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     Dedico

     Aos meus filhos Júlia e Pedro, que partilham comigoa esperança no presente do futuro.

     Aos amigos Ivete e Otávio ( in memoriam ), cúmpli-ces nas aventuras do conhecimento.

     Ao Wilson, meu parceiro no amor e nos sonhos.

     Às minhas avós, Violeta e Maria, que com ternurame ensinaram a apreciar as telenovelas.

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    ©E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2004.Todos os direitos reservados à E-papers Serviços EditoriaisLtda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra,ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização

    dos editores.Impresso no Brasil.

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    Souza, Maria Carmem Jacob de.Telenovela e Representação Social – Benedito Ruy Barbosa e aRepresentação do Popular na Telenovela Renascer / Maria Carmem Jacobde Souza.Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2004.290 p.ISBN: 85-87922-90-41. Telenovela 2. Telenovela – Construção Social 3. Telenovela –Representação do Popular 4. Telenovela – RenascerI. Título

    CDD 309.1

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    ste trabalho traz as marcas de ter sido originalmente umatese de doutoramento. Foi apresentado no Programa de Pós-

    graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Ca-tólica de São Paulo, em abril de 1999. Algumas pessoas foram muito caras no decorrer dos anos

    dedicados ao doutorado. Eu gostaria de destacar que com elas(re)descobri os instigantes caminhos do processo de constru-ção do conhecimento. Marilou Manzini-Covre, a orientadoraque proporcionou o apreço intelectual pela reflexão quesedimenta conquistas, sem contudo desviar o olhar dos desa-

    fios postos pelos projetos voltados para a emancipação sociale subjetiva. Ivete Ribeiro, a primeira e constante referênciaprofissional, companheira da reflexividade acadêmica e pes-soal. Wilson Gomes, que mostrou ser possível aliar o afeto pro-fundo às curiosas aventuras que a busca do conhecimentoincita.

    Há também outras pessoas com quem tive a chance de

    conviver e que participaram de muitos modos na maturaçãodas reflexões presentes neste livro. Menciono com particularapreço os diletos interlocutores da Compós – Associação Na-cional de Programas de Pó-graduação em Comunicação, Ro-gério Luz (na época, professor da Escola de Comunicação daUFRJ) e Silvia Borelli, que encanta pela sua generosidade in-telectual. O meu agradecimento especial ao escritor BeneditoRuy Barbosa pelos canais que abriu entre suas histórias e as

    minhas reflexões. O Centro de Documentação da TV Globo –Cedoc – foi também um apoio indispensável no processo decoleta de dados.

     Agradeço as condições oferecidas pelas instituições quepermitiram a realização da pesquisa: O apoio financeiro da

     Agradecimentos

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    Capes e a oportunidade proporcionada pela Escola de ServiçoSocial da UFRJ. Mas, sobretudo, agradeço, àquelas pessoasque me acompanham desde sempre, deixando suas marcas

    de afeto, coragem e esperança: meus pais, Lindolpho e MariaEsther.

    Salvador, novembro de 2002

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    Índice

    9 Prefácio 13 Introdução 25 Construção Social da Representação do Popular nas Telenovelas

    33 Como Pensar a Representação do Popular nas Telenovelas Brasileiras?36 Empresários Morais38 Peritos Realizadores de Telenovelas48 Profissionais da Produção Simbólica 54 Campo da Telenovela: uma proposta de análise

    64 Representações do Popular nas Telenovelas: Principais Hipóteses de Trabalho75 Representação do Popular nas Telenovelas79 Melodrama87 Melodrama e o Romance-folhetim 102 Romance-folhetim e Telenovela

     111 Campo da Telenovela 116 O Estado na Formação e Regulação do Campo

     129 O Mercado na Formação e Regulação do Campo 143 Os Telespectadores na Formação e Regulação do Campo 155 Campo Artístico e as “Regras da Arte” na História de Produção das Telenovelas

    Brasileiras 171 Emissoras e Realizadores Disputam no Campo a Representação Realista do

    Popular 

     180 O Realismo nas Telenovelas e a Consagração de Benedito Ruy Barbosa 197 Benedito Ruy Barbosa, Empresário Moral de Questões Sociais Representa o Popular  203 Personagens Populares de Benedito Ruy Barbosa 212 O Companheiro de Jornada, Luiz Fernando Carvalho, e a Representação do

    Popular em Renascer 

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     227 O Popular em Cena na Telenovela Renascer  234 Renascer Coloca em Primeiro Plano o Poder, a Família e o Trabalho

     238 Primeiro Capítulo 245 Trabalho e Cultura Inundam Passagens 247 O Amor, a Ascensão Social e a Tragédia da Modernidade 251 Teca, as Crianças de Rua e a Família 257 Tião Galinha, o Trabalho e a Pobreza

     265 Considerações Finais 273 Bibliografia

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    Prefácio

    livro de Maria Carmem Jacob de Souza, Telenovela e repre- sentação do social: Benedito Ruy Barbosa e a representação

    do popular na telenovela Renascer, constitui-se como significa-tiva contribuição para o campo da reflexão sobre teledrama-turgia no Brasil. A telenovela apresenta-se, aqui, como objetosingular de análise e interpretação que permite conexões maisamplas com o debate sobre cultura contemporânea: culturade características híbridas, altamente complexa, que se mol-da nas fronteiras entre matrizes populares, tradições letradase produção massiva. Para além de uma leitura densa sobre a

    trajetória de Benedito Ruy Barbosa – autor consagrado nocampo da teleficção no Brasil – e sobre a narrativa da teleno-

     vela Renascer (Direção: Luiz Fernando de Carvalho, Rede Glo-bo de Televisão, 1993), esse trabalho mergulha fundo em ques-tões prioritárias para a compreensão da cultura brasileira e,essencialmente, sobre o grande desafio que é o entendimentosobre o popular no debate cultural da atualidade.

    O popular tem sido usualmente concebido em torno dealguns eixos fundamentais: como dimensão folclorizada;como espaço de resistência ao erudito e ao massivo; e comosobrevivência a uma composição que articula fragmentos dacultura dominante e cacos esparsos das culturas tradicionais.Pode assumir, ainda, um tom romantizado, em que povo epobreza se tornam protagonistas e em que mito e tragédia semesclam às clássicas matrizes do folhetim, dos contos de fada

    e dos demais formatos inerentes a cultura popular: “a pobre-za que traz em si a beleza, a sedução da força e da coragem, oespírito do trabalho e do auto-sustento honrado e digno e quenão se submete aos poderosos. Uma trajetória que não só ti-nha como mito de origem a tragédia do trabalhador rural,

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    mas que também preconizava o mito da Cinderela que encon-trava o seu príncipe personificado num senhor de terras, numlatifundiário produtivo, o rei do gado” (p.11).

    Disso resulta a complicada necessidade de territorializaros objetos de análise e de isolar o popular em espaços geográ-ficos particulares – como a periferia, por exemplo –, em umaclasse social específica – a subalterna – ou mesmo na consci-ência desse ou daquele grupo, como se esta fosse a única al-ternativa de lhe permitir a existência. Vale ressaltar que, auto-res como A. Gramsci, G. Bollème, J. Martín-Barbero e N. G.Canclini, entre outros, têm tematizado criticamente esta com-preensão. Para Gramsci, por exemplo, concebe-se como po-pular tudo aquilo que aciona uma massa significativa de sen-timentos e que revela certa concepção de mundo, hegemonica-mente construída. Nesta perspectiva, o popular não se afirmaapenas pelas origens, tradições, raízes, mas por uma posição– construída de forma complexa e conflituosa – frente aohegemônico; não pode, portanto, ser encarado como um todo

    homogêneo que se opõe, monoliticamente, a uma outra tota-lidade, como o erudito ou mesmo o massivo.É nessa fronteira e diante dessa perspectiva, de pensar a

    cultura como campo de lutas, que este trabalho se insere. A confirmação desse princípio pode ser detectada quando, porexemplo, Carmem nos mostra, de forma singular, que uma daslutas travadas por diferentes realizadores, dentro do campo deprodução de telenovelas, passa pela apropriação que fazem

    dessa ou daquela forma de representação do popular (e aqui,“representação” torna-se uma noção chave!), como se isso lhespermitisse uma maior autonomia e, conseqüentemente, maiorlegitimidade e distinção dentro do campo. Afinal de contas, tra-zer para o contexto da indústria cultural e da cultura de mas-sas, as tradições populares, significa estar em consonância comas fortes tradições que informaram o debate sobre cultura bra-

    sileira e formaram muitos dos intelectuais (realizadores, agen-tes culturais e, principalmente, autores e diretores) que migra-ram para o campo televisivo no decorrer dos anos 60.

    Os referenciais teóricos que conectam a análise sobre opopular com os demais objetivos que compõem o trabalho são

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    claros e o diálogo privilegia os conceitos de campo, trajetóriados agentes culturais (concebidos como “realizadores” e, nodestaque, a figura dos escritores) e habitus que constam da re-

    flexão de Bourdieu. Entretanto, com acuidade e sentido crítico,Carmem identifica algumas limitações inerentes aos já citadosconceitos de campo e habitus; propõe, então, a ampliação doquadro de referências teóricas dialogando com autores comoGiddens, Canclini e Featherstone; e argumenta, ainda, que optapor isso, diante da “necessidade de incorporar proposições so-bre aspectos não contemplados, ou até mesmo limitados, dascontribuições de Bourdieu: a questão da modernidade, o signi-ficado social e subjetivo da telenovela, o processo coletivo derealização de obras culturais massivas, o conceito de realiza-dor de telenovela e a controvertida noção de habitus” (p.15). Aopromover este movimento, Carmem se afasta do risco de umasociologia preocupada apenas com a reprodução dos campos ecoloca em cena, sujeitos e subjetividades intervindo no proces-so de produção industrializada da cultura.

