TEMA ESPECIAL 05 – MERCOSUL - tesouro.fazenda.gov.br · 1 TEMA ESPECIAL 05 – MERCOSUL MERCOSUL:...
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TEMA ESPECIAL 05 – MERCOSUL
MERCOSUL: SOBRE LIVRE-COMÉRCIO, SALVAGUARDAS E
RESTRIÇÕES VOLUNTÁRIAS DE EXPORTAÇÃO
1. Introdução
O Mercosul vem passando por um momento crucial em sua história. Os
dois principais sócios do bloco estão discutindo a criação de um mecanismo de
limitação dos fluxos comerciais para setores nos quais ocorrem assimetrias que
desequilibram o intercâmbio bilateral. O embrião da nova proposta de mecanismo foi o
documento do Ministro da Economia argentino, Roberto Lavagna, entregue ao governo
brasileiro, em setembro de 2004, sugerindo a criação de salvaguardas1 automáticas
para os setores em que haja assimetrias no comércio. Esta proposta, somada às
constantes ameaças de restrições comerciais por parte da Argentina, induziu o governo
a estimular o setor privado brasileiro a negociar restrições para as exportações
brasileiras de alguns setores de significativa importância no comércio bilateral.
O pano de fundo nas negociações para a criação de mecanismos de
restrição do comércio bilateral no Mercosul é o mal-estar dos industriais argentinos com
1 O conceito jurídico de medidas de salvaguarda é extraído do GATT-1994 (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e do Acordo sobre Salvaguardas da OMC (Organização Mundial do Comércio). Salvaguarda, em sentido específico, é a medida de defesa comercial por meio da qual um país importador pode, em caso de urgência e por tempo limitado, suspender as concessões tarifárias para determinado produto ou restringir (quantitativamente) sua entrada, caso verifique não apenas um aumento brusco e repentino nas importações de tal produto, mas também que isto causa ou ameaça causar prejuízo grave para a indústria nacional.
2
o aumento das importações provenientes do Brasil. O crescimento das importações,
segundo os empresários locais, estaria prejudicando a retomada da indústria argentina.
Desde então, os empresários argentinos dos setores com maiores desequilíbrios no
comércio bilateral vêm pressionando o governo para que tome medidas contra a
suposta invasão dos produtos brasileiros no mercado local, como a implementação de
salvaguardas que, atualmente, vêm sendo chamadas de Cláusula de Adaptação
Competitiva. Estas medidas, contudo, manterão o objetivo original de uma salvaguarda,
limitando os desembarques de produtos brasileiros no país vizinho, por meio de cotas
ou sobretaxas, nos casos em que o aumento de importações prejudique os fabricantes
locais.
Por enquanto, sem a definição de um mecanismo de restrição de
exportações institucionalizado no bloco, criou-se a Comissão Bilateral de
Monitoramento de Comércio, em agosto de 2003, como resposta às pressões do setor
privado argentino. A Comissão tem como objetivo abrir um canal de negociação entre
os empresários com a participação dos governos para negociar restrições quantitativas
ao comércio bilateral nos setores produtivos considerados assimétricos. Desde então
vários acordos privados foram negociados, criando cotas para as exportações de
diferentes setores como: têxteis, televisores, linha branca, calçados e vinhos.
Contudo, o estabelecimento de salvaguardas no âmbito do Mercosul,
como divulgado pela imprensa e mesmo comentado nas reuniões da Comissão de
Monitoramento, não tem fundamento jurídico. Inicialmente, é necessário considerar que
uma medida dessa ordem precisa ser compatível com as disciplinas previstas pela
Organização Mundial do Comércio (OMC), que vinculam todos os membros do
Mercosul. Ainda que haja discussão sobre a possibilidade jurídica, à luz das regras da
3
OMC, de um membro de uma união aduaneira (mesmo que incompleta) impor essa
restrição às importações de outro, as regras do acordo regional precisariam prever essa
possibilidade para que se cogite de sua viabilidade jurídica. Como se verá abaixo, as
regras do Mercosul, no momento, não contam com previsão que autorize a imposição
dessas medidas.
Diante deste cenário, o objetivo principal deste estudo é examinar a partir
de uma perspectiva histórica, econômica, política e jurídica do processo de discussão e
negociação para a criação de um sistema de salvaguardas no Mercosul, assim como
pesquisar os acordos de restrições voluntárias às exportações, opção que surgiu como
resposta do Brasil às pressões argentinas para a institucionalização das salvaguardas.
Neste trabalho, focalizam-se os condicionamentos e as formas pelas quais Brasil e
Argentina atuaram nas discussões para a institucionalização de salvaguardas no bloco,
assim como a diferença de posicionamento dos dois países na Comissão de
Monitoramento de Comércio Bilateral, fórum responsável por negociar as restrições
quantitativas para o comércio de setores onde ocorrem assimetrias. Com esta análise,
pretende-se abordar mais profundamente dois temas que foram pouco pesquisados no
processo de integração regional: as salvaguardas e os acordos de restrição voluntárias
às exportações, instrumentos de política comercial que servem para excepcionar a
regra do livre-comércio intrazona no Mercosul.
O artigo está assim estruturado: na primeira seção são contextualizados
alguns aspectos recentes das relações bilaterais entre Brasil e Argentina,
principalmente no que se refere à proposta argentina da criação de salvaguardas para
os setores assimétricos; a segunda seção analisa os argumentos jurídicos relativos à
aplicação de salvaguardas no Mercosul e na OMC; a terceira seção, por sua vez,
4
discute os principais desdobramentos comerciais e os acordos entre os setores
privados de Brasil e Argentina originados desde a criação da Comissão Bilateral de
Monitoramento de Comércio; e, por fim, na quarta seção são apresentadas as
conclusões.
2. Histórico das Medidas de Restrição ao Comércio entre Brasil e Argentina
O debate sobre a aplicação das salvaguardas já tem uma longa história no
Mercosul. Inicialmente, este instrumento existiu no contexto do Regime de Adequação
do Mercosul, previsto no Tratado de Assunção, e permitia que se efetuassem ajustes
tarifários antes da implementação definitiva da Tarifa Externa Comum, em 1994.
Prorrogou-se até janeiro de 1999 a possibilidade de se aplicarem as salvaguardas, a
partir do que foram proibidas no contexto do comércio intrabloco. Apesar de não serem
mais permitidas, sempre que existe algum tipo de desequilíbrio nas relações comerciais
no Mercosul, as salvaguardas acabam voltando ao centro das discussões.
O bloco, atualmente, está distante da realidade do período 1994-98. Estes
foram os anos dourados da integração comercial no bloco, havia estabilidade cambial e
monetária, os ciclos econômicos dos países eram comuns, os fluxos de capitais
permitiam financiar desequilíbrios e o comércio intersetorial era mais equânime. Este
período foi marcado pela evolução do processo integrativo e pelo adensamento das
relações entre os membros do Mercosul. Por conseguinte, a adoção de medidas
restritivas ao comércio, como as salvaguardas, não tinha espaço em um cenário de
otimismo onde o interesse político de seus sócios era o de aprofundar a integração.
5
Os conflitos comerciais entre Brasil e Argentina e as discussões sobre a
adoção de salvaguardas ressurgiram a partir de janeiro de 1999, quando a moeda
brasileira foi desvalorizada, provocando o receio de uma invasão de produtos
brasileiros na Argentina. Refém da lei de conversibilidade, a Argentina passou a
conviver com o temor de assumir a maior parte dos custos decorrentes da mudança
cambial brasileira, que seria, no curto prazo, o aumento substancial das importações
provenientes do Brasil, acompanhado da queda das exportações argentinas para o
parceiro do bloco.
