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Teatro-Fórum e Pedagogia da Intervenção na Indústria

FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DA BAHIA

PRESIDENTEJosé de Freitas Mascarenhas

SERVIÇO SOCIAL DA INDÚSTRIADEPARTAMENTO REGIONAL DA BAHIA

DIRETOR REGIONALJosé de Freitas Mascarenhas

SUPERINTENDENTEJosé Wagner Sancho Fernandes

SUPERINTENDENTE DE COMUNICAÇÃO INSTITUCIONALAdriana Mira

SUPORTE À GESTÃOAroldo Valente Barbosa

GERENTE DE QUALIDADE DE VIDAAmélio Miranda Junior

GERENTE DO CENTRO CULTURAL SESI RIO VERMELHOMaria Angélica Ribeiro Santos

GERENTE DO PROJETOCatarina Fatima Laborda (Org.)

EMPRESA BAIANA DE ÁGUA E SANEAMENTO

PRESIDENTEAbelardo de Oliveira Filho

DIRETOR FINANCEIRO E COMERCIAL

Dilemar Oliveira Matos

DIRETOR DE GESTÃO CORPORATIVABelarmino de Castro Dourado

DIRETOR DE OPERAÇÃO E EXPANSÃO RMS

Carlos Ramirez Magalhães Brandão

DIRETOR DE OPERAÇÃO E EXPANSÃO NORTEEduardo Benedito de Oliveira Araújo

DIRETOR DE OPERAÇÃO E EXPANSÃO SUL

Carlos Alberto Pontes de Souza

DIRETOR TÉCNICO E DE SUSTENTABILIDADECésar Silva Ramos

Teatro-Fórum e Pedagogia da Intervenção na Indústria

Salvador - Bahia2012

Serviço Social da IndústriaDepartamento Regional da Bahia

© 2012 SESI. Departamento Regional da Bahia.

É autorizada a reprodução total e parcial desta publicação, desde que citada a fonte.Direitos reservados ao Sistema FIEB.

COORDENAÇÃO GERALSESI Rio Vermelho

COORDENAÇÃO EDITORIALSuperintendência de Comunicação Social

PROJETO GRÁFICORômulo Amorim

REVISÃOMaria Edith Pacheco

NORMALIZAÇÃOBiblioteca Sede/ Sistema [email protected]

FICHA CATALOGRÁFICA - Biblioteca SEDE/ Sistema FIEB

792 Serviço Social da Indústria – SESI. Departamento Regional da BahiaS491t Teatro-Fórum e pedagogia da intervenção na indústria /Serviço Social da Indústria – SESI. Departamento Regional da Bahia. Salvador: Sistema FIEB, 2012. 150 p. : il. + 1 DVD (10 min) ISBN: 978-85-86125-54-6

1. Artes Cênicas e recreativas. 2. Indústria - trabalhadores. 3. BahiaI. Teatro-Fórum e Pedagogia da Intervenção na Indústria

O que a poética do oprimido propõe é a própria ação! O espectador não delega poderes ao personagem para que atue nem para que pense em seu

lugar: ao contrário: ele mesmo assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores. (...) O espectador liberado, um homem íntegro, se lança a uma ação! Não importa que seja fictícia: importa que é uma ação.

Augusto Boal

Investir em cultura e em projetos artísticos para os trabalhadores da indústria e seus dependentes é um compromisso do SESI, que reconhece a arte como um agente de transformação e de estímulo para o desenvolvimen-to de potencialidades, contribuindo para uma indústria mais competitiva e preparada para futuros desafios. Com base em sua história e em sua missão, o SESI vem se destacando ao promover a qualidade de vida dos trabalhadores da indústria e ao fomentar a gestão socialmente responsável. Para isso, aposta em projetos que valorizam as manifestações artístico-culturais como fomentadores da cultura, contribuindo assim para o desenvolvimento sustentável. O projeto “Teatro-Fórum e Pedagogia da Intervenção: Dimensões Político-Formativas com os Trabalhadores da Indústria”, aprovado no âm-bito do Edital SENAI SESI de Inovação 2010, e executado em parceria com a EMBASA, teve financiamento de recursos do SESI Departamento Nacional, SESI Departamento Regional da Bahia e Ministério da Ciência e Tecnologia, através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A publicação Teatro-Fórum e Pedagogia da Intervenção na Indústria apresenta um novo modelo teatral para as empresas, cujo principal mérito está no estímulo à reflexão, à inovação e à criatividade, fundamentalmente abordando temas inerentes ao mundo empresarial e propiciando, assim, situações que favorecem a compreensão e a transformação da realidade. Com sua parceria, o SESI e a EMBASA têm a expectativa de impulsio-nar o reconhecimento da importância da cultura e o seu significado para as organizações constituídas por trabalhadores talentosos, como bons baianos que são.

APRESENTAÇÃO SESI Wagner Fernandes

Superintendente SESI/DR-BA

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A EMBASA é uma prestadora de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário e, também, a principal executora das ações do Governo do Estado voltadas para a universalização desses serviços na Bahia dentro do programa Água para Todos. A empresa e sua atividade estão intimamente ligadas à saúde e à qualidade de vida das pessoas e, por que não dizer, das cidades e localidades onde atua. Não há como construir e operar sistemas de água e esgoto e atender a variadas comunidades sem um envolvimento com as questões ambientais, sociais, econômicas e humanas dos diversos públicos com os quais a empresa se relaciona. Na identidade organizacional da EMBASA, constam valores que buscam abraçar essas demandas. A valorização de nossos trabalhadores é, sem dúvida, uma das mais importantes diretrizes da empresa. A parceria com o SESI para a imple-mentação do projeto Teatro-Fórum corrobora, na prática, com os valores adotados pela EMBASA. O Embasart, grupo de teatro formado por colabora-dores da empresa, participou desta experiência coordenada pelo SESI que, por meio do teatro, leva empregados e público a questionarem estruturas de opressão em nossa sociedade, especialmente no mundo do trabalho, no intuito de encontrar soluções viáveis. Tenho certeza de que esta foi uma experiência ímpar para nossos colaboradores e para todos que participaram, direta e indiretamente, desta empreitada. A técnica do teatro-fórum ajuda a pensar maneiras de resolver conflitos e atuar de forma mais sinérgica. É dessa forma que a EMBASA tem buscado trabalhar, em parceria com todos que, de alguma forma, contribuem para o desenvolvimento da Bahia, procurando sempre ouvir as partes inte-ressadas em sua atividade.

APRESENTAÇÃO EMBASA Belarmino de Castro Dourado

Diretor de Gestão Corporativa

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Esta publicação apresenta uma proposta para a implantação de uma tecnologia teatral inspirada nos moldes do dramaturgo Augusto Boal e o Teatro do Oprimido, mais precisamente o Teatro-Fórum, voltada para grupos de trabalhadores da indústria. Partimos da experiência realizada durante 18 meses com o Grupo Embasart, formado por empregados da EMBASA (Empresa Baiana de Água e Saneamento S.A.), na cidade de Salvador, capital do estado da Bahia. Não se pretende tolher a criatividade de diretores teatrais, atores e instrutores, nem impor aos que trabalham com as artes cênicas nas empresas industriais verdades absolutas ou receitas prontas. Pretende-se reproduzir as vivências, da maneira mais fiel possível, para orientar e auxiliar todos aqueles que desejam introduzir um trabalho artístico nas indústrias, precisamente o Teatro-Fórum. O importante é não se satisfazer. É mergulhar em diversos contextos, compreendendo que o mundo não é preto nem branco e que a diversidade de tons poderá compor um trabalho final mais interessante. O processo é entusiasmante; reconhecer as mudanças e promover a quebra de para- digmas traz a inovação como alvo principal nas ideias e conceitos de um novo fazer teatral dentro das empresas.

É chato chegar A um objetivo num instante

Eu quero viver

PREFÁCIO

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Nessa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo

(Raul Seixas, “Metamorfose Ambulante”, 1973)

O registro aqui apresentado tem cunho eminentemente pedagógico. Por isso mesmo, os capítulos trazem em profundidade elementos aborda-dos durante o processo de construção e experimentação da metodologia do Teatro-Fórum com o grupo teatral Embasart, formado exclusivamente por trabalhadores da EMBASA. Logo no primeiro artigo, Antonia Pereira Bezerra apresenta um campo de pesquisa com o qual tem bastante familiaridade. “Augusto Boal e as técnicas do Teatro do Oprimido: gênese, pessoas e personagens” recons-titui a trajetória do invento do Teatro do Oprimido e sua militância pela criação teatral como poderosa ferramenta de libertação das opressões, sem negligenciar as dimensões estéticas e político-sociais. A finalidade prática dessa pesquisa consistiu na elaboração de espetáculos de Teatro-Fórum, técnica emblemática do Teatro do Oprimido, com o Grupo Embasart nas peças Cresça e Apareça, uma criação coletiva, A Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, e A Máquina Escavadora, de Armand Gatti. O segundo artigo, “Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o Grupo Embasart”, traz a descrição e a análise do processo de encenação do espetáculo-fórum Cresça e Apareça, resultante da primeira etapa de formação dos integrantes do Grupo Embasart na linguagem do Teatro do Oprimido. A autora Cilene Nascimento Canda expõe os procedi-mentos utilizados para esta montagem de um espetáculo de Teatro-Fórum e o processo formativo em teatro desencadeado por meio da metodologia do Teatro do Oprimido. Ana Flávia Hamad traz, em seu artigo intitulado “Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido”, uma reflexão sobre a voz e o trabalho vocal na perspectiva da poética de Augusto Boal. O trabalho realizado com o grupo de teatro Embasart aponta a discussão de alguns conceitos e pensamentos sobre as potencialidades vocais que podem ser exploradas e experimentadas em processos que visam à liberação de opressões vividas, ao autoconhecimento e às transformações. Esse projeto com o Embasart levou a autora a consolidar a sua pesquisa de doutorado

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(desde o primeiro semestre de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da Profa. Dra. Antonia Pereira Bezerra), na qual pesquisará a “voz oprimida” e a forma como, baseado no legado de Boal, é possível alcançar a libertação mediante o trabalho vocal. A autora relata também o processo de trabalho e exemplos de desafios apresentados num projeto de teatro-empresa e as repercussões lentas e progressivas que tal atuação gera individual e coletivamente. O artigo da autora Taína Assis apresenta, de forma panorâmica, as experiências realizadas com o Grupo Embasart no âmbito do projeto de Teatro-Fórum, com ênfase no processo de preparação corporal dos atores e na construção de personagens. “O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção do personagem – uma experiência com Teatro-Fórum” é um panorama das experiências realizadas com o Grupo Embasart, em que a autora analisa os resultados estéticos, corporais e educativos du-rante a etapa de preparação e expressão corporal dos atores para a construção dos personagens. Traz inicialmente a discussão sobre desmecanização cor-poral a partir da abordagem de Augusto Boal, em sua poética do oprimido, e outros autores como Eugênio Barba. A autora faz um breve percurso sobre o processo de montagem do primeiro espetáculo, Cresça e Apareça, e se apro-funda nas questões corporais que revelam opressões, desejos e limitações principalmente na construção da segunda montagem, A Revolução na Amé-rica do Sul, e por fim analisa o processo de apreensão dos jogos e das técni-cas com os atores/trabalhadores durante processo. No artigo “Colcha de Retalhos – preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum”, Cibele Marina Pereira relata técnicas de representação específicas para a preparação de um espetáculo-fórum, encontradas na obra Jogos para Atores e Não-Atores, de Augusto Boal. Segundo a metodologia do Teatro do Oprimido, em qualquer que seja o contexto, o processo inicia pela preparação de atores e pela aplicação de técnicas de ensaios. O Teatro-Fórum traz como premissas a incerteza, a inquietude e a reflexão, provocando permanentemente a dúvida, o questionamento de seus personagens em agir ou estancar, falar ou calar. Segundo a autora, a função do ator é estimular a plateia, provocar a inquietude e fomentar novos pensamentos, ações e apre-sentação de propostas de soluções. Ao final, este livro apresenta um resultado do projeto, iniciado em outubro de 2010, com trechos de entrevistas e pesquisas aplicadas ao

Prefácio 15

longo do processo. Apresentamos então nossas considerações finais e, principalmente, reunimos nas páginas seguintes contribuições para dissemi-nar e compartilhar com os interessados esta experiência, tornando este um instrumento de apoio e consulta para a implantação de um trabalho teatral norteado pelo Teatro-Fórum e seus princípios básicos.

Boa leitura!

Catarina Fatima Laborda

Gerente de Cultura - SESI Rio VermelhoGerência de Qualidade de VidaSESI / Departamento Regional da Bahia

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Prefácio 17

A Máquina EscavadoraTeatro SESI, Salvador, maio de 2012

Cresça e ApareçaTeatro SESI, Salvador,

maio de 2011

1. Introdução

2. Augusto Boal e as técnicas do Teatro do Oprimido: gênese, pessoas e

personagens Antonia Pereira Bezerra

3. Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o Grupo

Embasart Cilene Nascimento Canda

4. Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido

Ana Flávia Hamad

5. O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção do

personagem – uma experiência com Teatro-Fórum Taína Assis Soares

6. Colcha de retalhos – preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum

Cibele Marina Pereira

7. Palavras finais

8. Grupo Embasart

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SUMÁRIO

Teatro-Fórum e pedagogia da intervenção: dimensões político-formativas com os trabalhadores da indústria

A ideia de desenvolver uma nova tecnologia teatral com traba-lhadores da indústria surgiu em 2006, durante uma capacitação para atores, professores e técnicos da classe teatral realizada no Centro Cultural SESI Rio Vermelho – Departamento Regional da Bahia. Um dos módulos desenvolvi-dos na capacitação foi o Teatro do Oprimido, ministrado pela Profa. Antonia Pereira Bezerra, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia e, à época, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Foi a partir desse contato com professores, dramaturgos e diretores teatrais de diversos estilos e estéticas que pensei: o Teatro do Oprimido pode alavancar um novo fazer teatral dentro das empresas, pode facilitar muito as relações no ambiente de trabalho. A relação entre palco e plateia, mais pre-cisamente com o Teatro-Fórum, pode enriquecer as discussões e questões pertinentes ao mundo do trabalho, da vida dos trabalhadores e por conse-quência da sociedade em geral. Esta ideia amadureceu, assim como o relacionamento do SESI BA com a EMBASA. Em 2010, com a demanda da empresa em mais uma vez ter o SESI como coordenador do Grupo Embasart, grupo de teatro formado por trabalhadores dessa empresa, senti que era o momento certo para a EMBASA e para o SESI experimentarem um novo produto: o Teatro-Fórum. Assim, o projeto “Teatro-Fórum e pedagogia da intervenção: dimen-

INTRODUÇÃO Catarina Fatima Laborda

Gerente de Cultura – SESI Rio Vermelho

Gerência de Qualidade de Vida - SESI / Departamento Regional da Bahia

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sões político-formativas com os trabalhadores da indústria” foi inscrito e aprovado pelo Edital SENAI SESI de Inovação, em 2010. Era a oportunidade para desenvolver uma tecnologia nunca antes utilizada com as empresas industriais, capaz de criar um novo mecanismo de atuação do teatro-empresa e servir também como estímulo para a criação de outros grupos teatrais. Com o desenvolvimento deste projeto, confiamos que, ao levar o Teatro-Fórum para o ambiente industrial, o SESI poderia ser um catalisador das ações culturais para a construção da cidadania, o desenvolvimento de talentos e a transmissão de conhecimentos, estimulando a criação, a difusão e o consumo de experiências voltadas à investigação de novos significados. A partir de ações já existentes na área cultural do SESI BA, principal-mente com as atividades teatrais, torna-se evidente a necessidade de inovar e desenvolver tecnologias que constituam uma nova metodologia de ação com os grupos teatrais das empresas. A partir do levantamento das necessi-dades da empresa parceira EMBASA, que já investe em ações que valorizam seus trabalhadores, pautada na inclusão sociocultural, na equidade de opor-tunidades e no desenvolvimento sustentável, foi possível desenvolver novas metodologias de atuação com o Grupo de Teatro Embasart, com ênfase no aspecto socioeducativo, de responsabilidade social e atenção à melhoria da qualidade de vida do trabalhador. Os participantes foram estimulados a potencializar a sua criatividade e a ter uma compreensão crítica da sociedade do trabalho com atividades de reflexão e vivência em grupos operativos, possibilitando a ampliação de competências e a melhoria das relações interpessoais. Apropriando-se da tecnologia do Teatro-Fórum, foram destacados aspectos de uma prática teatral transgressora capaz de contribuir para o exercício da cidadania e para a transformação do indivíduo de forma a assegurar o desenvolvimento e a capacitação do corpo funcional. Acredita-mos que experiências como essas provoquem mudanças na organização do trabalho, gerando maior possibilidade de tempo disponível para a arte e o lazer dos trabalhadores, ampliando a oportunidade de acesso às vivências culturais. Ao considerar este projeto como inovação social e como enriqueci-mento cultural que privilegia a investigação e o fazer teatral, com ênfase nas dimensões estética, política e social dessa arte, essa modalidade de inovação deve ser estimulada também nas mais diversas áreas inerentes ao mundo do

Catarina Fatima Laborda22

trabalho, como saúde, segurança, educação e meio ambiente, sempre obje-tivando a melhoria da qualidade de vida do trabalhador e do clima organiza-cional das empresas. Nessa linha de raciocínio, temos como objeto principal a estruturação de uma tecnologia teatral através de experimentos cênicos pelo viés da técnica do Teatro-Fórum, inspirados nos modelos dramatúrgicos de Augusto Boal, com a perspectiva de inovar e construir um novo fazer tea-tral para as empresas e seus trabalhadores. Com a utilização das dimensões do Teatro-Fórum, foram desen-volvidas com o Grupo Embasart experiências cênicas, criando um espaço de exercícios e estratégias como técnica de representação integrando palco e plateia. O Teatro-Fórum, considerado uma das técnicas mais completas e elaboradas do Teatro do Oprimido, incita os espectadores a tomar consciên-cia da profunda mecanização, propondo alguns exercícios que colocam em evidência suas tensões, distensionando a atmosfera e integrando o público presente, que propõe a resolução da cena. Apresenta ainda uma função pedagógica que transforma o fenômeno da representação teatral na soma de tentativas e soluções oriundas dos espectadores de forma organizada, agen-ciada e dirigida. Por meio dessa nova vertente teatral, os trabalhadores foram estimu-lados a participar do projeto, numa atitude voluntária, através de oficinas, dinâmicas e ensaios para culminar nas apresentações. Vale destacar que as ações desenvolvidas foram em forma de oficinas teóricas e práticas, inte-grando profissionais das áreas do teatro, psicologia e ciências sociais. Durante os 18 meses de processo intenso de trabalho, foram realiza-das três intervenções teatrais: Cresça e Apareça, A Revolução na América do Sul e A Máquina Escavadora. Nos espetáculos, estabelecemos uma grade analítica para observação e apontamento de algumas questões: a dimensão político-pedagógica e o nível de exigência estética, além do estabelecimento de interfaces com as áreas da empresa, como ética, equidade, segurança, qualidade e outras. As ações do projeto tiveram as seguintes etapas: divulgação interna na empresa para iniciar as inscrições para o grupo de teatro; vivências em oficinas práticas e teóricas a respeito dos elementos universais inerentes ao teatro de Augusto Boal, como aspectos políticos, sagrados, ritualísticos e a natureza democrática da arte do teatro; avaliação do papel do espectador-ator, da pessoa e do personagem na poética de Boal, através de experimentos

Introdução 23

cênicos pelo viés da técnica do Teatro-Fórum. Após as apresentações com o Grupo Embasart, verificamos que a intenção de replicar este produto em outras empresas é viável na perspectiva de propor soluções que contemplem temáticas específicas, como organização do trabalho, saúde e meio ambiente, relações interpessoais, entre outros assuntos pertinentes ao mundo empresarial. Como resultado, apresentamos Teatro-Fórum e Pedagogia da Intervenção na Indústria, na forma de artigos, com o processo de construção desta tecnologia na empresa e a avaliação obtida com os trabalhadores no âmbito da pesquisa teórica e prática. Esta publicação contribuirá para o desenvolvimento do Teatro-Fórum no ambiente organizacional para orien-tar e possibilitar a disseminação da tecnologia contendo as principais etapas do processo.

Catarina Fatima Laborda24

Introdução 25

A Revolução na América do SulTeatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e janeiro de 2012

Boal e a poética do oprimido: os primórdios

Augusto Boal1 foi artista, militante ativo e presidente dos Centros de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro e de Paris. Ele variou o projeto do Teatro do Oprimido em função dos espaços, das circunstâncias, dos oprimi-dos e suas demandas, mas preservou intactos os dois principais objetivos da sua poética (BOAL, 1998, p. 12):

Transformar o espectador, ser passivo e depositário, em protagonista da ação dra-mática; nunca se contentar em refletir sobre o passado, mas se preparar para o futuro.

Na origem, considerando o contexto latino-americano, a poética do oprimido investe no combate à dupla opressão (individual e coletiva) exercida no teatro e na sociedade. Liberando o “espectador da sua condição de espectador”, ele “poderá liberar-se de outras opressões”, acreditava Boal. Tanto a descoberta quanto a evolução dessa poética seguiram os passos da trajetória do seu inventor: Augusto Boal, carioca, engenheiro químico, pós-graduado pela Universidade de Columbia, em Nova York, abandonou a car-reira científica pela arte teatral em meados dos anos 1950. De retorno ao Brasil em 1956, exercendo as funções de dramaturgo e diretor teatral, Boal

AUGUSTO BOAL E AS TÉCNICAS DO TEATRO DO OPRIMIDO:GÊNESE, PESSOAS E PERSONAGENS

Antonia Pereira Bezerra

Bolsista de Produtividade em Pesquisa CNPq

Coordenadora da Área de Artes/Música na CAPES

Membro dos Grupos de Pesquisas GIPE-CIT e DRAMATIS

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1 Augusto Boal nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, em 1931, e morreu na mesma cidade, em maio de 2009

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foi um dos primeiros a pôr em prática um projeto de popularização do teatro brasileiro. O principal objetivo de Boal consistia em retratar em cena a imagem do povo brasileiro, restituindo a palavra a esse povo esquecido ou folclori-zado em nome dos “valores burgueses decadentes” e do “marasmo intelec-tual” da época. A trajetória de Boal, como a de muitos revolucionários, foi gradativamente construída em obediência a uma lógica da criação teatral, qual seja: recusar veementemente a arte como isolada da vida. Em 1956, Boal dirigiu o Teatro Arena de São Paulo. A preocupação do grupo de atores que compunha o Arena era escapar à moda yankee, sem cair, no entanto, numa mera imitação da Europa. De 1958 a 1967, o Brasil desco-briu peças do repertório americano, brasileiro, europeu e, quase simultanea-mente, Stanislavski (método de interpretação naturalista) e Brecht (a técnica da Verfremdung – distanciamento, em alemão). Paralelamente às atividades com o Arena, Boal trabalhava com pequenos grupos denominados Núcleos, e realizava experiências fora da instituição teatral. Se até 1964 certa liberdade de criação e expressão era tolera-da, e de 1964 a 1968 ainda era possível fazer teatro, tal liberdade foi usurpada depois de 1968, com a instauração do Ato Institucional n. 5, reforço do golpe militar de 1964 e da censura. Só lhe restavam as experiências mais ou menos clandestinas e com os Núcleos, essencialmente sob a forma de teatro jornal2. Em 1971, Boal, cassado de suas atividades, foi condenado à prisão. Liberado em maio do mesmo ano, seguiu para a Argentina. Em 1973, no Peru, Boal participou do Projeto ALFIN, nome dado à campanha de alfabeti-zação integral. Nesse contexto, então, ele iniciou a formulação de novos mé-todos teatrais: seus primeiros passos na concepção da poética do oprimido. Seguindo os princípios de Paulo Freire, que militava por uma pedagogia elaborada pelos e não para os oprimidos, Boal aspirava a uma prática teatral revolucionária, que incitasse os oprimidos a lutar pela libertação: “o ensaio antes da revolução, a ficção antes da realidade”. De fato, tratava-se, no Peru, da alfabetização de adultos. O ponto de partida dessa campanha, baseada nas teorias do pedagogo brasileiro, era que “os analfabetos não são pessoas que não sabiam se expressar: são sim-plesmente pessoas incapazes de se expressar numa língua determinada, im-posta” (BOAL, 2005, p. 14). Essa conjuntura originou o teatro-imagem, técnica que proíbe o uso

Antonia Pereira Bezerra28

2 Técnica que consiste em transformar em material

dramático os fatos polêmicos e delicados veiculados pelas

mídias e que, representados nas ruas e associações, solici-

tam a participação do povo

da palavra, espaço de desbloqueios e de linguagem corporal: comunicar aos oprimidos sim! Condição sine qua non: evitar a língua dos opressores. O ter-mo Teatro do Oprimido surgiu, por consequência, como título da primeira obra de Boal, na qual o autor referia-se explicitamente a Paulo Freire. O as-pecto pedagógico desse teatro aparece em primeiro plano. O projeto político destacou-se com força e impôs-se em um processo análogo ao que deu à luz a pedagogia da libertação. O Teatro do Oprimido tornou-se meio de comunicação e linguagem. Pretendendo desenvolver as capacidades expressivas do povo e transformá-lo em criador, oferecendo-lhe, de uma só vez, o conhecimento de uma lin-guagem cotidiana e também de uma linguagem artística, Boal, partidário de uma cultura popular, reivindicava uma arte teatral acessível a todos, profis-sionais ou não. Sua terceira obra clama ironicamente: “Todo mundo pode fazer teatro, até mesmo os artistas. Nós podemos fazer teatro em todo lugar, até mesmo num teatro” (BOAL, 2005, p. 18). Em clima de experimentações e controvérsias, Boal criou, grada-tivamente, novas técnicas de trabalho: dramaturgia simultânea, teatro invisível e Teatro-Fórum. Dramaturgia simultânea é uma técnica em que um grupo de atores apresenta/representa uma situação de opressão, cujas alternativas de combate – as soluções – são solicitadas à plateia. O espetáculo se desenvolve até o ponto da crise, até o momento em que o protagonista precisa tomar uma decisão. Nesse momento, a representação é interrompida e pergunta-se à plateia o que o protagonista oprimido deve fazer. Embora essa técnica inclua o espectador no seu desfecho, ainda reserva o monopólio e o poder de decisão à cena – aos atores. O teatro-invisível é uma técnica que consiste na representação de um problema no local onde a situação encenada deveria acontecer. Essa técnica surgiu como resposta à impossibi-lidade, ditada pelo autoritarismo na Argentina, de fazer teatro dentro do teatro. Uma cena do cotidiano é representada diante de espectadores – pessoas/personagens – que ignoram a natureza fictícia do fenômeno. Participando da representação sem reconhecê-la, de fato, como evento teatral, os espectado-res, participantes atores em potencial, reagem e opinam espontaneamente à discussão provocada pela encenação. O Teatro-Fórum, considerado uma das técnicas mais completas e elaboradas do Teatro do Oprimido, nasceu na periferia de Lima, mas evoluiu na Europa. Esta técnica é uma consequente evolução e sofisticação da técnica da dramaturgia simultânea. Foi na França,

Augusto Boal e as técnicas do Teatro do Oprimido: gênese, pessoas e personagens 29

em particular, que a técnica do Teatro-Fórum se sistematizou. O ano de 1976 marcou o início do exílio europeu, e Boal se instalou em Portugal. No mesmo ano, o livro Le Théâtre de l’Opprimé foi publicado na França. A forma como foi acolhido, aliada ao fato de Emile Copfermann, diretor das Éditions Maspero, convidá-lo para trabalhar em Paris, levaram Boal a fixar residência na capital francesa em 1978. A mudança de contexto conduziu Boal ao confronto com outras formas de opressão, desconhecidas ao autor até então. Identificar os oprimidos europeus tornou-se uma diligên-cia complexa. Encontrar o povo em Paris não foi tarefa das mais simples. Opressão na América Latina era sinônimo de repressão, e a reação estética que este teatro emitia tinha um destinatário concreto e bem definido: a dita-dura. O termo latino-americano de opressão perde, em parte, o seu sentido na sua imersão europeia. Nessa época, formou-se o Grupo Boal, reunião informal em torno do mestre. Em seguida, veio a necessidade de institucionalizar-se: o grupo adotou a sigla bárbara de CEDITADE3. A história da instituição Teatro do Oprimido foi tão polêmica quanto a sua prática com os oprimidos dos países desenvolvidos. Inúmeros são os críticos que acusaram Boal não somente de procurar parcerias com o “poder político e institucional”, principal fonte de opressões, como também de distanciar-se das origens revolucionárias, do militantismo inicial, para sucumbir à lógica de uma “personalização dos problemas sociais”. Ora, desenvolver um projeto que se pretendia popular em sociedades conhecidas geralmente como individualistas foi, de certa maneira, servir aos interesses imperialistas. Mas foi sem dúvida no quadro da Instituição CTO que o Teatro-Fórum, técnica emblemática do Teatro do Oprimido, se difundiu e é, nos dias atuais, praticado de forma massiva e frequente. Nessa técnica, antes da representação, o Curinga explica minuciosamente os objetivos da poética do oprimido. Através da aplicação de alguns jogos e exercícios que descontraem a plateia e passando rapidamente da teoria à prática, o Curinga incita os es-pectadores a tomar consciência da profunda mecanização do corpo. A esse ritual segue-se a representação do antimodelo. O antimo-delo é uma peça escrita sobre um tema único, a opressão, cujas formas são numerosas e variadas. No desenrolar da ação, nós assistimos à vitória dos opressores sobre os oprimidos, ainda que esses últimos sejam, eles também, opressores em outros momentos do espetáculo.

