TEMA ESPECIAL Fotografia da fome - arca.fiocruz.br · lia de Campina Grande (PB) e estou cursando...

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Nº 8 ! Abril de 2003 Av. Brasil 4036/515, Manguinhos Rio de Janeiro, RJ ! 21040-361 JORGE SOLLA O potencial da nova Secretaria de Atenção à Saúde E MAIS: ! Mudanças na Previdência ! A polêmica safra de soja transgênica ! Doença de Chagas Fotografia da fome TEMA ESPECIAL Fotografia da fome

Transcript of TEMA ESPECIAL Fotografia da fome - arca.fiocruz.br · lia de Campina Grande (PB) e estou cursando...

N º 8 ! A b r i l d e 2 0 0 3

Av. Brasil 4036/515, ManguinhosRio de Janeiro, RJ ! 21040-361

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E MAIS: !!!!! Mudanças na Previdência!!!!! A polêmica safra de soja transgênica!!!!! Doença de Chagas

Fotografia da fomeTEMA ESPECIAL

Fotografia da fome

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Afome sempre foi uma ‘per-sonagem’ do Radis. Vira e

mexe aparece numa matéria,em forma de dados ou indica-dores, ou numa notinha. Masela foi personificada de fato emdois ‘bonecos’. Primeiro no nor-destino e faminto Quinino, quehabitou o rodapé das páginasdo tablóide Proposta duranteoito anos. O ronco da barrigade Quinino apareceu em mui-tas tirinhas, “tirando-lhe as pa-lavras da boca”. O segundo per-sonagem marcante foi ocachorrinho vira-latas que ilus-trou a revista Dados 16, sobrea Fome, em agosto de 1993.Lembro-me de uma discussãona redação, em que se questi-onava: “Isso vai dar galho. Vãodizer que a gente está chaman-do a população de cachorros”.Eu respondi que essa poderiaser uma interpretação, mas queeu queria era chamar a aten-ção para o fato de que permitirque seres humanos passem fomeé tratá-los como animais e que,sendo assim, “nada melhor doque um simpático cachorrinhomestiço para promover essaidentificação”. A revista foi proprelo, e o resultado é conheci-do: o ‘cachorrinho da Fome’tornou-se um dos mais popula-res personagens do Radis.(Caco Xavier)

PROMOÇÃO:Dê um nome ao cachorrinho

Personagens da fome

ORadis promove um concursoentre seus leitores: “Dê um

nome ao cachorrinho da Fome”.Cada leitor pode envi-ar no máximo três su-gestões, por carta, faxou e-mail (endereçosno expediente), e oresultado será divulga-do na edição da Radis10, em maio. Os dezleitores melhores se-lecionados ganharãoum kit promocional daFiocruz e da Asfoc (As-sociação dos Funcio-nários) e o vencedorreceberá também umdesenho original do

cachorrinho que nomeou, assinadopelo autor, e um livro da EditoraFiocruz.

Tiras publicadas no jornal Proposta.

Memória 2

! Personagens da Fome

Editorial 3

! A arte das guerras

Caco 3

Cartas 4

Súmula da Imprensa 5

Seguridade Social 33

! As propostas de mudança naPrevidênciatransgênica

Tema EspecialFotografia da Fome 8

! Breve história do combate à fome

! Cesta básica e salário mínimo

! Os números da fome e da pobrezano Brasil

! Produção, distribuição dealimentos, a seca nordestina

! O Programa Fome Zero e as políticasde governo

Entrevista: Jorge Solla 29

! Novo secretário de Atenção à Saúdeespera superar fragmentações esuperposições de ações

Doença de Chagas 32

! Prevenção e Educação paraerradicar a doença na Bahia

Biotecnologia 33

! A polêmica safra de soja transgênica

Serviços 34

Pós-Tudo 35

! O teste de gravidez

Ora, Pílulas... 35

Nº 8 — Abri l de 2003

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Capa: Aristides Dutra

A arte das guerrasJulia tem 13 anos, é aluna da oitava série

de uma escola carioca e recebeu de seusprofessores a tarefa de compor “um traba-lho sobre a Guerra”. Ela e seus companhei-ros de grupo não gostaram muito da idéiade meramente apresentar uma pesquisadescrevendo, por exemplo, a ofensiva deGeorge Bush, o Filho, contra o Iraque, edecidiram elaborar o trabalho em quatropartes: ‘Guerra contra a Fome’, ‘Guerracontra a Aids’, ‘Guerra contra as Drogas’ e‘Guerra contra a Guerra’. Julia e seus ami-gos são muito jovens pra perceberem a im-portância da inversão de perspectiva e deexpectativas que propuseram.

Há guerras necessárias, e a Saúdelutou e luta em inúmeras dessas frentesde batalha. Em vez de promover guerrasque matam pessoas, destroçam famílias,liquidam culturas milenares em nome debens como ‘território’, ‘mercado’, ‘pe-tróleo’ ou simplesmente ‘poder’, a Saú-de combate a fim de evitar as mortes,as doenças e o mal estar das pessoas,promovendo a vida e incrementando-acom qualidade.

Uma dessas batalhas é a guerra con-tra a Fome, declarada logo no primeirodia do governo Lula. Nossa colaboração,este mês, traduz-se numa matéria exten-sa de 21 páginas, historiando a fome noBrasil, descobrindo suas relações com fa-tores sociais, econômicos e políticos,identificando as grandes questões e obs-táculos a transpor e divulgando e anali-

sando criticamente o Programa FomeZero, diretriz maior do novo governo.Grande batalha, essa, que por enquantonão tem vencedores, apenas vencidos.Os grandes generais sabem que, numaguerra, nem o ceticismo nem o ufanismosão bons conselheiros, que não basta terrazão para vencer uma guerra e que nin-guém a vence só com palavras.

Em tempos de mercado globalizadoe Big Brother, a Arte da Guerra se tor-nou obra de cabeceira. O general chinêsSun Tzu, há 2.500 anos, dizia: “A garan-tia de não sermos derrotados está emnossas próprias mãos, porém a oportu-nidade de derrotar o inimigo é fornecidapelo próprio inimigo. Pode-se saber comoconquistar a vitória, sem ter capacida-de de fazê-lo”. E mais: “A inteligêncianunca foi associada a decisões demora-das. Não há, na história, notícia de umpaís que se tenha beneficiado com umaguerra prolongada”.

A guerra contra a Fome é justa enecessária, e esperamos que nossa re-portagem ofereça um conhecimento mai-or do exército inimigo e do nosso, e tam-bém do território e dos recursos. Comodiz Sun Tzu: “Se conhecemos o inimigo e anós mesmos, não precisamos temer o re-sultado de uma centena de combates. Senos conhecemos, mas não ao inimigo, paracada vitória sofreremos uma derrota. Senão nos conhecemos, nem ao inimigo, su-cumbiremos em todas as batalhas”.

A tabela de alimentos e quantidades quecompõe a foto representa a Cesta BásicaNacional, referente ao consumo individualmensal de um trabalhador adulto.

RADIS 8 ! ABR/2003

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BONITA E COM CONTEÚDO

Olá pessoal da Radis! Sou enfer-meira do Programa Saúde da Famí-

lia de Campina Grande (PB) e estoucursando uma especialização para pro-fissionais do PSF e hoje (hoje mesmo,acredite) ganhei de uma amiga exem-plares da Radis 4 e 5, respectivamentenovembro e dezembro/2002, que fa-lam sobre o PSF. Qual não foi a minhasurpresa em ver a Radis. Tão bonitapor fora e, por dentro, com matériastão diversas quanto pertinentes ao ce-nário atual da saúde. Então não perditempo. Impossibilitada de usar o com-putador, escrevo-lhes de próprio pu-nho para pedir encarecidamente paraser incluída no rol dos ‘agraciados’ comesta revista. Somos 36 alunos na minhaturma de especialização (entre médi-cos e enfermeiros) e estamos necessi-tando de informações atualizadas evocês podem nos ofertar isso.

Claudia Santos Martiniano (por carta)

expedienteexpedienteexpedienteexpedienteexpediente

RADIS é uma publicação da FundaçãoOswaldo Cruz, editada pelo ProgramaRadis (Reunião, Análise e Difusão de In-formação sobre Saúde), da Escola Nacio-nal de Saúde Pública (Ensp).

Periodicidade: MensalTiragem: 42 mil exemplaresAssinatura: GrátisPresidente da Fiocruz: Paulo BussDiretor da Ensp: Jorge Bermudez

PROGRAMA RADISCoordenador: Rogério Lannes RochaEditor: Caco Xavier

Subeditora: Ana Beatriz de NoronhaSubeditor Gráfico: Aristides DutraRedação: Daniela Sophia e Katia Ma-

chadoAdministração: Luis Otávio e Vanessa

SantosEstudos, Pesquisas e Projetos: Justa

Helena Franco (gerência de pro-jetos), Jorge Ricardo Pereira eLaís Tavares

EndereçoAv. Brasil, 4036, sala 515Manguinhos, Rio de Janeiro / RJCEP 21040-361Telefone: (21) 3882-9118Fax: (21) 3882-9119

E-Mail: [email protected]: www.ensp.fiocruz.br/publi/radis/

prgradis.htmImpressão e FotolitoEdiouro Gráfica e Editora SA

CORREDOR DE SAÚDE PREVENTIVA

Foi com muita alegria e saborde vitória que recebi várias revistas en-

viadas por vocês, que gentilmente aten-deram a minha solicitação. Tenham cer-teza que elas estão sendo de grandeutilidade para o meu trabalho. No Corre-dor de Saúde Preventiva, parte de umaação global que reuniu várias entidades,utilizei pequenas reportagens, cartazes efrases, que foram ampliadas e coladas emdivisórias formando um corredor no qualas pessoas passavam, liam e formavam pe-quenos grupos para comentar o que maishavia lhes chamado atenção, colocandosuas opiniões. O sucesso do trabalho, euagradeço à sensibilidade de vocês.

Também gostaria muito de ver narevista uma matéria que enfocasse aquestão da interdisciplinaridade naabordagem da Saúde Pública, que mos-trasse algum projeto, tese ou práticaque tenha como eixo a intervenção devários saberes e as múltiplas visões (psi-cológica, social, ambiental, médica,jurídica) sobre o tema, pois meu inte-resse é despertar nas pessoas a ques-tão dessa interface ou transversalidade.

Márcia de Jesus ReimãoNova Friburgo – RJ (por carta)

! O assunto sugerido é muito oportu-no, Márcia. O Radis planeja, brevemen-te, iniciar uma série de reportagenssobre Experiências Inovadoras, nasquais a interdisciplinaridade é ques-tão central.

RADIS É 10!

Sou servidor da Fundação Nacionalde Saúde (FNS) há 20 anos, sempre

trabalhando na Campanha de Chagas.Gostaria de saber onde encontrarmedicação gratuita para pacientes coma doença de Chagas, pois tenho en-contrado no meu trabalho pacientescarentes que não podem encontraros medicamentos e esses medicamen-tos não são fornecidos pela prefeitu-ra de Irará, na Bahia (Ba). Me infor-mem sobre cursos em Educação aDistância para profissionais em Saúde.A Radis é 10.

Roque Carneiro de Oliveira (por carta)

! Nota do Radis:Para conseguir o medicamento, a

pessoa deve procurar um estabeleci-mento do SUS para uma consulta.Constatada a doença, o médico emiti-rá uma autorização para a retirada domedicamento, que é gratuito. Mais in-formações sobre locais de atendimen-to, entre em contato com o Disque-Saúde, do Ministério da Saúde pelotelefone 0800-611997.

Por sugestão do leitor, o Radis re-solveu fazer uma matéria sobre a Do-ença de Chagas (veja na página 28 des-ta revista).

JORNALISMO PARTICIPATIVO:O Radis na Rede Unida

Aequipe do Radis estará presente noV Congresso da Rede Unida com o

objetivo de estabelecer um diálogo cla-ro e permanente com os trabalhado-res, pesquisadores e professores quelidam com formação profissional em saú-de no Brasil. A melhor forma de dar iní-cio a este diálogo com leitores é avaliarcom eles a série de cinco reportagens doRadis sobre recursos humanos, formaçãoprofissional e educação. Não podemosprescindir da opinião e das críticas qua-lificadas dos leitores, se queremos fa-zer um jornalismo cada vez melhor emais útil. Anote a data, e não deixe decomparecer:

Formação Profissional e as reporta-gens do Radis — Avaliação com osleitores. Londrina (PR), 26 de maio, se-gunda-feira, às 20 horas.

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SÚMULA DA IMPRENSASÚMULA DA IMPRENSASÚMULA DA IMPRENSASÚMULA DA IMPRENSASÚMULA DA IMPRENSA

CAMPANHA DE VACINAÇÃO PARA EPIDEMIADE GRIPE

AOrganização Mundial da Saúde,durante uma reunião do comitê

executivo da instituição, alertou parauma epidemia de gripe causada por umamutação do vírus influenza, recomen-dando aos países que elaborem planosnacionais de contingência aumentandoo número de pessoas vacinadas. O aler-ta tem como objetivo evitar epidemias,como a da Gripe Espanhola que, em 1918,matou quatro milhões de pessoas.

O governo brasileiro lançará emabril a Campanha de Vacinação contraa Influenza para o idoso, tendo comometa a imunização de 10,5 milhões depessoas com mais de 60 anos, chegan-do a 70% da população idosa até 2005.Segundo informações do Ministério daSaúde, para que a campanha seja efi-caz é necessário fazer uma avaliaçãode cada microrregião de saúde e me-lhorar a comunicação entre os labora-tórios e centros epidemiológicos.

CAMPANHA DO MS INCENTIVA TESTES DE HIV

‘Fique sabendo’ é o slogan da cam-panha que pretende convencer

as pessoas a fazer o teste de HIV,desmistificar o exame e torná-lo umteste de rotina. Com isso, o Ministérioda Saúde espera que haja um aumentona procura de até 20 % nos 300 Cen-tros de Testagens Anônimas. Já foramnotificados no país, desde o início daepidemia, 237 mil casos, sendo que 172mil ocorrem em homens e 65 mil emmulheres. Embora tenha ocorrido umaredução de casos desde 1999, o Minis-tério da Saúde estima que hoje, den-tre as 600 mil pessoas infectadas, 400mil ainda não sabem que têm o vírus.Mais informações:Coordenação Nacional de DST/AidsTel.: (61) 448-8100

PESQUISA MUNDIAL DE SAÚDE

Como anda a saúde no Brasil? Essaé a pergunta que norteia uma

grande pesquisa sobre o desempenhodo Sistema de Saúde do Brasil, de-senvolvida pela Fundação OswaldoCruz em parceria com o Ministério daSaúde com o objetivo de traçar dire-

trizes para aprimorar o sistema de saú-de no país e contribuir para a elabo-ração de diretrizes de políticas desaúde. O estudo está sendo realizadosimultaneamente em vários países como apoio da Organização Mundial de Saú-de. Ao todo, cinco mil famílias serãoentrevistadas em todos os estados.

Na pesquisa, serão abordadas asseguintes questões: estado de saúdeda população, fatores de risco, acessoa programas de saúde e disgnóstico etratamento de problemas crônicos egastos das famílias em saúde.Mais informações:Departamento de Informação emSaúde (DIS/CICT)Tel.: (21) 2598-4242

IMPOTÊNCIA ATINGE OITO MILHÕES DEBRASILEIROS

No Brasil, a impotência atingepelo menos oito milhões de ho-

mens e essa disfunção tem como cau-sas principais o cansaço físico, oestresse e a ansiedade. Mas um dosgrandes problemas relacionados à im-potência ainda é a demora do paci-ente em buscar ajuda médica. Essademora está diretamente relaciona-da ao preconceito social.

Hoje existem muitas formas detratamento: uso de medicamentos, ci-rurgia, próteses e tratamento psico-lógico, entre outras. Mas todos sãounânimes em afirmar que a melhor for-ma de combater o problema ainda ébuscar ajuda de um médico.

INICIATIVA DE DROGAS PARA DOENÇASNEGLIGENCIADAS

Idealizada pelo grupo Médicos SemFronteiras (MSF), a DNDI (sigla em

inglês para Iniciativa de Drogas paraDoenças Negligenciadas) tem como

proposta coordenar e incentivar es-tudos das chamadas doenças negli-genciadas, que são: malária, mal dechagas, leishmaniose e doença dosono. Por serem típicas de paísespobres, essas doenças não interes-sam às grandes indústrias farmacêu-ticas e a prova disso está nas con-clusões de um estudo feito porpesquisadores do MSF sobre onzedas vinte maiores indústrias farma-cêuticas do mundo, mostrando queoito delas nada gastaram com o de-senvolvimento de drogas para essas do-enças. Para incentivar o desenvolvi-mento de pesquisas por meio deincentivos financeiros, um dos objeti-vos da DNDI é ter um orçamento anualde R$ 25 milhões por um período de12 anos, que será otimizado utilizandoas estruturas de organismos que es-tão interessados nas pesquisas.

DENGUE

OMinistério da Saúde anunciou em fevereiro o investimento de R$ 1bilhão para o combate à dengue, lem-brando que a integração entre muni-cípios e estados está sendo funda-mental para o desenvolvimento deestratégias de prevenção.

Na mesma época, a FundaçãoOswaldo Cruz divulgou o desenvolvi-mento de uma vacina, testada comêxito em animais, que pode vir a sera mais nova arma para a prevençãoda dengue, uma doença infecciosafebril aguda, transmitida pelo mosqui-to Aedes aegypti, e que, somente noano passado, afetou quase 800 mil bra-sileiros.

OMS ALERTA PARA A NECESSIDADE DOTESTE DA ORELHINHA EM BEBÊS

Segundo a Organização Mundial daSaúde (OMS), cerca de 2 milhões

de brasileiros possuem deficiênciaauditiva causada não só por fatoreshereditários, mas também por doen-ças como rubéola durante a gestação.

Mas, de acordo com a OMS, seessa deficiência for diagnosticada atéos três meses de idade, pode haveruma chance de diminuir o problema.O exame é simples e chamado testeda orelhinha, tendo sido recomenda-do pela Organização.

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SÚMULA DA IMPRENSA é produzida a par-tir da leitura crítica dos principais jor-nais diários e revistas semanais do país.Jornalista responsável: Daniela Sophia

CAMPANHA CONTRA OSTEOPOROSE

Com o slogan ‘Se você deixar, aosteoporose vem e fica’, a cam-

panha de combate à osteoporose acon-teceu no dia 16 de março simultanea-mente em São Paulo, Rio de Janeiro,Belo Horizonte e Brasília para comba-ter e controlar a doença que atual-mente atinge cerca de oito milhões demulheres no país. Realizada em parce-ria com a Sociedade Brasileira deDensitometria Clínica e com o Ministé-rio da Saúde, a campanha teve comoobjetivo oferecer informações, examesgratuitos ou a preço de custo para ospacientes do Sistema Único de Saúde.Na ocasião, foram montadas tendas empraças públicas para a distribuição dematerial impresso e palestras com pro-fissionais da área. A osteoporose se ca-racteriza pelo enfraquecimento dosossos tendo como conseqüência o au-mento no risco de fraturas. No Brasilestima-se que, das oito milhões de mu-lheres com a doença, cerca de 30%delas (ou 2,3 milhões) sofrerão fratura,e aproximadamente 200 mil morrerãoem conseqüência da osteoporose.

GOVERNO LIBERA PREÇO DE 260 MEDI-CAMENTOS

Ogoverno federal liberou recentemente o preço de 260 medica-

mentos, o que representa 8% de todosos remédios cuja venda é feita sem ne-cessidade de apresentação de receitamédica,como analgésicos e antitérmicos.A decisão, que foi tomada durante reu-nião da Câmara de Medicamentos doMinistério da Saúde, faz parte de umacordo firmado com a indústria farma-cêutica durante o período de transi-ção do governo de Fernando HenriqueCardoso para o de Lula, para impedirum aumento de preços. A liberação,no entanto, está dividindo opiniões.De um lado, o secretário-executivodo Ministério da Saúde, GastãoWagner, acredita que a medida impe-dirá o aumento de preços, pois a li-beração gerará um aumento da con-corrência entre os fabricantes. De

outro, o diretor do Departamento deAssistência Farmacêutica do Ministé-rio da Saúde, Norberto Rersch, acre-dita que essa lista promoverá uma ele-vação excessiva, pois os fabricantespoderão partir para um acordo con-junto. Após essa liberação, a meta éque em julho seja anunciada umanova política para regular os preçosdos medicamentos.

ACORDO SOBRE PATENTES GERA IMPASSENA OMC

Uma reunião da Organização Mun-dial do Comércio (OMC) em Ge-

nebra aconteceu recentemente paraconcluir um acordo sobre patentesde remédios, tendo como objetivocentral permitir o acesso dos paísesem desenvolvimento a remédios maisbaratos. Os governos, no entanto, nãoconseguiram chegar a uma conclusãosobre o acordo.

O maior entrave deveu-se à relu-tância dos Estados Unidos, ao argumen-tarem que a liberação dos genéricosacarretaria uma queda das vendas desuas empresas farmacêuticas, pois per-deriam mercado para fabricantes degenéricos do Brasil e da Índia. O Brasil,que defende uma solução para o tra-tado de patentes, sugeriu a criação deum mecanismo na OMC para garantir aimportação de genéricos apenas aospaíses que de fato não possuíssem ca-pacidade produtiva.

COMEÇA DESCENTRALIZAÇÃO DE RECUR-SOS PARA CONTROLE DA AIDS

As verbas destinadas ao controledo HIV/Aids e de outras doenças

sexualmente transmissíveis (DST), se-rão repassadas diretamente do FundoNacional de Saúde para os fundos es-taduais e municipais com o objetivode descentralizar as ações de preven-ção à Aids por meio do controle soci-al dos Conselhos de Saúde locais. Comessa medida, haverá ampliação de 150para 411 no número de municípios areceberem os recursos, e aumento dorepasse de R$ 68,4 milhões para R$ 100

milhões. Além disso, as organizaçõesnão-governamentais que trabalham naprevenção receberão 10% do total dosrecursos repassados aos estados paraampliar as ações e estreitar a relaçãoentre a sociedade civil e as coorde-nações estaduais de DST/Aids. Parareceber esses recursos, os gestoresdo sistema têm que apresentar nãosó um plano de ações, mas tambémum plano de metas pactuadas nas co-missões bipartite (estados e municí-pios) e tripartite (estados, municípi-os e Ministério da Saúde).