Nestas condições, o tema das salvaguardas encontrou um terreno fértil
para voltar à tona no Mercosul. Em julho de 1999, o governo argentino, pressionado
pelo desemprego e pela recessão, regulamentou um sistema de salvaguardas aplicável
também aos membros do Mercosul, materializado na Resolução nº 911. Além disso,
foram aplicadas salvaguardas específicas contra as importações de fios e fios
combinados de algodão. O governo brasileiro agiu depressa e buscou apoio do Uruguai
e Paraguai para forçar a Argentina a recuar, e declarou que o Brasil não participaria das
reuniões do Mercosul até que a Resolução nº 911 fosse suspensa.
Em relação aos produtos têxteis, a Argentina introduziu, de acordo com as
previsões do artigo 6o do Acordo sobre Têxteis e Vestuário (ATV) da OMC, uma
salvaguarda de transição por um período de três anos sobre as importações de fios de
algodão e fios combinados originárias do Brasil, Paquistão e China. As autoridades
argentinas consideraram que as exportações brasileiras estavam causando dano à
indústria têxtil do país. No entanto, o Órgão de Supervisão dos Têxteis (OST)
6
determinou que tal medida não se justificava, o que obrigava a Argentina a desistir da
aplicação da salvaguarda2.
O Brasil se opôs decididamente a essa disposição restritiva da Argentina
e, apesar do início das conversações de alto nível, não foi solucionado o impasse em
relação à Resolução nº 911. Assim, o Brasil apresentou uma reclamação ante a
Comissão de Comércio do Mercosul e, posteriormente, iniciou os procedimentos para
levar a controvérsia ao Tribunal Arbitral do Mercosul. O Tribunal se pronunciou,
sustentando que, diferentemente do alegado pela Argentina, as regras vigentes no
Mercosul não permitiam a adoção de salvaguardas intrabloco.
Após a decisão do Tribunal Arbitral a Resolução nº 911 foi extinta pela
Resolução do Ministério da Economia (ME) nº 265/00, e a Resolução ME nº 337/00
extinguiu a medida referente aos produtos têxteis, já que as importações registradas,
segundo a recomendação do OST, não ocorreram em volumes que pudessem causar
prejuízo grave à indústria doméstica.
Simultaneamente a este processo, o Brasil vinha rechaçando as propostas
argentinas de implementar restrições ao comércio bilateral por meio da aplicação de
salvaguardas, preferindo negociar acordos de restrições voluntárias às exportações. Os
acordos privados para limitação de exportações começaram a ser discutidos a partir de
fevereiro de 1999, para os setores calçadista e de papel e celulose.
Ao longo de 2000 e 2001, para contornar o impacto da desvalorização do
real no comércio entre os países do bloco, a Argentina passou a pressionar o governo
2 A Argentina, contudo, não suspendeu a aplicação das medidas, o que lhe gerou um contencioso na OMC movido pelo Brasil. No âmbito do contencioso, os países fizeram um acordo que colocou fim à disputa. Cf. Argentina – têxteis, WT/DS190 (os documentos da OMC aqui indicados podem ser vistos em <www.wto.org>).
7
brasileiro para admitir juridicamente as salvaguardas ao comércio intrazona. As
reuniões bilaterais buscavam determinar se o mecanismo de salvaguardas adotado
seria setorial, como defendia o Brasil, ou global, desejo argentino.
Mesmo se mostrando disposto a negociar, o governo brasileiro resistia a
adotar um mecanismo irrestrito e preferiu criar limites setoriais para aplicação de
salvaguardas. Em outubro de 2001, os governos do Brasil e da Argentina chegaram a
anunciar, em São Paulo, a criação de um sistema de salvaguardas para o comércio
bilateral. As salvaguardas seriam uma saída emergencial para enfrentar a crise nas
economias dos dois países-membros do Mercosul, teriam caráter temporário e seriam
regidas pelas normas da OMC. A partir do anúncio, a previsão para a adoção de
salvaguardas deveria ser definida num prazo de duas semanas por equipes de Brasília
e Buenos Aires. Logo em seguida, contudo, as negociações foram suspensas face à
crise desencadeada pelas contínuas declarações do então Ministro Domingo Cavallo,
que afirmou: “está esgotado este modelo de associação comercial com países que
fazem o que querem com suas moedas (...) claro que me refiro ao Brasil”3.
Em decorrência das constantes declarações do Ministro Cavallo, o
Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Lafer, ordenou ao embaixador
brasileiro na Argentina, José Botafogo Gonçalves, suspender as discussões sobre a
adoção de medidas de salvaguardas no Mercosul. As negociações, planejadas para
terminar em duas semanas, foram encerradas em conclusões sobre a adoção de
salvaguardas e criaram um impasse entre Brasil e Argentina. Este foi o momento em
3 As declarações do Ministro da Economia Domingo Cavallo estão disponíveis em: <http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2001/out/27/23.htm>.
8
que mais se aproximou da definição de um mecanismo para a aplicação de
salvaguardas no Mercosul.
No final de 2001, a Argentina passava pelos piores momentos da crise
política: 2001 será lembrado como um ano trágico, de convulsão social e anarquia
econômica. No intervalo de dez dias, a presidência da Argentina mudou de mão cinco
vezes. Este cenário de instabilidade política e econômica forçou a paralisia decisória do
bloco, o que se iniciou com o afastamento dos quadros técnicos argentinos de muitas
das diferentes instâncias negociadoras e logo as propostas de criação de salvaguardas
foram esquecidas.
As iniciativas de criação de um sistema de salvaguardas voltam à pauta
do Mercosul depois da eleição de Nestor Kirchner, em 2003. Sob o argumento de que
há assimetrias na evolução das economias do Brasil e da Argentina, especialmente na
produção industrial, o governo argentino, em setembro de 2004, apresentou aos
governo brasileiro sua proposta de criação de mecanismo que permitiria a aplicação de
salvaguardas. Nesta proposta, nos casos de desequilíbrio no comércio entre os países
do bloco haveria aumento de tarifas de importação ou definição de restrições
quantitativas.
A primeira proposta de salvaguardas foi enviada ao governo brasileiro, em
setembro de 2004, pelo Ministro da Economia argentino, Roberto Lavagna, que a
entregou a Antonio Palocci, Ministro da Fazenda brasileiro. O documento previa a
elevação de barreiras quantitativas e tarifárias caso houvesse aumento das importações
de produtos provenientes do país vizinho, com prejuízos aos setores produtivos,
quando houvesse desníveis nas taxas de câmbio, ou quando ocorresse desequilíbrio
acentuado na evolução da atividade econômica.
9
Apesar de ter recebido a proposta em setembro, só em dezembro de
2004, durante a reunião do Conselho do Mercado Comum, principal órgão de condução
política do processo de integração, voltou-se a se discutir a sugestão argentina de
implementação de salvaguardas. A reunião de cúpula do Mercosul, entre 15 e 17 de
dezembro, marcou o aniversário de dez anos do documento que transformou o grupo
de países do Cone Sul em uma união aduaneira. Nesta ocasião, a Argentina insistiu na
proposta de criação de um mecanismo de restrição do comércio por meio da aplicação
de salvaguardas. A Argentina, contudo, ficou isolada; Paraguai e Uruguai, além do
Brasil, posicionaram-se contra o mecanismo. Tanto o Uruguai, quanto o Paraguai se
manifestaram contra a proposição por entenderem que o mecanismo de salvaguardas
comerciais fere os princípios almejados de livre-comércio na zona.
Em janeiro de 2005, representantes do Brasil e da Argentina reuniram-se
para avaliar o processo de integração e, particularmente, a situação do comércio
bilateral, momento em que se deu continuidade às conversações sobre a adoção de
salvaguardas intrabloco. O Brasil, naquele momento, sugeriu a criação de uma
Comissão para a Expansão do Comércio e a Promoção da Integração Produtiva, em
resposta às iniciativas argentinas. A estratégia parecia ser a de evitar as salvaguardas
por meio da expansão das correntes de comércio bilateral de forma equilibrada, que
pudesse levar à integração dos setores produtivos.