Antonia Pereira Bezerra30

3 Centre d’Etudes et de Diffu-sion des Techniques Actives

d’Expression, fundado em Paris por Boal em 1979 e reativado

em 1993 sob o nome de Centre du Théâtre de

I’Opprimé (CTO de Paris)

Augusto Boal e as técnicas do Teatro do Oprimido: gênese, pessoas e personagens 31

A Revolução na América do SulTeatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e janeiro de 2012

No final da representação, o Curinga e o “grupo” de atores explicam que eles não estão de acordo com o que foi representado e, se não mostraram soluções melhores, é porque não as conhecem: “nós sabemos que se trata de um erro e estamos perplexos, sem dúvida. E foi por isso mesmo que apresen-tamos esta peça”4. O “grupo” propõe-se a reapresentar a peça. Porém, desta vez, quando um espectador considerar que um dos personagens comete um erro, favorecendo a opressão, ele pode gritar Stop! e entrar em cena para subs- tituir a personagem opressora, e os outros atores improvisarão com ele a solução proposta. Mas o jogo não é tão simples assim. Assim como na vida real, se a solução do espectador não for viável e exequível, ele perde e é con-vidado pelo organizador do jogo, o Curinga, a retomar seu lugar na plateia.

O Curinga: funções e importância

Exercendo uma função pedagógica, maiêutica, o Curinga – duplo de Boal –, num espetáculo-fórum, assume o papel de conciliador, mediador do jogo. A interação do palco com a plateia, sob o olhar vigilante do Curinga, transforma o fenômeno da representação teatral na soma das tentativas e soluções oriundas dos espectadores com o objetivo de lutar contra uma de-terminada forma de opressão.

O antimodelo

O antimodelo, fábula curta geralmente resultante de improvisações e processos dramatúrgicos de criação coletiva, repousa sobre as oposições binárias entre opressores e oprimidos, cujos papéis e posições são frequente-mente mutáveis e mutantes no desenrolar de um mesmo espetáculo-fórum. O antimodelo é o conceito utilizado por Augusto Boal para definir uma peça escrita sobre um tema único, a opressão, cujas formas são numerosas e variadas e que apresentam sempre a dúvida, em contraposição a modelos teatrais que apontam desfechos e soluções ao drama encenado. Contrariamente às fábulas clássicas, o protagonista do antimodelo é aquele a quem o espectador identifica como oprimido e com quem, supos-tamente, ele deve solidarizar-se, e não o ator predominante. Se o especta-dor se identifica com o opressor e deseja substituí-lo, algo na elaboração do fórum deve ser profundamente questionado e repensado, pois tal conduta

Antonia Pereira Bezerra32

4 Vídeo do estágio “L’acteur dans la poétique du Théâtre de

l’Opprimé”. CTO, Paris. Feve-reiro de 1996. Acervo pessoal

Augusto Boal e as técnicas do Teatro do Oprimido: gênese, pessoas e personagens 33

vai contra os princípios e objetivos da poética do oprimido. Nesse sentido, exige-se que, já durante o processo de elaboração do fórum, a opressão seja claramente exposta, para que a intervenção do espectador seja objetiva.

O teatro legislativo

No final dos anos 1990, eleito vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo PT (Partido dos Trabalhadores), Boal levou sua trupe teatral ao “poder” e instaurou o polêmico teatro legislativo. Esse projeto previa na sua base a realização de sessões de Teatro-Fórum com as populações desfavorecidas das favelas e periferias do Rio de Janeiro. Os resultados finais dessas assem-bleias teatrais era examinados por um advogado, transformados em textos de leis e levados à Câmara de Vereadores para serem votados em sessões plenárias. Tais sessões era abertas à participação dos integrantes e realiza-dores dos espetáculos-fórum: verdadeiros atores sociais e teatrais, oprimi-dos da ficção e da realidade. Lembrar da Volksbühne e Erwin Picator não é tarefa das mais difí-ceis. O projeto do teatro legislativo guarda semelhanças profundas com o Freie Volksbühne Berlin, criado em 1890. Fruto de um movimento popu-lar que objetivava levar o teatro não somente à classe proletariada, mas a todos os “desfavorecidos”, este projeto originou uma verdadeira associação que geria seu próprio teatro: o Volksbühne, aberto em 1914, na Praça Rosa Luxembourg, em Berlim do Leste. Num percurso muito semelhante àqueles traçados por Piscator e Brecht, até a sua morte em maio de 2009, Augusto Boal jamais cessou sua militância por um teatro como instrumento de libertação das opressões sociais. Como seus predecessores, exerceu muitos ofícios na carpintaria tea-tral: teórico, dramaturgo e diretor teatral, dentre os mais importantes. Em suas “missões” mundo afora, cada experiência constituiu um apelo à trans-formação do mundo através do ato. Boal não concebia o sistema do Teatro do Oprimido em termos de utopia, mas sim em termos de ativismo. Quando nos referimos aos oprimidos de Boal, não evocamos os ter-mos fuga ou amadorismo; falamos essencialmente de espectadores ativos, uma vez que esse autor exorta atores e espectadores a transformar o mundo por meio do teatro. Apesar das críticas, Boal permaneceu discípulo de Brecht e de Marx, por extensão. Desejou que o teatro, como a filosofia, transfor-

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A Revolução na América do Sul

Teatro SESI, Salvador,novembro de 2011 e

janeiro de 2012

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masse o mundo! Foi acreditando que o teatro, se não transforma o mundo, no mínimo transforma pequenos mundos, que em 2010 aceitamos, a convite do SESI, praticar o Teatro do Oprimido, mais especificamente a técnica do Teatro-Fórum, com os trabalhadores da indústria. A empresa parceira para iniciar um projeto de fôlego foi a EMBASA.

A revolução do Embasart: a técnica do Teatro-Fórum

“Teatro-Fórum e pedagogia da intervenção: dimensões político-formativas com os trabalhadores da indústria” é o título do projeto de criação teatral – com ênfase nas dimensões estética, política e social do teatro – desenvolvido com o Grupo Embasart, envolvendo alunos da graduação e da pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e funcionários da EMBASA. Trata-se de uma iniciativa da FIEB (Federação das Indústrias do Estado da Bahia), através do SESI/DR-BA (Serviço Social da Indústria Departamento Regional da Bahia), com apoio do SESI/DN (Serviço Social da Indústria Departamento Nacional) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Sua finalidade prática con-siste na elaboração de espetáculos de Teatro-Fórum, técnica emblemática do Teatro do Oprimido, ancorando-se, num primeiro tempo, em vivências dos trabalhadores da indústria – histórias de opressão vividas pelos integrantes do Embasart; num segundo tempo, na montagem do texto de Augusto Boal A Revolução na América do Sul; e, num terceiro momento, finalmente, em A Máquina Escavadora, do dramaturgo francês Armand Gatti. Sob minha coordenação, o projeto – com duração de 18 meses – ancora-se no Teatro do Oprimido e no Teatro-Fórum de Augusto Boal. O objetivo consiste em modificar e reavaliar as relações dos membros do grupo, bem como os produtos estéticos do Embasart. As peças teatrais produzidas pelo Embasart, até então, procuravam aliar informação, entretenimento e res- ponsabilidade social, levando ao público a missão e os valores da EMBASA. As apresentações eram estruturadas com o objetivo de alertar e conscien-tizar a população da necessidade de preservação dos recursos naturais, além de trabalhar institucionalmente temas como aposentadoria, segurança no trabalho, pregão eletrônico e atendimento ao cliente interno e externo. Em outubro de 2010, o grupo ganhou outra configuração organiza-cional ao aceitar desenvolver um projeto voltado para a saúde do trabalhador,

enveredando, para tanto, nos princípios e técnicas da poética do oprimido. Nessa perspectiva, o NARTE (Núcleo de Arte), através do Programa de Quali-dade de Vida do Trabalhador, aprovou o referido projeto em parceria com o SESI, o qual, como já afirmamos, propõe uma dinâmica ancorada na técnica do Teatro-Fórum de Augusto Boal. A equipe de artistas e arte-educadores, responsável pelas atividades formativas e pelas montagens de espetáculos-fórum, tem a seguinte configuração: Dra. Antonia Pereira Bezerra na coorde-nação artística do projeto; a doutoranda Cilene Nascimento Canda; a dou-toranda Ana Flávia Hamad; a mestranda Taína Assis Soares; e a bolsista de apoio tecnológico Cibele Marina Pereira são as instrutoras responsáveis pela preparação vocal, corporal e direção do espetáculo-fórum. Ao lado dessa equipe central, um núcleo de psicologia coordenado por Denise Lemos e uma médica e socióloga do trabalho, Tânia Franco, também integraram o quadro de profissionais, com atuação em módulos desde a implementação do projeto. O NARTE e a diretoria administrativa da EMBASA, em parceria com a Superintendência de Gestão de Pessoas (GP) e a Divisão de Educação da Universidade Corporativa (UCE), foram respon-sáveis pela coordenação das atividades do grupo. A partir de outubro de 2010, os seminários, vivências e ensaios tiveram lugar uma vez por semana, contando 4 horas de atividade. Como se pode constatar, o projeto e o acordo assinados entre o SESI e a EMBASA, com financiamento do SESI/SENAI/CNI/CNPq, têm uma característica interdisciplinar, estabelecendo interfaces com outras áreas de conhecimento e discutindo temas como saúde do trabalhador, qualidade de vida, segurança, educação, entre outros. Os integrantes do grupo, por meio de atividades de representação e reflexão, são estimulados a potencializar a criatividade, desenvolver uma compreensão crítica da sociedade do tra-balho, ampliar competências e melhorar as relações interpessoais. Os da-dos tangíveis dessa empreitada revelaram uma promoção de comunicação otimizada intra e interinstitucional. O objetivo primordial consistiu, portanto, na geração de impacto na melhoria da qualidade de vida do trabalhador, através de um projeto estético e político. Como objetivos específicos, podemos elencar, ainda e entre outros: iniciação do Grupo Embasart na poética do oprimido; experi-mentação da técnica do Teatro-Fórum, fomentando reflexões teóricas e práticas sobre temas referentes a qualidade de vida, motivação, relações

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interpessoais, entre outros sugeridos pelos funcionários envolvidos no projeto; produção de três espetáculos teatrais durante um ano e meio, com participação ativa dos integrantes do grupo, gerando diversas apresentações em vários locais dentro e fora das instituições teatrais; sistematização e registro da experiência do grupo, através de publicação e DVD como mate-rial educativo. Tais objetivos fazem do projeto uma iniciativa pioneira que coloca o SESI/DR-BA e a EMBASA na posição de empresas inovadoras no enfoque da qualidade de vida do trabalhador através da arte. O ensejo maior con-siste em induzir o grupo no aprofundamento dessa técnica teatral e dar continuidade ao trabalho, ambicionando, inclusive a aplicação teórica e prática da proposta em outras empresas. Ora, a prática nos tem eviden-ciado que nossa proposta pode ser levada a qualquer empresa interessada em questões como qualidade de vida do trabalhador, relações interpessoais na instituição, produtividade e desenvolvimento do senso de cidadania e autoestima. Decerto tal perspectiva contraria, em muito, os propósitos ini-ciais de Augusto Boal, o qual nunca dissimulou suas sinceras desconfianças quanto à prática do Teatro do Oprimido no âmbito empresarial:

[...] algumas pessoas, por culposa ingenuidade ou doloso oportunismo, usam alguns elementos esparsos do Arsenal do TO dissociados da sua filosofia, e se deixam contra-

tar por empresas comerciais ou industriais para trabalharem com seus empregados. A falta grave não está em ser contratado por uma empresa ou por uma agência gover-

namental para fazer o seu próprio projeto com os grupos da sua própria escolha, mas sim em não perceber que essas empresas jamais permitirão em seu espaço empresarial

e com os seus funcionários a liberdade de expressão que o Teatro do Oprimido exige e sem a qual fenece .

(BOAL, 2005, p. 28)

Contudo, a experiência realizada com o Grupo Embasart apresentou possibilidades de uma formação consistente dos trabalhadores, sem diluir ou restringir o potencial artístico e político do Teatro do Oprimido. Para isso, foi necessário assegurar um espaço livre de experimentação teatral e de re-flexão crítica. Além disso, foram tomadas as providências necessárias para a realização integral do projeto. Tais providências serão tratadas a seguir.

A primeira experiência com o Embasart

No início do projeto, o Teatro-Fórum foi aplicado às opressões vividas pelos trabalhadores da EMBASA, integrantes do Embasart. A estreia diante de gestores e funcionários da EMBASA obteve grande sucesso, contrariando as suspeitas de Boal quanto à prática do Teatro do Oprimido com os traba-lhadores:

Se pagam pelo trabalho teatral é porque desejam melhorar a produtividade dos seus operários e funcionários, ou resolver problemas relacionais, a fim de aumentar seus

lucros – o que está perfeitamente dentro da lógica competitiva. Pagam e compram um serviço como se fosse mercadoria e, quem assim procede, em mercadoria se transforma.

(BOAL, 2005, p. 28)

Apesar das preocupações esboçadas por Boal, verificou-se que, por meio do diálogo com os dirigentes da indústria, foi possível ampliar a com-preensão acerca da importância do Teatro do Oprimido para a formação dos trabalhadores. Assim, pudemos garantir os objetivos primordiais e os posi-cionamentos éticos e políticos da proposta de Augusto Boal. Ao termo dessa primeira e iniciática etapa, algumas medidas tiveram de ser tomadas. A partir de então, a avaliação do projeto passou a levar em consideração:• realização de reuniões sistemáticas entre as coordenações da EMBASA, do SESI e da equipe artística;• avaliação da participação dos trabalhadores e da equipe facilitadora de forma a garantir os resultados esperados e obter sugestões para a promoção de melhorias necessárias;• revisão e ajustes dos procedimentos de atuação pedagógica junto à equipe de trabalho;• avaliação da repercussão da apresentação do primeiro espetáculo-fórum, tanto junto aos funcionários integrantes do grupo quanto junto aos especta-dores, através de questionários e entrevistas. Reorientados os termos do projeto, partimos então para as questões de ordem temática e temporal. O primeiro espetáculo, Cresça e Apareça, discutiu as relações no trabalho a partir de improvisações e roteiros elaborados em processos de

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Ensaio do espetáculo A Revolução na América do Sul

criação coletiva, cujo tema principal consiste na avaliação funcional. O segundo espetáculo, que teve sua estreia em novembro de 2010, voltou a cartaz no Teatro SESI, em Salvador, em janeiro de 2012. Para a mon-tagem desse espetáculo, partimos do texto de Augusto Boal A Revolução na América do Sul. O terceiro e último espetáculo, inspirado no texto de Armand Gatti, intitula-se A Máquina Escavadora e tem tradução de Isabela Silveira (mestranda do PPGAC) e Antonia Pereira Bezerra (orientadora).

O espetáculo-fórum: Cresça e Apareça

O primeiro espetáculo-fórum montado com o Embasart, Cresça e Apareça, tem como argumento principal a opressão sofrida por Ana Maria, uma representante sindical. Há cerca de 20 anos na empresa Lado B Design, Ana Maria se vê diante do conflito de precisar aceitar uma avaliação fun-cional da qual discorda. No decorrer da trama, apontam-se diversas formas e mecanismos de opressão, evidenciados através de uma personagem opres-sora, a gerente geral da empresa, Leonor, que lhe dá um ultimato: “ou assina a sua avaliação funcional ou será transferida para o setor de xerox”. Neste caso, o setor mencionado, além de rebaixar a atuação profissional da oprimida, tem atribuições completamente divergentes da formação e das habilidades da funcionária. No momento preciso em que a situação de opressão atinge o clímax, o ultimato dado por Leonor, o espetáculo é interrompido com a intervenção do Curinga. Mediando o jogo, o Curinga, através de suas exortações, propõe co-letivamente a busca de soluções provenientes do público para que a per-sonagem Ana Maria atinja seus objetivos, quais sejam: conseguir que sua superiora efetue uma revisão de sua avaliação funcional. O papel do Curinga neste caso foi desempenhado pela doutoranda Cilene Canda5.

Cresça e Apareça: o processo

A questão mais delicada no processo de montagem de Cresça e Apareça foi, sem dúvida, a construção do papel da protagonista do espetácu-lo-fórum: a personagem de Ana Maria e sua postura diante das estratégias de opressão da antagonista, Leonor.

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5 Sob minha orientação, Cilene Canda desenvolve tese de

doutorado no PPGAC/UFBA intitulada “Dimensões estéticas

e políticas da pedagogia do teatro do oprimido: o caso do

Grupo Embasart”

O objetivo do trabalho consistia na otimização dos traços e atitudes opressoras na atriz que interpretava a superiora. O objetivo de tal mecanismo era dificultar a vida de Ana Maria e as intervenções do espectador, no sen-tido de libertar a protagonista de sua condição de oprimida. O impacto da intervenção junto ao grupo e aos espectadores, a partir da ideia de catarse no Teatro do Oprimido (BOAL, 1996), foi decisivo e notório. Assim, construiu-se um antimodelo, a partir do tema da avaliação funcional inspirado em experiências do grupo. Na construção do antimodelo sobre a avaliação funcional, uma protagonista oprimida discorda de sua análise funcional, que foi negativa e violenta, pois que pautada em critérios aleatórios e absurdos, sobretudo em face “dos muitos anos de dedicação à empresa”. A angústia vivenciada pela protagonista acentuou-se, durante o processo, em seus movimentos contraditórios. Assim revela-se o quanto a questão da avaliação funcional foi vivida de maneira dolorosa por integran-tes do grupo. O relato de alguns integrantes converge com a percepção dos pesquisadores; após a vivência do fórum, eles afirmam estar lidando de for-ma mais tranquila com esse conflito que, anteriormente, os levara a buscar ajuda junto a profissionais de saúde mental. Percebem-se aqui as evidentes possibilidades terapêuticas do Teatro do Oprimido. Neste primeiro ano de projeto, observou-se a viabilidade de um pro-cesso de intervenção junto a grupos de empresas no sentido de evidenciar e discutir questões pertinentes às relações trabalhistas institucionais causa-doras de conflitos. As relações entre oprimidos e opressores na dinâmica institucional foram postas na pauta do dia, através da cena e do consequente debate, e pouco a pouco foram reveladas e dissolvidas. O processo representou também desenvolvimento qualitativo para os membros do grupo no que tange ao modo de relacionar-se, em especial no ambiente de trabalho. Muitos integrantes relataram que hoje percebem de modo mais crítico as opressões das quais padecem em seu cotidiano, e tal consciência lhes permite atribuir sentido a certas angústias relacionadas ao ambiente de trabalho, o que culmina na descoberta de novas formas de lidar com essas opressões. Em alguns casos é possível perceber mudanças no comportamento dos sujeitos na postura corporal, na impostação de voz, na forma como se posicionam com relação ao outro. Um exemplo concreto dessas evoluções pode ser constatado pela mudança na postura de um dos membros do grupo, que chamaremos aqui

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de Sr. X. No início do processo, Sr. X apresentava-se tímido, com uma voz quase inaudível, em desalinho com sua grande estatura, cerca de 1,80 m. A partir das atividades, em especial da atenção dada a uma projeção vo-cal – após o trabalho com a mestre Ana Flávia Hamad –, Sr. X apresentou mudanças não apenas na postura vocal e corporal; em momento oportuno, colocou-se de forma contundente diante de um dos gestores da empresa, defendendo seu ponto de vista e reivindicando, de forma bastante clara, o desejo do grupo de apresentar o espetáculo não só aos gestores, mas aos tra-balhadores da empresa a quem intitulou como oprimidos. Esses oprimidos mereciam ter voz no capítulo e deveriam se posicionar cenicamente diante da questão encenada no fórum. No espaço aberto para discussão sobre avaliação funcional, foi pos-sível aos membros do Grupo Embasart e aos outros funcionários da empresa que estiveram presentes ao espetáculo discutir e, talvez, ressignificar angús-tias geradas no processo vivido na empresa; o Teatro do Oprimido procura desenvolver o desejo de instaurar espaços nos quais se possa criar, aprender, ensinar, transformar. Em outubro de 2010, o Embasart contava com nove in-tegrantes, sendo que apenas seis deles eram assíduos e realmente engajados no processo de formação política e estética pelo viés do Teatro-Fórum. Após a encenação do espetáculo Cresça e Apareça, em novembro de 2011, o Em-basart contava com 23 integrantes, participantes ativos e fervorosos. O desafio continuou para a elaboração de mais dois espetáculos de Teatro-Fórum, ancorando-se, num primeiro tempo, no texto de Augusto Boal A Revolução na América do Sul e inspirando-se, num segundo tempo, numa peça didática do Pequeno Manual de Guerrilha Urbana6, intitulada A Máquina Escavadora – La Machine Excavatrice, de Armand Gatti.

A Revolução na América do Sul

A Revolução na América do Sul, texto de Augusto Boal escrito no início dos anos 1960, inaugurou uma nova estética no Teatro Arena de São Paulo. Com este texto há, por parte de Boal, um abandono da “dramática” em prol de um investimento no gênero cômico, e por que não dizer farsesco (op-ção que viabilizava ao autor a inserção da narrativa épica, a mais adequada para provocar o efeito de distanciamento), Verfremdung, de Bertolt Brecht. A trama de A Revolução na América do Sul problematiza as tensões

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6 Após os acontecimentos de maio de 1968, inspirando-se em Che Guevara, Gatti publi-

cou o Petit Manuel de Guérilla Urbaine (Pequeno Manual de

Guerrilha Urbana). Sobre a trajetória de Gatti e as peças

do Pequeno Manual, ver artigo Armand Gatti: “Informando e formando espectadores-

atores”. In: Sala Preta, Revista do Departamento de Artes

Cênicas, ECA/USP, n. 2, 2002, p. 293-299

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A Máquina EscavadoraTeatro SESI, Salvador, maio de 2012

na relação entre capital e trabalho por meio das mediações sociais existentes. Assim, o operário brasileiro e a situação econômica e social a que ele está submetido são o motor principal. A fábula gira em torno da saga de José da Silva, operário e homem simples do povo. Fiel aos princípios brechtianos, a peça é episódica, ou seja, dividida em quadros. Em todos os quadros, o único objetivo de José é conseguir comida; a cada quadro do texto ele passa por uma situação inusitada que ilustra a condição do operário brasileiro. No final da história, José morre engasgado com a primeira colherada de comida.

A encenação de A Revolução na América do Sul

Para a adaptação do texto à encenação com o Embasart, preserva-mos apenas nove quadros. A peça inicia-se com os atores/trabalhadores da EMBASA cantando o Hino Nacional e um corifeu anunciando que a revolução vai começar. Em seguida, distribuídos nesses nove quadros, temos José da Silva; seu opressor principal, o patrão; e seus opressores secundários, que são a mulher, o feirante, os parlamentares e o próprio Zequinha, amigo, mais informado e menos alienado que José, que o incita a fazer a revolução em vez de pedir aumento. Na verdade, José da Silva é expulso de casa pela mulher, com o aviso de que não adianta ele voltar antes de pedir aumento ao patrão. José, apesar do medo, consegue solicitar o tal aumento, mas é expul-so do escritório do patrão – representado por uma grande sombra projetada numa parede branca e uma voz imponente – pelo imenso amedrontador capanga deste último. Na saída, ao lamentar-se com Zequinha do fracasso, José da Silva descobre que o salário foi aumentado; porém, em sua jornada, ele consta-ta que o preço de tudo também aumentou. De que adianta o aumento do salário, se tudo aumenta junto? Quem é o culpado por tanto aumento? Do parlamentar ao feirante, passando por borracheiros e outros capitalistas, José da Silva, não encontrando respostas à sua pergunta e convencido por Zequinha, decide participar da revolução. Marca-se dia e horário numa boate, ambiente isento de suspeitas. No entanto, é nesse ambiente que José, abandonado pelos companheiros de luta, é surpreendido pelo patrão em primeiro lugar e depois pela própria mulher, segurando uma bandeira ver-melha com a insígnia REVOLUÇÃO! O espetáculo interrompe-se com a máxima “você escolhe: ou faz

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a revolução ou está demitido”, acompanhada dos apelos desesperados da mulher, que relembra a José os filhos com fome. As luzes se apagam e o Curinga ocupa a dianteira da cena. Como se trata de um texto convencional adaptado ao Teatro-Fórum, são propostas algumas imagens de momentos emblemáticos do espetáculo, a fim de facilitar a passagem. As imagens con-sistem em estátuas/fotografias (teatro-imagem) criadas pelos atores e que condensam momentos nos quais a situação de opressão atinge seu paro-xismo. Esse ritual tem a função de auxiliar o espectador em sua entrada em cena para substituir o protagonista oprimido. Nesse sentido, os atores constroem as imagens, os espectadores retomam essas imagens dos atores e, a um sinal do Curinga, a imagem toma vida e propõe uma alternativa de libertação à opressão em pauta. Neste espetáculo foram quatro imagens no total, as quais retratavam e condensavam os principais momentos de opressão infligidos pelos opressores de José: a mulher, o feirante, os parla-mentares e o patrão.