     Além disso, outra escolha neste trabalho, chama a aten-ção e merece destaque: a assunção, por parte da autora, deuma postura eminentemente epistemológica. A preocupaçãoem se apropriar cuidadosamente de uma perspectiva transdici-plinar que se explicita tanto no diálogo com Morin – e com acapacidade de “‘distinguir, separar, disjuntar’, sem, todavia,reduzir, simplificar e exacerbar fronteiras disciplinares” – quan-to com Canclini e sua “proposta de criação de um nomadismo

    científico capaz de transitar pelas múltiplas interfaces conti-das em um mesmo objeto” (p. 14).

    Nesse sentido, o trabalho de Carmem se insere no que háde mais atualizado no debate sobre telenovelas. E, mais doque isso: é um trabalho que ousa tocar – com intuição, per-cepção e delicadeza –, em inúmeras feridas que ainda hojedilaceram autores, diretores e demais realizadores que trafe-

    gam pelos tortuosos, e por vezes perversos, caminhos da pro-dução cultural brasileira contemporânea.

    Silvia Helena Simões Borelli Abril de 2004.

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    D urante vários meses do ano de 1996, os telespectadores dastelenovelas das 20h30min da TV Globo participaram da his-tória da vida da trabalhadora rural Luana Berdinazzi (Patrí-cia Pilar). Uma personagem que encarnava a pobreza, carre-gada nos traços da solidão, dos desafetos e brigas familiares,da desonra herdada por meio do pai e do tio que roubaram aprópria mãe, sua avó. Mas também da pobreza que traz em sia beleza, a sedução da força e da coragem, o espírito do traba-lho e do auto-sustento honrado e digno e que não se submeteaos poderosos. Uma trajetória que não só tinha como mito de

    origem a tragédia do trabalhador rural, mas que também pre-conizava o mito da Cinderela que encontrava o seu príncipepersonificado num senhor de terras, num latifundiário pro-dutivo, o rei do gado. Encontro mediado pelo Movimento dosSem-Terra e pela origem familiar desconhecida que lhe reser-

     vava ao mesmo tempo um passado escuso e um presente/fu-turo de riqueza e conforto.

    Meses depois, já em 1997, uma outra trabalhadora ruralparticipante do Movimento dos Sem-Terra é transformada empersonagem – Débora Rodrigues. Ela foi convidada para po-sar nua na Playboy. Convite que detona controvérsias no Mo-

     vimento, no Partido dos Trabalhadores, tornando-se ponto depauta da agenda de grandes jornais, programas de televisão erevistas. A Folha de S. Paulo, nos meses de julho e agosto desseano, em várias ocasiões, transpõe a história da sem-terra para

    a primeira página. No dia 20 de agosto, por exemplo, tem-seuma foto (21 x 14cm) da mais nova ‘coelhinha’ da Playboy.Para descrever a foto lê-se a seguinte legenda: “No salão. A sem-terra Débora Rodrigues tinge o cabelo em salão de SãoPaulo, preparando-se para posar nua em sessão de fotos

    Introdução

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    marcada para hoje e amanhã na Praia de Camburi, litoralpaulista”. Na matéria ela explica: “Estou dando uma recau-chutada na lataria”. Logo abaixo, tem-se o seguinte destaque:

    “Rainha1 ameaça invadir bancos no Pontal”. Mais adiante, napágina 1-10, Rainha e Débora dividem o espaço, ele ao telefo-ne, ela no salão, mas dessa vez em foto de corpo inteiro (ves-tida, é claro!), mostrando a “funilaria e pintura” da sem-ter-ra. A matéria termina com uma fala da Débora que dizia:“Uma carreira artística pode acontecer ou não. Mas, se nãoarrumar serviço por aqui, volto para o acampamento”.

    Tem-se a impressão de, novamente, na posição de espec-tadores, observar-se uma nova versão de Luana. Ambas fo-ram criadas a partir de um dos movimentos sociais mais polê-micos dos últimos anos na vida política brasileira. Fenômenosugestivo que ilustra uma das muitas representações dos mo-

     vimentos sociais elaborada pelos media na sociedade brasilei-ra contemporânea. Ilustra, ainda, a temática central deste li-

     vro, qual seja: as telenovelas da maior emissora da televisão

    brasileira e as representações sociais de atos e situações típi-cas das classes populares numa sociedade marcada por inten-sas desigualdades sociais matizadas por um complexo proces-so de modernização.

    Benedito Ruy Barbosa, o escritor responsável pela teleno- vela que dramatizava o Movimento dos Sem-Terra na TV Glo-bo, no seu horário de maior audiência e importância econô-mica, escrevera anos antes na mesma emissora e horário a

    premiada Renascer (1993, direção geral de Luiz Fernando Car- valho). Novamente a questão agrária é um dos temas centraisda história. Não se enfocou um movimento organizado, masa falta dele, diante da estrutura agrária de um país que nega-

     va a terra para os homens que nela desejavam trabalhar. Opersonagem emblemático dessa tragédia foi Tião Galinha(Osmar Prado), um dos poucos personagens pobres de tele-

    novela que não ascendeu socialmente, morrendo pelas suaspróprias mãos em defesa da dignidade expropriada pelo se-nhor de terras e pela polícia.

    1 José Rainha era, na época da telenovela estudada, um dos principais líderes doMovimento dos Sem-Terra (MST) no Estado de São Paulo.

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     Introdução 15

    Benedito Ruy Barbosa não foi o único a tematizar as situ-ações e personagens das classes populares de maneira críticae, em princípio, incompatível numa emissora comprometida

    com o mercado e as forças conservadoras. Ao ler os jornais dagrande imprensa2 e os boletins de programação (1980/90) dastelenovelas das ’20:00h’ da TV Globo3, e acompanhar a maio-ria das telenovelas desse período4, foi possível desvendar umaemissora que construía o popular5 dentro de um largo espec-tro que contemplava autores e temáticas caras aos grupos deesquerda da época. Pôde-se assistir desde (1) a denúncia dos

     jogos de interesses políticos e econômicos mediante o estigmada prostituição presente na trajetória de uma protagonista deorigem camponesa que, depois de rechaçada como vadia, éaclamada quando retorna rica à sua cidade natal (Tieta, 1989,

     Aguinaldo Silva e Paulo Ubiratan), (2) a crítica política aoscoronéis do poder ( Roque santeiro, 1985, Dias Gomes,

     Aguinaldo Silva e Paulo Ubiratan) até (3) as polêmicas emtorno dos direitos dos favelados sem-teto ( Pátria minha, 1994,

    Gilberto Braga e Dênis Carvalho), dos direitos à organizaçãosindical dos operários (Sétimo sentido, 1982, Janete Clair eRoberto Talma) e dos direitos sociais dos meninos de rua (A

     próxima vítima, 1994, Sílvio de Abreu e Jorge Fernando).

    2 O material considerado foi:  Jornal do Brasil, O Globo  e a  Folha de S. Paulo;  asrevistas Veja  e  Isto é . Os jornais mais antigos foram examinados graças ao arquivopessoal do professor João Luiz Tillburg (PUC/RJ).

    3 Os boletins são produzidos pela Divisão de Divulgação e Imprensa da emissora. Apresentam uma síntese da trama e uma caracterização dos principais personagens,além de citar a equipe técnica da telenovela. Este material é distribuído para aimprensa e no interior da própria empresa, sendo muito usado pelo setor responsávelpela conquista dos patrocinadores, ou seja, do mercado publicitário.

    4 Para isso tem sido muito útil as reapresentações em “Vale a Pena Ver de Novo” (TV Globo, 14:00h, de segunda a sexta-feira).

    5 O termo “o popular” estará sendo usado como fórmula sintética para designarfenômenos, circunstâncias, fatos, personagens que se refiram às classes populares na

    sociedade brasileira. Importante esclarecer que se tem conhecimento das imprecisõese limites desse termo. Por isso, é oportuno frisar que o termo popular não será usadopara expressar categorias e pares de oposição usualmente a ele associados – subalter-no/hegemônico, tradicional/moderno, culto/popular. Isto porque, lembrando Canclini,não se pode perder de vista “as novas modalidades de organização da cultura, dehibridização das tradições de classes, etnias e nações” (Canclini, 1989, p. 263).

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    Essa primeira aproximação das telenovelas das últimasdécadas da TV Globo, no horário assinalado6, indicava umapresença freqüente do popular no interior de recortes e posi-

    ções estéticas e políticas diferentes. A observação desses as-pectos e das suas possíveis relações com as formas de drama-tizar o popular em outras instâncias, como a imprensa, levouà formulação de duas questões norteadoras da investigaçãoque originou esta publicação. A primeira pergunta, de cará-ter mais geral, diz respeito ao fenômeno da representação so-cial: Como pensar a representação social do popular na soci-edade brasileira contemporânea? A segunda vincula o fenô-meno da representação social com a dramatização do popu-lar nas telenovelas. Como relacionar as representações soci-ais do popular com as maneiras de se encenar o popular nastelenovelas?