Muito embora tenha rejeitado a iniciativa argentina, o Brasil, em janeiro de
2005, sugeriu que os agentes privados brasileiros auto-limitassem as exportações de
produtos sensíveis para a Argentina, tais como têxteis, calçados e eletroeletrônicos de
linha branca.
10
Até maio, o empresariado brasileiro parecia irredutível em acatar
iniciativas que comprometessem o fluxo comercial e restringissem o comércio no
Mercosul. Mas a posição brasileira em relação às salvaguardas muda depois da
primeira reunião entre os Ministros da Fazenda brasileiro e argentino para discutir o
tema. Nesta ocasião, Antonio Palocci declara, em entrevista ao jornal argentino La
Nación:
Conversamos la semana pasada durante la cúpula América del
Sur-Países Arabes, pero él no me presentó formalmente una
propuesta. El ministro Lavagna me recordó los detalles de la
propuesta que hicieron inicialmente [en septiembre], recordamos
las ponderaciones que hizo Brasil, y me dijo que a partir de ese
diálogo va a hacer una segunda. Le dije que la esperamos con
respeto. Creemos que los sectores productivos de Brasil y la
Argentina pueden realizar acuerdos. Nosotros sugerimos al
gobierno argentino que no utilicemos mecanismos de
salvaguardias, porque ese instrumento va en sentido contrario de
la profundización del Mercosur4.
Depois do encontro dos dois ministros, o governo argentino enviou nova
proposta de restrição comercial que foi entregue pelo seu Ministro Roberto Lavagna, ao
Ministro Antonio Palocci, ainda em maio de 2005, quando o presidente da Argentina,
Néstor Kirchner, esteve em Brasília para a Cúpula América do Sul-Países Árabes.
O documento, com a segunda proposta de criação de salvaguardas no
Mercosul, é mais sucinto que o anterior, ainda que contenha explicação e sugestões
sobre prazos e percentuais. A proposta, contudo, mantém o princípio do "gatilho",
11
mecanismo que acionaria de maneira automática e unilateral as restrições ao comércio
bilateral, dispensando, assim, consultas prévias aos país prejudicado pelas medidas. O
plano argentino de criação de salvaguardas enfrentou fortes resistências no governo e
no setor privado brasileiros5. Na essência, todavia, a proposta é praticamente a mesma
apresentada em 2004. Trata-se da adoção de cotas ou de sobretaxas para impedir o
acesso irrestrito de produtos brasileiros em casos comprovados de “invasão” do
mercado argentino.
Em julho de 2005, durante as reuniões do Comitê de Monitoramento de
Comércio entre Brasil e Argentina, no Rio de Janeiro, iniciaram-se as negociações para
a formalização de alguma medida de restrição nas relações comerciais entre os países.
Nesta reunião, a discussão foi retomada com pelo menos dois avanços que agradaram
aos negociadores brasileiros. A Argentina concordou em não acionar as salvaguardas
automaticamente, por meio de um gatilho, e também aceitou que os setores
beneficiados por uma salvaguarda se comprometam com um programa de
reestruturação para se tornarem mais competitivos.
Além da divergência de caráter político a respeito da conveniência de se
admitir a restrição ao comércio intrabloco, as equipes técnicas que negociam as
mudanças têm pelo menos um ponto de discordância. Os argentinos querem que o
mecanismo seja aplicado também por fatores macroeconômicos, como alterações nas
cotações de moedas dos dois paises ou em caso de recessão.
4 Entrevista do Ministro da Fazenda brasileiro Antônio Palocci ao jornal La Nación. Para ter acesso à entrevista basta acessar: <http://www.lanacion.com.ar/EdicionImpresa/economia/nota.asp?nota_id=705142>. 5 Ver posicionamentos dos Ministros do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, e do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, no endereço: <http://www.idcid.org.br/default.asp?sec=3&id=4303>.
12
Os negociadores brasileiros, por sua vez, insistem que o acordo de
institucionalização das salvaguardas deva conter três pontos principais. Primeiro, que
não haja gatilhos, como pretendem os argentinos. O Brasil, em essência, insiste para
que a decisão a respeito da aplicação da medida seja compartilhada entre os membros
do Mercosul, de modo que um país não tenha a liberdade de adotar cotas e sobretaxas
a partir de um sinal pré-definido de aumento de importações. Segundo, seria preciso a
confirmação do prejuízo grave sofrido pelo setor concorrente nacional e do nexo causal
com a elevação das importações. Terceiro, seria indispensável definir um prazo de
vigência da salvaguardas.
3. Aspectos Jurídicos Relativos à Aplicação de Salvaguardas no Mercosul
Muito embora o Mercosul seja o foco da análise deste artigo, é importante
ter presente que todos os membros do bloco fazem parte do sistema multilateral de
comércio articulado pela OMC e, assim, todos têm obrigações jurídicas no plano
multilateral. Nesta seção, analisam-se as salvaguardas, tanto à luz das regras da OMC,
quanto das disciplinas vigentes no Mercosul. O propósito desta reflexão é justamente
analisar a viabilidade jurídica de se adotar essa limitação comercial no âmbito do
Mercosul, o que exige reflexão também a respeito das regras do sistema multilateral.
Vale desde logo ter em mente que os obstáculos jurídicos eventualmente
existentes no âmbito regional tendem a ser mais facilmente solucionados que os de
ordem multilateral. Além do interesse anunciado de seus membros com o processo de
integração regional, o Mercosul conta com apenas quatro sócios. Na OMC, além dos
13
148 membros existentes, a revisão das regras é decidida por consenso e a atual rodada
de negociação em curso, a Rodada Doha, não confere mandato negociador para a
revisão das regras sobre salvaguardas, de maneira que as perspectivas para a
alteração das disciplinas vigentes são muito mais remotas no âmbito multilateral. Ainda
assim, é importante considerar que as regras adotadas pelos membros do Mercosul em
relação ao comércio regional devem ser compatíveis com as disciplinas do sistema
multilateral. A rigor, não basta, portanto, a adoção de instrumentos jurídicos que
permitam a restrição do comércio intrabloco, se as regras do sistema multilateral não
admitirem tais restrições6.
De fato, por ser uma medida de caráter excepcional, que restringe o
comércio sem que esteja ocorrendo prática desleal por parte do país que sofre seus
efeitos, a aplicação das salvaguardas é dificultada ao máximo pelas normas da OMC.
Para que se adote uma medida dessa natureza, três fatores devem ser comprovados7.
São eles: (i) surto de importações; (ii) existência ou ameaça de prejuízo grave à
indústria nacional e (iii) nexo causal entre o aumento das importações e o prejuízo (ou a
ameaça dele). Além dos pressupostos de aplicação serem rigorosos, limitando o
emprego da medida, a exigência das compensações e a não-seletividade8 fazem com
6 No exame de processos de integração e de medidas de salvaguarda, é importante ter presente que o Acordo sobre Salvaguardas autoriza a união aduaneira a aplicar uma salvaguarda como uma entidade única (Acordo sobre Salvaguardas, nota de rodapé 01). Esse, contudo, não é o foco deste trabalho. 7 Veja para esta e outras questões relativas a salvaguardas BROGINI, Gilvan. Medidas de Salvaguarda e Uniões Aduaneiras. São Paulo: Aduaneiras, 2000, p. 24 e ss. Sobre o assunto, veja-se também PAUWELYN, Joost. The Puzzle of WTO Safeguards and Regional Trade Agreements. Journal of International Economic Law, n. 7, v. 01, 2004, p. 109-142. 8 O país que sofrer com as medidas impostas por outro tem o direito de ser compensado pelo prejuízo econômico decorrente das restrições às suas exportações (Vide artigo 8 do Acordo sobre Salvaguardas). Além disso, a salvaguarda definida por um país deve se aplicar a todas as suas importações do produto protegido, não importando sua origem. Não são possíveis, assim, salvaguardas destinadas a proteger o mercado interno contra as importações provenientes apenas de um determinado país (a única exceção prevista refere-se às salvaguardas excepcionais temporárias contra os produtos de origem chinesa).
