Teatro performativo e pedagogia - Josette Féral

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    Josette Fral: Inicialmente, eu gostaria dedizer que eu no sou uma pedagoga, ou seja,eu no dirijo os atores. Logo, um pouco dif-cil para mim falar de pedagogia quando nonos confrontamos com a cena e com os atores.Mas observo, em contrapartida, a cena pedag-gica. Penso que verdade que grandes pedago-gos como Stanislavski, Meyerhold, e tambmDullin, Coupeau, Jouvet modificaram o jogo doator. Mas acredito tambm que, antes de mo-dificar o jogo do ator e antes de fazer uma pe-dagogia, preciso ter uma viso nova do teatro. quando a viso de teatro muda, que se procu-ra uma nova pedagogia do teatro que respondea essa nova viso. Ora, Stanislavski e Meyerholdestavam na histria do teatro num momentoem que o teatro estava em mutao e eles con-triburam, por sua vez, em faz-lo mudar. Ocor-reu o mesmo com Apia, Craig e Coupeau. Elesviveram num momento em que a viso de tea-tro estava mudando, uma viso que eles contri-buram igualmente para modificar. Mas comomarcar as filiaes? Como saber exatamentecomo efetuaram-se as influncias? As causas eos efeitos so s vezes difceis de analisar de ma-

    neira seqencial, mas o fato : as novas pedago-gias so indissociveis de novas vises de teatro.

    Essa observao desdobra-se hoje numaconstatao perturbante: no h mais hoje emdia, h poucos, pedagogos com a mesma esta-tura daqueles de antigamente. Diria ainda mais:no h mais pensamento coletivo ou pensamen-to nico visando uma pedagogia do teatro. Htrinta anos somente, o mundo do teatro contavacom referncias comuns em matria de teatro ede pedagogia do teatro. Por exemplo, nos anossessenta, as principais referncias eram Brecht,Artaud, depois houve Grotowski, Brook, Barbamesmo se cada uma dessas vises no impuses-se o mesmo gnero de pedagogia. Hoje, eu di-ria voluntariamente que algum como Vassiliev,por exemplo, visto como pedagogo e tenta es-tabelecer os fundamentos de uma pedagogia te-atral diferente, mesmo se ela continua ligada viso de Stanislavski. A grande diferena dasprticas de hoje, em relao quelas de antiga-

    mente, que os grandes mestres desaparecerame as formaes diversificaram-se. Elas passam,daqui em diante, mais frequentemente pelas es-colas e pelos programas de formao que nelasso dados, mas os modelos so cada vez mais osencenadores, que no so todos pedagogos, em-bora s vezes eles tornem-se pedagogos involun-tariamente. em razo desse lugar preponde-rante tomado pelos encenadores hoje que eudecidi empreender toda uma srie de entrevis-tas com eles. Meu objetivo inicial era ver quaiseram as teorias do jogo dominantes no panora-ma atual. Porm, dei-me dei conta de que nohavia mais teorias do jogo dominantes, e queos modelos eram to diversificados quanto asdiferentes prticas e estticas dos encenadoresque se destacam. Ora, esses encenadores no es-creviam, ao menos essa era a situao quandocomecei, no incio dos anos oitenta. Desde en-to, a situao mudou um pouco visto que apa-receram muitos livros de encenadores. Mesmoalgum como Mnouchkine, a quem uma vez,h alguns anos, perguntei por que ela no colo-cava suas idias sobre o teatro no papel, me res-pondeu que tudo o que ela poderia ter dito j

    havia sido escrito, particularmente por Zami.Da vem a ideia de que hoje, a formao nopassa somente pela pedagogia voltaremos adisso mas que ela passa tambm e, sobretudopelo convvio com os encenadores. Alis, mui-tos encenadores formam ou formaram seusatores. Mnouchkine, por exemplo, que acabode mencionar, mas tambm Peter Brook, PeterSellars, Elizabeth Lecompte... Certas formaesso especficas a certas estticas. o caso dosatores do Soleil sobre os quais se dizia no fazmuito tempo que eles eram formados apenaspara uma tcnica de jogo. Alguns deles prova-ram o contrrio. Simon Abkarian, por exemplo,tem uma carreira impressionante no teatro e nocinema depois de ter sado do Soleil. Os atoresde Peter Brook so um pouco diferentes, na me-dida em que eles integraram, absorveram per-feitamente a pedagogia de seu encenador, tor-nando-se, por sua vez, pedagogos. Em todos

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    esses casos, acredito que se trata de uma boa for-mao, uma formao que passa pelo mestre.

    Podemos dizer tratar-se de uma formaodominante na paisagem teatral nos dias de hoje?No estou certa. De fato, as estruturas teatraisfazem com que no panorama atual haja poucascompanhias nas quais os atores esto sempre emtorno do mesmo encenador. Dentre as excees:Jan Lauwers tem sua prpria companhia, Eli-zabeth Lecompte (Wooster Group) ou DeborahWarner que trabalham as duas com seus pr-prios atores que as acompanham h muitosanos. Os atores que os cercam acabam sendoformados pelo encenador. Mas creio que, nessecaso, o trabalho da encenao no impe umapedagogia do teatro, mas, antes uma viso deteatro. essa viso que impe inicialmente cer-ta forma de fazer teatro e, secundariamente, cer-ta pedagogia.

    Sala Preta:A encenao performativa re-mete a uma nova forma de trabalho do ator,requer o desenvolvimento de novas competn-cias no s do ator, mas tambm dos demais ar-tistas da cena. Pensando nos artistas no Cana-d, o que voc poderia comentar sobre os

    experimentos cnicos nos quais as relaes pe-daggicas so o motor da criao cnica, mesmoquando a criao no acontece em uma Escola?