    Para respondê-las seria necessário, no mínimo, articulartrês disciplinas. Uma que contemplasse o fenômeno da repre-sentação social, outra que se dedicasse à análise dos discursos

    audiovisuais, além de uma que vinculasse a primeira à segun-da. A necessidade de pensá-las a partir de mais de uma áreadisciplinar vai ao encontro da já observada multiplicidade deáreas do saber que exploram a complexidade do fenômeno darepresentação em suas inter-relações com os media. Segue-seaqui as trilhas de Canclini que defende as “ciências sociais nô-mades”, isto é, a habilidade de circular pelas escadas que co-municam as disciplinas que se ocupam das muitas dimensões e

    interfaces que os seus objetos possuem (Canclini, 1989, p. 15). As dificuldades postas pela análise do fenômeno da repre-

    sentação social do popular na telenovela demandam, pois, acapacidade de “distinguir, separar, opor e disjuntar” domínioscientíficos, sem, todavia, reduzir, simplificar e exacerbar fron-teiras disciplinares (Morin, 1994, p. 105). Sabendo-se das de-licadezas que tal predisposição analítica supõe, busca-se de-

    6 A forte presença do popular nesse horário não supõe sua ausência nos demais. Valelembrar, por exemplo, telenovelas como Que rei sou eu? (1989), de Cassiano GabusMendes e Deus nos acuda (1993), de Sílvio de Abreu, no horário das 19:00h; e Barrigade aluguel (1991), de Glória Perez e Sinhá moça (1986), de Benedito Ruy Barbosa, nohorário das 18:00h.

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     velas. Um campo de relações de força, poder e de disputasentre os agentes que dele fazem parte. Nessa medida, as re-presentações do popular nas telenovelas expressam escolhas

    de realizadores relacionadas às suas trajetórias neste campo.O exame da história dos principais agentes e instituições

    do espaço social de produção das telenovelas no Brasil permi-tiu formular os critérios de classificação de realizadores e obrasque serviram de parâmetro para a seleção da emissora, tele-novela e realizadores investigados. Optou-se pelos consagra-dos por acreditar que eles permitem um delineamento maispreciso da história dos processos de construção dos objetos dedisputa definidores do campo da telenovela (Almeida, 1979).

    Decidiu-se pela maior e mais importante emissora produ-tora de telenovela do país das últimas duas décadas, a TV Glo-bo. No conjunto das telenovelas exibidas pela emissora, optou-se pelo “horário das 20:00h”, aquele que associava a maior ren-tabilidade e audiência com temáticas que enfatizavam ques-tões sociais e políticas mais contemporâneas. O marco tempo-

    ral selecionado foi o mais recente possível, pois as telenovelasbrasileiras têm sido formuladas ao longo da sua exibição, guar-dando uma relação muito própria com o que estaria aconte-cendo ‘no mundo real’. A contemporaneidade facilita a obser-

     vação dessa relação. Além disso, o difícil acesso ao materialaudiovisual para análise induziu, também, à seleção de umatelenovela que pudesse ser registrada pela pesquisadora.

    Para escolher a obra e os realizadores foi preciso, num

    primeiro momento, observar o conjunto das telenovelas dessehorário, desde 1980, para identificar a temática, a história dosprotagonistas e a equipe de profissionais, particularmente osescritores e diretores7. Ficou evidente uma alternância de te-

    7 Os Boletins de programação das 25 telenovelas das 20:00h (1980 a 1994) foramexaminados, constatando algumas regularidades importantes na equipe de produto-res culturais da emissora. A direção geral da maioria das telenovelas foi realizada porRoberto Talma, Paulo Ubiratan e Dênis Carvalho, os escritores mais freqüentes foram

    Janete Clair, Lauro César Muniz (os mais assíduos dos anos 70), Gilberto Braga e Aguinaldo Silva. Não se pode esquecer que tais regularidades foram alternadas comum conjunto de ‘novidades’ que inseriam novos diretores, escritores de outros horários,dentre eles Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho. Na cenografia tem-seRaul Travassos e Mário Monteiro. Na produção de arte destaca-se Ana Maria Maga-lhães e Cristina Médicis e no figurino, Helena Gastal e Marília Carneiro.

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     Introdução 19

    mas e realizadores, principalmente escritores e diretores ge-rais, que expressavam as posições no campo e os diferentestipos de telenovelas que têm sido formuladas para o horário8.

    Um outro procedimento foi necessário para que se pudesseeleger a telenovela e o realizador a ser estudado. Sabe-se que atelenovela é fruto de um trabalho coletivo que remete a tantasáreas de experiência quantos tipos de profissionais ela absorverem sua fabricação. Isso quer dizer, por exemplo, que escritoresremetem à história da produção jornalística e literária, enquantoos diretores à esfera da produção audiovisual do cinema, vídeoe televisão. Para garantir um recorte mais preciso e prudentedo realizador e das formas de expressão a que ele se filia, deci-diu-se pelo de maior peso autoral na telenovela, o escritor. Opeso autoral foi considerado tendo em vista a posturahegemônica no campo diante da autoria das telenovelas.

    De posse destes critérios de seleção, chamou a atenção odestaque obtido por Benedito Ruy Barbosa, que apesar de re-conhecido no campo, surgiu em 1993, pela primeira vez, no

    horário mais cobiçado pelos realizadores, depois de 27 anosde experiência com telenovela. Além disso, ele estava acom-panhado por um diretor que não só inaugurava o horário e aposição de diretor geral, como também estava sendo conside-rado representante de um novo modo de fazer telenovela. Umoutro aspecto curioso, e fundamental para a pesquisa, foi quea telenovela  Renascer  trouxe para a telinha uma postura decrítica social diante de personagens e situações de pobreza,

    que inusitadamente não finalizaram suas trajetórias embala-dos pela doce magia da ascensão social.

    O conjunto de indicadores necessário para compor a sele-ção da emissora, realizador e obra, já estava concluído.  Re-nascer (1993) e seus realizadores, Benedito Ruy Barbosa e LuizFernando Carvalho, serviram de foco privilegiado da investi-gação que examinou as relações entre as representações soci-

    ais do popular nas telenovelas e a trajetória dos realizadoresno campo, com especial atenção ao lugar do escritor nesseprocesso.

    8 Ver quadro I em anexo.

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     20 Telenovela e Representação Social

    No segundo capítulo apresenta-se a perspectiva de aná-lise das representações dramatizadas do popular nas teleno-

     velas. Pressupõe-se que as escolhas que os realizadores fa-

    zem sobre os modos de dramatizar o popular nas telenove-las devem-se tanto à trajetória que desenvolvem quanto às“possibilidades estratégicas” ou “espaço de possíveis” do cam-po. Quer dizer, ao “sistema comum de coordenadas” sobre oque seja fazer uma telenovela, um conjunto de referências apartir do qual os realizadores se reconhecem e se diferenci-am. Sendo assim, examina-se as principais matrizes cultu-rais do gênero: o melodrama e o folhetim. Destaca-se, porprivilegiamos a análise do escritor, o estudo dos romancesfolhetins franceses do século XIX. Desenvolveu-se, ainda, umareflexão sobre a dimensão do realismo, pois ela tem sido umareferência marcante nos processos de definição do gênero ede formulação dos critérios de reconhecimento e consagra-ção dos realizadores.

    No terceiro capítulo apresentam-se, a partir das proposi-

    ções de Bourdieu, as mediações ou rede de relações constitu-intes do campo da telenovela. Usou-se como fonte de dados osestudos sobre a história das telenovelas no Brasil e trabalhossobre o campo artístico brasileiro. A escassez de estudos quecontemplassem a história das telenovelas dos anos 90, no pe-ríodo da investigação, levou também às matérias da grandeimprensa.

    Identificou-se o papel do Estado, do mercado publicitário,

    dos telespectadores e do meio artístico, na construção das re-gras de funcionamento do campo examinado. Depois, estabe-leceram-se as regras básicas e as particularidades que defini-ram seus sistemas de consagração e reconhecimento, a nar-rativa audiovisual das telenovelas, a concorrência entre asemissoras, os pontos de vista e as disputas entre os realizado-res que ordenaram os princípios de classificação e denomina-

    ção das obras, deles próprios e do público. A construção das mediações que constituem o campo datelenovela objetivou, principalmente, servir de suporte analíti-co para examinar as relações entre a trajetória de Benedito Ruy Barbosa e as representações sociais do popular em Renascer.

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     Introdução 21

     Renascer foi escrita e exibida em 1993. Isso significa que aconformação do campo exigia uma recuperação de mais de40 anos de existência da telenovela. Construiu-se alguns cri-

    térios para identificar os estados, momentos históricos ou fa-ses do campo. Eles surgiram das principais situações extraí-das, por um lado, das ações dos agentes e instituições (oriun-dos do Estado, do mercado publicitário e do campo artístico)que exerceram funções de formação e regulação no campo;e, por outro lado, das ações dos agentes e instituições que fi-zeram parte do sistema de produção e difusão de telenovelas.

    Os pontos demarcadores dessas fases do campo coincidi-ram com um tipo de organização temporal por décadas. A pri-meira telenovela, a introdução do videotaipe, a primeira teleno-

     vela diária e o início da hegemonia da telenovela na teledrama-turgia são, por exemplo, marcos específicos da primeira fase deformação do campo, que iria de 1951 a 1967. Essa fase con-templa os anos 50 e 60. A fase seguinte, a consolidação do cam-po, compreende os anos 70 e a fase de ampliação e redefinição,

    dos anos 80 em diante. Tais fases conduziram à formulação e àapresentação das principais características do campo da tele-novela no Brasil, tendo como eixo ordenador as ações dos prin-cipais agentes e instituições que teriam nele exercido funçõesde formação e regulação, a saber: o Estado, o mercado publici-tário, os telespectadores e o campo artístico. Pretendeu-se, pormeio dessa revisão histórica, descortinar as linhas mestras dalógica de funcionamento do campo e dos seus sistemas de con-

    sagração e reconhecimento.No quarto capítulo apresentam-se os aspectos particula-

    res do campo que descortinam as situações de concorrênciaentre as emissoras, os pontos de vista e as disputas dos reali-zadores em torno dos sistemas de classificação das telenove-las, aprofundando as interfaces com o campo artístico, querdizer, com os aspectos que expressam os espaços de possíveis

    estético, técnico e cultural que têm servido de referência paraos realizadores representarem o popular nas telenovelas. Nes-te capítulo são desenvolvidas as relações entre esse espaçosocial de produção das telenovelas e a história de consagra-ção de Benedito Ruy Barbosa.