PESQUISA APONTA IRREGULARIDADES EMPLANOS DE SAÚDE

Pesquisa divulgada pelo InstitutoBrasileiro de Defesa do Consumi-

dor (Idec) concluiu que no país a le-gislação não é cumprida integralmen-te pelos planos de saúde, existindouma contradição entre as práticas domercado, os contratos e a legislaçãodo setor. Para verificar as irregularida-des, funcionários do Idec se passarampor consumidores. A pesquisa foi rea-lizada com oito das maiores empresasdo setor, que atendem cerca de 5milhões de brasileiros, representando14% do mercado de planos de saúdeprivados no país. A Unimed de São Paulofoi a empresa que teve o maior núme-ro de irregularidades, e a Sul Américaa que menos descumpriu regras. Osresultados do estudo foram encami-nhados para a Agência Nacional deSaúde Suplementar e para o Departa-mento de Proteção e Defesa do Con-sumidor do Ministério da Justiça.

LEGISLAÇÃO

! O projeto de lei 25/2002, que trami-ta no Congresso, está causando umapolêmica no setor de saúde. De auto-ria do senador Geraldo Althoff (PFL/SC), o projeto visa regulamentar o atomédico na área da saúde, centralizana prática médica o tratamento da saú-de e está sendo considerado por al-gumas instituições, como o ConselhoRegional de Psicologia de São Paulo(CRP/SP), um retrocesso na luta pelainterdisciplinalidade, pois a medidaimpedirá que profissionais de diversasáreas atuem conjuntamente.

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SEGURIDADE socialSEGURIDADE socialSEGURIDADE socialSEGURIDADE socialSEGURIDADE social

Katia Machado

APrevidência Social é a parteda política de SeguridadeSocial de uma nação, cujoobjetivo é proteger os tra-

balhadores segurados contra os ris-cos de abandono na doença e na ve-lhice. Esse setor, devido à suaimportância e às mudanças contínu-as da sociedade, já sofreu muitas atu-alizações ao longo dos anos. A maisrecente, aprovada em dezembro de1998 pelo então presidente FernandoHenrique Cardoso, retirou, acrescen-tou e alterou normas que regiam osistema previdenciário brasileiro, es-pecialmente no que dizia respeito àsaposentadorias. Hoje, o governo deLuiz Inácio Lula da Silva tem como pri-oridade a promoção de uma nova re-forma previdenciária, afirmando queela é necessária para conter um dé-ficit no orçamento público que che-gou a R$ 53 bilhões.

De acordo com a Reforma de 98em prática, o critério para aquisiçãodo direito à aposentadoria é o tem-po de contribuição para a Previdên-cia Social mais a idade mínima, distin-guindo os trabalhadores que já estãono mercado de trabalho e que têmdireitos adquiridos daqueles que co-meçaram a trabalhar depois da nor-ma vigente. Atualmente, para rece-ber a aposentadoria integral, otrabalhador do setor privado, filiadoao Instituto Nacional de Seguro Soci-al (INSS), precisa ter contribuído nomínimo 35 anos (homens) e 25 anos(mulheres) e ter no mínimo 53 anos(homens) e 48 anos (mulheres). Paraquem, na época da promulgação dotexto, não havia atingido esse tempomínimo, o tempo para se aposentarsofreu um acréscimo de 40%. Istoquer dizer que, para cada 5 anos queestiverem faltando para completar os35 anos, a pessoa deve trabalhar umano a mais. Para aqueles que come-çaram a trabalhar após a Reforma, acontribuição deve ser feita por pelomenos 35 anos (homens) e 30 anos(mulheres) e deixa de ter direito àaposentadoria proporcional.

No caso do trabalhador do setorpúblico, as regras são equivalentes,sendo que é preciso ter 10 anos defuncionalismo e 5 anos no cargo. Para

As propostas de mudança na Previdência

o servidor que começou a trabalhardepois da reforma, é preciso contri-buir durante 35 anos (homens) e 30anos (mulheres) e ter, no mínimo, 60anos (homens) e 55 anos (mulheres).Quando o tempo mínimo não for atin-gido, a aposentadoria integral sofre umacréscimo de 20%, ou seja, dois anosa mais de contribuição para cada 10.Um servidor, por exemplo, que haviatrabalhado 25 anos até a nova regraser publicada precisaria mais 10 anospara se aposentar. Com o acréscimode 20% a esses 10 anos restantes, otempo de contribuição sobe para 12anos. Para o pedido de aposentadoriaproporcional, o acréscimo é de 40%,ou seja, 4 anos para cada 10.

Quanto às aposentadorias espe-ciais, essas passaram a ser concedi-das em caráter individual, desde queo indivíduo comprove ter trabalhadoem condições especiais, insalubresou perigosas, e não mais por catego-ria profissional.

Crítico da reforma promovida em1998, o atual governo já apresentoualgumas proposta para uma nova re-forma previdenciária. A primeira e prin-cipal delas seria unificar os sistemasde contribuição, tanto para servido-res públicos dos três níveis de gover-no quanto privados. Além disso, o ser-vidor que hoje paga 11% sobre o saláriobruto passaria a descontar sobre oteto do INSS, que é de R$ 1,561,56.Para se aposentar com um valor supe-rior, os funcionários teriam que con-tribuir para um fundo de pensão.

Essa proposta, no entanto, já vemsendo repensada pelo atual ministroda Previdência, Ricardo Berzoini. Se-gundo ele, embora esse seja o mode-lo defendido no programa de gover-

no, não há folga do orçamento quepermita a sua rápida implantação. Atransição para o sistema único impli-caria em um aumento de despesa deR$ 1,7 bilhão ao ano só para a União,sem contar estados e municípios. Porisso, a tendência da reforma é a denão eliminar os regimes próprios deprevidência dos servidores.

Hoje, a principal proposta é am-pliar as regras de carência para apo-sentadoria no serviço público. O go-verno vem analisando a possibilidadede dobrar os atuais prazos, ou seja, aexigência de 10 anos de serviço públi-co passaria para 20 anos e o limitemínimo de 5 anos de exercício efetivono cargo subiria para 10 anos. Alémdisso, está propondo a elevação daidade mínima em sete anos, a redu-ção das pensões em 30%, mudançasno cálculo de novas aposentadoriascom base no salário líquido e a apro-vação do projeto de lei número 9 (PL-9), enviado pelo governo anterior, quepermite a fixação de um teto paraaposentadoria do servidor igual ao doINSS. Essa é uma medida que tambémjá vem sendo repensada. O governodecidiu, recentemente, colocar o pro-jeto em votação com algumas modifi-cações, como a retirada do artigo queestabelece a contribuição que o servi-dor deverá fazer ao fundo de previdên-cia. Apesar das críticas de especialis-tas e servidores, com a adoção dessasmedidas, o Ministério da Previdênciacalcula que seja possível economizar jáno ano que vem R$ 1,7 bilhão.

Em discursos com prefeitos,reunidos em Brasília, no dia 11 demarço, Berzoini disse que muitasdistorções podem ser combatidas nosistema, entre elas a exigência depouco tempo de serviço para a apo-sentadoria integral, a transferênciada pensão inteira para o cônjuge ea remuneração de aposentados mai-or do que a de trabalhadores da ati-va. Visando a uma economia de R$52 bilhões para a Previdência daUnião, em 30 anos, o ministro da Pre-vidência afirmou que é necessárioque se aprove um conjunto de me-didas no setor público, como o fimda regra de transição para a idade,o pagamento de novas aposentado-rias pela remuneração líquida e a di-minuição da pensão para 70% do be-nefício original.

RADIS 8 ! ABR/2003

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tema especialtema especialtema especialtema especialtema especial

Caco Xavier

Omundo inteiro viu a foto do repórter fotográfico sul-africano Kevin Carter, clicada em 1993, no Sudão. A cena provoca náuseas: uma criançanegra, esquelética, curvada sobre si mesma e

totalmente apática pendura-se a um fio de vida no ar-caico solo africano enquanto, a curta distância, umsilencioso abutre aguarda pacientemente o momentode sua morte por inanição. A imagem provocou cho-

cantes reações em todos que a viram, e foi uma dascausas do suicídio do fotógrafo, apenas dois meses de-pois de ter conquistado, graças a ela, o cobiçado Prê-mio Pullitzer de 94. Carter não suportou a responsabi-lidade de tê-la produzido e publicado.

Qual é a causa do sofrimento diante dessa ima-gem? Primeiramente, o lugar do homem. Não é mais ohomem que come, que domina, que festeja, e sim é abesta que devora o homem. O homem torna-se alimen-to do animal. Mas o animal não é um leão, que investe eluta, e que dignifica a morte de um guerreiro masai;

RADIS 8 ! ABR/2003

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Ilustrações

Optamos por complementaresta reportagem de duas

maneiras: com literatura e comhumor. Da literatura tiramos aarte poética de Gregório deMatos, Machado de Assis, Cas-tro Alves, Euclides da Cunha,Augusto dos Anjos, Manuel Ban-deira, Carlos Drummond deAndrade, Patativa do Assaré, JoãoCabral de Melo Neto, Haroldo deCampos e Ferreira Gullar, que,de um modo ou de outro, re-presentaram a fome em suas pá-ginas. A poesia, como diz Manoelde Barros, é um “desaprenderos princípios”, um “desinventarobjetos” e um “fazer delirar overbo”. Desse delírio nasce ou-tra intuição do mesmo mundo.Do humor utilizamos os cartunsde Edgar Vasques, Luiz FernandoVeríssimo e Afo para mostrar aqui-lo que a razão não consegue di-zer. O cartum atravessa nossasmentes lógicas com uma flechade fogo que estabelece outra‘lógica’, uma súbita e íntima re-velação cuja expressão é a risa-da. Nossos profundos agradeci-mentos aos artistas.

Fome! E, na ânsia voraz que, ávida, aumenta,Receando outras mandíbulas a esbanjem,Os dentes antropófagos que rangem,Antes da refeição sanguinolenta.

AUGUSTO DOS ANJOS (1884 — 1914)A FOME E O AMOR (A UM MONSTRO)

não é uma víbora traiçoeira, queescondida inocula o secreto vene-no; não é uma bactéria ou um vírus,que, invisíveis, promovem acorrupção de dentro pra fora. Oanimal é um abutre, covardecomedor de carniça, que ali se nu-tre da mais evidente decadência daexperiência humana: a morte em de-corrência da fome, no fértil plane-ta em que reinamos absolutos e do-minamos com a razão, a arte e aciência. Para os que adotam taldicotomia, é a vitória da Naturezasobre a Cultura, em virtude de umerro crasso dessa última.

Nós olhamos a foto ea foto, tal como na ex-pressão nietzscheanaacerca do abismo, tam-bém olha dentro de nós.Ao encararmos a foto, nossentimos responsáveis por

vê-la. Podíamos preferir não tê-lavisto, como o fotógrafo preferia nãotê-la feito (“Odeio aquela foto”, dis-se, certa vez). Tarde demais: somoseternamente responsáveis pelo quevemos e ouvimos, pelo que ‘cativa-mos’ e aprisionamos em nós. Cadaum, é claro, lida à sua maneira comessa responsabilidade. Em terceirolugar, aparece uma forte reação deculpa. Culpa porque comemos, por-que nossos filhos comem, porquepermitimos que outras pessoas so-fram a fome num mundo (sabe-sedisso) perfeitamente abastecido egeneroso. Culpa por culparmos oEstado e depois lavarmos as mãos.Culpa por elegermos governantesincapazes de co-padecerem, comonós e conosco.

O fato é que a fome avilta o lugardo homem neste planeta, que nãoprecisa ser o píncaro de uma domina-ção egóica e exterminadora, mas podebem (e deve!) ser uma verde planíciede integração com todas as outras for-mas de vida, pelo reconhecimento quea vontade-de-viver as anima da mesmamaneira que a nós. A fome de um indi-víduo é o sofrimento indizível de todaa espécie, e co-padecemos, e abre-se em nós um vazio moral impossívelde ser preenchido, por mais dinheiroque gastemos nos shopping-centers oupor mais títulos e realizações que acu-mulemos. Por fim, a fome no planeta éum dedo acusador constantementeapontado para nosso rosto, a nos re-cordar nossa monumental, ancestral,fundamental, inacreditável falha. “Afome existe desde sempre”, dizem al-guns. Isso só quer dizer que, desdesempre, falhamos.

Em segundo lugar, há compaixão.O sofrimento de uma criança, devidoa algum misterioso mecanismo inter-no nosso, faz disparar uma imediataempatia, e tal sofrimento dói em nós,por mais distante que esteja. ‘Sofre-mos-com’, co-padecemos, e isso acar-reta uma terrível responsabilidade.Carter sentiu-se responsável não sópor ter clicado a foto, mas tambémpela situação em que se encontravaaquele pequeno ser humano semnome. Ele viu a menina cambalear, ten-tando chegar a um posto de alimen-tação, até deixar de resistir. Ele es-perou, segundo suas próprias palavras,cerca de vinte minutos para acionaro disparador, aguardando que o abu-tre abrisse as asas, o que não acon-teceu. Depois de fazer a foto, espan-tou a ave, sentou-se junto a umaárvore e acendeu um cigarro. A cri-ança estava morta. “Falei com Deus,senti vontade de abraçar minha filhae chorei”, disse. Em entrevistas pos-teriores, Carter deu várias versõespara o que fez depois de ter clicadoa foto. O peso dessa responsabilida-de foi maior mesmo do que o valor desua própria vida.

Os melhores olhos para lermos estarevista, e para encararmos o problemada fome no Brasil, são os olhos de quem,como Édipo, dispõe-se com toda a almaa remediar uma falha, a extirpar uma gravemancha que conspurca sua terra. Ao fi-nal do ato, podemos vir a descobrir, comoÉdipo, que nós mesmos somos a causa eos causadores de tal mancha. Não so-mos gregos, não precisamos arrancar osolhos por isso. Mas somos brasileiros,mestiços, apaixonados, bem-humorados,resistentes e criativos. Bem que pode-mos dar um jeito.

O RADIS ADVERTE:

Quem tem fome tem pressa, pois sacovazio não pára em pé e, se a fome émá conselheira, é porque o homem éaquilo que come. Está mais do queclaro que passar fome faz muito, mui-to mal à saúde. E que, por outro lado,apesar de toda boa vontade das cam-panhas e do programa de governo decombate à fome, prudência e caldode galinha não fazem mal a ninguém.Prudência não nos falta, mas o caldode galinha, até esse anda faltando.

...tornam-se pessoas bem alimentadas.

Invertendo-se a figura, alimentos...

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Ana Beatriz de Noronha, comcolaboração de Katia Machado

Com essas palavras, ditas em seudiscurso de posse, o presidente

Lula trouxe à baila o polêmico tema dafome. Mas o que é exatamente fome?De que fome tratamos quando falamosem ‘acabar com a fome no país’? Porque motivo, quando se fala de fome,se fala obrigatoriamente em pobreza?

Segundo Ricardo Abramovay, nolivro O que é fome, da coleção Pri-meiros Passos, a palavra fome tem doissignificados bem distintos. Um delesé o de apetite, vontade de comer,um fenômeno instintivo que nos levaa buscar alimentos e, conseqüente-mente, preservar a nossa vida. O ou-tro, de subalimentação ou desnutri-ção, tem a ver com a impossibilidadede se alimentar ou com o fato de sealimentar de forma errada.

Para Carlos Augusto Monteiro, doDepartamento de Nutrição da Facul-dade de Saúde Pública da Universi-dade de São Paulo, é preciso que sedefina com clareza a dimensão quecada um desses “três flagelos” — apobreza, a desnutrição e a fome —alcançam em nosso país.

— Pode-se dizer que pobrezacorresponde à condição de não satis-

fação de necessidades humanas ele-mentares como comida, abrigo, vestu-ário, educação e assistência à saúde.As definições operacionais de pobrezalevam em conta a renda das famílias e achamada linha de pobreza correspondeao mínimo de renda que as pessoasdevem ter para satisfazerem suas ne-cessidades básicas. Quando a linha dapobreza se baseia apenas no custo daalimentação, estamos diante de umacondição de pobreza extrema ou in-digência. As deficiências nutricionais,por sua vez, são doenças que decor-rem da ingestão insuficiente de ener-gia e de nutrientes ou ainda do mauaproveitamento biológico dos alimen-tos ingeridos, e pode ser perfeitamen-te diagnosticada por meio de exameslaboratoriais. Resta a fome, certamen-te o problema mais difícil de se defi-nir e mensurar. “Se descartarmos afome aguda, ou momentânea, quecorresponde ao apetite, temos quepensar na fome crônica, permanen-te, que ocorre quando a alimenta-ção habitual não propicia ao indiví-duo energia (calorias) suficiente paraa manutenção do seu organismo epara o exercício de suas atividadescotidianas”, explica o professor, lem-brando que as dificuldades técnicas dese medir, de forma confiável, a ingestãoalimentar habitual dos indivíduos e suas

correspondentes necessida-des energéticas tornam difícila mensuração direta da exten-são da fome ou da deficiênciaenergética crônica em umapopulação, que acaba sendodeterminada de forma indire-ta a partir da avaliação do

percentual de pessoas que apresen-tam insuficiente relação peso/altura.

É possível, portanto, que umapessoa seja pobre, mas não passefome e que, em situações especiais,de guerra ou catástrofes naturais,por exemplo, haja fome sem que hajapobreza. Além disso, se podemos afir-mar que a fome sempre acarreta de-ficiências nutricionais, não podemosdizer que todas as deficiências sãodevidas a falta de comida.

Muitas vezes a desnutrição ocor-re por conta da baixa qualidade dosalimentos ingeridos, da falta de higi-ene no preparo dos alimentos, dedoenças diarréicas e parasitoses in-testinais ou até mesmo por questõessociais (preocupação com a estéti-ca) e culturais (restrições alimenta-res) ou por distúrbios alimentares deordem psicológica, como a anorexiaou a bulimia. Isso significa que, ape-sar de serem igualmente graves e in-desejáveis, a fome, a desnutrição e apobreza não são a mesma coisa e,dessa forma, requerem também solu-ções com escala, investimentos econteúdos distintos.

Na opinião de D. Mauro Morelli,bispo de Duque de Caxias (RJ), se hou-vesse decisão política e boa gestão se-ria possível acabar com a fome no Brasilem cinco anos, mas não com a miséria.

— Eu acho que temos condições ecompetência para produzir e distribuiralimentos e isso acabaria com o proble-ma da fome. Quanto à miséria, eu pen-so que seriam necessários uns 50 anospara se eliminar as suas marcas.

Ainda de acordo com CarlosAugusto Monteiro, todas as ações

Fome crônica de cidadania

Não nego meu sangue, não nego meu nome.Olho para a fome, pergunto: que há?Eu sou brasileiro, filho do Nordeste,Sou cabra da peste, sou do Ceará.

PATATIVA DO ASSARÉ (1909 — 2002)CABRA DA PESTE

Enquanto houver um irmão brasileiro ou uma irmã brasileirapassando fome, teremos motivo de sobra para nos cobrir-mos de vergonha. Por isso, defini entre as prioridades demeu governo um programa de segurança alimentar que levao nome de ‘Fome Zero’. Como disse em meu primeiro pro-

nunciamento após a eleição, se, ao final do meu mandato, todos osbrasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçare jantar, terei cumprido a missão da minha vida. É porisso que hoje conclamo: Vamos acabar com a fome emnosso País. Transformemos o fim da fome em uma grandecausa nacional, como foram no passado a criação daPetrobrás e a memorável luta pela redemocratização do País.

Luiz Inácio Lula da Silva, 1º de janeiro de 2003

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que combatam eficientemente a po-breza são obviamente muito importan-tes na luta contra a desnutrição e afome. “Entretanto”, diz ele, “a experi-ência nacional e internacional mostraque somente com a intensificação dosinvestimentos em educação, saneamen-to do meio ambiente e cuidados bási-cos de saúde poderá se erradicar oproblema de forma definitiva”.

— As evidências indicam queações específicas de combate à fome,em particular ações de distribuição dealimentos, diretamente ou através decréditos ou cupons, deveriam serempregadas no Brasil de modo limita-do e apenas em condições excepcio-nais e devidamente justificadas. A ex-pansão desmedida de ações dedistribuição de alimentos, ao contrá-rio do que talvez indiquem o sensocomum e a indignação justificada di-ante de uma sociedade tão injustacomo a brasileira, implicaria apenasconsumir recursos que poderiam fal-tar para ações sociais melhorjustificadas e mais eficientes — diz.

Para Chico Menezes, diretor deProgramas do Instituto Brasileiro deAnálises Sociais e Econômicas (Ibase),o termo ‘fome’ tem um apelo muitoforte e serve para chamar atençãosobre um grave problema, mas, den-tro do conceito de segurança alimen-tar, qualquer política que vise resol-ver o problema da fome não podedescuidar do aspecto nutricional.

— A falta de micronutrientes ecomponentes necessários à vida aca-ba gerando sérios danos à saúde eessa não pode ser considerada umaquestão menor. Muitos acham quebasta dar de comer, mas é importan-te ver o tipo de alimento e sua com-posição. No Brasil, existem problemas

nutricionais graves que atingem to-das as camadas da população. É claroque as camadas mais pobres da po-pulação estão mais prejudicadas, masalgumas pesquisas mostraram que hádeficiência de cálcio e ferro em to-das as camadas sociais — explica ele.

O CONCEITO DESEGURANÇA ALIMENTARO conceito de Segurança Alimen-

tar e Nutricional tem sido difundidono mundo desde o início do séculoXX, e significa “garantia, a todos, decondições de acesso a alimentos bá-sicos de qualidade, em quantidadesuficiente, de modo permanente esem comprometer o acesso a outrasnecessidades essenciais, com base empráticas alimentares saudáveis, con-tribuindo, assim, para uma existênciadigna, em um contexto de desenvol-vimento integral da pessoa humana”.