    Josette Fral:As novas estticas esto li-gadas s novas pedagogias? o sentido da suapergunta. A resposta difcil, porque h umagrande diversidade de artistas e de estticas. To-das (as estticas) e todos (os artistas) vm dehorizontes muito diferentes. evidente que asnovas estticas ou as estticas fortes sempre ne-cessitaram de novas tcnicas de jogo. Mas essastcnicas no eram radicalmente diferentes daspedagogias anteriores? Ou trata-se de uma apli-cao mais rigorosa das tcnicas de jogo j exis-tentes? Ainda assim, difcil de responder embloco, sem nuances. evidente que encena-dores como Mnouchkine, Wilson, Lepage,Lecompte tem, cada um sua maneira, impos-to novos atores em sintonia com suas vises deteatro. Foi o mesmo para Vitez, Kantor ouStrehler. Todo encenador cuja esttica distin-

    tiva acaba moldando o ator sua medida. Comomencionava acima, a viso de teatro queimpe uma nova pedagogia e no o contrrio.Pensar que uma nova pedagogia possa estar naorigem de novas formas teatrais parece-me, por-tanto, problemtico e pouco verossmil. Pergun-to-me mesmo se j houve na histria uma pe-dagogia que tenha sido primeira (original) ouseparada de uma viso de teatro. Que essa visode teatro exige uma nova pedagogia para reali-zar-se tambm uma evidncia, mas impor-tante sublinhar que essa pedagogia deve ter umafinalidade diferente de si mesma estar ligada auma vontade de reformar o teatro para podertomar toda sua fora, sem a qual ela corre o ris-co de limitar-se a treinar os atores para uma es-ttica j existente, o que no assim to mal,mas que no suficiente. Agora, se eu invertera questo inicial perguntando-me se o estadoatual do ensino do teatro, tal como ele ofere-cido nas escolas e nos conservatrios, permite aemergncia de novas estticas, responderia pro-vavelmente que no. Na grande maioria dos ca-sos, as formaes atuais do aos atores as com-petncias bsicas para subir no palco, mas -lhes

    necessrio, em seguida, completar suas forma-es com o trabalho junto a diversos encena-dores que usam sua competncia e trabalhamcom eles para responder a uma certa concepodo jogo e da cena. Os atores colocam suas com-petncias a servio do encenador e de sua viso.Essa viso pode repousar sobre um texto ou umespetculo representado ou ela pode estar vin-culada a uma viso mais vasta do que ou de-veria ser o teatro. este o papel dos grandesreformadores do teatro.

    As grandes reformas do teatro acontece-ram fora das escolas, junto aos mestres. Algunsdeles tiveram preocupaes pedaggicas refe-rentes ao teatro (Craig, Antoine, Stanislavski,Copeau, Dullin, Jouvet, Vitez, Mnouchkine),outros no (Kantor, Wilson, Lecompte, Lepa-ge). No entanto, tanto uns quanto outros reno-varam a paisagem teatral e modificaram profun-damente nosso modo de encar-lo.

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    Agora, de maneira mais concreta, numasrie de entrevistas que fiz com quase uma cen-tena de encenadores atuais sobre a formao queeles desejavam encontrar nos atores, constata-se que h quarenta anos muitos encenadorespreferiam trabalhar com atores que no tinhamformao, os mais recentes passaram a trabalharcom atores que tm uma formao e um bomconhecimento da tcnica a tal ponto que noocorre a um encenador hoje contratar um atorsem formao mnima. Essa tcnica serve debase e d uma liberdade ao ator que permite-lhe trabalhar todas as formas, inclusive as novasformas que emergem, como podem ser essasformas performativas das quais falamos. O quequer dizer que no preciso pensar que essasformas, pelo fato de serem novas, no necessi-tem de aprendizagem tcnica rigorosa. As tc-nicas de base (como andar, falar, projetar, estarpresente, estar escuta) continuam necessriasnas novas formas.

    Uma das questes interessantes colocadanas entrevistas diz respeito s qualidadesrequeridas aos atores pelos encenadores. Depoisda tcnica, que vem em primeiro lugar, eles pe-

    dem todos ao ator que ele saiba arriscar-se emcena, ter uma grande fora de proposies, lan-ar-se sem redes de proteo. Mnouchkine diz:nenhum ator, nenhum encenador far vocacreditar que possvel fazer alguma coisa comnada. Quer dizer que o trabalho repousa intei-ramente nas propostas do ator; o encenador nopode inventar no lugar do ator. De onde vemessa fora de proposio do ator? Sem dvidade sua formao, mas tambm de tudo o quecontribui para essa formao: o que ele leu, oque ele aprendeu, a curiosidade que ele conse-guiu desenvolver, sua capacidade de esquecer-se de si mesmo para estar aqui no momento pre-sente. Dessa necessidade de apagar o ego doator, todos os encenadores falam. Esse princ-

    pio atravessa as idades. Mas, h os efeitos demoda na formao. H conceitos cuja impor-tncia varia em funo das pocas; por exem-plo, o conceito de personagem. Certos encena-dores dizem hoje que no utilizam a noo depersonagem em seu trabalho com os atores. Elesdizem aos atores: faam as aes impostas pelotexto, digam as palavras. O personagem vai seconstituir na cabea do espectador. ele que vaifazer o trabalho. O ator no tem mais que cons-tituir um personagem. Ele deve se situar noimediatismo do presente da cena. Ao menos isso que dizem os encenadores. Do lado dos ato-res, o discurso diferente. Eles dizem precisardo personagem.

