecadação seriam integralmente direcionados aos progra-mas de redução dos danos. Enfim,comparando-seanormacriminalque,visando tutelarasaúdeeaincolumidadepública,proscreveousoeacomercializaçãodasdrogas,comosmeiosalternativosàdisposiçãodoEstado,objetodapre-senteavaliaçãodaspolíticaspúblicas,pode-seafirmar,comsegurança,seremmaiseficientesaspolíticasdereduçãodedanos.

5 CONCLUSÃO Assim, avaliando-se as políticas públicas relacionadas com osproblemasproduzidospeloconsumodeentorpecentes,pode-seafirmarqueacriminalizaçãodassubstânciasentorpecentessemostramenosefi-ciente à tutela dos bens constitucionais (saúde e incolumidade pública)

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queaspolíticasdereduçãodedanos.CustammaisaoEstado,emtermoseconômicos,eaocidadão,emrazãodaprópriatutelapenal,enãoobtémosmesmos resultados,peloque sepodeafirmar suadesnecessidadeeconsequente desproporcionalidade, condutora à inconstitucionalidade.

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Corrupção ideológica dos valores e princípios da justiça restaurativa pelas facções criminosas

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Jailson Alves Nogueira¹Lauro Gurgel de Brito2

1 Graduado em Direito e mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Email: jailsonalvesuern@hotmail. oom.2 Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Direito Consti-tucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutor em Direito pela Univer-sidade de Brasília.

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Resumo: Num contexto em que se buscam alternativas para evitar a parti-cipação de adolescentes em facções criminosas, o presente trabalho tem comoobjetivocentralestudaracorrupçãoideológicadosvaloresdaJus-tiçaRestaurativapelasfacçõescriminosasapartirdosrelatosdosado-lescentesinternadosnoCentrodeAtendimentoSocioeducativo(CASE).Inicialmente,buscamoscompreenderemqueconsisteaJustiçaRestau-rativaalémdecompararmosaperversãoideológicadosseusvaloreseprincípiospelasfacçõescriminosas.Oartigoédecunhoteóricoeem-pírico,dotipoexploratória,realizadaapartirderevisãobibliográficaerelatos de adolescentes que cumpriam medida socioeducativa de inter-naçãonoCASE,noanode2017,acessadosviainstrumentosdecoletasdedados,contidosnobancodedadosdoProjetodeExtensãoDireitosHumanosnaPrática,vinculadoàUniversidadeFederalRuraldoSemiá-rido(UFERSA).Nossoaporteteóricosepautouemautoresqueversamsobre a temáticada adolescência (SergioAdorno), facções criminosas

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(Jailson Nogueira e RamonOliveira) e Justiça Restaurativa (HowardZehreTerre des Hommes Lausanne Brasil). Foi possível observar que asfacçõescriminosasseapropriamdosvaloresdaJustiçaRestaurativa,mesmo que involuntariamente, e lhes corrompem, pela ideologia, no in-tuito de arregimentar novos membros, sobretudo adolescentes que se en-contram em vulnerabilidades e em estágio peculiar de desenvolvimento.

Palavras-chave: Adolescentes.Facçõescriminosas.JustiçaRestaurati-va.Corrupçãoideológica.

Abstract: Inacontextinwhichalternativesaresoughttoavoidtheparti-cipation of adolescents in criminal factions, the main objective of this studyistostudytheideologicalcorruptionofRestorativeJusticevaluesby criminal factions based on the reports of adolescents admitted to the CentrodeAsistenciaSocioeducativo(CASE)). Initially,wesought tounderstandRestorativeJusticeinadditiontocomparingtheideologicalperversion of its values and principles by the criminal factions. The arti-cle is of a theoretical and empirical nature, exploratory, carried out based on a bibliographical review and reports of adolescents who completed asocioeducationalmeasureofhospitalizationintheCASE,intheyear2017, accessed through instruments of data collection, contained in the databaseof theHumanRightsExtensionProject inPractice, linkedtotheFederalRuralSemiaridUniversity(UFERSA).Ourtheoreticalcon-tribution was based on authors that deal with the themes of adolescence (SergioAdorno),criminalfactions(JailsonNogueiraandRamonOlivei-ra)andRestorativeJustice(HowardZehrandTerredesHommesLau-sanneBrazil).ItwaspossibletoobservethatthecriminalfactionsseizethevaluesofRestorativeJustice,evenifinvoluntarily,andcorruptthem,by ideology, in order to bring in new members, especially adolescents who are in vulnerabilities and at a peculiar stage of development.

Keywords:Adolescents.Criminalfactions.Restorativejustice.Ideolo-gical corruption.

JAILSON ALVES NOGUEIRA E LAURO GURGEL DE BRITO67 |

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INTRODUÇÃO Ofenômenodasfacçõescriminosas,queteveinícionofinaldadécadade1970efoigestadonospresídiosbrasileiros,hoje,sefazendopresente,também,noscentroseducacionais,atingeparceladosadoles-centes que se encontram em vulnerabilidades psicossociais. Já a Justiça RestaurativaesuaspráticasvemsendoimplementadanoBrasil,comaqualsealmejadirimirconflitosnegativospresentesnasociedade,sendonorteadaporseusvaloreseprincípios,osquais,sãoutilizadosecorrom-pidos pelos grupos facciosos. Diantedisso,tomandoporbaseosrelatosdosadolescentesinter-nadosnoCentrodeAtendimentoSocioeducativoMossoró/RN(CASE),opresentetrabalhoabordaaquestãodacorrupçãoideológicadosprincí-piosevaloresdaJustiçaRestaurativaspelasfacçõescriminosas. O artigo surge num contexto em que as práticas restaurativas vêm demonstrandoeficácianaresoluçãopositivadeconflitos,fundadasemprincípios e valores que fortalece os vínculos dos sujeitos e, por outro lado, um panorama em que se buscam alternativas para conter a partici-pação de adolescentes em facções criminosas. Assim,partindodosrelatosdosadolescentesinternadosnoCen-tro deAtendimento SocioeducativoMossoró/RN (CASE), indagamoscomo as facções criminosas pervertem, mesmo que involuntariamente, osprincípiosevaloresquenorteiamaJustiçaRestaurativa? Inicialmente,buscaremoscompreenderasprincipaiscaracterís-ticas da JustiçaRestaurativa. Posteriormente, apresentaremos os prin-cípiosevaloresquenorteiamaJustiçaRestaurativa,comparandocomos relatos dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de in-ternaçãonoCASEacercadasrelaçõesinterpessoaisdentrodasfacçõescriminosas. Otrabalhoédecunhoteóricoeempírico,dotipoexploratória,realizadaapartirderevisãobibliográficaerelatosdeadolescentesquecumpriammedidasocioeducativadeinternaçãonoCASE. Os relatos dos adolescentes foram retirados de 3 (três) Instru-mentosdeColetadeDadosqueestãocontidosnobancodedadosdoProjetodeExtensãoDireitosHumanosnaPrática,vinculadoàUFERSA,referentes aos socioeducandos que cumprem medida socioeducativa de

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internaçãono(CASE). Nosso aporte teórico se pauta em autores que versam sobre atemáticadaadolescência(SergioAdorno),participaçãodeadolescentesem facções criminosas (JailsonNogueira eRamonOliveira) e JustiçaRestaurativa(HowardZehreTerre des Hommes Lausanne Brasil).

BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA AJustiçaRestaurativa(JR)seinspiraemvaloresdepovostradi-cionais, sobretudo aborígenes e indígenas (Maoris e Navajos), em busca deresoluçãopositivadeconflitos.Nessascomunidadesindígenaseabo-rígines, o interesse pelo coletivo suplantava o interesse individual, o que faziaemergirumapreocupaçãoemencontrarumasoluçãorápidaparaaquebradevínculosdosindivíduosdacomunidade.Aprincipalestratégianãoéoutrasenãoadialogicidade,poisbuscaincentivaraparticipaçãoativadossujeitosatingidospeloconflito,asaber:vítima,ofensoresocie-dade. É importanteobservarmosqueo cerneda JustiçaRestaurativaestá em se voltar a amparar as vítimas, mas não se restringe a isso. Por meio de suas práticas restaurativas, ela tem know howcapazressignifi-carvalores,ouseja,“elatraduzumavisãodobemedecomoqueremosconviver”(ZEHR,2008,p.265).Issoéumaformadeoportunizarumamaiorvalorizaçãoeparticipaçãodosenvolvidosnumconflito. O encontro entre os sujeitos envolvidos no rompimento dos vínculos busca criar condições para que vítima, ofensor e comunidade participemdoprocessoderesoluçãodeconflitos,almejandocriarumaculturadepazentreossujeitos,assimcomonasuacomunidade.Édefundamental importância a inserção da comunidade, pois a repercussão doconflitonãoatingesóavítimaeofensor,mastodaacoletividadequeos ladeiam, tornando-se, também, sujeitos prejudicados pelas práticasconflitivas. Vista como uma alternativa ao modelo tradicional de justiça, a Justiça Restaurativa possui suas singularidades.A principal diferençaestána formade abordaros indivíduos envolvidos emconflitos. En-quanto a tradicional parte da concepção de que deve haver culpa, perse-guição,imposição,castigoecoerção,aviarestaurativaécalcadanuma

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abordagem voltada à responsabilidade, encontro, diálogo, reparação do danoecoesãoentreosenvolvidosnoconflito,facilitadoearticuladopelacomunidade(CARVALHO;SILVA,2015). HávaloreshumanosnãotaxativosquenorteiamaJustiçaRes-taurativa, tais como: respeito, honestidade, participação democrática dossujeitosnastomadasdedecisões,confiança,humildade,comparti-lhamento, inclusividade, empatia e coragem (no sentido de encarar os desafiosqueavidaproporciona). AJustiçaTradicionalvêoconflitocomoumdanoaoEstado,umatransgressão à lei, fundamentando-se na legalidade para criar uma cul-turapunitivistanasociedade.Elabuscarespostaspara3(três)pergun-tas que norteiam seu paradigma retributivo: qual norma do ordenamento jurídico foi infringida?Queméo autorda transgressão legal?Qualocastigo/suplíciodeveserimpostoaosujeitoquetransgrediualei? JáaJustiçaRestaurativa,funda-senoparadigmadarestauraçãoesepreocupacomosrelacionamentosdossujeitosenvolvidosnosconfli-tos.Apartirdessanoção,podemoschegaraosresponsáveispelainfraçãoe saber quais suas necessidades para que haja, se possível, uma reparação dodanocausado(ZEHR,2008).Assim,aJustiçaRestaurativase“afastade conceitos como sociedade, estado, escola, leis e regras, voltando-se paraamaneiracomoassituaçõesespecíficasafetarampessoaserelacio-namentos”(ELIOT,2007,p.4).Aprioridadeédasenaspessoasenvol-vidasnoconflito. ApropostadaJustiçaRestaurativanãovisaincentivaraimpuni-dadedequempraticouilícitos,masfazercomqueosofensorescompre-endam quais as consequências dos seus atos e quais bens juridicamente protegidosforamatingidoscomsuaatitude.Assim,dentrodassuaspos-sibilidades, o autor da infração deve assumir a responsabilidade e corri-girodanocausado.Emoutraspalavras,

ajustiçarestaurativanosfazlembrardaimportânciadosrelaciona-mentos, nos incita a considerar o impacto de nosso comportamento sobreosoutroseasobrigaçõesgeradaspelasnossasações.Elaen-fatizaadignidadequetodosmerecemos.Talvez,portanto,ajustiçarestaurativadefatosugiraummododevida(ZEHR,2008,p.265).

Apoiadaemvaloreseprincípiosqueincentivamodiálogo,elavemseportandocomoumaformaderesoluçãopositivadeconflitoscom

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asmaisdiversastransversalidades.Sãoutilizadasemresoluçãodecon-flitosfamiliares,trabalhistas,conflitodesujeitosnosespaçosderestriçãode liberdade (penitenciárias e centros educacionais), disputas por terras e conflitosescolaresentreestudanteseprofessores. Asmetodologiasrestaurativasalmejamarealizaçãodeumajusti-çasocialquesevolteapontencializaraaproximaçãoentreosindivíduos,compreensãodemúltiplossignificadosde“justiças”eparticipaçãoativadas pessoas envolvidas nas tomadas de decisões. Nesse sentido, a Jus-tiçaRestaurativasemostra“comoumapossibilidadedeJustiçacalcadaem valores e relações interpessoais (multiplicidade humana e valorativa) onde se propõe a restauração da responsabilidade, da liberdade e da har-moniaqueexistemnosgrupamentossociais”(SALM;LEAL,2012,p.196). DentrodaJustiçaRestaurativahá“justiçasespecializadas”,comoéocasodaJustiçaJuvenilRestaurativa,voltadaasolucionarpositiva-menteosconflitosnaadolescência.ConsideramosaJustiçaJuvenilRes-taurativa como uma metodologia extrajudicial de resolução positiva de conflitosemquesebuscadiminuirosíndicesdeviolênciasqueenvolvecrianças,adolescentes,comotambémadolescentesemconflitocomalei. Na searada socioeducação, aLei12.594/2012,que instituiuoSistemaNacionaldeAtendimentoSocioeducativo(SINASE),prevê,emseuartigo35, inciso III, quea execuçãodasmedidas socioeducativasdeveserregida,também,peloprincípioquedáprioridadeapráticasoumedidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às ne-cessidadesdasvítimas.Aprevisãolegalsurgeapartirdeumcontextoemque os adolescentes passam a se envolverem em atividades ilícitas.

ADOLESCENTES EM CONTEXTO DE CORRUPÇÃO IDEOLÓGICA PELAS FACÇÕES CRIMINOSAS

Asfacçõescriminosastêmganhadonotoriedadenosveículosdecomunicação nos últimos anos, apesar desse fenômeno não ser novo,poisnofinaldadécadade1970,nospresídiosdoRiodeJaneiro,presoscomuns se inspiraram nos ideais dos presos políticos e buscaram uma coesãoparasedefenderemdaopressãoestatal(AMORIN,2003).

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Atualmente,essesgruposcriminososatuamcomumanovarou-pagem,poispossibilita,atravésdosseuscódigosjurídicos,aparticipa-çãodeadolescentes(NOGUEIRA;OLIVEIRA,2017),oque,atéentão,nãosetinhanotícia.Aosedepararcomoproblema,oEstadopassaane-garaexistênciadasfacçõescriminosas,assegurandoqueéuma“inven-ção”midiática(DIAS,2013).OEstadonãoconseguedaroutrarespostasenão a repressão e negação de direitos básicos.Essa negação estatalserve como combustível para as facções “abracem” os adolescentes que se encontram em vulnerabilidades psicossociais. Historicamente,osadolescentesforamvistoscomoserestrans-formadores da realidade posta, nos mais diversos vieses, seja no campo político,mercadológico,científicoousocial(ADORNO,2010).Porém,na contemporaneidade, esses sujeitos vêm passando por um processo deressignificaçãocomportamental,umaespéciedefalsaautonomiaquemais compromete do que contribui para o seu desenvolvimento. A(falsa)autonomiafazosadolescentessesentirempoderosos,“movidos por uma lógica social própria à sua geração” (ADORNO,2010,p.2).Essafragilidadeabreespaçoparaqueelessucumbamdiantedas ofertas sedutoras que as facções criminosas dispõem, que se aprovei-tamdaslacunasdeixadaspeloEstado,famíliaecomunidadeparaarre-gimentá-losetorná-lossujeitostransformadoresdarealidade,sóquepormeio de práticas ilícitas e criando vínculos com as facções criminosas. Aparticipaçãodosadolescentesemfacçõescriminosasestárela-cionada com múltiplos fatores, envolvendo questões psíquicas (emocio-nais)efinanceira(materiais).Anecessidadedepertencer,poder,masculi-nidadeenquantovirilidade,consumismoeterritorialidadepotencializama sua participação nessas organizações delinquenciais (NOGUEIRA,2018). Nasprimeirasdécadasde sua “fundação”, as facções crimino-sas se voltaram ao sistema penitenciário, o que restou caracterizado,até hoje, como um fenômeno commatrizes nos subumanos presídiosdo país. Mas as facções romperam as barreiras do sistema carcerário e adentraram nas comunidades periféricas empobrecidasmaterialmente,assim como no sistema socioeducativo, aproveitando o vácuo deixado peloEstado,sobretudonoqueserefereaausênciadepolíticaspúblicasvoltadasadiminuirasvulnerabilidadessocioeconômicas. Nesse sentido, almejando sua segurança pessoal, o adolescente

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buscanasfacçõescriminosasrespostasesignificadosparasuaexistênciaeencontra,nasua“filiação”oálibiquegaranteasuaconcepçãodesujei-tovivo,alienando-seàsexigênciasdogrupo.Assim,osideaislícitosdosadolescentes são engolidos pelos ideais das facções criminosas. Essesgruposdespertaminteressesdossujeitosondeasvulnera-bilidadessocioeconômicassãomaisacentuadas.Diantedisso,osadoles-centes das comunidades empobrecidas materialmente se mostram como “presasfáceis”,jáque,alémdeestarememvulnerabilidadessocioeco-nômicas(materiais),soma-seaofatodeestaremempeculiarestágiodedesenvolvimentoeemvulnerabilidadeemocionalesimbólica. Em pesquisa2 realizada nos anos de 2017 e 2018, analisamosquaisasrazõesidentificadasnosdiscursosdosadolescentesparasuapar-ticipação em facções criminosas, levando em consideração os dados co-lhidosnoCentrodeAtendimentoSocioeducativoMossoró/RN(CASE)3, peloProjetodeExtensãoDireitosHumanosnaPrática,vinculadoàUni-versidadeFederalRuraldoSemiárido(UFERSA). O referido projeto orienta adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de Internação acerca da sua situaçãoprocessual, bemcomo atua com práticas restaurativas no sistema socioeducativo, sobre-tudonoCentrodeReferênciaEspecializadodeAssistênciaSocial(CRE-AS),nacidadedeMossoró/RN,ondeadolescentescumpremmedidaso-cioeducativadeLiberdadeAssistida(LA). EmcontatocomosadolescentesinternadosnoCASE,duranteanossapesquisadeTrabalhodeConclusãodeCurso,podemosidentificarque eles possuem carências, psíquicas e materiais, via de regra, são su-pridasporfacçõescriminosas.Dentreasseduçõesdasfacçõescrimino-sas, podemos citar: empoderamento dos adolescentes, desperta o senti-mento de pertencimento, gera sensação de coletividade, exalta o respeito entreosmembros,atuacomhorizontalidade(mesmohavendoliderançadesconhecidas),prezapelahonestidadecomseuspares,potencializaa

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2 Para obter mais detalhes, consultar: NOGUEIRA, Jailson Alves. Enquanto o Estado nega, as facções criminosas abraçam: uma abordagem a partir dos relatos dos adolescentes internados no Centro Educacional Mossoró-RN (CEDUC). 148f. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN, 2018.3 Em novembro de 2018, por meio da portaria 255/2018, as unidades de internação de adolescentes que cometem atos infracionais, do estado do Rio Grande do Norte, deixaram de ser chamadas de Centro Educacional (CEDUC) e passaram a receber o nome de Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE).

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participação dos adolescentes nas tomadas de decisões das facções e dá vozaossujeitos,atitudesqueseassemelhamaumademocraciapartici-pativa, mesmo que seja para praticar atividades ilícitas. Essas estratégias são terrenos férteisparadespertaro interessedosadolescentesemfazerpartedessesgrupos,ocorrendoumacorrupçãoideológicadosvaloreseprincípiosdaJustiçaRestaurativa.Utilizando-sedo termo “perversão ideológica”, Ferraz Junior (1974, s. p.) asseguraqueessefenômeno“sóocorreemsociedadescujacomplexidadeatingeumpontotalquenãoémaispossívelorganizarecontrolarosconflitosemnomedaJustiçaoudaLiberdade,poistaisvaloressetormaramva-zioseabstratos”.Ainda,paraconceituaraperversãoideológicaelecitaoexemplodo“usoindiscriminadodapalavrademocracia,capazdeserutilizadoemcontextosradicalmentediferentes”. Os valores variam de acordo com a necessidade de agir, são transformados a partir do interesse de cada ideologia. Por isso, “não se fala mais em justiça, mas em justiça-no-sentido-liberal ou conservador ou comunista, etc. Não se fala mais em democracia, mas em democracia--no-sentido-progressista, desenvolvimentista, ocidental, popular, etc.” (FERRAZJUNIOR,1974,s.p.). Diantedisso,conceberasfacçõescriminosascomoinstituiçõesefetivadoras de direitos não é uma concepção vã, já que perverter osvalores humanos tem sido corriqueiro atualmente, sobretudo no siste-mapolíticobrasileiro.Essaperversãodosistemapolíticoéescancaradaquando“opoderédadoaospolíticosparaquerealizemaquelesvalores.Mas o objetivo da sua atividade passa a ser a manutenção daquele poder que,demeio,passaaserofimrealdesuaação”(FERRAZJUNIOR,1974,s.p.). Nasfacçõescriminosasnãoédiferente,elascorrompemetrans-formamosvaloresdejustiçaemvingança,pazemanti-paz,liberdadeemdemocracia facciosa. É importante mencionar que “o perigo da manipu-laçãoideológicaestánumaperdadecontatocomaprópriacomplexida-de do sistema que pode, no limite, tornar-se totalmente indeterminável” (FERRAZJUNIOR,1974,s.p.).Assim,osvaloresesímbolossãocor-rompidosnosentidodepotencializarasatividadesilícitasdeinteressedoprópriogrupo. Essacorrupçãonãoéumconfrontodiretoentre facçõescrimi-nosaseJustiçaRestaurativa,masumasimilitudeentreasestratégiasde

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abordagem,podendo-asserutilizadasparafins ilícitos (facçõescrimi-nosas)ouparaaconstruçãodeumapazsocial(JustiçaRestaurativa),adependerdequalviésideológicotriunfará.

ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS RELATOS FACCIOSOS DOS ADOLESCENTES E OS PRINCÍPIOS E VALORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA OsprincípiosevaloresdaJustiçaRestaurativaprecisamserblin-dadosemrelaçãoàperversão/corrupçãopraticadaspelasfacçõescrimi-nosas, pois ela possui um campo fértil capaz de se ajustar a diversasrealidadesemproldapacificaçãosocial.Valorizaaautonomiadosado-lescentesepotencializaodiálogoentreosenvolvidosnumconflito,iden-tificandosuasnecessidades,umaabordagemquelevaemconsideraçãoacomplexidadehumana(TERREDESHOMMES,2013).Ainda,atuama partir de valores e princípios democráticos, respeito e liberdade, com comunicação não-violenta, com abordagens de aproximação, escuta sen-sível, entre outros. Nãohá,naJustiçaRestaurativa,umroltaxativodeprincípiosevaloresquenorteiamasuaatuação.Elaganhacontornoespecíficosdeacordocomolocalondeestásendoimplementada,oqueafazterumamultiplicidade de princípios e uma gama de valores, assim como cada autortemseuaporteprincipiológico,adependerdasuabaseepistemoló-gica. Elapromovevaloresuniversais,taiscomoorespeito,igualdade,fortalecimento dos vínculos afetivos, uma interconexão dos relaciona-mentos,fundadaapartirdeumavisãoéticadocuidadoentreosindiví-duos. Para tanto, mostra-se necessário a construção de uma justiça que contribua para a emancipação dos adolescentes e de promover princípios democráticos. Os princípios devem ser intrincados com os valores, co-municando-se entre si, fundando-se na observância e respeito aos direi-toshumanos,fugindodecorrupçãoideológicadasuaessência,sejadequem for, da criminalidade ou dos ditos incorruptíveis. Nesse sentido, essa concepção de justiça pode contribuir com os

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adolescentesqueseencontramemvulnerabilidade,negadospeloEsta-do,famíliaesociedade,anãoparticiparemdefacçõescriminosas.Elaatua no sentido de fortalecer e restaurar vínculos, reforçar o sentimento depertencimentodossujeitos,(re)significarideias,afirmaridentidadeeterritorialidade, busca dialogar com todos os afetados pelo problema, dá voz,empodera,exigedoEstado,masnãodependedele(ZEHR,2008). OsprincípiosdaJustiçaRestaurativasãopontosdepartidasparasua compreensão e dialogam com valores humanos que buscam poten-cializar nos sujeitos do conflito um sentimento de pertencimento, so-lidariedade, cooperação, escuta sensível, participação e poder de fala, tornando-os parte importante dentro do processo de solução de contro-vérsias.Assim,“osprincípiosbásicosdajustiçarestaurativaconstituemorientaçõesqueamaioriadenósgostariaqueregessemonossoconvíviodiário”(ZEHR,2008,p.265).Emseguida,compararemososrelatosdosadolescentesinternadosnoCASEcomosprincípiosevaloresdaJustiçaRestaurativa. Apartirdeagora,faremosreferênciaaalgunsprincípiosevalo-resquecontribuemparafazerdaJustiçaRestaurativaumnovoparadig-maderesoluçãopositivadeconflitos.Nãoénossoobjetivodetalhá-losou esgotar a gama de princípios que há na nela, mas dialogaremos com alguns que consideramos vitais para compararmos com as relações inter-pessoaisdosadolescentesquedizemfazerpartedefacçõescriminosas.Asabordagensdasfacçõescriminosasparaincentivaracriaçãodevín-culos dos adolescentes com o grupo, guardadas as proporções, aproxi-mam-sedealgunsprincípiosevaloresdaJustiçaRestaurativa,cadaumacomseuviéseinteresseideológico. Um dos princípios norteadores da Justiça Restaurativa, e quetambémobservamosnosrelatosdosadolescentes,éoprincípiodavo-luntariedade.Esseprincípioorientaquenãodevehaverimposiçãoparaqueossujeitosenvolvidosemumconflitoparticipemdepráticasrestau-rativas,devendoprezarporumaadesãovoluntária.Duranteoprocessode convencimento, as partes são orientadas acerca dos direitos e deve-res nos processos tradicionais e restaurativo, mas essas orientações não podem ser travestidas de coerção. Se isso ocorrer, a restauração restacomprometida.A voluntariedade gera um vínculo e um compromissocom a justiça, almejando a transformação da conduta individual com repercussãocoletiva/socialdaqualossujeitosfazemparte.

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Por outro lado, de acordo com os relatos dos adolescentes, nas relaçõesinterpessoaisdasfacçõestambémexisteanoçãodevoluntarie-dade, não havendo uma obrigatoriedade para que os adolescentes parti-cipemdogrupo,comonosrelataoadolescenteB:“afacçãosóchegaseoboyfordocrime.Seoboyforsossegadoeleérespeitadoeprotegidopelafacção”(NOGUEIRA,2018,p.109) Após sua entrada,mesmo havendo regras dentro facção a sercumprida, os adolescentes podem acatar ou não determinadas orienta-çõesdogrupo.Issoéoqueocorrecomafigurado“salve”4. “Muita gente pensaquetodo‘salve’precisasercumprido.Nãoéporquesedáum‘não’queoirmãovaisercobrado.Osalveéencaradocomoumdireitoeumdever,massemopressão”(NOGUEIRA,2018,p.103).Nessesentido,percebemosqueasestratégiasdavoluntariedadetambémguiamasaçõesdasfacçõescriminosas,cadaumabuscandoseusinteressesespecíficosedentrodasuamatrizideológica,lícitaouilicitamente. Atuarapartirdavoluntariedadecontribuiparafazeremergiroprincípio/valordoempoderamentodos sujeitos, emqueestápresente,também,ovalorrestaurativodanão-dominaçãodeumpelooutro.Nãopodemos confundir a necessidade de empoderamento (em que se busca umamaiorautonomia,dandovozaosindivíduos),comadominação,aqual se pauta em sobreposição e diminuição do outro. AJustiçaRestaurativa trabalhanosentidodeque,paraseem-poderar,nãoprecisadominarooutro,maséimprescindívelsecolocarcomosujeitoativonosprocessosdecisóriosdosgruposnoqualapessoaestá inserida. Nesse sentido, “muitos buscam validação e empoderamen-to.Paraelesocrimeéuma formadegritarpor socorroeafirmar suacondiçãodepessoa”(ZEHR,2008,p.171). Vendo os adolescentes como vítimas das facções criminosas, ao levarmos em consideração a sua condição peculiar de desenvolvimento e suas vulnerabilidades, podemos perceber que eles carecem desse em-poderamento, pois as vítimas “sentem necessidade de empoderamento, incluindoparticipaçãoe segurança.Queremproteçãoe apoio, alguémcom quem partilhar o sofrimento, esclarecimento das responsabilidades eprevenção”(ZEHR,2008,p.183).

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4 Consiste em ordens advindas dos líderes da facção criminosas da qual o sujeito pertence.................................

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CompreendemosqueaJustiçaRestaurativainvestenoempode-ramentopositivodaspessoas,muitasvezesausentedevidoaocontextodevulnerabilidade,oquecompromete suaautonomiadevida.Assim,“a justiça restaurativa devolve os poderes a estas vítimas, dando-lhes um papel ativo para determinar quais são as suas necessidades e como estasdevemsersatisfeitas”(MARSHALL;BOYACK;BOWEN,2005,p. 271). Esseempoderamentotambémdialogacomsentir-sepertencenteadeterminadogrupo,oqualfazpartedanecessidadehumanaedeixaosindivíduos empoderados nas suas relações interpessoais. Podemos per-ceber que os adolescentes veem nas facções criminosas uma alternativa para suas necessidades de pertencer, bem como empoderar-se. Se,porumlado,aJustiçaRestaurativabuscaempoderarossu-jeitos para torná-los protagonistas da sua trajetória de vida, longe depráticas ilícitas, por outro, as facções criminosas busca empoderá-los e encorajá-los para se tornarem “soldados” destemidos da criminalidade. Sãoessasnoçõesquerepercutemnocotidianodosadolescentes,as quais geram um sentimento de coletividade e coesão grupal, calcado noprincípiodaunião,comviésilícito. Nessesentido,oadolescenteAafirmaqueumdosmotivosqueofezparticipardefacçõesfoiopoderqueasarmasdefogoproporcionam,oqualéfacilitadopelasfacções.“Oquemefezentrarparaafacçãocri-minosafoiopoderdefogoqueeladispõe,omaiordoRN,eamaconha.Issome faz sentir beme poderoso” (NOGUEIRA, 2018, p. 100).Nomesmo sentido, outro adolescente relata:

Elesperguntamsetamoprecisandodealgumacoisa:fuga,armas,apoio.Elesdesceumapistola,[escopetacalibre]12,qualquercoi-saquevocêquiserfazerela[facçãoB]ajuda.O[facçãoB]descearmamentoedrogaspragente.Quandoeusairdaqui[CEDUC],játemumrevólvereumapistola(NOGUEIRA,2018,p.123).

Osadolescentesquedizempossuirvínculocomfacçõescrimino-sas,sentem-seempoderados,porémumempoderamentopelofatodeteracessoeportararmasdefogo.Emverdade,essessujeitosprecisamdeum empoderamento pela via da educação, cultura, esporte ou outra fer-ramentaqueosdistanciemdaspráticasilícitas,estratégiasqueaJustiçaRestaurativapodepossibilitar.

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Alémde assentar-se emprincípios, a JustiçaRestaurativa estáfundadanumsistemadevalorespositivos.HowardZehr(2008),umdosprincipaisestudiososdaJustiçaRestaurativa,considera3(três)valorescomo especiais: respeito, humildade e maravilhamento. Orespeitoévistocomocentralnaspráticasrestaurativas,poisossujeitosenvolvidosnosconflitospercebemumamaioratençãoàssuasconcepções, necessidades e valores. O (des)respeito emerge como fator relevante no processo de construção de identidade das pessoas que se envolvememconflitos.Assim,“selevarmosessevalorasério,tentan-do ativamente respeitar as perspectivas, necessidades e valor de todos os envolvidos, inevitavelmente faremos justiça de modo restaurativo” (ZEHR,2008,p.266). Juntamente com o respeito, devemos observar que a humildade tem relevante contribuição para que as vítimas se sintam pertencente e torneoambiente restaurativomaishorizontalpossível.Ela requerumcertoceticismoemrelaçãoaoquepensamosquesabemosefazemos.Emoutras palavras: “nada sei”. Dentrodasuaprópriaconcepçãoderespeito,asfacçõescrimi-nosas articulam suas ações e orientam seus “irmãos” a desenvolverem suasatividadesilícitas.Apalavra“respeito”sefazpresentenosrelatosdos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação no CASE, emalgunsmomentosde formaexplícita, emoutros, de formaimplícita.“Anossafacçãosóvaiatrásdoinimigo,respeitaafamíliadoinimigo.Asegunda regradanossa facçãoé respeitarosoutros” (NO-GUEIRA, 2018, p. 122). Inclusive, eles ponderamque a educação sefaznecessária,poisébompararespeitareserrespeitado(NOGUEIRA,2018). Também,percebemosqueorespeitosefazpresentenoqueeleconsideracomo“sexta regra”da facção,queé:“cumprimentarosco-legas constantemente com um bom dia, boa tarde, boa noite e um forte sinceroabraçonapartedefulanodetal”(NOGUEIRA,2018,p.124).Ainda,asseguraque“lá[nafacção]temunião,coletividade,respeitoecumplicidade”(NOGUEIRA,2018,p.101).Porfim,hámençãoaores-peitonorelatodeoutroadolescentequeanalisamos.Deacordocomele,“éprecisorespeitaretratarbemosirmãosnão‘bulir’comcriança,idosoepessoasinocentes”(NOGUEIRA,2018,p.107). O respeito se coaduna com humildade, mostrando-se como uma

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ferramentaimportanteparaevitargeneralizaçõesecomparaçõesdesleaisentre pessoas com culturas e contextos distintos, sendo imprescindível compreender as singularidades dos sujeitos a partir de uma concepção individualecoletivaaomesmotempo.Assim,“ahumildadepodenosprotegerdeumajustiçaque,enquantolibertadoraparanós,setornaumfardo para os outros - ou, como aconteceu em muitas outras ‘reformas’ precedentes,setornaumaarmacontraaspessoas”(ZEHR,2008,p.267). É importante mencionar que para conseguir se relacionar bem dentrodasfacções,seusmembrostambémprecisamdemonstrarhumil-dadeperanteseuspares.Arendadasfacçõesgiraemtornocontribuiçõesdosseusmembros,onãopagamentodesmotivadosecaracterizacomouma ostentação, uma afronta ao “princípio da humildade”. Os adolescentes asseguram que “cada ‘irmão’ precisa pagar o ‘caixa’mensalmente.Atualmenteessevaloré200reais.Casooirmãoprove que não está em condições de pagar, não têm problemas, mas, se não honrar, será cobrado”. O dinheiro deve ser aplicado de acordo com o interessedogrupo.“Odinheiroéutilizadoparacomprararmasemanteros irmão e suas famílias que estão sendo oprimidos dentro e fora dos presídios”(NOGUEIRA,2018,p.102).Também,“éprecisoajudarapo-pulação que contribui de alguma forma com os irmãos”. Caso o cara seja traficante,éprecisocontribuircomdinheirocomafacção”(NOGUEI-RA,2018,p.110).Porfim,“TemaCebola”/Caderninho/Mensalidadeparaajudaraosirmãosquenãotêmcondições.Mandafeira.Afacçãomeajudadepoisquechegueiaqui[CEDUC].Ela[facção]medádinheiroeajudaaminhafamília”(NOGUEIRA,2018,p.126). Porfim,omaravilhamentoéoutrovalorqueZehr(2008)vêcomoestruturantedaJustiçaRestaurativa,refere-seaomododespreconceituo-so de lhe dar com o desconhecido ou diferente, respeitando e dialogando comascontradições,ambiguidadeseparadoxos.Assim,nãoestaríamospenetrando no íntimo dos indivíduos. É, na verdade “a habilidade de viver com aquilo que desconhecemos, com surpresas e com o aparente-menteilógicoéessencialparaapráticaadequadadajustiçarestaurativa”(ZEHR, 2008, p. 267). É uma forma de encarar o desconhecido comprazer. Diantedas suas circunstâncias, os adolescentes se sentemmo-tivados a encarar o universo nebuloso das facções criminosas com um certoníveldeprazer, sejaporestaremportandoarmade fogo,sentin-

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do-sepertencenteaogrupoou, atémesmo,por acreditaremqueestãoresguardando sua vida, já que esses grupos vendem uma falsa sensação desegurança.Isso,muitosedeveaoprocessodeconscientização/sedu-ção desenvolvido pelas facções criminosas com os adolescentes que se encontram em vulnerabilidades psíquicas e materiais. AlémdessesvaloresapresentadosporZehr(2008),mencionare-mos outros que se mostram fundamentais para um bom aproveitamento daspráticasrestaurativas.Aessênciapolíticadoserhumanoofazcomquenecessiteparticiparetervozativanosprocessosdecisóriosnosgru-pos.Percebendoessacarênciaparticipativanossujeitos,aJustiçaRes-taurativa, por meio de suas práticas, investe nessa lacuna. Aparticipaçãofazcomqueosadolescentessesintampertencen-tes ao ambiente em que está inserido, seja na escola, família, emprego ounosistemasocioeducativo.Dificilmente,alguémsesentiriabemnumambiente em que fosse “engolido” por valores institucionais e autoritá-rios que torne suas opiniões coadjuvantes em meio a um protagonismo institucional/grupalestaque.AJustiçaRestaurativaincentivaaparticipa-ção dos envolvidos, no sentido de que todos que se inserem nas práticas restaurativas têm algo valioso para contribuir. Paraseconseguirumaparticipaçãoativaevaliosa,énecessáriohaverhonestidade,essencialàefetivaçãodajustiça.AJustiçaRestaura-tiva almeja que as pessoas falem a verdade sobre seus anseios, respon-sabilidades, angústias e transgressões sofridas ou praticadas, que sejam transparentesnosdiálogos,poisédefundamentalimportânciaparaman-ter a coesão grupal e o sentimento de coletividade. É válido relatar que atransparênciaficarestritaaogrupoqueestáparticipandodoprocessorestaurativo. Aparticipaçãoestáatreladaàpráticadeumaescutasensível,vistacomoumdosvaloresqueconquistaosenvolvidosnoconflito,tornando--osimportantesnaresoluçãodacontrovérsia,sobretudoosadolescentes,historicamentecensuradospelasociedadeeEstado,emquenãodispõemdevozevez.Elespodemvernessevalorumaformadeexpressarsuasangústias, sentimento e emoções, a partir de uma cultura de respeito e diálogo entre os envolvidos. Issoserelacionacomoutracaracterísticamarcantenocotidianodas facções criminosas. É que os “irmãos” não podem tomar decisão isolada,poiséprecisoprezarpelavontadedacoletividade.Comonin-

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guémquerperderpoderdedecisão,todosnecessitameexigemterumaparceladecontribuiçãonoatoaserdecidido.Portanto,éprecisodecidircoletivamenteparahonraresatisfazeravontadedetodosenãoperderacaracterísticaunívocadasdecisões.Quemdecideéafacção,masnãoo“irmão”específico.Adecisãoédo“colegiado”. Nesse sentido, observemos nos discursos dos adolescentes que as tomadas de decisões isoladas são proibidas dentro das facções e passí-veis de punição.

Nas operações da polícia e durante a guerra dentro dos presídios afugaéproibida.Sópodefugirseforescolhidopelafacção,ge-ralmente[osescolhidossão]quemjápuxoumuitacadeia.Aque-lesque fugiuduranteaguerra láemalcaçuz, sabe?!enão tinhaautorização,vãosercobradosporquetomaram decisão isolada e deixaramosirmãosnamão(NOGUEIRA,2018,p.125).

Nãosãosóasfacçõesqueprezampelavontadedacoletividade,aJustiçaRestaurativatambémseutilizadetalestratégia.Elabuscaporinterconexão entre os sujeitos, privilegia a participação dos sujeitos en-volvidos,trazendoainfluênciadacoletivaparaoprocessodecisórioeafirmaumaautonomiaparticipativadosenvolvidos. Osadolescentescarecemdevoz,necessitamfazerpartedospro-cessosdecisóriosdasuacomunidadeparaquesesintampertencentesagrupos, uma necessidade de todo ser humano. Por isso, acreditamos que os resquícios de democracia participativa, presente no interior das fac-ções,tambémvêmcontribuindoparaaparticipaçãodeadolescentes,maspodemsersubstituídosporvaloreseprincípiosdaJustiçaRestaurativa.Quantomenosvozdermosaosadolescentes,maiselesvãobuscarparti-cipaçãonosprocessosdecisóriosdasfacçõescriminosas. Essaparticipaçãoeodireitoavozdosadolescentestambémen-contra respaldo legal.OEstatutodaJuventude,quefoi instituídopelaLeinº12.852de2013,prevêqueosjovensdevemparticipardoscon-selhosedeliberações,comdireitoàvozevoto.Noartigo4º,oestatutopondera que o “jovem tem direito à participação social e política e na formulação, execução e avaliação das políticas públicas de juventude”. Maisespecificamente,noincisoIVdoreferidoartigoassegura“aefetivainclusãodosjovensnosespaçospúblicosdedecisãocomdireitoavozevoto”.