14
que o interesse dos países na aplicação de salvaguardas diminua sensivelmente. Aliás,
restringir o interesse na adoção de salvaguardas vai justamente ao encontro do
propósito central da OMC: a promoção do comércio internacional.
Diante do panorama regulatório das salvaguardas, concentra-se na
questão que interessa a este estudo: a possibilidade jurídica de uma salvaguarda ser
aplicada dentro de uma união aduaneira, particularmente por um membro da união
aduaneira contra outro.
De início, é importante notar que as regras da Organização admitem,
respeitados alguns parâmetros, que se formem acordos regionais de comércio. De
acordo com a lógica que motivou o artigo XXIV do GATT-1994, áreas de livre comércio
e uniões aduaneiras podem prestar um serviço para a liberalização do comércio
internacional em escala global, mesmo que, para isso, desrespeitem o princípio básico
de não-discriminação previsto pela OMC.
Segundo o GATT-1994, uma união aduaneira deve ser entendida como a
criação de um único território aduaneiro, a partir de dois ou mais pré-existentes, de
maneira que as tarifas e outras regulações restritivas de comércio sejam eliminadas em
relação a “substantially all the trade” (expressão, aliás, sujeita a grandes polêmicas na
OMC). Além disso, para a conformação da união aduaneira é necessário que
“substantially the same” tarifas e outras regulações de comércio sejam aplicadas pelos
membros da união aduaneira em relação aos países que não fazem parte dela9. A
adoção de uma tarifa externa comum por um bloco comercial, por exemplo, enquadra-
se nas previsões da OMC a respeito de uniões aduaneiras.
9 GATT-1994, artigo XXIV, 8(a), (i) e (ii).
15
Nas regras da Organização, há disciplinas vigentes para acordos que
visam à formação de uma união aduaneira e para as uniões aduaneiras formadas.
Durante o chamado período de transição (ou seja, antes da formação da união
aduaneira), os países dispõem de certa flexibilidade quanto à escolha dos instrumentos
que farão uso para atingirem a união aduaneira (mesmo que imperfeita). Segundo
Brogini, nesse contexto, “a utilização de salvaguardas no comércio interior antes do
estabelecimento da UA [união aduaneira] não é incompatível com as normas do artigo
XXIV”10.
Depois de estabelecida a união aduaneira, mesmo que imperfeita, há
divergência na literatura a respeito da possibilidade de se empregar uma salvaguarda
intrabloco.
Os argumentos que defendem a inviabilidade jurídica das salvaguardas
intra-união aduaneira têm como base o seguinte fundamento. A norma aplicável da
OMC define que na união aduaneira as tarifas e demais regulações comerciais
restritivas sejam eliminadas em relação a substancialmente todo o comércio interno,
“com exceção, na medida em que seja necessário, das restrições previstas nos artigos
XI, XII, XIII, XIV, XV e XX do GATT-1994”11. As salvaguardas, por sua vez, estão
previstas no artigo XIX do GATT-1994, dispositivo não contemplado no rol acima. Isso
significa que, formada a união aduaneira (mesmo incompleta), deve haver a livre-
circulação de bens intrabloco (em relação a “substantially all the trade”), sendo
possíveis as exceções listadas acima, entre as quais não se incluem as salvaguardas.
10 BROGINI, Gilvan. Op. cit., p. 83. 11 Os dispositivos listados referem-se, por exemplo, a restrições ao comércio necessárias para proteger o meio ambiente, a saúde e a vida humana, para proteger balanço de pagamentos entre outras.
16
Se fosse possível a aplicação de salvaguardas intrabloco, o artigo XIX estaria
expressamente previsto no rol das disciplinas que podem persistir mesmo após a
formação da união aduaneira, o que não ocorre. A lista das exceções à livre-circulação
de mercadorias intrabloco, nesse sentido, seria exaustiva. Segundo este entendimento,
a rigor, portanto, não seria possível a aplicação de salvaguardas intrazona após a
formação da união aduaneira12. A Austrália, por exemplo, defende que as salvaguardas
intrabloco não são possíveis com base nesse entendimento13.
Por outro lado, os argumentos que sustentam a possibilidade de se
empregar uma salvaguarda intrazona têm o seguinte fundamento. Segundo a definição
da OMC de união aduaneira, esta implica a liberalização do comércio em relação a
“substantially all the trade”, e não a rigorosamente todo o comércio. Assim, haveria uma
margem de manobra para se adotar uma prática restritiva ao comércio intrazona e,
dessa forma, uma salvaguarda entre os membros de uma união aduaneira seria
viável14. A possibilidade de aplicação de salvaguardas intrazona é defendida, por
exemplo, pela União Européia15. Interessante, ainda, é registrar o posicionamento de
Israel e do Canadá, para quem as salvaguardas intrabloco só poderiam ser permitidas
se ficasse comprovado que o prejuízo à indústria doméstica se deve à redução das
barreiras previstas no acordo regional16.
12 Neste sentido, vide por exemplo, BROGINI, Gilvan. Medidas de Salvaguarda e Uniões Aduaneiras. São Paulo: Aduaneiras, 2000. 13 Cf. Australia, WT/REG/M/15, para. 40. 14 Neste sentido, vide, por exemplo, PAUWELYN, Joost. The Puzzle of WTO Safeguards and Regional Trade Agreements. Journal of International Economic Law, n. 07, v. 01, 2004, p. 109-142. 15 EC, WT/REG/M/14, para. 13. 16 Israel, WT/REG31/M/1, para. 30; Canada, WT/REG38/M/1, para. 44.
17
A respeito da aplicação de salvaguardas dentro de uniões aduaneiras, há
ainda o entendimento segundo o qual as medidas apenas seriam possíveis se forem
aplicadas indistintamente a todos os membros da OMC (incluindo-se, assim, os
parceiros do acordo regional) – essa é a posição, por exemplo, do Japão e de Hong
Kong17. Uma medida que incidisse apenas sobre os parceiros do bloco ou que
excluísse esses países estaria violando tanto a cláusula da nação mais favorecida,
quanto o princípio da não-seletividade comentado acima. Esse entendimento, contudo,
não parece o mais acertado: respeitados parâmetros, o artigo XXIV admite que a
cláusula da nação mais favorecida e outras regras possam ser legitimamente
excepcionadas. Portanto, seria possível que membros de um bloco comercial (que
devem eliminar substancialmente todas as barreiras ao comércio intrazona) não sejam
obrigados a estender a restrição comercial a seus parceiros do acordo regional.
Assim, aplicando-se as lições acima à situação do Mercosul, uma união
aduaneira incompleta, conclui-se o seguinte:
• Há divergências a respeito da possibilidade jurídica à luz das regras da
OMC de se adotar uma salvaguarda intrabloco. As normas aplicáveis não
são claras, o tema ainda não foi discutido no sistema de solução de
controvérsias da Organização e as discussões sobre a reforma do artigo
XXIV no âmbito da Rodada Doha evidenciam que países têm
posicionamentos distintos sobre o assunto.
