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115 A história da racionalidade ocidental é marcada por seu embate contra o mito e a imaginação, encarados costumeiramente como produtos de uma irraciona- lidade desvairada. A ciência e o pensamento racional afirmaram, sob o influxo das poderosas forças da modernização, sua superioridade sobre essas expressões de uma infância da humanidade. Superadas as fantasias irresponsáveis do imaginário mítico, ciência e tecnologia viriam assim decretar a vitória final da razão no apogeu da modernidade. Mas a história tomou um rumo inesperado e, como bem adverte Michel Maffesoli, o misterioso passou a ser atuante “justamente naquilo que pare- ce querer excluí-lo! Seja nas práticas da vida cotidiana ou nos arcanos do processo de conhecimento, tal o retorno do recalcado, o fictício perfura o real, tornando-o singularmente mais atraente” (1984: 65). O misterioso, o mítico e o imaginário retornaram, portanto, no seio dos do- mínios onde precisamente não poderiam ou deveriam penetrar: nos discursos sobre A tecnoreligião e o sujeito pneumático no imaginário da cibercultura 1 Erick Felinto Yet I am the necessary Angel of the earth, since, in my sight, you see the earth again, cleared of its stiff and stubborn, man-locked set, and, in my hearing, you hear its tragic drone. (Wallace Stevens, Angel Surrounded by Paysans). Ein jeder Engel ist schrecklich. (Rainer Maria Rilke, Duineser Elegien). A los intelectuales ciberculturales que no desisten del pensamiento crítico. (Andoni Alonso e Iñaki Arzoz, da dedicatória de La Nueva Ciudad de Dios). ALCEU - v.6 - n.12 - p. 115 a 125 - jan./jun. 2006 artigo 9.indd 115 21/11/2006 15:27:32

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Sobre novas teses acerca da Inteligência artificial.

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    A histria da racionalidade ocidental marcada por seu embate contra o mito e a imaginao, encarados costumeiramente como produtos de uma irraciona-lidade desvairada. A cincia e o pensamento racional afirmaram, sob o influxo das poderosas foras da modernizao, sua superioridade sobre essas expresses de uma infncia da humanidade. Superadas as fantasias irresponsveis do imaginrio mtico, cincia e tecnologia viriam assim decretar a vitria final da razo no apogeu da modernidade. Mas a histria tomou um rumo inesperado e, como bem adverte Michel Maffesoli, o misterioso passou a ser atuante justamente naquilo que pare-ce querer exclu-lo! Seja nas prticas da vida cotidiana ou nos arcanos do processo de conhecimento, tal o retorno do recalcado, o fictcio perfura o real, tornando-o singularmente mais atraente (1984: 65).

    O misterioso, o mtico e o imaginrio retornaram, portanto, no seio dos do-mnios onde precisamente no poderiam ou deveriam penetrar: nos discursos sobre

    A tecnoreligio e o sujeito pneumticono imaginrio da cibercultura1

    Erick Felinto

    Yet I am the necessary Angel of the earth, since, in my sight, you see the earth again, cleared of its stiff and stubborn, man-locked set, and, in my hearing, you hear its tragic drone.

    (Wallace Stevens, Angel Surrounded by Paysans).

    Ein jeder Engel ist schrecklich.(Rainer Maria Rilke, Duineser Elegien).

    A los intelectuales ciberculturales que no desisten del pensamiento crtico.(Andoni Alonso e Iaki Arzoz, da dedicatria de

    La Nueva Ciudad de Dios).