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TantoasfacçõesquantooEstadopercebemessedéficitdeparti-cipaçãodosadolescentesnosprocessosdecisóriosqueosrodeiam,masoviésparticipativovoltadoàcriminalidadeestásobressaindoemrelaçãoaoviésemancipatórioeautonômicodosadolescentes,quedeveriamserpotencializadospeloEstado,famíliaesociedade. Éurgente(re)construirmosalgunssignificadosnosadolescentesquesemostrampróximosdepráticasfacciosaseemconflitoconsigo,necessitando de um novo sentimento de justiça, isso porque “a verda-deira justiça não acontecerá a não ser que as pessoas e relacionamentos sejam transformados em algo saudável de modo que a violência não seja recorrente”(ZEHR,2008,p.179). Diantedessesambientesondepredominaaatuaçãode facçõescriminosas, os adolescentes se portam como vítimas e ofensores. Ofen-sor de vítimas e vítima das suas vulnerabilidades. Nesse contexto, per-cebemos que a JustiçaRestaurativa pode contribuir no intuito de (re)significarvalores,poispartedaconcepçãodeque“asvítimastêmne-cessidadedesegurança,reparação,justificaçãoeempoderamento,masprecisam,especialmente,encontrarsignificado”(ZEHR,2008,p.183). Essaparticipaçãodossujeitosgeraumsentimentodecoletivida-de ou interconexão, vista como primordial nas práticas restaurativas, ou seja,ocoletivoemdetrimentodoindividual.Assim,todasaspessoassãovistas como valorosas e responsáveis pela comunidade da qual pertence. Comisso,aJustiçaRestaurativabuscaumainterconexãoentreospares,compartilhartristezasealegrias,gerandoumsentimentocomunal,umaresponsabilizaçãorecíprocaeuníssona. Ser responsávelpelos atosquepraticamosparece serumpesopara carregarmos, mas quem não possui responsabilidades está fadado a cair no ostracismo comunitário ou se tornar um “marginal” das rela-çõessociais.Darresponsabilidade,direitosedeveresàspessoasqueseencontramemvulnerabilidadespodeserumpassopositivoeestratégicoparaevitartransgressõesepotencializarosentimentodeagentestrans-formadoresdarealidadesocialposta.Nessesentido,aJustiçaRestaurati-va busca afastar o sentimento de culpabilidade das pessoas e ensejar uma responsabilizaçãopelosatospraticados,vistocomoumdanoàcoletivi-dadeenãoaoEstado. Abuscapelacoletividadeéum“valor”essencialdentrodasfac-çõescriminosas,potencializadapelanoçãodepertencimento,oquefaz

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emergirumsentimentodeuniãodentrodogrupo.Issodespertaointeres-sedosadolescenteseafloraumsentimentodepertencimentoaogrupopormeiodoincentivoaparticipação,do“nós”emdetrimentodo“eu”. Podemosperceberqueessesgruposcriminosos,utilizando-sedeestratégiasparaatacaresedefenderdeseusinimigos(Estadoefacçõescriminosasrivais),fazemaflorarnosubjetivodosadolescentesumano-çãodepertencimento,dialogando,também,comanoçãodepoder,emqueos“soldados”dasfacçõessãocapazesdemataroumorreremnomede um coletivo. Os relatos a seguir retratam bem essa necessidade de pertencer à umacoletividade.“Odesejodepertenceraumgrupofoioquemefezparticipar de facção, lá tem união, coletividade, respeito e cumplicida-de” (NOGUEIRA, 2018, p. 101).Outro adolescente, namesma linhaargumentativa,pondera:“obom,também,équesempretáo‘mói’,todomundojunto,nuncatápouco,sempretodomundoarmado”.Econclui:“euseiqueopoderosoéoládecima,masagentetambémsesentepo-derosoporquesabequeninguémvaimexercomnós,agentepodecontarcomafacção”(NOGUEIRA,2018,p.123). AsensodecoletividadeepertencimentoinstigadopelasfacçõessódespertaminteressedosadolescentesenquantoelesnãopercebemqueessesgruposbuscamresponderàsopressõesdoEstadodando-lhesumaparticipação“democrática”opressora.Porém,comoademocracianãosignificavontadedamaioria,algunsnãosesentembemcomoummem-brodocoletivoepreferemaindividualidade,nãosefiliando/batizandoafacçõescriminosas.Esterelatopodenosajudarnessacompreensão:“nãopretendo entrar para facções porque quero ser eu mesmo. Nas facções agenteprecisaajudaraosirmãoeficardandosatisfação,agenteacabaficandopresoaosistema”(NOGUEIRA,2018,p.110).Asensaçãodecoletividadenãoévistadeformapositivapeloadolescente,poispodeatésignificarliberdadeeabertura,mastambémcensuraeopressão. Como forma de criar um significado simbólico na cabeça dos adolescentes sobre seu pertencimento, as facções criminosas lançam mão de uma estratégia que tem grande repercussão e obediência dos “irmãos”: o batismo. O sujeito “batizado” tem vez, voz e voto, ou seja, ele pertence, efetivamente, ao grupo faccioso. Para empoderar-se é preciso pertencer, o que percebemos que essas duas categorias andam lado a lado. Portanto, “o ‘batismo’ é a formalidade necessária que garante a identidade e perten-

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cimentodeumsujeitoàfacçãocriminosa”(NOGUEIRA,2018,p.121). Diantedisso,percebemosqueéimprescindível(re)significarasconcepções dos sujeitos, e isso tem sido uma das preocupações da Jus-tiçaRestaurativa, sobretudouma(re)significaçãodoconceitode justi-ça,afetosetrajetóriasdevidasdaspessoas.Podemosconceberquenoscírculosrestaurativos,queéumadaspráticasrestaurativas,“aspessoasseaproximamdasvidasumasdasoutrasatravésdapartilhadehistóriassignificativasparaelas”(KAY,2010,p.16). Infelizmente, essa (re)significação das concepções dos adoles-centesépervertidaetrabalhadapelasfacçõescriminosas.Elaspossuemumacapacidadede(re)invenção,assimcomoinverteelimitaosignifica-doealógicadascoisasqueosrodeiamparaproveitodacriminalidade.Issoacontece,porexemplo,comoprocessoeducacionaldosadolescen-tes,oqualéinvertidoeutilizadoparaatenderaosinteressesdasfacções.“Aeducaçãoémuitoimportanteparaapessoa.Aténocrimeéprecisoagentetereducação,senãotiver,écobrado”.Indagadocomoessaeduca-çãosefazpresentenacriminalidade,oadolescenterespondeu:“éprecisorespeitar e tratar bem os irmãos não ‘bulir’ com criança, idoso e pessoas inocentes”(NOGUEIRA,2018,p.107).Nomesmosentido,identifica-mos o seguinte relato: “para subir na hierarquia precisa ter muito dinhei-ro, muitos homicídios e muito conhecimento, experiência, se possível, ser formado no crime e na faculdade [nível superior]” (NOGUEIRA,2018, p. 85). Mesmo que “involuntariamente”, as facções comprometem a for-mação educacional e profissional dos adolescentes, que passa a manter alguma relação com o grupo, como veremos o relato a seguir. “O crime me desviou da escola. Antes do crime eu gostava de ir pra escola e me dava bem. Estudei até o 8º ano e nunca fui reprovado. Parei com 15 anos de idade” quanto à carreira profissional, ele relata que “no crime rola di-nheiro fácil. Ninguém quer trabalhar. Nunca imaginei seguir nenhuma carreira profissional, o crime não deixa nós pensar nisso” (NOGUEIRA, 2018, p. 108). Diante desse contexto, a Justiça Restaurativa também se preocupa em proporcionar um tratamento igualitário entre os envolvidos, deven-do levar em consideração as necessidades psíquicas e materiais que os ladeiam. Aqui, não cabe coerção nem retirar o poder de decisão dos su-jeitos, já que a carência de participação nas tomadas de decisões é obser-

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vadanaresoluçãodeconflitosdesenvolvidaspeloEstado,emquedeumladoficaavítima,dooutrooofensor,emcima(nosentidodesuperior)oEstadoeàmargemasociedade.Assim,

os valores e princípios da justiça restaurativa devem moldar a na-turezadosrelacionamentosentreosoperadoresdejustiçarestaura-tiva e todas as outras partes com um genuíno interesse no assun-to, incluindo agências governamentais que contratam serviços da justiçarestaurativadeoperadoresdacomunidade(MARSHALL;BOYACK;BOWEN,2005,p.271).

Ograndedesafioédialogarosprincípiosevalorescomos in-

teresses estatais, comunitários e governamentais sem perder a essência restaurativa.Paratanto,tambémaparececomopreocupaçãodaJustiçaRestaurativaaimplementaçãodeumaculturademandistaderesoluçãodeconflitos,sobretudodentrodasinstituiçõesquebuscamnaspráticasrestaurativasaporteparasolucionarseusconflitosesobretudoaumentarseus índices de produtividade. Buscar a igualdade de tratamento sem afrontar os interesses hu-manos e institucionais é um desafio, porém não podemos negar que,hodiernamente, almejar igualdades se mostra como indispensável nas relações sociais, seja abuscapor igualdadematerialou formal.Essasigualdades se expressam por diversas facetas, cada um com suas especi-ficidadeseinteresses. No caso das facções criminosas, no decorrer dos relatos dos adolescentes, implícita e explicitamente, é possível perceber a busca por igualdade. Veremos este relato: “quando a gente entra para a facção é pre-ciso honrar e buscar a igualdade para todos os ‘irmãos’ que estão sen-do oprimidos diariamente nos presídios do país” (NOGUEIRA, 2018, p. 101). Eles buscam uma noção de igualdade própria, criada pelas fac-ções, não se expressando como uma igualdade formal e material calcada nos ditames democráticos constitucionais, mas uma igualdade seletiva entre seus membros das facções criminosas, observada a partir do seu código jurídico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Oproblemadas facções é de índole psicossocial, que envolvequestõesafetivasesimbólicas,nãoapenasumaquestãocriminal.Oado-lescente se mostra carente de voluntariedade, convivendo diariamente com tribulações, encontrando, na violência, a saída para descarregar sua indignação. CompreendemosqueaJustiçaRestaurativa temsuasbasesempovosindígenaseaborígenes,osquaisprezampelacoletividadeemde-trimentodoindividual.Alémdequetemumacapacidadedeadaptabili-dadeparasolucionarconflitosdediversasnaturezas,obedecendoprincí-pios e valores humanos. Diantedisso, identificamos,apartirdos relatosdosadolescen-tesinternadosnoCentrodeAtendimentoSocioeducativoMossoró-RN(CASE),que,mesmoque involuntariamenteou inconscientemente,asfacçõescriminosascorrompemepervertemosvaloresdaJustiçaRes-taurativa emprol de angariar novosmembrospara fazer parte do seu“exército”quepraticamatividadesilícitas. Duranteotrabalho,percebemosqueosprincípiosdavoluntarie-dade, união e humildade estão presentes tanto nas relações das facções criminosasquantonaJustiçaRestaurativa.Alémdosprincípios,osva-loresdaparticipação,pertencimento,poderdevoz,escutasensível,res-peito, humildade, coletividade, maravilhamento, união, empoderamento, igualdade, fortalecimentodosvínculose ética sãopontoscomunsnasfacçõescriminosasenaJustiçaRestaurativa,sendoutilizadoapartirdasuabaseideológica.Asfacções,utilizam-separaseduzirecooptarsu-jeitosafazerempartedogrupofaccioso.JáaJustiçaRestaurativabuscafortalecerosvínculosdosindivíduosembuscadapazsocial. NãoacreditamosqueaJustiçaRestaurativasejasacrossanta,maspossui potencialidades para fortalecer os vínculos comunitários e fami-liaresdeadolescentes, empoderá-los e fazer aflorarumsentimentodepertencimentocomunitáriodistantedaspráticas ilícitas.Essaspráticasdevem ser observadas juntamente com o apoio familiar, no sentido de contribuirparaqueessessujeitossetornemprotagonistasdasuatrajetó-ria de vida e não sejam mais um coadjuvante do anti-heroísmo corrom-pido das facções criminosas.

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Porfim,percebemosqueacorrupçãoideológicadosprincípiosevaloresdaJustiçaRestaurativapelasfacçõescriminosasnãoacontecedeformaintencional,nosentidodeseutilizar,especificamentedetaisestra-tégiasparafortalecerogrupocriminoso.Acorrupçãoacontecedeformainconsciente e inconsequente, já que não há notícias de que as facções se utilizamdaspráticasrestaurativasparapraticaratividadesilícitas.

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Direito à busca pela felicidade: perspectiva constitucional

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João Batista D. de Medeiros Neto¹Lucas Lima Silva²Sara Adna dos Santos Bessa³

1 Graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected] Graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected] Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected]

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Resumo: O presente artigo contempla a utilização da narrativa jurídicade um direito à busca pela felicidade que vem encontrando espaço nas duascortesdemaior instânciadoPoderJudiciáriobrasileiro.Essear-gumentoéimportanteparaaproteçãodosdireitosfundamentais.Des-saforma,convémanalisardecisõesjudiciaisquepossuemcomoumdeseuspilaresagarantiadabuscapelafelicidade.Deinício,busca-secom-preender as raízeshistóricas eo conceitodessa expressão,bemcomoexaminaralinhajurisprudencialemconstruçãopeloSupremoTribunalFederalepeloSuperiorTribunaldeJustiça.Alémdeverificaraeficá-cianaaplicaçãodosdireitosfundamentaisatravésdotemaemestudo.Paratanto,lança-semãodarealizaçãodepesquisadecamponossítioseletrônicosdoSTFeSTJ,colhendodecisões judiciaisparaumestudo

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decaso.Tem-secomoreferencialteóricoosautoresDanielSarmentoeCláudioPereiradeSouzaNeto,HumbertoÁvila,SaulTourinhoLeal,AristóteleseJohnS.Mill.Porfim,conclui-sequeatesedodireitoàbus-capelafelicidadeéinstrumentohábilnatuteladosdireitosfundamen-tais,eisquepodefuncionarcomoumaespéciedenormainterpretativapara efetivação das garantias individuais.

Palavras-chave: Direitoàbuscapelafelicidade.Direitosfundamentais.Jurisprudência.

Abstract: The present article contemplates the use of the legal narrative of righttothesearchforhappinessthathasbeenfindingspaceinthetwocourtsofgreaterinstanceoftheBrazilianJudiciary,inturn,naargumentthatmaybehealthyfortheprotectionoffundamentalrights.Inthisway,it isappropriate toanalyze judicialdecisions thathaveasoneof theirpillarstheguaranteeofthesearchforhappiness.Atfirst,weseektoun-derstand the historical roots and the concept of that expression, as well as examine the jurisprudencial line under construction by the Federal SupremeCourtandtheSuperiorCourtofJustice,inadditiontoverifyingthe effectiveness in the application of fundamental rights through the subjectunderstudy.Inordertodoso,itmakesuseofthefieldresearchintheelectronicsitesoftheSTFandSTJ,gatheringjudicialdecisionsforacasestudy.WehaveastheoreticalreferencetheauthorsDanielSarmen-toandCláudioPereiradeSouzaNeto,HumbertoÁvila,SaulTourinhoLeal,AristotleandJohnS.Mill.Finally,itisconcludedthatthethesisofthe right to search for happiness is a skillful instrument in the protection of fundamental rights, and this can function as a kind of interpretative norm for the effectiveness of individual guarantees.

Keywords: Righttothesearchforhappiness.Fundamentalrights.Ju-risprudence.

JOÃO BATISTA D. DE MEDEIROS NETO, LUCAS LIMA SILVA E SARA ADNA DOS SANTOS BESSA93 |

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INTRODUÇÃO

Trata o trabalho sobre a proteção aos direitos fundamentais atra-vésdaconstruçãojurisprudencialdodireitoàbuscapelafelicidadeque,outroraveioà tonaatravésdaDeclaraçãodeDireitosdaVirgínia,em1778, sendo este registro pioneiro na menção àquele direito em um di-plomaoficial.Porse tratardeumdireitonãopositivadoemnossoor-denamento jurídico, seria possível utilizar este preceito na defesa dasgarantias individuais? Nessesentido,faz-senecessárioanalisardecisões judiciaisquetêmcomobasesjurídicasagarantiapelabuscadafelicidade.Assim,vis-lumbra-serelevanteconhecerasraízeshistóricaseoconceitodaquelaexpressão, bem como investigar a linha jurisprudencial em desenvol-vimentopeloSTFeSTJ.Paralelamente,importaverificaraeficácianaaplicação das garantias individuais por meio do objeto desse estudo. UrgeesclarecerqueainterpretaçãodoDireitoéumaatividade,ao mesmo tempo, nobre e difícil. Primeiro por ser um campo vasto e suscetíveldeopiniõesdiversas,segundoporquedefiniraextensãodeumdireitopodeserimpreciso,hajavistasuaindeterminação.Porestarazão,uma pesquisa sobre o direito à busca pela felicidade se revela instigante edesafiadora,jáqueabordaassuntopoucodiscutidonocenáriojurídicobrasileiro, mas que vem sendo usado por alguns tribunais como instru-mentode interpretaçãodeoutrasnormas.Ao realizarmospesquisanoPeriódicoCapes/Mec,emoutubrode2018,constatamosquehaviacercade três trabalhos elaborados com o tema direito à busca pela felicidade. Alémdisso,apartirdeumasituaçãosurgidanoambientedetrabalhodoautorJoãoBatistaD.deMedeirosNeto,pudemosiniciardiscussãoacer-ca de um caso jurídico que estava, indiretamente, associado ao direito à busca pela felicidade. Fato que despertou ainda mais inquietação para a pesquisa. Oportunamente,registre-sequeasideiasdoprofessorHumbertoÁvilasobreaexistênciadenormasinterpretativas–normasdesegundograu – foram incorporadas ao estudo, assim como algumaspremissasdatesedeSaulTourinhoLeal,especialmenteasconcernentesaodesen-volvimentohistóricoeoconceitododireitoàbuscapelafelicidade.Domesmomodo,concepçõesfilosóficasdeAristótelesacercadafelicidade

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4 A par disso, visualiza-se trecho da Carta da Virgínia: “Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos [...] que são: o gozo da vida e da liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar obter felicidade e segurança”. Já na França: “Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos

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e,porigual,liçõesdeJohnS.Millarespeitodoutilitarismo.TambémdegrandevaliaforamosensinamentosapreendidosatravésdosautoresDanielSarmentoeCláudioPereiradeSouzaNetoacercadajurisdiçãoconstitucional. Porestaslinhas,tem-searealizaçãodepesquisadecamponossítios eletrônicos do STJ e STF, colhendo decisões judiciais para umestudodecaso.Paratanto,analisa-seoRecursoEspecialn.1626.739eaArguiçãodeDescumprimentodePreceitoFundamentaln.132,ambosos casos fazemuso de argumentação amparada no direito à busca dafelicidadecomoreflexodadignidadedapessoahumanaedaigualdade. No mais, importa destacar que o presente artigo está dividido de formaque,incialmente,reserva-seaexposiçãodocontextohistóricoeaoconceitododireitoàbuscapelafelicidade.Emseguida,dizrespeitoàapli-caçãopráticadaquelaexpressãoemdecisõesjudiciais.Porfim,vê-seaeficáciadetaldireitonatuteladosdireitosindividuais,levando-seemcon-ta,inclusive,apossibilidadedereconhecê-locomoespéciedepostulado.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONCEITO DO DIREITO À BUSCA PELA FELICIDADE O século XVIII trouxe consigo a primazia pela liberdade eigualdade, notadamente através do Iluminismo e da IndependênciadastrezecolôniasdaAméricadoNorte.Comefeito,apósentravesbé-licos entre osEstadosUnidos e a Inglaterra, na década de 70, viu-sedespertar,pormeiodaCartadeDireitosdaVirgínia,aacepçãododi-reitoàbuscapelafelicidade.Emcontinuidade,percorrendoumalinhado tempo, observa-se que essa ideia foi reavivada alguns anos depois dosupracitadodocumento, jápelaDeclaraçãodeDireitosdoHomeme do Cidadão, em 1789, na qual revolucionários franceses fizeramreferência ao direito a certa felicidade geral4(LEAL,2013).

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Jáem1948,quandodacelebraçãodaDeclaraçãoUniversaldosDireitos Humanos, o direito à busca pela felicidade seria enaltecido,aindaqueindiretamente.Dessavez,destacandogarantiasessenciaisàspessoas, como, por exemplo, a vida e a dignidade. Nesse ambiente, os retrocessoséticosejurídicosderivadosdeumaobscuracrisehumanitá-riaqueassolouomundoduranteeapósaIIGuerraMundial,fezsurgiraurgênciaemestabelecer,atravésdenormasquepudessemexprimirvalo-res universais, estandartes legais para a preservação de uma vida digna e a promoção do livre desenvolvimento da personalidade de cada cidadão. Notadamente,firmando-secaminhosafimdeatingirumestadodebem--estarsocial.Essadefinição,porsuatrilha,caracterizaapassagemdeumEstadoLiberal–subsidiário–paraumEstadoSocial–prestacional–istoé,tendocomoênfaseumaposturapositivanabuscaporconcretizardeterminados direitos. Cumpre destacar, ainda, um processo de despatrimonializaçãoquefincouraízesprofundasnosistemajurídicoemâmbitointernacionale local, deslocando do centro dos ordenamentos o cunho patrimonialista para ceder espaço a uma visão mais sensível e existencial da ciência doDireito.Sobremaneirapormeiodaforçanormativaemaioralcancejurisdicional das constituições. Frise-se que a acepção do termo busca pela felicidade possui certa indeterminação semântica, eis que se mostra imprudentetentardefini-locomoumverbetededicionário. Portanto,cabeaoDireitodescortinarosmeandrosdessaespéciede postulado e, conhecendo seu alcance, usá-lo como uma norma que estabeleçaparâmetrosàaplicaçãodegarantias individuais/existenciaisdaspessoas.Porisso,podedemonstrar-serazoáveloentendimentoqueabuscapela felicidadese revestedomesmovéudaschamadasmeta-normas(ÁVILA,2016),poissãoessascapazesdeoxigenarosistemanormativoafimdepermitirinterpretaçãomaispontualdodireitoquanto

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direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [...] a fim de que as reivindicações dos cidadãos [...] se dirijam sempre à conservação da Consti-tuição e à felicidade geral”.

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CONTEÚDO JURÍDICO E CONTORNO FILOSÓFICO Asentrelinhasdodireitoàbuscapelafelicidaderessoamemdife-rentescamposdosaber.Dessaforma,abasenormativadestepreceitoserefere,comoantesmencionado,aumaespéciedemetanorma,carregadodeamploteorsemântico.Dessarte,configurando-secomofidedignopos-tuladoimplícitoaovérticeprincipiológicodoprojetoconstitucional. Doutro lado, quanto àFilosofia, é preciso nos voltarmos até aGréciaAntiga,nasliçõesemanadaspelomestredoliceu.Paratanto,fa-lava-senaobraÉticaaNicômacoarespeitodaeudaimonia,nomencla-turautilizadaparadenotaraconquistadeumafelicidadeque,porsuavez,expressavaafinalidadenecessáriaemaiordoserhumano.Porestaslinhas de intelecção, destaca-se o registro:

Afelicidade,acimadetodasasoutrascoisas,pareceserdetaltipo,jáquenósaescolhemossempreporsimesma,ejamaisemvistadeoutracoisa;ahonra,oprazer,arazãoetodasasoutrasvirtudes, tambémnósasescolhemosporsimesmas,masasescolhemostambémemfavordafelicidade,eéatra-vésdelasquepensamosserverdadeiramentefelizes.Masafelicidadenuncaéescolhidagraçasaestesbens,senãoporsimesma(Aristóteles,2015,p.26).

Noutromomento,Epicurotambémindagousobreotemasobre-dito, levando em conta os desejos humanos e as virtudes para a consecu-çãodeumavidafeliz.DiferentementedostraçospertencentesàcorrenteHedonista,enaltecidaduranteadécadade70dosanos1900–marcadapelo movimento hippie – emque sedefendiaoprazer comobemsu-premoefinalidadeprecípuadetodasasaçõeshumanas.Apartirdisso,criou-se um símbolo de comportamento social, pelo qual se visava atin-girafelicidadeatravésdecondutasmundanas,inconsequentesedesme-didas.Emcontrapartida,afelicidadenaliteraturaepicuristaéalcançadaporaçõessábias,moderadasejustas(LEAL,2013). Por outra entoada, emmeados do século XVIII, viria à tona,por meio do pensamento utilitarista, a busca por um estado de felici-dade conquistável por condutas boas do ponto de vista moral, senão ve-jamos:

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OcredoqueaceitaaUtilidade,ouoPrincípiodaMaiorFelicida-de, como fundamento da moralidade, defende que as ações estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, erradas namedidaemquetendemaproduziroreversodafelicidade.Porfelicidade,entende-seoprazereaausênciadedor;porinfelicidade,adoreaprivaçãodoprazer(Mill,2005,p.48).

Nessa conjuntura, depreende-se que a felicidade foi, em diferen-tesépocaselugares,postasoboexamecontemplativodoshomensque,minuciosamente, analisaram-na em contraste aos anseios humanos. Com efeito, pode-se dizer, a respeito do tema referido, tratar-se de assuntoatual, relevante e propulsor de discussões profundas, que centralizamclímax em face da busca e obtenção daquele sentimento de bem-estar. Importa,pois,aosestudantesdodireito,dianteaocenáriojurídicoho-dierno, expor em debate a repercussão de um embrionário direito à busca pela felicidade e suas implicações.

DIREITO À BUSCA PELA FELICIDADE COMO MÁXIMA DA AUTODETERMINAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO FrenteaofamosoOráculodeDelfosecoavainoxidávellição,asaber: “Conhece-te a ti mesmo”. Tal expressão representava a busca por autoconhecimento, conceito tão importantequeaindahoje se fazpre-sentecomotônica,sobremaneiraemmeioaumasociedadeplural,pelaqualnascemmúltiplasreivindicações.Nessecenário,porvezes,tem-serecorridoaoâmbitodoPoder Judiciário, em funçãododesdémoudamorosidadedoPoderLegislativo,afimdeconcretizardireitosque,umavezalcançados,perfazempertinentemanifestaçãodabuscaporumade-mocracia inclusiva e pela felicidade. Para tanto, quando do silêncio da lei insurgem demandas que ne-cessitam de uma resposta adequada constitucionalmente, é através dafonte jurisprudencial, geralmente, em que se desenha um caminho para exalarapropriadaprestação(SANTOS,2011). Nessepanorama,noanode2016oSuperiorTribunaldeJustiça,pormeio da quarta turma, tendo como relator oMinistroLuis FelipeSalomão,julgouoRecursoEspecialn.1626.739,emquesediscutiaa

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possibilidadederetificaçãodonomeesexo/gêneronoregistrocivildeuma pessoa que não havia se submetido à cirurgia de redesignação se-xual.

Açãoderetificaçãoderegistrodenascimentoparaatrocadepre-nome e do sexo (gênero) masculino para o feminino. Pessoa transe-xual.Desnecessidadedecirurgiadetransgenitalização.1.Àluzdodispositivonosartigos55,57e58daLei6015/73(LeideRegistrosPúblicos), infere-se que o princípio da imutabilidade do nome, con-quanto de ordem pública, pode ser mitigado quando sobressair o in-teresse individual ou o benefício social da alteração, o que reclama, em todo caso, autorização judicial, devidamentemotivada, apósaudiênciadoMinistérioPúblico. (BRASIL.SuperiorTribunaldeJustiça.REsp.n.1626.739.RelatorMin.LuisFelipeSalomão.Jul-gamento:09.05.2017.4ºTurma.Datadapublicação:01.08.2017).

Antesde se lançarmaior deliberação sobreo casoora emco-mento, soa relevante esclarecer algumas peculiaridades a respeito das prerrogativasemdestaquenaocasiãodojulgamento–onomeeocorpo–,que,porseuspercursos,figuramcomodireitosindividuaisoudaper-sonalidade. Portanto, imprescindíveis para proporcionar dignidade e o livre desenvolvimento da persona aos cidadãos. Assegura-se,naformadosart.16ao18doCódigoCivil,proteçãoaonomeanteodesprezopúblico,condutasdifamatóriaseusocomercialirregular, compreendido a salvo o prenome, patronímico e agnome. Bem assim,alei6015/73,quedispõesobreregistrospúblicos,concebeodi-reito ao nome como uma face necessária à composição da identidade dos indivíduos, seja perante a família, seja perante a sociedade, dotada da emergência de propiciar segurança jurídica na vida civil. Detalsorte,oobjetivoprecípuododireitoregistralaocelebraronomeesuaimutabilidadeéfestejar,alémdoprincípiosupramencio-nado,apublicidade,juntamenteàlegalidadedosatosenegócios.Comefeito, em regra, as possibilidades de mudança de nome são, segundo os artigos 55 a 58 da referida norma, as seguintes: a) nome que exponha o interessadoaconstrangimentoouridículo,b)dentrodoprazodeumano,apósatingidaamaioridade,édireitopotestativodointeressadomodificaroprenome,c)excepcionalemotivadamente,porsentença,d)emrazãodeapelidopúbliconotório.Entretanto,conquantosejaessepreceito–aimutabilidadedonome–deordempública,diz-sequepodeessesermi-

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5 Destaca-se o caso do movimento body art, isto é, pessoas que em homenagem a algum padrão estético, utilizam o próprio corpo como forma de expressar valores. No entanto, fazen-do-o por meio da prática de automutilação. Nesse panorama, percorrem em direções opostas a garantia personalíssima à integridade física e a autonomia sobre o corpo, sobretudo uma vez que os indivíduos adeptos ao body art afirmam ser tal atividade uma manifestação artís-tica e cultural, revestida na liberdade de expressão.

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tigado em virtude de interesses individuais e existenciais que legitimem eventualmodificaçãonoregistrocivil. Dessemodo, com a germinação de novas angústias e anseiossociais, simultaneamente, florescem desafiantes reivindicações, refle-tindo-se no entendimento dos tribunais que têm prosseguido, a passos largos,sobreos ladrilhosdeumahermenêuticaconstrutiva.Exaltandoa dignidade humana e analisando com apurada sensibilidade as joviais pretensõesdossujeitosdedireito,aexemplodojulgamentodoREsp.n.1008.398derelatoriadaMin.ªNancyAndrighi,sobajurisdiçãodoSTJ. Doutrolado,enfatiza-seaproteçãoaocorpo,igualmenteclassi-ficadocomoumdireitodapersonalidade.Destafeita,deacordocomoartigo13doCC/02,restavedadoqualquercomportamentosemrespaldomédicoquefindeemdisposiçãodoprópriocorpo,eque,porseuturno,contrarie os bons costumes causando diminuição permanente da inte-gridade física5.Entretanto,estemandamentopodeseratenuadoanteacircunstâncias relevantes que contemplem e estejam calcadas no respeito à autonomia individual e a autodeterminação. Nessesentido,verifica-sequeasituaçãoemestudofoiapazigua-daporumasólidaatividadejurisprudencialedoutrinária,sobressaindo--seodireitoaoperaçãodetransgenitalizaçãocomoreflexodadignidadehumana, alémdaposteriormodificaçãodo registroquanto aonomeegênero. Esteposicionamentoencontrafundamentonoenunciadon.276daIVJornadadeDireitoCivil,queassevera:“Oart.13doCódigoCivil[...] autoriza as cirurgiasde transgenitalização, emconformidade comos procedimentos estabelecidos pelo CFM, e a consequente alteração do prenomeesexonoregistrocivil”.Aindaemconsentâneaaessepensa-mento,extrai-seimportantereflexãodoenunciadon.43daIJornadadeDireitoàSaúde:“Épossívelaretificaçãodosexojurídicosemarealiza-çãodecirurgiadetransgenitalização”. Todavia, de maneira transversal emerge demanda singular, mas

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tãodelicadaquantoaquela.Dessaforma,retomadaaanálisedoREsp.n.1626.739,põe-seemcolisãoapretensãodeadequaçãodonomeegêneronoregistrodepessoaquenãorealizoucirurgiaparamudançadesexo.Esta,porsuavez,sendoconsideradanecessáriaparaensejaracorreçãodo documento de nascimento. SeguindoalinhadepensamentodoMin.Salomão,ergueu-seen-genhoso argumento consentindo à pessoa transexual a possibilidade de alterar seu registro civil, salvaguardando os interesses individuais e o benefício social ao cidadão requerente. Bem assim, resguardando o livre desenvolvimento/expressãodapersonalidade,amparadosoboprismadeefetivar o direito à busca da felicidade. Comefeito,permitiu-searetificaçãoregistralmedianteaflexibi-lizaçãodaimutabilidadedonomeparapessoaquenãosesubmeteuaoprocedimentocirúrgicodemudançadesexo.Detalsorteadequandoarealidadebiológicadoindivíduoasuaidentidadepsicossocialafimdepotencializar,especialmente,odireitoàsaúdeezelarpela intimidade.Outrossim com o condão de promover a dignidade da pessoa humana e a igualdade, verdadeiras diretivas fundamentais da Carta de Outubro. Merece destaque trecho marcante do julgamento:

Sobessaótica,devemser resguardadososdireitos fundamentaisdas pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento so-cial de acordo com sua identidade e gênero), à liberdade de desen-volvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independen-tementedarealizaçãodeprocedimentosmédicos),àintimidadeeprivacidade (proteção das escolhas da vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a coloca-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral). Con-sequentemente,àluzdosdireitosfundamentaiscoroláriosdoprin-cípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que odireitodostransexuaisàretificaçãodosexonoregistrocivilnãopodeficar condicionadoà exigênciade realizaçãodecirurgiadetransgenitalização,paramuitosinatingíveldopontodevistafinan-ceiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do pontodevistamédico.

Portanto, infere-se que o postulado da busca pela felicidade está,

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integralmente, entrelaçado com a preservação da dignidade humana, por isso,justifica-seaaplicaçãodaqueleconceitocomodesdobramentofieleracionaldesteúltimo.Isso,pois,mostrou-senodesemaranhardocasosob investigação, em que interesses existenciais e individuais foram ele-vadosemdetrimentoà,porvezes,impermeabilidadedosistemanorma-tivo, com o objetivo de garantir ao sujeito o essencial em sua procura por um estado de bem-estar. Deve-selevaremconta,ainda,quenodecorrerdaproduçãodestetrabalho,oConselhoNacionaldeJustiça,atravésdoProvimenton.73,resolveuqueaalteraçãodonomeparafinsdereadequaçãosocialpodeserfeitadiretamentenocartório.Assim,orequerentepoderápretenderextrajudicialmente a averbação da correção do nome de forma mais rápi-da.Apósoregistro,amudançaterápublicidadeeveracidade,garantindopara as pessoas um maior acesso à justiça. Dessemodo, a interpretação das normas pormeio da busca àfelicidade oferece formidável oportunidade para que o direito seja oxi-genadoemrazãododesabrochardenovosparadigmassociais,decertofazendocomqueaesterilidadedasleisnãoultrajeafertilidadedosfa-tos.Comefeito,conservando,aumsótempo,opilarprincipiológicodaConstituiçãoFederaldaRepública–guarnecidosobaliberdade,igual-dade, inclusão ante a pluralidade e dignidade.

DAS REFLEXÕES EXTRAÍDAS DA ADPF N. 132 Noanode2011,sobajurisdiçãodoSupremoTribunalFederalepormeiodotribunalpleno,tendocomorelatoroentãoMin.CarlosAyresBritto,apreciou-seaArguiçãodeDescumprimentodePreceitoFunda-mentaln.132,emquesepretendiaascenderproteçãojurídicaàuniãohomoafetivacomo legítimaentidade familiar,pois até aquelaépocaocasamentoentrepessoasdemesmosexonãoeraavalizadopelodireito.

Reconhecimento da união homoafetiva como família. Procedência das ações. Ante a possibilidade de interpretação em sentido pre-conceituoso ou discriminatório do art. 1723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio [...] o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualdade jurídica. Proibição de precon-

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ceito, à luz do inciso IV do art. 3º daConstituição Federal, porcolidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bemdetodos”.[...]Reconhecimentododireitoàpreferênciasexualcomo direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa huma-na”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade.(BRASIL.SupremoTribunalFederal.ADPFn.132.Rel.Min.CarlosAyresBritto.Ór-gãojulgador:Tribunalpleno.Julgamento:05/05/2011.Publicação:13/10/2011).

Nesse instante, éprecisoesclarecer a lógicado tratamentode-sempenhadopelosistemanormativoacercadomatrimônioe,porcon-seguinte, registrar a evolução jurisprudencial a respeito do tema. Para tanto,oEstatutoCivilexpressa,emseuartigo1723,queauniãoestávelcontínua e duradoura entre o homem e a mulher enseja a constituição defamília.Demaneirasemelhanteaduzoart.226,§3ºdaConstituiçãoFederal de 1988. Dessaforma,comodescompassodessesdispositivosàrealida-dedosfatoressociaisemergentesemumacomunidademoderna–anteprofundatransformaçãodoconceitodonúcleofamiliar,vezquesurgiaminéditosarranjosparentais–,haviagranderiscodesecometerinjustiçasem virtude de uma exegese infecunda. Noutraspalavras,umavezqueerareconhecidaapenasafamíliaformada por casal heterossexual, ao tempo daquele julgamento, relega-va-se a segundo plano a existência de outros vínculos afetivos. Por esta razão,pairavaoespectrodeumahermenêuticapoucopreocupadacomaíntimaligaçãoentreanormaeavida,porsuavez,responsávelpormol-daros intérpretesaumaespéciedeautômato,meros reprodutoresdostextos legais. Nessecontexto,atravésdoqualoPoderLegislativoésilentepe-ranteumcasodifícil,oPoderJudiciário,atravésdajurisdiçãoconstitu-cional, pode, comedidamente, lançar nova interpretação sobre o texto constitucionalelegal.Diz-sedapossibilidadedeocorrênciadamutaçãoconstitucional de modo a promover princípios fundamentais da Consti-tuição,aexemplodaigualdade(SARMENTO;SOUZANETO,2013).Adverte-seque,conquantosejanoBrasilunânimeatesedaseparaçãodos poderes e o aspecto contramajoritário do controle de constituciona-lidade, as mutações são aceitáveis quando há mudança na percepção do

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direito e alteração fática nos costumes da sociedade. Por esta senda, é nítido que a Sociedade progrediu e os anseios dos indivíduos se lançaram à frente do Direito, esse, por seu turno, ca-minhando no encalço daquela. Além disso, quando as dores e reivindica-ções populares não são ouvidas pelo Poder Legislativo, urge a necessida-de, como já mencionado, de recorrer até os tribunais para que se obtenha devida prestação de um direito. Para isso, as cortes vêm imprimindo formidável interpretação de dispositivos antes empoeirados, diga-se, lidos através de um filtro her-menêutico estéril e, por vezes, de costas à sociedade. Ao contrário disso, vê-se a sensata definição sobre a importância de uma interpretação aten-ta às exigências de cada época: “Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às manifestações da vida social” (MA-XIMILIANO, 2011, p. 129). Deve-se registrar que a possibilidade da Corte Constitucional efe-tuar mudanças no sentido dos textos não pode ser confundida com um “poder constituinte permanente“ (SARMENTO; SOUZA NETO, 2013, p. 349) dando margem a transformações calcadas em subjetivismo e in-terpretações arbitrárias. Ainda que tenha o STF a missão institucional de dar a última palavra sobre a constituição, tal tarefa carece de legitimação democrática e respeito ao próprio texto. De tal maneira, no caso em comento verifica-se que o excelso tribunal enveredou por um entendimento que ampliou a extensão das entidades familiares, fundamentando tal decisão, especialmente, sob os prismas dos laços afetivos a fim de que aquele conceito pudesse abarcar novos núcleos decorrentes de joviais pretensões humanas. Conforme preleciona o sociólogo português citado outrora: “O potencial emancipatório de utilização do direito e da justiça só se confir-ma se os tribunais se virem como parte de uma coalizão política que leve a democracia a sério” (SANTOS, 2011, p. 102). Com efeito, o eixo de princípios do projeto constitucional se fez eloquente e bradou pela dignidade da pessoa humana, pela solidariedade, bem assim em razão da liberdade e desenvolvimento da personalidade de cada cidadão. Por esta perspectiva, o Min. Celso de Mello, em pertinente e memorável explanação, argumentou em favor do postulado da busca a felicidade como direito dos indivíduos implícito naqueles vértices cons-titucionais da Lei Maior – ver Ação Direta de Inconstitucionalidade n.

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4277. No mais, cumpre destacar que a ação foi julgada no sentido de conceder legalidade às uniões homoafetivas em homenagem, sobrema-neira, ao preceito da igualdade.De sorte a garantir a não discrimina-çãooriundadequalquernaturezaaopassoqueasseverouobemcomum(MELLO,2015).Dessemodo,revestindodelegitimidadeapossibilida-dedocasamentoentrepessoasdomesmosexoe,assim,concretizandoodireito à igualdade em concordância à propalada busca da felicidade.

DA INTERPRETAÇÃO À APLICAÇÃO DO PRECEITO: UTOPIA OU REALIDADE? Adignidadedapessoahumana,legítimofundamentodaconsti-tuição,ecoa,atravésdeseuefeitoirradiador,sobreoordenamentoemsuacompletude.Nessesentido,odireitoàbuscapelafelicidade–con-quantonãoestejapositivadoemnenhumdiplomapátrio–éjustificadoe revestido de vigor ao passo que se ampara na promoção da dignidade dapessoa.Alémdisso,possuiestreitarelaçãocomoexpostonoartigo3ºdaCF/88,quandodosobjetivosdaRepúblicaFederativadoBrasilselê:“Construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Por esse diapasão, infere-se que a aplicação da prerrogativa su-pracitada pode se manifestar por meio de um exercício hermenêutico construtivo,coerenteeperfiladoaospreceitosnormativosdaLeiMaior.Portanto,faz-semisternessemomentocelebrarumperfildepensamentoquealieosolidarismoeajustiçasocial,bemassimaigualdade(SAN-DEL,2016). Nessepanorama,diz-seaindaarespeitodamáximaefetividadeconcedidaaosdireitosfundamentais,que,porsuavez,sãodotadosdeeficáciageraleimediata.Logoéfacilmentecompreensívelconceberodireito à busca pela felicidade como um desdobramento possível da in-cidênciadealgunsnúcleosconstitucionaisjámencionados.Essalição,inclusive, évisualizadaem jurisprudência construídapeloSTJeSTF,merecendo destaque, respectivamente, à atuação pontual do Min. Celso deMello,daMin.NancyAndrighiedoMin.LuisFelipeSalomão. No mais, há de se enaltecer a teoria do mínimo existencial, pela

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qualseimpendegarantiraosindivíduosobásico,istoé,aquiloqueées-sencialparaumamadurecimento,livreecomhonradez,dapersonalida-dedossujeitos,abarcandosuasfacetasfísicasepsíquicas(LEAL,2013).Destafeita,registre-sequeodireitoàbuscapelafelicidaderessoacomofielexpoentedeumsistema jurídico renovadoeemconcordânciaaosvalorescultuadospelonossoordenamento.Refletindo,pois,argumentocrívelparaaproteçãodegarantiasfundamentaisezelopelosinteressesexistenciais das pessoas. Outrossim, cumpre realçar a propalada tese do Walfare State, que, porseu turno, reverberaosmatizesdeumEstadoSocial,assistencial.Emconsequênciadisso,nascearesponsabilidadedesteemestabelecerum padrão medular para uma vida digna, ou seja, assegurar às pessoas certo bem-estar social, ou, ao menos, as condições necessárias para que elasalcancemoestágiodeumafelicidadegeral(LEAL,2013). É válido, ainda, demarcar o postulado da busca à felicidade como vereda do direito à liberdade, assim como à igualdade, segurança e pro-priedade, ao passo que os cidadãos empunham da garantia de, aos seus modos, galgar aquilo que têm como sonho, objetivo ou pretensão neces-sária para atingir um estado de bem-estar singular. Importasublinharqueoartigo6ºdaCartaMagnaconsagraosdireitos sociais, inquestionáveis para o pleno desenvolvimento da dig-nidadedaspessoasepotencializaçãodeumafelicidadegeral.Porestaslinhas de intelecção, percebe-se a conexão entre o direito e a felicidade, o projeto constitucional e o bem-estar.

AnossaConstituiçãoFederalnãousaapalavrafelicidade.Oseu texto, contudo, vem repleta de dispositivos que falam em bem-estar, expressão abraçada pela doutrina contemporânea –well-being–paradesignarfelicidadedeformamaisneutra.Alémdisso,háinúmerosdispositivosqueencarnamoidealde segurança, que, como vimos, compõe suporte fático da felicidade. [...] a Constituição Federal de 1988 está repleta deporoscapazesdeabsorverosprojetosindividuaisdefe-licidade,bemcomodeampliarafelicidadecoletiva(LEAL,2013,p.222-223).