17 Japan, WT/REG/M/14, para. 7; HKC, WT/REG/M/15, para. 22.
18
Se já não bastasse a indefinição sobre a possibilidade de se adotar uma
salvaguarda intrabloco, a pretensão argentina ainda agrava a dificuldade de aplicar a
medida. De acordo com o comentado na seção anterior, o interesse argentino era
aplicar uma salvaguarda apenas contra um país, se necessário. Além disso, havia
interesse em fazer o mecanismo acionável de maneira automática (a partir de um
“gatilho”). Ademais, os argentinos não parecem ter cogitado de compensar o Brasil
pelos prejuízos que as salvaguardas lhe imporiam. Os problemas jurídicos que
decorrem das pretensões argentinas são os seguintes:
• A rigor, a aplicação da salvaguarda dá ensejo à compensação por parte
do país prejudicado (o que, se não é um problema jurídico, tende a gerar
problemas políticos na prática, pois que vai de encontro aos interesses
argentinos).
• De acordo com o artigo XIX do GATT-1994 e com o entendimento do
sistema de solução de controvérsias da OMC, o país que deseja aplicar
uma salvaguarda precisa demonstrar não apenas o aumento das
importações, mas também que esse incremento das importações está
associado a uma “evolução imprevista das circunstâncias”. Se na
Argentina dos dias de hoje o aumento das importações do Brasil é algo
facilmente demonstrável, parece difícil comprovar que esse surto de
importações decorre de uma evolução imprevista das circunstâncias:
pode ser considerado previsível o aumento significativo das importações
19
num determinado setor a partir da criação de um bloco regional que
justamente elimina as tarifas nesse dado setor18.
• O surto das importações, elemento necessário para a aplicação da
salvaguardas, precisa ser um resultado do compromisso do país junto à
OMC. No caso do Mercosul, em razão da eliminação das barreiras ao
comércio interno, poderia haver alguma dificuldade em demonstrar que o
aumento das importações foi decorrente dos compromissos que o país
assumiu na OMC19.
• Caso se admita o emprego de salvaguardas contra parceiros do bloco,
ela só seria possível se fosse aplicada a todos os membros da OMC
(incluindo-se aí os parceiros do acordo regional). Um membro da união
aduaneira não é obrigado a aplicar a salvaguarda contra os parceiros do
acordo, pode excluir as importações provenientes do bloco na
caracterização do dano à sua indústria e, conseqüentemente, pode
excluí-los da incidência da medida. O que um membro de união
aduaneira não pode fazer, contudo, é aplicar uma medida contra um
único destinatário: justamente o parceiro do bloco. Esse comportamento
18 O artigo XIX do GATT prevê, entre outras questões, que a salvaguarda pode ser aplicada “[i]f, as a result of unforeseen developments and of the effect of the obligations incurred by a contracting party under this Agreement”, haja o surto de importações. Pauwelyn, por exemplo, entende que, no contexto de uma união aduaneira, a aplicação de uma salvaguarda seria algo juridicamente questionável justamente em função desse aspecto: se a liberalização do comércio de um determinado produto foi prevista no acordo que estabelece a preferência regional, como se poderia alegar que circunstâncias imprevisíveis ou imprevistas provocaram um surto repentino de importações? PAUWELYN, Joost. Op. cit., p. 109-142. 19 O argumento decorre do artigo XIX do GATT-1994, particularmente do trecho transcrito na nota acima.
20
violaria o princípio da não-seletividade e não seria respaldado pelo artigo
XXIV do GATT-199420.
• O mecanismo de “gatilho”, ademais, não encontra suporte nas regras da
OMC. Sabe-se, afinal, que as disciplinas exigem negociação prévia a
respeito da imposição da medida que venha a prejudicar as exportações
de um membro, inclusive com vistas a permitir a negociação das
compensações a que esse país tem direito, conforme se comentou. Um
mecanismo automático de imposição de salvaguardas, assim, viola as
previsões do Acordo sobre Salvaguardas.
Não surpreende, diante disso, que os argentinos não tenham interesse em
denominar de “salvaguarda” o instrumento de proteção que gostariam de criar para se
protegerem do Brasil. Além de a adoção de salvaguardas intrabloco ser politicamente
sensível, juridicamente é difícil sustentar a aplicação da medida no âmbito de uma
união aduaneira (mesmo que imperfeita). Além disso, nos moldes em que
aparentemente interessaria aos argentinos, ou seja, salvaguarda automática (sem
consultas prévias), sem compensações ao país prejudicado, e seletivas (ou seja, contra
o Brasil), a medida seria absolutamente incompatível com as regras da OMC. Uma
medida nesses termos seria a fusão de tudo o que as regras da OMC visam a evitar.
Apenas para fins de reflexão mais ampla, é curioso observar que as
discussões a respeito de medidas de salvaguarda em uniões aduaneiras, em regra,
dizem respeito à facilitação do comércio intrabloco e, assim, concentram-se em explicar
20 Registre-se, em contrário, a posição do Canadá e de Israel indicada acima.
21
de que maneira os parceiros do acordo regional podem ser excluídos das salvaguardas
que um dos membros do bloco queira aplicar contra terceiros. Os contenciosos levados
ao sistema de solução de controvérsias da OMC demonstram justamente isso:
parceiros de um bloco aplicando medidas de salvaguarda contra terceiros países e
excluindo de sua abrangência as importações provenientes de outros membros do
acordo regional21. O que se verifica no Mercosul é exatamente o interesse contrário. A
medida de salvaguarda serviria para a proteção de um membro do bloco justamente
contra o bloco – o que contraria a essência de um acordo de liberalização comercial e
demonstra o momento delicado em que o Mercosul se encontra.
Feitas as considerações gerais a respeito da possibilidade jurídica, à luz
das regras da OMC, de um membro de uma união aduaneira empregar uma
salvaguarda contra as importações de outro membro do bloco, analisa-se agora o
panorama jurídico existente no Mercosul a respeito desse assunto. Vale retomar a
reflexão feita no início da seção: a revisão das regras do Mercosul é processo mais
simples que a reforma das disciplinas da OMC. Ainda assim, a revisão das regras do
Mercosul, se necessária para contemplar os interesses de seus membros, não pode
colocá-los em situação de descumprimento das regras da OMC, que vinculam todos os
quatro sócios do bloco.
O Tratado de Assunção, acordo constitutivo do Mercosul, define em seu
artigo 1o que o mercado comum implica, entre outras questões, a livre-circulação de
bens e a eliminação de direitos alfandegários e não-tarifários intrabloco. O Anexo IV do
Tratado de Assunção prevê a chamada “cláusula de salvaguarda”, admitindo que
21 Vide Argentina – calçados, WT/DS121; Estados Unidos – glúten, WT/DS166; Estados Unidos – line pipe, WT/DS202.
22
temporariamente se empregassem essas medidas ao comércio intrabloco, respeitados
os quesitos previstos nesse Anexo22. O artigo 5o do instrumento, contudo, prevê
expressamente que em nenhum caso a aplicação de cláusulas de salvaguarda poderia
estender-se além de 31 de dezembro de 1994. Neste mesmo sentido, o Artigo 10 do
Anexo I do Tratado de Assunção prevê que “[e]m 31 de dezembro de 1994 e no âmbito
do Mercado Comum, estarão eliminadas todas as restrições não tarifárias”.
Por meio da Decisão nº 05/94 do Conselho do Mercado Comum (CMC),
definiram-se as condições do Regime de Adequação Final para a União Aduaneira.
Segundo a decisão, os membros do bloco deveriam indicar os produtos sujeitos a uma
barreira tarifária no comércio intrabloco. A essa lista de produtos se aplicaria um prazo
final de desgravação, linear e automática, com vistas à eliminação definitiva das
restrições tarifárias aos fluxos comerciais intrazona. Ainda de acordo com a decisão, os
produtos sujeitos ao Regime de Salvaguardas previsto no Tratado de Assunção
deveriam também dispor de um prazo final de desgravação, linear e automática.