    Mas para todos, trata-se de executar aesem cena. Podemos falar de uma pedagogia dasaes fsicas como o reclamava Stanislavski emseus ltimos textos? Sem dvida. Remeto, nes-se caso, aos preceitos de Anne Bogart queedificou todo um mtodo de trabalho do ator apartir da teoria dos viewpoints. Trata-se de umprocesso de criao que permite trabalhar nocom personagens, nem mesmo com um textopr-construdo, mas com as aes em relao

    com o espao e o tempo circundantes.Sala Preta:Ainda sobre a questo do ator,

    tanto o Mtodo Repre, utilizado por RobertLepage, quanto a abordagem dos ViewpointsdeAnne Bogart, so exemplos de propostas meto-dolgicas de criao e aprendizagem. Voc vessas demandas por novas competncias ou tc-nicas para o ator do teatro performativo no m-bito da formao do ator no Canad?

    Josette Fral: No nas escolas. Essa de-manda vem habitualmente dos encenadores.

    Humberto:Em algum lugar do mundo?Josette Fral: Sim.Humberto: Onde?

    Josette Fral: Talvez noNew York Experi-mental Theatre Wing3. Em 2001, organizei em

    3 Experimental Theatre Wing um projeto do Department of Drama daTisch School of the Artsda NewYork University.

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    Josette Fral:Aqui, voc toca no verda-deiro problema: o das escolas de teatro e dosdocentes que nelas ensinam... As escolas tmmuito frequentemente, programas feitos emfuno do teatro existente. Seu objetivo for-mar os atores para o ofcio. Alguns, bem raros,escolheram previamente privilegiar uma formade teatro mais que outra, assim como a ErnstBusch Schule, sobre a qual falava agora a pouco.Seu primeiro cuidado tambm dar aos estu-dantes uma formao de base que lhes permi-tir atuar em diversas cenas. Eles aprendem,portanto, muito frequentemente, a interpretartextos, a trabalhar suas vozes, seus corpos... Aformao que eles recebem permanece, em mi-nha opinio, muito tradicional, exceto em al-guns casos isolados como os que j mencionei,Giessen, Experimental Theater Wing... Claramen-te, os programas tentam abrir um pouco a for-mao oferecendo oficinas diversificadas: N,Katakali,... como tentamos fazer na UQAM(Universit du Qubec Montral), embora bempouco, no conjunto. Essas oficinas pontuaispermitem aos atores familiarizarem-se com ou-tros modos de ver o jogo. Tudo isso permanece,

    contudo, muito parcial e insuficiente. A ques-to no tanto a recusa em abrir as formaes,mas a necessidade de dar aos estudantes umaformao de base que as escolas querem tocompletas quanto possvel, numa durao bemlimitada. Permanecem as oficinas que os atoresso levados a fazer fora das escolas para dar se-guimento sua formao. Quanto a uma for-mao especfica para o teatro performativo,no acredito que ela exista. Os atores chegaronela forosamente. Acredito que isso corres-ponda sensibilidade do mundo de hoje.

    Vernica Veloso: Ns, que somos profes-sores, devemos repensar a maneira de ensinarteatro no Conservatrio e reinvent-la? Obser-ve a dana, por exemplo: atualmente no ne-cessrio passar pela dana clssica para chegar dana contempornea.

    Josette Fral:Certamente. Os professo-res podem e devem rever o contedo de seuscursos para permanecerem atualizados. Eles o

    fazem geralmente, mesmo se frequentemente ainstituio em que trabalham muito resisten-te. H uma imagem que gosto muito de utili-zar para expressar a dificuldade de mudar asmentalidades dentro de um departamento, as-sim como os programas: sempre digo que mo-dificar um programa como ter que deslocarum dinossauro. Para mudar um plo, precisogirar o dinossauro. Quer dizer, a resistncia mudana enorme. Ela no vem somente dainstituio ou dos professores; vem do meio elemesmo. De fato, apesar de nosso interesse peloteatro performativo, ele no dominante. Asformas teatrais que encontramos em todos ospalcos so as formas tradicionais e esse teatromata o outro. O teatro performativo uma ilhanesse oceano do teatro tradicional. Claro queencenadores como Elizabeth Lecompte, BobWilson, Peter Sellars, Robert Lepage so conhe-cidos, mas eles representam apenas uma peque-na parcela de encenadores em relao multi-do dos outros, da vem sua importncia. Soos pioneiros, os reformadores, os inventores denovas formas, de novas estticas. No so ne-cessariamente grandes reformadores do teatro

    ou pedagogos, mas a maneira pela qual eles pra-ticam seu ofcio, sua inventividade, sua criativi-dade obriga-nos a pensar o teatro de outra ma-neira e, por sua vez, a formao. Mas para isso, preciso que ns frequentemos assiduamente oteatro; porm, as entrevistas que fiz provam queos encenadores assim como os atores vo muitopouco ao teatro.

    Aura Cunha: Os professores tambm...Josette Fral: Como eles podem, ento,

    seguir as novas formas? Ou mesmo simplesmen-te estar informados? Como eles podem entomodificar sua viso de teatro e, acima de tudo,sua pedagogia? O teatro que se faz e o teatroque se ensina devem estar ligados. Um informao outro, modifica o outro, de onde vem a ne-cessidade de seguir tudo o que se faz em suapoca e estar alerta, vigilante, curioso. A hist-ria avana muito lentamente, e com teatro acon-tece o mesmo, do mesmo modo que as geleiras.Quando as geleiras avanam, o centro avana

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    mais rapidamente que as bordas, retidas poruma resistncia extrema. Eu diria de bom gra-do que o teatro performativo a ponta, e o tea-tro tradicional constitui as partes inferiores. Oteatro performativo o que conhecemos por-que mais inovador, porque responde s nossassensibilidades, porque est de acordo com a sen-sibilidade dos jovens hoje. Da minha parte, fi-quei surpresa ao constatar que na UQAM(Universit du Qubec Montral), onde nossosestudantes fazem produes todos os anos, cadaano eles podem fazer produes livres, que cha-mamos assim pois os estudantes so livres paradar a forma que desejarem. Ora, muito frequen-temente essas produes so muito mais inven-tivas que aquelas que eles fazem sob a direode um encenador contratado para a ocasio. Elasso complexas, tm estruturas pouco clssicas,so s vezes desconstrudas... Antigamente, es-sas produes eram gratuitas. Logo, as pessoasdo bairro (a UQAM est situada a leste da cida-de, em bairros modestos, outrora, desfavoreci-dos), que geralmente no iam ao teatro, vinhamver essas produes estudantis. E, espantosa-mente, eles gostavam do que viam. Ficavam,

    claro, surpresos com as formas que eles desco-briam, mas gostavam e compreendiam tudo.