Porfim,vale ressaltar aindaos ensinamentosdoescritorLeal,quandoassinaladaexistênciadeprazeresperversosenobres.Diametral-

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mente opostos, estes últimos, segundo o autor, são consagrados por ações virtuosas, a exemplo da honestidade, honra e fraternidade, de tal sorte, conferem validade à procura pela felicidade na medida que promovem o bem coletivo; enquanto que os primeiros são vistos como deturpações, ouseja,degeneraçõesdorealsentidodefelicidade.Porquanto,ospraze-resperversosdevemserterminantementeafastadosesuperados,vezquenãosãolegítimasascondutasque,emnomedevíciosflagrantes,causemdanoeprejuízoaumaouumgrupodepessoas. Nadécadade90,umcasooriundodaFrançagerouamplodebateacerca da satisfação de um grupo de pessoas em detrimento à dignidade de outras, nessa ocasião, discutia-se sobre a legalidade do nefasto jogo denominado “arremessode anões”.Nofim, julgou-se, inclusive pelasinstânciasdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas,pelobanimentodareferi-da brincadeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Depreende-se,portanto,dianteinvestigaçãopontualdosentendi-mentos jurisprudenciais emitidos por meio dos tribunais pátrios maiores, queopostuladodabuscaafelicidade,umavezexaminadocomcautelaeaplicado de forma harmoniosa aos objetivos constitucionais, revigora-se devirtuosaferramentanaconcretizaçãodeprerrogativasessenciaisaosindivíduos.Exemplodissoéoincrementoàsaúde,educação,segurançaou seguridade social. Sendointeligívelconceberodireitoàbuscapelafelicidadecomodesdobramento do princípio da liberdade, bem assim da igualdade. Cum-prereiterarqueopreceitooraemcomentoserevestedeumvéuherme-nêutico formidável para arejar o sistema normativo e ventilar os novos anseiossociaissobreosintérpretesdoordenamento. Detalsorte,pondera-seaesterilidadedasnormasjuntoàfertili-dadedosfatos,fazendocomqueavidahumanasejapotencializadaemsuasmáximasexpressões,comocondãodezelarpelolivredesenvolvi-mentoeaautodeterminaçãodaspessoas–manifestaçõesdeumEstadoque,porsuavez,consagraemseuprojetoconstitucionalavontadedepromover o bem-estar dos indivíduos, seja singular ou coletivamente.

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REFERÊNCIASARISTÓTELES.Ética a Nicômaco.SãoPaulo:MartinClaret,2015.

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LEAL,SaulTourinho.Direito à felicidade:História,Teoria,positivaçãoeJurisdição.357f.Tese(DoutoradoemDireito)–PontifíciaUniversi-dadeSãoPaulo,2013.

MAXIMILIANO,Carlos.Hermenêutica e aplicação do direito.RiodeJaneiro: Forense, 2011.

MELLO,CelsoAntônioBandeirade.O conteúdo jurídico do princípio da igualdade.3ºed.SãoPaulo:Malheiros,2015.

MILL,JohnStuart.Utilitarismo. Tradução de Pedro Galvão. Portugal: PortoEditora,2005.

SANDEL,MichaelJ.Justiça –Oqueéfazeracoisacerta.21ºed.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,2016.

SANTOS,BoaventuradeSouza.Para uma revolução democrática da justiça.3ºed.SãoPaulo:Cortez,2011.

SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional:teoria,históriaemétodosdetrabalho.2ºed.BeloHori-zonte:Fórum,2017.

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Ensino da constituição federal nas escolas brasileiras: uma capacitação para o pleno exercício da cidadania

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Francisco Edson de Medeiros Silva¹José Augusto Lima da Silva²Leandro Rogério Nunes Mendes³

1 Estudante do Curso de Direito do Campus Central da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); e-mail: [email protected] Estudante do Curso de Direito do Campus Central da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); e-mail: [email protected]. 3 Estudante do Curso de Direito do Campus Central da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); e-mail: [email protected].

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Resumo: Este trabalho verifica emquemedida as normas infraconstitu-cionais brasileiras quanto á elaboração de currículos escolares atendem à determinação constitucional da preparação dos estudantes para o exer-cíciodacidadaniacomoobjetivodaeducaçãobásicadoPaís.Ademo-cracia posta no Brasil pela Constituição de 1988, para que seja efetiva, exige pessoas cientes de seus direitos, deveres e das garantias consti-tucionais,paraque sejamcapazesdeexercer essacidadaniade formamaisadequada;então,érelevanteverificarcomoasescolasprepararamessescidadãos.Parafazeraverificação,primeiramente,faz-seumestudosobre o conceito do termo cidadania, sua evolução e seu entendimento atual; depois, faz-seumaanáliseda legislação sobreo tema, partindoda Constituição Federal e seguindo com as normas infraconstitucionais.

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Foirealizadapesquisaqualitativadecunhobibliográficoedocumental.Oestudoconsiderouospensamentosdeautorescomo:UlissesF.daSil-va,JoséMurilodeCarvalho,T.H.Marshall,JoséAfonsodaSilva,LisztVieiraeJaimePinsky;alémdisso,teveporbaseaConstituiçãoFederalde 1988, a Lei deDiretrizes eBases da EducaçãoNacional, o PlanoNacionaldeEducação,aBaseNacionalComumCurriculareoProjetodeLeinº3.380/2015,daCâmaradosDeputados.Oconceitomodernodecidadania, alémdaparticipaçãonavidapolítica enavidapública,pressupõecondiçõesefetivasdevidadignaparaaspessoas.Apesardasdeterminações constitucionais, os currículos escolares não têm tratado o tema com a relevância que se espera.

Palavras-chave: Cidadania.Constituição.Currículo.EducaçãoBásica.LDB.

Abstract: ThispieceverifiestowhatextenttheBrazilianinfraconstitutionalrules reach the constitutional determination of the preparation for the exerciseofcitizenshipasagoaloftheCountry’sbasiceducationregar-ding the elaboration of school curriculums. The democracy established inBrazilbytheConstitutionof1988,inordertobeeffective,demandsfrom people aware of their rights, duties and constitutional guarantees, tobeabletoexercisethatcitizenshipmoreadequately;thus,itisrelevanttocheckhowschoolspreparethesecitizens.Inordertocheckthat,first,astudyismadeaboutthemeaningoftheterm‘citizenship’,itsevolu-tion and the current understanding of the term; afterwards, it is made an analysis of the legislation related to the theme, starting from the Federal Constitutionand then the infraconstitutional rules. Ithasbeenmadeaqualitative research of bibliographic and documental character. The stu-dyconsideredthethoughtsofauthorssuchas:UlissesF.daSilva,JoséMurilodeCarvalho,T.H.Marshall,JoséAfonsodaSilva,LisztVieiraand Jaime Pinsky; furthermore, it was based on the Federal Constitution of1988,theLawofGuidelinesandBasisofNationalEducation,theNa-tionalPlanofEducation,theNationalCommonCurricularBasisandtheBillnº.3.380/2015,oftheChamberoftheDeputies.Themoderncon-ceptofcitizenship,besidesoftheparticipationinthepoliticlifeandthepubliclife,implicateseffectiveconditionsofadignifiedlifeforpeople.

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Despiteofconstitutionaldeterminations,theschoolcurriculumshaven’tbeen treating the subject with the expected relevance.

Keywords: Citizenship. Constitution. Curriculum. Basic Education.LDB.

INTRODUÇÃO A Constituição Federal do Brasil de 1988, logo em seu art. 1º, re-conhece a cidadania como um dos fundamentos de nossa República e, no art. 205, afirma a educação como um direito de todos e um dever do Es-tado, sendo uma de suas funções preparar para o exercício da cidadania. Pode-se inferir, da leitura desses dois dispositivos, que o nosso ordena-mento jurídico, especialmente a Constituição Federal, impõe a inclusão, na educação básica formal, não só do ensino voltado à profissionalização das pessoas, mas, de forma clara, impõe a necessidade de oferecer uma base de conhecimento a respeito dos direitos, das garantias e dos deveres fundamentais, capaz de preparar as pessoas para o exercício mais ade-quado da cidadania. Buscando garantir o cumprimento dessa função de preparar para o exercício da cidadania, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-nal, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), no inc. I, do seu art. 4º, estabelece a obrigatoriedade, para o Estado, de garantir a educa-ção básica a cidadãos dos 4 aos 17 anos de idade e, no art. 22, atribui à educação básica a responsabilidade por assegurar uma formação comum indispensável para o exercício da cidadania. Vê-se, pela leitura dos parágrafos anteriores, que a formação co-mum voltada à preparação para a cidadania é um direito fundamental previsto na Constituição Federal do Brasil de 1988, e que essa formação dever ser atribuição da educação básica, que inclui o ensino fundamen-tal e o ensino médio. Dentro desse contexto, não se pode olvidar que os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição são temas indispensáveis ao cumprimento à formação desejada. No entanto, a realidade brasileira aparenta que as escolas de edu-cação básica têm voltado seus esforços muito para a formação de mão de obra para o mercado, dando pouca ênfase a aspectos da formação que

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privilegiem o exercício da cidadania. Percebe-se isso no fato de que um elevadoíndicedepessoasconcluioensinomédiosemodevidoconhe-cimento de seus direitos e deveres fundamentais e, portanto, não devi-damente preparadas para participar da vida política e social de forma satisfatória.Diantedessecenário,questiona-seseestariaadeterminaçãoconstitucional sendo ignorada no planejamento dos currículos do ensino básico brasileiro. Pretende-se, por meio deste trabalho, defender a ideia de que se faz necessário darmais espaço ao ensino daConstituição, no tocanteaos direitos, garantias e deveres fundamentais nas escolas brasileiras do ensino básico, tendo em vista o desenvolvimento de uma sociedade mais participativa na vida política, promovendo o direcionamento do sistema educacionalparaformaçãodepessoasnãosóparaomercadodetraba-lho,mastambémparaoplenoexercíciodacidadania. Para entender e analisar o problema apresentado, será necessária a execução de duas tarefas essenciais; primeiramente, estudar o conceito decidadania, suaevoluçãonahistóriaeseusentidomoderno;depois,analisar as previsões legais existentes quanto à inserção, dos conteúdos relacionados ao tema estudado, nos currículos das escolas, públicas e privadas, de ensino básico do Brasil. Tendo em conta as disposições legais existentes no ordenamento brasileiro, principalmente no texto constitucional, e com o entendimen-todeque,numEstadoDemocráticodeDireito,oensinoformalnãoétotalmenteresponsável,masénecessárioparaquesegaranta,deformamaiseficiente,acidadaniaaopovo,estetrabalhoganharelevânciaquejustificaasuarealização. AlémdaexpressadeterminaçãoConstitucionalelegaldainclu-são do ensino voltado à formação da cidadania nas escolas do ensino básico do Brasil, a indiscutível importância que terá essa formação para o desenvolvimento de nossa democracia, especialmente no que tange à participação da população na vida política do país, questão cuja fragi-lidade“saltaaosolhos”nostemposhodiernos,justificaodebatedessetema. Estetrabalhofoirealizadoatravésdepesquisadotipobibliográ-ficaedocumental;nesteúltimocaso,umapesquisalegislativadecunhoexploratória,comoobjetivodefamiliarizarospesquisadorescomoas-suntoeformularhipótesesquepossamservirdebaseparafuturaspes-

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quisas na área. No decorrer deste trabalho, far-se-á um relato sobre a cidadania como um direito fundamental, quando será feita uma breve retrospectiva históricadosentidodadoaotermocidadania;posteriormente,seráfeitauma apresentação, ao leitor, das bases constitucionais e legais já vigentes noBrasilequedeterminamejustificamainclusãodotemanoscurrícu-los escolares. Aseguir,tem-seaconsideraçõesacercadoconceitodecidadaniae sua evolução no tempo.

EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CIDADANIA COMO UM DI-REITO FUNDAMENTAL SegundoAraújo(2007),oconceitotradicionaldecidadaniacomosendo um conjunto de direitos e de deveres pelos quais os cidadãos pode-riam participar ativamente da vida política e da vida pública de uma na-ção,jánãoémaissuficienteparaexplicaroentendimentodotermohoje,que tem uma abrangência bem maior do que esse sentido tradicional. Esseautordiz,ainda,quesedeveconsiderar, também,“aimportânciaque o desenvolvimento de condições físicas, psíquicas, cognitivas, ide-ológicas,científicaseculturaisexercenaconquistadeumavidadignaesaudávelparatodasaspessoas”(ARAÚJO,2007,p.11).Essamudançaconceitualéresultadodeumaevoluçãohistórica. Aolongodahistóriadascivilizações,ohomematribuiuváriossentidosaotermocidadania.Suaorigemestáligadaaonascerdascida-desGregas,vinculando-seapenasaosdireitospolíticos.Naquelaépoca,identificava-seocidadãopelaparticipaçãoativanasassembleiasondesetomavamdecisõesquediziamrespeitoaosinteressesdetodaacoletivi-dade.Porém,acidadaniadesenvolvidatantonaGréciaquantoemRomatinhanaturezaseletivaerestritiva,poisnemtodasaspessoasqueviviamnas cidades possuíam os mesmos direitos. Nesse contexto, Vieira (2002, p. 27) esclarece:

ARepúblicaModernanãoinventouoconceitodecidadania,que,naverdade,seoriginanaRepúblicaAntiga.Acidadania

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emRoma,porexemplo,éumestatutounitáriopeloqualto-dos os cidadãos são iguais em direitos.Direitos de estadocivil,deresidência,desufrágio,dematrimônio,deherança,deacessoàjustiça,enfim,todososdireitosindividuaisquepermitemacessoaodireitocivil.Sercidadãoé,portanto,sermembro de pleno direito da cidade, seus direitos civis são plenamentedireitosindividuais.Massercidadãoétambémter acesso à decisão política, ser um possível governante, um homempolítico.Essetemdireitonãoapenasaelegerrepre-sentantes, mas a participar diretamente na condução dos ne-góciosdacidade.

ComaRevoluçãoFrancesa(1789-1799),otermoadquireumnovosentido,adotandoosinônimodehomemlivre,detentordedireitoseobrigaçõesatítuloindividual,previstosemlei.AcartadeDeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão,de1789,semdúvida,serviudeinspiraçãoparaaindividualizaçãoeparaacodificaçãodestesdireitos.Éoquesededuznaleituradeseuart.1.º,quediz:“Oshomensnascemesãolivreseiguaisemdireitos.Asdistinçõessociaissópodemfundamen-tar-se na utilidade comum”. Nasociedadefeudalbritânica,segundoMarshall(1963,p.64),“o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade” o autor prossegue informado que nas cidades medievais poderiam ser en-contrados alguns exemplos genuínos de cidadania e igualdade, mas estes eram estritamente locais, não apresentavam o caráter de nacional que se exige atualmente. ConformeMarshall(1963,p.69),aindafazendoumaanálisedasociedade inglesa, “quando a liberdade se tornou universal, a cidadania se transformou de uma instituição local numa nacional”. No entanto, o mesmoautor(1963)lembraque,noséculoXIX,seosdireitoscivisjáeraminerentesàquestãodacidadania,omesmonãosepodedizercomrelaçãoaosdireitospolíticos,queconstituíamprivilégiodeumaclasseeconômicadeterminada.EstessóviriamaserincorporadosaoconceitodecidadanianoséculoXIX. Namodernidade,combasenaanálisehistóricadaevoluçãodacidadanianaInglaterra,teríamosqueacidadaniasóatingiriasuapleni-tude quando abrangidas as três dimensões do direito: a dos direitos civis, a dos direitos políticos e a dos direitos sociais.

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De acordo comFerreira Filho, citado porBenfatti (2014, pos.2027-31),cidadaniaé“[...]umstatusligadoaoregimepolítico.Assim,écorreto incluir os direitos típicos do cidadão entre aqueles associados ao regime político, em particular entre os ligados à democracia”; entretan-to, apesar do forte vínculo existente entre cidadania e direitos políticos, énotórioqueosentidoatualotermocidadaniavaialémdessesdireitospolíticos. Pinsky(2005,p.9),porsuavez,nostrazaideiadequea“cida-danianãoéumadefiniçãoestanque,masumconceitohistórico,oquesignificaqueseusentidovarianotempoenoespaço”;dessaforma,se-gundo ele, o conceito de cidadania poderia adquirir novas acepções em lugareseépocasdiferentes. No Brasil, em termos de cidadania, os direitos sociais precederam oscivisepolíticos(CARVALHO,2002).Houve,portanto,umainversãocomrelaçãoàlógicadaevoluçãodacidadaniaverificadanaInglaterra,como exposto anteriormente. SegundoCarvalho(2002,p.17),desdeoImpério, iniciadoem1822comadeclaraçãodaindependência,atéofinaldaPrimeiraRepú-blica,em1930,“dopontodevistadoprogressodacidadania,aúnicaalteração importante que houve nesse período foi a abolição da escravi-dão,em1888”,emboraainclusãodosex-escravoscomobeneficiáriosdos direitos civis tenha sido mais formal do que real. Àépocadaindependência,nãohaviacidadãosbrasileiros,nempátriabrasileira;afinal,anossacolonizaçãoteveconotaçãomeramentecomercial (CARVALHO, 2002).A escravidão e a grande propriedadenão favoreciam o desenvolvimento de cidadania no país; numa posição intermediária entre escravos e senhores, existia uma população de pesso-as livres, no entanto, não haviam condições dignas que lhes possibilitas-se a cidadania. Nem mesmo em relação aos senhores, poder-se-ia atribuir a condição de cidadão, visto que “eram simples potentados que absor-viampartedasfunçõesdoEstado”(CARVALHO,2002,p.21).Dentrode um contexto como esse, impossível se pensar, então, na existência de um processo de educação formal. AConstituiçãooutorgadade1824 trouxeregulaçãodedireitospolíticos, estabelecendoquem teriadireitoavotarea servotado.Em1881, uma lei proibiu o voto dos analfabetos. “Do ponto de vista darepresentação política, a Primeira República (1889-1930) não signifi-

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cougrandemudança” (CARVALHO,2002,p.41).Eranormalqueoseleitores fos- sem coagidos, enganados, comprados; não houve nenhuma experiênciapolíticapréviaquepreparasseocidadãoparaexercersuasobrigaçõescívicas(CARVALHO,2002). Nesse período, portanto, apesar de surgirem direitos políticos, verifica-sequeoscivissóexistiamformalmenteeossociaiserampra-ticamente inexistentes e direitos sociais eram quase que inexistentes, vindo a aparecer alguma coisa de legislação trabalhista já nofinal daPrimeiraRepública. De1930a1964aceleram-seasmudançassociaisepolíticasnopaís, especialmente quanto aos direitos sociais, com uma vasta legislação trabalhistaeprevidenciária.Nessaépoca,osdireitospolíticos tiveramuma fase de instabilidade, alterando-se ditaduras e regimes democráti-cos(CARVALHO,2002).Houve,também,nesseperíodo,umacrescenteparticipaçãodopovonapolítica,especialmenteapartirde1945(CAR-VALHO,2002). Com a instalação do período político brasileiro conhecido como “DitaduraMilitar”,em1964,quedurouaté1985,osdireitoscivisepo-líticos sofreram fortes restrições; no entanto, nesse período, expandiram--seosdireitossociais,comoauniversalizaçãodaprevidência,criaçãodoFGTS,porexemplo(CARVALHO,2002). Em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, tivemos o retorno da supremacia civil, que foi coroada em 1988 com a promulgação da chama-da “Constituição Cidadã”, a mais social e democrática que o Brasil já teve. Apesar de ainda termos muitos problemas na área social, os direitos civis, sociais e políticos foram muito ampliados.

BASES CONSTITUCIONAIS E LEGAIS PARA O ENSINO DA CONSTITUIÇÃO NAS ESCOLAS DO ENSINO BÁSICO BRASILEIRO A cidadania é elemento essencial a um Estado Democrático de Direito e, consequentemente, é um dos fundamentos da República Fe-derativa do Brasil, conforme o art. 1º, inciso II, da Constituição de 1988.

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EssamesmaCarta,emseuart.205,colocaaeducaçãocomoumdireitodetodoseumdeverdoEstado,epõecomoumadesuasfunçõespreparar para o exercício da cidadania. Percebe-se daí a relevância do temadentrodoEstadobrasileiroesepodededuzir,combasenoconceitomoderno de cidadania, que o conhecimento quanto aos direitos e garan-tiasfundamentaiséimprescindívelparaoseuplenoexercício. Em consonância com isso, e atendendo ao disposto no incisoXXIV,doart.22,daConstituição,foieditadaaLeideDiretrizeseBa-sesdaEducaçãoNacional,aLeinº9.394,de20dedezembrode1996(LDB),disciplinandoaeducaçãoescolar.Noinc.I,doseuart.4º,estabe-lece-seaobrigatoriedade,paraoEstado,degarantiraeducaçãobásica,quecompreendeapré-escola,oensinofundamentaleoensinomédio,acidadãosdos4aos17anosdeidade.Jáoart.22damesmaleicolocacomo atribuição da educação básica assegurar a formação comum in-dispensável para o exercício da cidadania, buscando dar efetividade ao comando constitucional já visto acima. Oart.26daLDB,quedeterminacomoosdiversosconteúdosde-verão compor os currículos da educação básica, em seus três níveis, não trata de forma direta sobre a formação para a cidadania, embora se possa extrairalgunstemascomosquaissepodefazerumarelação,como:re-alidadesocialepolítica,queéconteúdoobrigatório,conformeocaput;direitos humanos e prevenção à violência contra criança e adolescente (§ 9º),estesdoisúltimoscomotemastransversais,ouseja,trazendo-osparaoprocessodeensino-aprendizagempormeiodeanálisedesituaçõesdocotidianorelacionadasaosconteúdossistematizadosdasdiversasdisci-plinas. A inclusãodenovoscomponentescurricularesobrigatórios,deacordocomo§10,doart.26daLDB,dependerádeaprovaçãopeloCon-selhoNacionaldeEducaçãoedehomologaçãopeloMinistrodeEstadodaEducação. Há,noincisoI,doart.27daLDB,comodiretrizaserobservadapelos currículos da educação básica, “a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos [...]”. Sobreaeducaçãoinfantil,cujoobjetivoéo“desenvolvimentoin-tegraldacriançaaté5(cinco)anosdeidade”,oassuntoétratadodoart.29aoart.31daLDB,enãosevênenhumdirecionamentodiretoaoen-sino de aspectos constitucionais voltados à preparação para a cidadania.

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Doart.32aoart.34,aLDBtratadoensinofundamentalobriga-tório,queseiniciaaos6(seis)anosecujoobjetivoéaformaçãobásicadocidadão(art.32,caput), incluindo temas como: ambiente social, sis-tema político, formação de valores e direitos da criança e do adolescente. Comrelaçãoaoensinomédio,queéaetapafinaldoensinobá-sico,tratadonaLDBnoart.35enoart.35-A,umadesuasfinalidadeséapreparaçãobásicaparaacidadania(art.35,incisoII),noentanto,nãotrazessaleinenhumadeterminaçãodiretaquantoaoensinodeaspectosconstitucionais em seu currículo, embora haja a previsão de que seus currículos deverão considerar a formação integral do aluno, o que, certa-mente, inclui a formação para a cidadania. Ocurrículodoensinomédio,conformeoart.36daLDB,deveráser composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por iti-nerários formativos, em diferentes arranjos curriculares, considerando a relevância para o contexto local e a possibilidade do sistema de ensino. Percebe-se, na leitura daLDBque, apesar dela dispor sobre aformação básica do cidadão, como objetivo do ensino fundamental obri-gatório,esobreapreparaçãobásicaparaacidadania,comoumadasfina-lidadesdoensinomédio,nãoprevêexpressamenteoensinodosdireitose garantias constitucionais nessas fases da vida dos alunos. AlémdaLDB,outraleiimportantenaregulamentaçãodoensinonoBrasiléaLeinº13.005,de25dejunhode2014,queaprovaoPlanoNacionaldeEducação(PNE),quetemvigênciade10anoseestabeleceaformaçãoparaacidadaniacomoumadiretriz(art.1º,incisoV),servindodeparadigmaparaosplanosdeeducaçãodosdemaisentesfederados(art.8º). OConselhoNacionaldeEducação(CNE),porsuavez,editou,em22dedezembrode2017,aResoluçãoCNE/CPnº2, instituindoeorientando a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a ser observada, obrigatoriamente, no âmbito da educação básica. Todos os currículos da educação básica devem tê-la como refe-rência e incluir umaparte diversificada, respeitando as determinaçõeslegais, atendendoa especificações locais e regionais (art. 7º).Devem,ainda, considerar o contexto e as características dos estudantes; e incluir, de forma transversal e integradora, temas contemporâneos relevantes paraodesenvolvimentodacidadania(art.8º,§1º). Para o currículo da educação infantil, a exemplo do que ocorre na LDB, a BNCC não trata de nenhum conteúdo diretamente ligado ao

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exercício da cidadania, conforme se pode apreender do seu art. 10. Paraoensinofundamental,emseuart.14,naáreadeciênciashumanas, prevê competências relacionadas a respeito de diferenças, pro-moçãodedireitoshumanoseconsciênciasocioambiental.AResoluçãonº2/2017-CNE/CP,nãotrata,deformaespecífica,docurrículodoen-sinomédio,apenasfazadeterminaçãodequetodasasetapasemodali-dadesdoensinobásico,queincluioensinomédio,deverãoteraBNCCcomoreferênciaobrigatória. Atualmente,aguardarevisãopelaCâmaradosDeputadosoPro-jetodeLei(PL)nº3380/2015,apresentadoem21deoutubrode2015,oriundodoProjetodeLeidoSenado(PLS)nº70/2015,deautoriadoSenadorRomário(PSB/RJ).Esseprojetodelei,porintermédiodeumsubstitutivo apresentado pelo Senador Roberto Rocha (PSB/MA), foiaprovadopeloSenadoem6deoutubrode2015visandoalterardisposi-tivosdaLDBnotocanteaoscurrículosdaeducaçãobásica. Nesseprojetodelei,sãopropostasduasalteraçõesàLDB,am-bas no sentido efetivar a previsão constitucional de uma educação que preparaparaacidadania.AprimeiraéaoincisoIdoart.27dareferidaLei,incluindo,comodiretrizparaosconteúdoscurricularesdaeducaçãobásica,oestudodaConstituiçãoFederal,ficandoodispositivoalterado,com o seguinte texto (grifo nosso):

Art.27....................................................................................I–difusãodevaloresfundamentaisaointeressesocialeaosdireitos e deveres dos cidadãos e de respeito ao bem comum e à ordem democrática, com a introdução do estudo da Constituição Federal;

AsegundaalteraçãopropostaéaoincisodoincisoIIdoart.32,daLDB, reforçandoanecessidadedeuma formaçãoparacidadaniaeparaodesenvolvimentodevaloreséticosecívicos,daseguinteforma(grifo nosso):

Art.32....................................................................................II–acompreensãodoambientenaturalesocial,dosistemapolítico, do exercício da cidadania, da tecnologia, das artes e dos valores éticos e cívicos em que se fundamenta a sociedade;

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Observe-se que, apesar de não haver, nesse projeto de lei, a pre-visãodeinclusãodenenhumadisciplinaobrigatóriaquantoaotema,noentanto, serve para reforçar a necessidade de inclusão dele, de forma mais direta, nos currículos escolares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Aeducaçãobásicaé,semdúvidas,reconhecidanoBrasilcomoum direito fundamental dos cidadãos. Por outro lado, não se pode olvidar dequeelaé,também,umaferramentaprimordialeexcepcionalparaadisseminaçãodoconhecimentoquantoàestruturadoEstadobrasileiro,do Poder e das instituições que garantem a democracia; evidente, ainda, ésuaimportânciaparaaefetividadedosdireitos,dosdeveresedasga-rantias fundamentais necessários ao exercício da cidadania. O exercício da cidadania, nos dias atuais, pressupõe a participa-ção efetiva de todos os cidadãos na vida política e na vida pública, como seconcebetradicionalmente,mas,tambémpressupõeagarantiadecon-diçõesparaumavidadignaàspessoas.Faz-semisterqueessesaspectossejam observados tanto na teoria quanto na prática e, neste ponto, as es-colas de ensino básico podem desempenhar um papel mais efetivo para o desenvolvimento da cidadania. Duranteodesenvolvimentodestetrabalho,foivistoque,consi-derando o disposto na Constituição Federal do Brasil, promulgada no anode1988,oEstadotemodeverdeincluir,noscurrículosdoensinobásico,queenglobaoensinofundamentaleoensinomédio,conteúdosvoltadosàpreparaçãoparaoexercíciodacidadania.Porém,mesmosen-doumafinalidadeconstitucionaldaeducação,osconteúdosrelacionadosàcidadaniasósãotratados,nasescolas,deformatransversal,portemascontemporâneos considerados relevantes. Não há nenhuma determina-ção legal no sentido de incluir, nos currículos escolares, alguma discipli-naobrigatóriavoltadaaoobjetivododebate. A transversalidadeéumaboaformadeproporcionarpartedosconhecimentos necessários e pode ser aplicada em todos os três níveis daeducaçãobásica,noentanto,parecenãosersuficienteparacumprirdeformaefetivaafinalidadedestinadapelaConstituiçãoàeducação.Otratamento simplesmente por esse meio torna precário esse objetivo de

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prepararparaacidadaniaque,naverdade,édesumaimportânciaparaaconsolidaçãodoEstadoDemocráticodeDireito. Um fator que demonstra essa precariedade no preparo para oexercíciodacidadaniaéoperceptívelbaixoníveldeparticipaçãopolí-ticaefetivadenossapopulação,nãodesprezando,contudo,osavançosquejáobtivemosaolongodahistóriadopaís,especialmenteapósapro-mulgação da Constituição de 1988. Entende-se,dessaforma,queserianecessárioparacumprirodis-posto na Constituição de forma adequada, a inclusão, pelo menos quanto aocurrículodoensinomédio,dedisciplinaobrigatória comconteúdovoltado para as normas materialmente constitucionais, especialmente so-bre os direitos, deveres e garantias fundamentais. Porfim,sugere-se,comoformadecomplementareaprofundaresseestudo,quesefaçampesquisasnasescolasnatentativadeidentifi-car se tem sido efetivada a inclusão do tema, mesmo que de forma trans-versal, e, se for o caso, como tem sido trabalhado e que resultados se tem alcançado.Relevante,também,seriamestudosquepudessemverificaroníveldeaprendizadodosalunos,emcadafasedoensinobásico,quantoaos aspectos constitucionais importantes para o exercício de sua cidada-nia.

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BENFATTI,FabioFernandesNeves.Direito do desenvolvimento.SãoPaulo:Saraiva,2014,KindleEdition.ISBN978850222951-8.edosva-loreséticosecívicosemquesefundamentaasociedade;

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BRASIL.CâmaradosDeputados.Projeto de Lei nº 3.380/2015.AlteraaLeinº9.394,de20dedezembrode1996(LeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacional),paradisporsobreoscurrículosdaeducaçãobásica.Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb>. Acessoem: 02 out. 2018.

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_______.Leinº9.394,de20dedezembrode1996.Estabeleceasdire-trizesebasesdaeducaçãonacional.Diário Oficial da União. Brasília, DF,23dez.1996.Disponívelem:<www.planalto.gov.br>.Acessoem:6jul.2018.

_______.Leinº13.005,de25dejunhode2014.AprovaoPlanoNacionaldeEducação.Diário Oficial da União.Brasília,DF,26jun.2014(Ediçãoextra).Disponívelem:<www.planalto.gov.br>.Acessoem:7jul.2018.

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O DIREITO E A LITERATURA: UMA ANÁLISE ACERCA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO CONTEXTO DO CONTO NEGRINHA DE MONTEIRO LOBATO

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Dione Célida do Nascimento¹

1 Graduada em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Especialista em Literatura e ensino pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).

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Resumo: OpresentetrabalhoobjetivaanalisararelaçãodoDireitocomaLiteratura,verificandoapossibilidadedehaverumaaproximaçãoentreestas duas áreas distintas do conhecimento. Partindo da ideia de que uma obraliterárianãoestávoltadaapenasparaficção,analisaremosumcontoliteráriodandoênfaseatemáticadosdireitosfundamentais.Inicialmen-te,faremosumabrevereflexãoacercadoDireitoeaLiteratura.Poste-riormente, traremos uma análise sucinta sobre os direitos fundamentais, destacando sua importância para sociedade, a origem e a evolução ao longodasConstituiçõesbrasileiras.Porfim,nosdeteremosaanálisedocontoNegrinhadoautorMonteiroLobato,poisestecontorefletebemarelaçãodasduasáreasemestudo,umavezqueocontextodaobranospermite analisar a eficácia dos direitos fundamentais na sociedade.Ocontoemdestaqueéumaobradesumaimportânciaparaentendermosocontextosócio-históricodasociedadepós-abolicionista,eassimper-

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cebemosoquãorelevanteéparaomundojurídicoatemáticaabordada.Nossapesquisa foi realizadaatravésde revisãobibliográfica, embasa-da em autores que nos deram suporte acerca da temática discutida, tais comoJoséAfonsodaSilva,MarceloAlexandrino,VicentePaulo,SérgioDomingos,entreoutros.Verificamosaolongodestapesquisaqueépos-síveltrabalharoDireitoeaLiteraturadeformaharmoniosacontribuindoassimparaqueoleitorpossaampliarsuasreflexõesacercadosinúmerosconflitossociaisqueoDireitotentasolucionar.

Palavras-chave:Direito.Direitosfundamentais.Literatura.

Abstract: Thepresentworkaimstoanalyzetherelationshipbetweenlawand literature, verifying the possibility of an approximation between the-setwodistinctareasofknowledge.Startingfromtheideathataliteraryworkisnotturnedonlyforfiction,wewillanalyzealiterarytaleempha-sizingthethemeoffundamentalrights.Wewillbeginwithabriefreflec-tiononlawandliterature.Laterwewillbringabriefanalysisonfunda-mental rights, highlighting their importance for society, the origin and evolutionthroughouttheBrazilianconstitutions.Finally,theanalysisofthetaleNegrinhabytheauthorMonteiroLobato,asthisaccountreflectswell the relationship of the two areas under study, since the context of theworkallowsustoanalyzetheeffectivenessoffundamentalrightsinsociety. The featured story is a work of great importance to understand the socio-historical context of post-abolitionist society, and thus we per-ceive how relevant to the legal world is the subject matter. Our research was carried out through bibliographic review, based on authors who gave ussupportonthesubjectdiscussed,suchasJoséAfonsodaSilva,Mar-celoAlexandrinoandVicentePaulo,SérgioDomingos,amongothers.Throughoutthisresearchwehaveverifiedthatitispossibletoworklawand literature in a harmonious way, thus helping the reader to broaden his reflectionsaboutthenumeroussocialconflictsthatthelawtriestosolve.

Keywords: Law.Fundamentalrights.Literature.

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INTRODUÇÃO PormuitotemposepensounaLiteraturaenoDireitocomoáre-as do conhecimento distintas e sem possibilidade de haver aproximação alguma entre elas. No entanto, essa não seria a maneira mais coerente depensarmos.SeoDireitoépostoparasociedade,aLiteraturatambémexerce esse papel. É nesse intuito que buscamos formas de correlacionar estasduasáreasdeestudoafimdetraçarumparalelodeformainterdis-ciplinar. Estetrabalhobusca,deumaformageral,abordararelaçãodoDi-reitocomoutrasáreasdoconhecimento,taiscomoaLiteratura.Deumaformamaisespecífica,trazerumareflexãoacercadaeficáciadosdireitosfundamentaisnocontextodocontoNegrinhadeMonteiroLobato. SeráfeitaumareflexãoinicialacercadarelaçãodoDireitocomaLiteratura,enfatizandoaimportânciadenosatentarmosparaotextoliteráriocomoutrosolhos,afimdeobservarmosoqueelenosoferecedefato,alémdaficção. Faremos uma breve análise acerca dos direitos fundamentais ao longodotempo,enfatizandosuaimportância,comotambémaorigeme a evolução no decorrer dasConstituições.Daremos ênfase tambémao que dispõe a nossa Constituição sobre tais direitos e analisaremos o pensamentodealgunsautoressobreaeficáciadessesdireitosnaprática. Porfim,nosdeteremosàanálisedocontoemestudo,ressaltandoacerca da não observância dos direitos fundamentais nesta obra literária, como forma de denunciar o que estava ocorrendo de fato na sociedade pós-abolicionista.Analisaremos,deformamaisdetalhada,apersonagemNegrinha, sua vida e os inúmeros maus tratos ao qual ela estava sujeita. Nossapesquisaédecunhobibliográficoeestáembasadaemal-guns autores que abordam acerca dos direitos fundamentais e sua impor-tânciaparasociedade,taiscomoJoséAfonsodaSilvaeMarceloAlexan-drinoeVicentePaulo.TraremostambémopensamentodeautorescomoPauloHipólitoeEnioPassianiquenosderamrespaldosobrearelaçãodaLiteraturacomoutrasáreasdoconhecimentoe,alémdisso,teremosrespaldo na leitura do conto em análise.

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O DIREITO E A LITERATURA É de crucial importância a tratativa humanística que o aplicador doDireitodeveterperanteaciência jurídica, tendoemvistaqueseráconstantemente demandado a solucionar conflitos sociais, envolvendopessoasdiferentes,cadaumacomsuasespecificidadesealmejos.Essaaproximação interdisciplinar permite, então, que a resolução desses pro-blemas se dê da forma mais harmoniosa possível, assim como abre espa-çoparaumareflexãomaiscríticadocotidianojurídicoeosinstitutosaele inerentes. ALiteratura éumaáreade estudoque se interliga comoutrasáreas,taiscomo:aHistória,aSociedade,aCultura,oDireito,entreou-tras.Hoje,nãopodemospensaremtaisáreasdemaneiraisolada,maséprecisotrabalharmosdeformaharmônicadentrodeumcontextosócio--histórico.ALiteraturanãoéapenasficção,épossívelpercebermosorealsemisturandocomoimagináriodentrodasobrasliterárias.SegundoHipólito(2010,p.2)“naliteratura,oimaginárioeorealseconfundeme se fundem para conferir ao mundo uma nova representação, um novo sentido”. O texto literário busca expor,mesmo que por vezes de formafantasiosa,arealidadeemqueoautorseencontra inserido.Paraalémdaficção, tais textos retratamcontextos sociais complexos e distintos(sejam essas diferenciações encontradas nas características da sociedade emquestão,ounaépocaemquecadaumfoiescrito),auxiliandoàquelesque leem na compreensão das diversidades que o ser humano pode atin-gir. Sendoassim,éimprescindívelaaproximaçãodaLiteraturacomoDireito, tendoemvistaquequemaplicaodireitoprecisa,primeira-mente,entenderapessoacomquemestálidando,assimcomotambéma sociedadenaqual está inserido.Aafinidade entreosdois ramosdoconhecimento em questão concede efetividade a um mecanismo que, em certas situações, se mostra pouco criativo e distante do cotidiano para a soluçãodeconflitossociais. ODireito,porsuavez,éoramodoconhecimentoaptoparare-gularasrelaçõessociaisedirimirseusconflitos.AnossaConstituiçãoFederaldefinedeformaexplícitaosdireitosedeveresdoscidadãos.Ao

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longo da evolução do Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi a que mais ampliou o rol dos direitos individuais e sociais, tornando-se conhe-cida como a Constituição cidadã. No título II daConstituição há previsão quanto aos direitos egarantiasfundamentaisdecadacidadão.OcapítuloIdeste título tratados direitos e deveres individuais e coletivos, sendo detalhado em seu art.5º.OcapítuloIIabordaacercadosdireitossociais(arts.6ºaos11).OcapítuloIIItratadanacionalidade(arts.12e13).OIVabordaosdireitospolíticos(arts.14aos16)eporfimocapítuloVfazreferênciaaosparti-dos políticos (art. 17). Oartigo5ºcaputiniciatrazendoumdosmaisimportantesenun-ciados, tratando do princípio da igualdade ao prevê que “todos são iguais perantealei,semdistinçãodequalquernatureza[...]”(CF,1988)semdúvidaesteéumprincípioamploerequerbastantereflexãoacercadasuarealeficácia.Domingos(2002,p.191)acercadestaquestãofazim-portante ressalvaaoafirmarque“o importantenãoé apenaspositivarosdireitosfundamentais,masdotá-losdemeioscapazesdesetornaremefetivos no mundo jurídico, e, com isso, que não venham a ser passíveis de constantes violações”. Aindanocaputdoart.5ºolegisladorprevêoutrosimportantesdireitos que deverão ser invioláveis, tais como, o direito à vida, à liber-dade, à segurança, à propriedade. Para assegurar a efetividade de tais direitos,aConstituiçãocolocaemevidênciaumasériedegarantiasindi-viduais. Vale salientar, no entanto, a necessidade de que estes direitos atinjam o objetivo máximo de proteção ao indivíduo. Para tanto, confor-meoentendimentodeDomingos(2002),énecessárioquehajaremédiosaptosaatuarcontraainérciadoEstado.

UMA BREVE ANÁLISE ACERCA DOS DIREITOS FUNDA-MENTAIS Refletir sobre os direitos fundamentais no nosso contexto atual é de essencial importância. Todo ser humano precisa estar protegido con-tra atos abusivos e “através da Constituição” é possível estarmos ampa-

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rados legalmente,umavezqueelanosasseguraumasériededireitosfundamentais,noentantoéprecisoestaratentoquantoàeficáciadestesdireitos na sociedade de fato.

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA IMPORTÂNCIA PARA SOCIEDADE Os direitos fundamentais são de extrema relevância para o ser humano, pois são estes direitos que protegem o cidadão contra possí-veisviolaçõesporpartedoEstado,garantemumavidadignaaocidadão,comotambémaproteçãoaliberdadeeaigualdade.Porémfaz-seneces-sário estarmos atentos à efetivação destes direitos na prática.

Os direitos fundamentais são os direitos mais básicos de todo equalquercidadão.Emessência,sãodireitosrepresentativosdas liberdades públicas, formando valores eternos e univer-sais.TaisvaloressãoverdadeirasimposiçõesaoEstado,quetemodeverdeprotegereresguardaressesdireitos(PESTA-NA,2017,s.p.).