A Revolução na América do Sul: o processo

A Revolução na América do Sul, texto ainda pouco montado e estu-dado no Brasil, constitui um material didático promissor; as questões sociais, históricas e políticas que lhe são imanentes foram um grande aporte na for-mação dos integrantes do Embasart. A montagem colocou o acento no tra-balho de preparação do ator inspirado nas técnicas da Commedia Dell’Arte, particularmente com a intenção de evidenciar a dimensão episódica do texto e facilitar a técnica do distanciamento brechtiano na interpretação dos atores. Os principais personagens opressores usavam máscaras e tinham gestuais e deslocamentos que mais se assemelhavam a uma coreografia. Ademais, o modelo dramatúrgico da intriga de A Revolução na América do Sul é bastante similar ao antimodelo dramático do espetáculo-fórum – apresentando em suas situações dramáticas o conflito constante entre opressores e oprimidos. Este aspecto autorizou com maior serenidade a adaptação do texto à técnica do Teatro-Fórum. No espetáculo-fórum que se seguiu às apresentações da peça, os espect-atores, inicialmente tímidos, ganhavam a cena e jogavam o jogo maravilhados e entusiasmados com a ficção e seus labirintos. O terceiro e último espetáculo foi livremente inspirado no já referido

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A Revolução na América do Sul

Teatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e

janeiro de 2012

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texto de Armand Gatti, A Máquina Escavadora. A fábula original de Gatti gira em torno da história de Totuy e Marianne, um guerrilheiro e uma profis-sional de meteorologia que tiveram no passado um relacionamento afetivo. No presente, Totuy se encontra em Cuba, à frente da colônia de invasão de Che Guevara, e Marianne está na França, exercendo sua profissão. Ambos se perguntam se é ou não possível prosseguirem nesta relação, já que se encon-tram tão distantes e têm projetos de vida tão diferentes. Essa discussão do casal tem lugar, se não num plano onírico, no mínimo numa dimensão poé-tica, considerando que os dois se encontram em locais distantes e distintos e que misturam diálogos do passado e do presente às suas considerações. Os companheiros de Totuy se opõem veementemente ao romance, por considerarem a luta armada incompatível com uma relação dessa na-tureza. Em dado momento os atores abrem a discussão para os espectadores, que passam a opinar, através da votação e da participação direta na cena. A Máquina Escavadora ou para entrar no plano de implementação da colônia de invasão de Che Guevara comporta seis personagens: Totuy; Marianne, sua mulher; o Capitão cubano; Cecil, Dionige, Rogelio – camaradas de Totuy. A peça subdivide-se em quatro espaços, norte, sul, leste, oeste, todos localiza-dos e decorados com os diferentes elementos de uma máquina escavadora. No centro, há um abrigo meteorológico ocupado pela personagem de Marianne no qual se encontram diferentes espécies de aparelho: plu-viômetro, termoscópio, barômetro, anemômetro, higrômetro e radiossonda. No início, entre os espaços leste e norte, numa atitude de personagens con-gelados como em fotografias, encontram-se Totuy, Dionige, Cecil e Rogelio. Sobre o abrigo meteorológico, Marianne lê cartas. Por vezes, ela interrompe a leitura para olhar uma fotografia. Toda a intriga ancora-se nesta troca de cartas. Os personagens não se falam diretamente, eles se contam. A rigor, La Machine Excavatrice pode ser definida como uma peça de seis personagens que se contam diante do público. Em sua tentativa de integrar à linguagem teatral formas que, a priori, não são teatrais, esta solução surgiu para Gatti como a mais viável. O debate de La Machine Excavatrice gira em torno da pertinência da relação do casal protagonista da ação, Totuy e Marianne. Essa característica do texto nos autorizou, através da imagem calei-doscópica, a encontrar ecos e semelhanças de situações de impasses ou de divisão que engendraram situações concretas de opressão nos integrantes do Embasart. Os membros do Embasart combateram em cena situações de

opressões de gênero, raça, cor, orientação sexual ou assédio sexual padeci-das no contexto de trabalho. Espectadores e atores definem conjuntamente os rumos do próprio espetáculo. O trabalho do Embasart iniciou-se com a encenação de opressões reais, afirmou-se com a encenação de um texto dramatúrgico convencional e finaliza partindo de um texto para chegar às opressões reais. O movimento cíclico seria então da vida à ficção; da ficção à vida. Quem reinventa o quê?

Considerações finais

Por que, após nos ancorarmos em opressões reais, vivenciadas pelos integrantes do Embasart, optamos pelo mergulho nas poéticas de Augusto Boal e Armand Gatti? Como preservar os objetivos iniciais da parceria entre SESI e CNPq, os quais primam por uma busca de melhoria das relações in-terpessoais, da saúde no trabalho e da qualidade de vida do trabalhador? Em termos conceituais, os elos e parentescos entre A Máquina Escavadora e a técnica do Teatro-Fórum podem ser assim apontados:• Dramaturgicamente, são modelos inacabados e que veiculam uma men-sagem ideológica.• Quanto aos objetivos, nem o Teatro-Fórum nem A Máquina Escavadora oferecem soluções, mas as solicitam ao espectador.• Ambos os projetos rompem com as clássicas funções dos atores e dos seus papéis, questionando profundamente a peça e sua problemática marxista. Gatti e Boal exortam incessantemente à reflexão e à ação. Tecnica-mente, os pontos comuns entre Boal e Gatti podem ser relacionados em qua-tro grandes eixos prediletos:• Ação (fábula, dramaturgia)• O modo do jogo (a interpretação ou conduta dos personagens)• O espectador: um ator potencial• A concepção de homem e de sociedade Chegamos à questão crucial: o salto qualitativo dos aspectos téc-nicos à dimensão existencial. Tanto em Gatti quanto em Boal, constatamos que o desfecho da fábula é uma questão secundária em relação ao processo. Assim como para Aristóteles, também para Gatti e Boal a fábula permanece a alma do drama. Porém, em virtude da reivindicação de uma nova visão de fábula e de dramaturgia, as poéticas de Boal e Gatti subentendem uma

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refutação do “espetáculo-produto” em detrimento do “espetáculo-processo”, espaço de intercâmbio e de aprendizagem entre pessoas. Aprender a apren-der, conceito que remete à concepção interativa do binômio professor-aluno de Paulo Freire, seria a meta principal das peças de Gatti e dos antimodelos do Teatro-Fórum. A partir de então, o ator não é o personagem, nem mer-gulha num processo de total ilusão; a representação passa a não ser mais um fenômeno fictício em si, mas um debate sociopolítico, como defendia Bertolt Brecht. Nessa perspectiva, atores e espectadores identificam-se, num primei-ro tempo, com a causa, a opressão em questão, para, num segundo momento, distanciarem-se dela. Stanislavski torna-se um momento necessário para se fazer Brecht: do “como se?” passamos a “o que você faria se?”. O antimodelo e o modelo dramatúrgico das peças de Gatti (suscetíveis de serem modifica-dos, mas não completamente transformados) não propõem uma situação de conforto entre o palco e a plateia. Podemos até afirmar que estes funcionam como uma espécie de armadilha. De fato, como os espectadores passam a ser mais do que simples testemunhas da ação e dispõem, em consequência, de outras armas diferentes daquelas dos comediantes, do animador do jogo e/ou do dramaturgo, só podem entrar no jogo para jogar contra a dramatur-gia, o autor ou coletivo de autores, no caso da escrita coletiva. Para ambos os autores, esses modelos dramatúrgicos, assim como as encenações que resultam deles, têm suas origens na ficção, mas devem estender-se à vida real; tanto para Gatti quanto para Boal, mais que a cena, é a vida que precisa ser transformada. O Teatro-Fórum e as peças de Gatti oferecem ao espectador a possibilidade não somente de reconhecer o aspec-to lúdico e fictício da representação (com o objetivo de encontrar soluções e alternativas aplicáveis à vida), mas, sobretudo, de interrogar a natureza da representação no jogo teatral e através dele. É nessa perspectiva que jogo e ficção, longe de oprimir, devem libertar. O fórum e o Pequeno Manual não operam apenas uma pseudometamorfose dos espectadores em atores, mas os transformam igualmente em dramaturgos. Nem Gatti nem Boal renunciaram aos trabalhos de escrita pessoal. Contudo, nas suas “missões”, cada experiência constitui um apelo à trans-formação do mundo: através do verbo para Gatti e através do ato para Boal. Ambos não concebem seus sistemas em termos de utopia, mas em termos de ativismo. Quando nos referimos aos loulous7 de Gatti ou aos oprimidos

7 Termo francês diminutivo de lobo. Lobinhos é forma afetiva adotada por Gatti para designar os que vivem “à margem da sociedade”

de Boal, não evocamos os termos fuga ou amadorismo; falamos essencial-mente de espectadores ativos, uma vez que esses autores exortam atores e espectadores e formulam, através de técnicas dramatúrgicas ou de jogo teatral, um convite a “transformar o mundo”, recompensando uma escrita e uma ação oriundas dos “atores da realidade” e da “trama da existência”. Trata-se de uma autêntica pedagogia da intervenção, em prol de um teatro e de formas teatrais que rompem com as convenções e distanciam-se, ainda que simbolicamente, do “anfiteatro do espetáculo” para retornar ou recuperar sua ancestral função libertadora e sua inexorável dimensão democrática. Gatti e Boal, pretendendo situar no mesmo plano o espectador e o ator, a pessoa e o personagem, propõem uma “redemocratização do teatro”, pela reivindicação de um evento similar à festa e, também, pelo questiona-mento das relações de produção e consumo. Em suma, eles tentam “reins-taurar uma produção livre”: a do homem se produzindo, ele mesmo, diante de outros homens, longe de “quaisquer diferenças”. As poéticas de Gatti e Boal, pela reivindicação de um teatro político e “popular”, esforçam-se para denunciar o sistema pelo qual a “cidade” lançava e lança, ainda, uma ar-madilha ao cidadão-espectador. Trata-se, com efeito, de práticas engajadas na transformação do coletivo e do individual, da pessoa pelo viés do perso-nagem.

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Augusto Boal e as técnicas do Teatro do Oprimido: gênese, pessoas e personagens 51

A Revolução na América do SulTeatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e janeiro de 2012

Antonia Pereira Bezerra52

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No presente artigo, apresentamos a descrição e a análise do processo de encenação do espetáculo-fórum Cresça e Apareça, resultante da primeira etapa de formação dos integrantes do Grupo Embasart na linguagem do Tea-tro do Oprimido. Para isso, retomamos os procedimentos utilizados para a montagem de um espetáculo de Teatro-Fórum e refletimos sobre o processo formativo em teatro desencadeado por meio da metodologia do Teatro do Oprimido.

Formação teatral do Grupo Embasart: por uma pedagogia da intervenção

Neste artigo, enfocaremos os procedimentos adotados na monta-gem de um espetáculo de Teatro-Fórum com trabalhadores da EMBASA. O propósito da montagem cênica foi retratar relações de opressão, sejam simbólicas ou materiais, vividas por trabalhadores no cotidiano de uma em-presa. Pretendia-se provocar o público a refletir sobre os problemas apresen-tados e testar cenicamente possíveis soluções. O caminho mais adequado para alcançarmos tal objetivo foi a utilização do Teatro-Fórum, técnica mais difundida do Teatro do Oprimido. Nossas reflexões se desenvolveram com base no seguinte questiona-mento: qual o caminho metodológico percorrido no processo de montagem de um espetáculo de Teatro-Fórum com trabalhadores da indústria? Partin-

CRESÇA E APAREÇA: PROCESSO DE MONTAGEM DE TEATRO-FÓRUMCOM O GRUPO EMBASART

Cilene Nascimento Canda

Professora assistente do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CFP/UFRB)

Mestre em Educação e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA)

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do dessa questão, analisamos o processo criativo em teatro no interior de uma empresa, descrevendo desde a escolha do tema até o processo de di-reção e os ensaios do espetáculo de Teatro-Fórum construído com o Grupo Embasart. O processo de montagem do primeiro espetáculo de Teatro-Fórum do Grupo Embasart iniciou-se com o levantamento de temas relevantes para os participantes. Objetivando a construção de cenas e a fisicalização de ele-mentos que seriam utilizados na encenação, foram adotados procedimentos técnicos de improvisação e exercícios de teatro-imagem, uma das modali-dades do Teatro do Oprimido que consiste na criação de imagens e de cenas com o uso do corpo, sem o auxílio da voz e da palavra. No procedimento utilizado, os participantes criaram imagens corporais para representar e ex-pressar as situações e os temas propostos. A necessidade de fisicalização dos gestos se deu por compreendermos, com base nos estudos de Augusto Boal e de Viola Spolin, que a palavra é um instrumento muito poderoso que pode anular ou diminuir o potencial expressivo do corpo na interpretação teatral. Trabalhamos com a criação espontânea de cenas e de situações, tanto no âmbito individual, a exemplo da construção dos personagens, quanto na es-fera coletiva, referente à produção das cenas. Dentre os procedimentos téc-nicos, destacamos a preparação vocal e corporal, a proposição de estímulos à criação coletiva, as improvisações dos temas propostos, as marcações das cenas e o estreitamento dos diálogos e das relações entre os personagens. Com tais experiências, foi possível notar que, ao longo do processo de cri-ação, os participantes ampliaram seu repertório artístico e, conforme Viola Spolin (1987, p. 5),

tornam-se ágeis, alertas, prontos e desejosos de novos lances ao responderem aos diversos acontecimentos acidentais simultaneamente. A capacidade pessoal para se

envolver com os problemas do jogo e o esforço despendido para lidar com os múltiplos estímulos que ele provoca determinam a extensão desse crescimento.

Com base nisso, investimos em exercícios de improvisação que fa-vorecem a aprendizagem teatral. Ao lado, apresentamos uma imagem de um dos exercícios propostos. Buscamos, com o uso da técnica de teatro- imagem, provocar os participantes a se expressarem corporalmente e a uti-lizarem o material investigado na montagem propriamente dita. Nos exer-

Cilene Nascimento Canda56

cícios, estimulou-se a criação de um objetivo físico e simples para os per-sonagens que, na perspectiva de Stanislavski (1988, p. 145), “além de ser crível, deve exercer atração sobre o ator, dar-lhe vontade de executá-lo. Esse magnetismo é um desafio à sua vontade criadora”. Esse era o início de um processo de aprendizagem teatral com duas vertentes: a produção de uma base para o exercício de construção de perso-nagens e a criação de uma narrativa dramatúrgica que revelasse as relações dicotômicas entre opressores e oprimidos, visto que o trabalho não se apoiou em um texto escrito. A nosso ver, o processo de preparação do grupo para a cena foi essencial para a criação das cenas do espetáculo de Teatro-Fórum e para o aprendizado teatral. Visamos assegurar este conhecimento para evitar a produção de cenas sem o entendimento sobre as coerências internas – e políticas – dos personagens, fossem eles opressores ou oprimidos. Este processo criativo contribuiu para a consolidação de um repertório de experiências do Grupo Embasart relevante para as futuras aventuras teatrais. Este é um processo artístico-pedagógico caracterizado pelo diálogo

Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o grupo Embasart 57

Processos de montagem / oficinas

e pela experimentação de linguagens, o que exige uma escuta sensível das críticas para repensar a própria ação no palco e na vida. Exercita-se, por-tanto, a habilidade de construção de novos aprendizados. Esses fundamen-tos assemelham-se às reflexões pedagógicas de Paulo Freire, ao assumir que todo ser humano é inacabado e, por isso mesmo, voltado à atitude perma-nente de aprender. Com base nos estudos do autor, ao assumir a condição de ina-cabamento, o ser humano está a todo instante aproveitando as oportuni-dades da vida social para novas aprendizagens. No teatro, é fundamental a consciência do aparato técnico que se acumula, bem como o reconhecimen-to dos conteúdos cênicos que ainda precisam ser construídos. Essa postura foi desafiadora porque consistiu na investigação do fazer técnico, sem a per-da da sensibilidade produzida no exercício teatral. Partindo deste princípio e com a utilização de jogos teatrais sistema-tizados por Augusto Boal, consideramos a importância de revisar e de con-versar sobre as cenas, apontando problemas e estimulando o grupo para a criação de resoluções cênicas. Isso gerou uma maior consciência do ato cênico e das possibilidades de atuação no palco. Longe de definir o certo ou o errado no exercício do ator, afirmamos, a todo instante, que pensar sobre as estratégias cênicas utilizadas possibilita aos iniciantes na linguagem tea-tral a reflexão e a consciência sobre a sua própria ação no palco. Com a criação de imagens, aos poucos, as palavras eram introduzi-das nas cenas corporais criadas pelo grupo. Durante o processo, enfatiza-mos que a palavra é um forte instrumento de poder, porque não é um sim-ples ruído anunciado; a palavra é repleta de sentido ideológico e significado cultural construído socialmente. Com base nisso, Boal (2009, p. 78) afirmou que, sendo humanos, “desejamos possuir palavras, fazê-las nossas – palavras são formas de poder”. Além de seu poder ideológico, a palavra tende a limitar a expressão corporal e a criação artística, quando usada separadamente. No teatro, a palavra sem o corpo torna-se mero discurso ideológico, mas, quando o corpo está ativado, o sujeito torna-se presentificado pela ação dramática, provocando maiores resultados estéticos e também políticos. A ação cênica é capaz de entreter ativamente a plateia por meio da valorização do seu vigor estético, e não somente com o uso do discurso verbal de conteúdos políticos, que tendem a tornar o espetáculo com baixo potencial mobilizador da ima-

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ginação e do pensamento. O corpo, o gesto e a ação são elementos funda-mentais e insubstituíveis do fenômeno teatral. Esse foi o foco da formação inicial1 em teatro do Grupo Embasart.

Teatro-Fórum: aprendizagem e criação artística

O Teatro-Fórum é considerado por Boal um ensaio para a vida, por meio do qual o espect-ator2 experimenta as possibilidades de atuação, de reivindicação e de resolução das opressões vividas ou testemunhadas no contexto social. Essa técnica visa colocar em prática as diferentes ideias e sugestões de ações dadas pela plateia para a superação do problema de opressão apresentado. É um jogo no qual se testam as possibilidades de atu-ação pelos próprios espect-atores no lugar do sujeito oprimido na cena. Tal experiência pode fecundar um processo de tomada de consciência a ser am-pliado nos embates diários da vida social. Em síntese, a técnica de Teatro-Fórum consiste em apresentar um problema social em cena, um antimodelo (modelo de vida marcado por situações de opressão social, que não deve ser tomado como exemplo), no qual o personagem protagonista é impedido de realizar seu desejo por conta da opressão de outro personagem. Na cena, apresentam-se diferentes moti-vações: as do opressor, as do oprimido e as dos aliados de ambos os lados. Dessa maneira, a Profa. Dra. Antonia Pereira Bezerra (2010, p. 126) esclarece que

O Antimodelo repousa sobre as oposições binárias entre opressores e oprimidos. Contrariamente às fábulas clássicas, o protagonista do Antimodelo é aquele a quem o espectador identifica como oprimido, e com quem, supostamente, ele deve solidarizar-

se, e não ao ator predominante. Isso exige do Fórum que a opressão seja claramente exposta, para que seja objetiva a intervenção do espectador.

Para que o fórum ocorra, é importante que o desejo do oprimido não tenha sido realizado; assim, a plateia assume o espaço para opinar e atuar cenicamente no lugar do oprimido, buscando alternativas para a resolução do problema. O fórum, em sua essência, é uma pergunta posta ao espect-ator, por exemplo: o que você faria se estivesse imerso em uma situação se-melhante a esta? As respostas devem ser cênicas, de produção estética, e não

1 Neste texto, uso a expressão “formação inicial” por conside-rar que muitos dos integrantes do Grupo Embasart nunca haviam tido oportunidade de participar de oficinas e cursos de teatro, tampouco integrar uma montagem cênica

2 “Espect-ator” é o nome dado por Boal ao espectador que passa pela experiência de ator no espaço cênico, para de-bater e discutir, cenicamente, questões relacionadas ao tema e ao problema apresentado pelo espetáculo. O espect-ator é convidado a pensar possíveis soluções para o problema de opressão apresentado cenicamente

Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o grupo Embasart 59

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Cresça e ApareçaTeatro SESI, Salvador,

maio de 2011

apenas verbal, e o palco transforma-se em uma arena de estratégias mostra-das pelo espect-ator a serem refletidas coletivamente. Para facilitar o fórum e ativar os espect-atores, destacamos o Curinga, responsável pela mediação entre o palco e a plateia e pelo estímulo à reflexão sobre cada proposição realizada.

A criação das cenas do espetáculo Cresça e Apareça

Para a construção da montagem, solicitamos que os participantes compartilhassem algumas histórias de opressão vividas no interior da em-presa. As histórias reais, que apresentaram um nítido problema de opressão vivido pelos participantes, foram discutidas e selecionadas para a montagem do espetáculo-fórum. Nesse procedimento, utilizamos três critérios principais para a seleção das histórias, a saber: 1) a não realização de um desejo, por conta da força opo-sitora de um antagonista opressor; 2) a viabilidade cênica; e 3) a possibilidade de tal fato acontecer com outros trabalhadores em empresas. Além disso, o problema deveria ser claro e objetivo para que a plateia formulasse interven-ções e propostas de solução. Por essa razão, Boal (2007, p. 326) advertia que,

quando se tem um problema claro, concreto e urgente, é natural que o debate se dirija para soluções igualmente urgentes, concretas e claras. Um tema nebuloso provoca

nebulosidade. Pode ser, ao contrário, que a imprecisão seja apenas aparente, e que o fórum sirva para analisar uma situação, em vez de sintetizar soluções possíveis.

Na experiência do Grupo Embasart, a indicação foi de que as histórias pessoais fossem contadas em duplas, sendo selecionada apenas uma a ser compartilhada em pequenos grupos, até a conclusão da escolha de uma história que seria improvisada por cada grupo. O Teatro-Fórum é, conforme afirma Boal (2005, p. 215), um ensaio para a vida social; assim,

Pode ser que o teatro não seja revolucionário em si mesmo, mas estas formas teatrais são certamente um ensaio da revolução. A verdade é que o espect-ator não pratica um ato real, mesmo que o faça na ficção de uma cena teatral. Enquanto ensaia jogar uma

bomba no espaço cênico, está concretamente ensaiando como se joga uma bomba; quando tenta organizar uma greve, está concretamente organizando uma greve.

Dentro dos seus termos fictícios, a experiência é concreta.

Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o grupo Embasart 61

O Teatro-Fórum se destina à libertação das duas direções do palco: o ator e o espect-ator. Por isso, ressalvamos a necessidade de tratar de temas de interesse dos atores e do público, preferencialmente aqueles problemas que podem ter sido vividos por qualquer sujeito da plateia. De algumas histórias contadas, foi selecionado o caso vivido por um dos integrantes do grupo referente à avaliação funcional. O tema gerou inter-esse e, ao mesmo tempo, desconforto no grupo, que tinha receio de debater um tema tão polêmico. Consumamos, de fato, a experiência de Teatro-Fórum em empresa tratando de um assunto complexo e delicado, que foi abordado de forma divertida e bela, com a mesma intensidade das suas provocações políticas. O teatro como ato vivente deve surgir da própria vida, com todas as suas contradições, formas dinâmicas e modos de resolução. Compreen-demos que a teatralidade na vida cotidiana nos oferece ricos elementos para a criação cênica. Após muitas conversas e esclarecimentos de dúvidas e incertezas, chegamos ao consenso do tema da peça: a avaliação funcional. O assunto surgiu a partir do relato de um dos integrantes enviado por e-mail e mantido em sigilo, para evitar a exposição do autor. Além disso, muitos dos integran-tes apresentaram interesse na discussão a respeito dos critérios e procedi-mentos da avaliação funcional. Diante disso, elaboramos um roteiro mínimo produzido em uma das reuniões de planejamento da equipe, sem falas, tratando apenas dos obje-tivos de cada cena que foi improvisada, dirigida e aprimorada ao longo do processo de montagem. Sob mediação artístico-pedagógica, construiu-se a história de Ana Maria3, uma funcionária exemplar que foi mal avaliada pela gerente da empresa onde trabalhava. A partir desse argumento, criamos duas grandes cenas.

Cena 1

A personagem Ana Maria é apresentada ao público como uma funcionária criativa, produtiva e bastante empenhada em seu ofício que, mais tarde, sofreria algum tipo de opressão no interior do ambiente de trabalho. Este momento é chamado, pelo Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio), de contrapreparação, ou seja, é o momento em que se apresenta à plateia o protagonista da narrativa, as suas motivações e

3 Ana Maria é uma perso-nagem fictícia e protagonista desta cena de Teatro-Fórum

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os interesses pessoais e coletivos. Nessa primeira cena, consolida-se um envolvimento afetivo e ide-ológico com o público, geralmente por meio das suas questões éticas e in-quietações a respeito de injustiças diversas. O oprimido, ainda não revelado como tal, deve suscitar a empatia no espect-ator; ou seja, o ato cênico conduz o participante a colocar-se no lugar do oprimido, identificando-se com suas motivações apresentadas em cena. O processo de empatia deve ser visado pelo diretor (o Curinga) e pelo elenco, pois, se o público não considerar justa a causa do oprimido, dificilmente ele se mobilizará para resolver o problema de opressão exposto. Assim, é importante que o trabalho do ator volte a

reconquistar a “empatia” que se perde todas as vezes que o espetáculo tende a um alto grau de abstração. Nesses casos, a plateia perde o contato emocional imediato com o

personagem e sua experiência tende a reduzir-se ao conhecimento puramente racional. (BOAL, 2005, p. 275)

Desse modo, reforçamos que o vínculo entre ator e espect-ator se fortalece pela dimensão do sentimento, pela perspectiva estética pautada em cena e pela dimensão política mobilizadora do fórum. Por conta disso, reforçamos a necessidade de tratamento de opressões que podem ter sido vividas pela plateia, senão a opressão torna-se uma mera situação fictícia apresentada. A ativação dos espect-atores, portanto, se dá pela vinculação afetiva com o protagonista e pela capacidade de indignação mobilizada con-tra a situação de opressão apresentada. Esta é a dimensão estético-política catalisada pelo Teatro-Fórum. De acordo com Boal, para ampliar a capacidade de identificação do público com o personagem, é importante que o trabalho do ator foque-se na verossimilhança, porque “a primeira função é a ‘protagônica’ que, no sistema, representa a realidade concreta e fotográfica. Esta é a única função na qual se dá a vinculação perfeita e permanente ator-personagem” (BOAL, 2005, p. 274). Com base nisso, Boal sinaliza a necessidade de um trabalho de construção de personagens em uma perspectiva stanislavskiana, na qual ele se baseou para a organização do sistema de jogos e de exercícios do Teatro do Oprimido. Evidentemente, a identificação do público não deve sofrer o apelo sensacionalista, mas demonstrar a luta do oprimido na busca da realização

Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o grupo Embasart 63

de seu desejo. Isso provoca o público a se ver na situação apresentada e a se indignar com a opressão deflagrada. Geralmente, o público tende a se identificar com aquele objeto de desejo, pois todo ser humano já passou por situações nas quais precisou lutar pela sua realização sem, necessariamente, oprimir o outro. A escolha do tema avaliação funcional desencadeou o desafio de tra-balhar um tema específico e denso de modo lúdico e suave, com leves pas-sagens de humor próprias de alguns integrantes do grupo, mas, ao mesmo tempo, sendo provocativo e crítico. Por essa razão, optamos por uma monta-gem que abordasse a questão da opressão, estimulando sentidos, leituras e interpretações produzidos pela plateia. A cena 1 iniciou com a chegada dos funcionários à empresa, mostran-do-os “batendo o ponto”, visto como instrumento de poder e de controle da classe trabalhadora. Entretanto, visamos evitar uma carga muito densa – e panfletária – na primeira cena e investimos na criação de elementos que pudessem tornar a cena tão prazerosa quanto crítica. Dito isso, algumas questões emergem: será que essas questões políticas podem ser tratadas de forma cômica e menos engessada? Como conciliar a reflexão com a beleza e o divertimento em um trabalho teatral com atores iniciantes? Estava posto um instigante desafio no trabalho de Teatro do Oprimido em uma empresa.Diante dessa preocupação, um dos elementos lúdicos criados para o espe-táculo foi o “ponto falante”, representado por uma caixa manipulada por uma das atrizes, responsável pelo controle do horário de entrada e saída dos funcionários. Na cena, o ponto era um objeto novo para os funcionários da empresa fictícia que, ao passarem seu cartão, anunciava o nome da pes-soa, cumprimentando-a, informava o horário da chegada e propagava ver-balmente se a pessoa estava pontual ou atrasada. Consideramos essa uma interessante estratégia cênica para tratar da questão do controle de forma suave, mas não menos provocativa. O ponto foi colocado em cena como instrumento de vigilância e de punição no interior da empresa para garantir o cumprimento do horário e exercer o controle perante os seus subordinados. A respeito desse tipo de controle, Foucault (2004, p. 129) advertia que

O controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; impõe a melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo, em

Cilene Nascimento Canda64

sua condição de eficácia e de rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o

suporte do ato requerido.