Segundo a norma, esse prazo seria de quatro anos, contados a partir de 1o de janeiro
de 1995 para todos os sócios23. Em suma: as restrições que ainda existissem ao
comércio intrabloco seriam gradualmente eliminadas e as salvaguardas que ainda
houvesse ao comércio regional seriam extintas em 1o de janeiro de 1999. A Decisão
22 Prevê o artigo 1o do Anexo IV que: “Cada Estado Parte poderá aplicar, até o dia 31 de dezembro de 1994, cláusulas de salvaguarda à importação dos produtos que se beneficiem pelo Programa de Liberação Comercial estabelecido no âmbito do Tratado”. 23 Poder-se-ia argumentar que a Decisão está em conflito com o Tratado de Assunção, já que ela admite salvaguardas intrabloco até janeiro de 1999, ao passo em que o Tratado as admitia até janeiro de 1995. Prevalece, neste caso, a Decisão, com base no Protocolo de Ouro Preto, que define: “Revogam-se todas as disposições do Tratado de Assunção de 26 de março de 1991 que estiverem em conflito com os termos do presente Protocolo e com o conteúdo das Decisões aprovadas pelo Conselho do Mercado Comum durante o período de transição" (artigo 53). Esse, aliás, foi o entendimento expresso no caso Argentina – têxteis analisado pelo sistema de solução de controvérsias do Mercosul.
23
CMC nº 05/94 foi incorporada por todos os membros do Mercosul, sendo, portanto,
juridicamente vinculante24.
Para compreender o emprego das salvaguardas intrabloco, é necessária
uma breve menção ao contencioso envolvendo Brasil e Argentina, julgado em 2000
pelo sistema de solução de controvérsias do Mercosul. Neste caso conhecido como
“salvaguardas contra produtos têxteis”, o Brasil questionou uma resolução do Ministério
da Economia argentino, que impôs cotas às importações de produtos têxteis
provenientes do Brasil. Na decisão, que considerou as normas argentinas incompatíveis
com as regras do bloco, consta:
Os Artigos 1 e 5 do Anexo IV do Tratado de Assunção formulam
uma proibição geral sobre a aplicação de salvaguardas ao
comércio intrazona, que somente poderá ser excetuada por meio
de uma norma específica dentro do sistema Mercosul que legitime
a imposição de salvaguardas aos produtos têxteis.
Conseqüentemente, não existe "vácuo legal" sobre esta matéria
[como alegava a Argentina];
A interpretação das disposições sobre união aduaneira do
Mercosul deverá ser realizada, salvo por norma expressa em
contrário, em conformidade com o objeto e fim de toda a
integração econômica [que, naturalmente, não é a criação de
barreiras para o comércio intrabloco, efeito da salvaguarda
argentina];
24 Fonte: <www.mercosur.org.uy>.
24
Como regra geral, é possível a aplicação de medidas de
salvaguarda ao comércio intrazona no Mercosul, desde que exista
uma norma explícita que assim o autorize. O Tribunal não
encontra normas do Mercosul que permitam explicitamente a
aplicação de salvaguardas à importação intrazona de produtos
têxteis [acrescente-se que não há tampouco normas para outros
setores].
Ainda, conforme se depreende da decisão do tribunal, a possibilidade de
se aplicar uma salvaguarda intrabloco fica limitada aos produtos de zonas de
processamento de exportações e áreas aduaneiras especiais (como o Pólo Industrial de
Manaus e a Zona Franca da Terra do Fogo, em Ushuaia, na Argentina, por exemplo),
em razão de esta possibilidade estar expressamente prevista na Decisão CMC nº
08/9425. A título de ilustração, registre-se que o bloco adotou normas para a aplicação
de salvaguarda às importações provenientes de países não-membros do Mercosul – o
que não interessa no contexto deste estudo26.
Diante de tudo isso, conclui-se que nem as normas, tampouco o sistema
de solução de controvérsias do Mercosul autorizam a aplicação de salvaguardas
intrabloco (ainda que o julgamento tenha-se limitado a produtos têxteis)27. Os árbitros
que decidiram o contencioso dos têxteis, contudo, indicaram a possibilidade de
25 MERCOSUR/CMC/DEC Nº 8/94 - Zonas Francas, Zonas de Procesamiento de Exportaciones y Areas Aduaneras Especiales. Artículo 3o.- Podrán aplicarse salvaguardias bajo el régimen jurídico del GATT cuando las importaciones provenientes de zonas francas comerciales, de zonas francas industriales, de zonas de procesamiento de exportaciones y de áreas aduaneras especiales, impliquen un aumento imprevisto de importaciones que cause daño o amenaza de daño para el país importador. 26 MERCOSUR/CMC/DEC Nº 17/96 – Regulamento relativo à aplicação de medidas de salvaguarda às importações provenientes de países não membros do Mercado Comum do Sul (Mercosul) 27 A exceção, como observado, advém da possibilidade de se aplicar salvaguarda contra produtos de zonas francas dos países do bloco.
25
futuramente adotar-se norma que autorize a aplicação de salvaguarda no bloco. A esse
respeito, vale reiterar que há ainda divergências a respeito da possibilidade jurídica, de
acordo com as normas da OMC, de se admitirem as salvaguardas intrazona. Esse
assunto, em particular, veio à tona no caso dos têxteis, conforme consta do julgado:
A Argentina questionou a afirmação do Brasil sobre o fato de que
as medidas de salvaguarda não podem coexistir em uma união
aduaneira. A Argentina sustenta que o assunto é controvertido no
âmbito do GATT/OMC, onde o Artigo XXIV:8 do GATT 1994 define
as uniões aduaneiras afirmando que são compatíveis com as
regras multilaterais. O Artigo XXIV:8(a) define uma união
aduaneira como "a substituição de dois ou mais territórios
aduaneiros por um só território aduaneiro, de maneira que os
direitos de aduana e as demais regulamentações comerciais
restritivas sejam eliminadas com respeito à essência dos
intercâmbios comerciais entre os territórios constitutivos da união".
A Argentina enfatiza que a interpretação da expressão "a essência
dos intercâmbios" é controvertida e, portanto, pode ser
interpretada de forma quantitativa ou qualitativa. Por isso o
argumento para a aplicação de salvaguardas intrazona se refere
ao fato de que a obrigação de eliminar direitos aduaneiros e
regulamentações restritivas do comércio entre os Membros de
uma união aduaneira é aplicável à "essência do intercâmbio" entre
os Membros e não a "todo o intercâmbio" entre Membros de uma
união aduaneira.
Ainda que possa haver dúvidas sobre a possibilidade jurídica (à luz da
OMC) de acordos regionais de comércio virem a autorizar seus membros a
empregarem, contra si, salvaguardas ao comércio, o Mercosul, até o momento, optou
26
por não as admitir. Não existindo norma que autorize essas medidas no contexto do
Mercosul, não há dúvidas de que as salvaguardas são, no momento, juridicamente
inviáveis.
4. Acordos Privados de Restrição Quantitativa de Exportações
Os acordos privados de restrição quantitativa de exportações ocorrem
quando um país importador induz um outro a reduzir suas exportações, sob a ameaça
de restrições comerciais mais elevadas, quando tais exportações ameaçam alguma
indústria do país importador. Este tipo de barreira é criado geralmente a pedido do país
importador e recebe apoio do exportador para evitar maiores restrições comerciais,
como, por exemplo, uma salvaguarda. Um acordo bem sucedido de restrição
quantitativa de exportações produz todos os efeitos das cotas de importação, exceto
pelo fato de que são administradas pelo país exportador.