Noentanto,énecessárioreconhecermosqueelesestãoemevo-luçãocontínuanasociedade.Comosabemos,oDireitoestáintrinsica-mente relacionado com a sociedade e esta passa por constante evolução e transformação, logo, os direitos fundamentais percorrem este mesmo trajeto, por isso não podem ser considerados como algo pronto, acaba-do.Nessesentido,Silva(2017)abordaqueamedidaqueahumanidadevai evoluindo, novos direitos são conquistados, havendo assim ainda um longo caminho a ser percorrido. Os direitos fundamentais possuem características importantes, entre elas destacamos a imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenuncia-bilidade, inviolabilidade, universalidade, e a efetividade. Sabemosqueosdireitosfundamentaissãoimprescritíveis,umavezqueelesnãoseesgotamnotempo.Sãoinalienáveis,poisnãoépos-síveltransferi-losaoutro.Emregra,sãoirrenunciáveis,umavezquenãodevemserpassíveisderenúncia.Sãoinvioláveis,umavezqueoEstadonão pode deixar de observá-los ou infringir tais direitos por meio de atos

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abusivos.Sãouniversais,poisdevealcançartodososcidadãoseporfimdevem ser efetivos, cabendo ao poder público uma atuação positiva para garantir a efetivação destes na sociedade. Porfim,éinteressanteenfatizarmosqueemboraosdireitosfun-damentais estejam positivados na nossa Constituição e sejam de extrema relevânciaparaocontextosocialnoqualocidadãoestáinserido,fazne-cessário chamar a atenção para a questão dos direitos fundamentais não seremabsolutos.Elessãodireitosrelativosumavezqueencontramlimi-tesemoutrosdireitospresentestambémnanossaCartaMagna.Logo,éimportantequeoaplicadordoDireitoestabeleçalimiteseresolvapossí-veisconflitosdessesdireitosdeformaharmoniosa.

ORIGEM DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PauloeAlexandrino(2009)ressaltamqueaorigemdosdireitosfundamentais guarda uma relação com a forte necessidade de haver uma restriçãocontraosatosabusivosdoEstado,ouseja,oprincipalmotivodo surgimento dos direitos fundamentais foi proteger o indivíduo contra atos arbitrários e abusivos que de certa forma restringia a liberdade indi-vidualdocidadão.ComessaproteçãooindivíduoseriacapazdeexigiraabstençãodoEstadoparatergarantidoorespeitoasualiberdade. Aofalardaorigemdosdireitosfundamentaiséimportantedes-tacarmosasdimensõesougeraçõesdestesdireitos.Tradicionalmenteéreconhecido no meio jurídico três gerações. Osdeprimeirageraçãotraduz-senasliberdadesnegativasclássi-cas, englobando o direito à vida, à liberdade de expressão, entre outros. SeusurgimentofoiporvoltadoséculoXVIII,configurandocomoumarespostaaoEstadoabsoluto.Osdesegundageraçãorepresentamaigual-dade material entre os homens, compreendendo as exigências de pres-taçõessociaisaoEstado,taiscomo,saúde,educação,assistênciasocial,entreoutros.Portaismotivossãoconhecidostambémcomodireitosdobem-estar.Porfim,osdeterceirageraçãorepresentamosinteressesdi-fusos,ouseja,nãoestãodestinadosdemaneiraespecíficaaprotegerosinteressesindividuais.Sãoexemplosdestesdireitosaproteçãoaomeioambiente, a defesa do consumidor, entre outros. Faz-senecessárioaindaabordarmosacercadosdestinatáriosdos

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direitosfundamentais.Inicialmente,taisdireitoseramdestinadosapenasa pessoas naturais, no entanto, posteriormente, foi reconhecido os direi-tosfundamentaistambémemfavordepessoasjurídicas. Aorigemdosdireitosfundamentaisnãopossuiummarcodeter-minado,noentantoháalgumascorrentesjusfilosóficasquetentamex-plicaroiníciodetaisdireitosnasociedade.Dentreelastemdestaqueacorrente jusnaturalista, a juspositivista e o realismo jurídico. Para corrente jusnaturalista, os direitos fundamentais já existiam antesmesmodepassaraexistirqualquerleinasociedade.Essaconcep-çãodefendequeosdireitos fundamentaisestão ligadosaopróprioserhumano, é algo natural que advémda própria natureza, independentedaaçãohumana,logosegundoojusnaturalismo,nosprimórdiostaisdi-reitos já existiam na humanidade. Já a corrente positivista entende que taisdireitosadvémdanormapositivada,ouseja,énecessáriohaverumaaçãohumananestesentido.Orealismojurídicoporsuavez,compreendetaisdireitoscomofrutodolongoprocessohistórico,atravésdasconquis-tasobtidaspelasociedade(PESTANA,2017).

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS AO LONGO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS Já dissemos anteriormente que os direitos fundamentais estão em constanteevolução.Dessaforma,iremosexporumbrevehistóricodes-ses direitos ao longo das nossas Constituições. IniciaremosabordandoacercadaConstituiçãode1824,adoim-périodoBrasil.Silva(2017)enfatizaqueestafoiaprimeiraConstituiçãonomundoapositivarosdireitosdohomem.Traziao título“Garantiadosdireitoscivisepolíticosdoscidadãosbrasileiros”.EstaConstituiçãotrouxedeformaexplícitaumasériededireitosindividuais,noentantoMatos(2017)ressaltaquenapráticaestesdireitosnãotinhameficácia.InteressanteressaltarqueestaConstituiçãopreviaemseuart.179,incisoXIXqueficariamabolidososaçoites,atortura,amarcadeferroquente,etodasasmaispenascruéis,entretantoMatos(2017)enfatizaqueaindaeramutilizadosinstrumentosdecastigonassenzalas. Prosseguindo, temos a Constituição de 1891, considerada a pri-

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meiraConstituiçãoRepublicanadopaís.Estacartaassegurava tantoabrasileiros como a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos no que se refere à liberdade, segurança e à propriedade. Aseguir,veioaConstituiçãode1934quealémdetrazerosdi-reitos fundamentais já previstos nas Constituições anteriores, inovou tra-zendoumnovotítulo“Daordemeconômicaesocial”.ComobemcitaSilva(2017)estaConstituiçãopassouareconhecerosdireitoseconômi-cosesociaisdohomem,emboradeformanãomuitoeficaz. Emseguida,oBrasilviveuumtotalitarismoatravésdaConstitui-çãode1937.Váriosdireitosdocidadãoforamsuprimidos,representan-doassimumretrocessoparaasociedadebrasileira.SónaConstituiçãode1946foipossívelrestabelecerosdireitosantesexistentesnaCartade1934,alémdisso,trouxedoistítulosreferentesaosdireitosdenaciona-lidadeecidadaniaeosdireitosegarantiasindividuais.ACartade1946trouxe outras inovações como o habeas corpus, o mandado de segurança eaaçãopopular.TivemosaindaaConstituiçãode1967,aqualrecebeuforteinfluênciadaCFde1937,noquedizrespeitoàscaracterísticasdeambas.FoiumaConstituiçãocomtraçosdeautoritarismo,umavezqueatribuiuàUniãoeaoPresidentedaRepúblicamaispoderese“poroutrolado” diminuiu e suspendeu direitos e garantias constitucionais dos cida-dãos. Por fim, chegamos a nossaConstituição atual, aCarta cidadã,conhecida como a Constituição que mais ampliou o rol dos direitos e garantiasindividuais.ACartamagnade1988trouxegrandesinovaçõespara o Estado brasileiro. Em seu artigo 1º, já vemos uma importanteinovação ao constituir a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Percebemos, então, a preocupação do legislador voltada para o cidadão e para positivar direitos relativos a este. Énotório,semdúvida,ograndeprogressoqueocorreunanossaatualConstituição.Oart.5ºtrazdeformaexplícitaaproteçãoàvida,àigualdade,àliberdade,àsegurançaeàpropriedade.Daremosmaisaten-ção aos três primeiros direitos. Um dos mais importantes desdobramentos do direito à vida é o direito à integridade física, ou seja, a proteção do indivíduo contra atos violentos ao seu corpo. Em seu art. 5º, inciso III a CF é clara ao afirmar que “ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante”. Importante destacar que essa proteção não se resume apenas

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aintegridadefísica,mastambémaintegridademoraldoserhumano.Apreocupação do legislador em proteger o ser humano contra a tortura foi tãograndequeeleconsiderouapráticadesteato,crimeinafiançáveleinsuscetível de graça. Outra importante proteção positivada pelo legislador foi o direito àigualdade.ACFprevêquetodossãoiguaisperantealei.Aproibiçãodedistinção de raça, origem e cor consagra um importante desdobramento do direito à igualdade. Para dar maior efetividade a este direito, o legis-ladoraindaconsagraoracismocomocrimeinafiançáveleimprescrití-vel.Olegisladortambémsepreocupacomaigualdadeentrehomensemulheres.Oart.5º,incisoIdaCF(88)dizque“homensemulheressãoiguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Porfim,trataremosumpoucosobreodireitoàliberdade,dandoênfasetantoaliberdadedelocomoçãocomotambémaliberdadedeex-pressão.Aliberdadedelocomoçãotraduz-senodireitodeirevir.Oart.5º,incisoXVenfatizaque“élivrealocomoçãonoterritórionacionalemtempodepaz,podendoqualquerpessoa,nostermosdalei,neleentrar,permaneceroudele sair comseusbens”.Sabemosquenoperíododaescravidãoosescravosnãotinhamdireitoaessaliberdade,umavezqueeram tratados como verdadeiros objetos, sendo considerados proprieda-des dos seus patrões. Aliberdadedeexpressão,porsuavez,constitui-senodireitodeexpressarsuasopiniõesepensamentos,sejapolítico,religiosooufilo-sófico.Comosereshumanos,vivemosemconstantecontatounscomosoutrosefaz-senecessárioessaliberdadedeexporasnossasideias,assimcomotambéméimportantequesejaasseguradoorespeitoàsopiniõesindividuais.ACF/88consideralivreamanifestaçãodepensamento,nãosendopermitido,porém,oanonimato. Traçando todo este panorama acerca dos direitos Fundamentais, percebemos uma vasta evolução comparando a Constituição atual com aspassadas,noentanto,éprecisoobservarseosdireitospositivadoses-tãorealmentesendoeficazesnaatualconjuntura.Nãobastapositivá-loséprecisomecanismosparaqueoEstadocumpraseupapeldeproteçãoao cidadão.

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UMA BREVE ANÁLISE DO CONTO NEGRINHA

Tendo abordado acerca dos dois ramos do conhecimento, ao qual pretendemos relacionar neste trabalho, proporemos uma breve análise aindasobreocontoNegrinha,buscandoenfatizaraineficáciadosdirei-tos fundamentais no contexto desta obra. PorvoltadofinaldoséculoXIXeiníciodoséculoXX,aLite-raturaviveuoperíodoconhecidocomoopré-modernismo.Talperíodoécaracterizadopelointeressenasquestõessociaisvivenciadasnonossopaísepela fortecríticaaosproblemasenfrentadospela sociedade.“Aliteraturapré-modernista, emcerto sentido,modificoueaproximouasrelaçõesentreescritorepúblicoaosetornarporta-vozdessepúblico,dosseusanseios,desejosenecessidades”(PASSIANI,2002,p.248). ÉnesteambienteliterárioquesedestacaoescritorMonteiroLo-bato,conhecidopelasuacríticaaosproblemassociais.Comainfluênciadopré-modernismo,Lobatodestacaemsuasobrasumatemáticavoltadapara a investigação da realidade do seu país e “através da linguagemliterária”elerefleteeconduzoleitoraumareflexãosobretalrealidade. Nestecontexto,damosênfaseaocontoNegrinha,umavezqueoautorfazusodasuacríticaparadenunciararealidadesocialdosnegrosnocenáriohistóricodoBrasil.LobatoprocuramostrarnestecontoqueemborajáhouvessesidoproclamadaaRepúblicaetambémalibertaçãodosescravosnoBrasil,atravésdaLeiÁurea,nãohouvedefatomudançapara os “ex-escravos” que permaneciam ainda a margem da sociedade, vivendocomtraçosdeescravidão.Estasituaçãojánosmostraaineficá-ciadeumdireitorelativoaosescravos,umavezquealeiquepromoveualiberdadedestesnãoseresponsabilizoupelaintegraçãoaomeiosocial,nem proporcionou de fato uma vida digna. Atemáticadestecontoédesumaimportânciatambémparare-fletirmosacercadadesigualdadeentreaspessoas,oracismo,eoprecon-ceito.Oautorseutilizadepersonagensfictíciosparadenunciaradurarealidadeaqualosex-escravosestavamsubmetidos.Lobato,atravésdapersonagemNegrinhatrazàtonaadiscriminação,mostrandooquantoela era considerada inferior por ser de origem negra.A narrativa nosmostra ainda a tortura, os inúmeros castigos desumanos e os trabalhos forçados aos quais estavam submetidos os escravos.

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O conto nos relata que Negrinha era uma criança que nasceu na senzala,filhadeumaescravaequeficouórfãaosquatroanosdeidade.Aoperderamãe,elapassaavivercomDonaInácia,apatroadasuamãe.Otermo“senzala”nosremeteàfasedaescravidão,poiselaeraahabita-ção destinada aos escravos. Outropontoqueo autor enfatiza equenos remete aoperíodohistóricodaescravidãosãooscastigoseosmaustratossofridospelame-nina.DonaInáciasentiaprazeremmaltratarNegrinha,qualqueracon-tecimento era um grande motivo para castigá-la. “o corpo de Negrinha eratatuadodesinais,cicatrizes,vergões.Batiamneleosdacasatodososdiashouvesseounãohouvessemotivo”(LOBATO,2008,p.20). Os apelidos era outra maneira de humilharem e praticarem a mal-dade com a menina, “peste” “barata descascada” “mosca-morta” entre outrostantos,quenoslevaarefletirsobreaidentidadedagarota,que,apesar da pouca idade, se depara com uma situação cruel sem sequer ser chamada pelo nome. EragrandeacrueldadedeDonaInáciaparacomamenina,ficaclaronocontooprazerqueelasentiaempraticartantamaldade.Umdospiores castigos aplicado pela senhora foi o ovo tirado do fogo e colocado na boca de Negrinha, quando a menina chamou a criada de peste, por ter furtado do prato um fragmento de carne. O conto nos mostra que a personagem em destaque não era vista comoumserhumanoesimcomoobjeto.Desdecedofoi lhe tiradoodireitodebrincar,cresceuseminfânciaedivertimento.OautortambémdestacaqueDonaInácianãotinhaafetoporcriançaeporessemotivoNegrinha estava sempre escondida. Percebemos que ela não teve vida social,umavezquenãopodiadesfrutardoprazerdasbrincadeirasdecriança e nem podia ter muito contato com as pessoas já que o trecho nosmostraqueelaviviaescondida.Bergamasco(2010,p.371)dizque“Negrinhapodeserconsideradaumasubalterna,poiscaracteriza-seporestar excluída das atividades sociais, sem direito a falar ou ser ouvida pela patroa”. Umdostrechosmaisimportantesdocontoéquandooautormen-cionaachegadadassobrinhasdeDona Inácia.Lobato fazquestãodedestacarqueasmeninaseramlourasparaenfatizarotratamentodiferen-ciadodadopelasenhoraaosdacorbranca.Adesigualdaderacialeopre-conceitoexistenteficamvisíveiscomachegadadasgarotas.Negrinha

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havia crescido com a imagem que era proibido brincadeiras pela casa, mas ela percebe que isto muda quando as sobrinhas da senhora chegam a casa e então ela se pergunta se não era mais proibido brincar. Negrinha, deformailudida,acreditounaqueleinstantenamudançadeDonaInácia. O conto nos relata que a menina se aproxima das garotas louras esedeixaenvolverpelasbrincadeiras,noentantoosofrimentodestavezfoimaior.DonaInácianãoperdeuaoportunidadedehumilhá-laeagorana frente das sobrinhas. Negrinha não sofria apenas por não poder des-frutardasbrincadeiras,mastambémpelodesprezoemrelaçãoàscrian-çasbrancas.Lobato(2008,p.23)citaque“comlágrimasdolorosas,me-nosdedorfísicaquedeangústiamoral–sofrimentonovoquesevinhaacrescer aos já conhecidos -, a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre”. No entanto o contato com as crianças brancas e com os brinque-dosfezNegrinhapelaprimeiravezdesfrutardeumaexperiêncianova.Ela consegue se enxergar comouma criança de verdade e esse senti-mento lhe trouxe ao mesmo tempo felicidade por se descobrir como um ser humano e tristeza com a partida dasmeninas, pois sabia que nãoconseguiria voltar a viver da mesma forma já que um novo ser havia sido descobertonasuaalma.Lobato(2008,p.25)dizqueNegrinha“sentiu-seelevadaàalturadeentehumano.Cessaradesercoisa–edoravanteser--lhe-iaimpossívelviveravidadecoisa.Senãoeracoisa!Sesentia!Sevibrava!Assimfoi–eessaconsciênciaamatou”. OautortecetambémdurascríticasapersonagemdeDonaInácia.Elemostraqueasenhorajamaishaviaseadaptadoaonovoregimeecon-siderava absurda a possibilidade dos negros serem iguais aos brancos. Lobato (2008, p. 21) aindamostra claramente quem eraDonaInáciaquandoexpõeque“o13deMaiotirou-lhesdasmãosoazorrague,masnãolhetiroudaalmaagana”.Ora,oazorragueerauminstrumentode tortura usado pelos senhores de escravos para castigá-los. Nesse pon-to citado pelo autor podemos perceber que embora existisse uma lei que aboliaaescravidão,osmaustratosaosnegros,aalmadeDonaInáciarepresentandoasociedaderacista,nãomudou,permaneciacheiadeódioe preconceito. O autor consegue nos transmitir através deste conto o cenáriohistóricoesocialdeumaépoca.Mesmotratando-sedeumaobradefic-ção literária este conto nos revela marcas de uma sociedade racista, re-

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pleta de máscaras e hipocrisia, em que o negro e o branco são considera-dos seres humanos diferentes. Apersonagemprincipaldestaobranãotinhadireitosassegura-dos, sofria constantes maus tratos, não teve uma vida digna, foi exposta asituaçõescruéisedesumanasporserdeorigemnegra,foitratadacomdesprezoediscriminaçãopelosdeorigembranca.Tudoissonoslevaaumafortereflexãosobreoquerealmenteocorreunonossopaísnaépocada escravidão, pois sabemos que de fato essa dura realidade existiu. É preciso notar a relevância da temática deste conto para o mun-dodoDireito.ÉbemverdadequeelefoiescritoporLobatonoanode1920, ou seja, ainda não estava em vigor a atual Constituição Federal, no entanto, não retira a importância desta obra, para analisarmos o quanto aLiteraturapode fornecer elementosparaoDireito, nos auxiliando acompreendermelhorosfatossociais,comotambémnosajudaarefletirsobre a efetividade dos direitos individuais e sociais. Hoje,podemos,defato,nosquestionarseasnossasleisestãonaprática cumprindo o seu papel perante o cidadão, assegurando os seus direitos fundamentais, garantindo a dignidade da pessoa humana a todo cidadão, entre outros tantos direitos assegurados na nossa Carta Magna. Ocidadãopode,sim,traçarestareflexãosobreoatualcontextohistóricoeaeficáciadosdireitosfundamentais,eotextoliterário,semdúvida,nosdará respaldo para que isto ocorra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Tudooqueforaapresentadoaolongodotextodemonstraanotó-riaimportânciadainserçãodaLiteraturanomeiodainstituiçãojurídica,concedendoumaformaçãomaiscrítica,reflexivae,acimadetudo,hu-mana.Oconhecimentotratadopelaciênciajurídicanãoéautossuficien-te. Essa relação constrói a oportunidade de formação de profissionaiscapazesdelevaroDireitoaumnovoparadigma,paraquesejacapazdeconsiderar os interesses de todos. Além disso, sabemos da grande importância dos direitos e ga-rantias fundamentais para cada cidadão, no entanto é necessário refletir-mos acerca da real efetividade desses direitos na atual conjuntura. Assim como Lobato refletiu através da literatura acerca da realidade social que

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estavavivenciandonaépoca,precisamostambémusarnossacapacidadecríticaparaanalisarmosaeficáciadosnossosdireitosnaprática,afimdenãopermitirqueestes,umavezoutorgados,venhamsofrerviolaçõesporpartedoEstado. NãoéimpossívelinserirmosotextoliteráriocomosubsídioparaoDireito. São duas áreas amplas e de vasto conhecimento, e, omaisimportante,équeestãointrinsicamenterelacionadaaoserhumanoeasociedadenaqualestáinserido.OcontoescritoporLobatofoiapenasumdosmaisvariadosexemplosqueépossívelsimtrabalharoDireitoeaLiteraturaemconsonância,massabemosqueéumamplocampodetrabalho que ainda pode ser bastante explorado pelos estudiosos. ALiteraturanosapresentaconflitosdiversosque,pormaisqueestejadisfarçadoatravésdepersonagensfictícios,podenosdirecionaraumarealidadedefato.JáoDireitoexisteparasolucionartaisconflitossociais e épensando sobestaóticaqueconsideramosde fundamentalimportânciaacorrelaçãodestesdoismundosdistintos,porémpróximosao mesmo tempo.

REFERÊNCIASBRASIL.Constituição(1988).Constituição da República Federativa do Brasil.Brasília,DF:SenadoFederal:Centrográfico,1988.

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LOBATO,Monteiro. Negrinha.SãoPaulo:Globo,2008.Disponívelem:<http://books.google.com.br/books>.Acessoem:05deJulhode2018.

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PAULO,Vicente;ALEXANDRINO,Marcelo.Direito Constitucional descomplicado.2.ed.RiodeJaneiro:Forense;SãoPaulo:Método,2009.

PASSIANI,Enio.Na trilha do Jeca:MonteiroLobato,opúblicoleitoreaformaçãodocampoliterárionoBrasil.Sociologias(UFRGS),2002.Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/soc/n7/a11n7.pdf>. Acessoem: 07 de Julho de 2018.

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SILVA,JoséAfonsoda.Curso de Direito Constitucional Positivo.40.Ed.SãoPaulo:Malheiros,2017.

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PRODUÇÃO LEGISLATIVA EXACERBADA COMO UM DOS ELEMENTOS PARA O ATIVISMO JUDICIAL E UMA DIFICULDADE PARA O DIREITO

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Victor Rodrigues Bezerra Pontes¹

1 Graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Contato: [email protected].

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Resumo: Otrabalhoapresentadobuscademonstrarcomoatécnicalegisla-tiva brasileira e sua produção exacerbada provocam o ativismo judicial e aineficiênciadoPoderJudiciárioemtodooordenamentojurídico.Paraembasamento de tal tese, será utilizado como referência bibliográficaosescritosdos juristasLênioStreck,GeorgesAbboudeLuísRobertoBarroso,aliadoàliteraturatambémseráanalisadacasosajurisprudênciapátria.

Palavras-chave: Ativismo judicial.Decisionismo.Pan-principialismo.Pluralismo Jurídico. Juristocracia.

Abstract: ThepresentworkseekstodemonstratehowtheBrazilianlegisla-tive technique and its exacerbated production provoke judicial activism

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and inefficiency of the Judiciary in all juridical order. In support ofthis thesis will be used as bibliographical reference the writings of the lawyersLênioStreck,GeorgesAbboudandLuísRobertoBarroso,alongwithliteraturewillalsobeanalyzedcasesthejurisprudencehomeland.

Keywords: Judicial activism.Decisionismo. Pan-principialism. LegalPluralism. Juriscracy

INTRODUÇÃO

OEstadoModernosurgedorompimentocomatradiçãomonár-quicahereditária,emqueafiguradoreierasuprema,naquala inter-venção estatal na vida dos indivíduos era intensa e os impostos eram abusivos,emsuma:rompecomoAntigoRegime.Apesardasmudanças,aforçaexercidaeradoEstadoemdireçãoàsociedade,opoderadvinhadoEstadoeapopulaçãosesubordinava.Essavisãoseperpetuaatéhoje,principalmenteaotrataroDireitoeleisaindacomosinônimos. Noentanto,oEstadotemseucorpocompostoporpessoasque,pordiversasvezes,agemsobinteressespróprioseacabamelaborandoleis tendenciosas. Nesse caso, a regulamentação estaria contaminada pelaconveniênciadolegisladorepelodevidoconflitodeinteresses,umexemplosãoasalteraçõesdegovernosnasquaisasnormassãomodifi-cadas conforme interesses e posicionamento de determinada classe no poder.Dessaforma,classificaroordenamentopuramentecomoDireitose torna uma tarefa difícil. Ademais,osistemajurídicoadotadonoBrasil–Civil Law–aca-baporlegitimaressavisão,emaisalémpermiteacriaçãodeumaenor-me quantidade de atos normativos. Ou seja, a legislação abarca várias situações e admite diferentes interpretações. Tal fato requer demasiada atuação do Judiciário, gerando uma grande concentração de poder, pre-judicando todo ordenamento jurídico. Essa grande atuação do Judiciário acaba por proporcionar dois fenômenos dentro do desempenho estatal: a judicialização e o ativismo judicial. Esses fenômenos se erguem em decadência da norma constitu-cional, impedindo a perfeita harmonia entre os Poderes, logo, prejudi-cando o sistema de freios e contrapesos do Estado, impedindo que este

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funcione de forma plena. Porisso,énecessáriobuscarnajurisprudênciaenoordenamentojurídico as divergências que ocorrem, para, assim, revelar a problemáti-caqueessesfenômenos(oativismoeajudicialização)acarretam;tam-béméprecisobuscarbibliograficamenteosprincipaisaspectosdecomoacontecem, para, então, analisar o papel da Carta Magna brasileira diante do cenário social atual.

DIREITO X LEI (SOB O PRISMA DO PLURALISMO JURÍDICO) Osistema jurídicoadotadopeloBrasiléoCivil Law, que tem comofonteprimáriadoDireitoalegislação,ouseja,oscasosconcretossãodecididosconformeasnormas.Dessamaneira,aexpressãocomumdoordenamentodentrodasociedadebrasileiraédadapelosatosnorma-tivos.Talfatoacabaporgeraraideia–bastantecomum–dequealeiéoDireitoporsisó,legitimandoavisãodomonismoforense. Admitir essa concepção de que o Direito só advém do aparato estatal, é negar garantias conquistadas e produzidas por toda sociedade, rejeitando todos os avanços que diversas lutas sociais trouxeram, pois, “a paz é o termo do direito, a luta é o meio de obtê-lo” (IHERING, 2009, p. 22). Os direitos fundamentais são excelentes referências que demons-tram a luta social e a capacidade da produção de direitos pela coletivi-dade. Como exemplo é possível citar a Revolução Francesa, sendo um meio de luta para construção de direitos individuais, provando que “a universalidade se manifestou pela vez primeira, com a descoberta do ra-cionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem de 1789.” (BONAVIDES, 2016, p.576). Dessa forma, muitas vezes, o monismo jurídico acaba por negar a verdadeira essência do Direito que “se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais” (LYRA FILHO, 2005, p.56). Esse monismo deixa de lado aquilo que Roberto Lyra Filho, no seu livro “O que é direito?”, chamou de “O Direito Achado na Rua” no qual as normas são, também, produzidas fora do Estado, reflexo do corpo social após lutas. Essa vertente pluralista da produção do Direito retira o Estado como detentor do monopólio jurídico, dividindo com a sociedade tal po-

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der - isso foi analisado com Michel Foucault (2015), na sua obra “Micro-físicadopoder”,mostrandoqueopodernãoestáconcentrado,étratadoemsuamicrofísica,istoé,namaneirapelaqualelepercorreportodaasociedade - e captura ontologicamente o ordenamento, pois deixa evi-dentequeocorposocialtambémtemforçaparacriaçãodomesmo,ouseja,eletambémpodeserderivadodessepodersocial. Emsomadisso,noBrasil,duranteaDitaduraMilitareraforte,a“crisedavoz”–expressãocunhadaporNickCouldry(2010)emsuaobra “Why voice matters?”, mostrando que nem todos os grupos tem acessoàparticipaçãopolítica,econômicaecultural–eporessemotivo,noexemplobrasileiro,comofimdo regimeditatorial, foidadavozadiversosgrupossociais,essesgrupostiveremseusanseiosrealizadoseaconsequência foi a enorme produção de leis de forma instantânea. EssaenormeproduçãoderegrasjurídicastratouporlegitimaravisãonaqualDireitoeleisãonomesdistintosparamesmacoisa,poisasnormassempreforamapresentadascomopuroordenamento.Emsomadisso,aediçãodalegislaçãobrasileiraentre1988e2017foide769nor-maspordiaútil(LEÓN,2017,p.deinternet),ouseja,algoemtornode5,4milhõesderegulamentações.Essedadodemonstraoenormecontin-gentedepreceitosalémdasmudançasqueocorremnosmesmos,geran-doa insegurança jurídica.Ademais,aenormequantidadedessasreda-ções,porvezes,devidoàsuatécnicalegislativa,tornaparagrandeparteda população algo exterior, de difícil acesso e compreensão, retirando grande parte da sociedade do processo de criação e interpretação do meio forense. Ora,oacessoao“Direito”iniciacomaconsciênciadalei,porémao tratar da realidade do Brasil, torna-se obstada, pois os preceitos, por vezes, são de difícil compreensão e isso é agravado pelo fato de quegrande parte da nação brasileira não tem escolaridade suficiente. Issoéreveladonosseguintesdados:ataxadeanalfabetismoentrebrasilei-roscom15anosoumaisem2014foiestimadaem8,3%(13,2milhõesdepessoas), segundoaPesquisaNacionalporAmostradeDomicílios(Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE);jáaproporçãodosquepossuíamnívelfundamentalincompletofoide33,5%nomesmoperíodo. Em outras palavras: o “Direito tem se prospectado como umsistema isolado,e tal sistemaconsiste justamenteemutilizaruma lin-

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guagemqueninguémentende,excetoolegislador”.(FARIAS;ROSEN-VALD2016,p.55).Assim,comodemonstradosupra,compreenderaleiéumadificuldadeparaapopulaçãobrasileira,eissotrataporfazercomquesetorne“Direito”umaferramentaalheiaàsociedade.

JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA: SORTE E REVÉS AO JUDICIÁRIO Comoforadito:osistema jurídicoadotadopeloBrasil–CivilLaw–propiciaagrandeproduçãolegaldentrodoterritório.Háumenor-me contingente de leis no Brasil que tratam sobre vários assuntos e ca-sos.Essasdiversasleisacabamporgerarumajudicialização,conformeseobservanasponderaçõesdoMinistroLuísRobertoBarroso:

Judicializaçãosignificaquealgumasquestõesdelargareper-cussãopolíticaousocialestãosendodecididasporórgãosdoPoder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: oCongressoNacionaleoPoderExecutivo–emcujoâmbitoseencontraoPresidentedaRepública,seusministérioseaadministraçãopúblicaemgeral.(BARROSO,2009,p.2)

Dessamaneira,portratarsobrecasosespecíficos,asleisregemdeformadetalhadaavidaemsociedade,gerandoa“judicializaçãodavida”,e,assim,naspalavrasdeGeorgesAbboud:

É nesse contexto que parcela de nossa liberdade constitucio-nal tem se esvaído pormeio da judicialização de todas asesferas de nosso ambiente privado. No contexto brasileiro, assoladopeloativismo,dificilmenteimaginamosalgumtemaque não possa ser objeto de demanda judicial. Ocorre que o outroladodessaperspectivaéquepassaanãoexistirnenhu-ma esfera de nossa liberdade que não possa ser substituída porumperniciosovoluntarismojudicial.(ABBOUD,2017,p. 221).

Nesse raciocínio, o Poder Judiciário é provocado para atenderàdemandadecasos,aqualéevidentementegrande,eporissotornaosórgãoslentoseincapazesdecorresponderaosanseiossociais.Emsoma

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disso,àmedidaqueoórgãoforenseéextremamenteutilizado,eleganhamaisforçaeespaçoparaarbitrariedades.Destafeita,ficafácilobservaros dois lados da mesma moeda: enquanto o magistrado ganha força e poder,háprejuízosnamesmaproporçãocomrelaçãoàperfeitaoperabi-lidadedaorganizaçãojudiciária. Contudo, os magistrados não podem decidir conforme sua vonta-deprópria,devemdecidirconformeo“Direito”,ouseja,deacordocomoordenamentojurídico.TalfatotemsupedâneonoCódigodeProcessoCivil,queemseuartigo11queafirma:“Todososjulgamentosdosór-gãos do Poder serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob penadenulidade”,ouseja,todadecisãoéprecedidadeumafundamen-tação. No entanto, a força adquirida pelo órgão forense é tão grandeque,porvezes,alémdenãotersuafundamentaçãodeacordocomor-denamento jurídico (como será demonstrado), a sua atuação invade o espaçodosoutrospoderes(ExecutivoeLegislativo),sobaformadoqueéchamado:ativismojudicial.

ATIVISMO JUDICIAL Oativismoeajudicializaçãoapesardeparecidosede,porve-zes,andaremacompanhados,nãosãoiguais.Paracompreendermelhoradistinçãoentrejudicialização(quejáfoiabordado)eativismojudicial,épossívelanalisarograudemanifestaçãodestesegundofenômeno.As-sim,háduasdimensõesdeexpressão:aestrutural(macro)eadecisória(micro):

Nadimensãodecisória (micro)oativismoconsistena sus-pensãodalegalidade(CF+lei)comoocritériodecisórioporumcritériovoluntaristaquepodeserpuramenteideológico,econômico,moral,religiosoetc.Ouseja,pormeiodele,noBrasil, os pré-compromissos democráticos (Constituição eleis) são suspensos pelo julgador e substituídos por sua sub-jetividade/discricionariedade(ABBOUD,2017,p.214).

JánadimensãoestruturaloqueocorreéumaSupremaciaJudi-cial,ouatémesmoajuristocracia.“Emlinhasgerais,nadimensãoma-

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cro,oativismosecaracterizaporumagigantamentodoJudiciáriofaceaosdemaispoderes,semrespaldoconstitucionalparatanto”(ABBOUD,2017,p.214) Dessa forma, a Judicialização é um conceito para decisões dequestões com repercussão social à frente dos outros Poderes; e o ativis-motambémpossuiainterferêncianasoutrasesferas,noentanto,háumainterferência sem forte respaldo constitucional e carecendo de embasa-mento legal ao proferirem decisões. Nessaretórica,oativismojudicialaliadoa judicializaçãopodeirdeencontrotrataaospreceitosdoEstadoDemocráticodeDireito.Emsomadisso,oórgãoforensecadavezmaisinvadeaesferaprivadadosindivíduos, contribuindo, assim, para a criação de uma Juristocracia; esta podeserdefinidacomo:

Umaformadedegradaçãodademocraciaconstitucionalemqueaautonomiaeaseparaçãodepodereségolpeadaporumativismo judicial que atinge a esfera dos demais Poderes, sem respaldoconstitucional.Alémdausurpaçãoemrelaçãoaosdemaispoderes,étraçodistintivodajuristocraciaacrescenteinvasão do Poder Judiciário em face da esfera de liberdade do cidadão(ABBOUD,2017,p.225).

Ecomessaposturaadotada,éperceptível,cotidianamente,queoJudiciário está agindo conforme sua vontade, promovendo discriciona-riedades,edecisõesconformeaconsciênciadomagistrado.Essasdeci-sões, com base na consciência individual, são meros atos de poder.

ATO DE FORÇA NaFísica,aforçapodeserdefinidacomoacausaquealteraoestado de um corpo, colocando-o em movimento ou em repouso. Nesse contexto,ficanítidaasubmissãodocorpoaoimpulso.Assimsãoosatosdeinfluênciademagistradosquedecidemconformesuasvontades,poisimpõemumadecisão–emcasosnosquaisnãoháembasamentojurídi-co - para todo corpo social; e, semelhante na física, em que um corpo a sociedadesetornavassaladedecisõesnasquais,porvezes,nãoháres-paldo legal.

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2 Discurso proferido na homenagem realizada no dia 17/06/2010, em comemoração a 20 anos de atuação do Ministro Marco Aurélio no Supremo Tribunal Federal. Vide referências.3 Analogia também feita em um artigo produzido pelo jurista Lênio Streck. Vide referên-cias.

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Os juízes são agentes daDemocracia, e, por isso, devem agirsob as amarras dos aparatos democráticos, precisamente a Constituição Federal. No entanto, como será demonstrada, a Carta Magna brasileira estásendoescritadaformaqueosmagistradosdizemqueé.Aposturaadotadaporváriosmagistradospodeserdemonstradapelafaladopró-prioministrodoSupremoTribunalFederal,MarcoAurélio:

Daítersemprepresente,quandomedefrontocomconflitodeinteresses, a necessidade de buscar acima de tudo a almejada justiça.Idealizoparaocasoconcretoasoluçãomaisjustaeposteriormente vou ao arcabouço normativo, vou à dogmáti-ca buscar o apoio2 (AURÉLIO,2010,p.deinternet).

Uma analogia simbólica pode ser utilizada para elucidar essaquestão;afaladeumapersonagemdeLewisCarroll–Humpty Dumpty –em“Aliceatravésdoespelho”3(STRECK,2017,p.deinternet),aper-sonagemafirma:“Quandoeuusoumapalavraelasignificaexatamenteoquequeroquesignifique:nemmaisnemmenos”(CARROLL,2010,p.deinternet).EassimafaladapersonagemcomadoMinistroseconver-gem, ambas tornam a palavra àquilo que elas querem, no entanto, com relaçãoaoMinistro“oDireitonãoéaquiloqueointérpretequerqueeleseja”(STRECK,2014,p.166). Talatitudeéumatodeforça,pois,aodecidirantesdebuscarres-paldo,arespostaserádadaconformeavontadedojuiz,enãodosprecei-tosaosquaisélimitado;e,infelizmente,issoéumatodepoder.Econtraa conduta de supremacia, não há argumentos; decidir e depois procurar umafundamentaçãoéumaatitudequenãopodeserfeitapeloJudiciário,sob pena de não garantir a busca da justiça no seu sentido mais amplo, queé,sobretudo,abuscadaverdade,sejaelarealouformal.

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PAN-PRINCIPIOLOGISMO: UM DESVIO DE CONDUTA Háumadivergênciadoutrináriadiantedoconceitodeprincípios,noentanto,hágranderecorrênciadosjuízesparadecisãodecasos.Masoquesepercebecotidianamenteéousodesenfreadodessespressupostos,usados como solução de embates da sociedade, e a crença de que esses fundamentosseriamsolução.Issovemprovocandoousoretóricodoar-cabouçoprincipiológico,legitimandoarbitrariedadesediscricionarieda-des,bastandoàinvocaçãodessesjuízosparaditarqualquerparecer. O neoconstitucionalismo permitiu a ingressão de princípios no ordenamento jurídico para a solução de casos, no entanto, há, muitas vezes,odesviodefunçãodessesfundamentos,ouseja,“buscandosu-peraronormativismoexegético,abriu,historicamente,ocaminhoparadiscricionariedadesedecisionismos.”(STRECK,2014,p.166)Emsomadisso,oséculoXXIexigindoafundamentaçãoparaqualquerparecer–rompendocomatradiçãopositivistalegalista–estásendocorrompidapelautilizaçãodospressupostosdeformaimprudente. Nesse contexto, surge o neologismo do “Pan-principialogismo” paradefinirainfinidadedeprincípiosquevemsendotrazidosàtona.Aquantidadedeprincípioséenorme,e,pior,sãoredundantesdiantedoscasos por seremmeramente tautológicos. Lênio Streck traz uma listadesses princípios:

Princípio da precaução; princípio da não surpresa; princípio da adequação; princípio do autogoverno da magistratura; princípio da afetividade; princípio do fato consumado; prin-cípiododeduzíveledodedutível;princípiodaubiquidade;princípiodaconfiançadojuiznacausa;princípiodasituaçãoexcepcionalconsolidada(STRECK,2014,p.172-173).

É possível observar que esses princípios deixam de lado a deon-tologiadoDireito,poissãomeramenteretóricos,pleonásticoseteleoló-gicos.Eautilizaçãodessesprincípiosemexcessoseapresentacomumequívoco, pois:

Trata-se de uma análise equivocada da função dos princípios constitucionais, ou seja, enquanto os princípios gerais do di-

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reitoseconstituíamemuma“autorização”paraadiscricio-nariedade,umfatorquejustificavaa“saída”dojuizdosiste-macodificadoparasolucionarocasoquelheeraapresenta-doequenãoencontravarespostanoCódigo(efoiparaissoquedispositivosdesse jaez foramcolocadosnosCódigos),os princípios constitucionais apresentam-se, contempora-neamente, como um contraponto a essa discricionariedade (STRECK,2014,p.166).

Enessaconjunturaé reveladaa facedo Judiciárioque fereospreceitosconstitucionais,revelandooativismojudicial,oqualfazruirascolunasdoEstadoDemocráticodeDireitonoBrasil.

A CARTA MAGNA BRASILEIRA COMO UMA FOLHA DE PAPEL FerdinandLassale(1995)-emumaconferênciaproferida,pos-teriormentetransformadaemlivro(AessênciadaConstituição)-utilizaametáforadafolhadepapelparaaConstituiçãoquenãorefleteasocie-dade.Eessacomparaçãonuncafoitãoatual.Noentanto,aCartaMagnabrasileira está se tornando uma mera folha de papel, não porque não refleteasociedade,massimporqueos tribunaisaescrevemconformequerem. Para evidenciar o posicionamento são apresentadas decisões pro-feridas por esses tribunais.Umadelas: “A falta de defesa técnica poradvogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Consti-tuição”(STF,2008,p.deinternet).Ora,essasúmulavaideencontroaoincisoLVdoArtigo5ºdaCartaMagnabrasileiraqueafirma:“aosliti-gantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral sãoasseguradosocontraditórioeampladefesa,comosmeioserecursosa ela inerentes”. Essadecisãodivergedeumdireitofundamentalexpresso,apre-sentando uma interpretação não cabível. Ora “sendo a Constituição, por-tanto,uminstrumentoordenadordatotalidadedavidadoEstado,doseuprocessodeintegraçãoe,também,daprópriadinâmicasocial,exige-seumainterpretaçãoextensiva”(ROCHA,2008,p.deinternet),noentanto,oqueaconteceufoiocontrário:reduziu-seoprincípiodocontraditórioeda ampla defesa; ferindo, assim, os preceitos constitucionais.

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AindanamesmaSúmula,háadivergênciatambémcomrelaçãoaoartigo133daCartaMagnabrasileiraqueversa:“Oadvogadoéin-dispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestaçõesnoexercíciodaprofissão,noslimitesdalei”.Seoadvoga-doéindispensávelnãopodeserdescartáveldiantedeumprocesso.Emsomadisso,oSuperiorTribunaldeJustiçadecidiuemumMandadodeSegurançaqueadmitiaanecessidadedeumadvogadoduranteprocessoadministrativo

[...]Aconstituiçãodeadvogadooudedefensordativoé,tam-bémnoâmbitodoprocessodisciplinar,elementaràessênciada garantia constitucional do direito à ampla defesa, com os meioserecursosaelainerentes[...](STJ,2016)

Tal decisium perdeuaforçaapósaSúmuladoSTF. AlémdessaSúmula,épossívelapresentarapermissãoparapri-sãodecondenadosemsegundainstância,naqualoSupremoTribunalFederal proferiu a decisão em um julgamento para concessão de habeas corpus,eapós isso ratificoudiantedo reconhecimentoda repercussãogeraldeumRecursoExtraordináriocomAgravoafirmando:

Emregimederepercussãogeral,ficareafirmadaajurispru-dência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que aexecuçãoprovisóriadeacórdãopenalcondenatórioproferi-do em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunçãodeinocênciaafirmadopeloartigo5º,incisoLVII,daConstituiçãoFederal(STF,2016).

