Teatro em trânsito - Interatividade no jogo com o espaço e o texto

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1 TEATRO EM TRÂNSITO: INTERATIVIDADE NO JOGO COM O ESPAÇO E O TEXTO Beatriz A. V. Cabral Resumo Trabalho realizado em parceria com crianças e alunos de licenciatura em teatro, com o objetivo de investigar a desconstrução do texto dramático e focalização de seus fragmentos através do uso intercalado de narração de histórias, rituais e jogos teatrais. Os resultados revelam o potencial de ambientações cênicas distintas para a abordagem de dilemas morais; a dimensão lúdica do drama como forma segura para confrontar atitudes; o impacto das formas do ritual para transformar ou reiterar as interações anteriores. 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa investiga formas de desconstruir o texto dramático ou outro texto literário que sirva de base para eventos teatrais, a fim de abrir e ampliar o espaço para a voz dos participantes e/ou espectadores, quer na dimensão do processo, quer na do produto. Cada fragmento desta desconstrução é trabalhado em si, personagens e espectadores interagem, jogando com o espaço e o texto. Desconstrução e Jogo não visam apenas uma aproximação e conhecimento do texto, mas também a possibilidade de transformá-lo e seguir linhas narrativas distintas. Em decorrência, os fragmentos originais passam a constituir uma série de cenas independentes, que são selecionadas e sequenciadas caso a expectativa do grupo seja a de um espetáculo para ser apresentado a públicos diversos. A proposta de criação de uma ambientação cênica distinta para cada fragmento, de forma que os espectadores (em escolas ou centros comunitários) tenham que seguir uma trilha para tomar parte no evento, surgiu da necessidade de explorar situações de impacto, engajamento emocional com o trabalho, e consequentemente, uma participação ativa por períodos contínuos mais longos, em encontros de um ou dois dias de duração. Em experiências anteriores (Cabral 1998, 1999) outros objetivos e benefícios tornaram- se claros, tais como a transformação do espaço cotidiano do aluno, permitindo novas formas de ver e se relacionar com este espaço; o potencial educacional e teatral de interagir com locais diversos; os rituais, côros e movimentos que estimulam a interação ator – espectador. A expressão `drama e/ou teatro interativo’ tem sido usada para enfatizar o equilíbrio entre diretor/professor/atores e platéia/estudantes. Nesta pesquisa seu uso refere-se ao fato de que na forma teatral investigada, o processo é lançado e se desenvolve através da presença inesperada de algum personagem e/ou de curtas performances (aproximadamente 5 minutos). Os personagens, representados por atores/ professores, supostamente devem aceitar as contribuições dos espectadores, e suas respostas às situações apresentadas, para dar seguimento à narrativa. O planejamento inclui, assim, o risco de reverter, ampliar ou modificar a trama planejada. Teorias da Performance, na contemporaneidade, usam a expressão “work in progress”(Cohen, 1997) para caracterizar produções teatrais baseadas nas interações de seus processos e abertas a rever e/ou incorporar textos oriundos de novas ocorrências cênicas. i

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1 INTRODUÇÃO Beatriz A. V. Cabral 1 2 MÉTODO 2 3 A PROPOSTA 3 4 5 4 NOTAS DE REFLEXÃO 6 7 8

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TEATRO EM TRÂNSITO: INTERATIVIDADE NO JOGO COM O ESPAÇO E O TEXTO Beatriz A. V. Cabral Resumo Trabalho realizado em parceria com crianças e alunos de licenciatura em teatro, com o objetivo de investigar a desconstrução do texto dramático e focalização de seus fragmentos através do uso intercalado de narração de histórias, rituais e jogos teatrais. Os resultados revelam o potencial de ambientações cênicas distintas para a abordagem de dilemas morais; a dimensão lúdica do drama como forma segura para confrontar atitudes; o impacto das formas do ritual para transformar ou reiterar as interações anteriores. 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa investiga formas de desconstruir o texto dramático ou outro texto literário que sirva de base para eventos teatrais, a fim de abrir e ampliar o espaço para a voz dos participantes e/ou espectadores, quer na dimensão do processo, quer na do produto. Cada fragmento desta desconstrução é trabalhado em si, personagens e espectadores interagem, jogando com o espaço e o texto. Desconstrução e Jogo não visam apenas uma aproximação e conhecimento do texto, mas também a possibilidade de transformá-lo e seguir linhas narrativas distintas. Em decorrência, os fragmentos originais passam a constituir uma série de cenas independentes, que são selecionadas e sequenciadas caso a expectativa do grupo seja a de um espetáculo para ser apresentado a públicos diversos.