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    Expõe-se a trajetória de Barbosa, privilegiando os dadosque indicam as instituições onde trabalhou, as telenovelas queescreveu, a repercussão política, cultural e artística delas, as

    concepções sobre o ato e os modos de escrever. O exame datrajetória de Luiz Fernando Carvalho compõe, também, essecapítulo, já que se está analisando um produto audiovisualque não existiria sem as marcas do diretor geral. Decidiu-sepor esse caminho porque investigar as escolhas e formas darepresentação do popular na telenovela pressupõe a configu-ração da trajetória de seus principais realizadores e as esco-lhas que realizam, a partir de um determinado universo dereferências, habitus e posições que ocupam no campo.

    No quinto capítulo, centra-se a análise na representaçãodo popular em  Renascer, privilegiando as dimensões extra-textuais, de caráter mais sociológico, que fizeram parte doseu processo de formulação, em especial o campo de produ-ção das telenovelas e o papel do escritor e do diretor geral.Tem-se clareza que tais dimensões são importantes, mas não

    o suficiente para se examinar a obra. Nessa medida, não seefetuou aqui uma análise das estratégias discursivas das tele-novelas ou das suas regras de funcionamento, sua gramática.O objetivo central foi instituir e demonstrar as relações entreos pontos de vista sociais, políticos e estéticos de um escritordeterminado, e a representação do popular em uma das tele-novelas que escreveu. Nessa medida, pode-se dizer que oenfoque aqui privilegiado foi a história e diégese de uma de-

    terminada obra ficcional audiovisual e não as suas formas deexpressão.

    Nessa medida, a análise não se dirigiu direta e imediata-mente aos aspectos formais típicos da linguagem do meio tele-

     visivo. Embora não se perca de vista a importância e o signifi-cado da linguagem, o enfoque privilegiado está posto na cons-trução dos personagens populares e na constituição da trama

    em que eles estão envolvidos. Afirmar o privilégio de uma determinada abordagem nãosignifica desconsiderar outros aspectos presentes. No caso datelenovela, seria um grave erro, particularmente pelo fato deque o processo de realização da obra é coletivo e as marcas de

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     Introdução 23

    autoria não se concentram no escritor, pois têm sido cada vezmais compartilhadas com o diretor geral e a equipe capitane-ada por ele. A telenovela é uma história apresentada median-

    te um texto audiovisual, o que significa que, de algum modo,se deve considerá-la como “o lugar de encontro e da associa-ção sutil conteúdo-expressão que permite que a história tomeforma” (Vanoye e Goliot-Lété, 1994, p. 41).

     Ao se examinar os personagens populares em  Renascer,observam-se escolhas operadas pela telenovela para desenharum mundo possível a partir de relações complexas com ummundo real “que pode ser seu reflexo, mas também sua recu-sa – ocultando aspectos importantes do mundo real, ideali-zando, amplificando certos defeitos, propondo um ‘contra-mundo’” (p. 56). Por isso, não se pode deixar de contemplar osmodos pelos quais a telenovela estruturou as representaçõesdo popular em espetáculo e drama, sabendo que, nesse casoparticular, mais do que utilizar a telenovela para analisar asrepresentações sociais do popular em disputas na sociedade

    brasileira, “observaremos” um conjunto de representações dopopular narradas na telenovela que remetem direta ou indi-retamente à sociedade real em que se inscreve (p. 55).

     A interpretação dessas representações é uma questão im-portante. O olhar enviesado por outras áreas do conhecimen-to, como a sociologia, tende a utilizar a telenovela para pen-sar as relações sociais inscritas pelo texto, ou seja, a retirarinformações parciais, isoladas da telenovela para relacioná-

    las com informações extratextuais advindas dos objetivos dapesquisa. O que se pretendeu garantir aqui foi pelo menosuma utilização mais completa da telenovela, aquela que reti-ra informações a partir de um conhecimento cuidadoso dasmaneiras particulares mediante as quais o gênero constrói asrepresentações. Tenta-se, assim, a maior aproximação possí-

     vel com uma análise que não desconsidere o “real do texto”.

    Buscou-se, então, elaborar interpretações a partir de umrigoroso exame daquilo que estaria efetivamente expresso notexto para, apenas depois disto, contrapô-lo às conjeturas dapesquisadora a respeito dos pontos de vista dos realizadores.Tal procedimento pretendeu identificar em que medida o tex-

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    to aprovaria ou desaprovaria essas conjeturas, ou indicariaoutras (p. 54).

     Renascer contou com mais de 200 capítulos. Na primeira

    semana apresentou-se a “primeira fase” na história do prota-gonista da saga, O coronel Inocêncio. Nas duas semanas se-guintes introduziu-se a fase atual da vida do coronel Inocêncioe os personagens analisados: Tião Galinha (o representanteda questão da terra) e Teca (a representante da questão socialque envolve os meninos de rua dos centros urbanos). Em umprimeiro momento elaborou-se um resumo da história conta-da em Renascer com o objetivo de mapear as principais rela-ções sociais configuradas, em especial aquelas que envolvemas trajetórias dos personagens enfocados com os representan-tes do poder e da riqueza social, os coronéis. Em seguida, exa-minou-se o primeiro capítulo com o objetivo de identificar asprincipais características dos modos de representar o popularnesta telenovela. Feito isso, foi exposta a análise dos persona-gens exemplares das questões sociais em  Renascer –  Teca e

    Tião Galinha – a partir da posição que ocupavam na trama,das principais situações que enfrentaram e do final que lhesfoi destinado.

    Tem-se neste trabalho um primeiro estudo, de caráterexploratório, da narrativa da telenovela. Uma análisedirecionada e limitada pelos necessários recortes colocadospelo objetivo perseguido: mostrar as relações entre a históriado campo da telenovela, a trajetória dos realizadores e os modos

    de representar o popular.

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    representação é, de uma maneira geral, o ato de tornaralgo presente, por meio de imagens abstratas ou concre-

    tas, de conteúdos mentais, de discursos e de outros meios, semque a ausência material seja superada. Uma noção com umenorme espectro de uso, podendo ser aplicada no espaço cien-tífico, teatral, literário, jurídico e psicológico1.

    Quando a representação examinada é a do popular na te-lenovela, um outro aspecto deve ser mencionado, a questão darepresentação artística. Nesse caso, o fenômeno diz respeito àcapacidade da criatividade artística de tornar presente, medi-

    ante formas e figuras de naturezas diferentes, a depender dotipo de arte, um mundo real ou possível, da experiência direta econcreta ou da fantasia, do delírio ou da intimidade maisidiossincrática. A representação do popular na telenovela sig-nificando o mundo das formas e figuras nos quais se apresentaplasticamente o mundo vivido das classes populares.

    No campo das ciências sociais2 a representação adquire o

    atributo de social e refere-se ao ato de presentificar no pensa-mento dos indivíduos, num contexto fortemente dependentedo vínculo social, a realidade vivida3. Autores clássicos da so-

    Construção Social da Representação do

    Popular nas Telenovelas

    1 A representação mental refere-se ao fenômeno pelo qual algo se torna disponível àsfaculdades do entendimento ou da imaginação, entendido como conteúdo conceitual,informação, esquema, valor aritmético, fórmula abstrata, ou como quimera, confi-guração fantasiosa de mundos possíveis. A representação mental possibilita que essealgo re-presentifique, tornando-se passível de ser manipulado pelo intelecto, pela

    fantasia e pela vontade ou desejo. As representações mentais do popular na sociedadebrasileira, por exemplo, representificariam informações e fantasias sobre as classespopulares.

    2 A esse respeito ver o trabalho de Minayo (1994, p. 89-113).

    3 Embora fazendo parte da família de noções vinculadas ao conceito genérico derepresentação, o vocábulo “representação social” no campo das ciências sociais tem lá

     A

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    ciologia – como Durkheim, Weber e Marx – demonstraramque os homens representavam a realidade em que vivem apartir de uma complexa relação entre as suas condições de

    existência e os grupos e as instituições que delas fazem parte.Dessa relação resultava um contínuo movimento de gestaçãode formas de pensar a realidade social, fomentadoras de prá-ticas, sentimentos, condutas que tendem a reproduzir as con-dições de existência. Eles já assinalavam que essa relação nãoera direta, linear e dependente, que guardava ao mesmo tem-po uma autonomia relativa e vínculos de complementariedade,onde o real construiria formas de pensar que eventualmentetambém construiriam esse real.