É um conceito muito abrangenteque, segundo Chico Menezes, englo-

Os efeitos da fome

ba noções do alimentar e donutricional, enfatiza os aspectos doacesso e da disponibilidade em ter-mos de suficiência, continuidade epreços estáveis e compatíveis com opoder aquisitivo da população, ressal-ta a importância da qualidade e valori-za os hábitos alimentares adequados,colocando a segurança alimentar enutricional como uma prerrogativabásica para a condição de cidadania.

O termo Segurança Alimentarsurge após a Primeira Guerra Mundi-al, por causa da preocupação de queum país pudesse dominar outro, pormeio do controle sobre o forneci-mento de alimentos. Originariamen-te, portanto, a idéia de SegurançaAlimentar fazia parte da idéia de Se-gurança Nacional e apontava para anecessidade de autosuficiência naprodução e de formação de estoquesestratégicos de alimentos.

No Brasil, para diversos autores,a principal causa para a insegurançaalimentar é a dificuldade de acessoaos produtos alimentícios, principal-mente por conta da falta de poderaquisitivo de uma grande parcela dapopulação para adquirir a quantida-de mínima de alimento necessáriapara sua sobrevivência. Existem, noentanto, muitos outros fatores quecontribuem para a insegurança ali-mentar, entre os quais falta de aces-so aos bens de produção, na árearural, especialmente à terra; falta deacesso a serviços públicos de água,esgoto, educação e saúde; dificulda-de de acesso à informação, principal-mente por conta do analfabetismo, au-mento das importações de alimentos,deixando a soberania alimentar do paísameaçada, e ganância do empresariadonacional, que muitas vezes diminui aoferta de produtos, buscando uma ele-vação de preços.

Ninguém morre de fome, pelomenos segundo os atestados

de óbito, que registram apenas asdoenças e problemas causados porela, como infecções ou falência deórgãos vitais. A morte, no entanto,é apenas o fim de uma agonia queapresenta diversos sintomas.

Após um dia sem comer, a pes-soa tende a apresentar apatia, can-saço e fraqueza. O metabolismo e apressão tendem a cair, resultandoem sonolência e sensação de frio.O organismo começa a produzircetonas, o que causa mau hálito.Após uma semana sem se alimentar,

a pessoa começa a ter cãibras, re-dução da atividade cerebral, perdade peso e de massa muscular e di-minuição do volume sangüíneo, oque dá à pele um tom amarelado.Quatro semanas sem comer levam,entre outros sintomas, a arritmiascardíacas, por falta de potássio, con-fusão mental, infecções na pele enos intestinos, queda de cabelo, in-suficiência renal e riscos de entrarem coma, caso a temperatura cor-poral caia a menos de 35o C. A fomeprolongada, portanto, afeta, de umamaneira ou de outra, todos os ór-gãos do corpo humano.

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AOrganização das Nações Unidas para a Agricultura e Ali-

mentação (The Food andAgriculture Organization of theUnited Nations — FAO) foi fun-dada em outubro de 1945, como objetivo de elevar os níveisnutricionais das populações,ampliar a produtividade agríco-la, melhorar a qualidade devida da população rural e con-tribuir para o crescimento daeconomia mundial. Hoje, a FAOagrega 184 países e mais a Co-munidade Européia, como orga-nização membro. Seu esforçomaior é o de diminuir a fome, adesnutrição e a pobreza nomundo. Por meio da FAO, sãoaprovadas normas internacio-nais que cuidam da saúde e domeio ambiente, e muitos convê-nios e acordos são estabeleci-dos e pactuados. Entre os espa-ços de encontro e discussão dospaíses membros, o mais impor-tante é a Conferência da FAO,na qual as nações se reúnemanualmente. A sede da FAO estálocalizada em Roma, na Itália,desde 1951.Mais informações: www.fao.org

Ninguém pode negar: a questão dafome está na ordem do dia. A preo-

cupação com o tema, no entanto, já éantiga para um grande número de pes-quisadores, organizações não-governa-mentais, organismos internacionais egovernantes. A novidade é que atualmen-te se fala abertamente sobre o assunto.

“Quais são os fatores ocultos des-ta verdadeira conspiração de silêncioem torno da fome? Trata-se de um silên-cio premeditado pela própria alma dacultura: foram os interesses e os pre-conceitos de ordem moral e de ordempolítica e econômica de nossa chamadacivilização ocidental que tomaram a fomeum tema proibido, ou pelo menos pou-co aconselhável de ser abordado publi-camente”, perguntava e respondiaJosué de Castro, em seu livro Geografia

da fome, publicado em 1946. O quemudou? O que fez cair o tabu?

UMA PEDRA NOSAPATO DO CAPITALISMOPara muitos, o fato de a questão

da fome ter chegado à mídia refleteuma determinação crescente que di-versas organizações internacionais,entre elas a FAO e o Banco Mundial,demonstram no combate ao que podeser caracterizado como o maior pro-blema social da humanidade. Mais doque nunca, inúmeros programas de-senvolvidos por essas organizações,em nível mundial, estão voltados parao combate aos flagelos da miséria eda fome, considerados símbolos de fra-casso do capitalismo liberal, uma ide-ologia que afirma ser a única capaz

de trazer bem-estar e felicidade atodos os habitantes do planeta.

A Cúpula Mundial da Alimenta-ção, realizada em 1996, foi palco deum compromisso firmado entre 186países para reduzir à metade o nú-mero de desnutridos no mundo atéo ano de 2015. Infelizmente, segun-do a própria FAO, no Relatório deInsegurança Alimentar no Mundo(2001), muito pouco ou praticamen-te nada teria sido feito para se al-cançar a meta desejada. Dois anosdepois da Cúpula, o número de sub-nutridos no mundo, estimado emcerca de 830 milhões, permaneciainalterado. Atualmente, o prazo parao cumprimento da meta foi estendi-do para o ano de 2030.

UM PROBLEMA SECULARNo Brasil, como afirma Chico

Menezes, o problema da fome é secu-lar, mas só se tornou visível devido à co-ragem e determinação de figuras comoJosué de Castro, que desnaturalizou afome, classificando-a como “flagelo fa-

Breve históriado combate à fome

“Mais grave aindaque a fome agudae total, devido àssuas repercussõessociais e econômi-cas, é o fenômenoda fome crônica ouparcial, que corróisilenciosamenteinúmeras popula-ções do mundo.”(Josué de Castro)

Nascido em Recife, em 1908,Josué de Castro foi personali-

dade marcante na área de Alimen-tação e Nutrição e combate à fome.Formou-se em Medicina pela Uni-versidade do Brasil, atual Universi-dade Federal do Rio de Janeiro, eexerceu a carreira de professor noBrasil, na República Dominicana eno Peru.

A dedicação à causa da fomefoi expressa por meio de ações epalavras. Em 1933, chefiou a Comis-são que realizou o inquérito sobreas Condições de Vida das ClassesOperárias do Recife e, em 1936, fezparte da Comissão de Inquéritopara Estudo da Alimentação do PovoBrasileiro, realizado pelo Departa-mento Nacional de Saúde. Em 1939,idealizou e organizou o Serviço Cen-tral de Alimentação, que depois foitransformado no Serviço de Alimen-tação da Previdência Social (SAPS).Em 1946, criou e dirigiu o Institutode Nutrição da Universidade do

Brasil. Foi presidente da Socieda-de Brasileira de Alimentação; da As-sociação Mundial de Luta Contra aFome (Ascofam); do Comitê Gover-namental da Campanha de LutaContra a Fome, da Organização dasNações Unidas (ONU); do CentroInternacional para o Desenvolvimen-to (CID), em Paris; e da AssociaçãoMédica Internacional para o Estu-do e Condições de Vida e Saúde(Amiev). A relevância de seu traba-lho rendeu a Josué de Castro oconvite da FAO para participarcomo delegado da Conferência deAlimentação e Agricultura das Na-ções Unidas e para ser membro doComitê Consultivo Permanente deNutrição da FAO.

Dono de uma extensa biblio-grafia, já em 1933 publicava O pro-blema da alimentação no Brasil,o primeiro de mais de trinta tra-balhos, entre os quais a Geogra-fia da fome (1946) e a Geopolíticada fome (1951), que foram tradu-zidos para mais de 25 idiomas ese tornaram referência mundialsobre o tema.

Josué foi ainda deputado fe-deral pelo estado de Pernambuco,de 1954 a 1962, e embaixador doBrasil na ONU, de 1962 a 1964, quan-do pediu demissão logo após o gol-pe militar. Em abril do mesmo ano,teve seus direitos políticos cassa-dos e exilou-se em Paris (França),onde morreu no dia 24 de setem-bro de 1973.

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bricado pelos homens contra outroshomens”, e Betinho, que associou o di-reito à alimentação à cidadania.

É impossível determinar uma úni-ca causa para o problema da fomeque, no Brasil, está diretamente rela-cionada à desigualdade social, que co-meça ainda no processo de coloniza-ção e se intensifica ao longo do tempo,a despeito de inúmeras mudanças po-líticas e econômicas ocorridas no país.Com a perpetuação da desigualdadee as pressões de mercado aliadas àinexistência ou descontinuidade deprojetos públicos para tentar soluci-onar o problema, ele veio aumentan-do de proporção.

INICIATIVAS DE GOVERNONo âmbito do governo federal,

o que se pode observar no Brasil éuma enorme instabilidade da políti-ca alimentar. O início da década de90, por exemplo, foi marcada tantopelo desmonte, na época do presi-dente Fernando Collor, dos princi-pais programas existentes, quantopela retomada da idéia de que ocombate à fome teria que envolverobrigatoriamente medidas de cará-ter estrutural.

O Mapa da Fome divulgado peloIpea em 1993 revelou a gravidade doproblema e incentivou a criação doConselho Nacional de Segurança Ali-mentar (Consea), então composto poroito ministros e 21 representantes dasociedade civil, cuja principal atribui-ção era a de coordenar a elaboraçãoe implantação do Plano Nacional deCombate à Fome e à Miséria, basea-do nos princípios da solidariedade,parceria e descentralização. De acor-do com o Consea, o combate à misé-ria e à fome só seria efetivo se envol-vesse a geração de emprego e renda,a democratização da terra, o comba-te à desnutrição materno-infantil, ofortalecimento e a descentralizaçãodo Programa Nacional de AlimentaçãoEscolar, o uso contínuo de estoquespúblicos no Programa de DistribuiçãoEmergencial de Alimentos (Prodea) ea revisão do Programa de Alimentaçãodo Trabalhador (PAT). Nessa época, ga-nhou consistência a idéia de que ocombate à fome é um problema degoverno e uma questão estratégicaque, como tal, deve estar ligada dire-tamente ao gabinete da Presidência.Além disso, também ficou clara a ne-cessidade das ações serem pensadasde forma intersetorial, envolvendo di-ferentes níveis de governo e tendo in-tenso apoio da sociedade.

Em 1994, foi realizada a PrimeiraConferência Nacional de Segurança Ali-mentar, na qual se concluiu que asconcentrações de renda e de terraeram os principais motivos do quadro

“O Brasil temfome de ética epassa fome emconseqüênciada falta de éti-ca na política.”(Betinho)

Osociólogo e idealizador do mo-vimento ‘Ação da Cidadania

contra a Fome, a Miséria e pelaVida’ Herbet de Souza, o Betinho,nasceu em 1935, em Bocaiúva (MG).Aos 18 anos, ao ingressar no movi-mento estudantil, inicia sua vida deativista político. Após o golpe de 64,vai para o Uruguai, de onde retornano ano seguinte para acompanharo nascimento de seu filho Daniel.No Brasil, vive na clandestinidadeaté 1971, quando se instala em San-tiago (Chile), sendo convidado paratrabalhar como pesquisador na Fa-culdade Latino-Americana de Ciên-cias Sociais (Flacso) e na Oficina dePlanificación (Odeplan) onde, jun-tamente com Juan Garcez, prestaassessoria ao então presidente Sal-vador Allende. Após o golpe militarchileno vai para o Canadá, ondepermanece até 1977. Nesse perío-do, organiza um centro de estudos

sobre o Brasil, em parceria comCarlos Alberto Afonso (amigo desdeo exílio no Chile). Em 1978, vai parao México a convite da Universida-de Nacional Autônoma e, em 1979,com a anistia política, volta defini-tivamente para o Brasil.

No país, prepara projetos parademocratizar a informação e, emconjunto com Carlos Alberto Afon-so e Marcos Arruda, funda o Insti-tuto Brasileiro de Análises Sociais eEconômicas (Ibase). Betinho atuoucomo consultor da FAO para Proje-tos Agrários e Migrações na Améri-ca Latina e coordenou a CampanhaNacional pela Reforma Agrária.

Hemofílico, Betinho contrai ovírus da Aids em 1986, numa transfu-são de sangue. A doença, entretan-to, não o impede de dar continui-dade à seus projetos, entre os quaiso Movimento pela Ética na Política(MEP) e a Ação da Cidadania contraa Fome, a Miséria e pela Vida, queganhou grande repercussão, disse-minando pelo país mais de 3 mil co-mitês. Durante o governo ItamarFranco, participa do Conselho Naci-onal de Segurança Alimentar(Consea), como representante da so-ciedade civil. Debilitado pela doen-ça, Betinho morre em 9 de agostode 1997, no Rio de Janeiro.

Presa nos elos de uma só cadeia,A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali!

CASTRO ALVES (1847 — 1871)O NAVIO NEGREIRO

de insegurança alimentar existenteno país. A coordenação do ProgramaNacional de Alimentação (Pronam) fi-cou a cargo do Instituto Nacional deAlimentação (Inan), órgão do Minis-tério da Saúde, mas o Programa nãofoi adiante. No governo de FernandoHenrique Cardoso, o Consea foi ex-tinto e, posteriormente, em julho de1997, o Inan. Na opinião de ChicoMenezes, este foi um dos maioresequívocos do governo.

— Essa decisão não ocorreu como objetivo de reorganizar o setor, maspela lógica de ‘enxugamento’ da má-quina administrativa. Durante um bomtempo, não houve nenhuma medidaque reorganizasse o corpo técnico egarantisse a continuidade dos progra-mas que estavam subordinados ao ór-gão, como o de combate às carênciasde iodo, ferro e vitamina A — diz ele.

Para muitos especialistas da área,a opção pela estabilidade econômicaacabou interferindo negativamentenos programas da área social e pre-judicou sensivelmente o combate àfome e à miséria. De acordo comChico Menezes, não se pode negarque o Brasil finalmente conseguiu al-cançar uma certa estabilidade eco-nômica após muitas décadas de infla-ção, e isso fez com que a população

de baixa renda passasse a ter acessoa produtos que antes não faziam par-te de sua dieta, como iogurtes e car-nes congeladas. Para ele, no entan-to, as medidas tomadas para garantira estabilidade monetária resultaram,a longo prazo, na diminuição dos in-vestimentos nos setores produtivos daeconomia, gerando retração na de-manda por bens e serviços, aumentosignificativo do desemprego eprecarização das relações trabalhis-tas, além, é claro de cortes de pro-gramas que apoiavam populações maisvulneráveis.

— Quando se analisam os dadosda última Pesquisa Nacional por Amos-tra de Domicílios (Pnad), você vê queas perdas estão voltando. Os efeitosbenéficos da estabilidade econômi-ca estão se esgotando e isso é mos-trado até mesmo pelo Ipea, que é umórgão do governo. Na verdade, a es-tabilidade da moeda só foi importan-te para a parcela da população queconseguiu preservar seus empregos

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e seus direitos trabalhistas. Para quemnão tem renda, a estabilização eco-nômica não significa nada — diz ele.

OS PROGRAMASDO GOVERNO FEDERAL

!!!!! Programa de Alimentação do Traba-lhador (PAT) — Tem por objetivosprincipais a melhoria das condiçõesnutricionais dos trabalhadores e a in-trodução da educação alimentar, visan-do melhorar a qualidade de vida, redu-zir o número de acidentes de trabalhoe aumentar a produtividade. Instituídoem 1976 e regulamentado em 1991, oPAT era voltado inicialmente para os tra-balhadores de baixa renda, que ganhamaté cinco salários mínimos mensais. Pos-teriormente, o Programa foi estendidoaos demais trabalhadores. As empresasque participam do PAT recebem incen-tivo fiscal e são isentas de recolher en-cargos sociais sobre os alimentos distri-buídos. No ano 2000, já eram cerca de7,7 milhões de trabalhadores beneficia-dos pelo PAT. Um dado importante é quecerca de 70% desses trabalhadores es-tão na região Sudeste, principalmenteem São Paulo (40%) e Rio de Janeiro(11%), e pertencem a empresas de gran-de porte, com mais de mil empregados.Alguns dos problemas do PAT são: a difi-culdade de adesão das pequenas em-presas ao Programa, a comercializaçãodos tíquetes e a falta de divulgação en-tre os próprios trabalhadores.!!!!! Programa de Combate às CarênciasAlimentares — Desde a extinção doInan, o combate às carências nutricionaistem sido feito por meio do Incentivo aoCombate às Carências Nutricionais(ICCN), que faz parte da Política Nacio-nal de Alimentação e Nutrição (Pnan)do Ministério da Saúde.Por meio do ICCN, cria-do em 1998, o Ministé-rio repassa recursospara as prefeituras dis-tribuírem leite em pó,óleo de soja e sulfatoferroso, ou alimentos demesmo valor nutritivo,para crianças desnutri-das de seis meses a doisanos de idade. Eventu-almente, o Programatambém atende a cri-anças de dois a cincoanos, gestantes e ido-sos. Até 2002, segundo relatório do Mi-nistério, o programa havia sido implan-tado em 5.127 municípios, beneficiandocerca de 800 mil pessoas. A despeitodos resultados alcançados, como a re-dução de 15% do risco nutricional e oganho de peso acima do esperado em71% das crianças atendidas, o progra-ma sempre sofreu várias críticas da-queles que afirmam que o problemada carência nutricional não pode ser

resolvido com o fornecimento de ali-mentos pouco variados. A idéia do go-verno era o de substituir o ICCN gra-dualmente pelo Programa BolsaAlimentação.!!!!! Programa Bolsa Alimentação — Lan-çado em setembro de 2001, o Progra-ma é dirigido a gestantes, a mães queestão amamentando bebês de até seismeses e a crianças de até sete anosque estejam em risco nutricional. A pro-posta é fornecer, por meio de cartãomagnético, uma renda mensal adicio-nal de R$15,00 a cada beneficiário per-tencente a famílias sem renda ou quepossuam renda mensal de até R$90,00per capita, com limite máximo de R$45,00 para cada família. A família cadas-trada se compromete a realizar umaagenda de compromissos em saúde,que consiste em ações básicas comopré-natal, vacinação, acompanhamen-to do crescimento e desenvolvimentoinfantil, além da participação em ativi-dades educativas em saúde e nutrição.O Programa é destinado a todos os mu-nicípios brasileiros que estejam habili-tados em uma das formas de gestãoestabelecida pelo Sistema Único de Saú-de, cabendo às Secretarias Municipaisa oferta das ações básicas de saúde paraos beneficiários do Programa, bem comoa seleção, inscrição e acompanhamen-to das famílias.!!!!! Programa de Distribuição Emergen-cial de Alimentos (Prodea) — A idéiade um programa de distribuição decestas básicas surgiu no governo Collore foi ampliada por Itamar Franco. Seuobjetivo inicial era a distribuiçãoemergencial para a população residen-te em bolsões de pobreza ou em muni-cípios em estado de emergência e

acampamentos dos tra-balhadores rurais sem-terra de alimentos doestoque público queestivessem em risco dese deteriorar. Executa-do pela Companhia Na-cional de Abastecimen-to (Conab), o Prodeafoi alvo de muitas críti-cas, acusado de tercaráter assistencialistae uso eleitoreiro. Inter-calando períodos deextrema debilidadecom outros de incrível

fortalecimento — como na época daseca de 1998, quando foram distribuí-das mais de 30 milhões de cestas bási-cas —, o Programa acabou sendo subs-tituído gradativamente por algunsprogramas de transferência de renda,como o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimen-tação. A simples extinção do Prodea,no entanto, gerou uma grande polêmi-ca. Em 12 de dezembro de 2000, porexemplo, uma reportagem da Agrofolha

mostrou que o enfraquecimento doPrograma teria causado uma enormecrise na pequena agroindústria porcausa da redução dos leilões públicospara formação de estoques.

AS POLÍTICAS LOCAISE A AÇÃO COMUNITÁRIANem só de programas federais vive

a luta contra a fome. Vários estados emunicípios têm desenvolvido experiên-cias de sucesso no âmbito da seguran-ça alimentar. As iniciativas são muitase entre elas podemos destacar a dosrestaurantes populares, a dos bancosde alimentos, que visam à redução dodesperdício, e a do fornecimento gra-tuito de comida a moradores de rua.Além disso, houve a descentralizaçãodo Programa de Merenda Escolar, oque significou um grande avanço.Pode-se observar que, quanto mais lo-calizada a ação, maior é o apoio dacomunidade e melhores são os resul-tados. Outro ponto importante na lutacontra a fome é a participação de en-tidades ligadas às questões sociais ede saúde, como, por exemplo, o Mo-vimento Popular da Área da Saúde(Mops) e as Pastorais da Criança e daSaúde, ligadas à Conferência Nacionaldos Bispos do Brasil (CNBB).