A proposta de criação de uma ambientação cênica distinta para cada fragmento, de forma que os espectadores (em escolas ou centros comunitários) tenham que seguir uma trilha para tomar parte no evento, surgiu da necessidade de explorar situações de impacto, engajamento emocional com o trabalho, e consequentemente, uma participação ativa por períodos contínuos mais longos, em encontros de um ou dois dias de duração. Em experiências anteriores (Cabral 1998, 1999) outros objetivos e benefícios tornaram-se claros, tais como a transformação do espaço cotidiano do aluno, permitindo novas formas de ver e se relacionar com este espaço; o potencial educacional e teatral de interagir com locais diversos; os rituais, côros e movimentos que estimulam a interação ator – espectador.

A expressão `drama e/ou teatro interativo’ tem sido usada para enfatizar o equilíbrio entre diretor/professor/atores e platéia/estudantes. Nesta pesquisa seu uso refere-se ao fato de que na forma teatral investigada, o processo é lançado e se desenvolve através da presença inesperada de algum personagem e/ou de curtas performances (aproximadamente 5 minutos). Os personagens, representados por atores/ professores, supostamente devem aceitar as contribuições dos espectadores, e suas respostas às situações apresentadas, para dar seguimento à narrativa. O planejamento inclui, assim, o risco de reverter, ampliar ou modificar a trama planejada.

Teorias da Performance, na contemporaneidade, usam a expressão “work in progress”(Cohen, 1997) para caracterizar produções teatrais baseadas nas interações de seus processos e abertas a rever e/ou incorporar textos oriundos de novas ocorrências cênicas.i

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2 MÉTODO

O presente estudo focaliza uma experiência de teatro interativo realizado em favela, nos arredores de Florianópolis/SC, em um espaço construído pela Fundação Fé e Alegria com o objetivo de tirar a criança da rua e acompanhar seu trabalho escolar. As crianças envolvidas foram vinte e cinco (número rotativo) e as idades variaram de sete a catorze anos.

Este foi o segundo trabalho prático realizado nesta pesquisa e contou com a participação de quinze alunos do Curso de Licenciatura em Teatro do Centro de Artes da UDESC. Esta etapa da pesquisa ocorreu em maio de 1999, e sua abordagem metodológica, etnográfica, seguiu seis princípios básicos: 1. o uso de um texto literário como pré-textoii para a construção da trama e do enrêdo das narrativas emergentes.iii A suposição aqui é que o texto literário (peças, crônicas, contos, biografias) são mais eficazes para que a atividade atinja uma dimensão poética, pois oferecem ao professor/diretor/coordenador vocabulário, imagens, attitudes e ações adequadas ao tema (leitmotif) sendo explorado. 2. a seleção de um texto que reflita aspectos do contexto real dos participantes, como uma maneira de elevar seu envolvimento emocional. 3. atenção especial à ambientação cênica, quer transformando o espaço cotidiano a fim de promover um impacto inicial com o tema ou situação que irá deflagrar o processo, quer introduzindo material suficiente para engajar os participantes com o planejamento e transformação de outros espaços que possam ser incorporados à cena. 4. a identificação de papéis coletivos a serem liderados ou coordenados por atores ou professores a fim de estabelecer a transição entre um episódio (e ambiente) e os demais. 5. a identificação de uma função objetiva e coerente com a sequência da narrativa para as transferências de uma cena à outra. 6. o uso de rituais, coros, e movimentos padronizados, criados pelos participantes e orquestrados pelos professores/atores (coordenadores e/ou monitores da experiência) como um elo entre atores (participantes do desenvolvimento do processo de criação) e espectadores.