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    a cincia e a tecnologia. Como um fantasma que insiste em voltar e revelar uma fala que foi reprimida (Hetherington, 2001), como um revenant espantoso, o mito desgua incessantemente nas represas da tecnocincia contempornea. Fantasma que, de fato, seduz ao mesmo tempo em que assusta. No cerne de narrativas contemporneas que defendem a supremacia da cincia e o poder sem limites da tecnologia, o imaginrio vem constituir uma fala parasitria corroendo a razo e promovendo o mistrio e o mtico. Difcil no se surpreender diante dessa inesperada aliana. Ela no fantasia de uns poucos sonhadores apaixonados por cenrios pr-modernos, mas proposta de cientistas e scholars nas mais diversas reas do conhecimento. Em obras que vo da crtica literria fsica, passando pela filosofia e pela biologia, o imaginrio mtico se exprime com um vigor inesperado. O que dizer, pois, de um livro como The Physics of Immortality (1995), do respeitado fsico Frank J. Tippler, onde se prope estabelecer profundas relaes entre a cosmologia moderna e as tradicionais vises religiosas sobre a divindade e a ressurreio dos mortos? Ou do libelo do igualmente respeitado hebrasta Richard Eliott Friedman, The Disappearance of God (1995), no qual se sugere uma nova forma de religio universal, misto paradoxal de cincia, misticismo e nietzschianismo? A lista pode continuar, passando pelo espantoso panfleto de Harold Bloom, Omens of Millennium (1996), em que a experincia esttica e a crtica literria se transformam no fundamento para a proposio de um gnosticismo renovado que, segundo Bloom, j estaria mesmo na base das grandes tradies religiosas norte-americanas; ou ento o curioso La Structure Absolue (1965), do filsofo Raymond Abellio, ex-aluno dos clebres seminrios de Alexandre Kojve, agora convertido em gnstico proponente de uma filosofia onde a fenomenologia de Husserl se encontra com a mstica judaica e com as tradies religiosas da ndia.

    No campo do discurso cientfico, essa integrao do racional e do mtico grande sonho de todo romantismo foi denunciada com rigor e clareza pela epistemloga Dominique Terr-Fornacciari. O fenmeno da aproximao entre cincia e mstica, ali definido como as npcias de Apolo e Dioniso descrito como a penetrao de vetores de irracionalidade, envolvendo dimenses retricas, tericas e polticas (1991: 12). Essa paradoxal aliana entre razo e imaginao responsvel pela produo de libelos em favor da sacralizao da cincia ou da cientifizao do sagrado, como no caso dos populares livros de Fritjoff Capra. E, se j quisermos nos limitar ao horizonte especfico da cibercultura, o ensaio-fico de Andoni Alonso e Iaki Arzoz, La nueva ciudad de Dios, registra e critica o surgimento de um impulso e de um discurso tecno-hermticos na literatura cibercultural contempornea (2002). De forma mais tradicional e comprometida com o discurso acadmico, Erik Davis tambm mapeia, em seu Techgnosis (1998), o vasto conjunto das imagens e metforas religiosas que assolam as atuais ciberutopias.

    Neste trabalho, segundo a conciso aqui exigida, pretendo limitar-me a somen-te alguns aspectos do complexo e intrigante fenmeno da tecnoreligio. Em especial,

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    dedico-me anlise do que sugiro nomear como o sujeito pneumtico do imaginrio cibercultural. O termo, que sem dvida ir soar divertido aos nossos ouvidos, tem origem gnstica, e sua escolha no infundada. Nos primeiros tempos da difuso do Cristianismo nas regies orientais do vasto Imprio Romano, ir florescer um conjunto de seitas sincrticas combinando idias crists, neoplatonismo e as reli-gies de mistrios pags. Esse conjunto de seitas designado genericamente como gnosticismo, j que todas se baseavam fundamentalmente na idia da posse de um conhecimento secreto (gnosis) como forma de salvao espiritual. O gnosticismo foi largamente estudado por filsofos e historiadores da religio como um dos fen-menos mais intrigantes do mundo antigo (e qui, tambm, sob certos aspectos, do moderno)2. Os gnsticos tinham horror matria e criam na necessidade da supe-rao do corpo fsico, no qual a verdadeira essncia do homem estaria aprisionada uma idia que lembra o clssico calembour platnico entre as palavras soma (corpo) e sema (priso). Essa superao dos limites corporais poderia ser realizada por uma categoria especial de sujeitos, no interior das prticas religiosas do gnosticismo. Como explica Guillermo Fraile:

    Os gnsticos tinham a pretenso aristocrtica de elevar-se por cima do vulgo. Dividiam os homens em materiais (choicum), psquicos ou animais e pneumticos ou espirituais. Os ltimos participam de uma natureza de ordem superior, qual corresponde um conhecimento mais elevado que o da f (gnosis, pistis sophia), inacessvel ao comum dos homens e reservado a uma minoria privi-legiada (1960: 92).