    Sala Preta: Pensandono teatro performa-tivo na Universidade, o que voc poderia co-mentar sobre a formao do diretor, do cen-grafo, do dramaturgo?

    Josette Fral: No acredito que existauma formao especfica para o teatro perfor-mativo... Para ela existir, isso implicaria um tra-balho maior no nvel da inventividade, da cria-tividade do artista, do que chamamos deescritura cnica, mas isso no dispensaria o atorde ter necessidade de aprender certas tcnicasde base.

    Sala Preta:Sim, e quanto aos contedosdo teatro performativo?

    Josette Fral: possvel que tal forma-o exista em certas escolas de formao no Rei-no Unido, nos Estados Unidos, talvez, em To-ronto, em Concrdia, mas eu no posso dizercom preciso.

    Sala Preta: Em uma entrevista sobre essemesmo tema, Jean-Pierre Sarrazac defendeu anecessidade do estudo dos textos clssicos dodrama moderno e contemporneo, tais comoBeckett, Ionesco, Heiner Mller, na formaosuperior de teatro. O que voc pensa sobre essaideia de analisar obras de referncia do teatro per-formativo, sejam elas por meio de textos teatrais,crticas e registros audiovisuais de encenaes?

    Josette Fral: O que necessrio conhe-cer? Tudo. preciso ser curioso, preciso ler,tambm preciso conhecer o mundo, precisoestar ancorado no mundo e manter-se informa-do sobre tudo. No necessrio de forma algu-ma separar o teatro das outras formas de arte.No se deve pensar que o teatro existe sobre suailha, separado do mundo. O teatro partilha li-gaes estreitas com as outras artes, ele sofre in-fluncia delas. Em segundo lugar, no precisoseparar o mundo das artes, da vida em geral.Quanto a saber o que preciso ler, o que pre-ciso conhecer? Diria de bom grado que preci-so conhecer tudo, mas tudo mesmo, tudo o quecruzar nosso caminho, tudo o que encontrar-mos, do melodrama at o texto mais difcil de

    ler, os mais abstratos. E entre todos esses, os tex-tos de Beckett ou Mller so referncias maio-res, claro. Inevitveis hoje para compreender asnovas formas de escrita.

    Fiz essa pergunta que voc me faz aosencenadores que entrevistei, mas formulei-a demaneira um pouco diferente. Perguntei-lhes sea leitura de textos tericos poderia ajudar os ato-res e se eles respondiam negativamente, o quepoderia ajudar o ator, a maioria (dos encenado-res) respondia sim, mas com algumas restri-es. Tudo depende, ressaltavam, do que enten-demos por teoria. De fato, a palavra teoria, emsi, no quer dizer nada; , na melhor das hip-teses, uma reflexo sobre o teatro. Muitosencenadores desejam trabalhar com atores cul-tos; porm, para ser culto no h receitas. pre-ciso conhecer, aprender, estar em condies derelacionar as coisas, ser curioso, descobrir... Porexemplo, parece-me til no somente conhecero sistema de Stanislavski, mas tambm conhe-

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    cer as motivaes que o levaram a edificar essesistema. Acho igualmente muito interessantesaber que o livro A Construo do persona-gem5tem um ttulo errado em relao versorussa. Considero interessante tambm saber quea teoria de Stanislavski se desenvolveu na pocada descoberta cientfica do reflexo con-dicionado, e que esta descoberta cientfica per-mite compreender com profundidade o queStanislavski buscava com seu sistema: a ideia decolocar o ator em um estado de criatividade, as-sim como o cachorro de Pavlov (fisiologista rus-so). Quer dizer que para bem compreenderStanislavski, no intil compreender que elefoi influenciado pelos desenvolvimentos cient-ficos de sua poca. igualmente importante sa-ber que Stanislavski no parou de aperfeioarseu sistema e que, no final de sua vida, ele fa-lava mais das aes fsicas do que de psicologiado personagem. Para compreender bem astcnicas de jogo estabelecidas por Meyerhold, igualmente importante contextualizar suasideias. Ele era, como vocs o sabem, um dos co-laboradores preferidos de Stanislavski. Frequen-temente opem-se os dois, mas Stanislavski via

    bem para onde Meyerhold estava indo. Basta lerum e outro para ver seus pontos de correspon-dncia. Sendo assim, importante conhecer oslaos que unem Stanislavski e Tchekov, j queStanislavski criou seu sistema em relao aostextos de Tchekov, pois desejava encontrar umaforma de jogo que correspondesse aos textosde Tchekov.