Assim, a vigilância do horário de entrada e de saída do trabalhador do ambiente empresarial é também compreendida aqui como controle do corpo, do tempo e da atividade funcional do trabalhador. Esse controle des-tinava-se à garantia do aumento da produtividade, ainda que sem sentido para a vida do trabalhador. No espetáculo Cresça e Apareça, a primeira pessoa a chegar ao ambi-ente de trabalho era uma auxiliar de serviços gerais de uma empresa terceiri-zada, a personagem Rosenilde, que entrava em cena executando três ações: cantando, reclamando da sujeira e da rotina diária da limpeza e varrendo o chão. Utilizamos a técnica brechtiana de quebra da quarta parede para ex-pressar, brevemente, suas inquietações. Enquanto conversava com a plateia, Rosenilde assustava-se com a fala do ponto, que dizia: “Está feliz, Rosenilde?”. Não havendo outras pessoas no local, isso a fazia tremer de medo e pensar: “Será que foi aquela máquina que falou comigo?”. A máquina voltava a falar: “Bom-dia, Rosenilde”. Sua reação para a plateia criou uma relação bem-humorada para tratar de uma máquina que tudo vê, tudo registra, fala e interage com os funcionários. Apesar de ser um objeto de controle, o ponto falante foi concebido como estratégia para quebrar um pouco a aridez da cena de entrada na empresa. À medida que os funcionários chegavam e passavam o cartão na máquina, assustavam-se com a novidade do ponto falante, que lhes saudava com um “bom-dia” ou com estigmas, como “sempre pontual!” ou “sempre atrasado!”, dependendo do horário de chegada de cada funcionário. Esse tipo de controle disciplinar é muito utilizado nas empresas para reforçar “o poder na vigilância hierarquizada das disciplinas [que] não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade; funciona como uma máquina” (FOUCAULT, 2004, p. 147). O poder disciplinar nas empresas é exercido não mais por olheiros e observadores em um grande galpão, como os detalhados na obra de Michel Foucault, e sim operado por uma máquina impassível de negociações e aparentemente “neutra”. Ao se depararem com o ponto falante, os persona-gens reagem de formas diferentes, e essa foi uma estratégia bem-sucedida de

Cresça e Apareça: processo de montagem de Teatro-Fórum com o grupo Embasart 65

apresentá-los ao público. Por ordem de chegada à empresa, depois de Rosenilde, o público passa a conhecer a personagem Idalina, uma senhora cansada que aguarda a sua aposentadoria; ela chega reclamando da falta de atenção ao idoso e diz: “Nesse país ninguém respeita a legislação. Não sei para que eles prega-ram uma placa no estacionamento reservando vaga para idoso, se ninguém respeita o anúncio mesmo”, além de uma série de outras indagações lança-das ao público e a si mesma. Em seguida, Tomás chega atrasado e passa na frente de Idalina, reforçando o seu preconceito de que todo jovem é impa-ciente e desrespeitoso com o idoso. A cena é bem-humorada e, ao mesmo tempo, ambientaliza a empresa e apresenta o perfil de cada personagem. Tomás é um personagem descolado que trabalha como fotógrafo; no início, ele passa uma “cantada” na máquina, dizendo que dentro dela mora uma “gatinha”. Depois, investimos em suas sátiras em relação à constante insatisfação da personagem Idalina, “furando a fila” na hora de bater o pon-to e disparando piadinhas, como “a senhora está boa, D. Idalina?!”, e após uma pausa, falando para o público “Boa de se aposentar”, causando risos na plateia. Os funcionários da empresa fictícia conversam e questionam o valor financeiro usado na implantação do ponto falante, com tão avançada tecno-logia, e assinalam que esse valor poderia ser revertido aos salários dos fun-cionários. Nesse momento, Ana Maria ingressa na empresa e é tachada pelo ponto falante como “a sindicalista”. Ao ser questionada por Tomás sobre o resultado de sua avaliação funcional, Ana Maria expressa o seu desconten-tamento, ponderando que os critérios de avaliação não estavam claros e que não atendiam a todas as exigências e competências dos funcionários. Inicia-se aí o tratamento sobre as questões referentes à avaliação funcional em uma empresa, conforme se nota na foto ao lado, na qual se destacam os seguintes personagens: Idalina, Tomás, Ana Maria e o ponto falante. No momento da contrapreparação, que, como vimos, é o momento de explicitação do desejo e da postura do protagonista, a personagem Ana Maria é apresentada como uma funcionária criativa, produtiva, inovadora, que já recebeu diversos prêmios da área de publicidade e propaganda para a empresa Lado B Design (nome fictício criado para a peça). Porém, no ato da avaliação, Ana Maria recebe uma qualificação abaixo do esperado e ameaça reivindicar seus direitos. Inicialmente, essa cena apresentava um problema

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em relação à contrapreparação, pois era a própria personagem que se dizia competente e criativa, sob o risco de ser vista de forma arrogante e prepo-tente pelo público. A estreia do espetáculo foi feita com esse problema, que, posteri-ormente, foi resolvido por meio da indignação da personagem Maria. Esta, ao ouvir o fato, intervém afirmando a injustiça na avaliação funcional e reforçando que Ana Maria é uma das mais empenhadas e competentes funcionárias da empresa. Essa personagem causa a empatia e a identificação do público, como alguém que deseja que sua avaliação seja revista e contem-plada de modo justo e de acordo com o seu mérito profissional. Já o personagem Tomás demonstra satisfação com a avaliação e afirma que tem realizado seu serviço com qualidade e criatividade. Como fotógrafo, mostra às demais trabalhadoras as fotografias que registrou para diversas campanhas publicitárias da empresa. Enquanto isso, Idalina dispara recla-mações: também foi mal avaliada, retiraram o computador de sua sala e colocaram um funcionário novo em seu lugar para exercer o mesmo serviço. Ela se queixa de tudo na empresa, está desmotivada e espera aposentar-se

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Cresça e ApareçaTeatro SESI, Salvador, maio de 2011

em breve. Essa cena causou bastante riso da plateia pela identificação desta personagem com alguns funcionários antigos da empresa. Enfim, esta primeira cena garantiu a apresentação dos personagens, as relações entre eles e o problema da avaliação funcional, discutido por três visões diferentes: uma colaboradora competente e produtiva que foi mal avaliada (Ana Maria), um trabalhador também produtivo que foi bem avali-ado (Tomás) e uma funcionária improdutiva que está perto de aposentar-se e que foi mal avaliada (Idalina). Tal escolha se deu como alternativa para mostrar a diversidade de funcionários e de situações que acontecem na empresa Lado B Design, revelando a dificuldade de avaliar os trabalhadores segundo critérios específicos. Entre uma cena e outra, havia coreografias de dança (ver foto abaixo), produzidas por Catarina Laborda, que expressaram dimensões sociais do trabalho, com base nas músicas “Cidadão” (Zé Ramalho) e “Vai Trabalhar, Vagabundo!” (Chico Buarque).

Cena 2

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Cresça e ApareçaTeatro SESI, Salvador,

maio de 2011

Na segunda cena, aparecem dois outros casos de funcionários avali-ados: Suzana, secretária da coordenadora, é improdutiva e passa maior parte do expediente lixando as unhas, lendo revistas e penteando o cabelo, mas foi bem avaliada; e a funcionária Margô, que revela inúmeras faltas e atrasos, dá conta parcialmente dos serviços e foi mal avaliada pelo sistema da empresa. Nesse sentido, foi evidenciada ainda mais a diversidade de situações e de visões dos personagens sobre a avaliação funcional. A segunda cena ocorre na sala de espera da coordenadora Leonor, que, dentre outras atribuições, é responsável pela avaliação dos funcionários da empresa. Nesse local, Margô e Ana Maria aguardam para conversar com a coordenadora para buscar resolver o problema do insucesso na ava- liação funcional (ver foto abaixo). De início, estabelece-se o conflito entre a ansiedade das duas personagens e a espera exaustiva pela coordenadora. Segundo a sua secretária, Susana, a coordenadora está “em uma reunião com o coordenador do coordenador do coordenador do coordenador dela”, evidenciando, de modo irônico, o sistema de hierarquias da empresa trata-

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Cresça e ApareçaTeatro SESI, Salvador, maio de 2011

da, tornando-o abstrato, complexo e de difícil mudança. A estratégia de opressão adotada por Leonor (deixar as funcionárias esperando até que elas cansem e desistam da luta por seu desejo) é bastante recorrente em ambientes onde as opressões se revelam de modo camuflado e quase imperceptível. Por essa razão, o campo da formação do trabalhador precisa ser perpassado pela dimensão sensível, ou seja, de percepção aguça-da para ver, sentir e ouvir, e pela perspectiva política, de análise crítica do que é captado pelos sentidos. Não pretendíamos mostrar um tipo de opressão rígida e agressiva; preferimos revelar um tipo de opressor muito comum nas empresas: aquele que oprime sorrindo, que nega um direito ao trabalhador como se estivesse falando algo para o seu bem. Este é um tipo de opressão e de ditadura camu-flada pela docilidade, o que dificulta a ação do sujeito oprimido na tentativa de realização do seu desejo. Desse modo, Leonor fez várias tentativas de adiar o atendimento das funcionárias para tratar da questão da avaliação funcional, visando vencer o oprimido pelo cansaço. Durante o longo tempo de espera na recepção da sala da coordenadora, alguns fatos ocorreram na cena, como o questiona-mento da produtividade da secretária que obteve alto nível de satisfação em sua avaliação, a argumentação de Ana Maria sobre a importância da avaliação e o modo como esta vem sendo efetuada na empresa. Para enfatizar ainda mais o tempo de espera das trabalhadoras, há um momento da cena com um grande intervalo de silêncio, marcado somente pela música; enquanto isso, uma das personagens circula no fundo do palco, incessantemente da direita para a esquerda e vice-versa; e a outra, inquieta, ocupa várias posições em sua cadeira, mostrando, assim, a pas-sagem do longo tempo. Ainda durante a espera, dois gerentes que ocupam cargos tão altos quanto o da coordenadora Leonor ingressam na cena. O primeiro gerente – Dr. Paulo, desempenhado por Sergio Bomfim – demonstra uma postura bastante amigável: conversa com as funcionárias que aguardam o atendimento na sala de espera, dialoga e argumenta sobre a importância da avaliação fun-cional, expõe como se deu o processo de avaliação em seu setor e enfatiza o diálogo e a valorização do trabalhador. Esse fato demonstrou a diversidade de posturas de gerentes dentro de uma empresa – alguns mais democráticos e outros menos –, desmistifi-

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cando a ideia de que um patrão será sempre opressor e pouco democrático. Entretanto, este personagem demonstra descaso com o expediente, por fazer insinuações afetivo-sexuais à vaidosa secretária Susana, que flerta com os seus gracejos. Essa imagem causa repúdio nas duas personagens que estão esperando e que, além de se sentirem desvalorizadas na avaliação funcional, são desrespeitadas pelo excesso de tempo perdido e por conta da verificação do assédio sexual no local e horário de trabalho. Além desse fato, acrescenta-se a entrada da personagem Dra. Ângela, novata na empresa; ela ingressou há cerca de oito meses e já assumiu um cargo de chefia. Para essa gerente, a avaliação funcional foi um processo delicado, porque ela precisou avaliar funcionários muito antigos na empresa (com cerca de 20 anos) e com poucos recursos para verificar a produtivi-dade, por ser nova na empresa. A personagem Dra. Ângela demonstrou como procedeu com a avali-ação funcional em seu setor: elaborou um instrumento de autoavaliação, promoveu reuniões de avaliação e, por fim, chegou a um consenso com base no que foi discutido coletivamente com a equipe. Essa situação demonstra formas diferentes de tratar a questão da avaliação funcional, mostrando que este não é um instrumento negativo; ao contrário, deve ser pensado de for-ma democrática, visando ao aperfeiçoamento do trabalhador e dos serviços realizados por ele. A situação foi bastante recorrente nas conversas com o grupo no processo de montagem. Os participantes demonstravam muitos desconten-tamentos em relação a essa prática da empresa. Por essa razão, decidimos mostrar a diversidade de situações e a complexidade do processo avali-ativo da produtividade funcional em uma empresa. Justamente pelo fato de essa complexidade existir, esse tema deve ser estudado com cautela, sendo imprescindível a abertura de diálogo e a transparência das informações. E o Teatro do Oprimido pode ser um grande mediador desse tipo de discussão. A cena transcorre naturalmente até a chegada da coordenadora Leonor. Quando, aparentemente, chega o momento de as funcionárias serem aten-didas, diversas ações denotam o seu descaso e desrespeito. Ao chegar à re-cepção, Leonor já anuncia que não irá atendê-las naquele momento e pede um cafezinho à secretária, que prontamente obedece. Em sua sala, a secre-tária Susana anuncia a presença de duas funcionárias para tratarem dos seus resultados na avaliação funcional. Leonor diz que não tem mais tempo para

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esse tipo de assunto e a ordena a “enrolar” as duas, afirmando: “você tem talento, Susana, confie no seu potencial. Enrole aquelas duas até que desis-tam!”. A secretária tenta oferecer um cafezinho, uma revista e outras formas de entretenimento, mas ambas as personagens rejeitam as ofertas, por já estarem cansadas pelo tempo de espera. Optamos pela inclusão de mais dois momentos, com elementos suaves de humor, com vistas a reforçar ainda mais a situação de opressão ali apresentada. A primeira diz respeito ao telefonema recebido por Leonor, apresentada na foto abaixo, que diz: “E aí, Clotilde, como está o meu bebê? Já comeu? Não se esquece de dar banho, hein? Ela já tomou o remé-dio? Ah, tá! Lembre de dar o remédio, pôr talquinho e a ração”. Como se vê, a personagem tratava dos cuidados do seu cachorro de estimação, causando riso e, ao mesmo tempo, indignação da plateia, pois, enquanto as duas fun-cionárias são esquecidas na sala de espera, a coordenadora ocupa-se de assuntos pessoais em sua sala. Outro momento que também causou riso e indignação, bem como

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humor e reflexão, refere-se à entrada da personagem Jôsy, que ingressa na sala de Leonor para comercializar produtos importados. A cena se passa na lateral do palco, sem voz, e com uma música que reforça o constrangimento vivido pelas personagens que aguardam o atendimento. Na saída de Jôsy, as personagens Ana Maria e Margô, que já conhecem o costume de venda de produtos pela primeira, questionam como esta foi avaliada, ao que Jôsy res-ponde: “A minha avaliação foi ótima. Melhor impossível! E ainda ganhei um acréscimo salarial”. A resposta deixa Ana Maria ainda mais inconformada, por saber que a colega é improdutiva e que aproveita o horário de expediente para a comercialização de mercadorias. Esses exemplos de opressão acontecem na sala de espera, mas o clí-max da opressão ainda está por vir. Primeiro, Margô é atendida por Leonor, que resolve fazer uma revisão da sua avaliação. Entretanto, no momento da entrada de Ana Maria no interior da sala, Leonor declara que não há problemas nos resultados de sua avaliação. Ana Maria tenta dialogar, solicitando esclarecimentos sobre os critérios utilizados na avaliação fun-cional. Estabelece-se o ápice do conflito, pois “uma boa peça depende de um bom conflito. Teatro é luta: personagens entram em conflito para alcançar seus objetivos e satisfazer suas necessidades e seus desejos. Teatro é vida!” (SANTOS, 2008, p. 110). Como estrutura do conflito, Leonor questiona: “você se considera produtiva, mas não é isso o que o seu coordenador acha”. Ana Maria argu-menta que passa noites trabalhando, que já ganhou diversos prêmios na área de publicidade e que seus produtos de design são sempre aprovados sem ressalvas. Mesmo diante dos apelos, a coordenadora nega a revisão de sua avaliação funcional. Neste momento, estabelece-se a situação de opressão, na qual o oprimido precisa agir para evitar que a “cartada final” seja dada pelo opressor. Como se trata de um antimodelo, o oprimido, apesar de lutar, não consegue travar um diálogo mais contundente ou criar estratégias para a libertação das opressões. Na cena, a atitude de Leonor denota a sua incapacidade de dialogar. Para expressar isso, o ator não precisa usar de elementos agressivos para demarcar a opressão. Construímos meios menos óbvios para delinear o per-sonagem opressor, mas deixando claro que ali se tratava de uma opressão, evitando os formatos clichês televisivos de representação de vilões.

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Cientes disso, investimos em uma personagem que atuasse de modo opressor, mas que tivesse também um ar de cinismo, com um leve sorriso e suavidade nas palavras: “Tenho uma ótima opção para você, Ana Maria. Vejo aqui, nos meus dados, que há uma vaga em outro setor da empresa. Diante disso, ou você assina e aceita a sua avaliação funcional, ou irá para o setor de copiadora. A decisão é sua!”. Ana Maria tenta argumentar, conforme se observa na foto abaixo, afirmando que é graduada em design e que pos-sui louvável experiência profissional, quando é interrompida pela opressora, em um gesto contundente, mas sem gritos e agressões explícitas: “ou assina ou irá para o setor de xerox. A decisão está em suas mãos!”. A cena termina com um foco de luz se fechando em ambas as per-sonagens e com a introdução instrumental da música “Sangue de Bairro”, de composição de Chico Science, até o black total do palco, demarcando a desistência do desejo de Ana Maria de receber um justo reconhecimento profissional. Está consolidada a opressão quando a personagem não encon-tra mais opção de luta, sendo necessária a abertura do fórum para análise

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coletiva e reflexões sobre o que ocorreu no espetáculo e quais são as pos-síveis estratégias que poderiam ser adotadas pela oprimida.

Considerações finais

Consideramos que o Teatro do Oprimido favorece o diálogo pela sua própria tendência de despertar o sujeito política e esteticamente. Isso implica conhecer o seu corpo e a sua capacidade expressiva e fazer uso competente dos mecanismos da cena e do espaço teatral, da voz e da composição de per-sonagens, de forma a ampliar a sua capacidade artística. A atividade teatral contribui para os processos de reflexão e de expressão de um pensamento diante do mundo. Além disso, ao tratar de um tema tão caro para a empresa, abre-se um diálogo com os trabalhadores, denotando a compreensão de que a avaliação funcional é um processo que pode ser revisto periodicamente, em diálogo com os principais interessados: os trabalhadores da indústria. Esses aspectos foram suscitados no momento do fórum realizado no Teatro SESI Rio Vermelho, com trabalhadores da EMBASA. Esta é, em si, uma postura política da formação. Entretanto, no âm-bito do Teatro do Oprimido, essa dimensão política se alarga no sentido de repensar a realidade e propor novas formas de superação da apatia e da pas-sividade do sujeito em seu cotidiano. Repensar as bases do cotidiano social é uma tarefa de todos aqueles que se comprometem com a vida social, dentro ou fora de empresas. O espetáculo Cresça e Apareça configurou-se uma experiência im-portante para tratar de situações de opressão, mas também para discutir este tema tão polêmico. Como resultado das conversas e da produção do espe-táculo, o grupo compreendeu a importância da avaliação funcional, que visa fazer um levantamento crítico dos problemas com vistas à sua melhoria e aprimoramento, indicando necessidades referentes à formação profissional e aos investimentos em diversos setores da empresa. Mas também foram construídas reflexões críticas para o seu aperfeiçoamento. Portanto, podemos concluir que o Teatro do Oprimido favoreceu um tipo de formação integral dos trabalhadores da indústria, possibilitando a ampliação do aprendizado teatral, tanto do ponto de vista da produção es-tética quanto no que se refere à reflexão política entre os atores e o público.

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Esse tipo de metodologia ajuda a ampliar o repertório de conhecimentos sobre procedimentos adotados no interior da empresa. A experiência deu ao Grupo Embasart o conhecimento preliminar sobre a tecnologia teatral e, sobretudo, desencadeou o processo de transformação de trabalhadores passivos em sujeitos atuantes, criativos e reflexivos que utilizam a linguagem teatral para promover beleza, diversão e reflexão crítica.

BEZERRA, Antonia Pereira. Do modelo dramatúrgico de Armand Gatti ao espetáculo-fórum de Augusto Boal: elementos para uma “pedagogia da intervenção”. In: Anais do Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas, 2010.

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No presente artigo, apresentamos uma reflexão sobre a voz e o tra-balho vocal na perspectiva da poética do Teatro do Oprimido. O referido trabalho foi realizado com o grupo de teatro Embasart, da EMBASA. Nessa reflexão, trazemos alguns conceitos e pensamentos sobre as potencialidades vocais que podem ser exploradas e experimentadas em processos que visam à liberação de opressões vividas, ao autoconhecimento e a transformações. Retomamos também o processo de trabalho e exemplos de desafios apre-sentados num projeto de teatro-empresa e as repercussões lentas e progres-sivas que tal atuação gera no individual e coletivo.

Uma definição de voz

O som-elemento, o mais sutil e mais maleável do concreto – não constituiu e não constitui, no futuro da humanidade como do indivíduo, o lugar de encontro inicial

entre o universo e o inteligível? Ora, a voz é querer dizer e vontade de existência, lugar de uma ausência que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos cósmi-

cos que nos atravessam e capta seus sinais: ressonância infinita que faz cantar toda matéria... como o atestam tantas lendas sobre plantas e pedras enfeitiçadas que,

um dia, foram dóceis. (ZUMTHOR, 2010, p. 9)

UMA VOZ PRESENTE:O TRABALHO DA VOZ NUMA PROPOSTA DE TEATRO DO OPRIMIDO

Ana Flávia Hamad

Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Mestre em Teatro e Comunidade pela Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa

Bacharel em Medicina pela Faculdade de Medicina da UFBA

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Neste capítulo sobre a voz no Teatro do Oprimido, começo referindo uma definição de voz que evidencia o seu caráter concreto e, ao mesmo tem-po, subjetivo, deixando também transparecer o seu componente político, ideológico e formativo. A voz “quer dizer”, demonstra uma “vontade de exis-tência” que traduz o desejo do homem, ressoando no pessoal e no social. O ser humano ouve emergir sua voz como um objeto, voz que ultra-passa a palavra, embora tenha nela a capacidade de lançar e tornar presente, no som das palavras, o desejo por um objeto ausente, sonhado, ou por re-viver uma história sonora antiga. “O som vocalizado vai de interior a interior e liga, sem outra medi-ação, duas existências” (ZUMTHOR, 2010, p. 13). A voz conecta. O som vi-bra conectando corpos. Augusto Boal sugere o trabalho do movimento e do ritmo como possibilidade de buscar uma unificação grupal, além de des-tacar a importância de reproduzir sons e movimentos como premissa para a reestruturação da nossa maneira mecanizada de ser e agir. Ao imitarmos outras possibilidades de som e de movimento, começamos a desfazer nossas mecanizações. E qual a importância disso? Tanto o corpo oprimido dá vazão a uma voz, como uma voz, em imagens sonoras, emoldura um corpo rígido, na ten-tativa de flexibilizá-lo. Os jogos e exercícios que compõem o “arsenal” do Teatro do Oprimido têm por finalidade alcançar a flexibilidade, aguçar a imaginação e os sentidos e ampliar a capacidade de ver a realidade e posi-cionar-se diante dela, de forma diferente, mais política e mais propositiva. O trabalho da voz no Teatro do Oprimido consiste em explorar todos os aspectos das propriedades do som e da música – timbre, altura, inten-sidade, duração, melodia, harmonia e ritmo – utilizando jogos e exercícios propostos por Boal, no intuito de atingir, pela voz, algum canal que leve o indivíduo a refletir, questionar, estranhar e redimensionar fatos, realidades, angústias, medos e inseguranças com o objetivo único de torná-lo um su-jeito mais ativo e com maior autonomia e posicionamento perante a vida. A proposta desse trabalho vocal é o aprofundamento no trabalho da desmecanização da voz, tecendo um constante diálogo com a desmecani-zação do corpo. Essa pesquisa da voz no Teatro do Oprimido faz parte da minha investigação de doutorado em Artes Cênicas1. Se Boal sistematizou uma técnica – o teatro-imagem – na qual o corpo era o principal meio de comunicação e por meio do qual era dada a possibilidade de libertação das

1 Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia

com orientação da Prof. Dra. Antônia Pereira e co-orientação

da Prof. Dra. Meran Vargens, desde o primeiro semestre

de 2012

Ana Flávia Hamad80

opressões, por que não sistematizar, por meio do legado de Boal, um meio pelo qual a voz fosse esse canal de libertação? A técnica do teatro-imagem proposta por Boal, que consiste em dis-pensar o uso da palavra para possibilitar o desenvolvimento de outras for-mas perceptivas, tem o objetivo de estimular o pensamento com imagens e o debate sem o uso da palavra, utilizando o próprio corpo e objetos. A técnica do teatro-imagem foi criada mediante uma dificuldade de Boal em se comunicar com populações que falavam idiomas diferentes, estruturando, dessa forma, uma linguagem corporal bem definida, desenvolvendo outras formas perceptivas. Assim, ele pretendia, pela arte, buscar “verdades através dos nossos aparelhos sensoriais” (BOAL, 2005, p. 18), visando à dimensão política e social envolta na realidade. No entanto, não houve, da parte de Boal, uma preocupação em detalhar o componente vocal em sua poética do Teatro do Oprimido, embora ele proponha diversos exercícios com o uso da voz na tentativa de libertação e emancipação do sujeito. Há exercícios globais que envolvem corpo, voz e improvisações, mas pretendo detalhar um trabalho focado na voz no Teatro do Oprimido. Dessa forma, esta pesquisa pretende esmiuçar as propostas vocais sugeridas por Boal em sua metodologia e articular os detalhamentos do corpo em sua proposta de teatro-imagem ao componente vocal, proposta que será aqui chamada de teatro-voz-imagem.

Uma alternativa de começo

O estudo rítmico pode ser um meio pelo qual iniciar um trabalho de voz dentro de um processo de Teatro do Oprimido, pois ele pode ser um elo entre todas as propriedades do som e da música. Mas qual a relação entre ritmo e voz? Stanislavski, em seu livro A Construção da Personagem, assevera que “A fala é música”:

O texto de um papel ou uma peça é uma melodia, uma ópera ou uma sinfonia. A pronunciação no palco é uma arte tão difícil como cantar, exige treino e uma técnica raiando pela virtuosidade. Quando um ator de voz bem trabalhada e magnífica téc-

nica vocal diz as palavras de seu papel, sou completamente transportado por sua su-prema arte. Se ele for rítmico, sou involuntariamente envolvido pelo ritmo e tom de sua

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 81

fala, ela me comove. Se ele próprio penetra fundo na alma das palavras do seu papel, carrega-me com ele aos lugares secretos da composição do dramaturgo, bem como aos da sua própria alma. Quando um ator acrescenta o vívido ornamento do som àquele

conteúdo vivo das palavras, faz-me vislumbrar, com uma visão interior, as imagens que amoldou com sua própria imaginação criadora.