    A aproximao entre gnose, tecnocincia e cibercultura tambm foi sugeri-da anteriormente por estudiosos das mais diversas linhagens intelectuais, como o socilogo Hermnio Martins ou o j mencionado crtico cultural Erik Davis. Para este ltimo, a tecnognose pode ser definida como a histria secreta dos impulsos msticos que continuam a impulsionar e sustentar a obsesso do mundo ocidental com a tecnologia, e especialmente com suas tecnolologias de comunicao (1998: 2). Para o primeiro, certas tendncias do pensamento cibercultural (por exemplo, o projeto tecnofeminista deo ciborgue de Donna Haraway) retomam o sonho gnstico de transcender a dispora dos seres (1996: 191).

    Nesse sentido, torna-se possvel falar em uma religio da tecnologia, como faz o historiador David Noble (1999), mas, de maneira ainda mais expressiva, em uma tecnoreligiosidade prpria da imaginao da cibercultura. Um culto com seus prprios sacerdotes, doutrinas e objetos de adorao. Figura central desse culto religioso a representao de uma forma de subjetividade liberta dos limites do corpo, em ltima instncia um self quase divino e de natureza espiritual (pneuma) anloga dos deten-tores da pistis sophia gnstica. Na literatura cibercultural, essa subjetividade aparece

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    freqentemente traduzida com a metfora do anjo. assim que Nicole Stenger, por exemplo, imagina o navegante do ciberespao: todos ns nos tornaremos anjos, e pela eternidade! Anjos altamente instveis, hermafroditas, inesquecveis em termos de uma memria computadorizada (1992: 52). O ciberespao , ento, caracteri-zado como territrio sagrado (Stengers, 1992: 54), novo den (Benedikt, 1992: 13) ou Nova Jerusalm Celestial (Wertheim, 1999: 18 e ss.) onde vagam livremente os corpos anglicos dos internautas conectados em rede:

    Meu corpo anglico no mundo virtual exprime minha contribuio para a inteligncia coletiva, ou minha postura singular em relao ao saber comum. Ora, esse corpo anglico no atinge jamais a extenso completa do mundo virtual que o contm e que como o Anjo do coletivo (Lvy, 1998: 93).

    A passagem certamente to hermtica quanto as metforas que emprega: tanto no sentido de ser intrincada, obscura (ou em ltima instncia incompreens-vel), como no sentido de ser tributria de uma gnose nos mesmos moldes daquela tributria do lendrio Hermes Trismegisto, inventor de inumerveis tecnologias espirituais e materiais.

    Um dos traos mais comuns do uso de metforas como a do anjo sua impreciso. Essa indefinio no uma qualidade acidental, mas revela, na verda-de, uma prtica retrica tpica de certos discursos ciberculturais e tambm dos discursos esotricos ou religiosos. Na descrio de realidades numinosas, pode-se atuar apenas por aproximao tateante e analogias vagas. O objeto a ser apresentado sempre se subtrai aos poderes, necessariamente limitados, da linguagem humana. John Perry Barlow, por exemplo, utiliza a figura do anjo para definir qualquer enti-dade informacional (Zaleski, 1997: 39), metfora que de fato no parece esclarecer grandemente o conceito, mas que possui sem dvida grande fora potica e sugere os grandes poderes da informao3.

    Na antiga cultura hebraica, a figura do anjo aparecia como uma espcie de enviado ou mesmo como um aspecto visvel da divindade. Na verdade, a palavra hebraica mlach, derivada da raiz laach, delegar, enviar, significava simplesmente mensageiro.4 Friedman nota que muitas narrativas bblicas que mencionam a ao de anjos confundem momentos em que o anjo fala por Deus com momentos onde o prprio Deus parece se manifestar diretamente. Essa confuso se desfaz, segundo Friedman, se aceitamos a idia de que os anjos no so criaturas independentes de Deus, mas so antes concebidas como expresses da presena de Deus (1995: 12)5. Tambm nossos anjos ciberespaciais podem ser encarados como uma forma de apre-sentao do divino, ou pelo menos como expresses de um desejo de divinizao. A subjetividade pneumtica no se contenta em cumprir o papel de mensageira da grande divindade informacional, ela almeja tornar-se um anlogo do divino. Eis o

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    sonho de Pierre Lvy: por que no tentar constituir intelectuais coletivos capazes de atingir a liberdade divina? (1998: 100).