Novamente,évistaumadecisãoindodeencontroaCartaMagnabrasileira.Pois,aoproferiressadecisão,oSupremoinverteuoprópriosentido do princípio da presunção da inocência, pois permitir a prisão antesdotrânsitoemjulgadoéadmitiraculpabilidadedoréu.Aindaporcima,oartigo283doCódigodeProcessoPenalreafirmailegalidadedetaldecisão,poisaduzque:

Ninguémpoderáserpresosenãoemflagrantedelitoouporordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária com-

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petente,emdecorrênciadesentençacondenatóriatransitadaem julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Dessaforma,sãoobservadosalgunsatosdeforçaexercidosportribunais, tornando assim a sociedade mera expectadora da construção de uma Carta Magna brasileira à maneira dos magistrados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Assimcomooautomóvelutilizaocombustívelparaseumovi-mento,oJudiciárioutilizadosistemaCivil Law para o aumento da sua força. É nítido como, no Brasil, ocorre uma produção legal exacerba-da que penetra por todas as vias do ambiente privado dos indivíduos, e como consequência o Poder Judiciário abarca as situações. EquantomaisoJudiciáriocresceeseagigantadiantedosoutrosPoderesdaRepública,provocacadavezmaisoativismojudicial,epior,permitindoqueatravésdassuasdecisõesediscricionariedadespossamconstruirumaConstituiçãocomosedeseja,semseguirospreceitosDe-mocráticos.Taisdecisões–aliadasàproduçãodeleisdesenfreadas-fa-vorecemapercepçãodeumDireitoturvo,etalvezfugindoounegandosuaprópriaessênciaquandosetratadasociedade. ARepúblicaFederativadoBrasil,constituindo-seemEstadoDe-mocráticodeDireito,devepreservarsuaConstituiçãojurídicaaqualquercusto,pois–naeradoneoconstitucionalismo–osdireitosfundamentaise a divisão dos Poderes são elementos fundamentais para a construção daDemocracia.Dessaforma,ostribunaistêmpapelfundamentalcomohermeneutas, haja vista que a interpretação deve sempre estar com base notextoconstitucional,poiséaConstituiçãoquelimitaoabusodopo-deretrazconsigogarantiasnecessáriasparaumambientedemocrático.AopreservaraConstituiçãoDemocráticaserápossívelelaterforçadeDireito,epoderterpapeltambémativonasociedade.

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TRANSPORTE COMO DIREITO SOCIAL: DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA AO TRANSCONSTITUCIONALISMO

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Lauro Gurgel de Brito¹Jailson Alves Nogueira2

1 Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Direito Cons-titucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutor em Direito pela Univer-sidade de Brasília.2 Graduado em Direito e mestrando em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Email: jailsonalvesuern@hotmail. oom.

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Resumo: Noanode2015aConstituiçãode1988foialterada,atravésdaEmendaConstitucionalnº90,paraincorporarodireitoaotransportenocatálogo dos direitos sociais.O objetivo deste artigo é analisar se háelementosdeconstitucionalizaçãosimbólicaedetransconstitucionalis-monessaalteração.Aestratégiametodológicaconsisteempromoverumdiálogo com Marcelo Neves e confrontar essa disposição normativa com essas duas teorias desenvolvidas por ele. Os resultados encontrados re-velamapresençadeambas.Desortequeamudançanãodeveserdetododesprezadaapretextodepossuirumanódoadesimbolismo,poisintegraomarcoregulatóriodamobilidadeurbananoBrasil,que,porsuavez,resultadeentrelaçamento,racionalidadeeaprendizagemrecíprocaentrea ordem normativa internacional e o ordenamento jurídico nacional. Por-tanto,otransconstitucionalismotranscendeoefeitosimbólicodamen-cionada emenda constitucional, realçando-lhe a devida autenticidade.

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Palavras-chave: Transporte.Direito social.Constitucionalização sim-bólica.Transconstitucionalismo.

Abstract: In theyear2015, the1988Constitutionwasamended, throughConstitutionalAmendmentno.90,toincorporatetherighttotransportinthecatalogofsocialrights.Theobjectiveofthisarticleistoanalyzeifthere are elements of symbolic constitutionalisation and of transconsti-tutionalism in this change. The methodological strategy consists in pro-moting a dialogue with Marcelo Neves and confronting this normative disposition with these two theories developed by him. The results show thepresenceofboth.Sothatchangemustnotbeatalldespisedonthepretext of possessing a defect of symbolism, , since it integrates the re-gulatory frameworkofurbanmobility inBrazil,which in turn resultsfrom intertwining, rationality and reciprocal learning between the inter-national normative order and the national legal order. Therefore, trans-constitutionalism transcends the symbolic effect of the aforementioned constitutional amendment, enhancing its authenticity.

Keywords:Transportation.Socialright.Symbolicconstitutionalisation.Transconstitucionalismo.

INTRODUÇÃO

Em2015,atravésdaEmendaConstitucionalnº90,otransportefoi alçado à categoria de direito fundamental social, passando a integrar orolconstantedoart.6ºdaConstituiçãode1988.Comessamedida,fo-ram geradas muitas expectativas em relação à solução dos maiores pro-blemasdemobilidadeurbananasmédiasegrandescidadesbrasileiras. Ancorado em duas importantes teorias do constitucionalismoatual, este artigo tem o objetivo de analisar se, nessa decisão do poder constituintederivado,háelementosdeconstitucionalizaçãosimbólicaede transconstitucionalismo, promovendo um diálogo com Marcelo Ne-ves, arquiteto dessas teorias. Parte-se da hipótese segundo a qual, constatada a presença domeroefeitosimbólico,asegundateoriacontribuiriaparasuperarpossí-

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veisdéficitsdeafetividadeefortalecernarrativasemtornodepolíticaspúblicas nessa área. Noutros termos, a presença do transconstitucionalis-mosuplantariaoefeitosimbóliconegativodaEmendaConstitucionalnº90 e lhe conferiria a devida autenticidade. Pelateoriadaconstitucionalizaçãosimbólicaseexplicadequemodo determinados dispositivos da Constituição possuem um mero efei-tosimbólico,traduzidonumalacunaexistenteentreotextoearealidadeconstitucional,emtermosdeconcretizaçãojurídico-normativa. Já a proposta teórica do transconstitucionalismo trabalha comosdiálogospossíveisentreesferasjurídicasautônomasouquetenhamessapretensão.Elaredimensionaasquestõesconstitucionais,deformaaultrapassá-lasemrelaçãoàsfronteirasnacionaiseàsprópriasordensestatais,hajavistaainsuficiênciadaConstituição“doméstica”paratra-tar de assuntos como direitos humanos, controle e limitação do poder na sociedade mundial dos dias atuais. Eparareferendaressasbasesteóricas,sãousadosdadosempíri-cosrelativosaoperfildosdeslocamentosurbanosnoBrasileàsexter-nalidades negativas que decorrem, por exemplo, da opção pelo transpor-temotorizadoparticular.Tambémsãoutilizadasinformaçõesacercadeprogramas, ações e projetos na área de transporte e mobilidade urbana que são direcionados à melhoria das condições de deslocamento nas ci-dades. ComsuporteemreferenciaisbibliográficosdeMarceloNeveseemdocumentos,aabordagemseorganizaempartesqueseinter-relacio-nam.Primeiro,analisa-seocontextodaEmendaConstitucionalnº90,trazendoconceitoseterminologiassobrereforma,emendaerevisãodaConstituição e inserindo-a no quadro da mobilidade urbana no Brasil. Emseguida, reflete-se sobreo efeito simbólicoda inserçãododireitoaotransportecomodireitosociale,porfim,essemesmodireitoéanalisadoàluzdotransconstitucionalismo,naformadecolaboraçãoeaprendizagemrecíprocasentreordensjurídicasautônomas,transcenden-do o simbolismo da aludida emenda.

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O CONTEXTO DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 90/2015

Precedendoàanálisedoteorsimbólicodessaemendaedasuarelação com o transconstitucionalismo, são necessários aqui alguns es-clarecimentos quanto a pressupostos conceituais e a fatos empíricos que acircunscrevem.Noplanoteórico,parte-sedodebateentre“imutabili-dade” e “mudança” constitucional, conciliando-se a pretensão de dura-bilidadedoprogramanormativo(prazoindeterminadodevigência)eanecessidade de adaptação às circunstâncias de aplicação.Ainda nesseaspecto,sãoretomadosalgunsconceitosterminológicossobrereformaconstitucional. Em suma, indaga-se o que justifica a modificação daConstituiçãoecomojuridicamentesematerializaessadecisão. No campo da empiria, investiga-se o que teria motivado especi-ficamenteessadecisãopolíticadealterarformalmenteotextodaCons-tituição, avaliando-lhe inclusive os efeitos da reforma implementada, quando se perquire acerca das expectativas normativas que se formam em torno dela. Em seguida, apresenta-se umdiagnóstico do cenário damobi-lidade urbana na qual se insere o “novo” direito social ao transporte, tomando por base a normativa interna (política nacional de mobilidade urbana)edadosempíricos,jáconstatadosporórgãosespecializados.Aintenção,nessecaso,éproporumareflexãosobrearealcapacidadedareformaconstitucionaldemodificararealidadesocialaquesedireciona.

REFORMA CONSTITUCIONAL: CONCEITOS, JUSTIFICATI-VAS E EXPECTATIVAS NORMATIVAS EmboraasConstituiçõestenhampretensãodedurabilidade(vi-gênciaporprazoindeterminado),dificilmenteelasdeixamdesofreral-terações que as adaptem às circunstâncias e aos novos tempos: “[...] mo-dificaçõesdasconstituiçõeséumfenômenoinelutáveldavidajurídica”(MIRANDA,2005,p.389).Ouentãosediz:“[...]aimutabilidadecons-titucional,teseabsurda,colidecomavida,queémudança,movimento,renovação,progresso,rotatividade”(BONAVIDES,2003,p.196),poisdiantedeumaConstituiçãoimutávelasoluçãodascriseséentregueà“revolução”eao“golpedeEstado”(BONAVIDES,2003,p.197).

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2 Além desse processo “formal” que modifica o texto, existe a atualização “informal” da Constituição, que se denomina de mutação constitucional, consistente na alteração de sentido dos enunciados, conservando intacta a estrutura escrita (muda a interpretação, per-manece o mesmo o texto normativo). Cf. Mendes, Coelho e Branco (2010), Bonavides (2003) e Silva (2008).3 De acordo com o art. 6º, da Constituição de 1988, São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

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Admitida a “mutabilidade” constitucional, outro pressuposto te-órico importante diz respeito à terminologia dessa mudança: reforma, emendaourevisãoconstitucional?Adoutrinaapontaqueareformacons-titucionaléoprocesso“formal”demudançadasconstituiçõesrígidas,sendogênerodoqualaemendaearevisãoconstitucionaissãoespécies2. Emendaéa“modificaçãodecertospontos”daConstituição,ten-doprevisãonoart.59,I,daConstituiçãode1988.Éaviapermanentede reforma, o caminho normal, mediante complexo processo legislativo estampadonoart.60,caput, incisos e parágrafos: reserva de iniciativa, aprovação mediante quórum especial de três quintos, dupla votação em plenáriotantodaCâmaradosDeputadosquantodoSenado,limitaçõesdeordemcircunstancialedeconteúdo(cláusulaspétreas). Com sentido bem diferente, a revisão corresponde ao procedi-mento mais amplo de alteração do texto constitucional, prevista no art. 3ºdoAtodasDisposiçõesConstitucionaisTransitórias(ADCT)ejácon-sumada em1993. Foi umavia transitória e extraordinária de reformaconstitucional.No tempo atual, portanto, a emenda é o único sistemapossívelparaefetivarmudançaformalnaConstituiçãode1988(SILVA,2008;BONAVIDES,2003). E,assim,surgiuoprojetoqueculminounaEmendaConstitucio-nalnº90,de15desetembrode2015,alterandooart.6º,daConstituiçãode 1988, para inserir o transporte como direito social3(BRASIL.ECnº90, 2015). Nafasedeiniciativalegislativaforamapresentadasváriasjustifi-cativasparaessaEmenda.Emprimeirolugar,arguiu-sequeoart.6ºenu-merava aspectos relevantes da vida em sociedade, segundo a compreensão de que educação, saúde e trabalho, dentre outros, seriam elementos cen-traisdeumacoletividadejusta,desenvolvida,capazdepromoverobemcomum,conformeosobjetivosdarepúblicabrasileira.Detalforma,ficouimplícitoqueo transporte tambémpassariaacontribuirnessesentido.

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4 Para uma compreensão das políticas públicas como um ciclo político de cinco estágios (montagem da agenda, formulação da política, tomada de decisão, implementação e avalia-ção da política), cf. HOWLETT, Michael; RAMESH, M.; PERL, Anthony (2013).

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Em segundo lugar, alegou-se que o transporte representa um vetor de desenvolvimento urbano, tanto no aspecto da produtividade quanto da qualidade de vida da população, permitindo a mobilidade das pessoas, a oferta e o acesso aos bens e serviços. E, em terceiro lugar, destacou-se a relevância social do transporte coletivo, sobremaneira para as pessoas que não dispõem de meio próprios de locomoção. Em suma, apontou-se que “a evidente importância do transporte para o dinamismo da socieda-de qualifica sua aposição na relação dos direitos sociais expressos no art. 6º da Constituição” (BRASIL. PEC nº 90, 2011). A principal expectativa da inserção constitucional do transporte como direito social consiste no desencadeamento de políticas públicas de mobilidade urbana que possam superar os graves problemas de locomo-ção nas médias e grandes cidades brasileiras4. Lembrando que os direitos sociais se caracterizam, em parte, por serem prerrogativas demandadas ao Estado, cobrando-lhe ações ou pres-tação positivas para satisfação de necessidades do indivíduo, que “[...] se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia obter de particulares” (ALEXY, 2008, p. 499). Mas não seria o transporte um direito social implicitamente ga-rantido desde a promulgação da Constituição de 1988? É até possível se afirmar que sim. Antes mesmo dessa reforma de 2015, já havia preceitos constitucionais originários induzindo o intérprete/concretizador a en-xergar o transporte entre os direitos sociais, parecendo até dispensável essa emenda. Sarlet (2006) defende que o direito social à moradia, do mesmo modo inserido no art. 6º mediante reforma constitucional (no caso, a Emenda nº 26, de 2000), por guardar conexão direta com as necessidades vitais da pessoa humana, já era consagrado como direito fundamental implícito, semelhante ao que reconhecera o Conselho Constitucional da França: “[...] o reconhecimento de que a possibilidade de dispor de um alojamento docente constitui um objetivo de valor constitucional, funda-do na dignidade da pessoa humana [...]” (SARLET, 2006, p. 347).

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Nessaperspectiva,parecerazoávelpensarqueaEmendaCons-titucionalnº90/2015apenasacrescentouumelemento“novo”aoamplomarconormativodotransporteedamobilidadeurbana.Porque,alémdela, vários preceitos constitucionais originários norteiam a política na-cional nessa seara. Tem-se,porexemplo,oart.22,XX,queafirmacompetiràUniãoinstituirdiretrizesparaodesenvolvimentourbano,inclusivetransportes.Doart.30,V,queatribuiaosmunicípioscompetênciaparaorganizareprestar, diretamente ou mediante o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, entre eles, o de transporte coletivo. Tambémdoart.182,queestabeleceonortedapolíticadedesenvolvi-mento urbano: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidadeegarantirobem-estardeseushabitantes.Demodoque,antesdareforma, já havia um subsistema constitucional norteador das políticas de transporte público urbano. Portanto,poucoimportaseotransporteépositivadodesdeotex-tooriginárioousomenteagoraconformerestaexplicitadonoart.6º,comoadventodaEmendaConstitucionalnº90/2015.Tambémémenosre-levantesaberseelesecaracterizaounãocomoacréscimodesnecessárioaosinstitutosjáexistentes.Omaisimportantenomomentoatualéreco-nhecer que o transporte se constitui em direito social e avaliá-lo segundo oprismadaconcretização. ComoafirmamDimouliseMartins(2012,p.51),osdireitosso-ciais (de status positivus ou a prestações) visam à “[...] melhoria de vida de vastas categorias da população, mediante políticas públicas e medidas concretas de política social”. Essa é amaior expectativadecorrentedapositivação constitu-cional do direito ao transporte. Mas, em qual cenário se aplicarão as medidas de efetivação desse direito? Como ele pode impactar na vida doscitadinos?Essesaspectosserãoabordadosaseguir.

O TRANSPORTE NO QUADRO DA MOBILIDADE URBANA BRASILEIRA

DeacordocomaLeinº12.587,de3dejaneirode2012,queins-tituiasdiretrizesdaPolíticaNacionaldeMobilidadeUrbana(BRASIL,

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5 Para uma descrição do transporte em helicópteros, suas vantagens e sistema de opera-ção, cf. Gomes, Fonseca e Queiroz (2013).).

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2012), considera-se transporte urbano o conjunto dos modos e serviços detransportepúblicoeprivadoutilizadosparaodeslocamentodepesso-as e cargas nas cidades. Com base nessa lei, os modais de transporte no meio urbano são classificadossegundocritériosvariados.Deformaque,quantoaomodo,elespodemser:a)motorizados,quandoseutilizamdeveículosautomo-tores;oub)nãomotorizados,quandoseutilizamdoesforçohumanoouda tração animal. Quanto ao objeto, eles podem ser: a) de passageiros; ou b) de cargas.Quantoànaturezadoserviço,elespodemser:a)público;oub)privado. O transporte público pode ser: a) coletivo, quando se transpor-tamospassageirosmediantepagamentoindividualizado,comitineráriosepreçosfixadospelopoderpúblico;oub)individual,queéremunerado,abertoaopúblico,realizadoporintermédiodeveículosdealuguel,emviagensindividualizadas. Tendoporbaseessaclassificação,enfatiza-seaquiaquestãodotransportemotorizado,depassageiros,denaturezapúblicaedotipoco-letivo.Destarte,considerandoapenasoespaçourbano,osdeslocamentosdaspessoasgeralmentepodemserrealizadosapé(caminhada,patins,skate), mediante tração animal (montaria, carroça, charrete), sobre duas rodas (bicicleta,motocicleta),emautomóvelparticular (comuso indi-vidualoucompartilhado),emônibus(pelosistemacomumoupeloBus Rapid Transit–BRT),emtransportesobretrilhos(trememetrô,inclu-sivenosistemadeVeículoLevesobreTrilhos–VLT)e,emmenorpro-porção,porhelicópteros5. Mas,emquaiscondiçõesserealizamessesdeslocamentos?DeacordocomestudosdaSecretariaNacionaldeTransporteedaMobilida-deUrbana(SeMob),vinculadaaoMinistériodasCidades,umapeculia-ridade nas maiores cidades brasileiras tem sido a crescente participação dasviagensmotorizadas,tantoportransporteindividualcomoportrans-portecoletivo,namesmaproporçãoemquesereduzemasviagensapéedebicicleta(BRASIL.MC,2015b). Essefenômenopodeserexplicado,emparte,pelomodelodeor-

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ganizaçãoeexpansãourbanaadotadonoBrasil,emqueaspessoas,emgeralporrazõeseconômicas,são“forçadas”aresidiremnasáreasondeaterra e a moradia são mais baratas, embora sejam distantes dos respecti-voslocaisdetrabalhoedosequipamentos(hospitaiseclínicasmédicas,escolaseuniversidades,espaçosdeculturaelazer),deformaquetêmde se deslocar diariamente por longos, exaustivos e onerosos percursos, geralmente congestionados por veículos automotores geradores de po-luição. Àsvezesseoptapelotransportemotorizadoemfunçãodasgran-des distâncias a serem percorridas, da indisponibilidade de ciclovias, da precariedade das calçadas, de fatores climáticos, como as elevadas tem-peraturas em alguns horários, aliados a valores culturais (glamour do automóvelindividual,porexemplo). Com efeito, o modal predominante nas cidades com mais de um milhãodehabitanteséotransportecoletivo,com39,4%,seguidopeloindividual,com33,4%(BRASIL.MC,2015b).Essarealidadeserefletena maior presença de frota de veículos particulares e de transporte cole-tivo,oquefazcresceremosproblemasurbanosassociadosàcirculação,notadamenteoscustoseconômicosdas suasprincipaisexternalidades,em especial a poluição e os acidentes, gerando um desperdício de mais deR$ 10 bilhões por ano ao país (BRASIL, 2015b), alémdos danosemocionais causados pelo estresse de um trânsito lento6e pela falta de espaço para estacionamento7. Esseperfilsecontradiz,emparte,aodispostonalegislaçãoperti-nente,umavezqueumadasdiretrizesdapolíticanacionaldemobilidadeurbanaconsisteempriorizarosmodosdetransportesnãomotorizadossobreosmotorizadosedosserviçosdetransportepúblicocoletivosobreotransporteindividualmotorizado8. Em face dessa situação e ao aumento da frota de veículos automo-

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6 Há um dado relativo à cidade de São Paulo: em 2012, foi constatado que a velocidade média dos automóveis em alguns horários correspondia a 7,6km/h, igual à caminhada a pé (MARICATO, 2013).7 Para reduzir esse problema, as cidades brasileiras poderiam seguir a experiência rea-lizada em New York (Estados Unidos). Lá, em face pouca disponibilidade de espaço vazio em determinadas áreas, foram instaladas “[...] plataformas hidráulicas para fazer estacio-namento em andares, ampliando as vagas sem ampliar a área construída” (DUARTE, SÁN-CHEZ e LIBARDI, 2012, p. 50).8 Lei nº 13.587/2012, art. 6º, II.

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9 O sistema de rodízio é criticado, pois acaba estimulando as pessoas a comprarem um veículo adicional, “[...] aumentando ainda mais os níveis de poluição” (DUARTE, SÁNCHEZ e LIBARDI, 2016, p. 52).10 Em Londres, desde 2003, existe o programa de pedágio urbano, mediante o qual se cobra uma quantia diária pelo estacionamento numa área delimitada (DUARTE, SÁNCHEZ e LIBARDI, 2016, p. 52).

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toresedarealidadecaóticadotrânsitoporeleproduzido,diversasestraté-giaspodemseradotadasparaminimizaressasexternalidadesnegativas.Umadelas seria instituirpolíticade incentivoaousodecombustíveisalternativos (menos poluentes), a exemplo do etanol (biocombustível líquido derivado de biomassa renovável) e do gás natural. Outra seria estimular o uso compartilhado do automóvel (sistema de carona).Àsvezes,tem-sepreferidoarestriçãoàutilizaçãodocarroparticular,comoosistemaderodízio,adotadoemSãoPaulo,fixandoquaisosveículosautorizadosacircularememdeterminadoslocaisehorários,deacordocom as placas9. Outrahipóteseconsisteemcobrarpeloestacionamentoemdeter-minasáreas,incentivandoousodeoutrosmodaisdetransporte.EmFor-talezaexisteoSistemadeEstacionamentoRotativodenominadoZonaAzul(FORTALEZA.Leinº10.408,2015).Esseinstrumentoteminclu-siveprevisãonoart.24,X,doCódigodeTrânsitoBrasileiro(BRASIL.Leinº9.503,1997)10. Portanto,essessãodadosrelevanteseatédecisivosnomomentoem que se propõe conceber o transporte como um direito social. A priori, trata-se de uma iniciativa oportuna, adequada e louvável. Todavia, im-põe-se uma análise crítica sobre a diferença entre “intenção” e “realida-de”,numcontextodeconstitucionalizaçãosimbólica.Afinal,aEmendaConstitucionalnº90,aointroduzirotransportecomodireitosocial,tinhaapenasumefeitosimbólico,tentandodemonstraraopovoqueoEstadobrasileiro está atento à problemática da mobilidade urbana? Ou seria ela, porsisó,capazde(enecessáriapara)desencadearaspolíticaspúblicasimprescindíveis à melhoria do panorama da mobilidade urbana no país?

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DIREITO AO TRANSPORTE: DO SIMBOLISMO AO TRANS-CONSTITUCIONALISMO

Antesmesmodaalteraçãoconstitucionalacimaaludida,jáexis-tialegislaçãosobretransporteemobilidade.ALeinº10.257,de10dejulhode2001,denominadadeEstatutodaCidade,regulamentaosarts.182e183daConstituiçãode1988,estabelecendoasdiretrizesgeraisdapolíticaurbana(BRASIL,2001).Entreessasdiretrizes,constaainclusãodotransportenoconceitodecidadessustentáveis(art.2º,I),nosentidode que ele deve ser adequado aos interesses e necessidades da população eàscaracterísticaslocais(art.2º,V). OutrodocumentoimportanteéaLeinº12.587,de3dejaneirode2012,instituidoradaPolíticaNacionaldeMobilidadeUrbana,quetemapretensão de contribuir para o acesso universal à cidade, com princípios, objetivosediretrizesdapolíticadedesenvolvimentourbano,pormeiodoplanejamentoedagestãodemocrática(BRASIL,2012). Por outro lado, considerado o quadro da mobilidade urbana des-crito acima, parece relevante avaliar o hiato existente entre a “intenção” do preceito normativo (espírito da lei) e a sua “realidade” em termos de concretização.Dessaforma,justifica-seanalisarseadecisãodepositivaro direito ao transporte em nível constitucional tinha realmente preten-são de conceder mais força normativa ao tratamento legal ordinário ou simplesmentedesinalizaraopovoqueoEstadoestavaatendoàproble-máticadotransporteurbano.Enfim,éoportunoapreciarseadecisãodeemendaraConstituiçãoparaintroduzirodireitosocialaotransporteeotextoresultantedessaopçãotêmmatizessimbólicas. Constatado o efeito simbólico,mostra-se igualmente relevanteavaliarcomosuperá-lo,afimdeevitara“deterioração”jurídicadare-formaconstitucionalde1988.Nessecaso,éconvenienteaproximaromarco normativo brasileiro aos parâmetros estabelecidos pela Organi-zaçãodasNaçõesUnidas(ONU),afimdeidentificarseháconversação(diálogo) entre eles, bem assim entre as instâncias nacionais incumbidas damatériaeoProgramadasNaçõesUnidasparaosAssentamentosHu-manos(ONU-HABITAT).

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11 Há uma distinção entre legislação simbólica e constitucionalização simbólica. Aquela “[...] se restringe a relações jurídicas de domínios específicos, não sendo envolvido o sistema jurídico como um todo; já na constitucionalização simbólica o sistema jurídico “[...] é atingido no seu núcleo, comprometendo-se toda a estrutura operacional” (NEVES, 1994, p. 90).12 Diz-se que “[...] muitas normas legais pretendem completar, complementar, densifi-car, concretizar, o conteúdo fragmentário, vago, aberto, abstrato ou incompleto, dos preceitos constitucionais garantidores dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 2003, p. 1.263-1.264).13 Sobre a constitucionalização simbólica na experiência brasileira, cf. Neves (1994, p. 153-162).

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A EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 90/2015: SIMBOLISMO DA DECISÃO QuandootextodeumaConstituiçãonãoésuficientementecon-cretizadonormativo-juridicamentedeformaampla“[...]porumaausên-ciageneralizadadeorientaçãodasexpectativasnormativasconformeasdeterminações dos dispositivos da Constituição”, manifesta-se a cons-titucionalizaçãosimbólica11(NEVES,1994,p.83-84).Comessefenô-meno,“[...]ocorreobloqueiopermanenteeestruturaldaconcretizaçãodoscritérios/programasjurídico-constitucionaispelainjunçãodeoutroscódigossistêmicos[...]”,explicaNeves(1994,p.85). Nocaso,ocódigolícito/ilícito(dodireito)seriapreteridoemre-lação a outros códigos, como ter/não ter (da economia) ou poder/nãopoder(doorçamentopúblico)ea“[...]práxisdosórgãosestataiséorien-tada não apenas no sentido de ‘socavar’ a Constituição (evasão ou desvio definalidade),mastambémnosentidodeviolá-lacontínuaecasuistica-mente”(NEVES,1994,p.86). Emconsequênciadisso,ocorreohiatoentreaintençãoearea-lidade, pois “[...] ao texto constitucional includente contrapõe-se uma realidade constitucional excludente [...]” ou mesmo “[...] à atividade constituinte e à emissão do texto constitucional não se segue uma nor-matividade jurídicageneralizada,umaabrangenteconcretização12 [...]” (NEVES,1994,p.86-87). Emborasepartadessateoriadaconstitucionalizaçãosimbólica,aanáliseaquiselimitaaavaliarocarátersimbólicodaEmendaConstitu-cionalnº90/2015(adecisãopolíticaeotextonormativo)enãoacercadaConstituição de 1988 no seu todo13.EssecorteepistemológiconãosóéviávelcomotembasenaprópriateoriadeNeves,paraquem“[é]sempre

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possível a existência de disposições constitucionais com efeito simples-mentesimbólico,semquedaídecorraocomprometimentodosistemaconstitucionalemsuaslinhasmestras”(NEVES,1994,p.91). Noutras palavras, a questão envolve saber se existem indícios de constitucionalizaçãosimbólicanadecisãodealteraraConstituiçãode1988paralhe“inserir”odireitoaotransportenoart.6º,categorizando-ocomo direito fundamental social. Na linha do que propugna Neves acer-cadotema,parecembastanteevidentesessesindícios.Senãovejamos. Defato,aEmendaConstitucionalnº90/2015simplesmentedis-pôsque,daliemdiante,otransportepassariaaserumdireitosocial,semestabelecermecanismosquelhegarantissemamerecidaeficáciaeade-sejada efetividade14.Poder-se-iaalegarqueesseéumpapeldolegisladorinfraconstitucional.E,defato,osdireitossociaisdevemserconcretiza-dos(realizados)pelaviadaspolíticaspúblicas,queemgeralsãoveicu-ladasporlei.Mas,paraqueseviabilizassemaspolíticasdetransportepúblico, por exemplo, precisaria emendar a Constituição, consoante se fez?Poroutrolado,emendá-laéobastanteparagarantiressedireito?Asduas respostas são negativas. Semoutros instrumentosnormativos,aexemplodavinculaçãodereceitase/oudacriaçãodefundosespecíficosparacustearosprogra-masdemobilidadeurbana,époucoprovávelquehajamudançaestrutu-ral no setor pelo simples fato de se ter inserido na Constituição, de modo expresso, o direito social ao transporte. Aquestãomais relevante é identificardequemodo sevaiga-ranti-lo,emespecialàquelesquemaisseutilizamdelediariamente.Afi-nal, preceito da Constituição que não implique em mudança estrutural se constitui num grande contrassenso, senão numa inutilidade. No caso, o simbolismo se manifesta na decisão política de alterar aConstituiçãoenotextoresultantedessaalteração,ambosinsuficientes,

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14 Para Neves (1994, p. 42-47), a “eficácia” tem dois sentidos. O técnico-jurídico, re-ferindo-se à possibilidade jurídica de aplicação da norma (aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade). Nesse sentido, são eficazes as normas que preenchem as condições intra--sistêmicas para produzir os seus efeitos jurídicos específicos. O outro é o sentido sociológico (empírico, real), quando a eficácia diz respeito à conformidade das condutas à norma. Nesse aspecto, são eficazes as normas realmente observadas, aplicadas, executadas ou usadas. Já a “efetividade” se refere ao cumprimento dos fins que decorrem do texto normativo. Será efetivo o preceito normativo que atingir o fim que o motivou a criação. Cf. ainda Silva (2002).

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15 A CIDE Combustíveis é prevista nos art. 177, §4º, da Constituição de 1988 e foi instituída pela Lei nº 10.336, de 19 de dezembro de 2001.

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porsisós,àconcretizaçãododireitosocialaotransporte,namedidaemque desprovidos de instrumentos normativos realmente impulsionadores dos programas sociais na área, embora o constituinte reformador dispu-sesse da prerrogativa para isso. Duranteatramitaçãodoprojetodeemenda,atéhouvepropostano sentido de se vincular parcialmente as receitas arrecadadas com a ContribuiçãodeIntervençãonoDomínioEconômicoincidentesobreacomercializaçãode combustíveis (CIDECombustíveis) para subsidiaro transporte público15.MasessapropostafoirechaçadapeloRelator,aoargumento de que ela impediria o consenso no âmbito do Congresso Na-cional,oqueinviabilizariaaaprovaçãodoprojetodeemendaàConsti-tuição(BRASIL.PECnº90,2011). Mas,daformacomosefez,adecisãodeinvestirounãorecur-sos públicos nos sistemas de mobilidade urbana continuará a predominar segundocritériosnão-jurídicos.Noutrostermos,aquiloquedeveriaserregidopelocódigolícito/ilícitoacabaficandoàmercê,porexemplo,decritériosfinanceiros(dispor/nãodispordereceitas). Emverdade,pareceterhavidoumaintençãodecarátermaispo-lítico-ideológicodoquepropriamentedeconteúdojurídico-normativo,no sentido de “vender” a pretensa solução para o grande problema social dotransportepúblico.Umavezqueopreceitoconstitucionalexiste(art.6º,incluindoodireitosocialaotransporte),ninguémpoderáinfirmá-lo(normatizaçãoálibi). Mas, faltam-lhesospressupostos sócio-político-econômicosdeconcretização,medianteainstituiçãodasfontesdecusteioparaospro-gramas estruturais (adequação das calçadas, ciclovias, bicicletários, fai-xas exclusivas, transportes sobre trilhos, integração dos sistemas, dentre outros)edecampanhasdeconscientizaçãoquantoànecessidadedeusarosmodaisdetransportemaissustentáveisdopontodevistaeconômico,social e ambiental. Além disso, até se pode enxergar certo potencial de bloqueio nessa estrutura normativa, porque dela em diante provavelmente não se estabelecerão tais mecanismos de concretização ao argumento de que a

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temática já estádevidamenteconstitucionalizada.Easdecisõesconti-nuarãosendotomadasporcritériosoutros(vontadepolítica,disponibili-dade de recursos públicos para investimento), em detrimento do binário lícito/ilícito.Énissoqueresidem,àluzdateoriadeNeves,oselementosdeconstitucionalizaçãosimbólicadaEmendaConstitucionalnº90/2015.

O DIREITO AO TRANSPORTE E TRANSCONSTITUCIONALISMO: SUPERANDO O EFEITO SIMBÓLICO NoitemanteriorforamidentificadosindíciosdeefeitosimbóliconaEmendaConstitucionalnº90/2015.Oquenãosignificaexcluí-ladeoutras perspectivas analíticas e desprezá-la completamente. Pelo con-trário,éprecisoextrairamáximaeficiênciapossível.Seriaocaso,porexemplo, de continuar dialogando com Marcelo Neves e explicá-la pelo transconstitucionalismo, em relação ao entrelaçamento, como pontes de transição,comaprendizagensrecíprocasentreaordemjurídico-normati-vabrasileiraeaasdiretrizesdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas(ONU)sobre a temática do direito ao transporte. Com efeito, a ideia de entrelaçamento, inerente ao transconstitu-cionalismo, está vinculada ao pressuposto de que a sociedade moderna, complexaeconflituosa,“[...]estariacondenadaàprópriaautodestruição[...]”,senãodesenvolvessemecanismosdeaprendizadoeinfluênciare-cíprocaentrediversasesferassociais(NEVES,2009,p.34-35). Umdessesmecanismos seria o acoplamento estrutural, desen-volvidoporLuhmann, e que “[...] serviria à promoção efiltragemdeinfluênciaseinstigaçõesrecíprocasentresistemasautônomosdiversos,demaneiraduradoura,estáveleconcentrada[...]”,comoespéciede“[...]filtrosqueexcluemcertasinfluênciasefacilitamoutras”(NEVES,2009,p.35).Nessesentido,apropriedadeeocontratoseriam,porexemplo,acoplamentosestruturaisentreossistemaseconômicoejurídico.ParaoDireito,“[...]ocontratoeapropriedadeservemcomocritérioorientadordadefiniçãoentrelícitoeilícito;nocampodaeconomia,sãoinstrumen-tos,critérioseprogramasparaorientaçãodolucroconformeadiferençabináriaentreter/nãoter”(NEVES,2009,p.36). Semnegara importânciada tese luhmannianadoacoplamento

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estruturalentresistemasautônomos,Neves(2009,p.37)alertaparaofato de que tais interpenetrações sistêmicas possibilitam apenas uma contribuiçãorecíprocadesordenada(nãopré-ordenada),deinfluências.Emfunçãodisso,elepropõequesetrabalhecoma“[...]racionalidadetransversalentreesferasautônomasdecomunicaçãonasociedademun-dial”(NEVES,2009,p.38).Nessaracionalidadeordenada,a“[...]razãonãoéoutorgada[...],mas,aocontrário,estáenvolvidacomentrelaça-mentos que lhe servem como ‘pontes de transição’ entre heterogêneos” (NEVES,2009,p.39). Portanto,ooutromecanismodeaprendizadoeinfluênciarecípro-cos entre as diversas esferas sociais da sociedade moderna corresponde aos “entrelaçamentos” que promovem a racionalidade transversal. Com eles, é possível o intercâmbio construtivode experiências (aprendiza-gem),permitindoaspontesdetransiçãoentreasesferasautônomasdasociedade mundial. Apresentadooconceitodeentrelaçamento,agoraéprecisoapro-ximá-lo à decisão brasileira de reformar a Constituição de 1988 (para in-troduzirodireitosocialaotransporte)eaotextonormativoconstantedaEmendaConstitucionalnº90/2015.Paraessaaproximação,recorre-seàtese do transcontitucionalismo, cujo “[...] problema consiste em delinear as formas de relação entre ordens jurídicas diversas” (NEVES, 2009,115),umavezque:

[...] dentro de um mesmo sistema funcional da sociedade mundial moderna, o direito, proliferam ordens jurídicas di-ferenciadas[...],cadaumadasquaiscomseusprópriosele-mentos ou operações (atos jurídicos), estruturas (normas jurídicas),processos(procedimentosjurídicos)ereflexãodaidentidade(dogmáticajurídica).(NEVES,2009,p.115-116).

Emboraessasordenssejamplurais,diferenciadaseautônomas,elas não se isolam reciprocamente. Pelo contrário, elas se comunicam ente si, em relações de input/output e interpenetrações mediante os entre-laçamentos, que têm relativa independência em relação a tratados e acor-dosformais(NEVES,2009).Essesentrelaçamentosentreordensjurídi-cas ocorrem frequentemente a partir da conversação entre os tribunais e cortesdejustiça,mastambémpodesemanifestarnoâmbitolegislativoe

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administrativo:

[...] nem todo entrelaçamento de ordens jurídicas ocorre en-tretribunais.Muitasvezes,háaincorporaçãodenormasdeoutra ordem, sem intermediação de diálogos entre tribunais [...].Além disso, em outros níveis do sistema jurídico háaprendizados e intercâmbios permanentes, como ocorre narelação informal entre legislativo, governos e administrações dediversospaíses(NEVES,2009,p.118).

Eopapeldotransconstitucionalismo,nalinhadoquepropugnaNeves(2009),éauxiliarnasoluçãocompartilhadadeproblemasconsti-tucionais, em substituição à fragmentação e à tomada de decisão isolada deumEstadooudeoutroorganismo.Assim,

[...] o transconstitucionalismo implica o reconhecimento de que as diversas ordens entrelaçadas na solução de um proble-ma-caso constitucional – a saber, de direitos fundamentaisouhumanosedeorganizaçãolegítimadopoder–,quelhesseja concorrentemente relevante, devem buscar formas trans-versais de articulação para a solução do problema, cada uma delasobservandoaoutra...(NEVES,2009,p.297).

E a grande vantagem, nesse caso, é que, cada ordem jurídica,

consciente dos limites da própria visão, traduzidos no “ponto cego”,“[...]levaasérioaalteridade,aobservaçãodooutro”(NEVES,2009,p.297). Então,oqueinteressaaqui,deimediato,éavaliaraperspectivatransconstitucionaldarelaçãoestabelecidaentreoDireitoInternacionalPúblico e o direito estatal, com vistas a solucionar problemas constitu-cionais. Noutras palavras, o cerne da questão consiste em ponderar se no enfrentamento do problema relativo ao transporte público urbano no Brasiltemhavido“conversação”entreórgãosbrasileiroseinstânciasdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas(ONU).Enfim,dequeformaaEmendaConstitucionalnº90/2015seinserenessaconversa? Levandoemcontaosistemajurídico,odiálogoentreessasduasesferasautônomasdasociedademundialparecebastanteevidente.No

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16 Destaque-se: instituído antes da Emenda Constitucional nº 90/2015..................................

Brasil,aEmendaConstitucionalnº90seconstituinumdoselementosdomarconormativosobreamatéria,aoclassificarotransportecomoumdos direitos fundamentais sociais, com todas as implicações decorrentes daopção,especialmenteemtermosdeinstitucionalizaçãodeórgãosad-ministrativos que desenvolvam políticas públicas nessa área. Paraalémdafunçãosimbólicadessareformaconstitucional,con-soantefoipontuadonoitemanterior,ofatoéqueelajánasceualinhadaaórgãosespecializadosqueseencarregamdeviabilizarosprogramasdemobilidadeurbana.ÉocasodaSecretariaNacionaldeTransporteedaMobilidadeUrbana(SeMob),quetemamissãoinstitucionaldeformulare implementar a política de mobilidade urbana, inclusive “[...] priori-zandoosmodosdetransportecoletivoeosnão-motorizados,deformasegura,socialmenteinclusivaesustentável”(BRASIL.MC,2015b). Atualmente aSeMobdesenvolve, entreoutros, oProgramadeInfraestruturadeTransporteedaMobilidadeUrbana1(Pró-Transporte),destinado a “[...] propiciar o aumento da mobilidade urbana, da acessibi-lidade,dostransportescoletivosurbanosedaeficiênciadosprestadoresdeserviços”,financiandoaçõesde“implantação,ampliação,moderniza-çãoe/ouadequaçãodainfraestruturadossistemasdetransportepúblicocoletivo urbano [...]”, o que inclui “[...] obras civis, equipamentos, in-vestimentosemtecnologia,sinalizaçãoe/ouaquisiçãodeveículos”(MI-NISTÉRIODASCIDADES,2012). ComoPró-Transporte, osmunicípiospodem,por exemplo: a)criarosistemadetransportesobretrilhoseatéadquirirosprópriosve-ículos;b)realizarobrasciviseequipamentosdeviassegregadas,viasexclusivas, faixas exclusivas e corredores dos sistemas de veículos sobre trilhosepneus,inclusiveasinalização;c)disponibilizarbicicletáriosegaragens junto aos locais de integração dos modais e pontos de conexão de linhas de transporte público coletivo urbano; e d) construir abrigos destinados aos passageiros nos pontos de parada de transporte público coletivourbano.(MINISTÉRIODASCIDADES,2012). Desse arcabouço normativo, extraem-se diretrizes centrais no sentido de garantir uma mobilidade urbana sustentável do ponto de vista econômico, social e ambiental, porque é mais eficiente (menos tempo

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perdidocomdeslocamentos),maissegura(reduzindoacidentes)econ-fortável(diminuindooestresse).Alémdisso,ésocialmentemaisinclu-siva,aoampliarasredesdeintegraçãoentreosbairroseaoreduziroscustos com deslocamentos diários, e menos poluente, na medida em que desestimula o uso do veículo automotor individual. Deigualmodo,naesferainternacionalencontra-seaONUcomanormatizaçãoespecíficae instânciaespecializadasobreamatériadetransportepúblicourbano.Emtermosnormativos,naRio+2017definiu--se o conceito de transporte sustentável, ou seja, aquele de baixo carbo-no.Umanecessidadeinadiáveldiantedoscongestionamentos,doarpo-luído, dos acidentes em rodovias e da mudança climática relacionada ao transporte,quepodemcustaraumpaísde5%a10%deseuPIBanual,segundoinformaçõesdoescritóriodaONUnoBrasil(ONUBRASIL,2012).Ainda,deacordocomaentidade,

[o] setor de transporte tem sido a fonte de gases de efeito estufaquemaiscresce,umresultadodedécadasdeplaneja-mento urbano que se concentrou na melhoria da mobilidade para automóveis emdetrimento dos usuários de transportepúblico, ciclistas e pedestres. Esta iniciativa, acompanha-dadeoutros16compromissos assumidosnoRio,marcaamaiormudança para o transporte sustentável (ONUBRA-SIL,2012).