O Pré-Texto `Over the Wall’ (O Muroiv), de autor desconhecido, foi colocado em uma rede de debates na internetv, como contribuição para um colega em busca de textos para trabalhar com adolescentes. Não foi mencionado o autor e ninguém respondeu à solicitação para que este fosse identificado. A peça conta a história de uma vila, em uma ilha cercada por um alto muro, tão altos que ninguém fora capaz de ver onde terminavam. O muro dividia a ilha ao meio e seguia mar a dentro, de tal forma que seus habitantes jamais haviam visto ou ouvido o que havia por trás dele. Enquanto alguns habitantes se revoltavam com a situação e tentavam descobrir formas de resolver o problema, outros o ignoravam e outros nem sequer sabiam de sua existência. Um dia um homem consegue construir imensas asas e levantar vôo até o topo do muro; os habitantes o observam, com grande expectativa, porém o homem desaparece nas nuvens e ninguém jamais torna a saber dele. Este texto foi escolhido pelo potencial interativo de seu tema e estrutura. No primeiro caso, as atitudes dos personagens, quanto à `situação muro’ inclui uma variedade de posturas e percepções da situação, e atinge um nível onde a ambiguidade entre o imaginário e o factual na construção da `realidade cênica’ torna-se possível.Quanto à sua estrutura, o texto inclui narrações curtas, intercaladas com dez a quinze falas, de uma a duas linhas cada, representando as atitudes e respostas à situação descrita pelo narrador. Assim, se um contador de histórias narra o contexto e a situação

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referentes a diversas circunstâncias relacionadas com o muro, as frases possibilitam a construção de um razoável número de personagens e ações focalizando os temas de mudança, transgressão e superação de limites. A intenção, quanto ao uso deste texto, não foi uma montagem, mas sim um processo de drama/teatro interativo, baseado nas imagens de uma comunidade cercada por um muro (real ou imaginário), e a investigação das circunstâncias postas por esta situação, bem como possíveis atitudes para enfrentá-la. 3 A PROPOSTA O planejamento, de acordo com os princípios mencionados acima, focalizou aspectos distintos da interatividade pretendida, o que é exemplificado a seguir. 1. A investigação dos tipos de contexto a serem explorados: Contexto Real – uma favela nos arredores da cidade, constituída por migrantes de origens diversas, com um grande índice de criminalidade e tráfico de drogas. A migração é recente e rotativa, e portanto não chega a se criar uma história de grupos ou famílias; estas são cadastradas e assentadas em outros locais a cada dois ou três anos. Crianças de cinco a sete anos costumavam abordar os estudantes de teatro para oferecer drogas, e praticamente todas as crianças do grupo haviam sofrido diferentes tipos de abuso. O contexto real trouxe assim o desafio de evitar qualquer declaração ou postura que pudesse ter alguma conotação moralista ou pedagógica. O objetivo principal era estabelecer formas de comunicação que fossem lúdicas e obter a confiança do grupo para que pudessem atuar com naturalidade e prazer. Contexto da Ficção – “O Muro” tem o grande potencial de refletir o contexto real desta favela, a qual situa-se a uma curta distância de uma das mais belas e turísticas cidades do sul do país, com bairros de classe média alta visíveis da localidade. O contexto da ficção inclui, de forma não tendenciosa nem moralista, personagens que estão conscientes de sua situação e querem mudá-la, outros que pensam que a mudança é impossível, aqueles que ignoram a situação e aqueles que tem interesse em manter as coisas como estão. Contexto da Ambientação Cênica –a idéia foi transformar o espaço em um labirinto, subterrâneo, caverna, ou qualquer coisa que introduzisse algum impacto inicial ou surpresa, e exigisse gesticulações e movimentos diversos das crianças para serem incluídas no espaço. Após visitar a sala disponível, os estudantes/estagiários apresentaram planos espaciais, individualmente, e a ambientação foi decidida a partir da análise conjunta deste material. A pequena sala retangular foi dividida por um túnel, da porta de entrada a 2 metros da parede oposta – este túnel foi construído por uma fila de mesas, com cadeiras empilhadas em cima delas, e o conjunto revestido com papel craft, por fora e por dentro, para impedir que as pessoas de um lado da sala vissem o que estivesse acontecendo do outro. A parte interna do túnel foi formada pelo espaço sob as mesas, e os participantes, adultos e crianças, teriam que engatinhar para entrar na sala, sendo que ao sair do túnel seriam distribuídos, um para cada lado. Reproduções coloridas de muros históricos, bem como desenhos e pinturas de muros imaginários, além de algumas pichações, foram colocados nas superfícies internas e externas do muro. As paredes exteriores da sala, opostas ao muro, foram também recobertas com papel craft, para receber (ou não) os desenhos e pichações feitos pelas crianças. Contexto Teatral – a teatralidade foi introduzida e estimulada por seis personagens (alunos de teatro) que coordenaram o processo de construção da narrativa: - dois contadores de história, um para cada lado do muro – enquanto um narrava, os habitantes do outro lado do muro, coordenados pelo seu respectivo narrador, escutavam