    A figura mtica da subjetividade pneumtica carrega consigo uma srie de mitos ancilares, todos de algum modo conectados idia da superao dos limites impostos pelo corpo e da divinizao da inteligncia em rede. Um dos mais inte-ressantes o que se pode definir como mito da comunicao total. Anjos incorpreos vagando pelo ciberespao no encontram barreira alguma para estabelecer conexes e comunicar-se. Quando nos comunicamos atravs do computador, imagina Stewart Brand, nos relacionamos como anjos (...) como essas inteligncias incorporais de grande intimidade (apud Dery, 1996: 56). A intimidade possibilitada por essa forma de comunicao angelical se apresenta, de fato, como absoluta. Ela implica o desa-parecimento das prprias fronteiras do ego, no sentido de resultar em uma entidade prxima do que Lvy denomina inteligncia coletiva. Nesse sentido, o mito pe em jogo tambm a prpria noo de mediao, j que o ideal da comunicao total envolve o desaparecimento do meio. Imediatez, instantaneidade, intimidade: eis as palavras de ordem da mitologia da comunicao total. Aquilo que i-mediato de natureza espiritual. Sem o meio, sem a dureza da matria, os anjos ciberespaciais passeiam livremente pelos virtualmente infinitos domnios da rede. Se compartilhar-mos da tese de Bolter e Grusin, nossa cultura tecnolgica sofre do fascnio pelo tema da imediao. E, mais que nunca, graas s novas tecnologias digitais, a hipermediao equivale imediao. Desejamos desfazermo-nos de nossos meios no ato mesmo de multiplic-los incessantemente: a lgica da imediao dita que o prprio meio deve desaparecer e deixar-nos em presena da coisa representada (2002: 9).

    Mas ser que o mito da comunicao total ainda pode ser visto como uma real expresso do desejo comunicacional? Comunicao implica alteridade, a relao com a diferena e a manuteno de certa distncia. As fantasias da comunicao angelical conduzem ao desaparecimento das identidades definidas e, em ltima instncia, prpria noo de singularidade. Como nos antigos grandes sonhos de unidade mstica, a inteligncia coletiva pode apenas dissipar toda alteridade num mar absoluto de indiferena. Os msticos descreveram essa experincia do desapa-recimento de si e da vivncia do uno: noche oscura del alma, em San Juan de la Cruz, bernichts, em ngelus Silesius. E no existe linguagem apropriada para descrev-la, pois incomunicvel. A unidade absoluta no permite o discurso; pelo contrrio, abole-o, j que no todo no existe a necessidade (ou possibilidade) de dizer coisa alguma. O anjo, mediador entre Deus e o homem, tambm nasce desse desejo de imediao, pois no possui identidade prpria, pois pode ser entendido como ma-nifestao da prpria divindade: mdia imediata. Ele certamente transmite algo, mas trata-se de um algo imperativo, que pouco d margem resposta ou ao dilogo. O anjo expresso de uma voz absoluta, e, nesse sentido, ele anula a possibilidade da comunicao para impor uma palavra total, nica, final. A iluso da comunicao

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    total presente na tecnocultura contempornea tambm denunciada por Lucien Sfez em outros termos:

    Em um universo onde tudo comunica, sem que se saiba a origem da emis-so, sem que se possa determinar quem fala, seja o mundo tcnico ou ns mesmos, nesse universo sem hierarquias, exceto as emaranhadas, no qual a base o cimo, a comunicao morre por excesso de comunicao e se acaba numa interminvel agonia de espirais. a isso que nomeio como tautismo, neologismo que contrai autismo e tautologia, embora evocando a totalidade, o totalitarismo (1988: 32-33).

    Outro mito-apndice do imaginrio do anjo ciberespacial a fantasia da mobi-lidade total. Imerso em um mundo sem fronteiras, sem limites, o ciberanjo desfruta da mais absoluta liberdade de movimentos. Como subjetividade pneumtica, pode deslocar-se ou estender-se vontade; pode at mesmo almejar a ubiqidade. Na verdade, no se trata apenas de mobilidade, seno da possibilidade de modelar o espao circundante. Como assinala Margaret Morse, no imaginrio do ciberes-pao e da subjetividade digital, reside uma resposta ao comando: D-me um outro mundo! (1998: 183). E com um sentido evidente de assombro, Morse narra sua primeira experincia de realidade virtual como a descoberta de um espao responsivo. O espao digital responde aos comandos do anjo, seu mover-se um modelar da-quilo que o cerca. Como descreve Marcos Novak, o ciberespao um habitat para a imaginao (1992: 225). o cu etreo e fludico prprio morada dos anjos.