EaAgendadeDesenvolvimentoSustentáveldasNaçõesUnidastrouxe ao mundo um plano de ação dirigido às pessoas, ao planeta e à prosperidade, buscando fortalecer apazuniversal commais liberdade(ONU,2015).Odocumentoéestruturadoem17objetivosglobaiseem169metasaseremcumpridosatéoanode2030.Oobjetivo11édedi-cado ao ambiente urbano, visando “tornar as cidades e os assentamentos humanosinclusivos,seguros,resilientesesustentáveis”(ONU,2015)e,entreasmetasaseremalcançadasatéoanode2030,podemserdestaca-das, para efeito da presente análise, as que se referem à necessidade de:

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17 Denominação dada à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sus-tentável, realizada de 13 a 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. A expressão “Rio+20” é uma alusão ao aniversário dos vinte anos de realização da Conferência das Na-ções Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, então denominada de Rio-92.

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18 O WRI (World Resources Institute) foi estabelecido em 2014, tem sede em Washington, Estados Unidos. É uma instituição internacional de pesquisa e atua na área de planejamento urbano e mobilidade. Suas ações visam, entre outras coisas, financiar pesquisas que melho-rem o ambiente urbano. O instituto tem projetos em vários países e, entre eles, o Brasil, como é o caso do alinhamento estratégico para projeto do Bus Rapid Transit (BRT) em Brasília (WRI, s/d).

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[...] proporcionar o acesso a sistemas de transporte seguros, acessíveis, sustentáveis e a preço acessível para todos, me-lhorando a segurança rodoviária por meio da expansão dos transportes públicos, com especial atenção para as necessi-dades das pessoas em situação de vulnerabilidade, mulheres, crianças,pessoascomdeficiênciaeidosos(ONU,2015).

Em termos de estrutura administrativa, existe o Programa dasNaçõesUnidasparaosAssentamentosHumanos(ONU-HABITAT),or-ganizaçãoresponsávelpelointercâmbioglobaldeinformaçãosobremo-radia e desenvolvimento sustentável de assentamentos humanos, e que colaboracomospaísesnoenfrentamentodedesafiosurbanos,incluídootransportepúblico.AONU-HABITATpromovecampanhasedesenvol-ve ações na busca por cidades sustentáveis. Cite-se, a título ilustrativo, aparceriafirmadacomoWorld Resources Institute, com o objetivo de financiar projetos de cidades sustentáveis, pormeio de ações que ga-rantam o acesso universal ao transporte seguro, limpo e acessível, com iniciativas que se concentram nas necessidades dos grupos mais vulnerá-veis e em encontrar maneiras de incorporar o transporte nos mais amplos planejamentosdousodosolo(WRIBRASIL,2012)18. Portanto,noquedizrespeitoaotemadotransportepúblicour-bano,háumaclarainterlocuçãoentreomodelobrasileiroeodaONU,seja no âmbito do marco normativo (prevendo acessibilidade, segurança, conforto, proteção ao meio ambiente), seja na forma de estruturação de órgãosespecializados:SeMobeMinistériodasCidadesnoBrasilePro-gramadasNaçõesUnidosparaAssentamentosHumanos(ONU-Habitat)na esfera internacional. Diantedessarealidade,épossívelseafirmaraexistênciadeen-trelaçamento,conversaçãoediálogo,comaprendizagensrecíprocasen-treasordensjurídicasbrasileiraeinternacional.IssoficamaisevidentepelofatodequenaCúpuladasNaçõesUnidasqueaprovouodocumen-

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to, havia representação brasileira, marcando a posição do país:

Emseusdoisanosdefuncionamento,oGrupodeTrabalhoInterministerial(GTI)envolveuamplamenteoExecutivofe-deralerecebeudecisivascontribuiçõesdosEstadoseMuni-cípios, da sociedade civil, de movimentos sociais, do setor privadoedaacademia.EssaativaparticipaçãodasociedadesingularizouaatuaçãoeacontribuiçãobrasileiranosdebatesnasNaçõesUnidassobredesenvolvimentosustentável(MI-NISTÉRIODASRELAÇÕESEXTERIORES,2016).

Participaram do evento, representando o Brasil, pessoas que de-sempenhavamtarefasfundamentaisnoGovernoàépoca,aexemplodaministradoDesenvolvimentoSocialedoCombateàFome,aSecretáriadePolíticaparaasMulheres,aMinistradoMeioAmbiente,osecretárionacionalderelaçõespolítico-sociaisdaSecretaria-GeraldaPresidênciadaRepública, alémdeprefeitosdealgunsmunicípios.Tambémhaviarepresentantesdemovimentossociaisligadosàtemática,comoACidadePrecisa de Você19,oMovimentoOcupeEstelita20 e o Programa Cidades Sustentáveis21, possibilitando “[...] o intercâmbio internacional de expe-riências e boas práticas da participação social para a implementação da NovaAgendadeDesenvolvimento,apartirde2016”(ONUBRASIL,2015). No que se refere ao tema aqui trabalhado, o Brasil defendeu a necessidade de formulação e implementação “[...] de políticas de mo-bilidade urbana sustentável, por meio da ampliação da participação do

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19 Associação civil sem fins econômicos, de direito privado, com sede em São Paulo, e que tem por finalidade promover a educação para o exercício da cidadania, cujas ações tenham como resultado a conscientização urbana e a ativação dos espaços públicos da cidade (AS-SOCIAÇÃO, s/d).20 Em Recife, esse movimento contesta “[...] a destinação de uma área de 10 hectares (o Cais José Estelita, na bacia do Pina, no centro da cidade), para ser usado em um empre-endimento imobiliário [...] que prevê a construção de 12 torres com até 40 andares”, tendo como principais argumentos a ausência de Estudo de Impacto Ambiental e de Impacto de Vizinhança, além da falta de participação social nos procedimentos (PINTO, 2014).21 Esse Programa “[...] reúne uma série de ferramentas que vão contribuir para que gover-nos e sociedade civil promovam o desenvolvimento sustentável nos municípios brasileiros” e oferecendo “[...] uma plataforma que funciona como uma agenda para a sustentabilidade, incorporando de maneira integrada as dimensões social, ambiental, econômica, política e cultural e abordando as diferentes áreas da gestão pública” (PROGRAMA, s/d).

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transportepúblicocoletivo seguroeeficienteedo transportenão-mo-torizado”,bemcomoareduçãodo“[...]númerodemortesnotrânsitoemelhorarasegurançaviária”(MINISTÉRIODASRELAÇÕESEXTE-RIORES,2014). Dessaforma,houvemarcanteparticipaçãoecolaboraçãodoBra-sil na construção dessa agenda mundial, cujos objetivos e metas incor-poraramos aprendizados compartilhadosno evento e, por outro lado,têminfluenciadonaressignificaçãodatemáticainternamente.AprópriaONUreconheceuopapelexercidopelopaísnesseprocesso,admitindoqueoBrasiléumexemplomundialdabem-sucedidaproteçãosocialede preservação do meio ambiente que se apresentam como boas práticas que podem ser replicadas emvários países domundo (ONU.PNDU,2015). Ocorreuoentrelaçamento,comopontesdetransição,produzin-do a racionalidade recíproca, para a solução dialogada de um problema constitucional(afirmaçãodedireitosfundamentais).Pode-seafirmar,emsuma, que se manifestou o transconstitucionalismo nessa temática, in-clusivenaEmendaConstitucionalnº90/2015.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Apartirdosdadoslevantados,conclui-sequenoanode2015,aConstituiçãode1988foialteradaformalmenteparaseintroduzirodi-reito ao transporte no rol dos direitos sociais, argumentando-se que ele, assim como a educação, a saúde e o trabalho, dentre outros, seria central paraumasociedadejusta,desenvolvida,capazdepromoverobemco-mum,conformeosobjetivosdaRepúblicaFederativadoBrasil.Nessesentido, o direito ao transporte passaria a ser um vetor de desenvolvi-mento urbano, tanto no aspecto da produtividade quanto da qualidade de vida da população, permitindo a mobilidade das pessoas, a oferta e o acesso aos bens e serviços, inclusive para as pessoas que não dispõem de meiosprópriosdelocomoção. Com efeito, o contexto em que surgiu essa emenda apresenta grandesdesafiosnoqueserefereàorganizaçãodosplanosdemobili-dadeurbana.Aprioridadenomodaldotransportemotorizadoparticular,emdetrimentodosmodaismaissustentáveis,trazimportantesexterna-

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lidades negativas (poluição, congestionamentos, desperdício de tempo e oneração dos deslocamentos, entre outras), por isso a “elevação” ao plano constitucional gera expectativas normativas quanto às políticas pú-blicasdeconcretizaçãododireitoaotransporte. Ocorrequeotransportefoi“constitucionalizado”em2015semosnecessáriosinstrumentosderealização,comoavinculaçãodereceitasouacriaçãodefundosespecíficosparafinanciaremprogramasecampa-nhasdeesclarecimentosobremobilidadesustentável.Assim,adecisãopolítica de acrescentar esse direito ao texto constitucional assume um carátermaissimbólicodoquenormativo.Ela,porsisó,nãoatendeaodesejo e às necessidades da comunidade, frustrando as expectativas de umanormatividadeeficazeefetivanotocanteàmelhoriadascondiçõesdedeslocamentohumanoede cargasnoespaçourbano.Emverdade,transparecemaisosentimentodoPoderPúblicoemsejustificardianteda realidade social, mostrando-se atuante, mas sem tratar adequadamen-te a resolução do problema. Ressalte-se, entretanto, que, apesar desse efeito simbólico daEmendaConstitucionalnº90,nãosepodesimplesmentemenosprezá-la,massimvislumbrá-lanoutrasperspectivas.Seriaocasodecompreen-dê-la como produto do transconstitucionalismo, haja vista o arcabou-çonormativopertinenteàmobilidadeurbananoBrasilterinfluenciadoe,aomesmotempo,recebidoinfluênciadosorganismosinternacionaisquecuidamdotema.Umexemplonessesentidofoiaparticipaçãoeacolaboraçãodos representantesbrasileirosnaCúpuladaONUdeDe-senvolvimentoSustentável,ocorridaemNew York, no ano de 2015, que aprovouosObjetivosdoDesenvolvimentoSustentável(ODS). Assim,aEmendaConstitucionalnº90éfrutodeentrelaçamento,comopontesdetransição,racionalidadeeaprendizadorecíprocoentreasnormativasdaONU,particularmentedoProgramadasNaçõesUnidasparaosAssentamentosHumanos(ONU-HABITAT),eaordemjurídicabrasileira,materializadanaspolíticasdaSecretariaNacionaldeTrans-porte e daMobilidadeUrbana (SeMob), vinculada aoMinistério dasCidades.E,emfunçãodisso,pode-seafirmarque,nessecaso,otrans-constitucionalismopodesemostrarhábilatranscenderoefeitosimbó-licooriginárioepotencializaraconcretizaçãofuturadodireitosocialaotransporte.

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TRANSPORTE COMO DIREITO SOCIAL: DA CONSTITUCIONALIAZAÇÃO SIMBÓLICA AO TRANSCONSTITUCIONALISMO 182|

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Dignidade da pessoa humana e a igualdade substancial

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Humberto Henrique Costa Fernandes do Rêgo¹

1 Mestre em Direito Constitucional. Professor Adjunto I da Faculdade de Direito/UERN e Especialista em Direito Público.

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Resumo: OSurgimentodasrelaçõessociais,nacurvadahistória,sedimen-ta-se em etapas de acontecimentos que se iniciam com a era selvagem, passandopelabarbárieatéchegaràcivilização.Opoder,nesseepicentro,foi exercido segundo preceitos instituídos por cada fase do processo civi-lizatório,masguardando,todavia,pelomenosumaspectopadrão,qualsejaodasubjugaçãodohomempelohomem.OEstadoConstitucionalpermitiuaconstruçãodeumanupérrimaengenhariajurídica-políticaesocial,aosecolidircomaorganizaçãoestamentáriadoAntigoRegimeefundarumanormativainauguralparaasrelaçõessociais,estratificadanaigualdadejurídica.Adespeitodoestablishment da igualdade formal, comosemióticadoNovoRegime,apresentaravançosemrelaçãoaomo-delo anterior, não tardou para se mostrar opaca socialmente, pela exaus-tãodopositivismo, comobase teórica.Asmazelas sociaisproduzidaspelaconflituosarelaçãocapital-trabalho;asrecorrentescrisesdosistemacapitalista, com especial destaque para o crash da bolsa de New York em

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1929;eoescárniohumanitárioproduzidopelaSegundaGuerraMundial,cuidaramdeproduzirmudançasseverasnasfundaçõesdoEstadoCons-titucional e, por decorrência, no conceito de igualdade jurídica, possibili-tando, nesse espectro, o engendramento da ideia de dignidade da pessoa humana como célulamater da segunda fase do constitucionalismo.Aigualdade formal, de base liberal-positivista, cede espaço para o concei-todeigualdadesubstancial,defirmamentoaxiológico,projetando,porconseguinte,umanovaperspectivadesociedade,emqueosDireitosHu-manossãoafonteeolimitedeatuaçãodoEstadoe,ocidadão,ocentrovivo de onde irradia todo o poder político.

Palavras-chave: Constitucionalismo ético-valorativo. Dignidade dapessoahumana.Igualdadejurídica.Igualdadesubstancial.Positivismo.

Abstract: The emergence of social relations, in the curve of history, sedi-ments itself in stages of events that begins with the savage era, going throughbarbarismuntil reachingcivilization.Power, in thisepicenter,was exercised according to precepts instituted by each phase of the ci-vilizingprocess,butat thesame timepreservingat leastonestandardaspect, namely that of the subjugation of man by man. The constitutio-nal state allowed the construction of a new juridical-political and social engineering,byclashingwiththeoldregime’sstatistorganizationandfoundinganinauguralregulationforsocialrelations,stratifiedinlegalequality.Inspiteoftheformalequalityestablishment,asasemioticofthe new regime, to present advances in relation to the previous model, it soon became socially opaque, due to the exhaustion of positivism, as a theoreticalbasis.The social illsproducedby theconflictivecapital--labor relation; the recurring crises of the capitalist system, with special emphasison thecrashof theNewYorkStockExchange in1929;andthehumanitarianscornproducedby theSecondWorldWar, tookcareto produce severe changes in the foundations of the constitutional state and, consequently, in the concept of juridical equality, enabling, in this spectrum, the engenderment of the idea of dignity of the human person as cell mater of the second stage of constitutionalism. Formal equality, with a liberal-positivist basis, gives way to the concept of substantial equality,ofaxiologicalfirmament,projecting,therefore,anewperspec-

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tiveofsociety,inwhichHumanRightsarethesourceandlimitofactionoftheStateandthecitizenisthelivingcenterfromwhichallpoliticalpower radiates.

Keywords:Ethical-evaluativeconstitutionalism.Dignityofhumanper-son.Legalequality.Substantialequality.Positivism.

INTRODUÇÃO Adignidadedapessoahumanaeaigualdadesubstancialsãote-máticasquevêmdesafiandoadoutrinadosDireitosHumanosdesdeme-adosdoséculopróximopassado,quandoomundotestemunhouaruínado positivismo clássico e a assunção de um novo conceito de proteção jurídica,baseadonaéticauniversaldequeohomeméocentrodondeemanatodoopodersecular,assimcomoodestinatáriofinaldaaçãopo-líticadoEstado. O descortinamento das ações do Terceiro Reichexpôsaomundoimagens chocantes da degradação humana e da indignidade com as quais gruposminoritáriosforamtratadosepenalizados,amaisdasvezesatéamorte, pelo simples fato de serem culturalmente diferentes. Fala-se em diferença cultural, haja vista ser esta a única marca que separaoshomens, jáque soboviésbiológico todososhumanosdescendemdeummesmotroncogenealógico,sendo,portanto,idênticosem suas composições e cargagenética.Nãohá, nessediapasão, raçasdehomens,vezquetodospertencemaumaúnicaprogênie,édizeradeseres humanos. Todos são, fatalmente, homo sapiens. Aorigem,acor,areligião,osexo,alíngua,aideologia,enfim,aidentidadebiológico-culturaldecadauméadiferençanecessáriaparao complemento da raça humana, ou seja, o fator medular de sua virtude epluralidade.Emvistadisso,adiversidadeévalorsuperior,fermentovivo do progresso social, plântula do multiculturalismo, logo, trincheira moralcolidentecompraxesdiscriminatóriasepreconceituosas. É nesse ponto que reside a importância da dignidade da pessoa humanaparaasdemocraciascontemporâneas,vezqueoestabelecimen-to de normas universais de proteção aosDireitosHumanos, de densoconteúdonormativo-ético,moldurounovosparadigmaspolíticos e ju-

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rídicosnarelaçãodoEstadocomocidadãoe,noviéshorizontal,destecomseussemelhantes.Superou-seoformalismodescompromissado,deneutralidadeestatal,parasefundaroEstadopromotordacidadania,daprosperidadesocialegarantidordosDireitosEconômicoseSociais. Como protetor absoluto da dignidade da pessoa humana, coube ao Walfare Stateagregarosvaloresdanovaéticajurídico-socialepro-mover a igualdade real de seus cidadãos, garantindo a todos o acesso isonômicoaosDireitosFundamentais. Pois bem, este trabalho buscará analisar a dignidade da pessoa humana e a igualdade substancial, tendo como ponto de partida breves referênciashistóricassobreasrelaçõessociais–eseuintriquecomopositivismoclássico–,mormenteaigualdadejurídicaqueserviudebasefilosóficaparaostemposáureosdoformalismo,e,comoremate,aas-sunçãodosDireitosHumanoscomobaseético-valorativadasociedadecontemporânea. Oestudoaindademonstraráanecessidadedeaçõesafirmativasquevenhamcombaterasdesigualdadespolíticas,jurídicas,econômicase sociais, de modo a permitir que todos os homens, independentemente desuacor, sexo,crença, ideologia, língua,nascimento,deficiênciaououtradiferençaquepossaexistir,tenhamacessoaosDireitosFundamen-tais em igualdade de condições.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES Revolvendoahistóriadahumanidade,desdeosprimeirosregis-tros,umatemáticatemsidoabordada,commaioroumenorespecifici-dade, recorrentemente, qual seja a estabilidade envolvendo as relações intersubjetivas entre os homens e as destes com o poder político. Com efeito, a curva do tempo cuidou de forjar os enastres de poder primeiramente pela prevalência da força, quando os incursos da vidacoletivasecingiamaosinstintosdasprimeirasgeraçõesdaespéciehumana.Posteriormente,dentrodeumprocessobiológico-evolutivo,arazãoassumiuopapeldedirigirasrelaçõesdavidaemsociedade,so-bretudo, no que tange ao exercício do poder, separando, desde então, a espéciehumanadasdemais. SegundoFriedrichEngels,citandoLewisHenryMorgan,ahis-

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tória da humanidade seria dividida em selvagem, barbárie e civilização, todas elas subdivididas em fase inferior, média e superior. A primeira é reproduzida pela “infância do gênero humano”, quando os homens “per-maneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores” (ENGELS, 1991, p. 22). A barbárie “inicia-se com a introdução da cerâmica” (ENGELS, 1991, p. 24), para em sua fase superior desenvolver “a organização gentílica da sociedade, (...) com a entrada em cena da civilização (...) período da espada de ferro, mas também do arado e do machado de ferros” (ENGELS, 1991, p. 177). Para o autor, o umbral da civilização, já em sua fase inferior, é a divisão do trabalho. Nesse ensejo, as primeiras civilizações desenvolveram formas de organização social – observando as peculiaridades de cada realidade – muito mais preocupada com a expansão territorial e a subjugação dos vencidos, do que com a promoção do homem como sujeito precursor e destinatário final do poder político. Essas etapas evolutivas restaram demonstradas por Engels, ao analisar o surgimento do Estado a partir da ruína da gens:

Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais pura, mais clássica: ali, o Estado nasceu direta e fundamentalmente dos anta-gonismos de classes que se desenvolviam no seio mesmo da socie-dade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Esta-do, onde não tardaram a se confundir a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os germanos, por fim, vencedores do império romano, o Estado surgiu em função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar (ENGELS, 1991, p. 190-191).

Com efeito, sob a batuta da civilização, as sociedades cunharam seus próprios conflitos sociais, fundando, em cada realidade vivida, ciclos de progressos econômicos e de desenvolvimento de novas tecnologias, sem, todavia, preocuparem-se com a sevícia dos grupos vulneráveis, que, segundo retrata a linha do tempo, sofreram as mais perversas práticas de torturas psicossomáticas. Mais uma vez é percuciente a análise de Engels sobre a situação

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dedegradaçãodacondiçãohumananassociedadespré-contemporâneas:

Como oEstado nasceu da necessidade de conter o antagonismodasclasses,ecomo,aomesmotempo,nasceuemmeioaoconflitodelas,é,porregrageral,oEstadodaclassemaispoderosa,daclas-seeconomicamentedominante,classeque,porintermédiodele,seconvertetambémemclassepoliticamentedominanteeadquireno-vosmeiosparaarepressãoeexploraçãodaclasseoprimida.Assim,oEstadoantigofoi,sobretudo,oEstadodossenhoresdeescravosparamanterosescravossubjugados;oEstadofeudalfoioórgãodequesevaleuanobrezaparamanterasujeiçãodosservosecampo-nesesdependentes;eomodernoEstadorepresentativoéoinstru-mento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado (ENGELS,1991,p.193-194).

Esses jaezes permitiram que o último estágio que colmatou asociedade contemporânea, denominado de capitalismo, impusesse um arranjo social modulado na exploração máxima da classe dominante--burguesacontraadominada-proletária,edificandoumaestruturadeso-ciedade de total envilecimento humano, em que o homem foi convertido em simples mercadoria, desnudo, portanto, de sua condição de sujeito de direito,comobemdescreveKarlMarx:

O trabalhador labora sob o controle do capitalista, a quem pertence seutrabalho.Ocapitalistacuidaemqueotrabalhosejarealizadocorretamenteequeosmeiosdeproduçãosejamutilizadosdemodoapropriado,afimdequeamatéria-primanãosejadesperdiçadaeomeiodetrabalhosejaconservado,istoé,destruídoapenasnamedi-danecessáriaàconsecuçãodotrabalho.Emsegundolugar,porém,oprodutoépropriedadedocapitalista,nãodoprodutordireto,dotrabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o valor da força de trabalhoporumdia.Portanto,suautilização,comoadequalqueroutramercadoria–por exemplo,umcavalo–que ele alugaporum dia, pertence-lhe por esse dia.Ao comprador damercadoriapertence o uso da mercadoria, e o possuidor da força de trabalho, ao ceder seu trabalho, cede, na verdade, apenas o valor de uso por elevendido.Apartirdomomentoemqueeleentranaoficinadocapitalista, o valor de uso de sua força de trabalho, portanto, seu uso, o trabalho, pertence ao capitalista. Mediante a compra da força de trabalho,ocapitalista incorporaopróprio trabalho,comofer-mento vivo, aos elementos mortos que constituem o produto e lhe pertencem igualmente.Deseupontodevista,oprocessode tra-

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balho não é mais do que o consumo da mercadoria por ele com-prada, a força de trabalho, que, no entanto, ele só pode consumir desde que lhe acrescente os meios de produção. O processo de tra-balho se realiza entre coisas que o capitalista comprou, entre coisas que lhe pertencem. Assim, o produto desse processo lhe pertence tanto quanto o produto do processo de fermentação em sua adega (MARX, 2013, p. 557).

Marx e Engels reprofundam-se na análise do antagonismo de classe, a partir de relevante observação das relações sociais predominan-tes no curso dos acontecimentos, a fim de demonstrarem que as lutas de classes têm pautado a história da humanidade. Em todos os tempos, realçam, que sempre existiu uma conexão de causa e efeito entre o opres-sor e o oprimido. Em o Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels enfrentam esse dilema, estabelecendo que

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. [...] Nas mais remotas épocas da história, verifica-mos, quase por toda parte, uma completa estruturação da socieda-de em classes distintas, uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escra-vos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres das corporações, aprendizes, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, outras gradações particulares. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez mais do que estabelecer novas classes, novas con-dições de opressão, novas formas de luta em lugar das que existiram no passado (MARX; ENGELS, 2007, p. 40).

O rompimento com essa franquia social, após milênios de expro-priação do homem pelo homem, tem se tornado uma necessidade inevi-tável, porém construída de forma lenta e gradual, recebendo influência das mais variadas raízes filosóficas, com destaque para a doutrina cristã, que lançou as bases éticas do Ocidente, e do movimento iluminista, pon-to de partida para a era constitucional. Vale registrar, por oportuno, que a relação de exploração entre classes sociais não foi superada pelo Estado Contemporâneo, antes agra-vada com a ascensão do modo de produção capitalista. Todavia, inegável que o modelo constitucional inaugurado com o Estado Liberal trouxe avanços jurídicos significativos – no caminho da cidadania – ao novo

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padrão de sociedade fundado pela burguesia, permitindo, com isso, uma expressivaampliaçãododebatesocial,notadamentediantedosconflitosgerados pela colisão entre o capital e o trabalho. Ofortalecimentodaideiadeuniãodaclassetrabalhadora–açu-lada pela publicação do Manifesto Comunista2–easreiteradascrisesnosistemacapitalistafertilizaramoterrenoparaasurgimentodesólidabaseteórica,comfundamentonadignidadedapessoahumana,avelhantando,emdecorrência,ospostuladosdoEstadoLiberalpuro,aotempoemqueapontaramaalamedadasbasesjurídicas,sociaisepolíticasdosDireitosHumanosemescalauniversal.Oresultadofinaldessaengenhariasocialfoi a modulação da segunda fase do constitucionalismo, de baldrame axiológicaevaloraçãomáxima,reitere-se,àdignidadedapessoahuma-na.

IGUALDADE ABSTRATA Nessecontexto, aestagnação social emqueviviaaEuropadaprimeirametadedoséculoXVIII,imergidanumaestruturadepoderfor-madaporcastasquegozavamdetodaariquezaproduzida,masqueemnada contribuíam para o progresso dos povos e a justiça social, serviu de alicerce para a arena de embates entre classes sociais, especialmente fomentadospelasteoriasquepreconizavamaigualdadedetodosperantea lei. Era,comefeito,ohálitorevolucionárioqueaburguesianeces-sitava para eclodir as convulsões sociais que culminaram com a queda doAbsolutismo e a assunção doEstadoConstitucional naFrança em1791,malgradoaInglaterra,desdeaRevoluçãoGloriosa,aindanosécu-loXVII,jáhouvesserompidocomaconcentraçãodepodernasmãosdeumúnicoórgão.MesmocaminhofoipalmilhadopelosEstadosUnidosdaAméricaapósadeclaraçãodeindependênciadesuas13colônias,em1776,eacomposiçãodesuaFederaçãoem1787,atravésdapromulga-ção da Constituição estadunidense. Alterou-se,comessenovomodelodeorganizaçãopolítica,aóti-cadeexercíciodopodernoOcidente,vezqueascastassociais,que,em

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2 Trabalhadores do mundo, uni-vos!.................................

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séculos, estiveram imunes aos tentáculos das obrigações legais, passaram a receber tratamento isonômico, ainda que no plano da legalidade, em relação aos demais estamentos da sociedade. Extinguiu-se, de uma vez por todas, a justificação do poder divino, para estabilizá-lo na vontade popular. Inicia-se, assim, a primeira fase do Estado Constitucional, de pre-ponderância positivista, que traspassaria todo o século XIX e as primei-ras décadas do século XX. Período em que a lei se apresenta como reflexo absoluto da vontade geral, todos a ela estando subordinados, indepen-dentemente de raiz principiológica. A ética, nessa fase, era a da norma formal, ou seja, fundada na concepção teórica do positivismo. Já enfrentamos, em outro trabalho, a lógica positivista, para ex-plicar o fundamento de sua metodologia e aplicação no mundo dos fatos. Na ocasião, registrou-se o positivismo

como um processo de observação histórica dos fenômenos natu-rais, que, todavia, prioriza as relações abstratas existentes nesses acontecimentos verificáveis e desconsidera as suas causas determi-nantes. Baliza, pois, seu prognóstico em critérios racionais, alimen-tado por uma única verdade, as próprias experiências do homem (RÊGO, 2014, p. 80).

Auguste Comte, principal teórico do positivismo, vaticina que “o verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em ver para prever, em estudar aquilo que existe a fim de concluir o que ele se tornará, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais” (COMTE, 2016, p. 33). Percebe-se, pois, que as linhas positivistas visualizam um modo de organização social assentado na racionalidade da lei, fruto da previsão humana, logo invariavelmente agregado aos valores e dogmas do homem. Ignora o espírito positivo as especulações que precedem ou convivem com os fenômenos sociais – valores, historicidade, crenças, ideologias –, pois o que importa é a disciplina da realidade, dos momentos vividos, ra-zão pela qual declara uma verdade relativa de tais fenômenos, desde que fidedigna às vicissitudes humanas, à ética do homem (RÊGO, 2014). Ao Estado Liberal, organizado pelo triunfo do ideal burguês, de liberdade plena e intervenção mínima, coube preparar o ambiente para a difusão da igualdade formal, conceito segundo o qual a todos deve ser dispensado tratamento isonômico. Extingue-se, com isso, as diferenças

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decorrentes das castas sociais, reinantes noAbsolutismo, para nivelartodo cidadão dentro de um panorama semelhante de legalidade. Numprimeiromomento,deconvulsãogeneralizadaemfacedaderrubadadosprivilégiosqueassolavam,sobretudo,aEuropaPré-con-temporânea, compreendeu a nova classe dominante que havia construído o albergue fundamental para a formação de uma sociedade mais justa e comprometida com o progresso social. Todavia, em verdade, garantiu direitos tão somente a ela mesma, jáqueaestruturajurídicaedificadapelasrevoluçõesburguesasignoravaasvicissitudesdecadacidadão,impedindo,ounomínimodificultando,àqueles provenientes dos estamentos mais vulneráveis da sociedade de guiarem o seu destino de modo a alcançarem uma real igualdade social. Ora, impossível assegurar a igualdade de todos perante a lei sem que seja dispensado equivalência de condições aos diversos grupos sociais que compõem uma sociedade, ou seja, garantia de paridade de oportunidades que possibilite ascensão social e aperfeiçoamento da ci-dadaniadeformaplanificada. ParaYaraMariaPereiraGurgel,

OEstadoLiberalouBurguêsgarantia,unicamente,aigualdadedetratamento,independentementedasituaçãoespecíficadecadaci-dadão.Comonãointervinhanasrelaçõeseconômicas,nãocabiaaolegisladorcriardesigualdadesartificias,mesmopara impulsionaradesenvolturadascapacidadespessoais(GURGEL,2010,p.39).

Anãointervençãoestatalealiberdadeplenanarelaçãocapital--trabalho,emvezdepromoveremasimetriaentreascamadassociais,projetaramverdadeirosabismosnasociedadeburguesa,jáqueoEstadoLiberal ignoravaascondiçõespessoaisdecadacidadãoeas reaisne-cessidadesdesupriressasdeficiências.Assim,abstendo-sedecultivaratão desejada integração social, criou, a igualdade formal, um dos mais perversos sistemas de exploração do homem pelo homem. OindividualismofoiumdosfortesvetoresdoEstadoLiberaledaigualdadeformal,atingindooseuápicecomAdamSmithemsuaobra“ARiquezadasNações”,naqualoautorafirma-ocomobenéficoàcole-tividade,jáqueaventuraindividual,porviareflexa,eraaprosperidadede toda a sociedade, independentemente de o capitalismo ter como único objetivo a obtenção de lucro.

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Aomercado,segundoAdamSmith,agindolivremente,caberiaregular as relações sociais, como uma “mão invisível”, promovendo, as-sim, o progresso de forma harmoniosa:

Como todo indivíduo procura, tanto quanto pode, tanto empregar seucapitalemapoiaraindústriadoméstica,eassimdirigiraquelaindústria para que sua produção seja do máximo valor, todo indi-víduo necessariamente trabalha para tornar o rendimento anual da sociedadeomaiorquepuder.Defato,emgeral,elenempretendepromover o interesse público nem sabe quanto o está promovendo. Preferindo apoiar a indústria doméstica, e não a estrangeira, eleprocura apenas sua segurança; e dirigindo aquela indústria de tal maneira que sua produção seja do maior valor, procura apenas seu próprioganho,enisto,comoemmuitosoutroscasos,ésólevadoaporumamãoinvisívelapromoverumfimquenãoerapartedesuaintenção.Etampoucoésemprepiorparaasociedadequenãotivesseestefim.Seguindoseuprópriointeresse,elefrequentemen-te promove o da sociedade mais efetivamente do que quando real-mente pretende promove-la. Nunca soube de grande bem feito por aquelesqueaparentavamcomerciarparaobempúblico(SMITH,2017,p.923-924).

Percebe-seque,paraSmith,apreponderânciadoindividualismosobre o coletivismo, de per si, promoveria ganhos extraordinários para todaasociedade,hajavistaqueoespectrodamãoinvisível–atualmenteconhecidocomoleidaofertaeprocura–,promoveriaantesavançosso-ciais do que pessoais. Nessasenda,entendiaSmithqueoesforçoconstanteediuturnoque cada homem promovesse para melhorar sua condição social seria detalmagnitudeque,porsisó,reuniriaascondiçõesnecessáriasparacorrigiratéerrosdapolíticaeconômicaelevarasociedadeàriquezaeàprosperidade(SMITH,2017). Essaperspectiva teórica funda-senaneutralidadeplenadoEs-tado, que deve cingir-se a assuntos pontuais, restritos e que não sejam de interesse da iniciativa privada, deixando a individualidade de cada qual promover o progresso de todos, ou seja, sem “qualquer intervenção reguladoradoEstado”(SMITH,2017,p.923-924).Aleiturasmithiana,nesse diapasão, desconsidera, por completo, as vicissitudes de cada ho-mem, região,processohistóricocivilizatório, enfim,as idiossincrasiasinerentes a cada realidade social.

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YaraGurgel,analisandoaneutralidadedoliberalismosobaóticada igualdade formal, asseverou que

Aigualdadeperantealei,segundooqualtodosfazemjusaosdirei-tos de forma neutra e universal, desatenta às desigualdades reais e implantada sob o modelo liberal, gerou uma sociedade puramente individualista, na qual as relações civis, incluindo a de prestação de serviço, eram regidas segundo a autonomia da vontade das partes (GURGEL,2010,p.38).

Eacrescenta:

O apogeu da burguesia, realçado pelas liberdades individuais, in-clusive pelo que se entende hoje como relações de trabalho, retrata a opressão pela qual a grande maioria de pessoas excluídas passa-va.Aburguesiaeraquemdefatodispunhadosinstrumentosneces-sários parausufruir dosditosDireitosFundamentais (GURGEL,2010,p.39).

Essemodelopositivista-liberal,apesardosataquessofridosporteóricos que questionavam a sua eficiência, mormente advindos dosideais socialistas, somente veio a sofrer revés com aRevoluçãoRus-sade1917,quando,então,aopressãodecorrentedoEstadoLiberalfoiseveramente combatida e o individualismo obrigado a ceder espaço ao solidarismo, cuja máxima defendia a integração de todos os homens à condição de sujeitos de direitos. NãoseestáaquiafirmandoqueaexperiênciadaUniãoSoviéticatenha assegurado a igualdade material a seus patrícios, o que de fato a Históriademonstrouquenãoo fez,adespeitodanotável simetriaso-cial atingida, mas demonstrando que a conexão liberalismo-positivismo deparou-secomseumaiordebacle,emaproximadamenteumséculodeapogeu, com o surgimento do modelo de desenvolvimento bolchevique, jáqueesteerainsubmissoàmatrizfilosóficapositivo-liberal. Detodomodo,asimbologia,maléfica,dopositivismomateriali-zou-seemdefinitivocomaSegundaGrandeGuerra,quandoaTerceiroReich, sobo impérioda lei,promoveuumdosmaioresgenocídiosdahistóriadahumanidade,demonstrandoqueoEstadoLiberalnãomaisatendia aos anseios sociais e que a igualdade formal, em sua forma pura, encontrava-secarcomidaeesgaçadapelaHistória.

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FabioKonderComparatoobservaquesomenteochoquederea-lidadeaoqualomundofoisubmetido,aodesnudarascólerasproduzidaspelomaisgraveconflitoemescalamundialdaHistória,foiquesetornoupossível compreender a igualdade humana como bem fundamental do homemealicerceético-jurídico-políticovitalparaapreservaçãodaes-pécie(COMPARATO,2015). Defato,oshorroresdoSegundoConflitoMundial,abanalidadedemonstradacomavidahumana,osmétodospelosquaispessoaseramsacrificadasesubmetidasàtotaldegradaçãofísicaemoraleodesrespei-to com que os segmentos minoritários foram tratados, com extensão de seusefeitosemtodososcontinentes,mostraramqueafórmulasegundoa qual todos são iguais perante a lei, sem a garantia dos mecanismos jurídicos de proteção e as ações políticas que transformassem essa abs-traçãoemrealidadesocial,quedou-seimprópriaaacalentarosreclamosdasociedadesurgidanopós-guerra.Eraadeixaparaodefinhamentodahegemoniapositivista,imobilizadapelasubserviênciaaoformalismoedespreocupação com o homem enquanto sujeito de direitos.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E IGUALDADE SUBSTANCIAL Nesseensejo,terminadoograndeconflito,ediantedasatrocida-despraticadaspeloEixoedemonstradasàcomunidadeinternacional,omundo se viu perplexo com a nocividade do positivismo liberal e com a coisificaçãodohomem,enquantomeroobjetodopoderpolítico. EssaéaconclusãoquedimanadopensamentodeYaraGurgel,para quem

diantedasatrocidadesocorridasduranteaSegundaGrandeGuerra,percebeu-sequeopositivismojurídiconãoofereciaproteçãosufi-cienteaoserhumano.EraprecisoconstruirnovaOrdemJurídica,com aplicação universal, que proporcionasse a esta posição de des-taque(GURGEL,2010,p.30).

Surge,assim,atravésdaDeclaraçãoUniversaldosDireitosHu-manos,agrandemarcadosistema jurídicoocidentaldoséculoXX,édizeradignidadedapessoahumana.Deconteúdoaxiológicoeextraor-dinário apelo à defesa do homem, como ser único e dotado de direitos

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inalienáveis, essa “norma-princípio”passoua ser a chavedeabóbodadasrelaçõesjurídicasnoOcidenteeoprincipalirradiadorético-moraldaorganizaçãopolíticaesocialdoEstado,agoraDemocrático,deDireito. NaspalavrasdeFábioKonderComparato,

Inegavelmente,aDeclaraçãoUniversalde1948representaacul-minânciadeumprocessoéticoque, iniciadocomDeclaraçãodeIndependênciadosEstadosUnidoseaDeclaraçãodosDireitosdoHomemedoCidadão,daRevoluçãoFrancesa,levouaoreconheci-mento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade depessoa, istoé,comofontede todososvalores, independente-mente das diferenças de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origemnacionalousocial,riqueza,nascimento,ouqualqueroutracondição(COMPARATO,2015,p.240).

Ressalve-seque,muitoemboratenhaaDeclaraçãoUniversaldosDireitosHumanosdadodensidade jurídicaàdoutrinadadignidadedapessoahumana,édeImmanuelKantafaçanhadeforjarditoprincípio,encontrando-se formulado em sua “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”.Segundooautor,

[...] no reinodosfins, tudo temouumpreçoouumadignidade.Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equiva-lente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade (KANT,2004,p.65).

Dessemodo,adignidadedapessoahumanaéumconjuntodepreceitos ético-valorativos, emnível de princípios norteadores doDi-reito e da Política, que visa a proteção integral do homem, enquanto ser único e dotado de direitos universais, e do cidadão, enquanto membro integrante da sociedade. IngoWolfgang,escrevendosobreadignidadedapessoahumana,enfatiza:

[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, im-plicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres funda-mentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de

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cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condiçõesexistenciaismínimasparaumavidasaudável,alémdepropiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinosdaprópriaexistênciaedavidaemcomunhãocomosde-maissereshumanos(SARLET,2007,p.62).

ParaYaraGurgel,

Adignidadedapessoahumana,comobaseéticadasociedademo-derna, é valor absoluto e qualidade inerente a todo ser humano;alémdeserdestituídadequalquer fatormoral, religiosooueco-nômico.Não há espaço para substituição, relativização ou valo-raçãodoserhumano.Tambémnãoháquesepensaremdimensãoquantitativa ou qualitativa da dignidade. Todos os seres humanos possuem condição humana e, portanto, igual valor absoluto - pos-suemidênticadignidadeedireitoàproteção jurídica(GURGEL,2010,p.31).

