Teísmos e Ateísmos

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Tesmos e atesmos

Ao longo de vrios anos participando e observando discusses filosficas e religiosas, pude observar que, muitas e muitas vezes, as pessoas se digladiam muito mais por no conseguirem compreender o que a outra efetivamente pensa, do que por qualquer outro motivo mais importante. Usualmente, o que causa esse tipo de desentendimento o fato de que alguns termos particularmente os que englobam a crena ou descrena em um Criador so compreendidos de maneiras diversas pelas pessoas.

Por exemplo, para alguns um ateu algum que afirma categoricamente que Deus no existe (seja quem ou o que for). Para outros incluindo ateus o atesmo no chega a fazer tal afirmao. Para alguns atenienses Scrates era ateu, embora ele estivesse um tanto longe disso, tanto que mais tarde sua filosofia influenciou decisivamente um grande testa: Sto. Agostinho. J Epicuro dizia no se preocupar com os afazeres dos deuses e tambm foi taxado de ateu. Dizem que Einstein acreditava no deus de Espinosa, mas seria esse deus o mesmo deus do Antigo Testamento? Richard Dawkins deixa claro que no, e em seu polmico Deus, um delrio se dedica a atacar apenas o deus bblico, e no a concepo pantesta do Cosmos. Confuso, no?Para tentar auxiliar em tantas definies, tesmos, atesmos e outros ismos, elaborei um pequeno glossrio de termos abaixo, que propositadamente curto e, obviamente, no tem a pretenso de esgotar o assunto, mas apenas de ajudar a resolver melhor alguns debates. Comece perguntando: que tipo de ismo voc segue exatamente, afinal?, antes de ter certeza do que exatamente o outro cr ou no cr...

porque afinal existe algo, e no nada?

TesmoO tesmo, derivado do grego Thos (Deus), a crena na existncia de um ou mais deuses. No politesmo acredita-se em diversos deuses, mas no henotesmo, apesar de admitir-se a existncia de um panteo, h tambm um Deus supremo, criador do Cosmos. No monotesmo reduz-se a divindade a apenas um nico ser supremo, usualmente taxando outros deuses de semideuses, divindades ou demnios (do grego daemon) que em certas doutrinas tambm podem assumir o papel de intermedirios entre os homens e o Deus supremo. O tesmo filosoficamente deriva diretamente do antigo questionamento: porque afinal existe algo, e no nada? Que por sua vez remete a crena em uma espcie de ser consciente (embora no necessariamente um velho barbudo ou um avatar proftico) que arquitetou todo o Cosmos. Pode ser, talvez, resumido como a crena em um Criador pessoal.A grande maioria dos testas tambm compartilha a crena de que Deus no somente pode intervir diretamente (e, usualmente, de forma sobrenatural) nos eventos da existncia humana, como tambm pode transmitir revelaes e segredos csmicos atravs de profetas, sonhos e experincias religiosas em geral.

Creem em uma causa primeira: sim.Creem em um Criador pessoal: sim.Creem em intervenes sobrenaturais: quase sempre sim.Creem em revelaes divinas e dogmas: sim.DesmoO desmo tem suas razes nos antigos filsofos gregos e, sobretudo, na doutrina aristotlica da primeira causa. Voltou a florescer no Iluminismo, sobretudo atravs de Galileu, Newton, Voltaire e outros. No desmo admite-se que o Cosmos no obra do acaso, e que portanto deva existir um Criador. Porm, os destas creem que papel do homem se aproximar de Deus atravs da razo, e no o contrrio. Em suma, os destas negam as revelaes divinas e tm uma concepo naturalista do Cosmos, usualmente negando tambm a possibilidade de intervenes sobrenaturais.Os destas creem em um relojoeiro que sabia enxergar muito bem, to bem que arquitetou todo o Cosmos de forma magistral. To perfeita, que lhe mesmo desnecessrio intervenes especficas. Conforme disse uma vez Voltaire a uma senhorita: Minha senhora, acredito em uma providncia geral, mas no numa providncia particular que salvou o seu pssaro que estava machucado.

Creem em uma causa primeira: sim.Creem em um Criador pessoal: geralmente sim.Creem em intervenes sobrenaturais: quase sempre no.Creem em revelaes divinas e dogmas: no.Espinosa engendra o conceito de Deus de forma geomtrica

Pantesmo (ou espinosismo)O pantesmo associa o conceito de Deus ao prprio Cosmos: a totalidade de todas as coisas no universo, na natureza. Einstein dizia que havia duas formas de se enxergar a vida: uma pensar que no existem milagres, a outra conceber tudo a sua volta como um milagre. Obviamente, Einstein queria dizer que as prprias leis naturais, a prpria simetria e harmonia do Cosmos, eram em si mesmas um milagre persistente ao menos para aqueles que tinham olhos para ver.Essa concepo de Cosmos remonta novamente a Grcia antiga, sobretudo aos estoicos. E foi bebendo dessa fonte que Benedito Espinosa concebeu a Deus como a substncia que no pode criar a si mesma, mas que gerou tudo o mais a partir de si. Esta uma bela sntese para um questionamento ancestral, e exatamente por isso Espinosa at hoje to admirado (apesar de ter sido excomungado do judasmo, sob a acusao curiosa de atesmo).Se no incio de sua tica Espinosa engendra o conceito de Deus de forma geomtrica e precisa, preciso se aventurar no restante do livro para perceber que o filsofo holands tambm acreditava que esse tal Deus era capaz de nos trazer profunda felicidade existencial, sobretudo quando alinhamos nossa intuio com a vontade do Cosmos. Era esse deslumbramento que Einstein sentia constantemente, ao desvelar os segredos da natureza.