(STANISLAVSKI, 2004, p. 128)

O ritmo é inerente à natureza e ao ser humano e, portanto, talvez mais facilmente entendível e familiar. Está presente na oscilação entre dia e noite, nas movimentações das marés altas e baixas, no batimento cardíaco, no ciclo do sono e do trânsito gastrointestinal, entre outros exemplos. Focar no trabalho do ritmo e, a partir dele, abordar outros aspectos da vocalidade foi a minha opção após um ano de trabalho e pesquisa para, a partir disso, explorar diferentes potencialidades vocais para personagens específicos. O trabalho com a voz é naturalmente um trabalho lento e sutil, que requer confiança, vínculo e abertura. Muitas vezes, a nossa voz nos parece um grande enigma – uma região à parte de nós mesmos, lugar ainda de grandes explorações. De fato, nossa voz é um lugar para grandes e inces-santes explorações, mas não uma região longe de nós mesmos. A voz é tam-bém corpo. Há um corpo-voz que se inter-relaciona com o corpo físico como um todo. Na obra Demetrio Stratos2: em Busca de uma Voz-Música, El Haouli (2002, p. 46) assinala: é preciso que a voz exista enquanto ser para que nós sejamos, pois, se ela for, nós seremos. Se ela for aquilo que não é, não se-remos nós ou seremos aquilo que não somos: escravos de sons e palavras vazias. Buscamos, no Teatro do Oprimido, “a recuperação da voz perdida, aquela capaz de transformações no íntimo dos seres humanos” (HAOULI, 2002, p. 48) para que eles possam ser em plenitude. O teatro, para Augusto Boal (2003, p. 90), é um meio de transformação subjetiva, “um meio privilegiado para descobrirmos quem somos, ao criarmos imagens do nosso desejo: somos nosso desejo, ou nada somos”. O teatro organiza ações humanas no espaço e no tempo e estampa no espaço estético quem fomos, quem somos e o que podemos vir a ser. A voz segue esse mesmo raciocínio. De que maneira Boal, portanto, sinaliza a voz como meio de emancipação do sujeito? Como se dá o processo de desmecanização

2 Cantor e performer egípcio-grego-italiano, multi-instrumen-

tista, pesquisador de música e cofundador e vocalista de

um grupo de rock progressivo italiano. Pesquisador da voz em

busca de uma voz-música, ou seja, uma voz individualizada

de potenciais capacidades vocais a serem exploradas e

que não estão presas à palavra e ao seu discurso de

significação verbal

Ana Flávia Hamad82

da voz e do sujeito na busca da autenticidade? A voz, no processo de criação com o Grupo Embasart, vem sendo trabalhada de forma progressiva, assim como os outros aspectos do desen-volvimento do projeto. O núcleo do projeto tem a coordenação da Prof. Dra. Antônia Pereira, uma aglutinadora de pessoas que se conheceram no decor-rer desse processo e passaram a trabalhar juntas numa direção coletiva, embora cada uma tenha um foco principal no desenvolvimento do trabalho. O meu foco diz respeito à voz e à preparação vocal. Quando afirmo que o trabalho é progressivo, ressalto também que esse caráter se amplia ao vínculo que se construiu entre nós – tanto enquan-to núcleo criador e pedagógico que passou a atuar em coletividade, como enquanto grupo de teatro: atores e diretores. Um dos grandes desafios deste projeto parte dessa característica coletiva. Tudo é decidido em coletividade: a encenação e sua concep-ção artística, os figurinos, o cenário, a trilha sonora, o trabalho de ator, o design de divulgação, a logística, a mediação palco/plateia – a curingagem do Teatro-Fórum, entre outros quesitos. No primeiro contato com o grupo, de sensibilização com a linguagem teatral, trabalhamos a técnica vocal de forma ampla e em conjunto, asso-ciando também os jogos e exercícios propostos por Boal em seu livro Jogos para Atores e Não-Atores. Como exemplo desse trabalho, a partir da série de jogos propostos por Boal e agrupados no sistema intitulado escutar tudo o que se ouve3, tra-balhamos exercícios como “máquina de ritmos”, “1, 2, 3 de Bradford”, “círcu-lo rítmico de Toronto” e “se você disser que sim”. Desse grupo, trabalhamos também com os aspectos da melodia, do som e da respiração, evidenciados em exercícios como “orquestra”, “sons rituais”, “panela de pressão”, “um ator esvazia um companheiro” e “ritmo de imagens”. Como forma de sistematizar o trabalho realizado com o Grupo Em-basart até o momento, descrevo a seguir alguns dos jogos feitos com o grupo e o processo de montagem dos dois espetáculos-fórum que tiveram estreias em abril de 2011 e em novembro de 2011.

“Máquina de ritmos”

Um ator, ao se imaginar como uma peça de engrenagem de uma

3 Um dos grupos dos exer-cícios e jogos de um arsenal sistematizado por Augusto Boal em seu livro Jogos para Atores e Não-Atores que é classificado em cinco sistemas: sentir tudo que se toca, escutar tudo o que se ouve, ativando os vários sentidos, ver tudo que se olha e a memória dos sentidos

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 83

máquina complexa, propõe um movimento corporal rítmico associado a um som condizente com o movimento. Outro ator, após observá-lo, compõe a engrenagem, complementando a peça já existente com um novo movimen-to e som. Assim se sucede com todos os integrantes, um de cada vez, até que todos formem uma só máquina com ritmo e movimentação múltiplos e harmônicos. O diretor, depois da máquina instalada, pode “brincar”, variando a cadência rítmica. Faz-se necessário, nesse exercício, realmente escutar o que se está ouvindo. Trabalham-se a escuta e a atenção.

“1, 2, 3 de Bradford”

Em dupla, face a face, os atores contam intercaladamente uma se-quência de 3. Depois, um deles troca o número 1 por um gesto acompanhado de um som. Toda vez que o 1 aparece na contagem, ele é substituído pelo gesto e pelo som escolhidos. Depois, o outro ator faz o mesmo com o número

Exercício “máquina de ritmos”

Ana Flávia Hamad84

2 e posteriormente com o 3. No final, temos uma coreografia musicada com a sequência 1, 2, 3. Esse jogo trabalha com o ritmo, a atenção e o foco com a exploração de movimentos rítmicos e sons variados. Quanto maior a diversi-dade de movimentos e sons, maior o proveito do exercício.

“Círculo rítmico de Toronto”

Em círculo, um ator se põe na frente da pessoa à sua direita e inicia um ritmo corporal e vocal que é reproduzido por esta pessoa. Depois de insta-lado o movimento e o som, o ator passa à frente da outra pessoa que se segue no círculo, que também a imita. As outras continuam fazendo o movimento e o som estabelecido, enquanto o ator passa, face a face, de pessoa a pessoa, transmitindo seu ritmo corporal e vocal. Quando chega na quarta pessoa da

Exercício “1,2,3 de Bradford”

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 85

roda, a primeira que recebeu o movimento sai do círculo e faz o mesmo que o primeiro ator, passando à pessoa seguinte um novo ritmo corporal e vocal. Isso segue sucessivamente até que todas as pessoas experimentem os ritmos sugeridos pelos colegas e possam também criar a sua própria ideia corporal e vocal.

“Se você disser que sim”

Neste exercício, solicitamos que, ao cantar, as pessoas respondam contrariamente ao que falamos. Se dissermos sim, elas devem dizer não, e vice-versa. Se dissermos João, devem responder Luís. E o mesmo acontecerá com pão e mel. A música deve permitir cantar a seguinte frase: “toda vez que eu digo sim, toda vez que eu digo sim, você deve dizer... não. Toda vez que eu digo não, toda vez que eu digo não, você deve dizer... sim: sim, sim, sim (respondem: não, não, não)”. E assim sucessivamente com João e Luís e com pão e mel. Ao cabo, devemos fazer combinações como não, Luís, pão

Exercício “círculo rítmico de Toronto”

Ana Flávia Hamad86

e sim, mel, João, etc. Trabalhamos, com esse exercício, a possibilidade de experimentar reagir a regras pelo oposto, e não seguir literalmente o que foi “mandado”. Também aproveito esse exercício para trabalhar a velocidade na fala – variando seu ritmo, intensidade e articulação.

“Orquestra”, “som e movimento” e “sons rituais”

Após dividir o grupo em dois, um deles cria uma música, tentando usar o próprio corpo e objetos, enquanto o outro dança livremente ao som da melodia criada. Após a exploração das variedades musicais e suas reper-cussões nos corpos dos que as escutam, passamos para a exploração de sons livres e o que essa “imagem sonora” evoca no outro que a ouve. Por fim, após essa exploração vocal e de imagens sonoras, relacionamos essas imagens a situações, ou seja, rituais, como, por exemplo, acordar pela manhã, voltar do trabalho, etc.

“Panela de pressão”

Com as narinas e boca fechadas, o ator faz o máximo de força – pressão – para expelir o ar. Quando não aguentar mais, destapa narinas e boca.

“Um ator esvazia um companheiro”

Esse exercício é feito em duplas, como se um ator fosse um boneco inflável e o outro pudesse enchê-lo e esvaziá-lo. Quando o ator puxar o pito do boneco inflável, que pode ser na orelha, no umbigo, no joelho, na mão, na boca, etc., o outro vai desinsuflar, expirando todo o ar e esvaziando, caindo no chão. Depois, como se estivesse com uma bomba de ar (fazendo movi-mentos e sons correspondentes), o ator vai insuflando o boneco que, ao inspirar, vai retomando seu corpo.

“Ritmo de imagens”

Um ator vai para a berlinda e outros, individualmente, vão expressar, um por um, uma imagem rítmica de como sente o companheiro. Uma es-

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 87

pécie de “como o outro me vê ritmicamente”. Depois de cada demonstração, todos executarão juntos os ritmos criados, e o ator que estava na berlinda se juntará a essa orquestra de ritmos que são imagens dele. Esses jogos e exercícios são alguns exemplos, dentre outros, de como podemos trabalhar o ritmo e a criatividade através do som e do corpo rítmico e como podemos explorar a voz e as imagens sonoras através do coletivo e do jogo, além de trabalhar a técnica vocal propriamente dita. Nessa experiência com o Grupo Embasart, estes foram alguns recursos utilizados. No processo de montagem do primeiro espetáculo-fórum – Cresça e Apareça –, foi feito um acompanhamento geral focado na respiração, na projeção da voz, na articulação das palavras, no entendimento do texto com a intenção da fala do personagem e no entendimento geral de criar um per-sonagem que tenha um corpo e uma voz. Trago essa especificidade do geral nessa primeira montagem, pois o Cresça e Apareça foi um desafio pautado numa direção de cena coletiva, numa concepção coletiva de espetáculo e numa linguagem de teatro para o Grupo Embasart também inovadora. A equipe do núcleo artístico e o grupo nunca tinham trabalhado juntos; portanto, essa montagem foi a construção da base para darmos seguimento aos trabalhos subsequentes. Já no processo de montagem do segundo espetáculo, A Revolução na América do Sul, foi feito um trabalho um pouco mais individualizado com os integrantes, embora tenha sido mantida a característica do coletivo na criação. Trabalhamos a voz como parte da construção do personagem, tentando fazer com que a voz influenciasse no corpo, e vice-versa. Como o personagem falaria nessa peça? Como falaria nessa determinada cena? E nessa frase? Como uma mudança de timbre na voz, por exemplo, interfere na concepção do personagem? Que contribuições pode trazer? Como forma de descrever melhor esse treinamento vocal, opto por tecer um exemplo do trabalho realizado com uma das integrantes do grupo. Por entrar mais tardiamente para o Grupo Embasart, ela participou somente a partir da montagem do segundo espetáculo, tendo perdido, portanto, todos os jogos, exercícios e atividades realizados previamente. Uma das caracterís-ticas mais marcantes dessa integrante é a sua timidez. Consideramos, desde o início, essa questão um trabalho a mais que exigiria esforços no sentido de que, com pouco tempo de trabalho e com um déficit inicial, conseguíssemos

Ana Flávia Hamad88

vencer esse obstáculo para a montagem da A Revolução na América do Sul. Nessa montagem, ao fim de diversas experimentações e elucu-brações, optamos por determinar duas personagens para esta integrante do grupo. A primeira tinha uma pequena participação na peça, embora seja uma figura marcante. É o papel de uma jornalista que anuncia ao povo o aumento do salário mínimo e acalma os clamores populares que ansiavam por uma revolução. Já a segunda personagem é a representante da comunidade no quesito religiosidade, que vai ao senado para discutir a importância de ter apoio do governo para a construção de igrejas, deixando clara a sua intenção de angariar para si um desvio de dinheiro destinado a este investimento. A jornalista, portanto, tem uma presença mais forte, mais impactante, possuindo uma voz mais pesada, de maior intensidade, mais grave e mais robusta. A representante da religião aparentemente apresenta-se frágil e angelical, com características de uma voz mais aguda, mais de ressonância de cabeça e, em alguns momentos, deve apresentar nuances e saltos decor-rentes de seus interesses pessoais e escusos.

Trabalho em grupo de consciência da respiração

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 89

Como forma de trabalhar a voz dessa atriz, recorri ao exercício proposto por Natália Ribeiro Fiche no capítulo “Movimento da Voz”, do livro Voz em Cena – vol. I. Nele, ela propõe como pesquisa sonora de timbres a associação direta com instrumentos musicais. Para atingir uma voz mais potente e grave para a personagem da jornalista, trabalhamos com exercí-cios para atingir a “voz de saxofone”. O exercício principal é o seguinte: em posição de cócoras, imagina-se a boca e todo o trato digestivo como um tubo-instrumento, como se a voz fosse emitida do ânus e carregasse consigo toda a ressonância do abdômen. A emissão sonora parte inicialmente de sons não verbais, evoluindo para sons verbais e voz falada, explorando a ressonância do baixo-ventre e o peso da voz. Buscamos também o peso da voz através do corpo com imagens de um lutador de sumô. Nesse exemplo, vê-se que foi feito, com quem sentimos necessidade, um trabalho individual para que o ator atingisse o objetivo vocal desejado. Houve o trabalho em grupo da técnica vocal e o individual, com exercícios, imagens e jogos, quando preciso. A terceira montagem, também em Teatro-Fórum, inspirada no texto A Máquina Escavadora, de Armand Gatti, é um espetáculo que inicia o seu trabalho agora4, em janeiro de 2012, e sobre o qual ainda temos pouco mate-rial para refletir. No entanto, o planejamento do trabalho da voz nesse pro-cesso foi encarar como fundamental a familiaridade com as propriedades do som e da música como forma de criar e explorar a construção dos persona-gens, assim como o trabalho da dinâmica da peça, tanto das cenas como das falas de cada personagem. Como projeção e planos de trabalho desse treinamento vocal, pre-tendo aplicar alguns exercícios e jogos de Boal, como “o canto da sereia”, “pesadelos de criança” e “o personagem vazio de Brown”, os quais detalharei mais adiante, além de trabalhar com a voz em coro, uma vez que preten-demos utilizar esse recurso em cena. Também pretendo embasar-me em alguns treinamentos propostos por Stanislavski em seu livro A Construção da Personagem. Nele, Stanislavski propõe trabalhar o tempo-ritmo da ação. Stanislavski dedica alguns capítulos para a abordagem do tempo-ritmo, evidenciando que tanto as ações quanto a fala prosseguem em função do tempo e do ritmo (que pode variar, sendo composto também por pausas). O tempo-ritmo tem o poder de suscitar emoções e provocar a produção de imagens, estimulando a imaginação. Logo, a ação física (e também vocal)

4 Esse texto foi escrito em fevereiro de 2012, no início

do processo de montagem do terceiro espetáculo-fórum, A

Máquina Escavadora. Em vir-tude do tempo necessário para

a edição desta obra, a escrita teve de ser concluída antes da

finalização do projeto

Ana Flávia Hamad90

e seu respectivo tempo-ritmo estimulam-se um ao outro. As circunstâncias estimulam um tempo, e o tempo-ritmo provoca e sugere pensamentos e sensações sobre as circunstâncias.

Nossas ações, nossa fala prosseguem em função do tempo. No processo da ação, temos de preencher a passagem do tempo com uma grande variedade de movimentos, alter-

nados com pausas de inatividade e, no processo da fala, o tempo que passa é preenchi-do com momentos de pronunciação de sons de diferentes extensões, com pausas entre

eles. [...] a medida certa das sílabas, palavras, fala, movimentos nas ações, aliados ao seu ritmo nitidamente definido, tem significação profunda para o ator. [...] Bem

utilizado [referindo-se ao tempo-ritmo], ajuda a induzir os sentimentos adequados, de modo natural, sem forçar.

(STANISLAVSKI, 2004, p. 255-261)

“O canto da sereia”

Nesse exercício, será solicitado que todos os atores pensem e esco-lham uma opressão vivida. Após essa definição, ficarão todos no centro da sala, de olhos fechados, até que um ator deseje começar um som que seja a tradução sonora de sua opressão. Esse ator será levado para um dos quatro cantos da sala. Um outro ator traduzirá sonoramente a sua opressão e será levado para outro canto da sala. Isso acontecerá com mais dois outros atores, e é importante que esses sons sejam diferentes dos anteriores e específicos. Os quatro atores que emitiram sonoramente suas opressões ficarão cada um num canto da sala, e os outros permanecerão no centro de olhos fecha-dos. Os quatro emitirão ao mesmo tempo as suas opressões e os outros, ao escutá-los atentamente, escolherão o som que mais traduz a sua opressão pensada. Assim formaremos quatro grupos que conversarão sobre as suas opressões e contarão suas histórias. Nesse exercício, além de termos acesso a histórias pessoais dos in-tegrantes do grupo, temos também uma expressão sonora da voz oprimida, uma música feita por imagens sonoras de opressão que poderá ser incluída na encenação como proposta estética.

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 91

Ana Flávia Hamad92

A Máquina EscavadoraTeatro SESI, Salvador,

maio de 2012

“Pesadelos de criança”

Divide-se o grupo em dois e um deles inicialmente (depois invertem-se as posições) escreve num papel seu nome e uma lembrança de algo (pes-soa ou coisa) que o aterrorizava no passado. A outra metade do grupo assis-tirá ao desenrolar do exercício. Todos começam caminhando pelo espaço, sem que um se relacione com o outro inicialmente. Devem tentar revelar, através do corpo – gestos, expressões faciais e movimentos –, característi-cas que traduzam a pessoa ou coisa que o amedrontava. Não deve tentar reproduzir-se com medo, e sim reproduzir aquele que causava o medo. De-pois, deve-se escolher um parceiro e interagir com ele, sendo a figura que amedronta. A interação evolui para o gromelô e posteriormente para pala-vras, sem revelar diretamente quem a pessoa está representando. Depois, todos observarão um a um e darão suas opiniões sem querer adivinhar o que estava escrito no papel, mas, sim, dando características sobre a figura que causava o medo e o que ela representava para o ator em questão. Boal (2009b, p. 225) afirma: “interpretando a pessoa ou objeto que me fez medo, eu ganho uma compreensão maior dos meus medos de infância (que talvez ainda vivam dentro de mim)”. Neste exercício, pretende-se incluir, antes do gromelô ou até mesmo associado a ele, um diálogo através das imagens so-noras, como forma de liberar sons que podem estar adormecidos dentro de cada um.

“O personagem vazio de Brown”

Em dupla, face a face, um ator é o personagem vazio que nada sabe e o outro, o protagonista que sabe tudo. Seguindo as indicações do diretor, o protagonista tentará transmitir tudo (quem é, onde está e o que deseja) para o personagem vazio. Então o diretor dará as indicações “somente os olhos”, “o rosto”, “o corpo”, “o corpo no espaço”, “o gromelô”, “a palavra”, e o protagonista tentará transmitir somente pelo viés dessas indicações. O personagem vazio responderá no mesmo nível à medida que vai entendendo quem é, onde está e o que quer. Entende-se, com esse exercício, que há diversas linguagens: a da voz (com timbres, intensidades, ritmo), a da palavra (com seu sentido semântico), a do corpo, a do espaço e a inconsciente. Outra vantagem desse exercício no processo da terceira montagem é a nossa ideia de trabalhar com

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 93

curingagem de papéis. Como um personagem é interpretado por mais de um ator, esse exercício é de grande valia para construir o personagem partin-do de um uníssono, de um eixo a ser seguido pelos atores que farão aquele personagem. Trata-se de um meio de construir em conjunto o personagem que seria trabalhado por mais de um ator.

Um trabalho mais individualizado

Quando menciono um trabalho mais individualizado, refiro-me jus-tamente ao foco de integrantes do grupo que apresentem uma maior dificul-dade de domínio de sua própria voz. Um exemplo importante foi o de um dos integrantes que apresenta uma voz (agora um pouco mais trabalhada) com baixa intensidade, baixa projeção e pouca articulação, falada num an-damento sempre muito rápido, como se quisesse terminar logo de falar. Há uma fraqueza na voz que não condiz com o tipo físico do aluno/ator em questão (alto e forte), mas, sim, revela um corpo sem flexibilidade e duro. Voltando a afirmar que o trabalho com a voz é lento e sutil, percebo que esse aluno/ator apresenta uma grande evolução dentro dessa sutileza. Tal crescimento dá-se em decorrência de sua participação e sua vontade em querer melhorar, embora exista ainda uma dificuldade em admitir proble-mas. Tal postura pode ser evidenciada quando nos deparamos com posi-cionamentos do tipo “não preciso treinar agora não, na hora eu vou fazer bem!”. Esse tipo de comentário faz-nos pensar que este aluno/ator ainda tem muitas resistências com relação a sua voz e que talvez tenha medo do que possa sair dela, caso se permita soltá-la. No entanto, ele caminha e percorre uma trajetória de sucesso. Ao entrar no Embasart, esse aluno jamais se posi-cionava diante do grupo; agora, após um ano de trabalho, já emite sua opi-nião em roda, fazendo questão de falar, de mostrar sua voz. Outro aluno que também apresentava um grande entrave vocal, re-flexo de sua personalidade tímida e introspectiva, teve também uma notável evolução em sua atuação. Entrou no grupo pensando em não se apresentar em cena por conta de sua timidez e, no segundo espetáculo-fórum, pediu para fazer dois personagens. Ele peitou seus medos e desafios. Deparou-se com questões pessoais de baixa autoestima e as superou. A voz e o corpo desse aluno são ainda frágeis e merecem um trabalho de longo prazo. Porém, a vontade e a dedicação possibilitaram que ele fizesse o papel do opressor, e

Ana Flávia Hamad94

utilizamos recursos da encenação para ajudá-lo na desenvoltura em cena. Outra integrante mostrava, através da voz, uma total insegurança em si mesma e falava totalmente para dentro, sem nenhuma projeção vocal. Não queria ser ouvida? Tinha medo de escutar-se? Como poderíamos solucionar a cena se, de fato, não se ouvia absolutamente nada do que ela falava? Pen-samos em colocá-la presente em cena somente realizando ações físicas, mas a aluna/atriz não possuía um corpo presente; o mesmo esconderijo que se reverberava na voz se apresentava no corpo. Como resolver sem que a aluna se desestimulasse e se anulasse ainda mais? Pensamos em uma personagem que pudesse “brincar” com um corpo enrijecido e mecanizado e que contrastasse com um figurino extrava-gante. Para solucionar a questão vocal, como se tratava de uma secretária, pensamos em transformá-la em um “ser que anuncia” e que se mantém sempre à distancia, utilizando para isso um instrumento, como um mega-fone, por exemplo. Assim, projetaríamos a fala e deixaríamos clara, em ter-mos simbólicos, a distância. Por falta de confiança, sobretudo em si e no núcleo criador, essa aluna abandonou o processo de montagem, desistindo de superar suas di-ficuldades. Foi uma perda. Este exemplo traz a complexidade de um trabalho como esse em empresas, com funcionários que muitas vezes não são libera-dos para as atividades do projeto ou não conseguem enxergar a seriedade e a complexidade de um trabalho teatral, com o grau de exigência e compro-metimento que o teatro tem, por si, como premissa. Tendo somente um en-contro semanal com 4 horas cada, sem espaço físico fixo para os ensaios, em uma empresa com muitas unidades de trabalho desmembradas em sedes distantes umas das outras (o que, de certa forma, dificulta a locomoção, embora tenhamos encontrado soluções para essa logística), o trabalho do teatro, na tentativa de realizar um trabalho de qualidade e com repercussão nos indivíduos que dele participam, exige vontade, persistência, dedicação e “jogo de cintura” para contornar certas questões. Lidamos ainda com situações de participantes saindo de férias e ou-tros dando entrada no grupo em momentos diferentes. Há pessoas que estão desde o início do trabalho e outras que entraram com o processo já mais adiantado, não participando de todos os jogos e exercícios preparatórios e sensibilizadores da criação cênica. Essa particularidade traz um novo ânimo ao grupo, pois mais pessoas se mostram desejosas em agregar o trabalho

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 95

realizado e entram com vigor; mas, ao mesmo tempo, a heterogeneidade dos integrantes no quesito formativo precisa ser administrada com organização, sensibilidade, otimização e arte. Este foi o caso do aluno deste último exemplo. Como ele não ha-via participado de todo o processo preparatório, foi-lhe impossível susten-tar seus desejos de estar em cena. Os medos, os entraves e as inseguranças foram maiores do que sua vontade. Em sua poética, Augusto Boal assevera que o oprimido, seja qual for o tipo de opressão sofrida – da física à moral, da visível à sutil –, “[...] se exercita e se fortalece para o combate posterior que travará contra as suas opressões reais” (BOAL, 2009b, p. 346-347) e que, no caso, o fenômeno es-tético é um ensaio para esse enfrentamento. O teatro é uma alternativa para esse combate, para a superação. O trabalho individualizado dentro do todo não surge ao se trabalhar um por um, mas, e sobretudo, surge a partir de uma escuta que em nada exclui as dificuldades, pois tudo o que o outro faz e emite refere-se a seus desejos, a seu corpo e a suas questões pessoais e psíquicas.

Pequenas epifanias

Podemos inferir que a participação, a entrega e o comprometimento de todos são fatores fundamentais para o bom desenvolvimento de um grupo teatral, assim como um relacionamento de confiança, troca e disponi-bilidade para mudanças e experimentações. Toda essa atmosfera é funda-mental para um bom desenvolvimento do trabalho vocal, pois, sem essas características, a voz não se sente livre para se expressar. O desafio desse projeto é trazer à tona a reflexão, discutir e (re)pen-sar possíveis situações aparentemente sem solução, evidenciar diferentes pontos de vista e alternativas de transformações, dar voz aos integrantes do Teatro do Oprimido para que possam discutir questões que são considera-das de opressão e também dar voz aos espect-atores5 que têm a oportuni-dade de, através do debate cênico, exprimir suas opiniões, ensaiar no palco o que poderá ser feito na vida real. Tal objetivo, que busca a transformação individual e coletiva e pretende redimensionar o indivíduo na sociedade, levando-o a pensar política, social e eticamente as questões de injustiça e de descontentamento, ganha um caráter de desafio quando se trata de um

5 O termo espect-ator, cunha-do por Boal, refere-se à junção

de espectador e ator, eviden-ciando o papel que o autor

pretendia que a plateia tivesse diante de um espetáculo: um

papel ativo, atuante.