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em silêncio, imaginando o que estaria acontecendo lá; assim que o primeiro narrador terminasse sua história, a cena repetia-se do outro lado. Três trechos de história foram preparados: sobre a vida comunitária, sobre a presença do muro, sobre tentativas anteriores de transpor o muro. - quatro personagens, dois conservadores e dois progressistas – formando uma dupla para cada lado. Os personagens estavam congelados, encostados na parede, e preparados para expor e salientar os subtextos e implicações das histórias sendo narradas. Após cada etapa de narração os participantes eram divididos em grupos para criar as histórias do dia-a-dia em sua comunidade (etapa 1); atitudes e ações frente à situação `muro’ (etapa 2); acontecimentos envolvendo personagens que tentaram ultrapassar o muro (etapa 3). Este trabalho foi feito em forma de sussurros, estimulados pelos parceiros adultos, a fim de manter surpresa para o momento em que fossem apresentados. Os personagens mantinham-se congelados, porém se alguma criança os questionava ou desafiava eles contracenavam com elas. Em tais circunstâncias, os habitantes do outro lado do muro faziam silêncio para ouvir a cena. Na primeira oportunidade, o personagem correspondente, do outro lado do muro (conservador ou progressista), iniciava sua atuação sobre o mesmo assunto, transferindo a atenção de todos, visual ou apenas auditiva, para a outra comunidade.

Duas velhas caixas de madeira, desenterradas nas vizinhanças do túnel, contendo velhos documentos, fotos e objetos referentes a eventos do passado, foram encontradas – uma em cada lado do túnel. O conteúdo revelou que nos velhos tempos alguém havia cruzado o muro e retornado a salvo. Esta história não fazia parte do texto dramático original, e foi introduzida para abrir uma alternativa à derrubada do muro: no caso das crianças preferirem preservar o muro, uma vez que seus desenhos e outros tipos de criação estavam fixados em suas paredes, poderia-se estimular alguma iniciativa de abrir um outro túnel, levando ao outro lado, por onde cada comunidade passaria para observar o que a outra havia criado, e contracenar com os personagens – conservador e progressista - do outro lado.

O jogo entre silêncio e som, eventos vistos e não vistos, movimentos e congelamentos, orquestrados pelos narradores dos dois lados do muro, criou expectativas sobre as diferenças e similaridades entre os dois mundos. As situações alternadas, de silêncio e congelamento para ação e sussurros, estimulou a criação de cenas, devido ao desejo de impactar os habitantes do outro lado, seguindo o modelo de atuação introduzido pelos personagens adultos. 2. A investigação dos personagens e papéis: O texto “O Muro” intercala narrativas curtas com falas em resposta – cada fala é representada por um número, e a soma das falas correspondentes ao mesmo número (duas ou três falas, cada qual com não mais que uma linha) não chega a oferecer pistas suficientes para a construção de um personagem. O grupo de pesquisa teve duas tardes para preparar as atuações. O planejamento consistiu, primeiramente, em identificar as falas conservadoras e as progressivas para alimentar a construção dos quatro personagens; em segundo lugar na seleção de expressões que pudessem servir de modelo para as pichações e slogans a serem utilizados em reuniões da comunidade; finalmente foram investigados possíveis papéis para os habitantes de cada lado do muro. Os professores que trabalharam em parceria com as crianças deveriam sugerir, indiretamente, dois ou três papéis contrastantes, que pudessem indicar alternativas para enfrentar o muro.