    Durkheim enfatiza o caráter coercitivo e coletivo das re-presentações sociais, acentuando a capacidade delas de ga-rantirem a coesão social na medida em que formam as cons-ciências individuais. Apesar de serem exteriores aos indiví-duos, as representações sociais podem ser por eles interiori-zadas por meio de instituições e agentes especializados, den-

    tre eles as escolas e os educadores. Marx também destacou aperspectiva coercitiva das representações sociais, mas nãomais justificando ou defendendo, como fizera Durkheim. Aocontrário, buscou demonstrar de que maneira os diferentese antagônicos interesses existentes na sociedade poderiamgerar modos de dominação sobre indivíduos e grupos, ela-borando, assim, as noções de classe e ideologia dominante.O enfoque nas formas de dominação pretendia estimular e

    refletir sobre os modos de rebelar-se contra elas, formulan-do a partir daí novas regras sociais e uma nova ordem socialque rompesse os modos de dominação vigentes. Ao contrá-rio de Durkheim, negava o poder absoluto da representaçãocoletiva e dominante sobre as consciências individuais, aten-

    as suas especificidades. Nesse caso a representação adquire o atributo de social aodesignar o ato de presentificar no pensamento dos indivíduos – imersos em situações

    e contextos sociais, culturais, econômicos – fatos, objetos, construtos mentais, cir-cunstâncias relacionadas à realidade vivida. As representações sociais seriam os con-teúdos mentais de natureza conceitual, produtos da faculdade da imaginação ou deconteúdos de natureza híbrida, constituídos no seio dos inescapáveis vínculos social egrupal, por meio dos quais os indivíduos e grupos pensam, consideram e imaginam(isto é, tornam presente) a realidade vivida.

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    tando para as possibilidades de mudança, revolucionáriasou não, que as novas formas de representar a realidade soci-al e cotidiana podiam chegar a ter. Novas representações

    gestadas por novas formas de vida material, num contínuomovimento dialético estabelecido com a vida material e asidéias. O poder das instituições e dos sujeitos que dela fazi-am parte era, também, ressaltado.

    Weber, abstendo-se do ponto de vista classista e revolucio-nário de Marx e do ponto de vista coercitivo e absoluto deDurkheim, afirmava que o capitalismo educava e criava seussujeitos, formulando idéias com um poder acentuado de favo-recer o seu avanço. As idéias guardariam, assim, uma certaautonomia, traduzida em eficácias sociais particulares. Ele con-tribuiu para relativizar a determinação da base material sobreas representações sociais, já que considerava que somente apósum exame dos fatores que deveras contribuíram na configura-ção de determinado fato ou ação social aferiria-se a efetivaimportância da base material. Por exemplo, o trabalho como

     virtude máxima, a prosperidade como benção divina e o lucrocomo fator legítimo seriam tão ou mais fundamentais para aconsolidação do capitalismo quanto as suas condições materi-ais e históricas de surgimento e consolidação.

    Esses três autores instituíram os pontos nevrálgicos e pri-mários do debate acerca da representação social no campodas ciências sociais. Bourdieu e Giddens, autores que muitopodem oferecer para ampliar este debate, são tributários do

    diálogo e das controvérsias estabelecidas com o pensamentodesses autores e de seus seguidores4. Os clássicos citados fo-ram, nesta medida, precursores do debate sobre a culturaque a antropologia e a sociologia desenvolveram. No casodo pensamento sociológico hegemônico da noção de cultu-ra, observa-se que ele teria ficado durante muitos anos enges-sado pela compreensão dos fenômenos culturais como refle-

    xo do capitalismo. Esse limite iria finalmente ser superadocom o novo lugar que a cultura foi tomando no campo soci-ológico a partir dos anos 70. Esse fenômeno foi, ao mesmo

    4 Ver Ortiz (1983) e Giddens (1991).

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    tempo, fruto e incentivador de um movimento de esgarça-mento de fronteiras disciplinares que ampliou as abordagensteóricas sobre as relações entre cultura e sociedade. Consoli-

    dava-se uma postura teórica que mostrava não ser maisadmissível teorizar a cultura sem considerar as áreas exter-nas à sociologia, entre elas a filosofia, a história, a literatu-ra, a semiologia e tantas outras (Featherstone, 1995, p. 53).Featherstone lembra ainda que esse movimento foi enrique-cido e estimulado pela interlocução com os pós-modernos,que trouxe “as questões estéticas para o centro da teoria so-ciológica”, assim como pela ascendência no campo científi-co do feminismo, do marxismo, do estruturalismo e do pós-estruturalismo, da semiologia, da teoria crítica e da psicaná-lise (p. 55).

    O interesse da sociologia pela análise da cultura teve umdesenvolvimento especial nos países de língua inglesa, ondeGiddens é considerado um expressivo teórico social da produ-ção cultural contemporânea. No campo sociológico francês,

    um dos destaques na área da análise da cultura tem sido PierreBourdieu. Ambos, referências centrais neste trabalho para ana-lisar a representação social do popular nas telenovelas.

     Ao investigar as representações do popular nas telenove-las optou-se por centralizar a atenção nas práticas dos reali-zadores dessa obra cultural, ou seja, nas relações entre as prá-ticas dos formuladores das representações do popular numadeterminada obra cultural massiva e os sentidos produzidos

    por elas.Os estudos de Pierre Bourdieu oferecem a oportunidade

    de desenvolver uma sociologia dos produtores das representa-ções que examinem essas relações entre os realizadores e suasobras a partir dos seus aspectos comerciais, históricos, ideoló-gicos, estéticos e simbólicos. Para tanto, fez-se uso mais siste-mático das noções de habitus, “trajetória” e “campo”.

     A escolha de um autor como Bourdieu deveu-se ainda asua habilidade em contemplar a tendência das instituições àreprodução. Isso porque não se pode examinar as supostasexperiências críticas, criativas, inovadoras e emancipadorasdas instituições e dos sujeitos sociais – dimensões tão caras às

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    perspectivas mais críticas nas ciências sociais5 –, sem contem-plar os conflitos, as contradições e os paradoxos que elas esta-beleceriam com as experiências cotidianas e subjetivas que

    tenderiam à reprodução. Tal ponto de vista, acredita-se, ofe-receria uma capacidade analítica mais apropriada para a com-preensão das facetas reprodutora e emancipadora dos media.

     Algumas ressalvas, entretanto, precisam ser indicadas.Bourdieu não tem tomado como seu objeto particular a aná-lise da modernidade e dos meios massivos de comunicação,como bem lembra Canclini (1989). Tal fato, contudo, não su-gere a inadequação de seus pressupostos, mas apenas a ne-cessidade de redimensioná-los. Assim sendo, buscou-se agre-gar eventuais redimensionamentos a partir de uma inter-locução com os trabalhos de Canclini, Featherstone e Giddens.

    Os dois primeiros autores ofereceram importantes elemen-tos teórico-metodológicos para realizar apropriações das no-ções de habitus e de campo, contribuindo na reflexão sobre asociologia dos produtores, Giddens forneceu os aportes mais

    significativos para refletir sobre a questão das representaçõessociais na contemporaneidade, ampliando, assim, a noção detelenovelas e dos sentidos do popular neste gênero ficcional.

    Bourdieu tende a uma abordagem mais estruturalista emarxista dos processos de dominação e legitimação social,enfatizando as relações entre as posições sociais, a problemá-tica das classes sociais e a construção das representações so-ciais, Anthony Giddens tende a analisar as mudanças sociais

    numa abordagem que, sem descurar totalmente a perspecti- va estruturalista e o conceito de classe, acentua as dimensões

    5 Das muitas críticas que Bourdieu tem recebido, merecem destaque aquelas quereclamam do enfoque centralizado na reprodução. Martín-Barbero diz que Bourdieuelaborou um dos modelos teóricos mais abertos, complexos e menos mecânicos paracompreender a relação das práticas com as estruturas. Todavia, ele sentia falta deuma análise da produção das inovações e transformações (1987, p. 92). TambémCanclini (1987, p. 34) seguia por essa via e afirmava: “Bourdieu no examina como los

    habitus pueden variar según el proyeto reproductor o transformador de diferentesclases y grupos. (...) De cualquier modo, su aporte nos permite precisar en qué condiciones socioculturales opera el conflicto politico entre lo hegemônico y lo subalterno. Permite situar la potencialidad transformadora de las clases populares en los límites que le pone la lógica de los hábitos y del consumo, esse consenso interior que la reproducción social establece en la cotidianeidad de los sujetos.” 

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    microssociais, individuais e subjetivas das práticas. Essa di- versidade permitiu associar tendências e preocupações, emprincípio dissonantes, mas, depois de uma leitura mais acura-

    da, se mostraram complementares. Esse enriquecimento tor-nou-se possível ao se seguir uma linha que desenvolve algunsaspectos importantes: (1) as implicações da modernidade nosprocessos de construção das representações; e (2) os recursosreflexivos que instituições, grupos e indivíduos têm lançadomão para dar conta das questões postas hoje pela modernidadenos países capitalistas ocidentais.

    Uma análise baseada nos pressupostos formulados porBourdieu estimula uma leitura amarrada aos limites do su-posto estruturalismo do autor, onde os agentes – e note-se, oautor prefere esta denominação à de sujeito (Bourdieu, 1998,p. 60) – e suas subjetividades estariam sendo desqualificadasou até mesmo negadas. De fato, Bourdieu não se dispõe a exa-minar os processos psíquicos sustentadores das formulaçõesdas representações sociais, mas nem por isso descartou a sua

    existência, sendo a noção de habitus um importante aporte.Giddens, no entanto, buscou uma maior aproximação com apsicanálise frente à sua preocupação com a questão da inti-midade, desenvolvendo uma interlocução importante com opsicanalista inglês Donald W. Winnicott.

     A noção de habitus em Bourdieu expressaria os processosde objetivação e ancoragem, pois permite examinar as rela-ções entre as estruturas produzidas pelas experiências anteri-

    ores e as experiências novas que afetariam essas estruturas.Segundo Bourdieu, habitus, disposições inconscientes, tendema assegurar sua própria constância e sua defesa contra amudança, selecionando e rejeitando as informações que colo-quem em questão as informações previamente acumuladas edefinidas como corretas. Desse modo, os efeitos que uma ex-periência nova poderia exercer sobre os habitus dependeriam

    da relação de “compatibilidade” prática entre essa nova expe-riência e as experiências já integradas ao mesmo (Romano,1987, p. 54-55).