Ana Flávia Hamad96

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 97

A Revolução na América do SulTeatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e janeiro de 2012

grupo de teatro amador, formado por funcionários de uma empresa que busca fazer um trabalho de nível profissional com uma preocupação estética e artística, mas sendo um grupo ainda em processo de amadurecimento e de entendimento da seriedade da arte teatral e com uma disponibilidade de carga horária pequena que dificulta o prosseguimento e a intensificação do trabalho. Portanto, essas peculiaridades dão ao processo um caráter artístico e educativo cujos resultados serão conseguidos a longo prazo e cujas áreas de atuação perpassam por múltiplos conhecimentos. No quesito, por exemplo, da saúde do trabalhador, a médica e socióloga do trabalho Tânia Franco – também integrante do projeto – nos afirma ser

[...] indispensável a interação entre práticas de fortalecimento mente/corpo do indi-víduo [...] e atividades de formação crítica sobre o trabalho alienado contemporâneo

para que se potencialize a capacidade de adaptação e de transformação dos indivídu-os em sociedade e não apenas a adaptação individual a uma vida social patogênica.

(GUTEMBERGUE; FRANCO; LIVRAMENTO, 2010, p.75)

A proposta do Teatro do Oprimido traz, em si, essa criticidade, a busca pela libertação da opressão e pelo autoconhecimento como forma de alcançar uma autonomia libertadora. O trabalho da voz insere-se também nessa proposta. A exploração dos recursos vocais permite a transmutação, gera possibilidades de “ver com o ouvido”, portanto, de criar imagens vocais. Demetrio Stratos assinala que mesmo a boca é um espaço ainda pouco explorado e que tende a apontar uma nova vocalidade: “Uma vocalidade capaz de não se deixar dominar por mecanismos culturais de controle e pelos imperativos de uma sociedade de mercado. Uma voz, enfim, capaz de gritar, gemer e ‘cantar-se’” (EL HAOULI, 2002, p. 48). Há, portanto, um trabalho de ação vocal na criação de um desenho sonoro, explorando todos os matizes da voz por meio de diversos estímulos. O corpo é um deles. Como meio de comunicar imagens de opressão, o corpo serve de estímulo para a criação de imagens sonoras em consonância com essa opressão. Trabalhamos esse diálogo entre corpo e voz, a ponto de gerar influências do corpo na voz, e vice-versa. Assim como houve uma preocu-pação de Boal em trabalhar o corpo pela técnica do teatro-imagem, propuse-

Ana Flávia Hamad98

mos, com essa investigação, problematizar a voz nesse contexto, detalhando o componente vocal em sua poética do Teatro do Oprimido. Esse trabalho “pressupõe a propensão à ação, em lugar de propen-são à palavra” (VARLEY, 2010, p. 25). O foco principal é a ação. O Teatro do Oprimido pretende tornar o ator e o espect-ator seres em ação, da ação e eternamente atuantes. Nessa pesquisa da voz no Teatro do Oprimido, busca-mos também essa ação vocal e a possibilidade de atuar por meio da voz e seu potencial libertador. Boal pretende, pelos jogos e exercícios, promover a desmecanização do corpo e da voz através da experimentação de outras possibilidades de ex-pressão e de reflexão que desviam de seu repertório e hábitos do cotidiano. Marlene Fortuna (2000, p. 38) corrobora com os pensamentos de Boal por considerar fundamental para o ator procurar “a desmecanização de gestos e vozes parasitas e lutar contra a facilidade de códigos miméticos estereotipa-dos, tornando-se agente de um processo vivo”. Boal (2009b, p. 87) nos esclarece o sentido preciso da palavra exercí-cio na poética do oprimido:

[...] utilizo a palavra “exercício” para designar todo movimento físico, muscular, res-piratório, motor, vocal que ajude aquele que o faz a melhor conhecer e reconhecer seu

corpo, seus músculos, seus nervos, suas estruturas musculares, suas relações com os outros corpos, a gravidade, objetos, espaços, dimensões, volumes, distâncias, pesos, ve-locidade e as relações entre essas diferentes forças. [...] O exercício é uma reflexão física

sobre si mesmo.

O corpo, os músculos, os nervos, a relação com os outros corpos e objetos, com a gravidade, as distâncias, a velocidade, enfim, tudo isso, afirma Boal, nada mais é do que o sujeito enquanto ser integral redimensionado em seus espaços: o espaço pessoal (aquele ocupado da pele para dentro), o espaço parcial (aquele ocupado pelo corpo expandido ou retraído sem se deslocar) e o espaço global (aquele que compõe todo o ambiente onde o corpo se encontra) (BEUTTENMULLER; LAPPORT, 1974, p. 24-25). Esse ambiente é o espaço estético ou a vida real. Boal crê que o teatro é um ensaio para a vida. Assim também se comporta a voz humana, com corpo, gravidade, dimensão, volume, distância, peso, velocidade. Ela é emitida por um corpo

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 99

com músculos, nervos e estruturas musculares específicas. A voz precisa ser trabalhada para ser conhecida – logo desmecanizada – e explorada na inten-ção de libertar(-se) e se fazer presente, ocupando todo o seu espaço sonoro, seja ele estético ou real.

ARLEY, Julia. Pedras d’água: bloco de notas de uma atriz do Odin Teatret. Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2010.

BEUTTENMULLER, M.G.; LAPPORT, N. Expressão vocal e expressão corporal. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974.

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009a.

_____. Jogos para atores e não-atores. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009b.

_____. O arco-íris do desejo: o método Boal de teatro e terapia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

_____. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

_____. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

EL HAOULI, Janete. Demetrio Stratos: em busca da voz-música. Londrina: J. E: Haouli, 2002.

FORTUNA, Marlene. A performance da oralidade teatral. São Paulo: Annablume, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

Referências

Ana Flávia Hamad100

GUBERFAIN, Jane Celeste (Org.). Voz em cena. Vol. I. Rio de Janeiro: Revinter, 2004.

GUTEMBERGUE L.; FRANCO T.; LIVRAMENTO A. “A ginástica terapêutica e preventiva chinesa Lian Gong/Qi Gong como um dos instrumentos na prevenção e reabilitação da LER/DORT.” Rev. Bras. Saúde Ocup., São Paulo, ano 2010, n. 35, p. 74-86.

STANISLAVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

_____. Manual do ator. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Uma voz presente: o trabalho da voz numa proposta de Teatro do Oprimido 101

Este capítulo apresenta, de forma panorâmica, as experiências re-alizadas com o Grupo Embasart, da EMBASA, no âmbito do projeto de Teatro-Fórum, com ênfase no processo de preparação corporal dos atores e na construção de personagens. O projeto de Teatro-Fórum na EMBASA: desmecanizando o Embasart

Os atores devem ter no corpo uma expressão corporal que exprima com clareza as ideologias, o trabalho, a função social, a profissão etc. dos seus personagens, através

dos seus movimentos e gestos. (BOAL, 2007, p. 29)

Tornar possível um trabalho de Teatro do Oprimido com pessoas conscientes da utilização e funcionalidade de seus corpos é investir e dedi-car-se ao processo de desmecanização corporal. Ao falar em desmecani-zação, logo pensamos em Augusto Boal, que se refere à desmecanização como possibilidade de “desmontar” as posturas corporais marcadas por pre-conceitos, discriminações, racismo e as mais diversas formas de injustiças e opressões vividas pelos seres humanos. O Teatro do Oprimido reúne várias técnicas teatrais que desembocam nesse objetivo, mais especificamente o Teatro-Fórum, que põe em cena o corpo para ensaiar ações e reações no

O TRABALHO CORPORAL COM O GRUPO EMBASART: PARA ALÉM DA CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM –

UMA EXPERIÊNCIA COM TEATRO-FÓRUM

Taína Assis Soares

Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA)

Graduada em Licenciatura em Teatro pela Escola de Teatro da UFBA

Estudante de Dança do Curso Técnico Profissionalizante da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB)

5

103

âmbito de situações de opressão, além de experimentar atitudes diferentes das geralmente assumidas por quem ocupa o lugar do oprimido. O trabalho corporal com o Grupo Embasart foi desenvolvido prin-cipalmente com base nos jogos do arsenal do Teatro do Oprimido. Os jogos são apresentados no livro Jogos para Atores e Não-Atores, de Augusto Boal, que é dividido em cinco categorias:

a) Sentir tudo que se toca – Subdividida em cinco séries de exercícios e técnicas que estimulam a interação e a percepção do grupo. Boal sistematiza esses jogos com o objetivo de diminuir a distância entre sentir e tocar.

b) Escutar tudo que se ouve – Possui cinco séries e jogos mais complexos e dinâmicos que se caracterizam pela ludicidade e agilidade, além de traba-lhar a voz, o som e o ritmo.

c) Ativando todos os sentidos – dividido em duas séries, a do cego e a do espaço, a ênfase está nos jogos que anulam a visão. Segundo Boal, este é o sentido monopolizador do nosso corpo, por isso é necessário aguçar os outros. Além disso, essa série de jogos trabalha a confiança em grupo.

d) Ver tudo que se olha – Essa categoria de jogos foi pensada para propor-cionar o diálogo visual entre duas ou mais pessoas e estimular a percepção espacial e imagética da cena.

e) A memória dos sentidos – Os jogos dessa categoria exploram técnicas para utilização da percepção e sensibilização dos sentidos. Ao sistematizar os jogos em categorias que se relacionavam com os sentidos do corpo, Boal justificava sua escolha dizendo:

Na batalha do corpo contra o mundo, os sentidos sofrem, e começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos... Os corpos se adaptam ao trabalho que devem realizar.

Essa adaptação, por sua vez, leva à atrofia e à hipertrofia.(BOAL, 2007, p. 89)

Ativar todos os sentidos do Grupo Embasart foi um desafio, conse-

Taína Assis Soares104

guido a partir de um trabalho coletivo em que a expressão corporal foi sendo pouco a pouco reconhecida como necessária e providencial para o grupo. Por se tratar de trabalhadores da indústria, muitos integrantes trazem no corpo as marcas impressas de suas histórias, o que exigiu alguns cuidados bem específicos e que foram essenciais para o processo. Os componentes do Embasart possuem, dentro da empresa, fun-ções hierárquicas diversificadas, que vão desde o profissional que trabalha na rua como técnico até engenheiros e arquitetos, passando pelas funções administrativas, como assistente social, digitador, secretário, contador, aten-dente, entre outros cargos que geram atos físicos cotidianos que tendem a mecanizar os gestos corporais. Segundo o autor Yoshi Oida (2001, p. 54), “o corpo de cada pessoa é profundamente influenciado por sua cultura (país, classe social etc.). A história pessoal do indivíduo também lhe determina o físico”. Esses gestos corporais dos integrantes do Embasart estavam relacionados às suas históri-as de vida, que perpassavam pelos cargos que cada um ocupa na empresa. Este fator importante foi cuidado pela equipe para não deixar que influen-ciasse de forma negativa no processo de formação com o teatro. Ainda as-sim, a relação entre a função do trabalhador na EMBASA e o comportamento perante o grupo de teatro era perceptível nas relações interpessoais estabe-lecidas. Nesse sentido, o trabalho foi conduzido na perspectiva de estimular o espírito de grupo e o trabalho coletivo a partir do acompanhamento das presenças efetivas dos participantes nos encontros, para evitar o prejuízo ao processo com faltas e atrasos. Assim, entendemos que o corpo deve estar presentificado, em alerta, para que o trabalho teatral possa ser construído com todas as ferramentas e técnicas necessárias, possibilitando que a mon-tagem seja feita com potencialidade. Concordando com o antropólogo Eugênio Barba (2009, p. 69), quando diz que “A matéria-prima do teatro não é somente o ator, o espaço, o texto, mas sim a atenção, o olhar, o escutar e o pensamento do espectador”, o corpo foi a matéria-prima para esse trabalho.

O corpo presente no processo

Mergulhar inteiramente no processo de montagem que tem como principal objetivo questionar e instaurar uma discussão cênica sobre deter-minadas situações de opressão é transformar e envolver os participantes “de

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 105

corpo e alma” nesse banho de arte, reflexão crítica e ação a partir do Teatro-Fórum. Durante o processo, os corpos dos atores precisavam responder ao objetivo principal do espetáculo, qual seja: levantar e problematizar uma questão seguida de discussão. Para tanto, foi necessário tornar o corpo de cada ator um “corpo crítico”. Como bem explica a autora Christine Greiner (2009, p. 22), “O corpo crítico é aquele que elabora corporalmente uma questão, e, para tanto, o tempo é fundamental”. No Embasart, mesmo dis-pondo de pouco tempo para introduzir o processo de desmecanização corporal, os resultados já reverberam no corpo de cada trabalhador. Além da dedicação de toda a equipe, foi imprescindível conduzir as propostas corporais ancoradas na afirmação de que não temos um corpo, mas de que somos um corpo, princípio da ideia de corporeidade proposta pelo filósofo francês Michel Bernard. Após 10 meses de execução do projeto, é possível perceber a corpo-reidade dos trabalhos não só durante a atuação dos personagens, mas na vida de cada um. A mudança no corpo dos trabalhadores aconteceu tanto em termos de elevação da autoestima e autoconfiança quanto na tomada de decisões e posicionamentos decisivos em resposta a opressões, a exemplo da funcionária que protagonizou a primeira intervenção do projeto com o espetáculo Cresça e Apareça. Nesta montagem foi discutida a questão da avaliação funcional, problema vivido por integrantes do grupo em sua experiência na indústria.Saber lidar com uma série de problemas que dizem respeito tanto à saúde física do corpo quanto à saúde mental foi um desafio que algumas vezes di-ficultou o trabalho em grupo, mas que não teve maiores consequências no trabalho final de montagem. O projeto contou com profissionais de áreas específicas que tratavam sobre questões ligadas ao trabalho na indústria, entre elas a médica e socióloga Profa. Tânia Franco, que abordou a relação entre saúde e trabalho. Seus cursos e workshop foram providenciais na etapa de construção da segunda montagem, A Revolução na América do Sul.

Cresça e Apareça tomando corpo – o processo

As situações de indisponibilidade para execução das propostas de alongamento e aquecimento corporal eram mais frequentes durante o pro-

Taína Assis Soares106

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 107

A Revolução na América do SulTeatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e janeiro de 2012

cesso de montagem do espetáculo Cresça e Apareça em comparação com o posicionamento adotado atualmente pelo grupo, que está no processo de construção da terceira montagem. Esta primeira montagem com o grupo tratava do problema de Ana Maria, funcionária de uma empresa que solicitou a revisão da sua avaliação funcional. O espetáculo levou para a sessão de Teatro-Fórum a discussão sobre a avaliação funcional da empresa Lado B Design vivida por esta fun-cionária. Durante a preparação corporal dos atores para este espetáculo, foi travada uma verdadeira empreitada no sentido de que os estímulos dados aos atores para a criação e construção dos personagens não eram respondi-dos satisfatoriamente, pois os atores tinham limitações de ordem psicomo-tora. Para Helena Katz (2005, p. 56),

Os órgãos psicomotores fazem parte do modo de nos tornarmos seres do mundo. O processo pelo qual as informações que nos constituem tomam a forma do nosso

corpo é longo e se estrutura na experiência.

Considerando que as experiências desses trabalhadores abrigam histórias e situações vividas que os endurecem e limitam para experimenta-rem possibilidades criativas de usar o corpo a favor de um trabalho artístico e terapêutico, o trabalho corporal foi direcionado diante das especificidades apresentadas pelos integrantes do grupo. As dificuldades foram sendo detectadas ao longo do processo, prin-cipalmente em relação à construção do personagem, a exemplo da protago-nista de Cresça e Apareça, em que a atriz estava tão envolvida em sua própria história que necessitou de um trabalho específico com exercícios e jogos de teatro para ajudar a compor corporalmente sua personagem. Embora ela es-tivesse representando um problema real, deveria assumir outro corpo, outra postura, um novo andar, diferente das características da atriz. Para a preparação do espetáculo, utilizamos, além das noções de memória emotiva e fé cênica de Stanislavski, algumas técnicas para cons-trução do personagem, um exaustivo arsenal de jogos e exercícios que es-timulassem, em primeiro lugar, a percepção corporal, a partir dos jogos descritos na obra Jogos para Atores e Não-Atores, de Boal, para que então, percebendo e entendendo seus gestos, movimentos e comportamentos, a

Taína Assis Soares108

atriz pudesse atuar propondo novas formas de expressão. Entendemos que, para desmecanizar, o ator precisa perceber onde estão acentuadas suas limitações, entender o motivo, para que então seja possível arriscar transformações a partir das ferramentas que lhe são oferecidas com o trabalho direcionado para a preparação corporal. Durante o processo, ela se deparou com algumas dificuldades em perceber seu corpo, seus movimentos rotineiros. Para mudar e desme-canizar, foi necessário iniciar outro processo, depois de um período, para começar a propor novas possibilidades de atuação. Percebo que os resultados deste primeiro processo com o Cresça e Apareça foram mais visíveis na atriz protagonista logo após as apresentações da montagem, como se ela precisasse primeiro falar, encenar, discutir muito sobre o assunto, para, depois desse tempo, fazer seus nexos entre todas as técnicas e ferramentas que lhe foram oferecidas, e então superar o problema. A atriz que interpretou a opressora do espetáculo, Leonor, entendia que o lugar de poder que ela ocupava era bastante confortável e prazeroso; o corpo deveria expressar isso, colocando a sutileza na personagem sem perder a altivez e o autoritarismo que caracterizavam o perfil opressor de Leonor. A atriz respondeu de forma bastante competente aos estímulos e soube dosar bem as indicações, construindo uma opressora que revelava suas caracterís-ticas no andar, no olhar, no sentar e em todas as ações que fazia. Os demais personagens, como a idosa dona Idalina, o jovem Tomás, a secretária preguiçosa e aproveitadora Suzana, a funcionária inocente Rosenilde, o ponto que era uma máquina falante, os gerentes da empresa Dr. Paulo e Dra. Ângela, a funcionária esperta e injustiçada Margô, todos foram construídos a partir de indicações que extrapolavam as bases de construção corporal estereotipada. Realizou-se um trabalho de reconhecimento e descoberta das po-tencialidades e limitações corporais de cada um, para que, a partir desse material identificado neles e por eles, as criações e investigações no corpo seguissem o perfil de cada personagem. Como resultado, alguns atores oscilaram em termos de segurança na construção de seus personagens, o que foi compreensível pelo fato de ser o primeiro trabalho do grupo que tivesse uma exigência estética. Alguns re-sultados foram surpreendentes e marcantes, como o corpo de Idalina: uma senhora com uma voz marcante e um corpo encurvado, cheio de dor e de

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 109

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A Revolução na América do Sul

Teatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e

janeiro de 2012

marcas do tempo, porém firme e decidido, que provocava o riso no especta-dor, em função do tom cômico dado pela atriz. A personagem Rosenilde é uma nordestina do interior que, até ganhar vida pela atriz, estava bem escondida por ela, que era cheia de insegurança e medo. Essa personagem traz muitos traços corporais da atriz, o que não significa que ela não tenha percebido onde estavam seus entraves corporais. Porém, acredito que o teatro tenha feito um grande bem para esta traba-lhadora, e a descoberta para a libertação das suas resistências chegará de forma lenta e progressiva. Esta primeira etapa do projeto e, portanto, o primeiro contato do grupo com uma nova metodologia de trabalho foi bastante diferente e dis-tante de como eles estavam acostumados a fazer teatro e a se comportar nos ensaios, o que causou em certa medida estranheza e desconfiança. Esse fato foi comprovado pelos participantes mais antigos do grupo. Hoje o grupo é cobrado principalmente por posturas responsáveis e de comprometimento com o trabalho que assumimos e abraçamos jun-tos. Essas cobranças e expectativas são correspondidas em muitos aspectos, porque reconhecemos o trabalho sólido que foi feito na primeira etapa do projeto. Foi nesse primeiro momento que solidificamos as relações, tanto da equipe quanto do Embasart. Aqui também introduzimos uma medida dis-ciplinar para o trabalho de ator e, sobretudo, asseguramos os problemas de insegurança, vaidade e intolerância, dentre outros problemas com os quais tivemos de lidar. Passar por essa primeira experiência, que ao mesmo tempo foi desa-fiadora, conturbada, prazerosa e frutífera, tornou o grupo mais sólido e coeso, favorecendo o entendimento sobre as técnicas que permeiam a construção de um trabalho teatral, causando uma mudança significativa de postura em relação à disponibilidade para as propostas na segunda etapa do processo.

A Revolução na América do Sul tomando corpo – o processo

Montamos, no segundo trabalho, um texto escrito por Boal em 1961 chamado A Revolução na América do Sul. Essa montagem se diferencia da primeira devido à introdução do texto dramático que foi adaptado. Após a construção de Cresça e Apareça, julgamos o grupo mais maduro para inter-pretar, com as devidas adaptações, um texto escrito e publicado previamente.

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 111

A maturidade se refletia também na forma como a construção dos personagens foi assumida pelo grupo. O processo de investigação corporal, pesquisa e experimentações foi levado mais a sério, sendo possível perceber que o resultado da dedicação se refletiu no palco. Nesse processo, partimos por um caminho em que o corpo de cada ator tinha de revelar, sem o apoio de recursos cênicos, adereços ou acessórios, o perfil de cada personagem. Para alcançar esse objetivo, insistimos na mes-ma estratégia que utilizamos na primeira montagem, em que conseguimos que muitos percebessem e identificassem suas limitações corporais, e inves-timos na investigação sobre novas possibilidades de criação corporal. Nesta etapa, contamos com um número bem maior de integrantes. Iniciamos fazendo trabalhos específicos em que o grupo, dividido em sub-grupos, ficava sob a responsabilidade das instrutoras do projeto coordenado pela Profa. Antonia Pereira. Esse procedimento permitiu o desenvolvimento das potencialidades de todos os personagens. No texto há as personagens das prostitutas; para esse papel, além das pesquisas e investigações corpo-rais durante as aulas, os atores tiveram indicações de em que parte do cor-po deveriam acentuar o rebolado, como o corpo deve estar projetado para parecer insinuante e ousado, como andar de forma provocante e sensual. Neste trabalho, as características do personagem deveriam estar ali-adas à proposta criativa do ator, para que houvesse uma fusão consciente das expressões corporais. O ator protagonista do espetáculo teve dificuldades em encontrar um corpo condizente com a condição do seu personagem, que era um tra-balhador faminto por alimento e por condições melhores de vida para ele e a família. Talvez essa dificuldade tenha se agravado pelo fato de o ator não possuir em sua memória corporal a fome, além de não ter participado da primeira intervenção do projeto. Uma das indicações indispensáveis para a construção de José da Silva1 consistia em imaginar o corpo de um faminto, depois identificar os detalhes da diferença entre o corpo do ator e o desta pessoa com fome. Durante a primeira indicação, quando o ator imaginou o corpo com fome, levou imediatamente a mão até a barriga, fazendo uma ação óbvia de um corpo faminto, pois é na barriga que estão os primeiros sinais da fome. Aos poucos ele foi incluindo uma curvatura no corpo, um andar cansado e uma expressão sofrida, formando um conjunto de características convin-

Taína Assis Soares112

1 José da Silva é o perso-nagem protagonista do

espetáculo A Revolução na América do Sul

centes, sem tirar de José a inocência e a esperança por dias melhores. Essa construção foi ganhando potência durante o processo, até que o corpo de José estava pronto; suas ações, seu olhar, suas movimentações eram executa-das com a fluência de um corpo que necessitava comer e fazer revolução. Zequinha, que é um personagem masculino no texto, foi interpre-tado por uma mulher, e sua preparação corporal enfrentou alguns entraves até a composição final. As características de Zequinha eram de um operário dinâmico que transitava entre a brutalidade, a agilidade e a esperteza. A atriz, que é muito feminina e sensual, se despiu de todas as suas característi-cas para emprestar e construir o corpo de Zequinha. Em seu processo de construção, os detalhes denunciavam a fragi-lidade do seu trabalho; a forma de pegar na colher para comer, o jeito de sentar eram ações na cena que o corpo da atriz executava desconectado das características do personagem. Solicitamos que ela realizasse laboratórios minuciosos de observação no comportamento de um operário, para que, através da imagem, ela pudesse reproduzir no corpo as ações com veros-similhança, acreditando no seu corpo de operário. Os atores que fizeram personagens políticos tiveram como principal recomendação para busca do corpo a inspiração em elementos de animais específicos, como a cobra e a raposa, a fim de colher movimentos corporais que se assemelhassem a eles. Essa indicação foi dada, em primeiro lugar, buscando integrar o trabalho corporal às máscaras que cada personagem usaria na cena, contextualizando as características desses animais com o perfil dos políticos que o texto de A Revolução na América do Sul sugere. Para a construção dos corpos de cada político, foi pesquisado pelos atores o movimento da cobra quando quer dar o bote, a cobra traiçoeira, além da esperteza e a agilidade da raposa. Essas metáforas feitas a partir das carac-terísticas dos animais foram essenciais na investigação corporal dos atores. Além dos políticos, os personagens do espetáculo que eram líderes comunitários ou representantes do povo contracenavam com esses políti-cos e tinham uma atmosfera muito parecida com a deles. Com esse bloco de personagens, realizamos uma preparação corporal voltada para o tema por eles tratado, que era a política no Brasil. Portanto, o líder, que falava sobre esportes, expressou no corpo características estereotipadas de um jogador de futebol, como a forma de gesticular e de caminhar inspiradas no atleta. A construção do corpo do representante religioso da comunidade obede-

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 113

ceu ao mesmo processo. A atriz, que entrou no grupo após a encenação da primeira montagem, tinha grandes dificuldades na projeção da voz e do cor-po. Era como se todas as indicações fossem entendidas, tornando-se impos-sível para ela imprimir no corpo essas expressões. A partir de um trabalho minucioso de corpo e voz, em que as técni-cas de liberação corporal e confiança foram bem trabalhadas, exemplifico alguns jogos da poética do oprimido que foram aplicados, entre outros exer-cícios e jogos do arsenal do Teatro do Oprimido: “João bobo ou João teimoso” (BOAL, 2007, p. 95) faz parte da 1ª categoria do livro, “Sentir tudo que se toca”, e trabalha a confiança. Pede-se ao grupo que faça um círculo com todos de pé. Um voluntário vai ao centro e, sem dobrar a cintura, arqueando as costas, inclina-se para frente, para trás, para a direita e para a esquerda, deixando o seu corpo ser sustentado pelas mãos dos demais integrantes que compõem o círculo. “O vampiro de Estrasburgo” (BOAL, 2007, p. 161) faz parte da 2ª categoria, “Escutar tudo que se ouve”. Todos caminham pela sala de olhos fechados e com as mãos cobrindo os cotovelos. O diretor toca o pescoço de alguém, que passa a ser o vampiro: seus braços se esticarão para frente, ele dará um grito de horror e doravante procurará um pescoço para vampirizar. “Ritmos de imagens” (BOAL, 2007, p. 153) também faz parte da 2ª categoria, “Escutar tudo que se ouve”. Um ator vai ao centro do círculo e os outros tentam, um de cada vez, expressar uma imagem rítmica dele, fazen-do isso individualmente. Em seguida, todos repetem juntos os ritmos que criaram, e o ator do centro tenta se integrar nessa orquestra de ritmos que, segundo os companheiros, representa ele mesmo. Com os exercícios, aos poucos, a atriz foi superando a timidez e a re-sistência em investir na construção da personagem, o que resultou em uma construção corporal com resultados ainda pouco ousados, mas significativos e progressivos tanto para a atriz quanto para a montagem final. Em relação aos personagens feirantes, que representavam a popu-lação em massa, cada ator buscou uma construção corporal específica para o personagem. Além disso, eles foram convocados a pesquisar o corpo de transeuntes da feira de São Joaquim, em busca de personagens-tipo que compõem a atmosfera de uma feira. Esse laboratório feito individualmente pelos componentes, associado aos laboratórios das aulas, resultou em uma grande variedade de construções corporais no espetáculo, como o velho, a