No âmbito do Mercosul, os acordos voluntários de restrição de
exportações surgiram como uma alternativa, diante das dificuldades políticas e jurídicas
(essas, tanto no plano multilateral quanto no regional) para a definição de salvaguardas,
e visam a dar uma resposta às constantes queixas do setor privado e do governo
argentino sobre o desequilíbrio no intercâmbio nos setores assimétricos. Por ora,
concentra-se na viabilidade jurídica dessa opção, primeiramente à luz das regras do
sistema multilateral e, em seguida, do regional. Como nota Jackson, “[o]ne of the most
troublesome and increasingly common types of safeguard action seen in recent
decades has been the export restraint imposed by an exporting country on behalf or at
27
the request of an importing country”28. Segundo o autor, “in most cases, the
arrangements have dubious legal status”29.
Desde 1947, quando do início do sistema multilateral de comércio, foram
proibidas, como regra geral, as restrições quantitativas ao comércio entre os membros
do GATT. Preocupação maior na época do GATT-1947 em relação às restrições
quantitativas eram as cotas, ainda hoje existentes30. A partir da década de 1970, sob a
aparência e denominação de Acordos Voluntários de Exportação, passou-se a temer
também uma situação similar à das cotas, com efeitos econômicos equivalentes. Ao
invés de o país importador determinar a quantidade a ser importada, o país exportador
“voluntariamente” restringiria suas exportações para outro país.
Muito se discutiu na literatura a respeito da viabilidade jurídica desses
acordos, que foram considerados como que “na área cinzenta” entre a legalidade e a
ilegalidade. O Acordo sobre Salvaguardas da OMC, em 1994, veio a proibir
expressamente esta prática, por meio do seu artigo 11, que trata de “proibição e
eliminação de certas medidas”31.
Furthermore, a Member shall not seek, take or maintain any
voluntary export restraints, orderly marketing arrangements or any
other similar measures on the export or the import side32. These
28 JACKSON, John. The World Trading System: law and policy of International Economic Relations. 2 ed. Cambridge: MIT Press, 1997, p. 203. 29 Idem, p. 204. 30 Na prática, o artigo XI é geralmente descrito como a proibição ao uso de cotas, mas o dispositivo vai muito além disso, vedando restrições quantitativas em sentido amplo. 31 Acordo sobre Salvaguardas, artigo 11,1, b. 32 O próprio Acordo, neste ponto, contém duas notas de rodapé: 3. An import quota applied as a safeguard measure in conformity with the relevant provisions of GATT 1994 and this Agreement may, by mutual agreement, be administered by the exporting Member. 4. Examples of similar measures include export moderation, export-price or import-price monitoring systems, export or import surveillance,
28
include actions taken by a single Member as well as actions under
agreements, arrangements and understandings entered into by
two or more Members. Any such measure in effect on the date of
entry into force of the WTO Agreement shall be brought into
conformity with this Agreement or phased out in accordance with
paragraph 2.
É importante ter presente que o Acordo proíbe que os países membros da
OMC adotem acordos que limitem as exportações. Nada nas disciplinas da
Organização, contudo, proíbe que representantes da iniciativa privada desses países
busquem entendimentos desse tipo. Evidentemente que, na prática, é difícil saber onde
termina a ação privada, onde inicia a do Estado, esse, sim, com compromissos perante
a OMC. O que importa deixar claro neste momento é que, a rigor, as disciplinas da
Organização não incidem sobre acordos de caráter privado. Não faria sentido, aliás,
que um membro do regime pudesse ser condenado pelo sistema de solução de
controvérsias porque as empresas instaladas em seu território não quiseram vender
para um dado país. De acordo com a análise de Jackson, “the sweeping language
would seem to embrace virtually any export control maintained by government authority,
but not those caused by private-firm action”, afinal, como o autor mesmo reconhece
“[t]he GATT does not apply to private companies”33.
Em relação às regras do Mercosul, cabem dois comentários. Não há nada
que especificamente proíba acordos voluntários de exportação. Há, contudo, a
obrigação geral de não definir obstáculos tarifários ou não-tarifários à livre-circulação de
compulsory import cartels and discretionary export or import licensing schemes, any of which afford protection. 33 Idem, p. 205.
29
mercadorias intrabloco. Isso, de fato, parece o bastante para que, também no âmbito do
Mercosul, considere-se vedado um acordo entre dois países do bloco para limitar os
fluxos comerciais. Não obstante, a ressalva feita em relação às normas da OMC é
igualmente válida no contexto do Mercosul. Os Estados assumem o compromisso com
o respeito às normas, mas não podem determinar o comportamento dos atores
privados. Acordo entre setores privados dos dois países, nesse sentido, não encontraria
obstáculos jurídicos seja na OMC, seja no Mercosul.
Desta forma, para regular as negociações entre os setores privados de
Brasil e Argentina foi institucionalizada, em agosto de 2003, a Comissão Bilateral de
Monitoramento de Comércio. A Comissão visa a abrir um canal de diálogo entre os
empresários dos dois países para que possam eventualmente negociar restrições
quantitativas ao comércio bilateral dos setores produtivos que apresentem assimetrias.
Desde 2003, durante as reuniões desta Comissão, foram negociados acordos de
restrição de exportações para, entre outros, eletrodomésticos da linha branca, produtos
têxteis, calçados e vinho. Seguem abaixo os principais aspectos dos acordos privados
de restrição voluntária às exportações, negociados entre o empresariado brasileiro e
argentino, desde a criação da Comissão.
4.1 Setor Têxtil
Cada um dos acordos do setor têxtil, negociados no âmbito da Comissão
de Monitoramento, teve suas particularidades. No caso do denim (tecido para a
confecção de jeans), foi fixada uma cota 15,8 milhões de metros lineares para as
importações provenientes do Brasil, sendo que em 2003 as importações foram de
30
quase 20 milhões. No caso dos fios acrílicos, foi estabelecida uma restrição em termos
do preço mínimo (US$ 3,76 / kg), que começou a vigorar a partir de abril de 2004. No
que tange aos tecidos de algodão com fios coloridos, foi acordada uma cota de 980
toneladas/ano, quando em 2003 as importações oriundas do Brasil alcançaram 1380
toneladas. Por último, no caso dos tapetes foram estabelecidos preços mínimos em
função dos diferentes tipos de produtos.
4.2 Linha Branca
Em relação aos eletrodomésticos de linha branca também houve acordo
entre os setores privados para restringir as exportações brasileiras para a Argentina. As
vendas de fogões brasileiros foram limitadas a 95 mil unidades, cota válida até o final
de 2005, quando o acordo será renegociado. Para refrigeradores, em 2005, foi
negociada uma cota de 316.250 unidades, o que representa 50% do mercado
argentino. Este volume foi distribuído em 26.354 unidades por mês, com uma
flexibilidade de variação quantitativa de até 10% destes montantes mensais. O acordo
determina que as importações de terceiras origens não podem exceder 18.975
unidades anuais. Para as máquinas de lavar roupas foi negociada cota de 180 mil
unidades anuais com licença não-automática de importações, sendo dividida da
seguinte forma: 58% do total no primeiro semestre do ano e 42% no último.
4.3 Setor Calçadista
31
Os fabricantes argentinos e brasileiros de calçados fecharam um acordo que
limita as exportações brasileiras para o país vizinho aos 15,4 milhões de pares
embarcados em 2004. O acerto tem como condição que a produção brasileira não seja
substituída por produtos de terceiros fornecedores, especialmente da China, e também
prevê que a Argentina poderá usar licenças não-automáticas na importação de
calçados.
A limitação dos embarques brasileiros para a Argentina foi aceita ante o
compromisso das autoridades argentinas de monitorar as importações de terceiros
mercados. Caso elas cresçam, o Brasil também ganharia direito a uma cota maior.
A medida, que burocratiza as importações, permite que o governo controle o
fluxo de produtos brasileiros que ingressa no país e ponha travas toda vez que
considerar que há um aumento grande de embarques.