    Spink (1994, p. 121) chamou o habitus de um dos contex-tos de produção das representações, aquele marcado pelo tem-

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    po vivido, pelas experiências de “socialização”. Assim sendo,se poderia dizer que o tempo do habitus seria predominante-mente um tempo governado pela “lógica das repetições”, onde

    o presente e o futuro seriam estruturados no passado, pelastradições. Nos períodos pré-modernos, as representações ema-navam das tradições e contribuiriam para o que Giddens cha-mou de segurança ontológica6. Porém, na modernidade, e maisclaramente na contemporaneidade, surgiram novas formasde lidar com a tradição e com a conformação da segurançaontológica. Nesse caso, é Giddens quem diz que o “futuro se-ria continuamente trazido para o presente através da organi-zação reflexiva dos ambientes de conhecimento”, mediadospor sistemas abstratos, instituições, especialistas e recursosreflexivos7.

    O que interessa reter dessas digressões é o caráter con-temporâneo dos fenômenos da objetivação e da ancoragem.Ou seja, as “estruturas produzidas pelas experiências anterio-res” seriam marcadas pela reflexividade que interrogaria per-

    manentemente a tradição e que suporia um conjunto maiscomplexo e sofisticado de mediações das representações cole-tivas com os sistemas subjetivos de ancoragem e objetivação,marcados por uma fragilidade na manutenção do que Giddenschamou de “confiança” e “segurança ontológica”.

    Isso tudo faz com que se conceba as telenovelas comoobjetos ficcionais de entretenimento que funcionariam comoobras/objetos mobilizadores e facilitadores de apropriações e

    recriações subjetivas e simbólicas das representações sociaisque narram e dramatizam a vida familiar, as expectativas so-ciais, a sexualidade, a procriação, os filhos e tantas outrasdimensões relacionadas ao cotidiano. Apropriações e recria-ções subjetivas das representações sociais que seriam, em um

    6 Segundo Giddens (1991, p. 95), “a segurança ontológica é uma forma de sentimen-tos de segurança (...). A expressão se refere à crença que a maioria dos seres humanos

    têm na continuidade de sua auto-identidade e na constância dos ambientes de açãosocial e material circundantes. (...) A segurança ontológica tem a ver com ‘ser’ ou, nostermos da fenomenologia, ‘ser no mundo’. Mas trata-se de um fenômeno emocional,ao invés de cognitivo, e está enraizado no inconsciente.”

    7 Conceitos que mostram fortes enlaces com as noções de campo e profissionais daprodução simbólica em Bourdieu.

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    primeiro momento, tributárias das disposições socialmenteconstruídas e subjetivamente incorporadas, o habitus, “estru-turadores estruturantes” da reflexividade moderna.

    Quanto ao processo de elaboração das representações porparte dos realizadores de telenovelas – foco primário de aten-ção – deve-se assinalar de antemão que o enfoque central ésociológico. Como decorrência, parte-se da máxima deDurkheim (Jameson, 1995, p. 6) que alerta sobre a falsa ex-plicação de um fenômeno social quando ela é gerada a partirde fenômenos psicológicos. Logo, seria prudente esclarecer quenão se pretende usar os saberes da psicologia ou da psicanáli-se para analisar os realizadores e suas obras. Porque, comobem salienta Jameson (1995), sabe-se, desde Freud, dos pro-blemas metodológicos encontrados quando se utiliza na aná-lise dos “objetos intersubjetivos” artísticos e culturais, as téc-nicas psicanalíticas.

     Autores clássicos como Morin (1976) já falavam das pro- jeções e identificações dos sujeitos espectadores do cinema.

    Preocupações com essa dimensão psíquica estariam tambémpresentes em Sarlo (1985), quando ela lembrava da “necessi-dade de ficção” dos indivíduos na modernidade. Sem dúvida,acata-se aqui a idéia de que existem complexas relações entreas disposições inconscientes dos sujeitos e as obras culturais,sejam elas mediáticas ou não, e que elas estariam presentestanto no processo de formação8  quanto no de consumo dasobras. Porém, para fins da reflexão aqui empreendida, consi-

    dera-se adequado e suficiente nomear a existência dessa rela-ção sem incorporá-la à análise das representações do popularelaboradas pelos realizadores de telenovelas.

    8 O ensaio de Piglia (1998) sobre as relações entre a literatura e a psicanálise é, nessalinha, muito curioso e instigante. Ele lembra os modos de narrar inspirados pelapsicanálise, exemplificado no caso de Joyce, assim como os modos de expressão do

    inconsciente mediante a literatura, exemplificados no caso de Puig. Piglia dizia que o“inconsciente tem estrutura de folhetim”, sendo essa uma interessante forma de pen-sar a capacidade de autores como Puig, que ao escrever sua ficção sem descuidar daestrutura das telenovelas e dos grandes folhetins da cultura de massas, conseguiacaptar essa “dramaticidade implícita na vida de todos, que a psicanálise põe no centroda experiência de construção da subjetividade“.

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    Como Pensar a Representação do Popular nas Telenovelas Brasileiras?Quando refletimos sobre o ato ou efeito da televisão represen-tar grupos e indivíduos que ocupam posições sociais conside-radas inferiores, subalternas, dominadas – como é o caso dossentidos que a nomeação povo envolve –, estamos nos refe-rindo às interfaces das representações de caráter sociais e sub-

     jetivas. Ao mesmo tempo em que se exibirá representações dopopular pautadas nas convenções sociais e no debate que giraem torno delas, lidaremos também com uma complexa redede efeitos individuais e coletivos gerada pelo consumo dessas

    representações. A questão anteriormente formulada conduz a dois recor-tes importantes. O primeiro centra a interrogação sobre asrelações entre a representação do popular em um determina-do programa de televisão e a história de quase meio século dasociedade brasileira. O segundo estabelece, como aspecto cen-tral de sua análise, os formuladores das representações soci-ais das telenovelas de maiores índices de audiência da mais

    significativa emissora de TV no Brasil. Desse modo, garante-se a possibilidade de examinar ângulos mais concretos e pal-páveis do fenômeno da representação social, a fim de evitarestratégias que possam descambar pela inflacionada interpre-tação dos sentidos mediáticos.

    Certa ocasião, Sílvio de Abreu e Jorge Fernando criaramum núcleo de pobres em Torre de Babel (1998) que, logo de

    saída, associou pobreza com a violência e prisão em tons as-saz naturalistas Instantaneamente tocou-se na sensibilidadede seus telespectadores que não estavam muito acostumadosao tom utilizado nesse tipo de gênero, que em geral valoriza aassociação entre pobreza, trabalho e ascensão social de ma-neira suave e idealista. Os autores, todavia, não deixaram deinterferir na fala cotidiana dos telenoveleiros (os consumido-res habituées de telenovelas) das camadas populares, que pas-

    saram a rir de si mesmos apoiados no personagem pobre Ja-manta (Cacá Carvalho): um bobo que, de tão bobo, se faziade esperto.

    Não foram os primeiros realizadores de telenovelas, e nãoserão os últimos, a se deparar com essas respostas do público.

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    Faz parte do trabalho de todo e qualquer realizador de teleno- velas a escolha de elementos do conjunto de representaçõessociais do popular disponíveis para inventarem seus persona-

    gens e narrativas. Eles também sabem que produzir telenove-las significa estar atento às possíveis respostas às formas deexpressão que utilizaram para representar o popular. No casobrasileiro, poderíamos ressaltar a idéia da escolha que eles,realizadores, fizeram, tendo em vista as diversas pressões daemissora, exigências estéticas e as condições de trabalho queo fazer telenovela implica9. Escolhem, a partir desses limites epossibilidades, posturas que gostariam que fossem difundidas,destacadas e, até mesmo, polemizadas na sociedade. No casodas telenovelas brasileiras (e elas não seriam os únicos casosdos programas de televisão no Brasil) observa-se ainda que asrepresentações da identidade nacional, o brasileiro, eram cen-trais, sugerindo assim relações do popular com a questão donacional.

     A telenovela, um dos primeiros programas de uma TV re-

    cém-criada no Brasil, data de meados dos anos 50, momentode importante recrudescimento do projeto de modernizaçãoda sociedade brasileira. No Brasil, Canclini (1989) e Ortiz(1988) indicam que o modernismo – a expressão no campoartístico da modernidade – estava associado a um desejo demodernização instituinte da identidade nacional, onde origi-nou-se a célebre frase “só seremos modernos se formos nacio-nais” (Ortiz, 1988, p. 4). E aqui Canclini aponta uma dimen-

    são muito curiosa, que poderá ser observada, mais adiante,no campo da telenovela. Essa relação do modernismo com amodernização foi cenário para o surgimento no Brasil de in-telectuais, escritores e artistas envolvidos e preocupados comos conflitos internos da sociedade, assim como, com as difi-culdades de se comunicarem com o povo (Canclini, 1989, p.72). Em vários casos, diz o autor, o modernismo cultural, “em

     vez de ser desnacionalizador, deu o impulso e o repertório desímbolos para a construção da identidade nacional” (p. 78).

    9 Lauro César Muniz lembra que no Brasil a telenovela é escrita durante sua exibição,permitindo, por isso, interferências de todo tipo (L. C. Muniz, em Mesa-redonda,ECA/USP, 1998). Ver também Pallottini (1998).