A Pastoral da Criança atende a3.555 municípios e 3 mil comunidades,incluindo 1 milhão e 600 mil criançasmenores de seis anos e gestantes.Segundo Zilda Arns, coordenadora daPastoral da Criança, a instituição apóiaas famílias visando à redução da mor-talidade infantil e materna, da desnu-trição e da violência no ambiente fa-miliar. “Nesse sentido”, explica ZildaArns, “a Pastoral, além de distribuir ali-mentos, atua na alfabetização de jo-vens e adultos, promovendo a auto-estima, e desenvolve projetos degeração de renda”. Para se ter umanoção do trabalho da Pastoral, bastacomparar os índices de mortalidadeinfantil no Brasil, estimado em 1999 peloUnicef, e o índice obtido nas áreas decobertura da Pastoral no mesmo ano,que são, respectivamente, de 34,6 ede cerca de 17 mortes para cada milcrianças nascidas vivas. O objetivo daPastoral é ampliar o seu trabalho parao Brasil inteiro e para isso conta como apoio de cerca de 155 mil voluntári-os capacitados e mais de milmultiplicadores, cuja importância édestacada por Zilda Arns:

— O voluntariado traz consigo asolidariedade, que é fundamental norelacionamento com a população mi-serável. O voluntário não leva apenascomida para as pessoas, ele faz comque elas se sintam valorizadas. As pes-soas precisam de pão, mas também defraternidade, e isso é coisa que o vo-luntário faz melhor que o servidor.

o azul é puro?o azul é pusde barriga vazia

poesia em tempo de fomefome em tempo de poesia

nomeio o nomenomeio o homemno meio a fomeno meio a fome

HAROLDO DE CAMPOS (1929 —)SERVIDÃO DE PASSAGEM

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De acordo com Sônia Rocha, notexto Opções metodológicas para

a estimação de linhas de indigênciae de pobreza no Brasil, apesar deexistirem muitos parâmetros impor-tantes para se determinar as condi-ções de vida de uma pessoa, como,por exemplo, o acesso a serviçospúblicos básicos, a renda ainda é odeterminante básico do nível debem-estar de uma população. É apartir da determinação das linhas depobreza (LP), associada à renda mí-nima necessária para que um indiví-duo funcione adequadamente nasociedade — podendo adquirir, alémda alimentação outros produtos ne-cessários —, e de indigência (LI), re-lacionada à capacidade de consu-mo alimentar mínimo para asobrevivência, que se pode ter umaidéia do percentual da populaçãoque, teoricamente, não tem acessoà alimentação mínima necessária. Seo percentual varia de acordo comas linhas estimadas e estas são defi-nidas, na maioria das vezes, direta-mente a partir do valor da cesta bá-sica, a definição da cesta básicaacaba sendo fundamental para aimplementação de qualquer proje-to de segurança alimentar.

O uso da renda como principalparâmetro para se discutir a questãoda fome não é, no entanto, uma una-nimidade. Na opinião de CarlosAugusto Monteiro, quando se traçaum mapa da fome baseado apenas narenda das famílias, se faz o diagnósti-co de uma coisa — a pobreza — parase tratar de outra — a fome.

CESTAS E CRITÉRIOSNo Brasil, existem várias propos-

tas de composição de cestas básicas,não havendo, por conta dessa diversi-dade, consenso na aceitação de umadeterminada cesta ‘padrão’, que sejausada como referência tanto pelogoverno quanto pelos vários setoresda sociedade civil organizada. Unsacreditam que a cesta deva ser com-posta a partir do consumo observado,ou seja, pelos alimentos que a popu-lação mais consome, independente-mente de sua composição nutricional.Outros defendem que a cesta básicadeve conter alimentos que assegurema completa satisfação das necessida-des nutricionais do ser humano.

Para Sônia Rocha, a opção peloconsumo observado implica aceitarque, mesmo com restrição de renda,as escolhas realizadas pelas famíliasem relação ao consumo alimentar nemsempre são feitas com base apenasno custo ou na qualidade do produ-to. Na verdade, segundo ela, estu-dos têm mostrado que, com a urba-nização e a melhoria dos meios decomunicação, as escolhas alimenta-res das famílias são feitas cada vezmenos com base na qualidadenutricional e no preço dos alimen-tos. Muitas vezes, o consumidor aofazer a escolha leva em conta apenasa praticidade do produto ou seu ape-lo publicitário.

Atualmente, é possível destacarduas propostas de cestas básicas: a doDecreto Lei 399 de 30 de abril de 1938,que institui o salário mínimo, e a doProcon/Dieese. A cesta básica do De-creto 138/38, que determina o consu-mo individual e não familiar, ainda é amais utilizada como referência do po-der aquisitivo dos assalariados. A cesta

básica do Procon/Dieese ganhou im-portância devido à divulgação mensalda relação de seu custo, comparadocom o salário mínimo. Uma terceiraopção seria a cesta básica do EstudoMulticêntrico realizado pelo Ministé-rio da Saúde, que tanto levava em con-sideração os alimentos mais consumi-dos pela população quanto buscavaassegurar uma satisfação nutricionaladequada, mas que não vingou, comoexplica Chico Menezes:

— Infelizmente, o Estudo Multi-cêntrico não foi adiante, não foi fina-lizado, porque o Ministério da Saúdecortou recursos para a pesquisa.Mesmo assim, chegou a mostrar oconsumo real e, a partir daí, a idéiaera apresentar nova proposta de ces-ta básica dentro do padrão alimentaratual e que mostrasse uma ingestãoadequada de todos os componentesnecessários. A cesta do decreto éinadequada porque está defasada etraz alimentos que não são mais con-sumidos, e a do Dieese incorpora pro-dutos de limpeza e de higiene.

Cesta básica e salário mínimo

siasnemsaminímseõsivorpedalebaT993ºnieLoterceDolepsadalupitse

sotnemilA 1oãigeR 2oãigeR 3oãigeR lanoicaN

enraC gk0,6 gk5,4 gk6,6 gk0,6

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ahniraF gk5,1 gk0,3 gk5,1 gk5,1

atataB gk0,6 — gk0,6 gk0,6

)etamoT(semugeL gk0,9 gk0,21 gk0,9 gk0,9

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A CESTA BÁSICA NACIONALEm 30 de abril de 1938, o De-

creto Lei nº 399 regulamentou aLei nº 185 de 14 de janeiro de 1936e definiu o salário mínimo como“remuneração devida ao trabalha-dor adulto, sem distinção de sexo,por dia normal de serviço, capazde satisfazer, em determinadaépoca e região do país, às suas ne-cessidades normais de alimenta-ção, habitação, vestuário, higie-ne e transporte”.

Estudos censitários e informa-ções salariais obtidas junto às em-presas das várias regiões serviramde base para que as Comissões doSalário Mínimo, criadas antes da ins-tituição do Decreto, estabeleces-sem os valores mínimos regionais aserem pagos aos trabalhadores. AsComissões também criaram a CestaBásica Nacional, uma lista de ali-mentos nas quantidades necessári-as para o sustento e bem estar deum trabalhador em idade adulta,contendo quantidades balanceadasde proteínas, calorias, ferro, cál-cio e fósforo. O decreto tambémestabeleceu uma estrutura de gas-tos do trabalhador, relacionandovalores percentuais dos saláriosaos gastos com habitação, alimen-tação, vestuário, transporte e hi-giene. Pelo Decreto, a parcela dosalário mínimo correspondente aosgastos com alimentação não podeter valor inferior ao custo da Ces-ta Básica Nacional.

PESQUISA DA CESTABÁSICA NACIONAL

Desde janeiro de 1959, quan-do começou a calcular o Índice deCusto de Vida (ICV) no município deSão Paulo, o DepartamentoIntersindical de Estatística e Estu-dos Sócio-Econômicos (Dieese) tam-bém passou a acompanhar mensal-mente o custo da Cesta BásicaNacional (Ração Essencial Mínima).Atualmente, o Dieese realiza a pes-quisa da Cesta Básica Nacional em

dezesseis capitais do país e acom-panha mensalmente a evolução depreços de treze produtos de ali-mentação, assim como o gasto men-sal que um trabalhador teria paracomprá-los. A pesquisa também re-vela quantas horas uma pessoa queganha salário mínimo deveria traba-lhar para adquirir os produtos re-lacionados. Com base no custo men-sal com alimentação obtido napesquisa da Cesta e no Decreto Leinº 399, que regulamenta o SalárioMínimo no Brasil, o Dieese tambémdivulga o valor que deveria ter osalário mínimo.

A partir do preço médio dosprodutos que compõem a cesta bá-sica e das quantidades estipuladas,determina-se o valor da cesta bási-ca. Depois, calcula-se o número dashoras que o trabalhador que ganhasalário mínimo precisa trabalharpara comprar essa cesta. O passoseguinte é o cálculo do Salário Mí-nimo Necessário. Esse cálculo sebaseia tanto na Constituição, quediz que o salário mínimo deve sercapaz de atender às necessidadesvitais básicas do trabalhador e desua família — moradia, alimentação,educação, saúde, lazer, vestuário,higiene, transporte e previdênciasocial — e ter reajustes periódicosque lhe preservem o poder aquisi-tivo, quanto no Decreto lei 399,que estabelece que o gasto comalimentação de um trabalhadoradulto não pode ser inferior aocusto da Cesta Básica Nacional. Afamília média considerada para ocálculo é composta por dois adul-tos e duas crianças, que consomemo mesmo que um adulto.

O que desejava... Ah! Esquecia-se.Agora se recordava da viagem quetinha feito pelo sertão, a cair defome. As pernas dos meninos eramfinas como bilros, sinhá Vitóriatropicava debaixo do baú de trens.Na beira do rio haviam comido opapagaio, que não sabia falar. Ne-cessidade.

GRACILIANO RAMOS (1892 — 1953)VIDAS SECAS

O primeiro passo é multiplicaro valor da cesta básica por três,para se obter o gasto alimentar dafamília. Depois disso, é feito o cál-culo do Salário Mínimo necessário,considerando-se, com base na Pes-quisa de Orçamento Familiar (POF),que as despesas com alimentaçãorepresentam 35,71% das despesastotais. O Salário Mínimo Necessá-rio corresponde a uma estimativado que deveria ser o salário mínimovigente e tem servido como um im-portante instrumento utilizado pe-los sindicatos de trabalhadores paradenunciar o descumprimento dopreceito constitucional que esta-belece as bases para a determina-ção da menor remuneração que vi-gora no país.

Em janeiro deste ano, por exem-plo, o estudo do Dieese registrou au-mento do valor da cesta básica em15 das 16 capitais pesquisadas. Os au-mentos variaram de 0,56% em PortoAlegre a 10,9% em Fortaleza. A únicacapital em que a cesta ficou maisbarata em relação ao mês anteriorfoi Belo Horizonte, com uma quedade 0,27%. Apesar de ter apresenta-do o menor aumento percentual,a capital gaúcha continua sendo acidade mais cara dentre aspesquisadas, com o custo da ces-ta básica de treze produtos che-gando a R$ 164,97. Levando-se emconta esse valor, um trabalhadorgaúcho que ganhe salário mínimoprecisaria trabalhar 181 horas e 28minutos para pagar sua alimentaçãoe o salário mínimo necessário, emjaneiro, deveria ser de R$ 1.385,91,ou seja, 6,9 vezes o piso vigente,de R$ 200,00.

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Quando se fala em erradicação dafome, o primeiro passo é definir

o número potencial de pessoas queestariam passando fome. Isso, noentanto, não é uma tarefa muitosimples, como mostra a falta de con-senso sobre o assunto que existeno país e a discrepância nos resul-tados. Quantos brasileiros afinalpassam fome? Os 3 milhões de CarlosAugusto Monteiro, os 16 milhões daFAO, os 22 milhões do Instituto dePesquisas Econômicas Aplicadas(Ipea), os 44 milhões do Fome Zeroou os 55 milhões da Fundação Ge-túlio Vargas (FGV)?

O CÁLCULO IDEALA melhor maneira de se calcu-

lar esse número, de acordo com osespecialistas, seria diretamente,através de estudos antropométricos— que levam em consideração opeso, a estatura e a idade daspessoas. Nesses estudos, calcu-la-se primeiramente o Índice deMassa Corporal (IMC) de uma par-cela da população adulta, defi-nindo-se o percentual de indiví-duos com IMC menor que 18,5 kg/m2. O IMC é dado pelo peso deuma pessoa dividido pelo quadra-do da sua altura. Depois, compa-ra-se o percentual obtido com osparâmetros da Organização Mun-dial da Saúde, que define comonormal um percentual de 3 a 5%de pessoas abaixo do limite esti-pulado. A prevalência de déficitenergético (fome) é graduada deleve, quando o percentual de pes-soas com IMC menor que 18,5 kg/m2 está entre 5 e 9%, até muitoalta, quando esse índice é de maisde 40% da população.

No Brasil, o último grande es-tudo desse tipo foi realizado em1995, por Carlos Augusto Monteiro.A pesquisa chegou a um valor 4%da população urbana e 7,5% da po-pulação rural abaixo do limite con-siderado. Esses números aplicadosao total da população do país, se-gundo o censo de 1991, resultari-

am em cerca de 3,2 milhões deadultos com fome.

OS MÉTODOS INDIRETOSDe forma indireta, um dos mé-

todos para se estimar a fome nospaíses, e que serve principalmen-te nas comparações internacio-nais, é o adotado pela FAO, queutiliza dados da produção, do sal-do comercial agrícola e dos esto-ques de alimentos do país aliadosao coeficiente de distribuição derenda e ao consumo alimentar. Oobjetivo é calcular, primeiramen-te, a disponibilidade calórica to-tal e per capita em cada país e,depois, a proporção de pessoasque têm um consumo calórico abai-xo do recomendado. A disponibili-dade calórica nacional refere-se àquantidade de alimentos, expres-sa em quilocalorias, que o país des-tina ao consumo humano, ou seja,o total de alimentos produzidosmenos as perdas e o que é desti-nado à exportação, à alimentaçãoanimal, ao uso industrial e à pro-dução de sementes. No período de1996/1998, a estimativa da FAO eraque a disponibilidade calórica doBrasil era de 2.960 kcal diárias por

Os números da fomee da pobreza no Brasil

pessoa. Um resultado excelente,considerando-se que o consumomédio individual deveria ser de1900 kcal por dia. O problema co-meçava quando as outras variáveiseram aplicadas. Por conta da desi-gualdade social, o resultado final

Afo

, 19

74Uma Caloria é a energia ne-

cessária para elevar em 01grau a temperatura de 01 gra-ma de água. Como esta unida-de de energia é muito peque-na, utiliza-se, na prática, umaunidade mil vezes maior, ouseja, a quilocaloria, abreviadapelas letras kcal. Se algum ali-mento é digerido pelo corpohumano, energia é gerada naforma de calor, que é o com-bustível para manter a tem-peratura interna do corpo, oritmo do coração, a respira-ção, a atividade muscular etodo o resto. A OrganizaçãoMundial de Saúde recomendaque os homens entre 10 e 50anos consumam de 2.000 a3.000 calorias diárias e as mu-lheres em torno de 2.200.

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OIpea é uma fundação pública,subordinada ao Ministério do

Planejamento, Orçamento e Gestão.Entre suas principais atribuições es-tão: realizar estudos e análises quesirvam de subsídio à elaboração,acompanhamento e avaliação de po-líticas públicas; prestar assessoriatécnica ao governo; disseminar in-formações e conhecimentos pormeio de publicações, seminários eoutros veículos; participar de co-missões, grupos de trabalho e ou-tros fóruns. Também cabe ao Ipea acapacitação técnica e institucionalpara o planejamento e avaliação depolíticas públicas e o estabelecimen-to de parcerias e convênios de co-operação técnica com instituiçõesnacionais e internacionais.Mais informações: www.ipea.gov.br

da pesquisa da FAO era que, nopaís, cerca de 10% da população,quase 16 milhões de pessoas, es-tavam subnutridas por consumi-rem, em média, apenas 1.650 kcaldiárias. Por conta desse resultado,numa classificação de 1 a 5, na qualquanto maior o número pior é oresultado, o Brasil foi classificadona categoria 3, juntamente compaíses como a Nigéria, o Paraguaie a Colômbia, entre outros.

A maioria dos métodos indire-tos, no entanto, costuma utilizaro critério de renda para estimar a

parcela da po-pulação quenão tem condi-ções de se ali-mentar conti-nuamente eque, portanto,está sujeita apassar fome.Dentro do gru-po de estudosreal izados apartir do crité-rio de renda,estão os do Ins-tituto de Pes-quisas Econô-

micas Aplicadas (Ipea), incluindo oMapa da fome de 1993, e o de Mar-celo Neri, realizado em 2000, quedeu origem ao Mapa do fim dafome, da Fundação Getúlio Vargas(FGV). O grande problema dessesestudos é que eles costumam apre-sentar resultados bastante dife-renciados, dependendo das linhasde pobreza e de indigência esti-puladas. Para se ter uma noção des-sa disparidade, basta observar osnúmeros divulgados por alguns ór-gãos e instituições. De acordo como Ipea, que trabalha baseado naPesquisa Anual por Amostra de Do-micílios (Pnad) do IBGE, cerca de22 milhões de brasileiros estãoabaixo da linha de indigência e,portanto, impossibilitados de se ali-mentar continuamente. Já O Mapa

do fim da fome, da FGV, conside-rou indigentes 50 milhões de bra-sileiros que, na época, recebiammenos de R$ 80 por mês.

Uma grande crítica sobre osmétodos que utilizam apenas a ren-da para inferir a fome vem do pes-quisador Carlos Augusto Monteiro:

— A pobreza, definida por cri-térios de renda, seguramente au-mentou. A fome e a desnutrição, noentanto, têm apresentado uma ten-dência inversa, com redução emtermos relativos e mesmo absolutos.A desnutrição infantil, em particu-lar, vem caindo fortemente no paísdesde meados dos anos 70. Hoje,podemos dizer que a desnutriçãoinfantil mais severa é encontradaapenas nas regiões Norte e Nordes-te do país, em particular nas áreasrurais. No livro Velhos e novos ma-les da saúde no Brasil: a evoluçãodo país e de suas doenças (EditoraHucitec), demonstramos que essedeclínio pode ser atribuído tanto aoaumento de cobertura da assistên-cia à saúde quanto ao aumento daescolaridade das mães e às melhoriasno saneamento do meio.

De acordo com Chico Menezes,no entanto, dados do Sistema deVigilância Alimentar e Nutricional(Sisvan) revelam um quadro gravede desnutrição infantil. Uma pes-quisa realizada em 1996, em 1300municípios de 16 estados, consta-tou uma média nacional de desnu-trição de 41%, em crianças entreseis e 24 meses.

Como se pode ver, há uma gran-de dificuldade em se chegar a nú-meros exatos e opiniões consensuaissobre a questão da fome no Brasil.Segundo Chico Menezes, isso ocor-re porque as pesquisas têm sidobaseadas apenas na definição daslinhas de pobreza e de indigência,não sendo considerados muitosoutros aspectos importantescomo, por exemplo, a situação nasáreas rurais, onde as famílias po-dem estar abaixo da linha de po-breza, mas podem ter agriculturade subsistência e não passaremfome. “Essa é uma possibilidadereal, mesmo quando se sabe quea situação dos pequenos produ-tores está muito ruim e que mui-tos não conseguem nem produzirpara o autoconsumo”, diz ele, ex-plicando ainda que seria necessá-rio a realização de uma pesquisa uni-versal, e não por amostragem, quelevasse em conta o peso e a alturadas pessoas, além de combinar es-ses dados com outros referentes adiversos aspectos, entre eles o decondições sanitárias e de consumode energia elétrica.

— É isso que nós estamos pro-pondo por meio do Conselho Naci-onal de Segurança Alimentar(Consea). O problema é que a rea-lização de uma pesquisa desse por-te implica num custo elevadíssimo,o que a torna quase inviável — la-menta Chico Menezes.

A despeito de tantos problemase de tantas contradições, existe umponto comum a quase todos os es-tudos: a conclusão de que a fomeainda é um grave problema no país.

O PÚBLICO BENEFICIÁRIODO PROGRAMA FOME ZERO

Durante a elaboração do Pro-jeto Fome Zero, que serviu de basepara o Programa Fome Zero institu-ído pelo governo federal, o Institu-to Cidadania encomendou uma pes-quisa para a determinação dopúblico a ser beneficiado pelo Pro-grama, ou seja, da parcela da po-pulação mais vulnerável à fome.

Agora simCafé com pãoAgora simVoa, fumaçaCorre, cercaAi seu foguistaBota fogoNa fornalhaQue eu precisoMuita forçaMuita forçaMuita força

MANUEL BANDEIRA

(1886 — 1968)TREM DE FERRO

1alebaT lautnecrePsetnegidniedlatotoerbosoãçalupopad

etnegidniedlautnecrePaicnêdiseredaerárop

onA anatiloporteM -oãnanabrUanatiloportem laruR

5991 4,72 2,61 9,52 3,84

6991 6,72 6,61 8,52 6,94

7991 1,82 3,71 3,62 8,94

8991 0,72 6,71 6,42 8,74

9991 6,72 1,91 5,52 1,64

RADIS 8 ! ABR/2003

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A metodologia dessa pesquisateve como premissa a linha de po-breza (LP) do Banco Mundial, queconsidera para os países mais pobresdo mundo uma renda mínima diáriade U$ 1,00. Aplicando-se esse valorà área rural do Nordeste, foi feitauma regionalização da LP, ou seja,foram calculadas diversas linhas depobreza de acordo com a região ecom a área (metropolitana, urbananão metropolitana e rural). Alémdessa regionalização, foi feita umacorreção na renda das famílias queobtêm parte de sua alimentação daprodução agrícola, ou seja, praticamo autoconsumo. Com base nas linhasde pobreza regionalizadas e em da-dos da Pnad 1999, foi estimado onúmero de pessoas que não conse-guiam chegar ao rendimento míni-mo necessário. Ao longo desse cál-culo, foram real izados váriosprocedimentos, entre eles o dededuzir da renda total da família oscustos fixos com aluguel ou pres-tação da casa própria, chegando àrenda ‘disponível’.

Os dados obtidos na pesquisaapontam para um públicobeneficiário potencial de cerca de44 milhões de pessoas, pertencen-tes a aproximadamente 9 milhões defamílias. Isso significa cerca de 21,9%das famílias brasileiras e 27,8% dapopulação total do país. Um dadosignificante é que ao analisar a po-pulação por área de residência, apesquisa registra que estão abaixoda linha de pobreza cerca de 19,1%dos residentes em áreas metropo-litanas; 25,5% daqueles que residemem áreas urbanas não-metropolita-nas e 46,1% da população rural. Atabela 1 mostra a evolução dessesvalores de 1995 a 1999. É interes-sante notar que, se compararmosos dados de 1995 e de 1999, somen-te nas regiões metropolitanas hou-ve aumento do percentual de indi-gentes.