    A mitologia angelical, que de formas diversas esteve desde sempre presente nas mais variadas tradies religiosas, parece fortalecer-se em pocas de crise aguda. Essa, pelo menos, a tese de Harold Bloom, que encara a figura anglica como um sinal do milnio (omens of millennium), como algo que se manifesta nos horizontes do sonho, da morte e da crise. Neste agudo momento de grandes transformaes e agonias culturais, a mitologia dos anjos ressurge com fora total, ainda que muitas vezes de forma corrompida pela cultura popular. Para Bloom, a figura autntica do anjo no pode ser reduzida imagem do simples guardio propalada pela cultura massiva; ele deve ser, antes, o portador de mensagens profticas e profundas vises (1996: 42). Nesse sentido, a metfora do anjo ciberespacial talvez pudesse ser en-carada como uma expresso (digital) desse autntico significado (um significado gnstico, como destaca Bloom) do smbolo angelical. Ele aponta, no mbito das fantasias tecnoreligiosas, para o aspecto visionrio atribudo a tecnologias como a do ciberespao (Lieb, 1998: 65). Mas mesmo nesse sentido, o novo anjo acaba sendo apenas um mulo bastardo do original. Ele mais sintoma, aspecto de um processo de mistificao ou fetichizao do tecnolgico do que mensageiro proftico que revela a essncia do tecnolgico. No revelao, mera informao.

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    A viso trazida pela figura da subjetividade pneumtica do ciberespao, pelo corpo anglico ou inteligncia plural de Lvy, parece traduzir um profundo anseio da cultura contempornea por uma forma de espao mental coletivo, expresso, por exemplo, no crescente interesse por fenmenos paranormais e fices que lidam com tais temas. Como afirma Margaret Wertheim, um dos grandes apelos do cibe-respao o de oferecer uma arena coletiva imaterial no aps a morte, mas no aqui e agora da terra (1999: 234). Mas a pretenso final das imagens que freqentemente povoam os entusiastas discursos sobre o ciberespao aponta para expectativas de transcendncia do aqui e agora, de superao do corpo e dos limites espao-tem-porais por ele impostos. Essa expectativa se fundamenta, assim, nos princpios de desmaterializao corprea e extenso da conscincia (chegando mesmo, como vimos, ao rompimento das fronteiras da conscincia individual). De fato, a maior parte dos cibermitos, seno todos eles, parecem articular-se em torno do tradicio-nal par corpo/esprito ou substncia extensa e substncia pensante, na terminologia cartesiana. A um horror da materialidade tipicamente gnstico, soma-se o desejo da expanso infinita ou do rompimento dos limites a prazerosa confuso de fron-teiras, como define Donna Haraway (2000: 42). Esse imaginrio impede pensar o importante impacto material das tecnologias no ambiente cultural e nos processos de acoplagem entre organismo e mquina, impacto explorado por teorias como a das materialidades da comunicao (Gumbrecht e Pfeiffer, 1994). A tecnologia imaginada como algo progressivamente invisvel, imaterial e espiritual, em lugar de ser pensada na sua concretude num ambiente de sujeitos igualmente materiais. Tal imaginrio enfraquece, assim, qualquer perspectiva que reconhea e celebre a finitude humana como uma condio do ser humano, e que entenda a vida humana como embebida em um mundo material de grande complexidade, do qual depen-demos continuamente para nossa sobrevivncia (Hayles, 1999: 5).

    Na retrica peculiar desses discursos ciberutpicos, o sujeito alegremente se despoja do corpo para vivenciar a fantasia de um poder sem limites. Anlogo do divino, ele constri e reconstri mundos a seu bel prazer. De que outro modo como entender o acento extraordinariamente gnstico das palavras de William Covino?