    Ento, para voltar formao dos atores,-lhes necessrio, em minha opinio, ver teatro,ver, ver, ver teatro, porque isso forma o olhar.Hoje, penso que o teatro interessante o dosflamengos. H alguns anos, so eles que fazemas coisas mais interessantes. Outros encenadoresso igualmente bastante interessantes. Ns osconhecemos: Ariane Mnouchkine, HeinerGoebbels, Bob Wilson, Peter Sellars; j fomos

    formados em suas estticas. Atualmente h ar-tistas como (o encenador suo Christopher)Marthaler ou (o encenador polons Krzysztof)Warlikowski cujas estticas so inovadoras.

    interessante constatar que, nesse dom-nio, certas formas ou caractersticas do teatro deantigamente voltam. Por exemplo, em certapoca o teatro tinha se distanciado da narrao,mas constatamos que h alguns anos h um cla-ro retorno narrao, assistimos um retorno narrativa. Da mesma forma, durante os anos 60:a cena italiana havia sido abandonada em fun-o de outras cenas mais descentradas, fora dosespaos habituais. Porm, atualmente tambmconstatamos um retorno cena italiana. Amaioria das cenas a que chamo de teatro per-formativo faz apelo a cenas italiana. Esse mo-vimento de pndulo interessante e impressio-nante ao mesmo tempo! De repente, ocorre anossos estudantes de comear a explorar cenasdistintas (piscinas, salas circulares...). Eles ficamespantados ao descobrir que isso foi feito htrinta anos atrs. Prefiro, de minha parte, nolhes dizer e deixar que eles redescubram sozi-nhos. O teatro deve descobrir novas formas. Os

    walk tours (teatro processional) so um exem-plo, mas certas formas tambm: o teatro deGoebbels, por exemplo, ou o de Lepage abrenovos caminhos.

    De fato, acredito que nosso papel comopedagogos, ensinando a teoria do teatro detentar analisar da melhor forma aquilo que ve-mos, isto , assinalar os movimentos, as corren-tes, uma evoluo, relacionar as prticas, con-textualiz-las. E para isso preciso saber man-ter-se aberto s diversas prticas, mas tambms teorias, incluindo aquelas das outras disci-plinas, a fim de importar saberes de um dom-nio para outro. apenas assim que renovamosverdadeiramente o campo da prtica. Em outraspalavras, preciso saber no permanecer fixa-dos em nossas certezas e nossos conhecimentos.

    5 STANISLAVSKI, Constantin S. A construo da personagem. So Paulo: Civilizao Brasileira, 2001.

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    Sala Preta: Hans-Thies Lehmann fala deuma dimenso poltica do teatro ps-dramti-co uma vez que provoca uma troca de posicio-namento do espectador. Segundo ele, a aopoltica do teatro de hoje no est centrada narepresentao do fenmeno poltico, mas natransformao do acontecimento teatral em umfenmeno poltico. O que voc pensa sobre adimenso poltica do teatro performativo?

    Josette Fral: O teatro performativo pedea participao do espectador, demanda-lhe mui-to frequentemente a interpretao do que v.O sentido do espetculo no est fixado; ele completamente aberto, pois nele os signos sopouco restritivos. O espectador, portanto, li-vre para compreender o espetculo como ele oentender, de dar-lhe sentido, at mesmo de criaro sentido. Podemos dizer que esse modo de fun-cionamento poltico num sentido mais am-plo? Sem dvida. poltico, na medida em quetoda encenao muda os modos de percepodo espectador e incomoda-o. Isso , sem dvi-da, o que quer dizer Lehmann e, nesse sentido,estaria de acordo com ele. Todavia, eu diria tam-bm que toda grande mudana do teatro toca o

    aspecto poltico. Falo aqui do poltico no mas-culino, Opoltico, e no a poltica. Penso queas reformas que Stanislavski introduziu e quemodificaram profundamente no somente ojogo do ator, mas tambm a recepo do espec-tador eram polticas, tanto que seu sistema re-queria uma nova tica para o ator.

    Acontece o mesmo com as reformas in-troduzidas por Meyerhold. Alis, seu forma-lismo era to poltico que ele chegou a ser as-sassinado. Diria a mesma coisa de todos osgrandes reformadores do teatro que se opuse-ram s estruturas existentes: Mller, Beckett noque diz respeito aos textos; Artaud, Grotowski,Brecht no que diz respeito cena. Depois de-les, Wilson, Lepage, Mnouchkine, Chreau,Vitez, Lecompte

    O teatro pode modificar nossas sensibili-dades e nossa viso das coisas, estou intimamen-te convencida. Tive uma discusso muito inte-

    ressante com Richard Schechner no ano passa-do, no ECUM (Encontro Mundial das ArtesCnicas, Belo Horizonte, 2008). Nossa discus-so nos levou aos limites da Arte. A questo eraa seguinte: suficiente que um artista pretendafazer arte para que o que ele apresenta ao espec-tador efetivamente seja arte? o artista ou o es-pectador que decide o valor artstico do que apresentado ao pblico? Podemos respondersem dvida que cada um mede a coisa de acor-do com seu prprio conhecimento do domnioda arte e de seus gostos. Mas, creio que a ques-to vai mais longe e esbarra hoje em questesticas. De fato, certas formas artsticas parecemchocantes hoje, at mesmo obscenas no sen-tido primeiro do termo, isto , que no podemser mostradas, e o fato de lhes dar a ver, deapresent-las aos espectadores pode chocar edesencadear problemas ticos. Explico-me: ge-ralmente dizemos que no h nada que choquehoje em dia, que todas as transgresses so per-mitidas; no entanto algumas performances po-dem ir alm do aceitvel, na medida em que elasso armadilhas para o espectador e foram-no alegitimar, pela sua presena, aes que podem

    revelar o exibicionismo ou a violncia. Penso,por exemplo, nas performances de Franko B,que abre suas veias em cena. Numa primeirainstncia, o problema dele, o exibicionismo dele, mesmo se todo um discurso da parte doartista legitime o espetculo que ele apresenta.Sem dvida que tal performance tinha, h trin-ta anos, um sentido e um impacto que ela notem mais nos dias de hoje, tanto a performancej nos habituou a tais excessos. O fato de queFranko B realize tal ao poltico de certa for-ma. Mas a obscenidade, em minha opinio,vem do fato de que, de repente, eu desejo inter-rogar o papel do espectador, MEU papel en-quanto espectadora. Em que, minha presena(o fato de pagar meu ingresso) legitima esse tipode empreitada?