Creem em uma causa primeira: sim.Creem em um Criador pessoal: no.Creem em intervenes sobrenaturais: no.Creem em revelaes divinas e dogmas: no.PandesmoO pandesmo nasceu da fuso do pantesmo com o desmo, e se trata de um concepo divina do Cosmos, que s pode ser compreendida atravs da razo.

PanentesmoO panentesmo um doutrina muito similar ao pantesmo, mas compreende que Deus o Cosmos e algo a mais. Ou seja, que o universo est contido em Deus, mas Deus no se limita apenas ao universo.

AgnosticismoThomas Henry Huxley, um bilogo ingls, cunhou o termo agnstico (do grego agnostos, ausncia do conhecimento) em 1869, mas o agnosticismo foi posteriormente melhor desenvolvido pelo filsofo alemo Immanuel Kant. No agnosticismo, admite-se que a questo ancestral acerca da natureza exata da primeira causa no pode ser resolvida com base no conhecimento atual da humanidade, e talvez jamais venha a ser efetivamente solucionada. Geralmente isso significa apenas que os agnsticos se posicionam com ceticismo em relao existncia de Deus: no podem afirmar que existe, nem tampouco que no existe. Ou, como dizia Carl Sagan, um grande agnstico: a ausncia da evidncia no a evidncia da ausncia.O agnosticismo possu algumas vertentes interessantes: os fidestas creem que essa mesma questo da primeira causa realmente no pode ser resolvida pela razo, mas sim pela f. Tambm possvel ser um agnstico testa que cr em Deus, mas no cr que pode compreend-lo; ou ainda, bem mais comum, um agnstico atesta que no cr em Deus, embora tampouco afirme que no exista.Se formos considerar a essncia do ceticismo filosfico, para um ctico s mesmo possvel ser um agnstico, h menos que este ctico tenha passado por experincias religiosas subjetivas, e que por conta delas tenha passado a crer em Deus.

Creem em uma causa primeira: geralmente sim, embora no saibam resolve-la.Creem em um Criador pessoal: no (exceto no fidesmo).Creem em intervenes sobrenaturais: no (exceto no fidesmo).Creem em revelaes divinas e dogmas: no (exceto no fidesmo).um ateu moderno no v desgnio no universo

AtesmoEm sua origem antiga, o atesmo (do grego atheos, ausncia de Deus) sempre foi um termo profundamente arraigado na religio, visto que usualmente significava a negao dos deuses e prticas religiosas locais. Claro que o atesmo na antiguidade tambm poderia significar literalmente a descrena em todo e qualquer deus, mas esses casos eram muitssimo raros. Mesmo grandes profetas e filsofos foram acusados de atesmo, a despeito de sua bvia crena em Deus ou em deuses, dentre eles contamos at mesmo Scrates e Jesus Cristo.Com o passar dos sculos e, sobretudo, com o aflorar das cincias naturais aps o Iluminismo, o atesmo em seu sentido de descrena total em Deus passou a ser cada vez mais comum. Teoricamente, aquele que se declara ateu na era moderna estar afirmando categoricamente que no existe um Criador, e tambm geralmente poderemos adicionar afirmativa: tampouco existe uma causa primeira com objetivo definido. Ou seja, um ateu moderno no v sentido ou desgnio divino no universo.Mas esse tipo de definio do pargrafo acima no compartilhado por todos, tampouco pelos prprios ateus e h muitos ateus que se colocam, em realidade, como agnsticos, ou agnsticos atestas (ver acima), apesar de se definirem apenas como ateus. Esse tipo de afirmao gera muitos desentendimentos, pois h muitos testas e mesmo destas que se sentem ultrajados com o fato de algum se sentir na condio de afirmar que no existe um Criador nem um sentido para a causa primeira muito embora nem sempre seja o que algum que se autointitule ateu queira realmente dizer.Em suma, h muitos agnsticos que gostam de se dizer ateus apenas para se colocarem ainda mais claramente em oposio s concepes testas, sobretudo aquelas originrias das doutrinas dogmticas.

Creem em uma causa primeira: por vezes sim, embora em todos os casos neguem um sentido ou desgnio divino no universo.Creem em um Criador pessoal: no, e por vezes podem ter certeza que no existe Criador algum.Creem em intervenes sobrenaturais: no.Creem em revelaes divinas e dogmas: no.AntitesmoO antitesmo (alguns chamam de neo atesmo ou novo atesmo) uma vertente moderna do atesmo que no se contenta em apenas se declarar atesta, como critica veementemente o tesmo e, por vezes, atua de forma militante, tentando convencer as pessoas de que Deus no existe. Embora os antitestas provavelmente entendam a si mesmos como evangelizadores da cincia e do racionalismo, eles na prtica lembram muito mais uma verso distorcida dos prprios evangelizadores testas.

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Observao (1): preciso sempre lembrar que a cincia no ideologia ou doutrina, no materialista nem espiritualista, monista ou dualista, testa ou atesta. A cincia to somente o conhecimento da natureza detectvel, e o estudo de seus mecanismos. H muitos grandes cientistas da histria que eram testas, destas, pantestas, etc.

Observao (2): Embora um testa fundamentalista provavelmente me julgue um ateu, e um antitesta radical provavelmente me julgue um testa, eu na realidade estou situado mais ou menos entre o Pantesmo, o Desmo e o Pandesmo.

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Veja tambm o artigo Monismos e dualismos, que trata da natureza da menteCrdito da foto: Brian David Stevens/Corbis