Com relação às regiões brasi-leiras (Gráfico 1), o Nordeste, com48,8%, é a que apresenta o maiorpercentual de pobres entre a suapopulação total, seguida das re-giões Norte (36,2%), Centro-Oes-te (22,3%), Sul (18,3%) e Sudeste(17%). Nos estados, o maiorpercentual de pobreza foi encon-trado na área rural da Paraíba, quetem 67,1% de habitantes abaixo dalinha de pobreza extrema, segui-da pelas áreas rurais de Sergipe(65,5%), Pernambuco (63,4%),

Alagoas (63,3%), Piauí (61,8%) eCeará (61,1%). Os três menorespercentuais foram encontradosnas áreas urbanas dos estados deSão Paulo (9,8%), Santa Catarina(10,3%) e Rio de Janeiro (13,3%).

Alguns outros dados chamamatenção na análise da pobreza noBrasil. A discriminação racial, porexemplo, fica aparente quando sesabe que 64,1% das famílias pobressão chefiadas por pessoas negrasou pardas. No que se refere àeducação, 34,4% dos chefes de fa-mílias pobres nunca freqüentarama esco la ou nãochegaram a com-pletar a primeirasér ie; 24,6% sócompletaram o pri-meiro c ic lo doensino fundamental(até a quarta série);e 36,3% consegui-ram cursar o primei-ro grau completo.Isso significa que95,3% dos chefes defamílias pobres têm,no máximo, o pri-meiro grau completo, enquanto nasfamílias não-pobres esse percentualcai para 74,9%. O percentual de pes-soas com até sete anos de estudoé de 87,5% entre os pobres e de59,5% entre os não-pobres.

Entre os pobres empregados, apesquisa constatou que poucos têmcarteira assinada: 19,6% dos trabalha-dores em atividades agrícolas e 37,8%

Pagamos ver essa Hiena,que com a voz nos engana,pois fala como putana,e como fera condena;que uma terra tão amena,tão fértil e tão fecundaa tornasse tão imunda,falta de saúde, e pão;mas foi força, que tal mãopeste e fome nos infunda.

GREGÓRIO DE MATOS

(1636 — 1696)DÉCIMAS

dos trabalhadores em atividades nãoagrícolas. Entre os não-pobres, es-ses números sobem, respectivamen-te, para 37,8% e 68,8%. Esse dado éimportante porque alguns auxílios,como o Bolsa-Alimentação, estão for-temente vinculados ao registro detrabalho. A taxa de desemprego ge-ral também é bem maior entre os po-bres (16,7%) do que entre os não-pobres (7,7%), com o detalhe emque nas áreas metropolitanas es-ses números passam para 33,3% e11,2%. Outro problema que afetade forma significativa os pobres é

a falta de contribui-ção para a previdên-cia social, que vin-cula o recebimentodo benefício aotempo de contribui-ção. Dos pobres,apenas 16,9% contri-buem regularmente,enquanto entre osnão-pobres essa pro-porção é de 50,2%.

Com base nes-ses e em muitos ou-t ros dados, che-

gou-se a conclusão de que, entreos 44 milhões de brasileiros que,potencialmente passam fome, asparcelas mais vulneráveis seriam:nas áreas rurais e urbanas, os pe-quenos produtores agrícolas; e,nas áreas metropolitanas, os tra-balhadores sem carteira assinada,os trabalhadores domésticos e osdesempregados.

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Produção e distribuiçãode alimentos

Aprimeira noção de segurança ali-mentar refletia diretamente a

preocupação com a capacidade de pro-dução agrícola dos países. Tal noção per-maneceu absoluta até quase o final dadécada de 1970, década na qual o mun-do enfrentou enormes problemas porconta da redução dos estoques de ali-mentos, e dominou a Conferência Mun-dial de Alimentação, promovida pelaFAO, em 1974. Na Conferência, as prin-cipais discussões foram sobre políticasagrícolas e sobre a necessidade de for-mação de estoques estratégicos. Issofoi fundamental para que as indústriasde agroquímicos (fertilizantes eagrotóxicos) conseguissem implantar achamada ‘Revolução Verde’. Naquelemomento, o mundo estava convencidode que a fome e a desnutrição seriambanidas da face da terra assim quehouvesse um aumento significativo daprodução agrícola. A produção aumen-tou, mas isso de nada adiantou paraa enorme massa de famintos que tei-mava em aumentar, contrariando to-das as expectativas. Atualmente, de-pois que um relatório da FAO revelouque apenas seis dos 98 países queenfrentam graves problemas de fome

não têm disponibilidade calórica su-ficiente para suprir as demandas desuas populações, podemos concluirque a maior causa para a inseguran-ça alimentar no mundo não é a pro-dução propriamente dita, mas a dis-tribuição, ou seja, a capacidade deproporcionar à população acesso aosalimentos produzidos.

A PRODUÇÃO AGRÍCOLANO BRASIL

A primeira pergunta que todosfazemos quando se fala em produçãode alimentos no Brasil, é: Como podehaver fome num país que é uma po-tência agrícola?

Para Octavio Mello Alvarenga, ad-vogado especialista em Direito Agrá-rio e presidente da Sociedade Naci-onal de Agricultura (SNA), a respostaé muito simples: “É preciso entenderque essa ‘potência’ se refere a umpotencial ainda não realizado, devi-do a uma enormidade de problemasque nunca foram solucionados”.

Mas que problemas são esses?Como resolvê-los? De acordo com CiroEduardo Corrêa, engenheiro agrôno-mo da Confederação das Cooperativas

de Reforma Agrária do Brasil (Concrab)do MST, em primeiro lugar é necessá-rio entender que os problemas estãoligados a duas questões que secomplementam e se interrelacionam:a questão agrária, que diz respeito aoacesso, posse e uso da terra, e a ques-tão agrícola, que envolve as políticas,as técnicas e diversos outros fatoresque influem na produção propriamen-te dita. “Por causa da estrutura agrá-ria e das políticas agrícolas praticadas,a produção brasileira está muito aquémda produção de outros países com con-dições naturais semelhantes”, diz Ciro.

Sobre a questão agrária, o gran-de problema brasileiro é, sem dúvidaalguma, sua histórica concentraçãofundiária, comprovada pelos dados doCenso Agropecuário de 1995/96 quemostram que as propriedades com atédez hectares correspondem à metadedo número total de estabelecimentosmas a apenas 2,3% da área total enquan-to os estabelecimentos com mais de milhectares representam 1% do número e45,1% da área total. Um outro proble-ma, em parte decorrente da questãoagrária, é o da ociosidade da terra.

— É doloroso ver que, num paísque tem 800 milhões de hectares, dosquais mais de 400 milhões são cultivá-veis, e que tem uma diversidade cli-mática única no mundo, com possibi-lidades de produção de norte a sul ede leste a oeste, durante 365 dias porano, existam mais de 150 milhões dehectares improdutivos — lamentou oengenheiro agrônomo no debate pro-movido pelo Canal Saúde e transmiti-do pela TVE, em 14 de março.

O Nordeste, região do país queenfrenta o desafio das secas, é o maisperfeito exemplo de que com mudan-ças nas políticas agrária e agrícola oclima não seria um grande problema (verpágina 23). O fato é que no Brasil nun-ca houve uma verdadeira reforma agrá-ria e o resultado disso tem sido a ex-pulsão da população das áreas rurais,a proletarização dos pequenos produ-tores, o desemprego crescente e umapermanente tensão no campo, onde aluta pela terra tornou-se o principalmovimento social nos anos 1990.

Apesar de uma quase unanimida-de sobre a necessidade de uma refor-ma agrária, as discussões sobre o temasão enormes. Na opinião de OctavioMello Alvarenga, não adianta retalhar

Iniciada nos anos 60, a ‘Revo-lução Verde’ consistia na in-

trodução de novas variedadesde plantas importantes e nacriação de condições ótimaspara o desenvolvimento dessasplantas. Tudo começou quandoNorman Borlaug, diretor doCentro Internacional de Melho-ramento de Milho e Trigo, noMéxico, conseguiu resultadossurpreendentes com o melho-ramento de variedades de trigoanão de alto rendimento. Todoslogo se deram conta de que es-sas variedades de trigo de altaprodutividade também poderiamser úteis para o resto do mun-do. Fundou-se então, em 1966,o Centro Internacional para oMelhoramento do Milho e doTrigo(CIMMYT), e Borlaug con-venceu o governo da Índia e doPaquistão a testar as variedadesde trigo de alto rendimento emfazendas locais. As novas semen-tes proporcionaram resultados

impressionantes. De acordo coma FAO, a produção total de tri-go cresceu 5,1% por ano duran-te os principais anos da Revolu-ção Verde. Em 1970, Borlaugrecebeu o Prêmio Nobel da Pazpor esta contr ibuição. Masnem todos os efeitos da Revo-lução Verde e da industrializa-ção da agricultura revelaram-se positivos. Em primeiro lugar,ela gerou uma agricultura de-pendente de quantidades limi-tadas de variedades vegetais ede insumos especiais, como ospesticidas e os fertilizantes,economicamente dependente.Em segundo lugar, a industriali-zação depende grandemente dealto consumo energético, sejade forma direta, pela mecaniza-ção, ou indireta, pelo uso in-tenso de fertilizantes, poluindoa superfície da Terra e as águassubterrâneas com fertilizantese pesticidas, além de prejudi-car a fertilidade do solo.

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Sei de uma criatura antiga e formidável,Que a si mesma devora os membros e as entranhas,Com a sofreguidão da fome insaciável.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;Começa e recomeça uma perpétua lida,E sorrindo obedece ao divino estatuto.Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

MACHADO DE ASSIS (1839 — 1908)UMA CRIATURA

o país só para calar a boca do MST, épreciso que se discuta a questão combase no direito agrário e nos concei-tos que estão no Estatuto da Terra:

— Quando o presidente CasteloBranco enviou o projeto do Estatutoda Terra para o Congresso Nacional, alei falava tanto da reforma fundiáriaquanto da questão dos créditos e danecessidade de se constituírem coo-perativas. Estava prevista até uma Co-operativa Integral de Reforma Agrária,que nunca foi adotada e uma CâmaraAgrária que nunca funcionou. O PT,por meio da sua bancada, deveria fa-zer uma revisão nesses conceitos.

Para Jean Marc von der Weid, di-retor da ONG Assessoria e Serviços aProjetos em Agricultura Alternativa(AS-PTA) e membro do Consea, alémde o Brasil não explorar seu incrívelpotencial no presente, ainda existeo sério problema da adoção de siste-mas de produção tecnicamenteinviáveis que acabam por destruirnossos recursos naturais.

— O que ocorre é um processocircular de ocupação de terras. Quan-do ela se esgota em um lugar, a pro-dução migra para outro. Isso vem ocor-rendo com quase todas as culturas ea soja é um bom exemplo: depois dedegradar as terras no Paraná, ela estáavançando em direção ao Centro-Oes-te. Se isso hoje causa um impactonegativo na produção, imagina no fu-turo — explica Jean Marc.

No que diz respeito à questãoagrícola, o grande problema brasilei-ro tem sido creditado à moderniza-ção da produção agrícola por meioda mecanização crescente e do usointensivo de insumos visando unica-mente à produção para o mercadoexterno, o que reflete uma seqüên-cia de políticas agrícolas voltadas parao agro-negócio. Não é à toa, dizemos especialistas, que, apesar de tan-tos problemas, o Brasil desponta comoum dos maiores exportadores de ali-mentos do mundo e que o setor temsido responsável pelo superávit nabalança comercial.

Para Nelson Delgado, da Univer-sidade Federal Rural do Rio de Janei-ro (UFRRJ), esse quadro mostra cla-ramente para onde se dirigiram aspolíticas agrícolas no país.

— Nada contra o agro-negócio,que teria um significado fundamentalse gerasse empregos, promovesse a dis-tribuição de renda e produzisse alimen-tos para os brasileiros. Mas isso nãoocorre, porque agro-negócio tem a vercom a economia e não com a fome —esclarece ele, afirmando que é preci-so que haja uma mudança radical de

modelo de agricultura e de políticaspúblicas para o setor, com apoio à pro-dução de alimentos para o mercado in-terno e, conseqüentemente, à agricul-tura familiar e à agro-ecologia.

O desenvolvimento da agriculturafamiliar teria, segundo Dirceu Dresh,presidente da Federação dos Trabalha-dores na Agricultura Familiar da RegiãoSul (Fetraf-Sul), uma importância mui-to maior do que a de simplesmente pro-duzir alimentos. “É preciso fazer comque a população rural retorne ao cam-po. Hoje, em várias propriedades, asucessão está ameaçada, pois os jovensabandonaram tudo e foram para as ci-dades”, justifica.

Para que a agricultura familiar sedesenvolva, no entanto, é necessárioque ela tenha o apoio do Estado e sejareconhecida não como uma práticaarcaica ou marginal, mas como um mo-delo de produção que vem conseguin-do resultados melhores do que o dasgrandes empresas, além de utilizar prá-ticas menos agressivas ao solo.

— A média brasileira de renda porhectare tem sido de R$ 44,00 na agri-cultura patronal e de R$ 104,00 naagricultura familiar, sendo que no RioGrande do Sul esses números chegam,respectivamente, a R$ 99,00 e 241,00.Como se pode ver, omodelo no qual seinjeta mais dinheiroé o menos lucrativoe a produtividade daagricultura familiar ébem maior — diz Dir-ceu Dresh.

Também é pre-ciso derrubar o mitode que a agriculturafamiliar só é capaz de

produzir em pequena escala. “A agri-cultura familiar, pode produzir paraexportação, principalmente numa épo-ca em que os bloqueios comerciais sedão principalmente por meio do con-trole sanitário. O mercado exige pro-dutos com uma qualidade que nemsempre a grande agroindústria conse-gue oferecer, por causa do uso de fer-tilizantes e agrotóxicos”, garante JeanMarc, lembrando ainda da polêmicasobre o uso dos transgênicos (ver pá-gina 29), cuja utilização tende a au-mentar a dependência dos pequenosagricultores com relação às grandesempresas de sementes e insumos.

É necessário, portanto, um tra-balho de apoio ao pequeno agricultornão só na questão agrária e financei-ra, mas na capacitação do homem docampo, visando à implantação de umnovo modelo de produção.

Segundo Dirceu Corrêa, está nahora de o Estado, que sempre finan-ciou um modelo excludente, começara desenvolver uma política de desen-volvimento humano que fixe o homemno campo. “O Estado deve resgatar asua dívida social e definir o tipo de so-ciedade que deseja construir. Tambémdeve definir de que forma pretendeusar seus recursos naturais”, afirma.

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E se somos Severinosiguais em tudo na vida,morremos de morte igual,mesma morte severina:que é a morte de que se morrede velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vintede fome um pouco por dia...JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1920 — 1999)

MORTE E VIDA SEVERINA

NÃO BASTA PRODUZIR, TEMQUE ARMAZENAR E DISTRIBUIR

Se os problemas são muitos na pro-dução de alimentos, eles não são me-nores quando se fala de armazenamentoe distribuição dos alimentos produzi-dos. Isso ocorre, porque a opçãopolítica pelo agro-negócio acaba de-terminando toda a configuração dosseguimentos afins.

No diagnóstico dessa área, umtriste panorama resultou de umadecisão política que, segundo LuisCarlos Guedes, atual presidente daCompanhia Brasileira de Abasteci-mento (Conab), foi tomada a partirdo governo Collor.

— Existem basicamente dois ti-pos de armazéns, os públicos e osprivados. Com a decisão dos gover-nos de se afastar do seguimento dearmazenagem, o número de arma-zéns públicos baixou de 472 para33, em 12 anos. Dos armazéns pri-vados, existem cerca de 13 milcredenciados pelo governo, masque atendem principalmente àsgrandes empresas e às cooperati-vas — explica Luís Carlos

Isso ocorre porque os peque-nos agricultores raramente conse-guem atender às exigências de ar-mazenagem (embalagem, grau deumidade etc). O resultado é queficam impedidos de participar dosistema de preço mínimo. Sem seorganizar em cooperativas, o pe-queno agricultor acaba levandodesvantagem tanto na compra desementes e insumos quanto na ven-da dos seus produtos.

“Nos últimos 20 anos, a políticabrasileira de armazenamento é umagrande piada”, diz José RobertoEscórcio, Coordenador de Gestão ePolíticas Públicas da Ong Agora, ex-plicando que as leis do setor datamde 1903 e lembrando que até mes-mo o sistema de informações demercado que existia antigamente foidesmantelado.

— Antes havia um sistema muitobem montado e os preços eram da-dos de acordo com o prognósticode safra, com a oferta de produtos,

por meio de uma rede de telex. Atu-almente existe a internet, mas osistema foi destruído e os preçospassaram a ser fruto de mera espe-culação, com grande prejuízo paraos pequenos produtores — contaJosé Roberto.

Para Renato Maluf, da UFRRJ,esse triste quadro é fruto tanto deuma opção política de retração doEstado, que deixa de exercer suafunção de regulamentação do mer-cado e abandona a idéia de forma-ção de estoques estratégicos, quan-to uma tendência estrutural quereflete o modelo dominante, quepriorizou a agroindústria, na crençade que esse era o melhor caminho.

Quando o Consea foi lançado,em 30 de janeiro, o conselheiroPlínio de Arruda Sampaio apresentouuma proposta de que já na primeirareunião, pela urgência do tema, seiniciasse uma discussão sobre um pla-no de safra voltado para a seguran-ça alimentar. A discussão do plano desafra era urgente, em razão do fatode que todos os planos, até hoje,estavam voltados para o agro-negó-cio, para os grandes produtores.

“A fome afeta significativamen-te os pequenos produtores da zonarural que não têm qualquer apoiodo governo”, diz Chico Menezes,para quem discutir plano de safra éo primeiro passo para reverter essequadro. Segundo ele, começar poruma política de apoio ao pequenoprodutor é realizar uma política detransformação estrutural.

Além do sucateamento das es-truturas de armazenamento, outrogrande entrave para o produtor na-cional é o transporte. No Brasil, oescoamento das safras ainda é fei-to prioritariamente por rodovias, oque traz enormes prejuízos nos gas-tos com fretes e combustível. Comoesse problema não tem solução emcurto prazo, o que pode ser feitopara atenuar suas conseqüências éa construção de um sistema dearmazenamento com capilaridade, ouseja, que esteja mais próximo dosprodutores, ou que sejam instituídospostos avançados de compra. Tam-bém deve ser pensado o fortaleci-

mento de sistemas regionais de pro-dução e consumo que, além de dimi-nuírem os custos de transporte, for-talecem a expressão da diversidadecultural alimentar que existe no paíse, para a qual a contribuição da agri-cultura familiar é fundamental.

Os problemas não param por aí.Existem ainda as perdas pós-colheitaque, no caso da soja, chegam a maisde 15% da produção, o que dá umprejuízo de cerca de U$ 2 milhões.“Nesse caso, a solução é a volta daextensão rural, que pode promovera capacitação do trabalhador rural”,acredita José Roberto Escórcio.

A falta de padronização de em-balagens também é um fator quecomplica a comercialização e essaé uma questão que cabe ao Minis-tério da Agricultura. Além disso, hátoda uma defasagem da legislaçãona área. “A legislação federal estámuito atrasada e muitas vezes aca-ba se confrontando com as legisla-ções estaduais que são atualizadasmais rapidamente”, diz Maluf, paraquem essa confusão prejudica prin-cipalmente o pequeno produtor,que tem mais dificuldade de aten-der às exigências da fiscalização.

Na verdade, a solução de tan-tos e tão intrincados problemas pas-sa obrigatoriamente por uma drásti-ca mudança no modelo de produçãoagrícola e por uma determinação deprioridades políticas. Como afirmaGuilherme Delgado, pesquisador doIpea e membro do Consea, a convi-vência desses dois modelos (grandesprodutores / agricultura familiar) épossível, mas ela se dará todo o tem-po em forma de embate. “Jamais seráuma convivência pacífica”, diz ele,“e portanto deve haver, por partedo governo, definição clara de qualserá a tendência por ele assumida.Esta é uma questão em que não épossível ficar em cima do muro”.

Segundo Guilherme, o agro-ne-gócio está voltado para a econo-mia, enquanto a população e suasnecessidades estão situadas nomundo da vida. “Cabe ao governo”,diz ele, “inverter o que tem sidofeito há muito tempo e levar o mun-do da vida para a economia”.

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A seca nordestina

Após a seca de 1877, ao iniciar oprojeto do primeiro grande açu-

de do Ceará e o mais antigo do Brasil,Dom Pedro II prometeu: “Enquantohouver ouro no Império, nenhum nor-destino morrerá de sede”. A obra foiinaugurada em 1906. De lá para cá, oImpério virou República e o belo açu-de do Cedro, cujas paredes foramconstruídas artesanalmente pelos es-cravos, foi tombado como patrimôniohistórico da humanidade, mas as se-cas continuam e muitos nordestinosainda morrem de fome por causadelas, enquanto grande parte dosrecursos liberados exclusivamentepara atender às suas necessidadesé utilizada com fins eleitoreiros.

Para Luiz Octavio Pires Leal, ne-nhum fenômeno natural brasileiro émais previsível do que a seca do Nor-deste. “Nada mais recorrente, maisrepetitivo, mais triste e mais dramá-tico”, diz ele, no artigo Seca do Nor-deste: verdades e mitos (revista Man-chete Rural, setembro de 1998),garantindo que o problema da secado Nordeste ainda não foi resolvidopelo simples fato de que para os ho-mens de decisão política da própriaregião interessa mais a sua perma-nência do que sua solução.