    Outro exemplo similar o de Huang YongPing, um artista franco-chins que fez uma ex-posio no Beaubourg(Centre George Pompidou,

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    em Paris). Uma de suas obras consistia em umaespcie de viveiro onde se encontravam rpteis einsetos se comendo uns aos outros.

    Diante dessas obras, pergunto-me qual opapel representa o espectador. Sua presena nolegitima esse tipo de obra? E o espectador nose encontra encurralado, obrigado a ver a arteonde no h seno monstruosidade? Em pou-cas palavras, pergunto-me se sou obrigada a ade-rir a tal encenao da violncia. E se sim, emnome de qu? claro, tudo possvel; mas quetipo de afirmao minha presena sustenta?Ela no endossa obras que sou tentada a rejei-tar? A questo parece-me importante e parecetocar os limites da arte, ou, mais exatamente doque serei tentada a chamar de arte? O especta-dor deve aderir a todos os excessos, inclusive osmais delirantes? Onde parar? Que critrios es-colher para traar o limite? No quero ser reaci-onria, mas talvez eu o seja inconscientementee ignore. Mas, me dou conta hoje de que certasformas me chocam por uma violncia gratuitae real que elas oferecem ao olhar, em nome daarte. Ora, enquanto espectadora, eu me digoque eu no quero aceitar qualquer coisa em

    nome da arte. Talvez seja esse meu limite hoje.Estou pronta para aceitar a cena vazia, o quadrobranco, a nudez, a masturbao, a autoflage-lao, no mximo a automutilao, mas o atorque abre suas prprias veias e as esvazia de seusangue (sob controle, claro, mas ainda assim!)tenho que aceitar como sendo arte?

    A acho que a arte levanta questes de or-dem tica, que me interpelam. A discusso aqual me referi anteriormente com Schechner foiinteressante, porque de repente ele percebeuque A arte pode ser m. E verdade!

    Repentinamente, a gente pra e se diz,Talvez toda forma artstica no seja necessaria-mente poltica no bom sentido do termo. Podehaver formas artsticas que so nocivas. Porm,para admitir isso, preciso que modifiquemosnossos modos de pensar a arte. De fato, temosa tendncia em pensar que a arte necessaria-mente uma fora de renovao, de vanguarda,de afirmao, de grandeza do esprito humano.

    Mas, algumas formas revelam (podem revelar)que o esprito humano pode ser complicado.Talvez, haja bizarrices mesmo na arte. Talveztambm seja preciso afirmar que h um limiteque ns no queremos transpor.

    Sala Preta: Voc acredita que os profes-sores tenham algumas responsabilidades sobrea formao de um novo olhar do pblico emrelao ao teatro performativo?

    Josette Fral: Certamente. A responsabi-lidade dos professores nesse domnio grande,mas precisamos ser realistas. Por exemplo, aquem ns falamos? Quem nosso pblico? Nofalo do nosso pblico na Universidade, porqueesse minsculo, mas qual o pblico do tea-tro? As pesquisas sociolgicas e estatsticas queforam feitas sobre o espectador de teatro mos-traram, por exemplo, que no Canad, 30% daspessoas vem um espetculo uma vez por ano,e quando digo espetculo, isso designa tantoos espetculos da Broadwayquanto o teatro derepertrio ou um espetculo de teatro amador.30% somente. Essas cifras so as mesmas nocampo do esporte: 30% da populao assiste aum evento esportivo uma vez por ano. Desses

    30% que vo ao espetculo uma vez por ano,30% vo ver espetculos de teatro duas ou trsvezes por ano. Ficamos j em 10% do conjuntoda populao. E desses 10%, uma pequena par-cela de 3% vai ao teatro um pouco mais quetrs vezes por ano. pouco; muito pouco. Eessas cifras parecem as mesmas em quase todosos lugares. Ento, quando falamos de formar opblico para o teatro performativo, precisocompreender que o pblico a formar represen-ta uma porcentagem pequena da populao.Pois, se algum vai ao teatro uma vez por ano,voc acha que sua primeira escolha de espet-culo vai lev-lo espontaneamente a uma ence-nao de Elizabeth Lecompte do

    Wooster Groupou de Jan Lauwers? No. Ele vai espontanea-mente ver o mais fcil e as formas mais conven-cionais: Broadway, o teatro de repertrio... Seeu estivesse no lugar deles, eu faria sem dvidacomo eles. Eu perdi a questo...

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    Sala Preta: No. A ampliao da deman-da por um teatro performativo no est ligada aessas prticas pedaggicas? O fato de incluirmoso estudo desse tipo de teatro na escola no iriacolaborar para a formao de um pblico maisaberto s novas formas teatrais?

    Josette Fral: Claroque nossa respon-sabilidade, mas ao mesmo tempo, no precisatirar o teatro do seu contexto: a maioria da po-pulao no demanda necessariamente um tea-tro performativo. bom levar os espectadorespara verem Wilson, Mnouchkine ou Lepage. Ese h trs milhes que acabam conhecendoLepage, s pode ser algo bom. Isso dito, a de-manda do pblico, do grande pblico no serinicialmente Lepage. Ela se orientar preferen-cialmente para algo como o Cirque du Soleil.Entre Lepage e o Cirque du Soleil, o Cirquedu Soleilque vai levar a melhor.

    preciso ento estarmos conscientes dis-so quando abordamos as questes de formao.