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    Deve ser retido, dessa análise feita por Canclini, que no bojodo processo de modernização e urbanização acentuadas se de-senvolveu um modernismo cada vez mais mesclado com a ex-

    pansão do mercado, da indústria cultural e com um debatesobre a identidade nacional. Nesse contexto, forma-se um con-

     junto de profissionais, especialmente os mais ligados aos movi-mentos culturais e aos grupos de esquerda, dispostos a enfren-tar os desafios colocados pelo projeto de “socializar a arte, co-municar as inovações do pensamento a públicos majoritários,com o intuito de fazê-los participar da cultura hegemônica” (p.83). Mais do que isso, não se furtaram em desenvolver as práti-cas artísticas de produção e consumo mais adequadas às ques-tões postas por um Brasil que se modernizava.

    O depoimento de Dias Gomes é exemplar. Ele conta quefazia “parte de uma geração de dramaturgos que levantouentre os anos 50 e 60 a bandeira quixotesca de um teatro po-lítico e popular. Esse teatro esbarrou numa contradição bási-ca: era um teatro dirigido a uma platéia popular, mas visto

    unicamente por uma platéia de elite. De repente a televisãoofereceu-me essa platéia popular.”10  Oferta que não obteverecusa. Dias Gomes passou a ocupar posições de destaquenessa nova prática, tornado-se um dos principais defensores,criadores e renovadores de uma teledramaturgia genuinamen-te brasileira.

    Isso tudo leva a crer que formular representações sociaisdo popular nas telenovelas estaria associado aos debates tra-

     vados no campo artístico e político sobre a questão nacional,onde se conferia aos realizadores de programas massivos umimportante papel na conformação da idéia de homem brasi-leiro (Kehl, 1979). Uma função que pretendia ser reguladapelo Estado e, de algum modo, pelos grupos do campo artísti-co que o ser nacional e popular conferia prestígio e reconheci-mento (Ortiz, 1988 e Ortiz et al, 1989).

    Observações e referências teóricas a partir das quais osformuladores de telenovelas serão compreendidos como em-presários morais, peritos e profissionais da produção simbóli-

    10 Entrevista com Dias Gomes, Opinião, 26 de fevereiro a 4 de março de 1973, p. 19,citado por Ortiz (1988, p. 180).

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    ca, responsáveis pela formulação das representações sociaisna cultura de consumo que fundamenta na contemporanei-dade as sociedades capitalistas ocidentais. Um dos muitos dis-

    positivos mediadores das representações sociais do popular quecotidianamente é ofertada aos sujeitos telespectadores.

    Empresários Morais A idéia de empresários morais é sugerida por Featherstone efaz juz a essa função de construção de representações sociaiscoletivas conformadoras do sentimento de communitas, de um

    consenso moral capaz de gerar, em meio a uma sociedadecomplexa e bastante diferenciada, o sentimento de valorescomuns compartilhados, um ideário unificador, capaz de trans-por as diferenças, divisões e exclusões sociais. O interessantedessa acepção é que não se pressupõe a existência da efetivaintegração. Com efeito, seriam sentimentos e experiências ali-mentadas por momentos liminares que criariam a sensaçãode integração (os exemplos podem ir da coroação que recria a

    monarquia às olimpíadas que recriam os traços nacionais emundiais). Se não existe a possibilidade de uma efetiva inte-gração nacional, seria importante considerar a constante for-mulação de representações sociais que possam favorecer osmomentos e as experiências emocionais propiciadoras de umacomunidade imaginada. Assim sendo, são de extrema impor-tância os profissionais que exercem essa função – os empre-sários do consenso moral.

    Essas reflexões levam a supor que as representações soci-ais do popular colaboram na construção de um ideário nacio-nal, onde as noções de povo e de homem brasileiro fornecemexperiências emocionais e reflexivas que podem anular as dis-tâncias sociais, construindo a experiência comum e compar-tilhável de nação e de povo brasileiro. Os empresários morais,participando do processo de construção e desconstrução des-

    sas representações, teriam condições de fazer existir o queFeatherstone chama de cultura comum. Para efetivá-la, lan-çam mão de representações passadas, traçando continuida-des e descontinuidades com o presente, ao mesmo tempo, queas transformam em valores que poderiam orientar práticas

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    futuras. Isso tudo calcado em um movimento que, mesmotocando nas diferenças, ressaltaria os sentimentos que as ate-nuariam ou, até mesmo, eliminariam.

    Para exemplificar, basta acompanhar os dois principaistemas das telenovelas – o amor e a ascensão social – paraperceber que a trajetória dos protagonistas é construída demodo a acentuar os pontos que fornecem as pistas para afelicidade (Kehl, 1979 e 1986) em uma trama de aventurasenoveladas por conflitos, contradições e dificuldades de todotipo (Vink, 1989). A felicidade, quase como um lubrificantedo motor das convenções sociais, capaz de gerar, apesar dasdiferenças, das desigualdades e das dificuldades, sentimentosde caráter unificador, pacificador e alentador. No caso parti-cular dos personagens que representam o popular, observa-seuma tendência à defesa do trabalho, da dedicação, da hones-tidade e da cordialidade como matrizes de homem ou mulherpobre que conseguiria ascender socialmente. Ainda nessa li-nha, a experiência amorosa tende a tratar dos valores que

    deveriam nortear o casamento, a criação de filhos, a sexuali-dade de forma a imprimir os modelos mais modernos e valio-sos da família brasileira, aqueles entrelaçados com o projetomais geral de ascensão social, o projeto de “melhorar de vida”.

    Quanto à questão espacial (e suas atribuições culturais esemânticas) que alimenta o ideário nacional, observa-se, nocaso das telenovelas da TV Globo, a ênfase em determinadasregiões que representam mais os pontos comuns a tantas ou-

    tras, e não para as suas particularidades. Como se os locaistivessem que ser representados de modo a apagar as diferen-ças espaciais, a fim de facilitar experiências de identificação,mais como brasileiros do que como cariocas, paulistas oubaianos.

    Definir os realizadores como empresários morais é, portan-to, percebê-los como formuladores de representações sociais

    que contemplam dimensões éticas e morais articuladoras dopassado, presente e futuro, concernentes ao nacional e aopopular na sociedade brasileira em processo de moderniza-ção. Essa como uma das dimensões das representações soci-ais do popular nas telenovelas. Como pensá-las a partir de

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    outra dimensão a elas associada, aquela que toca no estilo de vida dos sujeitos telespectadores? Estilo de vida que remete aum universo de símbolos vinculados aos modos de organizar

    a vida cotidiana e a intimidade inseridos no discurso da tele-novela que divulga um modo de falar, de se vestir, de morar, decomer, de cultivar amizades, de viver em família.

    Peritos Realizadores de TelenovelasPergunta que reporta a Giddens e aos seus aportes sobre areflexividade na modernidade. Acepções que permitem refle-

    tir sobre os consensos morais e a construção dos estilos de vida nas sociedades marcadas pela permanente descontextua-lização das representações sociais.

     A modernidade, segundo Giddens, instituiria uma novaexperiência espacial e temporal. O tempo, com o advento damodernidade, não seria mais construído a partir dos diferen-tes espaços e lugares, ao contrário, seria padronizado em es-calas mundiais e regionais. O espaço também não mais se

    restringiria à noção de lugar (cenário físico da atividade soci-al), sendo construído a partir de referências gerais. Por isso,Giddens (1991, p. 27) afirma que as relações espaço-tempo-rais “fomentam relações entre outros ‘ausentes’, localmentedistantes de qualquer situação dada ou interação face a face”.

    O processo desarticulador das dimensões de tempo e espaçofoi denominado de “descontextualizador11 dos sistemas sociais”,quer dizer, deslocamentos12  “das relações sociais de contextoslocais de interação” que se reestruturariam mediante extensõesindefinidas de tempo-espaço (p. 27). O processo rearticuladordessas dimensões foi denominado de recontextualizador – emoutras palavras, a “reapropriação ou remodelação de relaçõessociais” descontextualizadas, que estariam associadas (emboraparcial ou transitoriamente) a “determinadas condições locais

    11 Na tradução do livro  As conseqüências da modernidade  (1991) usou-se o termo“desencaixe” para traduzir o termo disembedding. Opta-se aqui pela tradução portu-guesa do livro  Modernidade e identidade pessoal (1994) que cunhou um termo maisapropriado e claro: a descontextualização.

    12 No sentido de “tirar de um lugar para outro”, mais do que no sentido de desvio etransferência.

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    Seguindo essa linha de raciocínio, os sistemas periciais sãoresponsáveis pelas garantias simbólicas e pelos outros senti-dos demarcados pela reflexividade particular da modernidade.

     A reflexividade15  torna-se vital frente à sua capacidade desemantizar o passado e a tradição, fornecendo os conheci-mentos que os indivíduos e grupos demandariam para se in-serir em um cotidiano que cada vez mais se desarticularia dessepassado. A marca da reflexividade moderna estaria, assim,relacionada ao movimento frenético de exame e reformulaçãocontínua das práticas sociais. Isso ocorre porque, de acordocom Giddens, “somente na era da modernidade a revisão daconvenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a to-dos os aspectos da vida humana, inclusive à intervenção tec-nológica no mundo material. (...) [Sendo] característico damodernidade não uma adoção do novo por si só, mas a supo-sição da reflexividade indiscriminada. (...) Por isso, estamosem grande parte em um mundo que é inteiramente constitu-ído por meio de conhecimento reflexivamente aplicado, mas

    onde, ao mesmo tempo, não podemos nunca estar seguros deque qualquer elemento dado deste conhecimento não serárevisado. (...) Desta forma, a reflexividade da modernidade defato subverte a razão pelo menos onde a razão é entendidacomo o ganho de conhecimento certo” (p. 45).