É bem verdade que, muito embora o conceito de dignidade da pessoa humana seja universal e extensível a toda pessoa, independente-mente de crença, sexo, opção política, raça ou outra condição qualquer, divergeadoutrinaseessepadrãoético-valorativotemcarátervinculanteatodosospovos,comopreceitodecursoobrigatório. Os universalistas asseveram que sim, já que a dignidade da pes-soa humana assume uma acepção de mínimo possível de sobrevivência, razãopelaqualdeefeitoimediatoevinculanteatodosospovosenações. Já os relativistas, em posição contrária, defendem que, malgra-do o caráter universal dos direitos humanos, que deve ser instigado e promovido em todos os povos, a cultura, os costumes, as peculiaridades de cada realidade são fatores de indispensável proteção, não podendo a noção de uma vivência ser imposta como padrão de comportamento às demais. Independentementedearazãoassistiraumaououtracorrente,atéporquenãoéestaapropostadeste trabalho,ocertoéque,atravésdosDireitosHumanos,buscouasociedadecontemporâneadesenvolverumarededeproteçãoeassistênciaaohomem,emrazãodesuaprópriacondição humana. AteiadeproteçãoadvémdanormatividadesurgidaemníveldeDireitoInternacional,masdeirradiaçãocompulsóriaàsdemocraciasco-

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evas por meio de suas constituições, como base de todo o ordenamen-to jurídico democrático. Passou a dignidade da pessoa humana a ser o fio-de-ariadneparaanorma-regra,paraoaplicadordanormae,noutroquadrante,atéparaasrelaçõesdenaturezainterpessoais,édizerasco-nexões privadas. JáosmecanismosdeassistênciaadvêmdaexigênciadosEstadosempromoverempolíticaspúblicasnosentidodematerializaressanor-ma-princípioe,bemassim,garantirasuarealeficácia. YaraGurgelasseveraque“acondiçãohumanaéoúnicorequisitopara se ter direito à dignidade: não está condicionada à moral, comporta-mentooucrençareligiosa”(GURGEL,2010,p.31). Destarte,acondiçãodehomem(espécie)cravejaaúnicaexigên-cia jurídica para o sistema de proteção à dignidade da pessoa humana, constituindo-se, portanto, no núcleo inexorável da ideologia constitucio-nal contemporânea. Ora, o positivismo liberal jamais se propusera a enfrentar tal de-safio,vezque se exaurianameraficção jurídicada lei, conformede-monstradoporLucianoGruppi,aoanalisarosalicercesdademocraciaburguesa:

Numa democracia burguesa todos são declarados iguais diante da lei, pois em termos jurídicos os direitos de cada cidadão são iguais aos de qualquer outro cidadão. O burguês, na sociedade medieval, não podia ser representado numa assembleia; mas todos podem ser eleitosnoParlamentoapartirdomomentoemqueseafirmaosu-frágiouniversal,ealeiéigualparatodos(GRUPPI,1998,p.40).

Mais adiante, descreve a quão enganosa é a igualdade formalburguesa,ensaiandoque“essa igualdadeé forjadacriandoumafiguraformal jurídica, abstrata (a do cidadão), que cinde a unidade do homem, a unidade entre o homem no trabalho e o mesmo homem diante da lei. O cidadãoéumahipótesejurídica,umaformajurídica”(GRUPPI,1998,p.41). Earremataafirmandoque“essaliberdadeeigualdadedequefa-lavaaRevoluçãoFrancesanãoeramrealmenteuniversais:eraaliber-dadee igualdade sóparaumaparcelada sociedade,parao setoreco-nomicamentedominante, istoé,paraaburguesia” (GRUPPI,1998,p.30).

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Com efeito, o contraste anotado, aferido da realidade no trata-mento entre a classe dominante e a grande massa de desfavorecidos, oprimida diante das condições sociais a que estava submetida, serviu de fundíbulo para o advento de diversas concepções teóricas,marca-damentesocialistas,asquaisdefendiama revoluçãoeconômico-socialimediata, com a substituição das instituições capitalistas por um modelo deorganizaçãobaseadonaigualdadesubstancial. ParaKarlMarx,anaturezanãocriou,porpredileção,possuidoresde riqueza de um lado e damera força de trabalho de outro, eviden-ciando, com essa observação, que as discrepâncias sociais resultam de múltiplos processos históricos de desenvolvimento e transfor-mação na base produtiva de sociedades anteriores, tendo como con-sequência, a cada imutação, o aniquilamento do modelo de produ-ção social pré-existente. Nesse sentido, o surgimento da explora-ção de uma classe social, por outra, foi produto da necessidade de subsistência do trabalhador livre no mercado de trabalho, após atransmudação de um sistema de opressão anterior para o posterior (MARX,2013). Adiferençacrucialentreaigualdadeburguesa,ditaformal,eamarxista,denominadamaterial,residenumfatordeterminante,édizernapromoçãodeaçõesafirmativasvisandosuperarasvulnerabilidadesqueimpedem as classes sociais menos favorecidas de participarem, como sujeitosdedireitos,dadivisãodariquezadanação.Aprimeirarechaçaessa possibilidade, enquanto a segunda compreende-a como crucial para o progresso de uma sociedade. Écertoqueigualdadeperantealeiénorma-princípioquedeveser protegida peloDireito, a partir de uma compreensão dinâmica danorma,ouseja,deveelaconvivercomofluxoeorefluxodarealidadevivida.Portanto,oquesebuscacomaigualdadematerialé,emverdade,transformar aquela garantia legal do positivismo clássico em bem jurídi-co real e acessível a todos os cidadãos. Assim,pelomecanismodetrataraspessoasiguaisdeformaigualeasdesiguaisdeformadesigual,consegueoEstadosuprirasdeficiên-ciasidentificadasemcadagruposocialvulnerável,possibilitandoqueoscidadãos destes grupos possam ter paridade de oportunidade no acesso aosbensdeconsumos,àeducação,àsaúde,enfim,aosDireitosFunda-mentais.

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RobertAlexy,analisandoa igualdade jurídicaeamaterial, fazinteressante análise sobre o tema:

Os conceitos de tratamento igual e tratamento desigual têm uma ambiguidade fundamental. Eles podem ser compreendidos tantoemrelaçãoaatoscomoemrelaçãoaconsequências.[...]Deacordocom a compreensão relacionada a atos, os necessitados e os não--necessitados são tratados não de forma desigual, mas igual, já que avantagemdaassistência judiciáriagratuitaé recusadaaambosdamesmaforma.Pode-sedizer, tratadosde forma juridicamenteigual. Já segundo a compreensão relacionada a consequências, ne-cessitados e não-necessitados não são tratados de forma igual, mas desigual, já que a não-garantia da assistência judiciária gratuita im-pedeonecessitado,masnãoonão-necessitado,de seutilizardeuma via judicial prevista pela lei, apenas porque não dispõe dos meiosnecessáriosparatanto(ALEXY,2015,p.416).

AcríticadeAlexylevaaumresultadobemsimples,qualsejaapromoção da igualdade material ou fática pode gerar, em determinadas situações,acompreensãodadesigualdadejurídica,jáqueaaçãoafirma-tiva destinada àqueles que estão em situação jurídico-social vulnerável nãopressupõeocaminhoinverso,istoé,açãoidênticaaosqueestãoempolo jurídico-social privilegiado. KonderComparatopalmilhacaminhoanálogoasseverandoque,

O princípio da igualdade essencial do ser humano, não obstante asmúltiplasdiferençasdeordembiológicaeculturalqueosdis-tinguementre si, éafirmadonoartigo II (daDeclaraçãoUniver-saldosDireitosHumanos).Aisonomiaouigualdadeperantealei,proclamadanoartigoVII,émeradecorrênciadesseprincípio.Opecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em consideraretratarooutro–umindivíduo,umaclassesocial,umpovo–comoumser inferior,sobpretextodadiferençadeetnia,gênero,costumesoufortunapatrimonial.Algumasdiferençashu-manas,aliás,nãosãodeficiências,mas,bemaocontrário,fontesdevalores positivos e, como tal, devem ser protegidas e estimuladas (COMPARATO,2015,p.241).

Noutroenfoque,paraalémdabaseteóricamarxista,duasconsti-tuições,dasegundadécadadoséculoXX,apresentaramaomundomo-delos que apontavam para o caminho da igualdade substancial, inaugu-

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rando,assim,afasedaconstitucionalizaçãodosDireitosFundamentaisde status positivus3, sendoelasaConstituiçãodoMéxicode1917eaCartadaAlemanhade1919,estaconhecidacomoConstituiçãodeWei-mar.Referidosdocumentosserviriamdeparadigmasparaasconstitui-çõesquelhessucederiamnasdécadasseguintes. Mesmodiantede todoesseapanágiodeconstruções teóricasedogmáticas,aestruturasocialcapitalistasóperceberiaseuesgotamentocom a maior crise do sistema desde sua hegemonia, ou seja, em 1929 com o crash da bolsa de New York e o impacto gerado na economia do mundo.Aeclosãodagrandedepressãocorroeuosalicerceseconômicosesociaisdosestadoscapitalistas–ospaísesqueseguiamomodelodeor-ganizaçãosocioeconômicodaUniãoSoviéticapassaramilesosàcrise–,gerando ondas de demissões, bancarrotas, quedas drásticas na produção industrial,nospreçoseações,alémdoachatamentodoprodutointernobruto de diversas nações, ou seja, a quebra da bolsa causou um choque de tamanhamagnitudequeprovocouaestagnaçãodaatividadeeconômicaem diversos países no mundo. AcontracriseveiocomaimplementaçãodoEstadodeBem-Es-tarSocial,destacadomarconoenfrentamentodagrandedepressãoe,porconseguinte, da pavimentação em busca da igualdade substancial, cujos objetivosvisavamreestruturaroplexoeconômico,jurídicoesocialdopadrão de desenvolvimento capitalista, propendendo a uma maior inte-graçãoentreocapitaleotrabalho,notadamentepelaintervençãodoEs-tadonaeconomiaeaimplantaçãodeaçõespositivasquefossemcapazesde realinhar a relação entre a produção e a classe trabalhadora. O New Deal,expressãousadapeloPresidenteFranklinDelanoRooseveltparabatizaropacotedemedidasdecombateàcrisede1929nosEstadosUnidos,alterou,demodosignificativo,arelaçãodepodernasociedadeamericana–caminhoidênticofoiseguidopelaAlemanha,atravésdoMinistrodaEconomiadoTerceiroReich,HjalmarSchacht– implantandoumaousadapolíticade intervençãonaeconomiaenas

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6 O paradigma de uma teoria de posições globais abstratas é a teoria dos status, de Jellinek. Sua análise aqui não se justifica somente pela sua importância histórica como exem-plo de uma grande construção jurídica, conceitual e teórica. Ela ainda tem grande relevância como fundamento de classificação dos direitos fundamentais. (...) Jellinek (2015, p. 254-255) diferenciava quatro status: o status passivo ou status subiectionis, o status negativo ou status libertatis, o status positivo ou status civitais e o status ativo ou status da cidadania ativa.

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relações sociais, comabertura de linhadefinanciamento à sociedade,reposicionamentodalegislaçãotrabalhista–comlimitaçãodajornadadetrabalho–,subsídioparaaatividadeprodutiva,perdãodedívidaspú-blicas, dentre outras medidas, no afã de reaquecer a economia e realinhar a relação capital-trabalho. Comentando as ações políticas empreendidas pelo Presidente Roosevelt,atravésdanovapolítica,JoséJobsonArrudafazaseguinteexposição:

tratou-se de manter o nível dos preços dos produtos. Para tanto foi preciso impedir, na medida do possível, o aumento descontrolado da produção em certos setores onde tinha havido grandes exce-dentes–aagricultura,opetróleo,ocarvão–cujospreçosforamfixados pelo governo.Aomesmo tempo o governo iniciou umapolíticadeempréstimosaosfazendeirosendividados,cujasterrastinham sido hipotecadas e se achavam abandonadas [...] Foi criado umórgãogovernamentalcujafunçãoeraadecontrolarosistemadecréditonopaís.Esseórgãocontrolavaosempréstimosfederaise instituições públicas ou particulares, expandindo ou diminuindo ocréditonopaís,segundoasnecessidades.Ossaláriosdosoperá-rios foram aumentados, elevando seu poder aquisitivo. [...] Foram fixadossaláriosmínimosedeterminadososhoráriosmáximosdetrabalhodiário.Aboliu-setotalmenteotrabalhodascrianças;lega-lizaram-se,pelaprimeiraveznahistóriadosEstadosUnidos,asor-ganizaçõessindicais,queficaramincumbidasdenegociaroscon-tratoscoletivosdetrabalho.Ampliou-seosistemadeprevidênciasocial, passando a ser responsabilidade do governo o bem-estar dos trabalhadoresemcasodeinvalidez,develhiceemesmodedesem-prego.Oproblemadodesempregofoiatenuadopelaintensificaçãodas obras públicas, assim como pela criação de grandes institui-ções governamentais, que absorveram grande parte da mão-de-o-bra ociosa. Muitas novas residências foram construídas com ajuda governamental. O governo deu garantias aos investidores, criou um fundoparagarantirosdepósitospopularesnosbancos,quefica-riam a salvo de possíveis falências. Foi fundado um banco especial-menteparafinanciarasexportaçõescomafaculdadedeconcedercréditosapaísesestrangeiros.AindústriadeenergiaelétricapassouasermaiscontroladapeloEstado.[...]Foramampliadasasfontesdeenergiahidrelétricas(ARRUDA,1974,p.321-322).

Essas medidas tomadas nos EUA e na Alemanha foram, três anos depois, racionalizadas por John Maynard Keynes, criador do keynesia-

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nismo,quetratoudedotaressapolíticadesólidaarmaçãocientífica,afimdeestruturarasbasesdoWelfare State, constituindo-se, assim, em umadasmaisinfluentesbasesteóricasdaeconomianoséculoXX.Se-gundoKeynes,

ComooEstadoestáemcondiçõesdepodercalcularaeficiênciamarginaldosbensdecapitalnolongoprazoecombasenosinte-resses gerais da comunidade, espero vê-lo assumir uma responsa-bilidadecadavezmaiornaorganizaçãodiretados investimentos(KEYNES,2012,p.147).

AintervençãodoEstadonaatividadeeconômicaeapromoçãode ações afirmativas serviram, segundoYaraGurgel, como elementosdeproteçãoàs classes sociaismaisvulneráveis, alémde instrumentosde propagação da igualdade material, a partir da construção de um novo marco regulatório, alicerçado na dignidade da pessoa humana. Nessesentido, assevera que

oEstadoSocialdeDireito,EstadodeBem-EstarSocial,Estado--Providência,EstadodeDireitoMaterialouWelfare State,traduzi-donaintervençãonasatividadeseconômicas,naimplantaçãoenaefetividadedeprestaçõespositivas-DireitosSociais-,nointuitodeminimizar asdiferenças sociais, imbuídodoPrincípiodaSo-lidariedadee traduzidonapromoçãodaassistênciaeproteçãoàsclasses menos favorecidas, representou a busca pela justiça social, realizadapormeiodaigualdadematerial,essencialparaodiminuiras desigualdades, sem perder de vista a preservação e a efetividade dasliberdadespúblicas(GURGEL,2010,p.43).

Consolidada, portanto, a ideia de igualdade material, como exi-gência de proteção à dignidade da pessoa humana, coube às democracias ocidentais dopós-guerra abandonarema condiçãodeEstadoneutro ede atuação mínima, preponderante no modelo liberal (prestações negati-vas),paraassumiremopapeldeprotagonistasnapromoçãodosDireitosEconômicos eSociais.Entra em cena, nesse prisma, oEstado proati-vo,fiscalizadoreimplementadordasliberdadespúblicas–fortalece-sea base do dirigismo contratual em detrimento do pacta sunt servanda.AaçãopositivadoEstadopassaaseroparadigmaconstitucional,amolamestradaefetividadedosDireitosFundamentais,agarantiadaconsagra-

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çãodefinitivadaigualdadesubstancial. Essaatuaçãopositivaestatal,forjadanapromoçãodeaçõesafir-mativas, tem como objeto o ser humano, o homem em seus variados aspectossociais,ecomoobjetivoamaterializaçãodosDireitosFunda-mentais e a proteção absoluta da dignidade da pessoa humana. ParaAlexy,“direitosaaçõespositivasdoEstadoimpõemaoEs-tado, em certa medida, a persecução de algum objetivo”, que, segundo alerta,estãoassimdivididos:“direitosaproteção;direitosaorganiza-çãoeprocedimento;edireitosaprestaçõesemsentidoestrito”(ALEXY,2016,p.444). Assim,passouoEstadoaassumirpro-ativamenteaagendasocialdepromoçãodaigualdade,buscandoidentificarosgrupossociaismaisvulneráveis e, conseguintemente, pontuar as ações necessárias para ga-rantir a esses grupos a igualdade de possibilidades, de competição e de disputapeloacessoàriquezadanação.OEstadodeBem-EstarSocialnão garante o sucesso do cidadão ao progresso social, já que sua ativida-de-fimnãoéoresultado,antesassegurarquetodosestarãoemigualdadedecondiçõesparaalcançaremodesenvolvimentosocial,familiar,profis-sional e pessoal. É a justiça social, diante da busca eterna pela igualdade substan-cial,emverdade,distributivaecompensatória,namedidaemquevisaredistribuirariquezageradaporcadaEstadoentretodososgruposso-ciais,aotempoemquebuscacompensarpelosprejuízossociaisdopas-sado aquelas classes menos favorecidas. Importanteaindarealçar,comoâncoradaigualdadematerial,oprincípiodaNão-Discriminação,caracterizadoporumaestruturalegis-lativaqueimponhaotratamentoisonômicoatodasaspessoas,aotempoem que empresta acolhimento diferenciado àquelas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade social. NessesentidoéoensinamentodeYaraGurgel,paraquem

atécnicadenãodiscriminaçãovincula-seaoaparatolegaldetrata-mentoisonômico.Trataratodosigualmente,semdistinção,pres-supõe, à primeira vista, não realizar qualquer comparação entrepessoas.Emsegundoplano,nãodiscriminaçãosetraduzemofere-cer tratamento especial às pessoas pertencentes aos grupos vulne-ráveis,buscandocapacitá-lasaoexercíciodosDireitosHumanos

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e Direitos Fundamentais, sob o aparato da igualdade substan-tancial(GURGEL,2010,p.49).

Aconstrução,portanto,dadignidadedapessoahumana, erigi-da,primacialmente,emníveldenorma-princípiodeDireitoInternacio-nale,posteriormente,deDireitoConstitucional,émáximainflexívelnatradição dos sistemas jurídicos ocidentais, sendo a fonte de irradiação ético-valorativadoEstadoDemocráticodeDireitoearazãoprimeiradabuscaconstantepelaigualdadesubstancialnoDireitocontemporâneo. Nessesentido,aHistóriatemdemonstradoqueessesavançosci-vilizatórios sãoconquistas irrefragáveisda espéciehumana, radicadosnum plexo de valores morais, políticos e jurídicos tão inquebrantável que nãoadmiteretrocessosocial,adespeitoderevezesquealgumasnações,vezporoutra,possamenfrentar,duranteaafloraçãodesuaexperiênciaconstitucional. Todavia, serão sempre intercursos efêmeros, que acabam por fortalecerem a resiliência social e as bases dessa equivalência comu-nitária.

CONCLUSÃO Odesafiodopresenteestudo,desdeosseusprolegômenos,foiodeproporcionarumdebate,reflexivo,sobreaevoluçãopolítica,socialejurídicadassociedadeshumanas,comvistasaidentificarospadrõesso-ciaishegemônicosemcadaetapaevolutivaeentenderaconstruçãodosalicercesquepermitiramedificaroatualmodelodeorganizaçãoconsti-tucional. Ajustificativaparasebuscaressacompreensãoéadealcançaraimportância, para os povos, da dignidade da pessoa humana e da igualda-de substancial, como evolução das experiências vividas e instrumentos de superação da opressão social. Com efeito, a historicidade das relações sociais demonstrou a capacidadenefastadesubjugaçãoqueohomemimpôsasimesmo,emespecialnasúltimasfasesdabarbárieeemtodooperíododacivilização. As faces do poder, seja na antiguidade clássica, na IdadeMé-dia ou nos movimentos políticos modernos, descortinaram a condição sub-humana pela qual o homem traspassou os quatro últimos milênios,

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assimcomoconsolidaramumpadrãodedesenvolvimentocivilizatóriobaseado na luta entre classes sociais, ou seja, um modelo em que o opres-sor e o oprimido são fundamentos estruturantes da sociedade. Essarelação,baseadanacolisãodeclasses,forjouhábitossociaisquetatuaramcondutasdiscriminatóriasepreconceituosasnocursodosacontecimentos,produzindo,comoefeitodireto,ummodelodesegre-gaçãobiológicaeculturalcontradeterminadosgrupossociais,que,porseremmaisvulneráveiseconômica,políticaesocialmente,suportaramas piores condições de existência. Os retalhos arranjados peloEstadoContemporâneo, coma to-madadopoderpelaburguesianoséculoXVIII,sófizeramagravaresseestado de coisas, mormente com a formatação da igualdade jurídica, que, alémdecriarumafalsasensaçãodeproteçãoporpartedoEstado,acabouporimporàsjásofridasclassesmenosfavorecidaspesadoônussocial,dado o grau de indignidade ao qual foram submetidas. AassunçãodoWelfare Stateirradioufeixesdeluzesnaescuri-dãodoEstadoLiberal,trazendoparaaordemdodiaadiscursãosobreadignidadedapessoahumanaeamaterializaçãodaigualdadesubstan-cial.Asubstituiçãodopositivismoclássicoporumanovaordemjurídica,debaseético-valorativa,abalizadanapromoçãodosDireitosHumanoscomo bem absoluto de todos os homens, permitiu a abertura do ciclo históricodadignidadedapessoahumana. Atransmudaçãodessanorma-princípiodoDireitoInternacionalparaoDireitoConstitucionalprovocounovarevoluçãodeconceitoseparadigmasnoEstadodeDireito, impondoàsdemocraciasocidentais,sobretudonopós-guerra,apromoçãodosDireitosFundamentaisdese-gunda dimensão (status positivus) como bem material e universal, ga-rantidaatravésdepolíticaspúblicasqueassegurematodosaigualdadesubstancial. Porfim,éadignidadedapessoahumana,comonorma-raizdeondepromanaosprincípioséticosdosistemajurídicoocidental,ogran-dealicercedademocraciacontemporâneaea fontedeondeoDireitoInternacionaleoNacionalencontramlegitimidadeeracionalidadeparaassuasações,sejanocampopolíticooujurídico.Dadignidadedapessoahumana raia todo o manancial valorativo da cultura dos povos democrá-ticos,alémdeseracélulamater da igualdade substancial e da não discri-minação, não admitindo, sob qualquer diâmetro, retrocessos sociais.

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maJoRação Da ReQuisição De peQueNo valoR Como alteRNativa À moRosiDaDe Da pRestação JuRisDiCioNal: eFeitos Da lei estaDual Nº 10.166/2017 Na 2ª vaRa Da FazeNDa pÚBliCa Da ComaRCa De mossoRÓ-RN paRa os CReDoRes maioRes De 60 aNos

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Hildeglênia Thaísa Ferreira de Mendonça¹Inessa da Mota Linhares Vasconcelos2

1 Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).Email: [email protected] Doutora em Direito (UNIFOR). Mestre em Direito (UFC). Professora Adjunto IV da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Auditora Fiscal da Prefeitura de Mossoró. E-mail: [email protected]

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Resumo: O presente estudo busca analisar em que medida a majoração daRequisiçãodePequenoValor (RPV), impostapelaLeiEstadualnº10.166/2017,vemcontribuindoparadiminuiramorosidadejurisdicio-nal, em especial a postergação na satisfação do direito do credor, no âm-bitoda2ªVaradaFazendaPúblicadaComarcadeMossoró,RioGrandedoNorte.Ointeresseempesquisarsobreatemáticaemanáliseéfrutodaexperiênciaadquiridanoestágiodesenvolvidoháquase2anosna2ªVaradaFazendadaComarcadeMossoró/RN.Diantedisso,inicialmen-te,procurou-secompreenderosprincipaisaspectosdasRequisiçõesdePequenoValoreinvestigarquaisasmudançastrazidaspelaLeiEstadualnº10.166/2017.Emseguida,identificarquaisosimpactosquantitativosda majoração imposta pela referida lei na satisfação do direito do credor maiordesessentaanos,apartirdosprocessosda2ªVaradaFazendaPú-blicadeMossoró/RN.Apesquisapartiudeumaabordagemquali-quan-titativa,utilizando-sederevisõesbibliográficas,comanálisedadoutrina

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e jurisprudência brasileiras referentes ao tema, em especial, no âmbito doEstadodoRioGrandedoNorteesualegislaçãoespecíficasobreopagamentodosdébitosfazendários.

Palavras-chave: FazendaPública.RequisiçãodePequenoValor.Majo-ração.Idosos.

Abstract: Thepresentstudyseekstoanalyzetheextenttowhichtheincre-aseinSmallClaims(RPV),imposedbyStateLawnumber10.166/2017,has contributed to reduce delinquency in court, in particular delaying the satisfactionofthecreditor’sright,withinthescopeof2ndLawCourtoftheDistrictofMossoró,RioGrandedoNorte.Theinterestinresearchonthe subject under analysis is the result of the experience acquired in the stagedevelopedalmost2yearsagointhe2ndEstateCourtoftheComar-caofMossoró/RN.Therefore,itwasinitiallysoughttounderstandthemainaspectsofSmallValueRequisitionsandtoinvestigatethechangesbroughtbyStateLawnumber10.166/2017.Next,identifythequantita-tive impacts of the increase imposed by said law on the satisfaction of the right of the creditor over sixty years, from the processes of the 2nd RodofthePublicTreasuryofMossoró/RN.Theresearchwasbasedona qualitative and quantitative approach, using bibliographical reviews, withananalysisoftheBraziliandoctrineandjurisprudencereferringtothesubject,especiallyinthescopeoftheStateofRioGrandedoNorteanditsspecificlegislationonthepaymentofthelandeddebts.

Keywords: Public Fund. Request for Small Value. Majority. Se-niors.

INTRODUÇÃO

AexecuçãocontraaFazendaPública,alémdematériaproces-sual, tem alicerce no princípio da supremacia do interesse público, em virtude da proteção ao direito da coletividade. Com isso, as execuções contra as pessoas jurídicas de direito público têmprocedimentospró-prios,comoaadaptaçãodopagamentodosdébitosfazendáriosàordem

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cronológicadeprecatórioeàobrigaçãodepequenovalor. Comotrânsitoemjulgadodasdecisões,ojuizdeprimeirograuencaminhaoofíciorequisitórioao tribunalde justiçacompetenteparaquesejamtomadasasmedidasadministrativascabíveiseocréditoso-mado ao orçamento público subsequente para que assim sejam satis-feitos.Noentanto,oscréditossãosubmetidosasucessivasmoratórias,comprometendoamoralidadedeAdministraçãoPública. Em face do inadimplemento fazendário, dispensou-se a requi-sição ao presidente do tribunal competente, inaugurando o pagamento dosdébitosde“pequenovalor”.Assim,asobrigaçõesenquadradascomoRPV passaram a ser satisfeitas pelo juízo de primeiro grau, a fim desuplantarocaráterdanosodonãopagamentodeprecatórioeresgataraefetividade da tutela jurisdicional. Oobjetivocentraldestetrabalhoéanalisaremquemedidaama-joraçãodaRequisiçãodePequenoValor,impostapelaLeiEstadualnº10.166/2017,vemcontribuindoparadiminuiramorosidadejurisdicio-nal, em especial a postergação na satisfação do direito do credor, no âm-bitoda2ªVaradaFazendaPúblicadaComarcadeMossoró,RioGrandedo Norte. Para isso, mostra-se relevante compreender os principais aspec-tosdasRequisiçõesdePequenoValore investigarquaisasmudançastrazidaspelaLeiEstadualnº10.166/2017,bemcomoquaisosimpactosquantitativos da majoração imposta pela referida lei na satisfação do di-reitodocredor,apartirdosprocessosda2ªVaradaFazendaPúblicadeMossoró/RN. Assim,atravésdaexperiênciaadquiridapormeiodoestágionãoobrigatóriodesenvolvidoháquase2anosna2ªVaradaFazendadaCo-marcadeMossoró/RN,buscou-seinvestigarseopagamentodosdébitosfazendários, atravésdaRequisiçãodePequenoValor, vemcumprindosua proposta de celeridade e simplicidade, a partir dos resultados obti-dosnapesquisa,cujaobservaçãoidentificaráseháimpactosnasatisfa-çãododireitodocredorcomamajoraçãopropostapelaLeiestadualnº10.166/2017.Ademais,delimitou-seoestudodareferidamajoraçãonoscréditosdebeneficiárioscommaisde60(sessenta)anos. A fim de alcançar os objetivos, o presente estudo partiu de uma abordagem quali-quantitativa, utilizando-se de revisões bibliográficas, com análise na doutrina e jurisprudência brasileiras referentes ao tema,

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emespecial,noâmbitodoEstadodoRioGrandedoNorteesualegisla-çãoespecíficasobreopagamentodosdébitosfazendários,comoaPorta-rianº638/2017doTJRN,eaLeiEstadualnº10.166/2017,umavezquedisciplinamaexpediçãoeoprocessamentodasRPV’s.

EXECUÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA OtermoFazendaPúblicafazreferênciaàAdministraçãoPública,“comoaárea[...]quetratadagestãodasfinanças,bemcomodafixaçãoeimplementaçãodepolíticaseconômicas”(CUNHA,2017,p.1),inti-mamente conexo com as ações desenvolvidas pelo Governo. Nasearaprocessual,adotou-seumsentidolato,oqualvisacaracterizaraatuaçãodoEstadoemJuízo,comodemandanteoudemandado,pormeiodas pessoas jurídicas de direito público, valendo-se de prerrogativas e privilégios:

AAdministraçãoPública,quandoemJuízoporqualquerdesuasEntidadesEstatais,porsuasAutarquias,porsuasFun-daçõesPúblicasouporseusórgãosquetenhamcapacidadeprocessual,recebeadesignaçãodeFazendaPública,porqueseuerárioéquesuportaosencargospatrimoniaisdademan-da.(MEIRELLES,2016,p.867).

Porconseguinte,atravésdoJudiciário,busca-seatutelaeprote-çãoàspartesemlitígio,emque,propiciadaapacificaçãodacontrovér-sia, deve ser garantida a satisfação da tutela jurisdicional conferida na sentençacondenatória,dentreoutros,odireitodocredorfrenteaobriga-ção do devedor. OEstadopodeatuaremjuízotantonopoloativoquantonopolopassivo.Naposiçãodecredor,sãoutilizadososditamesprevistosnaLeinº.6.830/1980,istoé,aLeidasExecuçõesFiscais.Poroutrolado,quan-dodevedor,regula-sepelaexecuçãodelineadapelosartigos534e535doCódigodeProcessoCivilde2015. Assim,quandoaFazendaPúblicaseencontrarnopolopassivodeumademanda,aexecuçãotemconfiguraçõespróprias,cujaexpropriaçãode bens não tem aplicação, visto que os bens públicos são indisponíveis,

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2 “Não se realiza atividade típica de execução forçada, diante da impenhorabilidade dos bens pertencentes à União, Estados e Municípios. Não se procede, pois, à expropriação (via penhora e arrematação) ou transferência forçada de bens.” (THEDORO JUNIOR, 2016, p. 122)

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em geral revestidos dos atributos da impenhorabilidade e limitações à alienabilidade². Emvirtudedospagamentos feitospelaFazendaPúblicaseremdespendidos pelo Erário, são impostas adequações procedimentais àsexecuçõesajuizadascontraaspessoasjurídicasdedireitopúblico,oquenão se observa contra as empresas públicas e sociedades de economia mista,tendoemvistaanaturezadepessoasjurídicasdedireitoprivado.ComoconsequênciadapresençadaFazendaPúblicaemJuízo,tem-seaadaptaçãoàmodalidadedoPrecatórioouRequisiçãodePequenoValor(RPV),observando,ainda,asprerrogativasprocessuaiseosprazosdife-renciados,intensificandoaburocratização. Essaespecialidadetemrespaldonoprincípiodasupremaciadointeresse público, delimitando o papel do administrador por meio da lei, cujaposiçãohierarquizadadeveatenderemprimaziaobemcomum,emsalvaguarda ao direito da coletividade.Nessesentido,háumacompatibilizaçãocomoprincípiodaproporciona-lidadeecomoprincípiodacontinuidadedosserviçospúblicos,umavezque os bens públicos são preservados para a satisfação das necessidades coletivasemelhorrealizaçãodointeressecomum(SANTANA;ALVES,2015). Comoexposto anteriormente, sendo aFazendaPública conde-nada judicialmente ao pagamento de quantia certa, a execução reger-se--ápelodispostonosartigos534e535doCódigodeProcessoCivilde2015, mediante pedido de cumprimento de sentença, a ser requerido pelo exequente.

NocumprimentodesentençaqueimpuseràFazendaPúblicao dever de pagar quantia certa, o exequente apresentará de-monstrativodiscriminadoeatualizadodocrédito.(Art.534,caput, CPC)

Não obstante, conforme o caput do artigo 100 da Constituição da

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RepúblicaFederativadoBrasil(CRFB),“ospagamentosdevidospelasFazendasPúblicasFederal,Estaduais,DistritaleMunicipais,emvirtudedesentença judiciária, far-se-ãoexclusivamentenaordemcronológicade apresentação dos precatórios[...]”. Por isso, os débitos fazendáriosfundados em título judicial ou extrajudicial, sujeitam-se à disciplina do precatório.

ORDEM CRONOLÓGICA DE APRESENTAÇÃO DOS PRECATÓRIOS A primeira Constituição a tratar sobre os precatórios foi a de1934, limitandoaaplicaçãodo institutoparaaFazendaPúblicaFede-ral,unificandoa“precatória”ousimplesrequisiçãoparaousodotermoprecatório. Instalou-se,assim,pormeiodadisciplinaconstitucional, aordemdeapresentaçãodosprecatórios. Comoformadegarantireficáciaàcoisajulgada,estabeleceu-seaordemcronológicadeprecatóriosemrelaçãoaosdébitosdaspessoasjurídicas de direito público, “garantindo, com isto, uma igualdade quanto àsatisfaçãodoscréditos”(TEIXEIRAFILHO,1992,p.200).SegundoLairdaSilvaLoureiroFilhoapudGirardi,oprecatório:

ÉoatopeloqualojuizrequisitaaoPresidentedoTribunalcompetenteaordemdepagamentoàFazendaPública,paraefetuá-lonoprocessoexecutivo,ouaindaatécnicabrasileiraquepermiteaexecuçãocontraaFazendaPúblicaporvisarcompeliroEstadodevedoraincluirnoseuorçamentoaver-banecessáriaaopagamentodosdébitosdecorrentesdedeci-sãojudicial(2013p.256).

Determinadaaexpediçãodoprecatóriopelo juízo,deverãoserobservadasasnormascontidasnoartigo100daCRFB,emqueestandoinstruídoeassinadopelojuiz,deveráserencaminhadoaopresidentedorespectivo tribunal competente. Atocontínuo, após recebidopelo juízode segundograu,o re-quisitórioéregistrado,autuadoedistribuído,doqualasautoridadesad-ministrativas são comunicadas para que sejam tomadas as providências cabíveisdeaberturadocrédito,afimdeprocederaopagamentonoexer-cíciofinanceirosubsequente.

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Emregra,paraqueissoocorra,oInstrumentoRequisitóriodeveserinscritoatéodia1ºdejulho,paraquesejaomontantedevidoinseridonoorçamentoposteriormenteaprovado,fazendo-seopagamentoatéofinaldoexercíciofinanceiroseguinte,quandoocréditoteráoseuvalorcorrigidomonetariamente,comoversao§5ºartigo100daCRFB. DeacordocomaSúmula311doSuperiorTribunaldeJustiça,“osatos do presidente do tribunal que disponham sobre processamento e pa-gamentodeprecatórionãotêmcaráterjurisdicional”.Emrazãodisso,edevido ao caráter meramente administrativo da atuação do presidente do tribunal, caso existampendênciasouomissõesno requisitório,deveráserdeterminadooretornodosautosaojuízodaexecuçãocasohajaqual-quer inexatidão a ser resolvida. Valesalientarquetambémseencontradefinidonoartigo100daCRFBaordemdepreferênciaparaopagamentodoprecatório:

Art.100§1ºOsdébitosdenaturezaalimentíciacompreen-dem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proven-tos, pensões e suas complementações, benefícios previden-ciárioseindenizaçõespormorteouporinvalidez,fundadasem responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todososdemaisdébitos,excetosobreaquelesreferidosno§2ºdesteartigo.

Talpreferênciasofreexceçãoquandoosbeneficiáriosforemos

referidosno§2ºdasupracitadanorma,ouseja,credoresquetenham60(sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou sejam pessoascomdeficiência,nadatadaexpediçãodoprecatório. Não obstante, a situação da dívida pública é desafiadora, umavezqueosprecatóriosseencontramquaseimpagáveis,emdesatençãoaefetividadeprocessual(GIRARDI,2013),comosepodeobservarnassucessivasmoratórias atravésdasEmendasprotelatórias, ampliandooprazoparaototalpagamentodorequisitórioapóssuainserçãonoorça-mento Apesarde reconhecidoodireitosubjetivoeconsagradocomotrânsito em julgado, contudo, “o procedimento estabelecido em lei para fazervalerocréditoassimconstituídoédespidodasgarantiasconstitu-

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cionaisdeefetividadeeatéde tempestividade[...]” (MACEDO;CAR-VALHO,2014,p.31). Nessesentido,oprincípiodaduraçãorazoáveldoprocessoévio-ladoatravésdanãosatisfaçãodatutelajurisdicional,emqueosproces-sos terminam, mas as obrigações não são cumpridas:

Não obstante a morosidade no trâmite processual das deman-dascontraaFazendaPública,ocredoraindaficasujeitoaoutra espécie de obstaculização à satisfação do seu direitojudicialmente reconhecido, estendendo ainda mais a discus-são judicial, agoraquantoaocrédito/débito,oque importaemviolação ao princípio da duração razoável do processo(GIRARDI,2013,p.19).

Ainda,comose“nãobastasseademorano trâmiteprocessual,[...]setemademoradeoEstadoterorçamentoparafazerfaceaopa-gamentodoprecatório”(COUTINHO,2017,p.68),oqueseconfiguracomo um desrespeito à dignidade da pessoa humana, visto que, em geral, osprecatóriossãodenaturezaalimentar.Dessa forma, comoalternativaàmorosidade fazendária, instituiu-se amodalidadedePequenoValor,cujasatisfaçãododireitodocredoréen-treguepelopróprio juízodaexecução,mediantealvaráesequestrodevalores, quando cabível, dispensando a requisição ao presidente do res-pectivo tribunal.

REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR: ALTERNATIVA FRENTE À MOROSIDADE FAZENDÁRIA Emrazãodagarantiadoprocessoeatençãoasegurançajurídica,“doprincípiodoEstadodoDireitodeduz-se,semdúvida,aexigênciadeumprocedimentojustoeadequadodeacessoaodireitoederealizaçãododireito”(CANOTILHO,2013,p.274). Assim, como consequência do princípio fundamental à pres-tação jurisdicional, é dever doEstado a ediçãodeprocedimentosquetenham como objetivo a efetiva realização dos direitos fundamentais,proporcionandoàspartesumadevidaesatisfatóriaexecuçãoda tutela

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reconhecida:

Destemodo,tantoojuizquantoolegisladorestãoobrigadosaaplicar/criaratécnicaprocessualapropriadaacadadireitomaterial tutelado (aqui se percebe uma reaproximação do di-reito processual ao material), sempre almejando a efetividade da prestação jurisdicional, daí se inferindo que o acesso à Justiça não pode mais ser visto apenas como o direito à re-soluçãodalide[...](MACEDO;CARVALHO,2014,p.27).

Com isso, viu-se que a falta de perspectiva na liquidação dos débitospelaFazendaPública,alimentadapelassucessivasmoratóriasepostergação dos pagamentos, corrompiam a entrega da satisfação da tu-telaaocredor/vencedor,embenefíciodemausadministradores. Cumpreverificarqueasistemáticadoprecatórioéumprocedi-mento moroso e danoso ao direito do credor, na tentativa de tutelar os interesses do devedor em ofensa ao direito líquido e certo do particular. Comoalternativa, buscou-se institucionalizar aRPVcomoum instru-mento mais ágil, em atenção aos direitos humanos dos credores. Dessaforma,comoobjetivodeconferirceleridadeàefetividadedasexecuçõescontraaFazendaPública,apartirdaalteraçãopromovidanoartigo100daCRFB,pormeiodaEmendaConstitucionalnº20,de15dedezembrode1998,dispensou-seaexpediçãodoprecatório,inaugu-rando a modalidade de Pequeno Valor.Estabeleceu-seaRequisiçãodePequenoValor,afastandoanecessidadedeinclusãodocréditoemorçamento,bemcomoarequisiçãoaotribu-nalcompetente.Comisso,opagamentorealizar-se-ádiretamentepelojuízodaexecução(deprimeirograu),comoalternativaàproblemáticadopagamentodosprecatórioseresgatedamoralidadedaAdministraçãoPública. OportunodestacarqueoobjetivodaRPVcoadunacomosdi-tamesprocessuaisdodevidoprocesso legaledaefetividade,afimdepromover“[...]emprazorazoávelasoluçãointegraldomérito,incluídaa atividade satisfativa”, conformeart. 4º doCPC, caracterizadocomodireito das partes. Nesse diapasão, tem-se como de “Pequeno Valor” a requisição cujopagamentodar-se-áematé60diascontadosdaintimaçãodoentedevedor,nosmoldesdoart.535§3º,incisoII,doCPC:

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II - por ordemdo juiz, dirigida à autoridade na pessoa dequem o ente público foi citado para o processo, o pagamento de obrigação de pequeno valor será realizado no prazo de2 (dois) meses contado da entrega da requisição, mediante depósitonaagênciadebancooficialmaispróximadaresi-dência do exequente.

Decorridooaludidoprazosemodevidopagamento,restaráojuiz

autorizadoadeterminarosequestrodosvaloresnecessáriosaoadimple-mentododébitodaRequisiçãodePequenoValor,dispensadaaoitivadaFazendaPúblicaecomincidênciadejurosmoratórios. Parafinsdeenquadramentonamodalidade,ovalormínimodaRPVdeveser“igualaovalordomaiorbenefíciodoregimegeraldepre-vidênciasocial”,conformeestabelecidopelo§4ºdoartigo100daCRFB.Ademais,aindaemobservânciaao referido§4º,“poderãoserfixados,por leis próprias, valoresdistintos às entidadesdedireitopúblico, se-gundoasdiferentescapacidadeseconômicas[...]”,porém,enquantonãofixadoolimite,adotar-se-áasregrascontidasnosAtosdasDisposiçõesConstitucionaisTransitórias:

[...] Serão considerados de pequeno valor, até que se dê apublicaçãooficialdasrespectivasleisdefinidoraspelosentesdaFederação,observadoodispostono§4ºdoart.100daConstituiçãoFederal,osdébitosouobrigaçõesconsignadosemprecatóriojudiciário,quetenhamvalorigualouinferiora:I-quarentasalários-mínimos,peranteaFazendadosEsta-dosedoDistritoFederal;II-trintasalários-mínimos,peranteaFazendadosMunicípios(Art.87dosADCT).