    Uma vez que isso foi dito e levado emconta, ento, sim, podemos dizer que possvelformar o pblico para o teatro performativo. como na filosofia, essa formao toca um pe-

    queno grupo de pessoas. Ela tem um efeitomodesto, mas no por isso que vamos deixarde faz-lo. Uma vez, perguntei Mnouchkineo que ela pensava do fato de que o teatro noabala o mundo e no tem seno uma incidn-cia poltica fraca como vocs sabem Mnouchkine politicamente muito engajada.Perguntei-lhe se toda essa batalha no estavaperdida de antemo, se ns no terminaramosem um beco. Ela me respondeu com uma frasede que gosto muito: o teatro como o Tibete.Se o Tibete desaparecesse, a face da Terra noseria profundamente modificada. Mas no necessrio que o Tibete desaparea, porque uma zona de resistncia que permite que mu-danas aconteam. Acredito que ocorre o mes-mo com o teatro performativo. Isto , que noacredito na fora revolucionria nem do teatro,nem do teatro performativo. Mas penso quedevemos promover uma arte de seu tempo, e por isso que vale mais fazer teatro performativo

    do que teatro mais tradicional como a RoyalShakespeare Company. Isso dito, tambm gostomuito da Royal Shakespeare Company. Tenhomuito prazer tambm em assistir a um de seusespetculos e, sobretudo, no quero que essaforma desaparea. Portanto, acredito que pre-ciso deixar a diversidade existir. necessriopromover o novo e as formas em relao comseu tempo, mas ao mesmo tempo, preciso serrealista e compreender que as formas que privi-legiamos no podem ser dominantes, pelo me-nos por agora. O verdadeiro pblico ns nosomos o verdadeiro pblico pode nunca ou-vir falar ou ver teatro performativo. Mas talvezo teatro performativo tambm acabe tendo oseu lugar na Broadway. A Broadway, de fato,um lugar muito surpreendente. Vou contar duasanedotas sobre esse assunto. Uma vez, estavaindo para Nova Iorque e telefonei para umaamiga crtica, que conhece tudo o que aconteceem Nova Iorque. Perguntei-lhe o que havia paraver em Nova Iorque no momento em que esti-vesse l. Ela me disse: preciso ver Lion King(O Rei Leo). Eu respondi, no estou pergun-tando o que h para meus filhos, para mim

    mesma. Ela me respondeu de novo: LionKing. E fui ver Lion King. O espetculo eranotvel. Julie Taymor (a encenadora) fez mari-onetes humanas admirveis e posso dizer, semsombra de dvida, que o espetculo era bemperformativo. E, no entanto, bem um espet-culo da Broadway. impressionante. Essa aprimeira anedota. A segunda diz respeito aosmeus filhos que eu levava regularmente, quan-do eram pequenos, para ver teatro experimen-tal em todas as suas formas. Um dia veio Montral o espetculo LesMisrables, grandeproduo de estilo Broadway. Meus filhos pedi-ram para ver o espetculo. Eu os deixei l, recu-sando-me, a princpio, de acompanh-los. Apso espetculo, quando fui busc-los e eles entra-ram no carro, estavam contentes e disseram-me:Finalmente, o verdadeiro teatro!. Fiquei trans-tornada. Hoje, so adultos e brincam ainda co-migo sobre essa experincia e sobre a revelaoque isso foi para eles. Eles brincam tambm

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    sobre certas performances a que eu os levo.Ento, tudo isso para dizer que o teatro perfor-mativo certamente o teatro mais interessanteque se faz nos dias de hoje, mas o outro tam-bm tem seu encanto.

    Nossa tarefa acompanhar as formas ar-tsticas que se transformam. Somos os iniciado-res desses movimentos? Tenho a tendncia apensar que essa tarefa pertence aos ar tistas, masuma vez que o movimento lanado, ento opapel dos pedagogos que somos de seguir eacompanhar esses movimentos. Temos um pa-pel de iniciadores? Somente se formos prticos,seno temo que as formas visadas sejam total-mente artificiais.

    O teatro performativo , em minha opi-nio, um teatro de vanguarda sem dar a esse ter-mo o sentido que dvamos antigamente. Querodizer com isso que so as formas mais inovado-ras hoje. Portanto, na medida em que essas for-mas se desenvolvem, elas influenciam outrasprticas, e elas acabam por escoar, como um fil-tro de caf, nas outras formas e nas outras prti-cas: na Broadway, no Cirque do Soleil, etc.

    Vernica Veloso: Penso que um espetcu-

    lo fala com muitas pessoas uma nica vez, masum professor fala com um nmero menor depessoas muitas vezes. Talvez seja por isso quens, no papel de professores, ao mudarmos nos-sa maneira de ver teatro, podemos contribuirpara que os alunos mudem tambm.

    Josette Fral: Sim, certamente. Nosso tra-balho permite criar uma rede. Nosso papel no intil; felizmente, alis. Mas eu no conheoum pas onde o teatro tenha tido uma inci-dncia radical sobre o curso dos acontecimen-tos e tenha transformado as coisas. Isso no ,entretanto, grave. Essa situao diferente dopapel que o teatro sempre teve? Podemos dizerque o papel do teatro mudou atravs das po-cas? Sim, por exemplo, o teatro no tem mais omesmo papel de entretenimento daquele quepoderia ter no final do sculo XIX. Ele se tor-nou teatro de arte. preciso compreender o queisso representa. uma modificao fundamen-

    tal que muda profundamente a paisagem arts-tica e as mentalidades.

    Ento, para voltar sua pergunta, sim, claro, o papel do pedagogo importante, mes-mo que s vezes trate-se de um papel ingrato,pois repetimos as mesmas coisas o tempo todo,mas um papel estimulante e provedor. E paraser verdadeiramente eficaz, preciso permane-cer vigilante e saber manter-se informado. Epara permanecer informado das prticas e dasformas artsticas, preciso desenvolver as mes-mas qualidades do ator: isto , saber continuarsendo curioso e manter o esprito aberto e emrelao com o mundo. Alguns encenadores en-trevistados diziam do ator que ele devia saberqual seu lugar em relao galxia que o cir-cunda. Um ator que fechado em si mesmo nopode ser um grande ator. assim tambm parao verdadeiro pedagogo.