O SEMI-ÁRIDOA região Nordeste ocupa uma

área aproximada de 1.550.000 km2,cerca de 18% do território nacio-nal, e abriga quase 48 milhões depessoas, que equivale a 28% da po-pulação total do país. Da área totalda região, aproximadamente 900 milkm2 estão no Semi-árido, que sedivide em duas partes: o Sertão,parte maior, mais interna e maisseca, e o Agreste, uma estreita fai-xa de transição entre a Zona daMata, de clima úmido, e o Sertão.No semi-árido vivem cerca de 26milhões de pessoas, 10 milhões dasquais na área rural, o que a torna aregião semi-árida mais populosa doplaneta e agrava as conseqüênciasda seca. As chuvas, que ocorremde forma localizada e com grandesintervalos de tempo entre elas, seconcentram em apenas uma esta-ção — o ‘inverno’ —, que dura de

três a cinco meses. Apesar de algu-mas características comuns, o semi-árido precisa ser visto como umgrande ‘mosaico’ natural, comoexplica Malaquias Bastos Filho, pro-fessor da Universidade Federal dePernambuco, membro do Consea epoeta nordestino, no cordel O ser-tão pode dar certo?, escrito em 2001para retratar a experiência de seteseminários sobre a viabilização eco-nômica e social do semi-árido nor-destino.

No semi-árido existemMeso e microrregiõesCada uma um caso próprioDiferentes vocaçõesQue devem ser discutidasNa hora das decisões

Existem na região apenas doisgrandes rios permanentes: o São Fran-cisco e o Parnaíba. Os outros são in-termitentes, ou seja, enchem no pe-ríodo das chuvas e secam no períodode estiagem. Das chuvas que caem,aproximadamente 91,8% se evapora, 8%contribui para o escoamento superfi-cial e apenas 0,2% alimenta o subsolo.Diferentemente do período normalde estiagem, a seca ocorre quandoas chuvas se tornam insuficientes atémesmo para a manutenção daagropecuária de subsistência, obri-gando muitas famílias a emigrarem paraos centros urbanos do nordeste oude outras regiões do país.

A CONVIVÊNCIA DOHOMEM COM A NATUREZA

No ar, a grade pergunta:Esse sertão é viável?Como aqui sobreviverDe uma forma aceitávelSem ostentação sem luxoMas sem ficar miserável?

De acordo com Didier Bloch,autor do texto Seca 98, retrato deuma calamidade anunciada, a irre-gularidade das chuvas tem que servista como uma condição da próprianatureza e a seca como um fenôme-no complexo que envolve, além dofator climático, fatores fundiários,

relacionados à posse da terra e daágua; econômicos, como a falta deintegração do semi-árido na eco-nomia nacional e a existência danefasta ‘indústria da seca’; sociais,que afetam as relações familiares eas relações de trabalho; políticos, re-presentados pelo coronelismo, peloclientelismo, e pela falta, inconsis-tência ou descontinuidade das po-líticas públicas para a região; e cul-turais, referentes à inadequaçãodos hábitos da população à reali-dade do semi-árido.

No que diz respeito às políti-cas públicas, um dos grandes equí-vocos foi a aposta incondicional nachamada ‘política hidráulica’, coma crença de que se o problema eraa disponibilidade de água, acumu-lar esse bem seria a solução. Maisde 70 mil açudes, públicos e parti-culares foram construídos, mas issonão resolveu o problema das popu-lações sertanejas.

Quantos açudes agüentamNove meses sem chover?E quantas dessas barragensEm três meses vão encher?As que enchem logo secam,Basta pagar pra ver

Atualmente, a única certeza detodos os que estudam a questão éque as soluções para os problemasda seca só podem surgir da ampladiscussão entre os três níveis dogoverno, os técnicos, representan-tes da sociedade civil organizada ea própria população, e que preci-sam estar centradas na idéia de‘convivência com o semi-árido’.

A Embrapa já mapeouOs vários ecossistemasQue compõem o semi-árido.Na base de seus problemas,Combinando solo e clima,Desenhou vários esquemas

Nos espaços figuradosNum trabalho competenteSe sabe qual o suporteDe planta, animal e gente,O que se pode ou não podeFazer em cada ambiente

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Criado pela Medida Provisórianº 103 de 1º de janeiro de 2003,

e regulamentado pelo Decreto4.582, de 30 de janeiro de 2003, oConselho Nacional de SegurançaAlimentar e Nutricional (Consea)tem caráter consultivo, funcionan-do como um instrumento de arti-culação entre governo e socieda-de civil para a proposição depolíticas e ações na área da ali-mentação e nutrição. O trabalhodo Consea visa manter um diálogopermanente entre o novo Minis-tério de Segurança Alimentar e Com-bate à Fome (Mesa), os demais Mi-nistérios e a sociedade. Entre osobjetivos estabelecidos para o Con-selho, está o de assessorar o Pre-sidente da República na formula-ção de políticas e na definição deorientações para que o país garan-ta o direito à alimentação.

O Consea é presidido por umdos representantes da sociedadecivil e tem como secretário o Mi-nistro de Segurança Alimentar eCombate à Fome, José Graziano.Ele é composto por 62 conselhei-ros — 13 ministros de Estado, 11observadores e 38 personalidadesda sociedade organizada — nome-ados pelo Presidente da Repúbli-ca. Cabe a esse Conselho avaliaro Plano Estratégico e o PlanoEmergencial do Mesa; organizar aII Conferência Nacional de Segu-rança Alimentar, no 1º trimestre de2004; estimular e apoiar a criaçãode comitês estaduais e municipaisde combate à fome e a miséria nopaís; propor projetos e açõesprioritárias de uma Política de Se-gurança Alimentar e Nutricional aserem incluídos no Plano Plurianualde governo; e realizar estudos quefundamentem as propostas de di-retrizes por ele apreciadas.Mais informações:www.presidencia.gov.br/mesa

Em meio a inúmeras dúvidas, uma certeza: no Brasil, a fome e a in-

segurança alimentar não são causa-das pela falta de alimentos, mas pelafalta de dinheiro para a compra dosalimentos. Isso significa que a falta derecursos é o principal empecilho paraque milhões de pessoas tenham aces-so a uma alimentação adequada.

Fome e pobreza formam um ci-clo vicioso, no qual uma é simultane-amente causa e conseqüência daoutra. Mulheres desnutridas geramcrianças desnutridas, que são mais vul-neráveis às doenças e até mesmo àmorte prematura. Tais crianças terãomais dificuldade de aprendizado e, fu-turamente, menos chances num mer-cado de trabalho cada vez mais res-trito e exigente. Por fim, tornar-se-ãoadultos condenados à pobreza e, con-seqüentemente, à fome.

Os resultados do ciclo, no en-tanto, não são apenas de ordem pes-soal. Ao impedir melhores resultadosnas políticas de saúde, educação, se-gurança pública e trabalho, o qua-dro de pobreza e fome impede tam-bém o desenvolvimento do país eacentua as desigualdades sociais.

O PROGRAMA DO GOVERNOO Programa Fome Zero, criado

para combater a fome e a miséria noBrasil, parte do princípio de que a po-breza não é conjuntural, mas que éresultado de um modelo de desenvol-vimento que leva auma crescenteconcentração derenda e ao au-mento do desem-prego. Não é pos-sível combater afome sem pensarna geração deempregos, no aumento da produçãolocal de alimentos, na dinamização docomércio local e na criação de condi-ções de cidadania para as famílias bra-sileiras, como explica o ministro extra-ordinário da Segurança Alimentar eCombate à Fome, José Graziano:

— O objetivo do governo é com-bater a fome e a desnutrição, geran-do novas dinâmicas econômicas, ouseja, criando um outro modelo de de-senvolvimento que incorpore os po-bres, ao invés de descartá-los.

O Programa Fome Zero foi elabo-rado a partir de um estudo realizado

pelo Instituto Cidadania, uma ONG li-gada ao Partido dos Trabalhadores, epropõe políticas estruturais, cujo ob-jetivo é a ruptura definitiva do binômio‘fome-pobreza’, e políticas locais, ur-banas e rurais que apóiam e divulgaminiciativas de prefeituras e de entida-des da sociedade civil. Sua execuçãoestá a cargo do Ministério Extraordi-nário de Segurança Alimentar e Com-bate à Fome (Mesa), mas o conjuntode medidas proposto envolve a parti-cipação de todos os outros Ministéri-os e a coordenação do Conselho Na-cional de Segurança Alimentar eNutricional (Consea), consideradopeça chave na construção participa-tiva da Política Nacional de SegurançaAlimentar.

Segundo Chico Menezes, umadas mudanças mais significativas quehouve no Programa Fome Zero emrelação ao projeto do Instituto Ci-dadania tem a ver com a estruturado Programa. Diz ele que a propos-ta inicial era que fosse criada umaSecretaria diretamente ligada à Pre-sidência da República e não um Mi-nistério.

— A gente defendia a Secreta-ria por causa de um aspecto funda-mental na questão da segurança ali-mentar, que é a transversalidade dotema. Outro fator importante eraque, na nossa opinião, uma Secreta-ria não teria que disputar orçamen-to com os outros ministérios, fican-

do com a tarefade articular asdiferentes açõesdos diversos mi-nistérios. Isso ge-rou algumas di-vergências, mas aidéia do ministé-rio acabou preva-

lecendo, talvez por expressar commais clareza a prioridade do Progra-ma — conta Chico Menezes, paraquem o Consea é absolutamente fun-damental para o sucesso ou fracas-so do Programa do governo.

Segundo ele, o Conselho é o es-paço no qual serão feitos os acordoentre os diferentes interesses existen-tes na própria sociedade e entre osministérios.

“Uma das decisões do regimen-to do Conselho é que quando houverposições divergentes, todas serão le-vadas ao presidente da República, com

Os sertanejos invertiam toda a psi-cologia da guerra: enrijavam-nos osreveses, robustecia-os a fome,empedernia-os a derrota”.

EUCLIDES DA CUNHA (1866 - 1909)OS SERTÕES

os votos de cada conselheiro. Isso ex-pressa as diferenças, e mostra o quecada setor da sociedade que está re-presentado no Conselho pensa sobre oassunto”, explica, acrescentando queas divergências que ocorrem no pró-prio Consea acabam obrigando o gover-no a ser mais cuidadoso com suas pro-

Fome Zero:uma grande causa nacional

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postas. “A idéia de notas fiscais nouso do cartão sofreu um bombardeiotão grande que já foi mudada”, lem-bra Chico.

AS POLÍTICAS E AS AÇÕESA idéia de combinar políticas es-

truturais — voltadas para as causasprofundas da fome e da pobreza —com políticas específicas — que aten-dem diretamente as famílias no aces-so ao alimento — e políticas locais —implantadas por governos estaduais,prefeituras e pela sociedade organi-zada de acordo com as necessida-des de cada região —, é uma tarefacomplexa, que exige uma grandemobilização dos governos federal,estaduais e municipais, além de umforte apoio da sociedade. O projetoé ambicioso e propõe medidas de todotipo. Quanto às políticas estruturais,estão previstas no Programa:! Geração de emprego e renda, en-volvendo aumento do salário mínimo;formação e incentivo ao primeiro em-prego para jovens; programas derequalificação permanente, especi-almente para pessoas acima de 40anos; aumento do volume de crédi-to do BNDES, Banco do Brasil e CaixaEconômica Federal para investimen-to em produção nas pequenas em-presas; fortalecimento de agênciasde microcrédito solidárias; recupe-ração do ensino público fundamen-tal, da educação infantil e da infra-estrutura educacional nas áreasrurais e urbanas; e recuperação dapolítica habitacional.! Previdência social universal, a par-tir da idéia de que a distribuição derenda só garante o bem-estar da po-pulação pobre se estiver atrelada aalguma forma de sustentação a longoprazo, capaz de gerar uma renda quereduza o grau de comprometimentofuturo com aluguel, prestações ou ju-ros pagos a agiotas. A ação do Estadopode ser feita por meio de progra-mas de renda mínima, do seguro-de-semprego e da ampliação do sistemade previdência e aposentadorias.! Incentivo à agricultura familiar, pormeio de uma política de crédito e deseguro agrícola; da prioridade à pro-dução interna e local dos alimentos,com importação prevista apenas no casode quebras de safra; do uso da pesqui-sa pública e da assistência técnicadirecionadas; do incentivo a coopera-tivas de produção e comercialização;e do pagamento de renda ambientalnas áreas de preservação.! Intensificação da reforma agrária,garantindo a função social da proprie-dade; distribuindo e ampliando as fon-tes de renda; e incentivando o auto-consumo alimentar (auto-sustento).! Bolsa-Escola e renda mínima, pro-

movendo auxílio às famílias pobrescom filhos em idade escolar.! Segurança e qualidade dos alimen-tos, com controle preventivo e implan-tação de um sistema de informaçõese vigilância da segurança dos alimen-tos; incentivo e divulgação das pes-quisas de prevenção de riscos alimen-tares; exigência de informações nosrótulos de alimentos sobre sua origeme sobre seus riscos; e aumento docontrole sobre a entrada de alimen-tos transgênicos no país.

As políticas específicas, por suavez, englobam:! Cartão-Alimentação, cujo papel éfornecer crédito para a compra de ali-mentos, implantando simultaneamen-te mecanismos de contrapartida paraos atendidos, que deverão freqüen-tar cursos de alfabetização ou derequalificação profissional, atender àsexigências das políticas de saúde, ouprestação de serviço comunitários.! Ampliação da merenda escolar, comaumento dos teores calórico enutricional da merenda; atendimentopara os irmãos de escolares e para cre-ches, especialmente nos municípiosmais pobres; utilização de produtos re-gionais na composição da merenda; eapoio técnico aos Conselhos Munici-pais de Alimentação Escolar.

As políticas e ações locais sãoconstruídas a partir do respeito à di-versidade cultural de cada região do país,e podem ser implantadas pelos estadose municípios, de acordo com seu perfil(área rural, urbana ou metropolitana),sempre em parceria com a sociedadecivil. A proposta é que sejam dissemina-

das experiências que já estão funcio-nando com bons resultados em diver-sos municípios. Também está prevista acriação de Sistemas Municipais de Se-gurança Alimentar, coordenados porórgãos específicos e integrando as di-versas ações dos governos municipais noatendimento ao Direito Humano à Ali-mentação. Entre elas, estão:! Banco de Alimentos — O objetivo doprograma é incentivar e apoiar a cria-ção de Bancos de Alimentos públicosem municípios de médio e grande por-te, por meio de capacitação e transfe-rência de tecnologia. Os Bancos deAlimentos recebem doações de produ-tos impróprios para a comercialização,mas que mantêm inalteradas suas pro-priedades nutricionais e não oferecemqualquer risco ao consumo humano, eos repassam a instituições sem fins lu-crativos que produzem e fornecem re-feições gratuitas.! Restaurantes populares — É papeldo Mesa incentivar a instalação derestaurantes populares em municípi-os de médio e grande porte, a fim decriar uma rede de proteção alimentarpara as pessoas que realizam refeiçõesfora de casa. Os restaurantes popula-res são estabelecimentos que vendemrefeições prontas, nutricionalmentebalanceadas, com a qualidade assegu-rada, e a preços acessíveis principal-mente para os trabalhadores formaise informais de baixa renda, desempre-gados, estudantes, aposentados e mo-radores de rua.! Educação para o consumo — O Pro-grama de Educação Alimentar e para oConsumo tem o objetivo de informar

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e orientar a população sobre a ne-cessidade de escolher alimentos dequalidade e, dessa forma, evitar malescomo a obesidade, diabetes e hiper-tensão que decorrem, na maioria dasvezes, da falta de orientação alimen-tar. A idéia é difundir a discussão so-bre alimentação para os meios decomunicação, escolas, empresas ena famílias. Outra medida prevista éa criação da Norma Brasileira deComercialização de Alimentos Industri-alizados (NBCAI).! Centros de Recepção e Distribui-ção de Doações (CRD) — O Ministé-rio de Segurança Alimentar e Com-bate à Fome também sugere que asPrefeituras criem Centros de Re-cepção e Distribuição de Doações(CRD), com o objetivo de arreca-das alimentos a serem distribuídosno próprio município.! Segurança e qualidade dos alimen-tos — Nas áreas rurais, as prefeiturasdevem priorizar a compra de alimen-tos dos agricultores familiares para amerenda escolar, hospitais, creches,quartéis, restaurantes populares, etc;direcionar a assistência técnica paramelhorar e aumentar a produção; eauxiliar os agricultores na obtenção docrédito do Programa Nacional de Agri-cultura Familiar (Pronaf), incentivandoa formação de cooperativas e associa-ções de produção, comercialização emicrocrédito.! Apoio à produção de consumo pró-prio — A idéia é que as prefeituras ofe-reçam espaços públicos tradicionaisda cidade (feiras e varejões) para ven-da direta da produção e atuem comointermediários nos contatos com em-presas que se interessem por produ-tos regionais; criem bancos de semen-tes, insumos, ferramentas e matrizesde pequenos animais; e executemobras de infraestrutura como pontes,estradas rurais, açudes e balcões dearmazenagem, a fim de facilitar o trans-porte, baratear o preço final, ajudarno escoamento da produção e aumen-tar a oferta de trabalho.! Parceria com varejistas — Estabele-cer parcerias com grupos de varejistaslocais (feirantes, mercearias e peque-nos comércios) para instituir sistemade compras em comum, diminuindo omonopólio das grandes redes de su-permercados, permitindo controle depreços e margens de lucro, a fim defavorecer a queda de preços.! Novo relacionamento com a redede supermercados — Estabelecer par-cerias com supermercados no que dizrespeito à comercialização de produ-tos da agricultura familiar local; à ma-nutenção das margens de lucro e depreços compatíveis com o poder aqui-sitivo da comunidade; e à aliança comfornecedores, produtores agrícolas e

agroindustriais locais em campanhasde alimentação, comercializando pro-dutos de época ou atendendo a de-mandas específicas.! Agricultura urbana — Recentemen-te, a FAO lançou o programa CidadesAlimentando Cidades, que destaca ovalor da chamada agricultura urbanae mostra a importância da utilizaçãode terrenos baldios e quintais para ocultivo de alimentos e orienta o usoadequado da água nas cidades. Infe-lizmente, as atividades urbanas de pro-dução e de distribuição de alimentosnão têm recebido a devida importân-cia. Por essa razão, é necessário seimplantar um programa dirigido ao for-talecimento de pequenos e médiosprodutores urbanos de alimentos e derefeições prontas e à qualificação dopequeno varejo. Uma das idéias é queas empresas apóiem decisivamenteprojetos desse tipo, cedendo terre-nos por meio de mecanismos jurídi-cos, como o da cessão em comodato,para a produção de alimentos por tra-balhadores desempregados e que uti-lizem a produção local para seu pró-prio abastecimento.

AS DIFICULDADESE AS POLÊMICAS

Como era de se esperar, um Pro-grama desse porte não poderia seruma unanimidade. As críticas vêm de

todos os lados, mas não vêm sozinhas.Junto delas existe, na maioria das ve-zes, um sincero desejo de que tudodê certo e de que, finalmente se façaa mudança tão esperada. “O FomeZero é mais do que um projeto, é umagrande causa que precisa do apoio dasociedade para se concretizar ”, acre-dita Silvia Vignola, do Instituto de De-fesa do Consumidor (Idec).

As dificuldades, no entanto, sãomuitas e algumas surgiram antes mes-mo do resultado da implantação doProjeto Piloto nos municípiospiauienses de Guaribas e Acauã, nosquais até o dia 21 de março haviamsido beneficiadas 1000 famílias. A mai-or polêmica envolve certamente oCartão-Alimentação, cujo uso temsido bastante questionado. ParaChico Menezes, o grande problemaestá em se qualificar o cartão comobom ou ruim e adotá-lo de formairrestrita ou simplesmente descartá-lo como uma opção.

— Será que num país de dimen-sões continentais, como o Brasil, épossível usar um só modelo de políti-ca? Ou deve se ter cartão em deter-minadas regiões e renda mínima emoutras? Será que não é precisomapear melhor essas característicase aí sim discutir o assunto, sem dei-xar que a discussão se polarize porrazões que estão ocultas e que não

Em 1991, o Senador EduardoSuplicy (PT-SP) apresentou ao

Senado o projeto de lei ‘Programade Garantia de Renda Mínima’(PGRM). A idéia é contribuir para aerradicação da miséria, benefician-do, sob a forma de imposto de ren-da negativo, aquelas pessoas cujosrendimentos brutos mensais são in-feriores a R$ 270,00 (valor corrigidoem 1998). Isso significa que a pessoarecebe uma complementação finan-ceira do Estado, que vai de 30% a50% da diferença entre o que ganhae o limite estabelecido pelo PGRM.Nesse caso, às pessoas com rendazero caberia a quantia de R$ 81,00.Ao projeto original já foram acresci-das diversas outras propostas quedizem respeito à educação — obri-gação de a família beneficiada man-ter na escola as crianças até 14 anos— e à necessidade de garantir osrecursos necessários para a realiza-ção do programa — exclusão do pro-grama daqueles que, mesmo tendorenda individual menor que R$ 270,00mensais, pertençam a famílias comrenda total superior a R$ 810,00 men-sais. Outra emenda importante re-feria-se à extinção de programas depolítica social compensatória, incen-

tivos e renúncias fiscais, em valorigual ao financiamento do programa,na medida em que ele for sendoimplementado. Segundo um estudode André Urani (Ipea), levando-se emconsideração tais emendas, o pro-grama pode atingir a 31,4 milhões debeneficiários e o seu custo total estáprevisto em R$ 17,6 bilhões por ano,o que representa aproximadamente2,5% do PIB.

De acordo com EduardoSuplicy, o Programa, além de pro-porcionar melhores condições devida para o cidadão, cria um mer-cado de consumo interno forte osuficiente para elevar a economiado país. Outra vantagem seria a eli-minação dos intermediários, pois osrecursos chegam diretamente à po-pulação carente.