    Entro na Net teclando o exato cdigo requerido por meu software de trans-misso, e materializo as partes desse imenso corpo ciberespacial atravs de cdigos adicionais. Assim, ao teclar ukanaix.cc.ukans.edu para acesso ao domnio hipertextual da Internet conhecido como World Wide Web, eu imito o poder invocatrio do adepto medieval, trazendo luz o mundo virtual (apud Lieb, 1998: 69).

    Demiurgo tecnolgico, o sujeito pneumtico talvez constitua uma das mais paradoxais conseqncias do declnio da interioridade na cultura contempornea.

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    Reao radical ao enfraquecimento ou fragmentao da subjetividade, que deseja desesperadamente reter pelo menos uma fantasia de agncia. Nesse sentido, como sugere Francisco Rdiger, o discurso da liberdade identitria na Internet e da mul-tiplicidade dos eus na rede pode em realidade constituir expresso disfarada de um desejo de individualidade ainda mais poderoso e solipsista (2002: esp. 112-134). Numa perspectiva bastante sombria, o sujeito coletivo das redes seria assim um eu absoluto, que deseja constituir-se em oposio mesmo s expresses da alteridade. Esse sujeito muitas vezes limita-se a ratificar o mesmo, no sentido em que, como conclui um estudo de etnografia da internet citado por Rdiger, os internautas, em sua maioria, no conseguem abrir-se ao outro (Rdiger, 2002: 127). Quando lidos por meio de um rigoroso processo de desmitologizao, certos discursos do imagin-rio cibercultural expressam, desse modo, um lado menos evidente (mas qui mais autntico) das prticas de socializao virtual: as fantasias de poder de um sujeito adestrado nas vivncias tradicionais do mundo capitalista.

    A gnose se constitua numa religiosidade elitista, prtica inicitica reservada a uns poucos privilegiados, os homens pneumticos. Os sonhos da ciberutopia tam-bm apontam freqentemente para um impulso de excluso. A aptido tecnolgica, o acesso aos instrumentos informticos, a familiaridade com o mundo da tcnica e a capacidade de visualizar o futuro constituem os traos necessrios de uma nova casta de sujeitos pneumticos. A tecnoreligio constitui, assim, o reino perigoso onde, segundo David Noble, a empresa tecnolgica desviada das finalidades humanas e mundanas que deveriam guiar seu extraordinrio potencial para tornar-se uma forma de irracionalismo totalitarista (1999: 6). Nesse contexto, a figura do sujeito pneumtico uma fantasia que devemos combater impiedosamente. O imagin-rio, a metfora, a analogia podem tanto constituir instrumentos de compreenso e liberao como prises nas quais nos acomodamos em permanecer no mundo dos devaneios egocntricos. Como diz Margaret Wertheim, Como um subconjunto da imaginao cientfica, a ciberimaginao est se tornando uma poderosa fora na modelagem de nosso mundo, e faramos bem se nos mantivssemos resolutamente atentos ao seu funcionamento (1999: 257).

    O estudo disso que poderamos definir como um imaginrio tecnolgico deve constituir o primeiro passo na elaborao de uma viso mais perspectivada da tecnologia em nosso mundo de espantosas e rpidas transformaes. Como lembra Lucien Sfez, as metforas no so nada sem os contextos polticos e metafsicos que elas defendem. Tampouco esqueamos que elas no passam de instrumentos, desmesuradamente glorificados pelos efeitos da moda (1988: 26). A crtica da metfora do anjo ciberespacial e do sujeito incorporal revelam a face gnstica do que chamei do modelo de subjetividade pneumtica. Essa subjetividade, na forma como imaginada pelas fantasias ciberculturais, no representa necessariamente um processo de libertao identitria ou um exerccio de criatividade ilimitada por parte

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    dos indivduos. Como adverte Anne Balsamo, a eliminao das limitaes corporais no implica que as pessoas iro exercer a liberdade de ser qualquer outro tipo de corpo que no aquele do qual elas j desfrutam ou aquele que desejam (2002: 496). A subjetividade pneumtica menos expresso de uma esttica do ser livremente do que manifestao de um querer dirigido a determinado objetivo. Um querer que, em ltima instncia, nsia de totalidade e domnio.