    Sala Preta:A noo de teatro performati-vo pode ser um instrumento pedaggico. Comovoc pensa essa noo em comparao aoenfoque do teatro ps-dramtico de Hans-ThiesLehmann e ideia de drama reinventado de te-ricos franceses, como Jean-Pierre Sarrazac?

    Josette Fral:No sei se tenho a resposta.Diria que, para mim, inicialmente, a pesquisade Sarrazac muito interessante, mas, sobretu-do, centrada no texto. uma pesquisa til, poispermite-nos compreender melhor a dramatur-gia atual fornecendo conceitos capazes de darconta dela de maneira melhor: a figura, a cora-lidade, o autor rapsodo... Sarrazac viu precisa-mente todos esses pontos e, ao faz-lo, demarcao campo de anlise do texto teatral.

    Quanto ao Lehmann; penso que a noode ps-dramtico uma noo que funcionarelativamente bem e que parece evidente por-que ela no abala a noo de dramtico. E isso,parece-me ser ao mesmo tempo sua fora e suafraqueza. Tenho reservas a respeito do prefixops que inscreve uma temporalidade das coi-sas, talvez como o conceito de ps-modernismo.Isso evoca uma corrente, prticas que vieramdepois do modernismo, como aps o dramti-

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    co, mesmo se no se trata de sequencialidadepura. Alm disso, o ps-dramtico como o ps-modernismo uma corrente decidida pelos pes-quisadores ou os historiadores e no pelos pr-prios artistas. Nenhum artista reivindica essasduas correntes. Nenhum artista diz Sou umartista ps-dramtico ou ps-moderno. opesquisador ou o terico que os inscreve ali. verdadeiramente uma postura de pesquisador,que tenta nomear uma prtica. Porm, essas pr-ticas so mltiplas, excessivamente diversificadase s vezes no apresentam nenhuma ligaoumas com as outras. Logo, design-las sob umnico termo genrico me parece um pouco abu-sivo e forosamente aproximativo, mas essas ge-neralizaes talvez respondam a uma necessida-de. Talvez seja por isso que essa noo se vendebem. Isso posto, considero a anlise feita porLehmann interessante e justa, mas muito abran-gente e no insiste sobre a diversidade das pr-ticas de hoje, essa sua grande fraqueza. Ela nosublinha suficientemente, a meu ver, que o tea-tro de hoje marca uma verdadeira ruptura como passado, ele subverteu toda a forma do teatro,particularmente no nvel da representao.

    Derrida foi o primeiro a empreender esse traba-lho e mostrou como no samos nunca da repre-sentao. Ela pode ser desconstruda, podemostrabalhar no limite, podemos invert-la, des-constru-la, invert-la, lev-la aos seus limites eat mesmo reconstru-la; mas ela est sempre alisob mltiplas formas. Isso no quer dizer, toda-via, que o teatro que se pretenda no-represen-tativo, mas que permanece inscrito na represen-tao e, contragosto, no diferente do teatrode outros tempos. E em todos os aspectos.

    Para voltar definio do teatro ps-dra-mtico, a reserva que igualmente manifestaria que Lehmann engloba sob mesmo qualificati-vo, o teatro de Beckett e o de Mller, o de Kol-ts e o de Vinaver. Resumindo, todo o teatro deBeckett at os dias de hoje. So quase sessentaanos e no se pode fazer isso. No podemos

    agrupar a multiplicidade de prticas de todo esseperodo em uma s entidade, que partilharia asmesmas caractersticas. Penso, ento, que pre-ciso fazer divises no teatro dos ltimos sessentaanos, reconhecendo que o teatro ps-dramticoou o teatro performativo uma corrente que re-ne certas prticas (mas no todas) do teatroatual. Penso que, de fato, h teatro ps-dramti-co, mas que todo teatro ps-dramtico no ne-cessariamente teatro performativo. Da mesmaforma, nem todo teatro performativo necessa-riamente ps-dramtico. Talvez eu tome o tea-tro ps-dramtico de maneira muito limitada,ligando-o obrigatoriamente ao drama, ou ain-da, ao texto, mas, se nos atemos a esse sentido,artistas como Jan Lauwers ou Jan Fabre no somuito ps-dramticos assim como Josef Nadj,Pippo Delbono, Romeo Castelucci. Para mim,todos esses artistas no so ps-dramticos, mes-mo que sejam fortemente performativos.

    Essas reflexes provam que cada pesqui-sador escreve a partir de sua cultura e de suasreferncias. Sarrazac, por exemplo, escreve doponto de vista do teatro francs que permanecesua referncia principal; alis, seu grupo de pes-

    quisa trabalha essencialmente o texto dramtico.Lehmann reflete a partir do teatro alemo. Suasreferncias so, entre outras, encenadores como(Frank) Castorf, (Ren) Pollesh, (Christoph)Schlingensief, (Thomas) Ostermeier... que fa-zem um teatro menos fundado sobre o texto.Nos Estados Unidos, existe, como sempre, ali-s, um verdadeiro teatro de pesquisa ao lado deum teatro bastante tradicional. O teatro queno est em Nova Iorque, em So Francisco ouem Chicago no necessariamente um teatroperformativo. O problema dessa noo de per-formativo que Schechner expandiu tanto aspalavras performance e performatividade, queelas podem englobar tudo. Torna-se ento dif-cil de encontrar uma definio que possa real-mente abarcar o conceito. Mas, essa dificuldadeno deve nos impedir de tentar.

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