Modelos desse programa já fo-ram implantados em alguns municí-pios com grande sucesso, como oPrograma de Garantia de Renda Fa-miliar Mínima, em Campinas, e oBolsa-Escola, no Distrito Federal,que garante benefícios a famíliasnecessitadas com filhos de até 14anos matriculados na rede pública.Mais informações:ww.senado.gov.br/eduardosuplicy

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tem a ver com esta gente com estes homensque o trazem no corpo e até no nome tem a ver com estes cômodos escuroscom esses móveis queimados de pobrezacom estas paredes velhas com esta pouca vida que na boca é riso e na barriga é fome

FERREIRA GULLAR (1930 —)BANANAS PODRES

têm necessariamente nada a vercom o objetivo do programa? — per-gunta ele, acreditando que o car-tão pode ser uma boa solução paraos municípios que apresentam umasituação mais grave, principalmen-te porque um governo recém-empossado não teria condições defazer a máquina funcionar num pe-ríodo curto de tempo de uma for-ma mais plena.

Para alguns, como Zilda Arns,que também é membro do Consea,o Cartão-Alimentação representauma ação apenas emergencial e issonão é suficiente.

— O programa deve prever umaboa formação dos profissionais einstituições que irão atuar no com-bate à fome, além de prever aces-so à educação e saúde aos seusbeneficiários, ou seja, oferecer aeles o direito à cidadania. Existemmuitas pessoas miseráveis que nãopassam fome, mas que não se sen-tem cidadãos. Pela minha experi-ência na Pastoral, famílias que sórecebem comida acabam se aco-modando e continuam na mesma si-tuação de miséria — constata ZildaArns, para quem o Fome Zero deveaproveitar programas já criados eampliar programas que hoje têmpouca cobertura, como o Progra-ma de Erradicação do Trabalho In-fantil e o Programa de Apoio Conti-nuado aos Idosos.

Segundo o ministro Graziano,no entanto, o cartão desempenhaum papel importante ao vincular ogasto à compra de alimentos. “Nãose trata de uma questão moral oude tentar limitar a escolha das pes-soas”, diz ele, completando:

— O que não queremos é pul-verizar os recursos disponíveis.Caso não haja esse vínculo, o im-pacto dinamizador da agriculturafamiliar não ocorrerá. Por outrolado, para combater a subnutriçãonão tem outro jeito que não seja ode se aumentar o consumo de ali-mentos. Além disso, ainda continu-am a funcionar diversos programasde transferência de renda como,por exemplo, o Bolsa-Alimentaçãoe o Bolsa-Escola.

A escassez de recursos é ou-tro grande problema. Em 2003, o or-çamento do Ministério é de ape-nas R$ 1,8 milhões, quando paraatender a todas as famílias neces-sitadas seria necessário dez vezesesse valor. Na opinião de LucieneBurlandy, da Universidade FederalFluminense (UFF), a falta de recur-sos obriga que se faça um rigorosocontrole dos recursos existentespara que eles cheguem aosbeneficiários com rapidez e efici-

ência, sem se perder no meio daburocracia e da corrupção. “É pre-ciso respeito com o dinheiro públi-co”, diz a professora.

Para Silvia Vignola, a melhor so-lução para se evitar o desperdíciode verbas é a descentralização dosprogramas. “Num país do porte doBrasil, a centralização só favoreceà corrupção. No município, a popu-lação tem mais faci-lidade de exercer ocontrole social”, ga-rante ela, lembrandoa necessidade de seobservar o que játem sido feito pelosmunicípios e por di-versas entidades.

A importânciado controle socialtambém é lembradapor Chico Menezes,que acha necessáriaa inserção nas comunidades deagentes que estejam comprometi-dos com a aplicação do programa.

— Embora os Agentes Comuni-tários de Saúde já estejam reple-tos de trabalho, eu penso que elessão as figuras mais adequadas paradesempenhar essa função, princi-palmente por já estarem inseridosnas comunidades e pela possibili-dade de serem capacitados numcurto espaço de tempo para atua-rem tanto no monitora-mento dosresultados das ações, repassandoseus dados para os comitêsgestores, quanto na busca ativa denovas famílias para o programa e namobilização das pessoas para o exer-cício do controle social — explica.

E se a falta e o uso dos recur-sos são um problema, a captaçãode outros recursos também vem ge-rando algumas críticas, principal-mente no que se refere às doaçõesem dinheiro ou alimentos para ogoverno.

— A minha posição é que o go-verno deve receber impostos e nãodoações. Não gosto da idéia de um‘0800’ pra receber dinheiro da po-pulação e muito menos de empre-sas. As empresas devem pagar im-postos. Também acho que é um errofazer dessa prática o grande desta-que do programa. O sucesso desseprograma depende de políticas pú-blicas construídas juntamente coma sociedade e da mobilização nascomunidades receptoras para esta-rem fazendo o controle social naaplicação dos recursos. Esse é o ca-minho. Para a classe média, quequer contribuir com doações, exis-tem as instituições habilitadas. A so-ciedade precisa se voltar para a dis-cussão sobre as transformações

maiores que precisam ser feitas,como a reforma previdenciária e areforma tributária. O cobertor écurto e nós temos várias questõesestruturais para enfrentar — dizChico Menezes, para quem, passa-das a euforia e as cobranças inici-ais, parece ter chegado a hora dese arregaçar as mangas e se traba-lhar com calma e perseverança.

— O Lula disse que não pode-mos cometer o engano de quererabraçar o mundo com as pernas,porque depois tudo desmorona e édifícil se por de pé de novo. “Va-mos começar pequeno e vamoscrescer aos poucos, levando emconta que a gente tem quatroanos”, disse ele. Eu acho que é umbom conselho. Embora a gente sai-ba que quem tem fome tem pressa,como dizia o Betinho, é sempre bomter em mente que o enfrentamentodessa questão tem que ser feitocom muito cuidado, porque não sepode errar — lembra.

As discussões sobre o Progra-ma têm sido muito grandes. Todostêm algo a dizer, muitos queremcolaborar, mas os resultados obti-dos na experiência piloto aindanão permitem análises mais pro-fundas sobre o sucesso ou não dasiniciativas. O jeito é conter umpouco a ans iedade e esperar,como também sugere MalaquiasBatista Filho, professor da Univer-sidade Federal de Pernambuco(UFPE) e membro do Consea:

— O Fome Zero é uma propos-ta em construção. Não há sentidoem se condenar o Programa em blo-co. Devemos pensar num horizontetemporal mais longo e ver, aos pou-cos, o que é preciso melhorar.

Chico Menezes concorda, masalerta para um momento que, paraele, será crucial para uma avalia-ção mais objetiva do Programa, queé a montagem do orçamento para2004, quando serão definidas as pri-oridades do governo:

— O orçamento vai mostrar seo combate à fome é de fato umaprioridade ou se tudo não passade mero discurso.

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Ai, que grande jantar mineiroQue seria esse... Comíamos,E comer abria fome,E comida era pretexto.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

(1902 — 1987) A MESA

Oque está dito, está dito. O queestá escrito, muito mais. Agrade-

cemos a todos os entrevistados epessoas que nos forneceram materi-al de consulta e referência sobre oassunto, especialmente a ChicoMenezes, do Ibase, pelo tempo ge-neroso que nos concedeu paraelucidação de tantas dúvidas. Agra-decemos ainda ao Canal Saúde, pordisponibilizar as fitas dos programasgravados sobre a fome e por nos abriras portas do estúdio para assistirmosà gravação do terceiro e último pro-grama da série.

Uma vez descrito e discutido oPrograma Fome Zero, contextualizadaa questão da fome no Brasil e apon-tados alguns dos maiores entraves etambém algumas direções a seguirpara a solução do problema passare-mos, nas próximas edições, a acom-panhar o assunto detendo-nos maisespecificamente nas ações e na con-tribuição do Ministério da Saúdepara o programa governamental e,principalmente, no trabalho dos mu-nicípios brasileiros. Qualquer um queao menos passe os olhos no Progra-ma percebe de imediato o papel defundamental importância reservadoaos municípios nesta proposta, iden-tificado no tópico Políticas Locais.Além disso, há ainda a variedade deiniciativas ‘nativas’, que partem daspróprias gestões municipais e quesão encorajadas. O problema, comovimos, é multisetorial e requertransdisciplinaridade e muitos olha-res e saberes diversos para sua solu-ção. O Programa Fome Zero, portan-to e como não poderia deixar de ser,é interministerial, funcionandointegradamente e sob a inspiração edireção rédea-curta da Presidênciada República, com monitoramento eassessoria do Conselho de Seguran-ça Alimentar.

A Saúde, no entanto, por ter jáconstruído a experiência bem suce-dida do Sistema Único de Saúde, e porabrigar em si o amplo conceito de qua-

lidade de vida, tem uma contribuiçãoimportantíssima a dar, seja por meiode sua rede já estruturada de infor-mação, monitoramento e assistênciaà saúde nos milhares de municípios bra-sileiros, seja por meio do conhecimen-to e das estratégias de gestão acu-mulados por toda uma geração deprofissionais, desde a década de 70,e que foram fundamentais para a im-plantação e consolidação do SistemaÚnico. Essa gente é especialista em‘guerras’: contra doenças, contraepidemias, contra a pobreza, contramercados onipotentes fabricantes deprodutos nocivos à saúde, contra amorte e a apatia. Essa gente já resis-tiu a interesses extra-nacionais, a mausgovernantes e a uma das maiores epi-demias de Aids do mundo, e hoje‘puxa’ políticas de saúde na Américado Sul e em outros países do terceiromundo, graças ao seu exemplo.

Nossa intenção, nesta reporta-gem, foi descrever com clareza e pre-cisão um panorama da fome no Bra-sil no contexto do Programa FomeZero. Mas, como o próprio título ge-

ral nos indica, trata-se de uma ‘fo-tografia’, isto é, de uma pequenafatia colhida e escolhida da imensa,variada e difusa realidade. Para cadaponto que iluminamos, centenas deoutros permaneceram às escuras. Oassunto é vasto e complexo, e as dis-cussões em torno dele, como temosacompanhado pelos noticiários, des-dobram-se em progressão geométri-ca a cada dia. Cremos, porém, queesta seja uma boa fotografia, daque-las que identificam bem o rosto daspessoas, as cores da paisagem, os de-talhes das ruas e das casas. Mas oaviso é necessário: a realidade temtrês dimensões, e não cabe no visorda câmera.

A contribuição do Radis, por-tanto, não termina aqui. Continua-remos observando, acompanhando,‘traduzindo’ iniciativas e políticas,dimensionando ganhos e perdas, fo-tografando o caminho e, principal-mente, refletindo sobre cada passodado. Quem sabe num futuro brevenosso ‘cachorrinho da Fome’ não seráilustrado dessa maneira?

A batalha está apenas começando

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Por Katia Machado e Ana Beatriz deNoronha

Omédico-sanitarista JorgeSolla é o atual titular daSecretaria de Atenção àSaúde, recetemente cria-

da no Ministério da Saúde. Durantetrês anos e meio, exerceu o cargode secretário de saúde do municí-pio de Vitória da Conquista, na Bahia,e de diretor do Conselho Nacionalde Secretários Municipais de Saúde(Conasems). Foi também represen-tante do Conasems na ComissãoIntergestores Tripartite (CIT). Sollaesteve com o Radis na Fiocruz, ondefalou sobre as atribuições da novasecretaria da qual tomou posse, asua experiência em Vitória da Con-quista, os grandes programas de go-verno, o SUS nos munícipios e aindasobre o papel do controle social parao bom funcionamento do sistema desaúde brasileiro.

Gostaríamos que o senhor nos des-crevesse a nova Secretaria de Aten-ção à Saúde, que absorve as atribui-ções das extintas Secretaria deAssistência a Saúde (SAS) e Secreta-ria de Políticas de Saúde (SPS). O quemuda e o que permanece?

A Secretaria de Atenção a Saú-de está sendo conformada com o con-junto da rede assistencial da Aten-ção Básica, passando pela redeambulatorial especializada, AtençãoHospitalar e Atenção de Alta Comple-xidade, e com os programas de Saú-de Pública. A Secretaria passa a terum grande potencial, buscando inte-grar atenção entre os diversos níveis,os programas, as ações programáticase as áreas técnicas, construindo po-líticas de atenção à saúde que per-mitam um cuidado mais global ao pa-ciente, articulando intervenções noscampos da promoção, prevenção,cura e reabilitação e desenvolven-do espaço articulado de operação.

Com isso, esperamos superar as frag-mentações e a dicotomia entre Aten-ção Básica e Atenção Especializada ea superposição de ações que existiamem função do desenho institucionaldo Ministério da Saúde.

Como ficam os grande programas comoo Saúde da Família (PSF) e AgentesComunitários de Saúde (Pacs)?

A meta é ampliar a Atenção Bási-ca, dobrando a população coberta peloPSF em quatro anos. Isso significa levaro PSF a 100 milhões de pessoas até ofinal dessa gestão. Para tanto, preve-mos não apenas aumentar o número

de equipes, mas requalificar a AtençãoBásica, criando condições de maiorresolutividade para o PSF, articulandoo acesso de pacientes que precisaremde serviços da Atenção Especializada,melhorando e investindo em ações dequalificação de recursos humanos visan-do superar a precarização do trabalhona área da Saúde. Todas essas ações,que estarão sendo coordenadas pela Se-cretaria de Atenção à Saúde e articula-das em conjunto com a Secretaria deGestão do Trabalho em Saúde, permiti-rão tanto aumentar o acesso da popu-lação à Atenção Básica quanto ofere-cer serviços mais humanizados e de

RRRRRADADADADADIIIIIS ENTRES ENTRES ENTRES ENTRES ENTREVIVIVIVIVISSSSSTTTTTAAAAA

Jorge Solla

Esperamos superar as fragmentaçõese a superposição de ações

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maior qualidade. O PSF é prioridadepara o governo.

Estudos demonstram que o PSF fun-ciona mais efetivamente nas cidadespequenas do que nos grandes cen-tros urbanos, devido a uma série dedificuldades. Existe alguma atençãoespecial do Ministério sobre o PSFnas grandes cidades?

Temos dificuldades diferenciadasem relação à implantação e aplica-ção do PSF, que variam de acordo como porte dos centros urbanos. Há trêsgrandes grupos de situações: as pe-quenas cidades, onde a inserção doprofissional é complicada porque épreciso ter salários elevados e nãoconseguimos facilmente fixar o pro-fissional na região em conseqüênciada falta de infra-estrutura da cidadee da escassez de uma educação per-manente; as cidades de médio porte,onde encontramos experiências ex-tremamente positivas e onde a difi-culdade de atração e fixação do pro-fissional é menor. Nesse porte demunicípio é preciso não só investirna quantificação e qualificação do pro-fissional, como também aumentar o in-vestimento nos serviços especializados.E, por fim, temos os grandes centrosurbanos, que apresentam uma rede desaúde mais difícil de ser convertida eque precisa de investimento visandoestimular mudanças voltadas para essanova proposta de organizaçãoassistencial. Esses apresentam umgrande contingente de trabalhadores,mas que estão inseridos em outrostipos de mercado de trabalho e re-sistem a um novo modelo de atençãoà saúde. Nesse sentido, é preciso in-vestir em gestão e em qualificação derecursos humanos, e criar condiçõesnas secretarias municipais de saúdepara que possam organizar estrutu-ras distritais de acompanhamentomais complexas. Há uma série de in-vestimentos a serem feitos nos muni-cípios, com dimensões diferentes se-gundo o porte de cada um deles. Porisso, estaremos deslanchando, aindaesse ano, dois campos de interven-ção. Um deles é um projeto que estásendo moldado e será disseminado embreve, visando dar sustentação à am-pliação do PSF nos grandes centrosurbanos. Em segundo lugar, vamos me-lhorar o financiamento do PSF, quehoje é ainda bastante precário e compequena participação dos estados(quase nula, na maior parte dos ca-sos), onerando os municípios. Que-remos criar uma política que atraiaos estados a participarem dos finan-ciamentos na Atenção Básica.

Em recente matéria do Radis sobreassistência farmacêutica, falamos noprograma ‘Farmácia Básica’ e forne-cimento do kit que vai para o PSF.Sabemos que o medicamento podechegar de duas formas: tanto pormeio de verba que tende a descen-tralizar a compra de medicamentos,quanto por meio de um kit nacio-nal. Qual é sua opinião sobre essesdois processos?

As duas formas podem ser ade-quadas, dependendo do portepopulacional. Para comprar medica-mentos, é preciso ter escala. A polí-tica de descentralização de recur-sos para assistência farmacêuticabásica é boa para municípios a par-tir de determinado porte porque elestêm como realizar um processo de li-citação para a compra de remédios.

estado da Bahia teve uma atitudecompletamente irracional quando fe-chou uma das maiores indústrias far-macêuticas públicas do Brasil. A com-pra por licitação pública nosmunicípios de médio porte da Bahiaé a melhor alternativa. Já em São emPaulo, consegue-se via Secretaria Es-tadual e Furp fazer distribuição demedicamentos em todo o estado. Apolítica farmacêutica deve ter flexi-bilidade para adequar o seu formato,para permitir a compra de medica-mentos mais baratos.

O Ministério da Saúde deve, este ano,realizar cortes em alguns programase redução de gastos. De que maneiraisso pode interferir na proposta deampliação dos serviços de AtençãoBásica e de investimento na Aten-ção Especializada?

Realmente, agora em 2003 ire-mos enfrentar uma dificuldade definanciamento muito grande. Esteúltimo orçamento do governo foium dos mais apertados que tivemosnos últimos anos. No caso da Saú-de, temos uma situação particular:além de ter o orçamento estran-gulado, ele foi todo comprometidopela gestão anterior, que conseguiuengessar todo o seu processo deaplicação. Vários compromissos fo-ram firmados, sobretudo no segun-do semestre do ano passado, quedeixaram uma margem muito peque-na de remanejamento. O orçamen-to deste ano foi praticamentecomprometido com as definiçõesem relação à Atenção de Média eAlta Complexidade e Atenção Hos-pitalar feitas durante o ano passa-do. A gestão anterior do MS aumen-tou a tabela de teto financeiro dealguns estados, e tal aumento terárepercussão em 2003. Esse compro-metimento não permitirá uma gran-de ampliação em várias áreas, e te-remos que fazer um esforço grandepara remanejar alguns montantespara projetos prioritários duranteesse ano.

Por sua experiência como Secretá-rio Municipal de Saúde e diretordo Conasems, qual é sua análise dodesempenho atual do SUS nos mu-nicípios?

Faço um balanço do SUS muitopositivo. Hoje, a capilaridade que arede pública de saúde tem nesse paísé algo muito interessante e o esfor-ço que os municípios têm feito paraassumir a gestão em saúde tambémtraduz um trabalho com bons resul-tados. É claro que isso não é algo

Em Vitória da Conquista, esse processoera excelente, pois a quantidade de me-dicamentos comprados permitia recor-rer a licitações com preços mais baratosdo que a Fundação para o Remédio Po-pular (Furp) poderia fornecer. No entan-to, quando temos pequenos municípios— que são a maioria — e, portanto, comuma escala de compra muito baixa, essamodalidade não é racional, pois o elen-co de possibilidades de compras é redu-zido, o número de fornecedores e al-ternativas de compras são mais restritas.Precisamos repensar assistência far-macêutica levando em consideraçãoalgumas particularidades, até em fun-ção do formato que a indústria far-macêutica pública tem em cada re-gião. Por exemplo, o governo do

A prioridadeatual émudar a

relação entre governofederal, estados e

municípios. A proposta éconstruir um novo pactode gestão do SUS quepermita um trabalho

mais parceiro e solidárioentre os três

níveis degestão.

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Jorge Solla: “Nós hoje temos umexército de conselheiros de saúde noBrasil inteiro”.

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homogêneo. Você tem hoje um con-junto grande de municípios com re-sultados muito positivos, um outroconjunto que, apesar do esforço,ainda tem grandes dificuldades euma outra parcela onde efetivamen-te os municípios não assumiram asfunções de gestão, apresentando in-clusive problemas de desvio de fun-ção. A prioridade atual, portanto, émudar a relação entre governo fede-ral, estados e municípios. A propostaé construir um novo pacto de gestãodo SUS que permita um trabalho maisparceiro e solidário entre os três ní-veis de gestão e uma relação de coo-peração técnica que tenha condi-ções de estabelecer um processo deavaliação e correção dos rumos quan-do houver a necessidade de superaras dificuldades. Essa nova relação iráconstruir a base para um Sistema deSaúde mais solidário e resolutivo. Euacompanhei, participando da CIT,uma crítica ao Ministério da Saúdeque dizia respeito à relação do go-verno federal com os municípios. Naprática, ela era triangulada a partirdos estados, e o Ministério só inter-vinha para tentar mediar alguns con-flitos que não conseguiam ser resol-vidos diretamente entre estados emunicípios. Outro aspecto importan-te é que devemos reconhecer queo financiamento da saúde, hoje,para aqueles municípios que colo-caram a saúde como prioridade einvestiram e apostaram na constru-ção SUS, está representando umônus grande para o espaço de ges-tão municipal. Temos um conjuntogrande de municípios no Brasil quegasta mais do que está previsto pelaEmenda Constitucional 29.

O tom da realidade do SUS é dadopelos municípios?

A necessidade surge nos muni-cípios. Você nunca esgota as ne-cessidades, e isso é uma peculiari-dade da área da Saúde. Além disso,as necessidades mudam em funçãodas diferenças demográficas. Nósainda não conseguimos resolverproblemas importantes do ponto devista de doenças endêmicas, liga-das a fome e a saneamento básico.Por isso, ao mesmo tempo em queé necessário resolver essas carên-cias, é preciso também resolverproblemas relacionados ao enve-lhecimento da população e às mor-tes por causas externas. Devemoster em mente que os municípiosapresentam um nível de demandamuito complexo, onde as respos-tas são extremamente variadas.

Sérgio Arouca, titular da nova Secre-taria de Gestão Participativa do MS,em entrevista ao Radis, diz que é pre-ciso discutir Saúde segundo políticasintersetoriais. Qual é a sua opinião?