    Os media, “expressão e instrumento das tendênciasdescontextualizadoras e globalizadoras16  da modernidade”(Giddens, 1993, p. 23), seriam um sistema pericial que desen-

     volveria tanto os dispositivos da descontextualização quantoexperiências recontextualizadoras – processos vitais para asociabilidade dos indivíduos e grupos na vida moderna. A cons-trução dessas redes de sociabilidade pressuporia a construção

    15 Giddens sustenta que a reflexividade seria uma característica da ação humana.Pois seria a partir do conhecimento que o indivíduo avaliaria e orientaria a sua ação,ou seja, “todas as formas de vida são parcialmente constituídas pelo conhecimentoque os atores têm delas (1991, p. 45).

    16 Apoiando-se em Giddens (1993, p. 19): “A globalização da atividade social que amodernidade ajudou a fazer surgir é, em certos sentidos, um processo do desenvolvimentode laços mundiais [...] de um modo geral, o conceito de globalização pode ser melhorcompreendido como exprimindo aspectos fundamentais de distanciação do espaço-tem-po. A globalização diz respeito à intersecção da presença e da ausência, o entrelaçar deeventos sociais e relações sociais ‘a distância’ com as contextualidades locais.”

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    dos sujeitos que dela fazem parte, atuando na tessitura e sen-do tecidos por elas.

    Quais seriam as interfaces entre os media e os indivíduos e

    grupos? Um dos principais pontos de acesso desse sistema perici-al, no caso da televisão, pode ser pensado como os peritos ou“profissionais da produção simbólica”, na acepção de Bourdieu,que tanto produzem a publicidade, os diversos programas da gradetelevisiva, quanto o dramatizam (as âncoras dos telejornais, osatores de telenovelas, os animadores de auditório). Um outroponto de acesso refere-se à “experiência mediada” que o textoaudiovisual da televisão proporciona. Nesse caso, salienta os sen-tidos formuladores das garantias simbólicas presentes nas nar-rativas, nos personagens, nos meios de expressão usados, ou seja,as mediações narrativas e discursivas das expectativas, dos uni-

     versos simbólicos e competências textuais dos telespectadores.Giddens incisivamente afirma, não haverá sociabilidade,

    e muito menos uma ação eficaz dos media, sem a confiançanos dispositivos de descontextualização, pois eles são respon-

    sáveis pelas experiências de recontextualização fundadorasda reflexividade constituinte dos sujeitos sociais. O interes-sante dessa asserção é o seu corolário: os media não apenasdependem da confiança, mas também a constroem. E dessamaneira tomam parte da formulação do que Giddens deno-mina de intimidade, alimentando a idéia de que a telenovelateria aí um papel a cumprir.

    O eu seria um projeto reflexivo porque os indivíduos na

    modernidade vivem a experiência de serem obrigados a inter-rogar e a duvidar do passado, do presente e do futuro pararesolverem os problemas dispostos por um cotidiano mutante,perigoso e desafiador. A permanente construção do eu neces-sita de um conjunto significativo de recursos reflexivos ade-quados às mais diferentes demandas. Por isso, cabe nessa no-menclatura – recursos reflexivos – qualquer meio que possa

    estabelecer essa função: da telenovela ao confessionário, dosmanuais de auto-ajuda aos psicanalistas17.

    17 O exemplo dado por Giddens (1993, p. 42) – a invenção da dieta – é elucidativo.“A dieta está ligada à introdução de uma ‘ciência’ da nutrição e, portanto, ao poderdisciplinar no sentido de Foucault; mas também situa a responsabilidade pelo desen-

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     As proposições de Giddens referem-se à idéia de que hojeos indivíduos, em especial aqueles que vivem nos centros ur-banos, sentem-se compelidos a buscar informações, conheci-

    mentos que os habilitem para as muitas mudanças18 e dificul-dades apresentadas pelos dias de hoje, de modo a aplacar aansiedade, o medo e a angústia que esse novo contexto mobi-liza19. Os media produzem uma profusão desses recursos re-flexivos. Alguns deles apresentariam um grande potencial deinfluência, tais como, no caso da sociedade brasileira contem-porânea, os programas de televisão, dentre eles os talk shows,os programas de auditório e as séries ficcionais, em especial,as telenovelas, por proporcionarem uma vasta gama de re-

     volvimento e pela aparência do corpo diretamente nas mãos do seu proprietário. Oque um indivíduo come, mesmo entre os mais materialmente carentes, torna-se umaquestão reflexivamente impregnada de seleção dietética. Hoje em dia, toda a gentenos países desenvolvidos, com exceção dos muito pobres, faz ‘uma dieta’. Com aeficiência cada vez maior dos mercados mundiais, não somente o alimento é abun-dante, mas uma variedade de gêneros alimentícios está disponível o ano todo para oconsumidor. Nestas circunstâncias, o que se come é uma escolha do estilo de vida,influenciado, e construído, por um imenso número de livros de culinária, tratadosmédicos populares, guias nutricionais etc.”

    18 É preciso trazer à tona a preocupação diante da leitura, que aqui é feita, deGiddens, a qual sugere um papel muito acentuado na capacidade de mudança postapelo conhecimento. Há que se desconfiar deste caráter inovador, pois as forças sociaisinternalizadas e inconscientes que tenderiam à reprodução e à legitimação, tão bemcolocadas no conceito de habitus  de Bourdieu, pareceriam muito relativizadas. To-mando como base Bourdieu, pode-se dizer que o cuidado analítico que se estariareivindicando sugere que o habitus “ engendra representações e práticas mais ajusta-

    das do que aparentam as condições objetivas das quais são produto (...) aharmonização do habitus  implica a produção de práticas mutuamente ajustadas –fora de toda referência consciente à norma (jurisdicismo), ou de toda estratégia oucálculo intencional (interacionismo). (...) [ou seja], não basta, por exemplo, tomarconsciência da condição de classe para se libertar das disposições duráveis que elaproduz” (Romano, 1987, p. 71-2).

    19 Traz-se aqui uma elucidativa menção de Canclini (1985, p. 69): os migrantescamponeses, em muitos casos indígenas, quando sentem que sua cultura local (alíngua, os hábitos cotidianos, as crenças sobre a natureza) dificultam a participaçãona vida urbana, tenderiam a receber da cultura de massa a informação necessária

    para entender e atuar ‘corretamente’ em suas novas condições, para saírem do isola-mento e deixarem de ser ‘inferiores’. Sugere que a televisão é atraente para os migrantes,até mesmo no que se refere à publicidade de objetos que não podem ser comprados,devido ao serviço que ela presta às classes populares atuando como ‘manual deurbanidade’, já que ela indica como se vestir, comer e expressar os sentimentos dacidade.

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    cursos ficcionais, afetivos, emocionais e conceituais para a“criação de uma narrativa reflexivamente ordenada do eu”20

    ( p. 41).

     As telenovelas, recursos reflexivos, oferecem aos seustelespectadores representações sociais de ordem moral com

     vistas a gerar confiança necessária nas instituições sociais(Giddens, 1991, p. 100). A defesa do popular e da Nação Bra-sileira, por exemplo, tem estado, em geral, associada à defesade práticas de governabilidade e de projetos sociais e políticosmais gerais (Kehl, 1979 e Ortiz et al, 1989 e Mattelart, 1989).Todavia, uma outra dimensão se apresenta: as telenovelas, aomesmo tempo, narram a ordem moral e desenvolvem repre-sentações sociais destinadas a um uso pessoal, íntimo, poisdeveriam atender às questões que os telespectadores enfren-tam no cotidiano, as ansiedades, medos e pressões que ten-dem a dificultar a construção do que Giddens chama de auto-identidade.

    Essa dupla dimensão das telenovelas conduz a uma refle-

    xão sobre os realizadores de maneira a contemplar esse lugarde peritos da modernidade portadores da capacidade de fo-mentar experiências emocionais e reflexivas de ordem morale cultural para sujeitos que precisam estar reinventando anarrativa que os instituem. Proposições que corroboram umaconcepção de telenovela vista como um gênero ficcional defins lucrativos que mira a intimidade do telespectador e exigedo realizador a capacidade de atingir esse alvo.

    O que se observa nas telenovelas da TV Globo são perso-nagens às voltas com os problemas da vida amorosa, do am-biente de trabalho, da vida doméstica e familiar. O que faz omarido diante da mulher adúltera? ( Rei do gado, 1996); Oque a mulher casada deve fazer diante do marido que agecom violência? ( Roque santeiro, 1985); O que a família devefazer com o filho drogado? (Torre de Babel, 1998); O que fazer

    diante do filho homossexual? ( A próxima vítima, 1995); O quefazer para descobrir o filho (a) que desapareceu? ( Explode

    20 Importante lembrar quer a telenovela pensada como um recurso reflexivo nãoaponta para uma preocupação teórica com a questão da recepção. O consumo dosrecursos reflexivos produzidos pelos media não é objeto deste trabalho.

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    coração, 1995); O que fazer diante do marido que assumiu ahomossexualidade? ( Por amor, 1997); O que fazer diante dopreconceito racial? ( Pátria minha, 1994). Perguntas que atra-

     vessam uma narrativa baseada em dois grandes temas – oamor e a ascensão social – sem, contudo, perder um caráterpedagógico e informativo, que chega a indicar o melhor pro-cedimento e os melhores serviços sociais disponíveis. As peri-pécias narrativas que surgem a partir desses grandes temasmesclam-se com as inúmeras questões anteriormente exem-plificadas, num permanente entrecruzamento com formasdiversas de construir as diferenças sociais e subjetivas presen-tes nos estilos de vida dos personagens. A mulher que drama-tizava o adultério em Rei do gado, por exemplo, era rica e ele