Taína Assis Soares114

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 115

Processos de montagem / oficinas

mocinha, as senhoras, o maluco – este último chamado de esfarrapado –, e trouxe para o espetáculo uma contribuição significativa em relação à estética alcançada. O esfarrapado é um personagem maltrapilho, com limitações men-tais, mas presente e atuante na ideia de fazer a revolução por uma condição de vida mais digna para os trabalhadores. A atriz que interpretou o per-sonagem estava grávida, e foi construindo o corpo desse esfarrapado com propostas e investidas corporais que se consolidavam a cada encontro. Para o grupo, a atriz foi reconhecidamente uma das revelações no que diz respei-to à sua atuação, dedicação e disponibilidade para a cena. Ela soube utilizar bem o material de pesquisa coletado em favor do personagem e utilizou a sua gestação como subsídio para a cena. O seu corpo estava se modificando, os cuidados e a atenção com a atriz durante a preparação corporal foram do-brados, e a sua gestação não a impediu de atuar com muita competência na montagem, adequando e contextualizando para o espetáculo a sua enorme barriga, que possibilitou ao personagem a verossimilhança pretendida e ob-jetivada pela equipe técnica, que reconhece o mérito do trabalho realizado pela atriz. A mulher de José da Silva teve emprestado para o espetáculo o corpo de uma atriz que tinha como uma das principais características a sexuali-dade, que era bastante aflorada, além de uma estrutura física que se contra-punha à de José, que era franzino e envergado. Na preparação corporal, a atriz utilizou muitos trejeitos e expressões que são inerentes a ela, como a forma de andar, de movimentar, ações que eram sempre tomadas por uma atmosfera de comédia seguida de algumas expressões pornográficas. Este foi o excesso que coube à equipe equilibrar para o espetáculo, pois não podía-mos dispensar o material que a atriz nos fornecia, mesmo porque algumas propostas funcionavam cenicamente, outras não. Fizemos um trabalho para equilibrar a dimensão sexualizante das situações e das coisas, bem como a comicidade da atriz, estimulando a pes-quisa por uma mulher que também era sofredora e opressora. Essa busca convergiu no entendimento de todas essas características transpostas para o corpo, em que as ações e as intenções dessa personagem traduziram a forte presença corporal da atriz e o poder de controle e de manipulação pelo mari-do. Creio que, dentre todos os personagens, o do patrão tenha sido

Taína Assis Soares116

o mais difícil em termos de construção e de alcance dos objetivos cênicos e estéticos. Isso teve alguns motivos, como o fato de a atriz nunca ter feito teatro e estar participando do grupo Embasart havia pouco tempo, além da responsabilidade em assumir um personagem de grande visibilidade que, assim como todos os outros, deveria ser construído a partir de bases sólidas, com técnica e pesquisa cênica. Porém, a preparação corporal deste personagem merece destaque por estar ocupando um lugar decisivo na dis-cussão proposta no fórum, em que os desejos e objetivos do patrão estavam claramente construídos e corporificados. Durante o processo nos deparamos com várias dificuldades. Era necessário investir mais na interpretação e no potencial criativo de cada um, visto que esta montagem seria subsidiada por um aparato técnico e finan-ceiro com possibilidade de maiores apresentações do que foi possível no espetáculo Cresça e Apareça, devido à junção de dois projetos, o que justifica o apoio financeiro direcionado para a produção deste segundo espetáculo. Na preparação dos atores para A Revolução na América do Sul, tive-mos como base principal, além dos jogos do arsenal do Teatro do Oprimido, o trabalho de experimentação de alguns princípios de ações de Laban2. As ações de pontuar, deslizar e pressionar foram estimuladas e reveladas no corpo, investigadas na perspectiva de apontar para caminhos que motivas-sem a criatividade e a autonomia durante a construção dos personagens. É certo que os processos de experimentações corporais não geram resultados imediatos. Pelo contrário, requerem muita dedicação na pesquisa e investigação, principalmente quando se trata de atores que estão começan-do a ter contato com as técnicas teatrais. No entanto, esse entendimento sobre o estudo do corpo na cena precisa ser mais bem compreendido e seguido pelo grupo, que por vezes ainda permite que a ansiedade e a precipi-tação estejam presentes no processo. O espetáculo A Revolução na América do Sul conta a história de José da Silva, um trabalhador da indústria que, em busca de melhores condições de vida, é convencido a fazer uma revolução para reivindicar as condições e questões trabalhistas. O primeiro momento mostra o cotidiano de José, e sua relação com Zequinha, que é seu melhor amigo no trabalho. É nesta cena que José, a partir de uma conversa com Zequinha, é persuadido a fazer a revolução. Aqui a relação de poder e submissão já é apresentada desde a forma como os corpos de José e Zequinha empurram os pneus, repetida-

2 Rudolf Von Laban: dançarino e coreógrafo considerado o maior teórico da dança do século XX e o pai da dança-teatro

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 117

mente, obedecendo à lógica da reprodução em série, um mecanismo que atrofia as possibilidades corporais daqueles corpos que desempenham ações como máquinas. Logo após, vem a cena de José na feira, onde é evidenciada a pre-cariedade da sua situação financeira. Neste momento o espetáculo apresenta o quanto a desigualdade econômica no Brasil é injusta e cruel, pois José é um trabalhador assalariado com 11 filhos para criar que se depara com a situação de não conseguir sustentar sua família com salário mínimo; mesmo tendo tido aumento salarial no Brasil, o valor não atende às necessidades básicas para sustentar a família. A atmosfera da feira foi instaurada a partir da construção de corpos dançantes. A preparação para este momento foi conduzida considerando personagens como verdadeiros compradores e vendedores que realizavam estas ações a partir da técnica da dança, e não simplesmente do realismo de comprar e vender, enquanto transposição da vida real para a cena. A respeito deste ponto, Eugênio Barba (2009 p.33) afirma:

[...] a técnica é uma utilização particular do corpo. O nosso corpo é usado de maneira substancialmente diferente na vida cotidiana e nas situações de representação.

Sendo assim, através de uma coreografia sem passos codificados e sistematizados, realizou-se o ritual de comprar e vender na feira. Na cena em que o cenário é a política, mostramos a realidade dos governantes que esbanjam e vivem em regalia à custa do dinheiro público. Além da corrupção dos políticos, a cena trata  da forma como alguns ci-dadãos se corrompem em nome de uma situação financeira privilegiada e status perante a sociedade. Neste momento do espetáculo, foi proposto um formato diferenciado dos demais, para valorizar esteticamente o cenário dos políticos e a interpretação teatral, sendo um desafio à construção desses cor-pos políticos que ganhavam aspectos cênicos surrealistas. Houve resistência dos atores em aceitar a ideia, por conta ainda da hegemonia da interpretação realista, em que os corpos seguem um modelo de construção condizente com a realidade, principalmente nas telenovelas veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Não obstante a resistên-cia ao grotesco, ao surreal e a outras estéticas teatrais, que é completamente compreensível, insistimos na proposta, que nos proporcionou bastante tra-

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balho e ocasionou problemas durante o processo, como a desistência de alguns atores em continuar com o personagem, o desejo de mudar de cena e deixar de participar desta. Mas, mesmo com todas as dificuldades, os resul-tados foram satisfatórios e prazerosos. O espetáculo é repleto de magia e encanto, ao mesmo tempo em que trata de uma realidade que é atual e cruel. Sem dúvida a força do espetácu-lo está no diversificado universo que produziu, o qual abrange as técnicas do “arsenal” até os acessórios de cada personagem. Em cada personagem está impregnado o que cada ator doou de si. Os corpos foram trabalhados e retrabalhados para dar forma a uma nova persona, como um instrumento. Segundo Mauss3 (1995, p. 79), “o corpo é o primeiro e mais natural instru-mento do homem, [...] o primeiro e mais natural objeto técnico”, objeto este que é sensível e consciente, que reflete o que somos e o que fomos. Os únicos responsáveis pelo que acontece com nosso corpo somos nós mesmos, que fazemos nossas escolhas e trilhamos nossos caminhos. Assim, “cada pessoa mecaniza o seu corpo para melhor executá-lo, privando-se então de pos-

Cena do espetáculo A Revolução na América do Sul, em que estão os três políticos e os empresários

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 119

3 Marcel Mauss foi um impor-tante sociólogo e antropólogo francês. Na sociologia e na antropologia social contem-porânea, foi considerado o pai da antropologia francesa

síveis alternativas para cada situação original” (BOAL, 2007, p.61). O processo tem sido muito importante para o fortalecimento tanto do grupo quanto de cada participante do Embasart. Além disso, as apresen-tações têm possibilitado o amadurecimento do grupo e dos trabalhadores enquanto atores protagonistas de suas ações e ideias, no que diz respeito tanto à autonomia individual quanto à responsabilidade com os fazeres teatrais. Ao final do espetáculo, na última cena, é evidenciado o fracasso de José em tentar fazer a revolução honestamente, e a cobrança do patrão e da esposa para que ele desista da ideia de lutar por uma situação melhor de vida, aceitando e se acomodando à situação já estabelecida. A partir desse momento, inicia-se o fórum para buscar possíveis alternativas de resposta às perguntas: E agora, o que José deve fazer? Encontrar formas de continuar a sua luta ou desistir e aceitar a situação? José agora é um corpo sem voz, sem fala, sem chão, sem apoio, sem caminhos, um corpo que não tem fome somente do alimento, mas de dig-

Construção da cena dos políticos

Taína Assis Soares120

nidade, de respeito e de justiça. Essas fomes estão marcadas em seu corpo não somente porque sua estrutura física reflete essas necessidades. O seu corpo encurvado, sua mão que por vezes passa na barriga, seu andar cam-baleante, sua expressão de cansaço e suas mãos levadas à cabeça excessi-vamente numa ação de tirar e colocar o chapéu, como se por um milagre, de alguma forma, a resposta para tantas perguntas pudessem aparecer para tirá-lo daquela situação de miséria.

O processo de criação do corpo de José da Silva

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Considerações finais

É muito bom ver os corpos se renovando, entendendo e correspondendo aos estímulos de criação e improvisação, hoje com muito mais maturidade e consciência do que ontem. Compreender que “a ignição sensório-motora que impulsiona e alimenta a ação corpórea se estende pelo tempo” (GREINER, 2009, p. 13) é não ter pressa. Portanto, saber esperar é respeitar o processo de acordo com o tempo de cada organismo, e os resul-tados serão aplaudidos, tanto no teatro quanto na vida. No Embasart, vamos corporificando nossos aprendizados sem pressa.

Taína Assis Soares122

BARBA, Eugenio. A canoa de papel: Tratado de antropologia Teatral. Tradução de Patrícia Alves Braga – Brasília: Teatro Caleidoscópio, 2009.

BERNARD, Michel Mauss. “A abordagem sociológica: o corpo como es-trutura social e como mito.” In: Le corps. Paris: Pont Seuil, 1995.

BOAL, Augusto. A estética do Oprimido. Rio de Janeiro. Garamond. 2009. 256p.

_____. Jogos para atores e não atores. 10 edição rev. e ampliada. – Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2007. 368p.

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GREINER, Christine. Mapas e Contextos. Cartografia. Rumos Itaú Cultural. 2009-2010.

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_____. O Corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.

KATZ, Helena; GREINER, Christine. “Por uma Teoria do Corpomídia”. In: GREINER, Christine. O Corpo, pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005a.

KATZ, Helena Tania. Um, Dois, Três. A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte, 2005.

OIDA, Yoshi. O ator Invisível. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001.

Referências

O trabalho corporal com o Grupo Embasart: para além da construção da personagem - uma experiência com Teatro-Fórum 123

Neste capítulo, faremos uma sucinta abordagem sobre o método de preparação de trabalh(atores) utilizado no projeto “Teatro-Fórum e peda-gogia da intervenção: dimensões político-formativas com os trabalhadores da indústria”, realizado junto aos integrantes do Grupo Embasart. Propo-mos analisar as intervenções cênicas que tiveram lugar ao longo do projeto, através da preparação dos atores, além de revisitar as técnicas de Boal apli-cadas durante o processo e apresentar a utilização de outras técnicas que se somaram à construção da personagem no trabalho com o ator trabalhador da indústria. Pretendemos também evidenciar a importância da encenação e os recursos técnicos a serviço do teatro de intervenção. Conforme o próprio título sugere quando fala em “dimensões políti-co-formativas”, as ações deste projeto apontam para práticas de caráter político-social, suscetíveis de promover transformações na vida dos traba-lhadores. O Teatro-Fórum proporciona processos criativos que autorizam a discussão de questões de opressão no âmbito pessoal, social e profissional. Recriar a realidade para então discuti-la é o princípio básico do Teatro-Fórum, como também é princípio básico de Boal levar o espectador à ação – primeiramente a ação teatral e, em seguida, a atuação na realidade no sen-tido de transformar a sociedade. A criação de cenas teatrais constitui matéria-prima para a provo-

COLCHA DE RETALHOS – PREPARAÇÃO DE TRABALH(ATORES)1 PARA TEATRO-FÓRUM

Cibele Marina Pereira

Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia

Bolsista DTI CNPq nas ações do projeto “Teatro-Fórum e pedagogia da intervenção: dimensões político-formativas com os trabalhadores da indústria”

Atriz e diretora de produção

6

1 Neologismo formado pela fusão das palavras trabalhadores e atores, funções desempenhadas pelos integrantes do Embasart (PEREIRA, Cibele Marina)

125

cação dos fóruns e a ativa intervenção dos espect-atores. Os integrantes de um grupo de Teatro do Oprimido podem escolher apresentar-se, ou não, em público, mas são pontos inerentes ao processo do Teatro-Fórum a realização dos debates envolvendo os próprios participantes, a exortação a uma nova atitude, a descoberta de uma nova saída a partir das cenas propostas. Nisso consiste o ensaio da realidade, tão defendido por Boal (2005a, p. 323):

O importante é que o Teatro do Oprimido seja bom teatro, antes de mais nada. Que a apresentação do antimodelo seja, em si, fonte de prazer estético. Deve ser um bom e belo espetáculo, antes de ter início a parte do fórum, isto é, a discussão dramática,

teatral, do tema proposto.

No âmbito deste projeto, apresentar os resultados cênicos ao público fazia parte das metas a serem alcançadas. Para atingi-las, foram concedidos 18 meses de trabalho voltados para a) a iniciação do Grupo Embasart na poética do oprimido; b) a experimentação da técnica do Teatro-Fórum; e c) a construção de três espetáculos teatrais, produzidos a cada seis meses. O primeiro espetáculo, Cresça e Apareça (abril de 2011), aborda a avaliação funcional; A Revolução Na América do Sul, segundo espetáculo (novembro de 2011), discute relações entre patrões e empregados; por fim, o terceiro espetáculo será inspirado no texto de Armand Gatti: A Máquina Escavadora (primeiro semestre de 2012). A partir do texto de Gatti, encontraremos (pré)texto – ecos e interfaces com temas de equidade de gênero, raça e sexo. Esses temas são de total interesse dos trabalhadores da EMBASA e se configuram em resultados, dados tangíveis alcançados mediante ações desenvolvidas em forma de oficinas teóricas e práticas, integrando profissionais das áreas do teatro, da psicologia e das ciências sociais. A opção de levar os resultados cênicos a público se justifica por en-tendermos que os assuntos tratados, como saúde, segurança, educação e meio ambiente, são inerentes ao mundo do trabalho e que esses resultados cênicos são capazes de reverberar os questionamentos e as reflexões e prin-cipalmente proporcionar formas de diálogo entre opressores e oprimidos. No princípio, contamos com apenas oito integrantes; ao longo dos meses dobramos esse número, e concluímos o projeto com 20 participantes. Ainda assim, expandir essas ações e alcançar um número ainda maior de traba-lhadores dentro da empresa se tornou instrumento fortalecedor das mudan-

Cibele Marina Pereira126

ças necessárias. Uma vez decididos pela apresentação de resultados cênicos, cabia-nos a preparação e o cuidado estético requerido a um espetáculo teatral. Sempre estivemos amparados pelas técnicas de Boal sistematizadas em seus livros Jogos Para Atores e Não-Atores, Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas e A Estética do Oprimido e, sobretudo, confortados pela certeza de que todos podem ser atores, uma vez que, segundo Boal (2005a, p. IX),

a linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, e a mais essencial. Sobre o palco os atores fazem exatamente aquilo que fazemos na vida cotidiana, a toda hora e a todo lugar. Os atores falam, andam, exprimem ideias e revelam paixões, exatamente

como todos nós.

Restou-nos a missão de transformar estes gestos, atitudes e pa-lavras em signos conscientes e capacitar os trabalhadores, tornando-os trabalh(atores) aptos a utilizar esses signos para além da comunicação. An-tes de aprofundar as técnicas utilizadas para a preparação do ator, devemos ter o claro entendimento de que essas técnicas são ferramentas para con-tribuir com a estética do espetáculo. Engana-se quem pensa que o Teatro do Oprimido é puramente pedagógico ou panfletário. Pelo contrário: a beleza, o prazer e a riqueza estética eram também defendidos e almejados por Boal. O teatro pobre de cenários e figurinos não deve ser uma escolha. Há casos em que nos deparamos com recursos resumidos ou reduzidos a uma mesa e duas cadeiras. Porém, cenários e figurinos bem elaborados somam-se aos demais signos, compondo a dramaturgia do espetáculo: “Muitas vezes, a opressão está na roupa, nas coisas: é preciso que coisas e roupas sejam pre-sentes, atuantes, claras, estimulantes” (BOAL, 2005a, p. 333). Além disso, “o perigo de uma encenação pobre é induzir os espect-atores participantes a apenas falar, discutir verbalmente as soluções possíveis, em vez de fazê-lo teatralmente” (BOAL, 2005a, p. 324). Neste cerne se localiza a necessidade de uma prática de preparação de atores. Contudo, o Teatro-Fórum requer técnicas de representação especí-ficas, em sua grande maioria orquestradas pelo manual Jogos para Atores e Não-Atores, de Augusto Boal. Este livro apresenta um panorama da criação do Teatro do Oprimido, trazendo outras técnicas do arsenal, quais sejam: teatro-jornal, teatro invisível, teatro-terapia, “arco-íris-do-desejo”, teatro

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 127

Cibele Marina Pereira128

A Revolução na América do Sul

Teatro SESI, Salvador, novembro de 2011 e

janeiro de 2012

legislativo e teatro-imagem. A obra descreve ainda modelos de experimen-tos realizados por Boal, experiências com teatro invisível e principalmente com o Teatro-Fórum e suas regras. Em linhas gerais, a preparação de um espetáculo-fórum exige aquecimento da plateia, delineamento da função do ator, construção do antimodelo, definição da função do Curinga, métodos de ensaio, além de aspectos da dramaturgia, encenação e aplicação de alguns dentre os mais de 400 exercícios e jogos encontrados nesta obra de Boal.

Da teoria à prática – vivências do Embasart

O projeto “Teatro-fórum e pedagogia da intervenção” contou com a participação voluntária dos trabalhadores da EMBASA, profissionais de di-versas áreas e variados níveis de experiência artística. Mesmo que o obje-tivo fosse reproduzir uma situação vivenciada pelos integrantes do grupo, aposta do espetáculo Cresça e Apareça, ou interpretar um texto escrito por um dramaturgo, utilizado na intervenção A Revolução na América do Sul, ou ainda o misto dessas duas formas dramatúrgicas, o que ocorre na terceira intervenção, a construção dos personagens passa pela apresentação e de-marcação clara dos territórios de opressores e oprimidos, bem como pela qualidade artística e estética da interpretação e da cena. O ator de um espetáculo-fórum deve ir além de uma bela e convin-cente interpretação. Aliás, convencer é uma das tarefas que passa longe da interpretação num teatro dessa natureza. O espetáculo, assim como seus atores, não deve veicular uma mensagem de catequização. O fórum é men-sageiro da incerteza, da inquietude e da reflexão, e da mesma forma deve ser conduzida a interpretação dos atores, suscitando permanentemente a dúvida, a indecisão de seus personagens em agir ou estagnar, falar ou calar.Muitas vezes o caminho mais fácil é trazer ao palco os próprios indivíduos investidos de um figurino e uma maquiagem diferentes do cotidiano, sem a composição de um personagem. Esta redução do trabalho artístico no Teatro-Fórum certamente desembocaria num espetáculo pouco arrebata-dor, pouco instigante e com um fórum comprometido. A função do ator é estimular sua plateia a agir, é provocar a inquietude e fomentar novos pen-samentos e ações. A experiência com o Embasart exigiu a construção de persona-gens e, para tanto, fizemos um duplo processo: primeiramente a criação

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 129

do personagem, sua construção física e emocional, através das técnicas de Constantin Stanislavski, e em seguida a construção intelectual do persona-gem através do distanciamento e da análise reflexiva proposta nos jogos e exercícios desenvolvidos por Augusto Boal. Boal se baseou em muitas técnicas de Stanislavski. Portanto, natu-ralmente reunimos tais técnicas durante os treinamentos para atores de Tea-tro-Fórum. Para Stanislavski, o ator que se comporta como um completo ser humano teria mais possibilidade de afetar o público, pois não afetaria ape-nas sua emoção, mas também seus pensamentos. As teorias se aproximam a partir do momento em que Boal pretendia, em seus trabalhos, alcançar os pensamentos, a reflexão dos seus espect-atores. Emocionar-se é inerente ao ser humano. Choramos porque vemos o outro chorar, ficamos aflitos diante da aflição dos outros. O verdadeiro trabalho do ator reside em acessar o com-plexo ambiente da reflexão do indivíduo; no caso do Teatro-Fórum, ele deve ir além deste acesso, provocando a reação do espect-ator. Na experiência com o Embasart, a preparação do ator para o Teatro-Fórum se baseou na criação de personagens que expressassem e problema-tizassem as relações de opressão. Este trabalho tem três pilares:

Caracterização física – corpo e voz, signos de opressão. Caracterização da mente – compreensão direta dos argumentos do texto considerando o contexto político e social em que ele se insere.Caracterização das emoções dos personagens – no sentido em que emoção significa desejo em ação, neste ponto trabalham-se os objetivos do perso-nagem dentro do texto.

O processo

O ponto de partida é sempre uma opressão real. Os jogos introdu-tórios oferecidos pelo livro Jogos para Atores e Não-Atores são ancorados nas vivências dos integrantes e têm o objetivo de desmecanizar o corpo alienado pelo trabalho cotidiano. A preparação de um espetáculo-fórum, qualquer que seja o contexto, passa antes pela preparação de atores e pela aplicação de técnicas de ensaios, segundo a metodologia do Teatro do Oprimido. Den-tre as técnicas adotadas, foi dada atenção especial à desmecanização do cor-po, acreditando-se nele como instrumento de comunicação e também como

Cibele Marina Pereira130

tradutor das opressões padecidas.

Os corpos se adaptam ao trabalho que devem realizar. Esta adaptação leva à atrofia ou à hipertrofia. Para que o corpo seja capaz de emitir e receber todas as mensagens

possíveis é preciso re-harmonizar. (BOAL, 2005a, p. 89)

Além do intenso trabalho realizado pela mestranda em dança Taína Assis, contamos com as práticas do chi kung desenvolvidas pela coorde-nadora artística do projeto, Antonia Pereira. A re-harmonização do corpo proposta por Boal permite ao ator traduzir em seu corpo modos de pensar de uma época, crenças, ideias, valores, os códigos de conduta existentes no período que a peça representa. Trabalhos que abordem a expressividade do corpo são imprescindíveis ao teatro, pois o corpo tem grande poder de comunicação. Aliado à voz e à dramaturgia, compõe o arsenal do ator. O início do processo, com vistas à montagem da primeira inter-venção, Cresça e Apareça, deu-se com o levantamento de histórias reais de opressão, material para o desenvolvimento da dramaturgia do espetáculo. A necessidade pungente de discutir a avaliação funcional dentro da empresa delineou-se como assunto central das discussões e inevitavelmente se tor-nou o fomento do enredo que futuramente seria desenvolvido. Cresça e Apareça foi marcado por tentativas de censuras e restrições, mas também de descobertas, reflexões, criações através de cenas abertas e construção dramatúrgica coletiva. Foi um espetáculo que se construiu a partir de improvisações dos próprios operários discutindo suas opressões e insatisfações dentro e fora da empresa. A temática da avaliação funcional, seus critérios, a relação entre avaliados e avaliadores foram desde sempre recorrentes nas improvisações e discussões. A atriz eleita para realizar o papel do oprimido confrontou-se com situações de opressão semelhantes em sua realidade. Essa condição fez com que a atriz, por muitas vezes, colocasse em dúvida sua atuação no papel, uma vez que provocava nela emoções que não conseguia controlar. À atriz em questão foi esclarecido que existem duas memórias extremamente im-portantes para o ator: a memória afetiva e a memória das sensações. Para isso lançamos mão dos ensinamentos de Stanislavski. Visitando a sua memória afetiva, onde guarda a lembrança de acon-

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 131

tecimentos vividos, o ator é capaz de experimentar emoções e sensações genuínas provocadas por essas recordações. No entanto, este é um exercício interior que deve ser utilizado nos ensaios em processo de construção dos personagens. Seria desumano pedir ao ator que relembrasse suas perdas e dores de sexta a domingo, pontualmente, durante toda a temporada. Durante os laboratórios de construção do personagem, é tarefa do ator estar atento aos efeitos que essas emoções provocam em seus cinco sentidos. Ele deve registrá-los e guardá-los em sua memória das sensações, para então acessar sempre que necessário, sem necessariamente lembrar dos fatos, e sim das sensações físicas, que na cena serão preenchidas pelas emoções do personagem. Segundo Stanislavski, a memória emotiva leva à construção de emoções genuínas que podem e devem ser emprestadas a um personagem, evitando que o ator verdadeiramente sinta as sensações; ele deve estar pre-ocupado apenas em mostrar emoções. Emprestar emoção ao personagem não significa reviver o mesmo fato torturante a cada espetáculo. Em paralelo aos exercícios de Stanislavski, emergia a necessidade de criar o distanciamento entre a atriz e a personagem. Apresentamos ao grupo um exercício indicado por Boal conhecido como “contar sua própria história” (BOAL, 2005a, p. 191). O ator conta uma história que realmente lhe aconteceu, e ao mesmo tempo seus companheiros ilustram a história que ele vai desenvolvendo. O ator que narra não pode interferir nem fazer cor-reções durante o exercício. No fim, todos discutirão as diferenças. O narrador terá a oportunidade de comparar as suas reações com as dos seus compa-nheiros. Este exercício tem dupla finalidade, emocional e artística. A primeira faz o narrador, neste caso a atriz, em apuros, enxergar de modo racional o fato vivido, perceber seus erros e acertos, fazer uma análise distanciada dos acontecimentos. A narrativa é uma das técnicas utilizadas por Brecht para provocar o distanciamento. Num segundo momento, assistir aos outros atores fazendo a mesma cena apresenta uma gama de opções para a construção artística da cena e dos personagens, material que pode ser incor-porado futuramente. Neste processo de desalienação ator-personagem, o Curinga2 tem importante papel, provocando quebras nas cenas, tornando-se o mediador entre palco e plateia, apresentando as regras do Teatro-Fórum. O distancia-

2 Especialista nas técnicas do Teatro do Oprimido

Cibele Marina Pereira132

mento entre ator e personagem é necessário para que o primeiro empreste seu personagem ao espect-ator e possa observá-lo com olhar crítico. O pro-cesso de transformação almejado no Teatro-Fórum deve ser válido para quem o faz, no palco ou na plateia. Outro aspecto de grande relevância no processo de construção das três montagens foi o estabelecimento dos objetivos dos personagens. Em Cresça e Apareça, utilizamos uma técnica comum a Stanislavski e a Boal. Uma vez que trabalhamos com um roteiro de cena preenchido por impro-visações dos atores, era importantíssimo ter em mente os objetivos de cada personagem, em cada cena. Isso evitou que as improvisações se tornassem diálogos cíclicos e infrutíferos. Os objetivos propulsores das ações determinam os conflitos, moti-vam a ação dramática. O conflito pressupõe forças contrárias, e nisso resi-diam os embates entre opressores e oprimidos. Em A Revolução na América do Sul, o desejo de José (comer) se contrapunha a todo momento aos desejos do feirante, dos políticos, de seu patrão. O objeto de desejo de José foi ma-nipulado por seu parceiro Zequinha e oprimido por sua mulher. Nesta montagem, os objetivos precisavam ficar claros nos discursos, nas movimentações de cena, na construção física de corpo e voz. Para que os atores pudessem de forma simples compreender a importância de ter obje-tivos em cena, trouxemos um exercício de igual simplicidade: “exposição”, de Viola Spolin (2010, p. 34). Convidamos um dos atores para ficar em pé de frente para a plateia, e a plateia de frente para o ator, observando-se. Somente isso. Depois de um tempo e de acordo com os sinais de desconforto, reservadamente, ao ator que estava de pé atribuímos uma tarefa: contar (mentalmente) quantas pes-soas usavam relógio, ou contar quantas tomadas havia na sala. Ao final, dis-cutimos em grupo as mudanças, tanto o conforto conquistado pelo ator ao ter um objetivo em cena, ter o que fazer e concentrar-se em seu objetivo, como para a plateia perceber o desconserto, a sequência de gestos nervosos e olhar aflito trocados por uma postura segura e decidida em cena. As oficinas de preparação do ator contam com um olhar mais amplo sobre a arte teatral, desencadeiam ações de autoconhecimento, discussões políticas e sociais. As oficinas baseiam-se em exercícios que transmitem pela vivência os conceitos e objetivos do Teatro do Oprimido, fazendo com que os envolvidos descubram a forma de fazê-lo. O processo deve ser uma con-

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 133

Ensaio Embasart, 2011

quista e não uma imposição de uma fórmula de fazer teatral. Nestas experiências, elegi três “exercícios de bolso” que são capazes, da forma mais simples, de ajudar na compreensão do Teatro-Fórum e na construção dos seus personagens, os quais são descritos a seguir.