TalfixaçãopodeserencontradaemespecialnaLeiestadualnº10.166de2017,doEstadodoRioGrandedoNorte,quetemcomolimitepara modalidade de Pequeno Valor 20 (vinte) salários-mínimos, quando odevedorforaFazendadoEstadodoRioGrandedoNorte,suasAutar-quiasouFundações,ou60(sessenta)salários-mínimosparaoscredoresmaioresde60 (sessenta), cuja especificidade será abordadacommaisdetalhes adiante.

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REFLEXOS NA SATISFAÇÃO DO DIREITO DO CREDOR COM MAIS DE 60 (SESSENTA) ANOS De forma inovadora, a CRFB de 1988 dedicou-se a tratar emseu texto sobre a proteção às pessoas idosas, em defesa da dignidade, do bem-estar,dodireitoàvidaeamparoàvelhice,vistoque“atéentão,oque existia no país eram medidas e ações pontuais, destinadas aos ido-sosmaiscarentes.Asintervençõesrealizadastinhamcunhomeramenteassistencial,conferindocaráterdefavorenãodedireito.”(SILVAapud SOUZA,2016,p.29). NostermosdaPolíticaNacionaldoIdoso(Leinº8.842,de4dejaneirode1994)edoEstatutodoIdoso(Leinº10.741,de1ºdeoutubrode2003),intitula-secomopessoaidosaaquelaquepossuiidadeigualousuperiora60(sessenta)anos. No entanto, “a idade e o processo de envelhecimento possuem outrasdimensõesesignificadosqueextrapolamasdimensõesdaidadecronológica”(SCHNEIDER;IRIGARAY,2008,p.586),éumproces-so natural e particular de cada indivíduo, agregado com o declínio das funçõesfísicas,emocionaisefuncionais,influenciadopelosmomentoshistóricoseculturaisvivenciados. Diantedisso,ecombasenoartigo230daCRFB,aproteçãoàpessoaidosaédeverdoEstado,dafamíliaedasociedade,cuja“velhicedignaéumdireitohumanofundamental,porqueexpressãododireitoàvidacomdignidade”(ALCÂNTARA,s/a,p.359):

A implantaçãodasPolíticasdo Idosodeve sedarporações integradas e parcerias entre o poder público e a so-ciedadecivil.Apolíticaregecomoprincípioafamília,aso-ciedadeeoEstadocomodeverdeasseguraraoidoso,todosos direitos de cidadania, defendendo sua dignidade, seu bem estar,direitoàvidaeparticipaçãonacomunidade(LOPES,2013,p.40).

Ematençãoàvulnerabilidadedapessoacommaisde60 (ses-

senta)anoseembuscadesuaproteçãosocial,estabeleceu-se,através

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daLeiestadualnº10.166/2017,amajoraçãodotetodasRequisiçõesdePequenoValor, emdesfavordoEstadodoRioGrandedoNorte, suasautarquiasefundaçõespúblicas,quandoosbeneficiáriosforempessoasdaquele segmento.

EFEITOS DA LEI ESTADUAL Nº 10.166/2017 NA 2ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE MOSSORÓ/RN NoâmbitodoEstadodoRioGrandedoNorte,estãodefinidosaexpediçãoeoprocessamentodasRPVspormeiodaPortarianº638,de04aabrilde2017,dorespectivoTribunaldeJustiça,emqueosrequisi-tóriostramitarãonosautosdosprocessosprincipais,umavezqueserãopagospelojuízode1ºgrau,conformeseuartigo1º:

Art.1º.Aexpediçãodasrequisiçõesdepagamentodasobri-gaçõesdepequenovalor(RPV´s)contraasFazendasPúbli-casFederal(competênciaoriginária),EstadualeMunicipalédecompetênciadoprópriojuízodaexecução/cumprimentode sentença, com o processamento nos autos principais, in-dependentemente de remessa a esta Presidência ou Tribunal.

NostermosdaLeiestadualnº10.166,defevereirode2017,emseuartigo1º, tem-secomolimite,parafinsdeobrigaçõesdepequenovalor,“aserempagasindependentementedeprecatóriopelaFazendadoEstadodoRioGrandedoNorte,suasAutarquiaseFundações,[...]ova-lor correspondente a vinte (20) salários mínimos”. Ademais,paraasrequisiçõesquetenhamcomobeneficiáriopes-soamaiorde60anosouportadoradedoençagrave,areferidaleiestabe-leceuumlimitemaior,porém,amajoraçãoparaoscredoresportadoresdedoençagravenãoéobjetodestetrabalho:

I–sessenta(60)saláriosmínimosquandoosbeneficiários,na data da ordem da expedição da requisição, contarem mais sessenta(60)anosdeidadeouquesejamportadoresdedoen-çagrave,definidosnaformadalei.

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3 Representada pelo Estado do Rio Grande do Norte, como pessoa jurídica de direito pú-blico interno, suas Autarquias e Fundações Públicas, como a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte ou o Instituto de Previdência dos Servidores do Estado do RN.

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Com isso e em observância aos direitos humanos dos credores, protegeu-se, de forma especial, aqueles que se encontram em condição peculiar de fragilidade e vulnerabilidade, merecedores de cuidados. Subsidiadapeloprincípiodadignidadedapessoahumanaeaten-çãoàreduzidacapacidadelaborativadapessoaidosa,aaludidamajora-çãoconfigura-secomovalorizaçãoepromoçãoaodireitodoidosoeaco-lhimentoàssuasnecessidadesbásicas,cujaproteçãoéumdeversocial. Verifica-se,ainda,comoafirmaçãodoprincípiodaprioridadedoidoso:

Que determina a inserção da pessoa idosa em posição jurí-dica de prioridade em toda e qualquer situação em que este-ja envolvida, tanto no âmbito público quanto no privado. O maisrelevanteéqueocorraasupressãodavulnerabilidade,paraquesejarestabelecidaaigualdadesubstancial(TEIXEI-RA;PENALVAapud BOMTEMPO,2014,p.645).

Nãoobstante,noâmbitodoacessoàjustiça,“éasseguradaprio-ridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atosediligências judiciaisemquefigurecomoparteou intervenientepessoacomidade igualousuperiora60(sessenta)anos,emqualquerinstância”,conformeartigo71doEstatutodoIdoso. Emdecorrência,observa-seorespeitoaumavidadigna,“[...]in-terpretadacomoaquelavoltadaàtotalproteçãodapessoacomofimnãosódetorná-la,masdemantê-ladignagarantindosuaintegridadefísica,psicológicaemoral”(LUCENA,2016,p.6),desdeaconcepçãoatéavelhice. Areferidainterferênciapôdeserobservadaatravésdaanálisede42RPVsexpedidaspela2ªVaradaFazendaPúblicadeMossoró/RN,cujoexecutadoéaFazendaPúblicaEstadual³,dasquais,11sofreramamajoraçãodotetopara60(sessenta)saláriosmínimos,impostapelaLeiestadualnº10.166/2017,emvirtudedeoscredoresserempessoasidosas. Infere-sequeamajoraçãoimpostapelasupracitadaleiestadual

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4 Assim, as políticas públicas estão relacionadas às ações e às estratégias de um governo para intervir na coletividade, por meio da valorização da cidadania e dos direitos civis. 5 Em 2012, a população com 60 anos ou mais era de 25,4 milhões. Os 4,8 milhões de novos idosos em cinco anos correspondem a um crescimento de 18% desse grupo etário, que tem se tornado cada vez mais representativo no Brasil. As mulheres são maioria expressiva nesse grupo, com 16,9 milhões (56% dos idosos), enquanto os homens idosos são 13,3 milhões (44% do grupo).6 Observa-se que “a cidadania se dá pela condição social que confere ao indivíduo, a ca-pacidade de usufruir de direitos que lhes permitem participar da vida política e social da co-munidade pelo qual está inserido”, visto como direito da pessoa idosa (LOPES, 2013, p. 36).

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possibilitouàspessoasidosasogozodasatisfaçãodoseudireito,umavezquesenãohouvesseamajoração,seuscréditosseriamencaminha-dosaordemcronológicadeprecatóriosesubmetidosàsmoratórias,aodescasodaAdministraçãoPúblicaeàescassaperspectivaderecebimen-to dos valores. Taldescasorestacomprovadopela listacronológicadisponibi-lizadapeloTJRNatravésdoDiáriodeJustiçaEletrônico,emmarçodocorrente ano, em que ainda se encontravam pendentes centenas de pro-cessosrelativosaoorçamentode2012,alémde573prioridades,relati-vasaoorçamentodosanosde2013a2018. Dessaforma,comoditoanteriormente,oprecatórioviolaoprin-cípiodaduração razoáveldoprocesso,umavezquenãoéentregueasatisfaçãodatutelajurisdicional,devidoaoinadimplementofazendário,em desrespeito ao direito do credor. Por isso, pode-se considerar ainda a majoração como uma ma-terializaçãodapolíticadeatençãoaoidoso4,combasenoartigo1ºdaPolíticaNacionaldoIdosoque“temporobjetivoassegurarosdireitossociais do idoso, criando condições para promover sua autonomia, inte-gração e participação efetiva na sociedade”. Emvistadisso,ficaemevidênciaaatençãoespecíficaàpopu-lação idosaeapreocupaçãoemviabilizaroexercíciodosdireitosas-segurados e estímulo a participação efetiva e integração na sociedade, alémdepromoverlongevidadecomqualidadedevida,umavezqueamajoraçãopossibilitaaobeneficiáriomaiorde60(sessenta)anosacessoeusufrutodeseucrédito. Nesse sentido, em garantia aos direitos da pessoa idosa e atenção especial a essa parcela crescente da população5, há a promoção de sua independência e “inserção social”, em reconhecimento de sua cidadania6decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

AtravésdoestudosobreaexecuçãocontraaFazendaPúblicaeasistemáticasingulardospagamentosdeseusdébitos,pôde-secompreen-derosprincipaisaspectosdasRequisiçõesdePequenoValoreanalisarquaisasmudançastrazidaspelaLeiEstadualnº10.166/2017. Destarte,partiu-sedaanálisedoconceitodaFazendaPúblicaesuas prerrogativas, especialmente na seara da execução e pagamento dos débitos fazendários, através das considerações doutrinárias e jurispru-denciaisacercadaordemcronológicadeprecatóriosedasrequisiçõesdepequenovalor.Alémdisso,verificou-seasparticularidadesdessatemáti-canoâmbitodoEstadodoRioGrandedoNorte. Observou-sequeporintermédiodamodalidadede“PequenoVa-lor”houveumresgatedamoralidadedaAdministraçãoPública,vilipen-diadapelatolerânciaeimpunidadedoinadimplementodosprecatóriossob o argumento da conveniência administrativa. Por meio da análise dos processos, foi possível perceber a mate-rializaçãodoprincípiodaprioridadedodireitodoidosocomopolíticapública,atravésdamajoraçãoimpostapelaLeiEstadualnº10.166/2017,em atenção à condição de vulnerabilidade da pessoa idosa, garantindo--lhe proteção especial. Dessaforma,compreendeu-seareferidamajoraçãocomoumen-gajamentodosórgãospúblicosparapromoveraintegraçãosocialdoido-so,atravésdavalorizaçãodessesegmento,emrespeitoasuadignidadeecondição de fragilidade, mas a priori o respeito enquanto ser humano. Porfim,édeverdoEstadofornecerosmeiosparaocumprimentoefetivo da satisfação da tutela jurisdicional, em atenção aos direitos fun-damentaisdoscredores/vencedores,aefetividadejurisdicionaleadura-çãorazoáveldoprocesso,conexoscomodireitodeacessoàJustiça.

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Educação e responsabilidade civil do estado ante o novo regime fiscal

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Ianara Maressa Macedo da Rocha¹Rosimeiry Florêncio de Queiroz Rodrigues²

1 Graduanda em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).2 Professora do curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

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Resumo: A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988(CRFB/88) evidenciou a preocupação do constituinte originário emdeterminar a atuação da Administração Pública em prol da JustiçaSocial, colocando a educação no rol dos direitos e garantias fun-damentais. Contudo, desde o ano de 2013, em face de uma crisefiscal e econômica no país, uma série de privações e mudanças afe-tou consideravelmente as contas públicas, desencadeando na pro-posição de medidas que restringem esse direito. Nesse sentido, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 95 de 2016, também chamadadeoNovoRegimeFiscal(NRF),que,emsuma,congelaosgastospú-blicos por vinte exercícios financeiros. Considerando a progre-ssividade do custeio na educação, estabelecida pelo artigo 214, in-cisoVI,daCRFB/88,essetrabalhovisaanalisarasimplicaçõesdaestag-naçãodoorçamentopúblico,sempréviolevantamentodasprioridadesdopovo(art.1º,parágrafoúnico,CRFB/88),sobaóticadaResponsabi-lidade Civil.

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Palavras-chave: ResponsabilidadeCivil.DireitoàEducação.NewTaxRegime.

Abstract: The Federative Constitution of the Brazil’s Republic of 1988(CRFB/88)highlightedtheconcernoftheoriginalconstituentindeter-miningtheperformanceofthePublicAdministrationinfavorofSocialJustice, placing education in the role of fundamental rights and guaran-tees.However,sincetheyear2013,inthefaceofafiscalandeconomiccrisis inthecountry,aseriesofdeprivationsandsignificantlyaffectedpublicaccounts,triggeringmeasurestorestrictthisright.Inthissense,theConstitutionalAmendmentnº95of2016wasapproved,alsocalledtheNewTaxRegime,whereas,insum,freezespublicspendingfortwen-tyfinancialyears.Consideringtheprogressivenatureofeducation,esta-blishedbyarticle214,itemVI,CRFB/88thispaperaimstoanalyzetheimplications of the stagnation of the public budget, without prior survey ofthepeople’spriorities(article1,soleparagraph,CRFB/88),fromthepointofviewofCivilLiability.

Keywords:CivilResponsability.Righttoeducation

INTRODUÇÃO

Oartigo214daConstituiçãodaRepúblicademonstraafortepre-ocupação do constituinte originário em implementar uma educação fun-damentaldequalidadenoBrasil,tambémevidenciadoatravésdoPlanoNacionaldeEducação,quebuscaaefetivaçãododireitosocialàeduca-çãopormeiodemetaseestratégias. Mesmo diante dessa luta por uma educação de qualidade, o CongressoNacional promulgou aEmendaConstitucional nº 95/2016,intitulada de “Novo Regime Fiscal”, com o objetivo de congelar osgastospúblicosporvinteexercíciosfinanceiros.Comisso,amplia-seadificuldadedeimplementaçãododireitoàeducação,quepassaagoraacorrersérioriscodeestagnação,quemsabeatéretrocesso,tendocomoparâmetroumpadrãomínimodequalidadedaeducação(PINTO,etal.,2016).

IANARA MARESSA MACEDO DA ROCHA E ROSIMEIRY FLORÊNCIO DE QUEIROZ RODRIGUES231 |

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Nãosepropõeaquidiscutiranecessidadeounãodoajustefiscal,mas os termos em que ele se deu, sem a necessária consulta à socieda-de.Oqueseconferenarealidadeéqueocongelamentodascontas,naforma em que se encontram os orçamentos, não permite discussões que elenquemasprioridadesdeumEstadoDemocráticodeDireitopautadono princípio da dignidade humana. Essa pesquisa objetiva levantar os efeitos da responsabilidadecivil doEstado frente ao congelamento do teto orçamentário previstopara a educação, considerada sucateada historicamente, bem como novas formasdeinterpretaçãodasnormas,àluzdeumapropostaneoconstitu-cionalista do ordenamento jurídico brasileiro. Busca-se,portanto,umaanálisedaresponsabilidadecivildoEs-tado decorrente das restrições orçamentárias em desfavor da educação anteamanutençãodeoutrosgastospúblicosquenãorefletemdiretamen-te em benefícios para a população. Em face disso, trata-se de uma pesquisa exploratória uma vezque se busca o estudo da Responsabilidade Civil do Estado fren-te aos desdobramentos doNovoRegimeFiscal sobre o setor da edu-cação, analisando e interpretando os dados do Governo Federal e as informações veiculadas pela mídia, com o intuito de levantar ques-tionamentos na relação de causalidade entre a postura estatal e o ensino público,possibilitandoumamaiorfamiliaridadecomoproblema(GIL,2010). Paratanto,foiutilizadoométododialético.Pois,apesquisasepropõe a uma análise crítica do seu objeto de estudo, observando os atos governamentaissobreoNovoRegimeFiscaleseuresultadoparaaedu-cação. É focado na troca de percepções, no caso, da dogmática jurídica com a realidade fática, cujo embate gera outros olhares sobre o corte dos gastosdosetoreducacionaleoquadrodaresponsabilidadedoEstadocomaimplantaçãodoNovoRegime. Quantoàtécnica,essetrabalhoconsistiuempesquisabibliográ-ficaedocumental,tendoemvistaanecessidadedeconsolidaçãodosar-gumentosteóricos,comembasamentonaimportânciadajustiçasocialenaresponsabilidadedoEstado,nãoapenascomumequilíbrioorçamen-tário, mas principalmente com um orçamento que tenha coerência social, tudo isso a partir de uma análise prática com o auxílio de levantamento de dados do Governo.

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O NOVO REGIME FISCAL AEmendaConstitucionalnº95/2016instituiuo“NovoRegimeFiscal”,comoacréscimodosartigos106a114noAtodasDisposiçõesConstitucionaisTransitórias(ADCT).Foimotivadafortementepelacri-sefiscalqueacometeoEstadoBrasileiroafetando-odeformamaisse-veradesde2013(PINTOetal.,2016)epensadocomoumnovocaminhopara o equilíbrio orçamentário das contas públicas. EssaEmenda congela os gastos públicos de todos osPoderes,setores,órgãoseesferaspúblicasporvinteexercíciosfinanceiros,esta-belecendo ainda o limite de despesa primária do exercício seguinte de acordocomoexercícioanteriorcorrigidopeloÍndiceNacionaldePre-çosaoConsumidorAmplo(IPCA).Poroutrolado,areceitaseguiráocrescimentoeconômico,gerandoumsuperávitprimáriocapazdeabatera dívida pública e de enxugar a máquina estatal, tornando o custo com o Governomenoraolongodosanos(LIMA,2017). Nesse contexto, o estabelecimento do limite de despesa sem a alocaçãocentraleeficientedosrecursospúblicosgeraumacorridain-tensa dos variados setores para conseguir a maior quantidade de investi-mentosparasi,oqueacabaporprejudicarsetoresjánãomuitoprioriza-doshistoricamentepeloGoverno(LIMA,2017). Cumpredestacar,atítuloexemplificativo,aMedidaProvisórianº816/2017,quepreviaacriaçãodetrêscargosemcomissãoparacomporosconselhosdesupervisãodosregimesderecuperaçãofiscaldosesta-dosedoDistritoFederal,assimcomooaumentoaprovadode16,38%(dezesseis inteirose trintaeoitodécimosporcento)dosministrosdoSupremoTribunalFederal, alémdo corte tanto na educação comonasaúdeparasubsidiaropreçododieselapósagrevedoscaminhoneirosem maio desse ano. Tais comportamentos, por conseguinte, demonstram uma clara despreocupaçãodoEstadocomosseusdeveresconstitucionaiseasuacontradiçãoentrecriseparao“TerceiroEstado”emproldoluxoda“ve-lhaaristocracia” (BONAVIDES,2012).Por isso,oNovoRegime temsido criticado por diversos elementos que estabelece em seu texto. A vigência é uma delas.O artigo 106 estabelece que aEC nº95/16prevaleceráporvinteexercíciosfinanceiros,podendooChefedo

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ExecutivodaRepública,deacordocomoartigo108doADCT,proporprojeto de lei complementar por mandato presidencial para mudar o ins-tituídopelaemenda,acontardodécimoexercício. Adespesatambémteveumlimiteindividualizadoporpoder,in-dividualizandoaindaalgunsórgãospertencentesacadapoder,conformeartigo107doADCT(CRFB,1988):

Art.107.Ficamestabelecidos,paracadaexercício,limitesindivi-dualizadosparaasdespesasprimárias:I-doPoderExecutivo;II-doSupremoTribunalFederal,doSuperiorTribunaldeJustiça,do Conselho Nacional de Justiça, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal,daJustiçaMilitardaUnião,daJustiçaEleitoraledaJusti-çadoDistritoFederaleTerritórios,noâmbitodoPoderJudiciário;III-doSenadoFederal,daCâmaradosDeputadosedoTribunaldeContasdaUnião,noâmbitodoPoderLegislativo;IV-doMinistérioPúblicodaUniãoedoConselhoNacionaldoMinistérioPúblico;eV-daDefensoriaPúblicadaUnião.§1ºCadaumdoslimitesaqueserefereocaputdesteartigoequi-valerá:I-paraoexercíciode2017,àdespesaprimáriapaganoexercíciode2016,incluídososrestosapagarpagosedemaisoperaçõesqueafetamoresultadoprimário,corrigidaem7,2%(seteinteirosedoisdécimosporcento);eII-paraosexercíciosposteriores,aovalordolimitereferenteaoexercícioimediatamenteanterior,corrigidopelavariaçãodoÍndiceNacionaldePreçosaoConsumidorAmplo-IPCA,publicadopeloInstitutoBrasileirodeGeografiaeEstatística,oudeoutro índicequevierasubstituí-lo,paraoperíododedozemesesencerradoemjunho do exercício anterior a que se refere a lei orçamentária.

NãosevislumbranaredaçãoaindividualizaçãodedespesaparaosTribunaisSuperioresEleitoraledoTrabalho,devendoelesdividiremseuorçamentocomasdemaisramificaçõesdoseusetor.Amesmaindi-vidualizaçãopassouateroMinistérioPúblicodaUnião(MPU),poisde-verá discutir a divisão do limite estabelecido entre os seus componentes, MinistérioPúblicoFederal,MinistérioPúblicodoTrabalhoeMinistérioPúblico Militar. Poroutrolado,oNRFestampouaautonomiadeoutrosentesaoindividualizarseusorçamentos,comooTribunaldeContasdaUniãoe

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aDefensoriaPúblicadaUnião.Épossívelaindaaumentarolimiteesta-belecidodegastosdosórgãosepoderes,nostrêsexercíciosfinanceirossubsequentes,limitadosà0,25%amaisdoorçamentodoPoderExecuti-vo,segundopreconizaos§7ºe§8ºdoartigo107. Essa possibilidade reflete a negociação de barganha feita paraqueaEmendafosseaprovada,alémdeestimularumacorridaentreospoderes para uma alocação de recursos favorável a si. É o que se vê no artigo107§9ºdoADCT,cujaredaçãopermiteacompensaçãofinanceiraentreórgãoseintegrantesdomesmopoder. Quantoaoreajusteorçamentário,definiuqueoanode2017utili-zariaadespesaprimáriapagaem2016comcorreçãode7,2%eosexer-cíciosfinanceirosseguintesutilizariamomontantedestinadoaoexercí-cioimediatamenteanterior,comcorreçãodovalorpeloIPCA. ONRFdemonstrourigidezemalgunspontos,porém,deixouou-trosdefora.Éocasodoscréditosextraordinários,previstosnaCRFB/88,em seu artigo 167, § 3º, para “atender a despesas imprevisíveis e ur-gentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública”.AquestãoéqueaabstraçãodesuaredaçãodeuaosgovernosapossibilidadedecontornaraECnº95/16paraqueabramcréditoextra-ordinárioaserutilizado,porexemplo,empublicidadeinstitucional3.Amídiatemcontribuídomuitonoaspectodedesmascararessaposturaincoerenteadotadapelogoverno,deformaqueapósapromulgaçãodoNRF,ogovernofederal,atésetembrode2017,haviareduzidoogastocom despesas totais, mas havia aumentado a sua despesa com pessoal (TREVIZAN,2017). Tambémmerece destaque a aprovação da Lei nº 13.528/2017peloCongressoNacional.EssaleiabriucréditoaoGovernodeformasu-plementar,novalordeR$6,9bilhõesdereais,comR$99milhõesdessemontantedestinadoàpropagandadaReformadaPrevidência. Biasoto, professor da Unicamp, disse em entrevista ao jor-nal eletrônico G1 que as escolhas do governo não foram feitas daforma correta. Ele diz que “a trava não foi feita com reorganização.Éóbvioque éviável reorganizarogasto e entregaromesmo serviçocom despesa menor. Mas o governo não tem feito isso, está simples-

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3 Medida Provisória nº 772 (2016)..................................

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menteestancandoogasto”(TREVIZAN,2017,s/p).Ouseja,faltaumaorganizaçãoeficientedosgastos,feitacombasenasnecessidadesdapo-pulaçãoe,sóapósatendidosessespreceitos,passaremaocortededes-pesa com direitos fundamentais, como a educação. Nesse sentido, percebe-se que foi dado índice de correção dife-renciado para saúde e educação no primeiro ano de vigência da norma, porém,passaaseguiracorreçãopadrãoapósesseano,conformeoartigo110doADCT:

Art.110.NavigênciadoNovoRegimeFiscal,asaplicaçõesmí-nimas em ações e serviços públicos de saúde e em manutenção e desenvolvimento do ensino equivalerão:I-noexercíciode2017,àsaplicaçõesmínimascalculadasnoster-mosdoincisoIdo§2ºdoart.198edocaputdoart.212,daCons-tituição Federal; eII-nosexercíciosposteriores,aosvalorescalculadosparaasapli-cações mínimas do exercício imediatamente anterior, corrigidos na formaestabelecidapeloincisoIIdo§1ºdoart.107desteAtodasDisposiçõesConstitucionaisTransitórias.

Assim,oanode2018foioprimeiroanãomaisdeverobediênciaao mínimo constitucional estabelecido para a educação no artigo 212 daConstituição Federal,mediante a justificativa de quemanter esseslimitestrariaprejuízoaoorçamentodosdemaisórgãosepoderes,com-primindo-os. Contudo,quemestáseinviabilizandoenquantosetoressencialaodesenvolvimentoeconômico,históricoeculturaldasociedadeéaeduca-çãopública.Àexemplo,osmunicípiosdoestadodoRioGrandedoNor-tetêmfechadoescolasdevidoàcrisefinanceiraemqueseencontram4. Outras escolas estão sendo interditadas5 por falta de estrutura, entre ou-tros exemplos. Diantedisso,comumaatuaçãoestatalqueprejudica,sucateiaemarginalizacadavezmaisaeducaçãopúblicabrasileira,verificou-seanecessidadedesepensararesponsabilidadecivildoEstadoquantoaos

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4 Notícia veiculada no Jornal Eletrônico Mossoró Hoje, em 14 de dezembro de 2018.5 Notícia sobre interdição da Escola Estadual Governador Dix-Sept Rosado na cidade de Mossoró/RN, do mesmo jornal e data.

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danosocasionadospela insuficiênciaderecursos,apósaECnº95/16,a serem destinados à educação, direito fundamental social, a quem o constituinte originário de 1988 evidenciou preocupação, ao estabelecer pelomenos10artigosvoltadosàsuaimplementação,alémdasdiretrizesestabelecidaspeloPlanoNacionaldeEducação.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ANTE OS EFEITOS DO CONGELAMENTO DE GASTOS NA EDUCAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA AConstituiçãodaRepúblicaFederativadoBrasilde1988reco-nhece expressamente em seu texto o direito à educação como um direito fundamental.EladesignaaoEstado, juntoa famíliaeasociedadeemregime de colaboração, a tarefa de efetivação desse direito com o objeti-vodeatenderaoprevistonoartigo3ºdaCRFB/88,desenvolvendoumasociedadesolidária,livreejusta(RIBEIRO,2015). Osentesfederadosdevemorganizarosseussistemaseducacio-nais visando um regime de colaboração entre eles, conforme prevê o artigo211daCRFB/88.Alémdisso,devidoàimportânciadadaaotema,aConstituição sópermite a vinculaçãode receita tributária, de formaexcepcional (art.167, IV),pois, éumserviçoessencial e como tal sevincula à existência per sidoEstado,sendovedadaarenúnciaporpartedele. Ribeiro(2015)reforçaqueaeducaçãoéumafunçãopúblicaime-diata, sendo uma obrigação que tanto pode ter iniciativa pública como privada,peloprópriomodelocapitalistaadotadonoBrasil(art.170daCRFB/88).Oautordefendeaindaque,respeitadaaorientaçãodoarti-go 209 da Constituição, abrir a possibilidade de atuação no ensino pelo setorprivadoédarmaisopçõesparaostitularesdodireitoàeducação,tendoemvistaqueoEstadonãodetémacapacidadedeatenderaessademanda por completo. Osetorprivadodeeducaçãonãoéobjetodessapesquisa,maséimportanteesclarecerqueacolaboraçãoentreinstituiçõespúblicaseprivadas, nessa situação, não diminui a relevância da função estatal na educação,atéporqueoserviçoaserprestadodeveserdequalidadeem

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ambas as searas e exigido por todos, já que se trata de direito público subjetivo,dentrodoEstadoDemocráticodeDireitoBrasileiro. Aquestãoéque,noensinopúblico,pode-sefazerusoatédemul-ta,soboregimedeprecatórios,emcasodedesatendimentoàcomandojudicialqueviseefetivarodireitoàeducação(CUNHA,2014),cabendoaojuizaindaadeterminaçãode“providênciasqueasseguremaobtençãodetutelapeloresultadopráticoequivalente”,deacordocomoart.497doCódigodeProcessoCivilde2015.Contudo,éimportantepensaratéque ponto essas medidas de cunho repressivo têm tido efetividade na obtençãodessedireito,comtantosprivilégioseprerrogativasinerentesàFazendaPública. Considerando oEstado atualmente como sujeito de direitos, éplenamentecabívelasuaresponsabilizaçãonesseaspecto,sendoelaen-tendida, nesse caso, como sendo a obrigação advinda da responsabili-dadeextracontratualdoEstado,quedeve“reparareconomicamenteosdanos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilí-citos,comissivosouomissivos,materiaisoujurídicos”(MELLO,2009,p. 982). Com efeito, a Constituição Federal de 1988 estabelece a respon-sabilidadecivildoEstadonoart.37,§6º,adotando-seateoriadarespon-sabilidade civil objetiva, preferindo a subjetiva apenas nos danos decor-rentes da omissão, segundo entendimento da doutrina e jurisprudência majoritária(BARRETO,2016). Nessa perspectiva, importante lembrar dos deveres estatais para com a sociedade, fixados no sistema normativo brasileiro, a exemplodoartigo205daCRFB/88,cujotextoestabeleceaeducaçãocomodi-reitodetodosedeverdoEstado,assimcomooartigo53doEstatutodaCriançaedoAdolescenteeoartigo2ºdaLeideDiretrizeseBasesdaEducaçãoNacionalqueoferecemàcriançaeaoadolescenteodireitoàeducaçãocomofimdeprepará-losparaoexercíciodacidadania,bemcomoqualificá-losparaotrabalho. Registre-se,poroportuno,quetaisnormassedirigemtantoàga-rantia formal de vaga nas escolas públicas, quanto e mais ainda para ga-rantia material da prestação do serviço educacional de qualidade, univer-saleisonômicodeoportunidadesparatodos.Valedestacarquea“ofertaregular de ensino não se resume à quantidade de vagas na escola, mas

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tambémpressupõesuaqualidadeeequidade”(PINTO,et. al.,2016). Muitoemboraoartigo211,§§1ºe4ºdaCRFB/88estabeleçaacooperação entre os entes públicos para a prestação da educação, as es-colaspúblicas–emsentidoamplodotermo–têm-sedeparadocomain-justificávelmoradaUniãonessesquase30(trinta)anosdaPromulgaçãoda Carta Constitucional em determinar o que seria um “padrão mínimo dequalidade”,comobemaludeoartigo206,incisoVIIdaCRFB/88eaLeideDiretrizeseBasesdaEducação(LDB)emseusartigos4º,incisoIX,e74a76. Logo,oquesepercebeéainérciadaUniãoematuarnasuares-ponsabilidadeenquantoesferafederaldedistribuiçãoderecursosefisca-lizaçãonocontextodaeducação,tornandoospressupostosdequalidadee equidade do ensino perspectivas meramente semânticas.Nessesentido,ocorrendoainobservânciaEstataldesuaobrigaçãocons-titucional no tocante à garantia do direito fundamental à educação, a aná-lisedaineficiênciadoEstadoemcontemplaressedireitoémedidaquese impõe. Nãoobstanteaausênciadedefiniçãosobreumpadrãodequalida-deeducacional,comfundamentonoartigo206,incisoVII,daCRFB/88,todos os entes federados são responsáveis pelo ensino de qualidade, cada umnasuaesferaespecífica,semolvidaresforçosdecooperaçãoentreeles quando necessário. Portanto, inobservados esses deveres normativos quanto à presta-çãodoserviçoeducacional,verifica-sepossívelaexistênciadedanocomrelevânciajurídicaoriundadeomissõesouaçõesestataisquedificultamouatémesmoimpedemoacessodoscidadãosaumpadrãomínimodequalidadedaeducação,dandodireitoàresponsabilizaçãocivildoEsta-do. Vê-seassimtantopeloquadrocaóticoemqueviveaeducaçãobrasileira hoje, com escolas públicas sendo fechadas e interditadas por faltadeestrutura,bemcomopelaausênciadeumaalocaçãoeficientederecursos públicos voltados ao setor da educação enquanto semantémexecuçõesorçamentáriasinjustificáveiscomoprivilégios,altossaláriose regalias dos membros dos Poderes. Fortalece essa incongruência a projeção do investimento em edu-caçãocomavigênciadoNovoRegimeFiscalnavinculaçãodaUnião.OestudofoiproduzidopelaFineduca(AssociaçãoNacionaldePesqui-

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sadoresemFinanciamentodaEducação)emparceriacomaCampanhaNacionalpeloDireitoàEducaçãoedemonstraquenodecorrerdosanos,mantendo as variáveis na forma em que se encontra, o resultado, que hojejánãoébom,ficarábempior. Oestudofoiproduzidoenquantotratava-seaindadaPropostadeEmendaàConstituiçãonº241econsiderouodecorrerdosvinteexer-cíciosfinanceiros.Paraoprimeiroanodevigênciadoregimeoinves-timento em educação seria 18%, ao passo que no vigésimo exercícioessaporcentagemprovavelmentecairápara10,3%deinvestimento,issolevandoemcontaumcrescimentorealdereceitade3%aoanodoPIBnacional. Podeatéparecerquenãomudamuitoouquenãovaideixardehaverinvestimentoemeducação,masarealidadeéqueogastoprimáriocomeducaçãoem2016foi2,78%,somadoa1,10%doFUNDEB,oquenãocheganema4%dogastoprimáriototaldaUnião.Valedizer,nãofoiaeducaçãoquelevouàimplementaçãodoNovoRegimeFiscal,nãosendoelaaresponsávelpelacrisefiscalinstaladanopaísdesde2013. Nesse sentido, a teoria aplicada ao caso será a da responsabilida-de objetiva, e, mesmo se tratando de omissão estatal, quando o assunto for educação ela deverá prevalecer, sempre observando o princípio da proporcionalidade(BARRETO,2016).Talafirmaçãosepautanãosónoembasamentojurídicoeempíricoacimacitado,mastambémnopróprioentendimento universal de educação como o único caminho para o de-senvolvimentosocialeeconômicojustoeisonômicodonossopaís. GanhamaiorrelevânciaessaresponsabilizaçãodoEstado,tantopelaaplicaçãodoNovoRegimeFiscalqueprejudicousetoreshistorica-mente “escanteados” pelo Governo, quanto pela política de abrandamen-to dos crimes de colarinho branco, como desvio de dinheiro da merenda escolar,porexemplo–cujadiscussãoépertinente,masemoutromo-mento. Essapreocupaçãosefortalecenamedidaemqueoconstituintederivado, ao aprovar dito regime, não estabeleceu prioridades em con-sonância com as necessidades do povo brasileiro, posto que problemas estruturaiscomoamanutençãodosprivilégiosdaclassepolíticaeaalo-caçãoineficientedosrecursosforammantidosmesmocomainstituiçãodo teto de despesas públicas. Não obstante tudo isso, os acessos aos meios de comunicação

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revelammaisperipécias6 que, se por um lado não deslegitima o discurso doEstadodeenxugamentodamáquinaestatal,poroutrofortaleceane-cessidade de estabelecimento de prioridades de acordo com as necessi-dades do povo, devendo inclusive responder pelos danos de sua conduta displicente. O ordenamento jurídico pátrio assim delineou a responsabi-lidadecivildoEstado(CRFB/88):

Art.37.AadministraçãopúblicadiretaeindiretadequalquerdosPoderesdaUnião,dosEstados,doDistritoFederaledosMunicí-pios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, mora-lidade,publicidadeeeficiênciae,também,aoseguinte:[...]§6ºAspessoasjurídicasdedireitopúblicoeasdedireitoprivadoprestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Percebe-se que a Constituição adotou, de forma cristalina, a teo-ria da responsabilidade objetiva, sem esclarecer se a disposição normati-vasereferiaàscondutasantijurídicascomissivaseomissivas.Adoutrinamajoritária entende que o ordenamento brasileiro adota a responsabili-dade civil objetiva nas condutas comissivas e a responsabilidade civil subjetivanascondutasomissivas(BARRETO,2016). Nas comissivas há um desrespeito claro do agente quanto ao seu dever de diligência, de forma que, não sendo hipótese de aplicação de excludente de ilicitude, terá ocorrido uma conduta, seja ela culposa ou dolosa, resultando na responsabilidade objetiva estatal. Esse dever de di-ligência é caracterizado por Justen Filho (2008, p. 955) como “consistente em prever as consequências de sua conduta ativa e omissiva, adotando todas as providências necessárias para evitar a consumação de danos a terceiros”. Com o Novo Regime Fiscal em vigor, percebe-se uma série de condutas que vem sendo adotadas pelo Estado, em diversas esferas e po-

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6 O aumento em 16% do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (SILVA, 2018), o custo de cada deputado federal brasileiro, atingindo uma média de R$ 2 milhões de reais segundo o jornal eletrônico Congresso em Foco (2018), além do governo ter cortado vá-rias despesas, mas o gasto com pessoal aumentou (TREVIZAN, 2018), entre outras notícias.

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deres, alcançando-se a concretude da postura do ente Público face a sua responsabilidade com a educação. Fora as notícias jornalísticas já ci-tadas,umestudofeitopelaOrganizaçãoparaCooperaçãoeDesenvol-vimento Econômico (OCDE), denominado deEducation at a Glance 2018:OECDIndicators,fazumcomparativodeestrutura,financiamentoesistemasdeensinodospaísesmembroseassociados.Nele,épossívelperceber muitos avanços no investimento em educação pelo Brasil, mas, emregra,osindicadoresficaramabaixodamédiadaOrganização. Por exemplo, o Brasil possui o maior índice de adultos que não concluíramoensinomédioeumadasmaioresdesigualdadesderendaentreospaísesestudados, fatores intimamente ligados(OCDE,2018).Semcontarque,oinvestimentoemeducaçãoemrazãodoProdutoInter-noBrutodoBrasilérazoável,masaindaestáabaixodamédiadaorga-nização,alémdenãohaverumapolíticadevalorizaçãodosprofissionaisda educação que fortaleça a estrutura do sistema, com uma diferença salarial entre estados-membros maior do que a diferença entre os países membrosdaOCDE(OCDE,2018). Alémdisso,cita-seoutrascondutasque,senãodeslegitimamporcompletooNovoRegime,ocolocaemcondiçãodedúvida.AMedidaProvisórianº816/2017,quecriacargosparaosConselhosdeSupervisãodosRegimesdeRecuperaçãoFiscaldosEstadosedoDistritoFederal;oaumentodossubsídiosdosMinistrosdoSupremoTribunalFederalem16,38%(dezesseis inteirose trintaeoitodécimosporcento) jápubli-cadonoDiárioOficialdaUnião;bemcomoocortedossetoressociaispara subsidiaropreçododiesel após agrevedos caminhoneiros, sãosituações que demonstram, de forma bem expressa, que a preocupação dos membros dos Poderes não está centrada no atendimento dos anseios sociais. EmentrevistaaojuizGöranLambertz,membrodaSupremaCor-tedaSuécia,indagou-seseosmembrosdelátinhamalgumbenefícioex-tra salarial7,ouatémesmoprivilégio,comocarrooficialcommotoristaàdisposição.Emrespostaomagistradoenfatizou:“Sóvivemosumaveze,portanto,pensoqueavidadeveservividacombonspadrõeséticos.

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7 Exemplos: gratificação natalina, auxílio-saúde, auxílio-moradia, verbas de represen-tação, auxílio pré-escolar para cada filho, auxílio-funeral, auxílio-alimentação, entre outros (WALLIN, 2018).

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Nãopossocompreenderumserhumanoquetentaobterprivilégioscomodinheiropúblico”(WALLIN,2018,s/p). Enquantonãohouverumaalocaçãoefiscalizaçãoeficientedere-cursos,somadoasescolhasestataisnomínimoduvidosas,muitasvezesimorais apesar de legais, não há em que se falar em corte educacional justo.Nessa esteira, resta evidente a responsabilidade civil doEstadoem face dos danos ocasionados pela má administração na alocação dos recursos públicos destinados na área da educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerandoqueonovoregimefiscal,promulgadopelaECnº95/2016,constitui-seemumapolíticafiscalrecente,sefaznecessáriooamadurecimento da discussão acerca da alocação dos recursos públicos deformaatrazerefetividadeàspolíticaspúblicas,sobretudoasvoltadasàeducação,postoquealémdepreceitoconstitucional,ésabidamenteocaminho mais seguro ao desenvolvimento e evolução do nosso país. Viu-sequeadificuldadedeimplementaçãododireitoàeducaçãojáéumarealidadenoBrasil,diantedetantoscasospráticosquedificul-tamedesestimulamaefetividadedomesmo,enquantosemantémrecur-sos alocados de forma incompatível com a necessidade da população, infringindodiretamenteoprincípiodadignidadehumana,alémdeleisquetratamdaeducação,comoaLeinº11.738/2008,Leinº12.858/2013eLeinº13.005/2014. Incide a responsabilidade civil do Estado nas restrições orça-mentárias em desfavor da educação ante a manutenção de outros gastos públicosquenãorefletemdiretamenteembenefíciosparaapopulação,bemcomoosprejuízosquejávemdemonstrandonapráticasobreo(des)acesso ao direito à educação. Dessaforma,entende-sequeoequilíbrioorçamentárioéimpor-tante, desde que respeite os moldes acima mencionados e de acordo com as necessidades básicas do povo, devendo o Estado, quando agir emsentido contrário, responder objetivamente pela sua ação ou omissão na prestação de um serviço educacional de qualidade.

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BARRETO,WendelN.Piton.ResponsabilidadecivildoEstadoemfaceda inefetividade do direito à educação. Jus,2016.Disponívelem:<ht-tps://jus.com.br/artigos/45644/responsabilidade-civil-do-estado-em-fa-ce-da-inefetividade-do-direito-a-educacao/5>.Acessoem27ago.2018.

BETIM, Felipe. Cortes em saúde e educação ajudarão a pagar dieselmais barato para caminhoneiros. El País, 2018. Disponível em: <ht-tps://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/31/politica/1527790717_851019.html>.Acessoem:25ago.2018.

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