    O anjo do imaginrio cibercultural , portanto, um anjo cado, desejoso de criar seu prprio mundo para assim poder contornar as recusas que este lhe impe. Diferentemente do Angelus Novus da alegoria de Benjamin nas Teses sobre o conceito de Histria, o anjo ciberespacial no deseja redimir as runas do passado ou recuperar a histria dos vencidos. Ele s consegue ter a viso de um futuro utpico, dominado pelos mitos do fim da histria e pela idia de um novo Paraso virtual onde nossa grande tarefa no ser mais adorar a divindade, mas cri-la6.

    Abordando o tema da metfora anglica na cibercultura, Reinhold Esterbauer disseca as semelhanas e diferenas entre os anjos da tradio religiosa (pensados com base nas teses da Summa Theologica de Aquino) e suas novas verses digitais. Dentre as diferenas, talvez a mais importante seja o esvaziamento do anjo, que deixa de ser portador de uma mensagem significante para tornar-se mero transmissor de informao. Com os novos meios, chegamos ao ponto em que (...) os contedos se volatilizam e anjos vazios entram em atividade como mensageiros que no encontram receptores nem para a sua informao, muito menos ouvintes para seu discurso (2001: 150). So anjos solipsistas, imersos em si mesmos e incapazes de enfrentar a alteridade. So, enfim, os sujeitos ideais de uma religio em que a criatura torna-se a divindade do criador.

    Erick FelintoProfessor da UERJ

    Notas1. Este trabalho foi apresentado, em forma simplificada, na IX Conferncia Internacional da Agenda do Milnio, A subjetividade na cultura digital: o eu em rede, na Universidade Cndido Mendes, Rio de Janeiro, em maio de 2003.2. A lista extensa. Entre os maiores estudiosos da antiga gnose contam-se Elaine Pagels e Hans Jonas. Sobre o impacto da gnose na cultura do Ocidente, em suas dimenses sociais, polticas ou epistemolgicas, podemos citar as obras de Eric Voegelin, Giacomo Marramao e Hans Blumenberg.3. Um cibernauta assim aproxima hermetismo, figuras anglicas e cibercultura: As cincias ocultas visavam cooperar com as forces anglicas, de modo a promover o conhecimento. Os anjos das cincias ocultas eram os cavaleiros do Rosicrucianismo, ao passo que os anjos do ciberespao so os magos da informtica. A estria de Christian Rosenkreutz, a cidade de Cristianpolis e o tema do ciberespao esto,

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    portanto, intimamente ligados. Mihalache, Adrian, Cyberspace as utopia, disponvel em http://www.spark-online.com/january01/discourse/mihalache.html.4. Cf. o lxico hebreu-caldaico de Gesenius: Gesenius Hebrew and Chaldee Lexicon. Baker Books: Grand Rapids, 1993.5. curioso notar como Harold Bloom, cujas reflexes sobre os seres angelicais sero descritas adiante em detalhe, corrobora essa perspectiva: Eu notei que, freqentemente, eles [os anjos] so substitutos do redator [bblico] para ousadas aparies do prprio Deus diante de homens (1996: 45).6. Cf. a declarao de Arthur C. Clarck: A histria chegar a um fim... Pode ser que nosso papel no planeta no seja adorar a Deus mas cri-lo (apud Dery, 1996: 30).

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    ResumoEste trabalho oferece uma anlise inicial de uma das metforas mais correntes do discurso contemporneo sobre a cibercultura: a imagem do anjo do ciberespao. Ao comparar o cibernauta com um anjo que navega pelo empreo do ciberespao, autores como Lvy e Benedikt contribuem para uma mistificao do potencial espiritual das novas tecnologias, deslocando assim o problema da materialidade tcnica para uma espcie de afirmao do sublime tecnolgico.

    Palavras-chaveCiberespao; Anjo; Imaginrio tecnolgico; Cibercultura.

    AbstractThis article offers a preliminary analisys of the metaphor of the angel of cyberspace, one of the most popular tropes of contemporary discourses on cyberculture. By comparing the cybernaut to an angel that travels trough cyberspace empyreum, authors such as Lvy and Benedikt contribute to mystify the spiritual potentiality of new technologies. In so doing, they dismiss the issue of technical materiality, in an attempt to affirm the sublime character of contemporary digital technologies.

    Key-wordsCyberspace; Angel; Technological imaginary; Cyberculture.

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