“Completar a imagem”

Jogo-exercício no qual dois atores cumprimentam-se apertando as mãos. Nesse momento congela-se a imagem e pede-se ao grupo que diga os possíveis significados que a imagem pode ter. As imagens são polissêmicas. Os significados não dependem só delas, mas também de quem as observa. Um dos atores sai, e novamente se questiona o significado da imagem, desta vez com um ator solitário de mão estendida. Surge então o convite para que alguém da plateia entre na imagem solitária com outra posição, sem alterar aquele ator que já está no palco, e transforme a imagem, dando outro signifi-cado. Dessa forma, já introduzimos o pensamento do Teatro do Oprimido: mudar a situação, dar outras saídas, propor outras formas de reagir. Os ensaios de Teatro-Fórum são pautados por exercícios de desme-canização e técnicas de improviso para que os participantes saibam como lidar com as interferências da plateia e também aproveitar as suas interven-

Cibele Marina Pereira134

ções no momento do fórum. Nesse sentido, práticas como “pare e pense” e “interrogatório de Hannover” dão lastro para que os atores possam se con-frontar com vários espectadores durante as sessões de fórum. Esses exercí-cios foram introduzidos no processo da primeira montagem e, devido à sua importância, foram resgatados durante os ensaios da segunda e da terceira montagem.

“Pare e pense”

Um ator se comunica com sua voz, suas palavras, e também com ges-tos e movimentos, pensamentos que emite. Quando o que o ator pensa está em desacordo com o que ele diz, inevitavelmente será provocado um ruí-do na comunicação. Assim, o não convencimento e a não verdade são des-vendados pela própria voz. Para evitar isso, propõe-se o exercício em que o diretor aleatoriamente interrompe a cena como um “pare”; assim, todos os atores ficam imóveis e começam a falar exatamente o que estão pensando naquele momento. É uma técnica correspondente à técnica do “aqui, hoje, agora”, proposta por Stanislavski, em que o ator, durante os ensaios, inter-rompe sua ação na cena para se perguntar: quais os pensamentos que exis-tem por trás das minhas ações? Como eu resolveria essa situação na reali-

Ensaio Embasart, 2011

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 135

dade? Este processo vai produzir uma série de estados e atitudes orgânicas e naturais, que precisam estar correspondentes com as ações do ator na cena.

“Interrogatório de Hannover”

Um personagem é colocado no centro de um círculo, numa berlinda, onde será sabatinado sobre diversas questões por outros personagens. O personagem sabatinado deverá responder a todos os questionamentos. Uma variante deste exercício se dá com este interrogatório acontecendo dentro da cena. Durante a ação, o diretor pede que congelem; um personagem faz uma pergunta ao personagem interrogado, e este responde e continua a ação. Exercícios dessa natureza ajudam a trabalhar a insegurança que os atores iniciantes têm para enfrentar as improvisações pertinentes ao fórum. Este exercício foi aplicado nas três intervenções, mas foi decisivo na segunda, A Revolução na América do Sul, pois a atriz que desempenhou o papel do patrão sentia verdadeiro pavor diante da possibilidade de enfrentar os ques-tionamentos dos espect-atores. Na tarefa de deixar o espetáculo-fórum estimulante, além do trabalho do ator, cabe grande responsabilidade à encenação, que pode ser realista,

“Interrogatório de Hannover”. Ensaio

Embasart, 2011

Cibele Marina Pereira136

expressionista, metafórica. O que importa é que não seja gratuita. Cada movimento do ator, o deslocamento nas cenas, ritmo, tudo isso no palco é portador de um significado. Os figurinos, o cenário, a maquiagem são ele-mentos que podem significar uma opressão.

Registros de uma experiência

Nas fotos a seguir, iremos analisar momentos da encenação de A Revolução Na América do Sul, realizada pelo Embasart. Inicialmente temos dois momentos de Zequinha, um dos personagens centrais do espetáculo. Zequinha é funcionário da fábrica de pneus e também sofre com os baixos salários. Neste momento ele encontra-se em paridade com José da Silva. São dois oprimidos. Com o decorrer do espetáculo, Zequinha convence José da Silva de que a única saída para conquistar melhores condições de trabalho é fazer

“Interrogatório de Hannover”. Ensaio Embasart, 2011

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 137

A Revolução na América do Sul

Ensaio Embasart, 2011

A Revolução na América do Sul

Ensaio Embasart, 2011

uma revolução. Zequinha se autointitula líder da revolução e passa a agir como um opressor. Observa-se, nesta cena em particular, que os pneus, outrora utiliza-dos como apoio durante um diálogo, agora se tornam palanque, onde um

Cibele Marina Pereira138

fala e os outros ouvem. Percebe-se que Zequinha incorpora ao seu figurino trajes militares: agora ele dita as leis. Passemos à comparação de dois trechos das falas de Zequinha. Antes de ser chefe da revolução:

A Revolução na América do Sul Ensaio Embasart, 2011

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 139

Depois de se tornar chefe da revolução:

Conforme atesta a coordenadora artística do projeto, Profa. Antonia Pereira, no primeiro capítulo deste livro,

a montagem de A Revolução na América do Sul colocou o acento no trabalho de pre-paração do ator inspirado nas técnicas da Commedia Dell’Arte, particularmente com a intenção de evidenciar a dimensão episódica do texto e facilitar a técnica do distan-

ciamento brechtiano na interpretação dos atores. Os principais personagens opressores usavam máscaras e tinham gestuais e deslocamentos que mais se assemelhavam a

uma coreografia.

A inspiração na Commedia Dell’Arte partiu de uma foto que expres-sava tudo que desejávamos colocar na cena interpretada por José da Silva e sua mulher. Também a Commedia Dell’Arte nos pareceu a melhor fonte de ins-piração, uma vez que Boal, em seu texto A Revolução na América do Sul, nos oferecia personagens-tipo – o patrão, o feirante, a mulher do patrão, os empresários, o revolucionário –, uma obra dividida em quadros e o estilo cômico que ridicularizava os políticos, patrões, empresários. A foto a seguir registra a cena em que a mulher de José da Silva vai cobrar-lhe uma atitude frente ao patrão (seu maior opressor). A mulher de José exigia aumento de salário, filhos na escola e Malzbier para aumentar a produção de leite materno.

Cibele Marina Pereira140

A Revolução na América do Sul Ensaio Embasart, 2011

Durante toda a cena, os deslocamentos eram baseados em ataque e fuga. Inspiramo-nos no jogo do gato e do rato, com a sorrateira agilidade. Podemos perceber que, neste momento e durante todo o embate com sua mulher, José utilizou o plano médio de seu corpo, significando a sensação de acuamento e ameaça que ela lhe impunha. As fotos a seguir demonstram a forma como José da Silva se coloca diante de seus opressores: sempre no

A Revolução na América do Sul Ensaio Embasart, 2011 Feirante e José

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 141

nível inferior. Também pelas fotos é possível compreender melhor a de-claração da Profa. Antonia Pereira quando se referiu ao uso das máscaras. Todos os opressores utilizam máscaras; José da Silva é o único personagem despido de qualquer artifício. Sua ingenuidade, fé e honestidade fazem dele um indivíduo sem máscaras e facilmente manipulável.

Não somente no corpo, mas também nas ideias e no discurso, José da Silva se colocava sempre abaixo. Guardando as devidas proporções do exa-gero farsesco e irônico da obra escrita por Augusto Boal, podemos perceber tamanha submissão no trecho a seguir, transcrito da obra A Revolução na América do Sul:

A Revolução na América do Sul

Ensaio Embasart, 2011 Da esquerda para a

direita: mulher, José e patrão

Cibele Marina Pereira142

Retornando aos recursos cênicos, notamos que, com o auxílio do cenário e da iluminação, desenvolvidos especialmente para este espetáculo, reforçamos a leitura de opressão entre José da Silva e seu patrão (foto abaixo).

14 Revolução na América do Sul – Embasart – Salvador, BA – 2011.

A Revolução na América do SulEnsaio Embasart, 2011

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 143

Com este efeito de luz e sombra, trouxemos para o palco um patrão muito maior que José da Silva, ainda mais opressor, e que durante quase todo o espetáculo faz calar somente com a sua sombra. Este efeito também confere outras leituras, o que só reafirma a importância dos cenários, figuri-nos, encenação, trabalho do ator e outros recursos estéticos para ampliar o entendimento do Teatro-Fórum. Situar o patrão em lugares e posições diferentes daqueles assumidos por José da Silva provoca a percepção das diferenças sociais e políticas desses lugares e posições, reafirmando o apart-heid dos que mandam e dos que obedecem. Exploramos cenicamente as barreiras do diálogo. Para a terceira e última intervenção, realizou-se um verdadeiro tra-balho de colheita dos jogos e exercícios que trouxeram resultados junto ao Embasart. Levando em conta que cada grupo tem uma forma própria de tra-balhar suas opressões e que os métodos não devem constituir imposições e sim descobertas, a terceira montagem consiste numa miscelânea das téc-nicas aplicadas anteriormente. A construção do texto foi um misto de im-provisações e (pré)texto. Baseando-se no texto A Máquina Escavadora, do dramaturgo francês Armand Gatti, extraímos um roteiro central, técnicas de encenação e de construção de diálogos, e paralelamente enxertamos diá-logos e outras discussões a partir de improvisações coletivas. Também opta-mos pela linguagem cômica como elemento distanciador.

Considerações finais

Mesmo nas intervenções baseadas na construção coletiva, com as-suntos do cotidiano, a interpretação cênica, a encenação, os cenários, os figurinos e a maquiagem formam uma colcha de retalhos que envolve o espectador de teatro e permite acessá-lo, provocá-lo, levá-lo à reflexão e à reação. Nessa tarefa não são exigidos atores “prontos”, profissionais. O teatro proposto por Boal ancora-se em ações do cotidiano e deve ser praticado por aqueles que vivenciam este cotidiano. O Teatro-Fórum pode ser feito com todos e para todos:

Todos podem fazer teatro, inclusive os atores! Todos os seres humanos são atores porque agem. A linguagem teatral é a linguagem humana por excelência, o que é feito

no palco é exatamente o que é feito na vida cotidiana, apenas visto sob uma lente de aumento e um revestimento poético, mas, nada mais é do que a vida!

(BOAL, 2005a, p. IX)

Cibele Marina Pereira144

BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

_____. Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a.

_____. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005c.

_____. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civili-zação Brasileira, 2005b.

BOLESLAVSKI, Richard. A arte do ator. São Paulo: Perspectiva, 2010.

CASTRO-POZO, Tristan. As redes dos oprimidos: experiências populares de multiplicação teatral. São Paulo: Perspectiva, 2011.

PEREIRA, Antonia. Do modelo dramatúrgico de Gatti ao espetáculo fórum de boal: elementos para uma pedagogia da intervenção. Artigo publicado no Portal Abrace, 2010.

SPOLIN, Viola. O jogo teatral no livro do diretor. São Paulo: Perspectiva, 2010.

STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

Referências

Colcha de retalhos: preparação de trabalh(atores) para Teatro-Fórum 145

Um grupo de teatro está, a todo momento, construindo conhecimen-tos de forma prática e teórica, às vezes de forma mais intencional, outras vezes mais intuitiva, mas sempre perseguindo um desejo de inovar, registrar e compartilhar conhecimentos na área teatral. E não é diferente a intenção do teatro que vem sendo produzido nas empresas, que serve como estímulo para refletir sobre o processo criativo e identificar novos caminhos na con-solidação da autoestima e da própria identidade cultural dos trabalhadores. Este projeto de inovação não se limitou apenas à aplicação das técnicas utilizadas por Augusto Boal. Trouxe também questões do cotidiano dos trabalhadores da indústria para serem vivenciadas em ações teórico-práticas, as quais culminaram em três encenações teatrais adaptadas à reali-dade dos atores aqui aludidos – os colaboradores da EMBASA. Ao firmar a parceria com a EMBASA, com vistas a ampliar o conhe-cimento do Grupo Embasart através da vivência com a técnica do Teatro-Fórum, construímos um trabalho continuado e sistematizado de experi-mentação com a linguagem cênica na busca de renovação e construção de um novo fazer teatral. Nesse projeto, perseguimos também a realização de avaliações contínuas entre os participantes do grupo e as instrutoras de tea-tro, a equipe do projeto com a empresa, e a coordenação do projeto e equipe consultora. A forma de avaliação ocorreu por diversos meios: reuniões, ava-liações orais e escritas, entrevistas e depoimentos (alguns deles transcritos nesta obra) por meio audiovisual e literário.

PALAVRAS FINAIS

7

147

As avaliações aconteceram para garantir os resultados esperados e promover melhorias durante o processo, como revisão dos procedimentos de atuação pedagógica, aplicação de ajustes e recursos necessários para a qualidade das apresentações, e por fim programação de melhorias contínuas a partir de críticas e sugestões dos gestores e participantes do projeto. As apresentações dos três espetáculos-fórum serviram como forma de avaliar a metodologia aplicada. Nos depoimentos dos participantes, con-firmamos o sucesso do projeto e a possibilidade de potencializar o trabalho já existente no SESI/DR-BA com o teatro para as empresas na implantação de ações socioeducativas na área teatral e, a partir dessa experiência inova-dora, incluir no portfólio para as demais empresas industriais. Confirmamos que, através da arte, especificamente com a utilização da tecnologia do Teatro-Fórum, criamos a possibilidade de diálogo, esco-lha e determinação por parte dos integrantes do grupo teatral. Percebemos transformações, cooperação e avanços em cada uma das pessoas envolvidas. O projeto do Teatro-Fórum ousou, inovou e possibilitou a realização de uma experiência única e importante para o Grupo Embasart. Percebemos que o Teatro do Oprimido foi, para o grupo, um campo fértil de questiona-mentos, reflexões e possibilidades que foram potencializadas e discutidas durante o processo. Agora, em 2012, após 18 meses de processo junto ao Grupo Embasart, concluímos este Projeto com resultado muito significativo, apontando uma metodologia inovadora para a melhoria do ambiente organizacional das em-presas a partir do caráter da tecnologia do Teatro-Fórum. Foram realizadas quatro pesquisas de satisfação com os participantes com questões qualitati-vas e quantitativas, apresentadas a seguir por meio de gráficos.

Divulgação do projeto

148

Satisfação de participação no espetáculo A Revolução na América do Sul

Avaliação da equipe da UFBA

Palavras finais 149

Avaliação da equipe do SESI

Gostaria de continuar a participar do grupo Embasart?

Impacto do projeto Teatro-Fórum na vida pessoal

150

Motivação e produtividade dos participantes do grupo Embasart na empresa

A seguir, alguns depoimentos dos integrantes do Grupo Embasart sobre a experiência em participar do projeto:

“Fantástica!” “Foi desafiadora e gratificante.” “Muito positiva. Oportunidade de improvisação em cena, oportuni-dade de contracenar com a plateia.” “Muito bom, uma verdadeira terapia e também uma aula de cidada-nia.” “Ótima!” “Prazerosa, edificante, enriquecedora.” “Gratificante. A cada dia tenho mais experiência, não só para o Embasart como também na vida em geral.” “Está sendo uma alegria fazer parte desse trabalho.” “Tem sido maravilhoso participar de um grupo de teatro... Enfim, sou grata à vida por essa oportunidade de fazer parte de um projeto pioneiro em uma empresa.”

Percepções ao participar de atividades como esta dentro da empresa:

“Colocar-se no lugar de outras pessoas.” “Senso crítico, bom relacionamento em equipe, disciplina, dis-posição.”

Avaliação do projeto Teatro-Tórum

Palavras finais 151

“Realizar atividades fora das atividades contratadas nos proporciona saúde mental.” “Acredito que o aumento do senso crítico é um dos aspectos mais relevantes que o projeto traz.” “Interação e bom relacionamento com colegas.” “Gostaria que todos tivessem a consciência de que o nosso grupo de teatro desenvolve um importante trabalho dentro da empresa.” “1) Os participantes parecem mais felizes; 2) os participantes são mais conhecidos na empresa; 3) conheci outras pessoas, como os novos contratados; 4) a EMBASA, a UFBA e o SESI estão de parabéns por esse projeto.” “Trabalhar a resistência à mudança, a iniciativa, a criatividade, o tra-balho em equipe, a aprendizagem, o relacionamento interpessoal.” “Tenho sentimento de liberdade, que me leva a aumentar a minha autoestima e liberdade de expressão e fazer alguns questionamentos pes-soais.” “Relacionamento interpessoal; disciplina – atenção; criatividade; trabalho em equipe; perseverança; prontidão; consolidar a imagem da em-presa; proatividade; dar visibilidade aos talentos da empresa; autoestima.”

Por fim…

“Parabéns! Para a equipe da UFBA, SESI, EMBASA e Grupo Emba-sart.” “Equipe competente, coesa, dinâmica, comprometida com o projeto, alegre, participativa, solidária com os integrantes.” “Acho a iniciativa fantástica e parabenizo a EMBASA por possibili-tar o envolvimento cultural e artístico de seus funcionários. A equipe SESI/UFBA é fantástica!” “Elogio a EMBASA por oportunizar que seus funcionários partici-pem de um grupo de teatro.” “Parabéns a todos pelo lindo trabalho.” “Ótimo projeto!” Conclui-se que um trabalho artístico realizado nas empresas indus-triais com os trabalhadores, especificamente com a linguagem teatral – que

152

visa à libertação do sujeito, à sua maior autonomia, ao seu poder de decisão e de expressão e consequentemente ao desenvolvimento do potencial criativo e resolutivo –, pode alcançar efeitos significativos para a saúde do trabalhador, para a harmonia do ambiente de trabalho, para a formação do indivíduo, para o trabalho em equipe e para a produtividade do funcionário no mo-mento em que se dedica à sua atividade na empresa. Trazemos a certeza de que a dimensão prática deste projeto respon-deu a muitas dessas importantes questões. Tal dimensão já afirma a vo-cação solidária e democrática dessa arte ao reunir técnicos, universitários e trabalhadores da indústria num só projeto, num só intento: jogar e discutir questões político-sociais através do teatro, além de transformar e promover a saúde das relações no ambiente competitivo das empresas.

Palavras finais 153

A Máquina EscavadoraTeatro SESI, Salvador,

maio de 2012

GRUPO EMBASART

8

155

Alessandra Cerqueira Liberato de MatosAssistente AdministrativoParque Bolandeira

Candido Vinicius da Silva SilveiraAssistente AdministrativoCentro Administrativo da Bahia

Bruno Souza FerreiraAssistente de InformáticaCAPEMI

Debora Cerqueira Nobre de SousaAssistente AdministrativoCentro Administrativo da Bahia

Denise Maria de MatosAssistente Administrativo

Parque Cabula

Gildete Matos de CarvalhoAssistente AdministrativoParque Federação

Eline Evelin Almeida MacedoContadora

Centro Administrativo da Bahia

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Helina Soares VianaAssistente Administrativo

Parque Bolandeira

Jucimar Mota da CruzDigitadoraParque Cabula

Lailton Santos ArrudaLeituristaParque Bolandeira

Jovenita AndradeTécnica em Edificações

Parque Lucaia

Grupo Embasart 157

Marcia Matos Brandão RochaAnalista PatrimonialParque Bolandeira

Rosina Maria Avelino ConteAssistente Social

Parque Bolandeira

Rita Cacia de Lima Flores Analista PatrimonialParque Bolandeira

Maria Carvalho SoaresAssistente Técnico Administrativo

Parque Bolandeira

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Miriam Souza LimaAssistente Técnico AdministrativoAlphaville

Sergio Carlos BonfimTécnico ContábilCentro Administrativo da Bahia

Vaneide Santos HipólitoTécnico Contábil Centro Administrativo da Bahia

Grupo Embasart 159

COLABORADORES

Antonia Pereira Bezerra• Bolsista de produtividade em pesquisa CNPq• Professora de Artes Cênicas na graduação e pós-graduação da Escola de Teatro da UFBA• Coordenadora da área de Artes/Música na CAPES• Membro dos grupos de pesquisa GIPE-CIT e DRAMATIS

Cilene Nascimento Canda • Professora assistente do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CFP/UFRB)• Mestre e doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduaçãoem Artes Cênicas da UFBA

Taína Assis Soares • Mestranda em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA • Graduada em Licenciatura em Teatro pela Escola de Teatro da UFBA • Estudante de Dança do Curso Técnico Profissionalizante da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB)

Cibele Marina Pereira • Bacharel em Artes Cênicas pela UFBA

• Bolsista DTI CNPQ nas ações do projeto “Teatro-Fórum e pedagogia da intervenção:

dimensões político-formativas com os trabalhadores da indústria”• Atriz e diretora de produção

Ana Flávia Hamad • Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em

Artes Cênicas da Escola de Teatro da UFBA • Mestre em Teatro e Comunidade pela Escola Superior de Teatro e

Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa • Bacharel em Medicina pela Faculdade de Medicina da UFBA

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Grupo Embasart 161

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FICHA TÉCNICA (GERAL)

Coordenação geral do projeto - Catarina LabordaCoordenação artística - Antonia Pereira

Aplicação das técnicas do Teatro do Oprimido - Cilene CandaPreparação de ator - Cibele Marina

Técnica vocal para cena - Ana Flávia HamadTécnica de Corpo para Cena - Taína AssisContraregra e aderecista - Meire Oliveira

Figurinos - Jandira SantosProdução - ContraRegra Produções & SESI

Cresça e Apareça

Coreografias - Catarina LabordaTrilha sonora - Antonia PereiraMúsico - André FidelisIluminação - Antonio Kika

A Revolução na América do Sul

Coreografias - Taína AssisTrilha sonora - Deco SimõesIluminação - Antonio Kika e Cibele MarinaOperação e montagem - Antonio Kika e FeijãoVídeos artísticos - Don Art

A Máquina Escavadora

Tradução - Isabela SilveiraCoreografias - Taína AssisTrilha sonora - Ana Flávia HamadIluminação - Fernanda PaqueletOperação e montagem - FeijãoArte gráfica - Don Art

SESI/DR-BACentro Cultural SESI Rio Vermelho

Gerente de UnidadeMaria Angélica Ribeiro Santos

Gerente do ProjetoCatarina Fatima Laborda (Org.)

Equipe do Projeto (SESI/DR-BA)Antonio Pereira da SilvaAidelson Santos FrancoCleber Roberto dos Santos LimaJackson Sales de JesusJéssica Iris de Jesus GarcezLuis Antônio Burgos LessaLuiz Antônio Bandeira da Silva Maurício Luís Pinto de OliveiraPriscila Peixoto de MeloRosa Villas BoasTiago Barbosa Nunes

Superintendência de Comunicação InstitucionalVerônica Vasconcelos Lins

Núcleo Estratégico do SESILívia Maria Aragão de AlmeidaTayana Cardoso Neves

Equipe Formadora e de PesquisaEscola de Teatro – Universidade Federal da BahiaCibele Marina Pereira Cilene Nascimento Canda Ana Flávia Hamad (Vica Hamad)Taína Assis Soares

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CONSULTORAS

Antonia Pereira BezerraCoordenação Acadêmica e Orientação de Pesquisa. Atriz e dramaturga, graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia. Mestre (DEA) em Litterature Française pela Université de Toulouse II, Le Mirail. Doutora em Lettres Modernes pela Université de Toulouse II, Le Mirail. Pós-Doutora em Dramaturgia pela Université du Québec à Montréal UQAM (2006). Tem experiência na área de Teatro e Dramaturgia, com ênfase em Literatura Comparada.

Denise LemosDoutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Atua nas áreas de Psicologia Social, Sociologia do Trabalho, Processos de Comu-nicação e Relacionamento Interpessoal, Processo Grupais, Mudança e Sub-jetividade.

Tânia Franco Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Graduações em Economia e Medicina. Mestrado em Ciências Sociais pela UFBA. EQUIPE DO PROJETO (EMBASA)

Superintendente de Gestão de PessoasRita de Cassia Couto Oliveira Roth

Gerente de Divisão de Educação da Universidade CorporativaEdmilson dos Santos de Jesus

Coordenação Núcleo de ArteMiriam Lima Costa

EQUIPE AUDIOVISUAL

Captação de ImagensIncomum Mídia e Arte

RoteiroFlávia Soledade

EdiçãoDocdoma Filmes

EQUIPE PUBLICAÇÃO

FotosAdenor GondimCilene CandaDébora MonteiroDiego FreireAna Flávia Hamad

Projeto gráficoRômulo Amorim

Preparação de originais e revisãoMaria Edith Pacheco

ImpressãoGRASB

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A Máquina EscavadoraTeatro SESI, Salvador, maio de 2012

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