4.5 Setor Vinícola
Os produtores brasileiros vinham se queixando de que os vinhos
argentinos de baixa qualidade estavam chegando ao Brasil por um preço muito baixo,
prejudicando a indústria nacional. Inicialmente, o Brasil propôs um preço mínimo de
US$ 15 por caixa, enquanto os argentinos falavam em US$ 6. Os dois lados acabaram
concordando que o vinho argentino deve entrar no país com um preço mínimo de US$
8 dólares por caixa com 12 garrafas de 750 ml. cada. Este foi o primeiro acordo de um
setor em que a assimetria no comércio foi reclamada pelo Brasil.
32
5. Considerações Finais
O processo de construção de uma união aduaneira implica vantagens e
desvantagens aos que optam por participar do empreendimento integrativo. Setores
economicamente menos competitivos inevitavelmente sentirão de forma mais
acentuada os impactos da abertura comercial. Quando se decide pela conformação de
um acordo regional nesses moldes, avaliam-se os custos decorrentes do processo, que
são inevitáveis, e, ainda assim, por uma opção política, julga-se conveniente prosseguir
caso os benefícios se sobreponham às desvantagens. Decididos pelo engajamento em
arranjos cooperativos dessa natureza, os Estados estabelecem as regras do jogo e
aderem a elas, mesmo diante dos prejuízos pontuais que necessariamente advêm do
processo.
Por várias razões, as regras do jogo definidas no âmbito do Mercosul
parecem excessivamente sujeitas às vicissitudes políticas de seus sócios maiores.
Entre os motivos para isso está justamente o fato de que os rumos e o ritmo do
processo integrativo são, a bem da verdade, definidos por apenas dois parceiros. O
Mercosul, com efeito, ressente-se de maior grau de institucionalidade, de maior
estabilidade jurídica, de segurança e previsibilidade. Excessivamente preso às
circunstâncias políticas dos dois sócios, o Mercosul depende, a todo momento, da
convergência de interesses entre seus membros para avançar. E, o que é mais sensível
para o sucesso da empreitada, o interesse de um dos membros é capaz de determinar
não apenas interrupções, mas também retrocessos no avançar rumo à consolidação de
um mercado comum.
33
A discussão sobre a possibilidade de se empregar salvaguardas ao
comércio intra-Mercosul se opera nesse contexto. Como se viu, a rigor, as salvaguardas
ao comércio intrabloco deveriam ser eliminadas até janeiro de 1995. Não obstante, em
1994, decidiu-se por estender-lhes a vigência até 1o janeiro de 1999. Mesmo após ter
expirado o prazo dilatado, medidas dessa natureza foram adotadas no comércio intra-
zona. A salvaguarda argentina contra produtos têxteis importados de países do
Mercosul motivou um contencioso no sistema de solução de controvérsias do bloco,
que esclareceu (se é que havia dúvidas) não haver fundamento jurídico para a
aplicação das medidas a partir de 1999.
Diante da impossibilidade, à luz das regras acordadas pelos próprios
membros do Mercosul, de se restringir o comércio intrazona, a Argentina faz pressão
para que justamente se alterem essas regras. E, naturalmente, as regras seriam
alteradas não para acelerar o processo rumo aos objetivos definidos, mas para se
flexibilizá-lo, atendendo às necessidades políticas e econômicas de um dos países
capazes de, como observado, orientar a ação do bloco.
De fato, o momento por que passa a Argentina tem sua sensibilidade
econômica e política. Apesar de já ter passado pela fase mais aguda da crise
econômica que afetou o país principalmente entre 2001 e 2002, a Argentina dos dias de
hoje busca promover políticas que estimulem a recuperação do setor produtivo do país
arrasado pelas medidas econômicas dos anos 90. Para isso, é fundamental, na visão
argentina, ter um controle maior sobre o comércio com o Brasil e, se possível,
institucionalizar algum tipo de mecanismo de limitação das relações comerciais entre os
principais parceiros do bloco do Cone Sul.
34
Se desde 1999, quando da desvalorização do real, a Argentina já cogitava
implementar medidas para restringir os fluxos comerciais intrazona, nos dias de hoje,
em que a recuperação da economia argentina é prioridade absoluta para o governo do
país, o discurso pró-salvaguardas ganha novo vigor e, mais, adquire tom por vezes
ameaçador. O governo argentino, especialmente sensível às demandas dos setores
empresariais, faz repercutir nas suas relações com o Brasil a pressão que sofre
internamente.
A indústria argentina, de fato, tem encontrado no governo local importante
interlocutor na busca de restabelecer as condições econômicas para o crescimento do
país. A capacidade do setor privado argentino em se articular e pressionar o governo é
grande, não só pela necessidade de recuperação do setor, mas também pela
sensibilidade do governo aos problemas domésticos. A julgar pela avaliação da
imprensa local, o governo argentino tem colhido bons frutos com esta postura, à medida
que consiga influenciar o processo de integração regional para que seja flexibilizado,
acomodando os interesses convergentes do setor privado e do Estado.
O Mercosul, sempre sujeito às circunstâncias políticas e econômicas de
seus parceiros principais, precisou se adaptar ao novo momento e, assim, acomodar,
da forma menos prejudicial à evolução do bloco, as novas necessidades de seus
parceiros. A busca de uma solução conciliatória tomou corpo na Comissão Bilateral de
Monitoramento de Comércio, por meio da qual os governos abrem ao setor privado dos
países a possibilidade de chegarem ajustes que atenuem as assimetrias existentes em
diversos setores da economia de Brasil e Argentina.
Como se viu ao longo deste artigo, acordos entre os governos para
restringir exportações são incompatíveis com as regras da OMC. Também se observou
35
que, no momento, não há fundamento legal para a adoção de salvaguardas no
comércio regional. Ainda que muitos sustentem ser viável, à luz das regras da OMC, a
adoção de um mecanismo de salvaguardas intra-Mercosul, vale lembrar que a
possibilidade jurídica não se traduz necessariamente em conveniência política. Assumir
compromisso dessa ordem significa confirmar o retrocesso do Mercosul. Se, diante das
circunstâncias atuais, entende-se adequada a adoção de algum instrumento que
permita proteção temporária às indústrias argentinas, perenizar mecanismo para esse
fim implicaria institucionalizar o recuo do Mercosul.
Neste contexto, a opção pela criação da Comissão de Monitoramento de
Comércio parece solução politicamente conveniente, economicamente adequada e
juridicamente viável para atender às circunstâncias temporárias por que passa a
Argentina. Como mecanismo que permite ajustes ad hoc, evita institucionalizar a
involução do bloco. Ao possibilitar acordo entre particulares, afasta problemas jurídicos,
seja no âmbito do Mercosul, seja da OMC. E, ao conciliar diferentes interesses
econômicos, permite o avançar – mesmo que lento – do bloco, ao diluir conflitos
comerciais em potencial.
Há, de fato, uma defasagem entre o processo de integração hoje possível
e aquele eventualmente desejado por seus parceiros (ao menos no plano do discurso).
Os crescentes desentendimentos entre os dois principais sócios do Mercosul ameaçam
de forma consistente o cumprimento das etapas programadas para ampliar a integração
comercial no bloco. Não há dúvida de que o Brasil perde muito, pois, como a economia
mais importante da região, precisa consolidar as trocas comerciais com seus vizinhos
da forma mais estável e duradoura possível.
36
O histórico das experiências de integração na América do Sul sugere
haver o risco de se inviabilizar a iniciativa da integração regional, à medida que se lhe
imprima um ritmo incompatível com a realidade dos países que dela façam parte.
Parece, enfim, sensato saber dotar o processo de integração regional da flexibilidade
necessária para que ele não se torne impraticável.