Do ponto de vista da resoluçãoglobal, concordo plenamente. Sóque, no dia-a-dia, é preciso não sóbuscar essas políticas intersetoriais,mas também dar resposta intra-setorialimediata para solução de problemasespecíficos. É preciso resolver na-quele momento o problema de umacriança que chega ao posto de saú-de com diarréia, por exemplo, massabemos que essa é uma questão quesó poderá ser totalmente sanadaquando tiver saneamento básico,acesso à alimentação saudável emelhoria de condições de habitação.Nesse sentido, eu acho que nós te-mos conseguido avanços importantesna política de saúde, não apenas nocampo de construção de políticasintersetoriais — que ainda são muitotímidas —, como também no formatoda nossa rede de Saúde, superandoalgumas dificuldades.

Qual é o papel do controle social parao bom funcionamento do Sistema deSaúde? É possível haver controle so-cial sem informação facilmente dis-ponível?

O controle social é uma das di-retrizes mais importantes do SUS eestá sendo priorizado por essa novagestão do ministro Humberto Costa.A Secretaria de Gestão Participativailustra a necessidade de se fortale-cer o controle social, fazendo uso de

espaços coletivos de participação(conselhos e sociedade organizada)e da relação direta com os usuários(ouvidorias e sistemas de pesquisas ede escuta da satisfação do usuário).A nossa legislação criou uma grandepossibilidade de mecanismos de con-trole social. Nós temos hoje um exér-cito de conselheiros de saúde noBrasil inteiro e conselhos formadosem todos os municípios. No entanto,a capacidade de operação desses es-paços de controle social é um pro-cesso político. Não é o fato de exis-tir um conselho municipal de saúdeque assegura ser ele um espaço efe-tivo de controle social. Esse é um pro-cesso que depende de educação po-lítica e construção de cidadania.Estamos criando condições paraque o usuário venha cobrar o bomfuncionamento do conselho de saú-de de seu município. O MS está sepropondo a investir não apenas nacapacitação de conselheiros de saú-de, mas também no fortalecimentodos espaços de controle, inclusivecom a construção da Conferência Ex-traordinária de Saúde nesse ano. Onível de conhecimento das pessoassobre seus direitos e sobre os meca-nismos de denúncia e cobrança nes-se processo é muito grande. Existeum número enorme de ações na Jus-tiça de usuários que não estão rece-bendo medicamentos excepcionais.Em relação a esse episódio, o minis-tro Humberto Costa nos orientou aconstruir um processo coletivo deapuração. Foi então montado um gru-po-tarefa para apuração dessa irre-gularidade, com a participação do Mi-nistério da Saúde, do departamentode Auditoria, da Secretaria de Aten-ção à Saúde, do Ministério PúblicoFederal, da promotoria de Direito doCidadão, da Secretaria de DireitosHumanos e da Controladoria Pública.Essa é a primeira vez em que todosesses órgãos estão trabalhando emconjunto para apurar uma mesma si-tuação e tomar as devidas medidas.Isso só foi identificado a partir da per-cepção dos usuários de que seus di-reitos estavam sendo negados.

O maior conhecedor do SUS é a po-pulação?

Não há a menor dúvida em rela-ção a isso. Mas o senso comum dizque o usuário do SUS está na popu-lação de baixa condição sócio-eco-nômica, enquanto sabemos que,hoje, o SUS é utilizado por toda apopulação. O que difere é o quantovocê precisa utilizar e o que vocêprecisa utilizar.

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Daniela Sophia

Oestado da Bahia tornou-sereferência nacional nocontrole da Doença deChagas com a implantação

do Programa Estadual de Erradicaçãoda Companhia de Desenvolvimento Ur-bano do Estado da Bahia (Conder). Ainiciativa tem como objetivo principaldiminuir o índice de infestação me-lhorando as condições de habitaçãoe saneamento básico, implementandoações de combate a focos deinfestação e desenvolvendo ativida-des de educação sanitária, ambientale de saúde.

O Programa surgiu em 1998, apartir de uma grande epidemia, quan-do houve a notificação de 242 casose em que 400 pessoas morreram emdecorrência da doença. Na época,de acordo com o Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE), 88%dos domicílios rurais não possuíam ins-talação sanitária e 51% não tinham ca-nalização interna para abastecimen-to de água.

Atualmente, ele está sendo im-plantado nos municípios que têm osíndices mais elevados de infestaçãono estado e que precisam urgente-mente desenvolver estratégias parareduzir esse número. De acordo comdados do IBGE, cerca de 30 mil casasnessas localidades estão infestadaspelos barbeiros, os insetos transmis-sores da doença.

A verba destinada ao Programaatingiu R$ 6 milhões, numa média de R$2,9 mil por família, beneficiando cercade 10 mil pessoas em 20 localidades doestado, e foi aplicada em estratégiasde educação e conscientização doshabitantes, bem como na construçãode 376 novas moradias e na melhoriade 3,5 mil casas.

A Coordenadora do Programa,Regina Luz, disse que as ações de-senvolvidas estão ajudando a diminuiros índices de infestação nos municí-pios e que o Programa deve ser con-siderado como uma estratégia a serseguida em outros estados.

Mas ainda existem algumas difi-culdades que podem ser atribuídasao processo de implantação. “Paramelhorar o atendimento feito peloPrograma, é necessário ampliar aindamais a cooperação e articulação en-tre as prefeituras municipais, os con-sórcios municipais, o estado e aUnião”, disse Regina.

que até 2010 não haja mais novos ca-sos da doença.

SOBRE A DOENÇAA doença de Chagas, descoberta

em 1909 por Carlos Chagas, médico epesquisador do Instituto OswaldoCruz, é causada pelo protozoárioTrypanosoma cruzi e transmitida aohomem pelo inseto conhecido como‘barbeiro’, encontrado principalmen-te na área rural. O contato da pessoacom o inseto acontece principalmen-te dentro de casas, onde ele vive en-tre as frestas e buracos de constru-ções de pau a pique.

O controle é feito por meio deaplicação de inseticida e da melhoriadas condições de habitação, substi-tuindo as paredes de barro por dealvenarias. A doença é transmitida coma picada do barbeiro ou por transfu-são de sangue.

Os sintomas aparecem entre o5° e o 14° dia após a transmissão e semanifestam como febre, mal-estar,inflamação dos gânglios linfáticos einchaço do fígado e do baço. O diag-nóstico é feito por exame de sangue.Como não existe vacina, o combate éfeito por meio de estratégias de pre-venção e controle, como o empregode inseticida, o controle do sanguecontaminado, a eliminação dos ani-mais domésticos infectados e a cons-trução ou melhoria das habitações.

Para comemorar 90 anos dadescoberta da doença, a EditoraFiocruz (Fundação Oswaldo Cruz),lançou o livro Doença de Chagas: ma-nual de experimentação animal, deTania Araújo, Jorge e Solange de Cas-tro, apresentando uma visão globalsobre o tema.

Mais informações:ConderTel.: (71) 372-6843Site: www.conder.ba.gov.brEditora FiocruzTel.: (43) 324-2340E-mail: [email protected]: www.fiocruz.br/editoraBiblioteca Virtual Carlos ChagasSite: www.prossiga.br/chagas

DOENÇA DE CHAGASDOENÇA DE CHAGASDOENÇA DE CHAGASDOENÇA DE CHAGASDOENÇA DE CHAGAS

Programa investe na prevenção e na educaçãopara erradicar a doença na Bahia

De acordo com dados da Biblio-teca Virtual Carlos Chagas, a Organi-zação Mundial da Saúde (OMS) esti-ma que há no mundo, atualmente, 18milhões de pessoas portadores dadoença. Somente no Brasil existem 3milhões de pessoas infectadas. Mas,segundo o Ministério da Saúde, onúmero de internações está diminu-indo a cada ano no país e essa redu-ção pode ser atribuída não só à esfe-ra estadual, mas também à esferafederal, que teve um importante pa-pel nos anos 80 com o desenvolvimen-to de uma grande campanha deerradicação em todo o país feita pormeio da antiga Superintendência deCampanhas de Saúde Pública Minis-tério da Saúde (Sucam).

Para a OMS, é importante queos governos elaborem programas deprevenção e erradicação e trabalhemarticulados com outras áreas de atu-ação. Com isso, a Organização estima

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Daniela Sophia

Os jornais divulgaram recente-mente que o governo haviamantido a proibição do plan-tio e comercialização dos

transgênicos, ao mesmo tempo que bus-cava uma solução jurídica para a safra desoja transgênica produzida ilegalmenteno país esse ano, estimada em US$ 1 bi-lhão. Segundo o Coordenador do Cursode Biossegurança da Fundação OswaldoCruz, Sílvio Valle, é preciso lembrar emprimeiro lugar que nunca houve tal proi-bição na legislação. Sílvio esclarece queo plantio de organismos geneticamentemodificados (OGMs) é permitido pela Leide Biossegurança (Lei 8.974/95), des-de que passe pelo Estudo de ImpactoAmbiental (EIA-Rima) e por testes desegurança alimentar, além de cumprirnormas claras e eficientes derotulagem. Para Silvio, essa safra de sojanão foi submetida a estas normas eprocedimentos do governo e, portan-to, foi produzida ilegalmente.

O plantio ilegal deve-se, segundo oporta-voz da Presidência da República,André Singer, à precária fiscalização rea-lizada pelo governo passado, fazendo comque os produtores continuassem a plan-tar e a comercializar sem autorização dogoverno. A fiscalização é feita pela Agên-cia Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa), pelo Instituto Brasileiro do MeioAmbiente e dos Recursos NaturaisRenováveis (Ibama) e pela Secretaria deDefesa Agropecuária.

O uso dos alimentos transgênicos,também conhecidos como OrganismosGeneticamente Modificados (OGMs), écercado de muita discussão e polêmicaentre aqueles que defendem seu plan-tio e comercialização — como é o casoda Comissão Técnica Nacional deBiosseguranca (CTNBio) — e aqueles,como os técnicos do Instituto Brasileirode Defesa do Consumidor (Idec) e a mi-nistra do Meio Ambiente Marina Silva, quese posicionam contra, alegando que talmanipulação genética é uma tecnologiade resultados imprevisíveis, podendo afe-tar a cadeia alimentar e o meio ambientee gerar algum dano à saúde.

Atualmente, esse tipo de plantiocresce em média 12% ao ano e o culti-vo comercial já é feito em 16 paísesdesenvolvidos, dentre eles os EstadosUnidos. No mundo, 51% do espaço parao plantio de soja foi ocupado por vari-edades geneticamente modificadas. NoBrasil, o plantio de soja transgênicarepresenta 8% da safra nacional, ou 4milhões de toneladas de grãos, o queeqüivale a R$ 10 bilhões. Além disso, asoja alterada em laboratório ofereceuma economia de 40% em relação àsoja comum e possui uma produtivida-de entre 5% a 8% maior.

O plantio e a comercialização deOGMs teve início no país em 1998,quando técnicos da CTNBio (criadadurante o governo de FernandoHenrique Cardoso com o objetivo dejulgar os organismos transgênicos)aprovaram o comércio de soja modifi-cada geneticamente feita pela empresaMonsanto, que desenvolve produtos parao setor agrícola. A partir daí, órgãos comoo Greenpeace e o Instituto Brasileirode Defesa do Consumidor (Idec) entra-ram com uma ação na Justiça contra aComissão, para impedir que esse comér-cio fosse feito, e iniciou-se uma discus-são judicial que teve como foco as no-vas políticas públicas voltadas para oplantio e comercialização dos OGMs.

Hoje, a falta de fiscalização fezcom que a safra de soja desse ano,produzida de forma irregular, ultrapas-sasse os 49 milhões de grãos, repre-sentando um importante percentualna produção agrícola brasileira. Parasolucionar esse problema, o governoelaborou recentemente a seguinteestratégia:

! Criação de uma comissão ministerial(por meio do Decreto 4.602 de 21/02/2003), com o objetivo de encontrar umasolução jurídica para essa safra.! Os produtores de soja foram obriga-dos a assinar um termo de ajustamen-to de conduta (TAC) comprometendo-se a apenas liberar a soja para ocomércio após a fiscalização e autori-zação do governo.! Encaminhamento pelo Ministério daCiência e Tecnologia de uma propostade decreto para que a CTNbio passe aatuar apenas como órgão consultivo,transferindo a responsabilidade dedecidir sobre a liberação de OGMs paraos Ministérios.

Segundo a ministra do MeioAmbiente Marina Silva, que é con-tra o plantio e comercialização detransgênicos, a solução para o es-coamento dessa safra de soja seriaa exportação do produto sob a con-dição de que os produtores assi-nem o termo de ajustamento deconduta (TAC).

A LEGISLAÇÃODOS TRANSGÊNICOS

1995 — O governo cria a Lei deBiossegurança (Lei 8.974/95) estabe-lece as normas para as atividades comos transgênicos e cria a Comissão Téc-nica de Biossegurança (CTNBio).1998 — O primeiro OGM para plantiocomercial feito pela Monsanto é apro-vado pela CTNBio sem passar pelo Es-tudo de Impacto Ambiental (EIA).2000 — O governo edita uma MedidaProvisória (MP 2.191) que tem comoobjetivo reforçar os poderes da CTNBiono julgamento da biossegurança dostransgênicos.2001 — O Decreto 3.871 torna obrigató-ria a rotulagem de alimentos com maisde 4% de ingredientes modificados.2002 — O Conselho Nacional do MeioAmbiente (Conama) determina que asatividades com transgênicos deverãoser autorizadas pelo Instituto brasilei-ro do Meio Ambiente (Ibama).2003 — O governo cria uma comissãoministerial para discutir os rumos dasoja transgênica produzida no país,avaliada em US$ 1 bilhão.

Comissão ministerial decidirá o que fazer coma safra de soja transgênica

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CURSOS

CURSO DE INTRODUÇÃO E METODOLOGIADE PESQUISA EM GÊNERO

Tendo como meta a capacitação detrabalhadores, o 10º Curso regiona-

lizado de introdução e metodologia depesquisa em gênero, sexualidade esaúde reprodutiva ocorrerá entre osdias 07 e 25 de julho, em Salvador. Ocurso está sendo promovido pelo Pro-grama de Estudos em Gênero e Saúdedo Instituto de Saúde Coletiva (UFBA),pela Escola Nacional de Saúde Públicae pelo Instituto de Medicina Social(UERJ).As inscrições estão abertas atéo dia 30 de abril.Mais informações: UFBATel.: (71) 245-0544, ramal 253E-mail: [email protected]: www.isc.ufba.br.

PRÊMIOS

PRÊMIO FINEP

Com o objetivo de promover o desenvolvimento tecnológico, a

Financiadora de Estudos e Projetos(Finep) abriu inscrição para a sextaedição do Prêmio Finep de InovaçãoTecnológica. As propostas deverão serencaminhadas até o dia 15 de junhopara uma das seguintes categorias:Produto e processo, empresa e insti-tuição de pesquisa.Mais informações: FinepPraia do Flamengo, 200, 13º andarFlamengo, Rio de Janeiro / RJCEP: 22210-030.Tel.: (21) 2555-0555.Site: www.finep.gov.br/premio/index.htm

EVENTOS

I CONGRESSO MINEIRO DE MEDICINA DEFAMÍLIA E COMUNIDADE

Já estão abertas as inscrições parao I Congresso Mineiro de Medicina

de Família e Comunidade, que acon-

tecerá entre os dias 23 e 25 de maio,em Belo Horizonte. Com o tema ‘Me-dicina da Família e Comunidade: Qua-lidade e transformação’, o eventoconta com a parceria do governo doEstado de Minas Gerais e com a Soci-edade Brasileira de Medicina de Fa-mília e Comunidade.Mais informações: Associação Médicade Minas GeraisAvenida João Pinheiro, 161, CentroBelo Horizonte / MGCEP: 30130-180Tel.: (31) 3247-1619E-mail: [email protected]: www.sbmfc.cjd.net

XVIII REUNIÃO ANUAL DA FESBE

AXVIII Reunião Anual da Federaçãode Sociedades de Biologia Expe-

rimental (Fesbe), o XIX Congresso Bra-sileiro de Investigação Clínica e o XXVIICongresso Brasileiro de Neurociênciase Comportamento acontecerão en-tre os dias 27 e 30 de agosto emCuritiba, Paraná.Mais informações: FesbeAv. Prof. Lineu Prestes, 2415USP — ICB III, São Paulo / SPCEP: 05508-900Tel.: (11) 3814-8266Site: www.fesbe.org.br

XIX CONGRESSO DO CONASEMS

Tendo como tema central o pro-cesso de municipalização e os 15

anos do SUS, O XIX Congresso do Con-selho Nacional dos Secretários Muni-cipais de Saúde acontecerá entre osdias 26 e 30 de abril em Belo Horizon-te.Mais informações: ConasemsEsplanada dos Ministérios, Bloco GSala 126, Ala B, Brasília / DFCEP: 70058-900Tel.: (61) 315-2828Site: www.conasems.com.br

PUBLICAÇÕES

CARTILHA DO OSTOMIZADO

Asociedade Brasileira dos Osto-mizados (SBO), em parceria com

o Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), lançou recentemente aCartilha do ostomizado - João Albertotem uma ostomia com o objetivo deorientar pais, professores e e profis-sionais de saúde sobre a tecnologiae o tratamento.Mais informações: SBOAvenida General Justo, 275, Bloco Bsala 318, Centro, Rio de Janeiro / RJTel.: (21) 2262-2003E-mail: [email protected]: www.ostomia.com.br

LIVROS

LANÇAMENTOS DA EDITORA FIOCRUZ

Qual prevenção? Aids,sexualidade e gêneroem uma favela carioca,de Simone Monteiro. Aoinvestigar como jovenspobres concebem o cui-dado com a saúde, o livro apresen-ta as redes de fatores envolvidosna mudança dos comportamentosdos sujeitos sociais e o vínculo en-tre a desigualdade social e avulnerabilidade diante da infecçãopelo HIV.

Arquivos da loucura:Juliano Moreira e adescontinuidade históri-ca da psiquiatria, de VeraPortocarrero. Utiliza aprodução do psiquiatraJuliano Moreira e revela adescontinuidade na história da psi-quiatria brasileira.

Mais informações: Editora FiocruzAvenida Brasil, 4036, sala 112Manguinhos, Rio de Janeiro / RJCEP: 21040-361Tel.: (43) 324-2340E-mail: [email protected]: www.fiocruz.br/editora

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E-mail para esta seção:[email protected] responsável: Daniela Sophia

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O teste de gravidez

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PÓS-TUDOPÓS-TUDOPÓS-TUDOPÓS-TUDOPÓS-TUDO

Aristides Dutra

Sou brasileiro, solteiro, estou em meujuízo perfeito (acho), mas confesso: já

fiz um teste de gravidez. Sim, eu. Foi aminha própria urina que foi mandada parao laboratório. Pode parecer esquisito, masé verdade. E teve sua razão de ser.

Foi na época da faculdade, há uns vin-te anos. Marta, uma colega de turma, meprocurou desesperada porque caiu na bes-teira de dizer para uma prima que sua mens-truação estava atrasada. A prima contoupara a mãe e agora elas estavam exigindoum teste de gravidez. Ela me disse que que-ria decidir sozinha se teria ou não o filho,por isso, precisava de um exame negativopara acalmar a família e ganhar tempo. Elapensou em pedir a uma amiga, mas desistiuporque qualquer mulher poderia, a princí-pio, estar grávida, mesmo sem saber. A úni-ca garantia absoluta que ela poderia terseria pedindo a um homem. E lá fui eu, reco-lher urina para um teste de gravidez.

Isso foi uma semana antes do fim dosemestre. E, coincidentemente ou não, afamília de Marta mudou de cidade e nuncamais a vi. Não fiquei sabendo que decisãoela tomou. Nem podia perguntar a ninguém,porque ela só contou o caso para mim eperguntar a alguém seria dar bandeira.

A decisão de ter (ou não) filhos é umassunto que, há muito tempo, rompeu abarreira do casamento. E com os meios decontrole da natalidade acessíveis hoje emdia, ter um filho se tornou uma decisão

consciente. Ou um descuidoabsoluto. Mas a garotada dehoje em dia parece que aindanão tomou pé da situação.Um dia, Vitor, meu sobrinho(então com 19 anos) atendeuao telefone com os olhos es-bugalhados e ficou repetin-do: “Mas você tem certeza?Você tem certeza?” Longosminutos depois, ele desligou otelefone e me disse:

— Cara, você quase foitio-avô. Minha namoradadisse que tava grávida e fi-cou fazendo terror, dizen-do que eu ia ser papai. Masno final, ela disse que foi sóa menstruação que atrasouuns dias, mas depois veio.Acho que ela me contou paraver como eu reagia.

Depois do susto damenina, ele ainda teve queouvir a minha repreensão por não se pre-venir. Eu fiquei lá, resmungando coisas ebancando o tio consciente. Não adiantoude nada, pois menos de dois anos depoiseu finalmente me tornei tio-avô.

Sempre fico me lembrando dessas his-tórias cada vez que os jornais são invadi-dos por uma nova onda de crimes envolven-do pais e filhos. Um dia é uma filha que, coma ajuda do namorado, articula a chacinados próprios pais. No outro, é um neto que,completamente drogado, estraçalha a avóindefesa. Agora, é um pai que arremessa

o próprio bebê contra umcarro em movimento. Umamãe não quer mais o fi-lho? Ela simplesmente oatira no Rio Tietê. É menoscomplicado.

O que será que moveessa gente? O que repre-senta para eles colocarmais uma pessoa no mun-do? Onde é que se aprendea ser um bom pai? É em casa?E quem teve maus pais,como é que faz? E a ser umbom filho, como é que seaprende? De quem é, hoje,a responsabilidade de edu-car: dos pais, da babá ouda creche? É perfeitamen-te compreensível que umnovo mundo e novas orga-nizações sociais pressupo-nham também novos pa-drões familiares, novos

valores. Mas é inegável que alguma coisadeu muito errada no meio do caminho.

E Marta, por onde andará? Nunca maistive notícias suas. Talvez tenha se casa-do, talvez tenha tido filhos e seja uma boamãe (espero). Talvez tenha entrado paraum convento, quem sabe? Obviamente, seuverdadeiro nome não é Marta. Mas nãoimporta. É possível que um dia ela leia estacrônica e resolva entrar em contato parame contar de seu paradeiro. Mas dessahistória toda, só de uma coisa eu tenhocerteza: eu não estava grávido.