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3. Preparação do material de cena A identificação de ações e formas de sequenciar a narrativa levou à preparação de materiais diversos que pudessem alimentar os personagens durante as assembléias comunitárias, manifestações de rua, etc. Este material incluiu: a) histórias reais sobre a vida dentro e/ou atrás de muros (Muro Americano, Muro de Berlim, prisões, hospícios) ou muros metafóricos (falta de dinheiro, habilidades, educação, oportunidades). b) respostas aos personagens conservadores e à idéia de que o muro significa proteção contra o mal e o desconhecido; e aos personagens progressistas e à idéia de que o muro deve ser derrubado. Em ambas as situações os parceiros adultos estavam preparados parada desafiar as respostas fáceis e apressadas. c) recursos para diminuir o ritmo das atividades, tais como a velha caixa de madeira, encontros para decidir as mensagens a serem enviadas ao outro lado, o que iria exigir um grande silêncio e uma voz bem forte, uma vez que a única comunicação possível era a oral. 4. Os Eventos O muro foi derrubado no final do primeiro dia. A estrutura dramática planejada foi seguida até aquele momentovi, embora à grande velocidade – as próprias tarefas para reduzir o ritmo foram resolvidas rapidamente. A primeira tarefa – criar histórias e papéis em cada comunidade – revelou que nem sempre a confluência dos contextos real e ficcional são um fato. O interessante aqui, foi que o contexto real das crianças (favela) esteve embutido nas criações espaciais, porém a dimensão da ficção predominou na construção dos personagens. Isto se explica na medida em que o espaço real (tanto o da favela quanto o da cidade) é aquilo que elas conhecem em termos de espaço; enquanto que seus referenciais para papéis e/ou personagens estavam relacionados com o tráfico de drogas ou miséria absoluta, razão pela qual foram evitados. A segunda tarefa – criar pixações e slogans para os muros e assembléias comunitárias – revelou o contexto real das crianças através de seus desenhos (por exemplo, um cão feroz atrás dos muros de uma mansão e uma criança do outro lado), e a repetição da maior parte das palavras dos parceiros adultos na criação dos slogans. A terceira tarefa – tomar decisões, em grupos, sobre como abordar `o muro’- praticamente fundiu-se com a seguinte, uma assembléia geral, uma vez que cada participante já havia optado e decidido o que fazer. Apesar da intenção, majoritária, de derrubar o muro, 4 crianças insistiam em preservá-lo, a fim de proteger `o dinheiro da família’ enterrado nele. Esta idéia acabou sendo reformulada por outra criança, do grupo `abaixo o muro’, que sugeriu que os personagens conservadores (os alunos de teatro) eram na realidade gangsters e haviam enterrado drogas e dinheiro na base do muro. Os parceiros adultos tentaram sugerir campanhas e slogas para cada tipo de interpretação, mas a excitação de derrubar e picar o cenário prevaleceu. Ao final da sessão `destruição’, os habitantes dos dois lados do muro foram solicitados a impedir que qualquer pessoa tocasse nos destroços até a próxima assembléia. O planejamento da próxima sessão incluía a montagem de pequenas cenas sobre os eventos anteriores, seguidas pela construção de um memorial, em forma de mural. Entretanto, o `clamor’ de que o dinheiro da família havia sido roubado e que os personagens conservadores eram os responsáveis, teve início antes mesmo da abertura da porta e janelas. A necessidade de um julgamento foi rapidamente constatada. Dois

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estagiários assumiram o papel de advogados de acusação e defesa, as 4 crianças que tiveram a idéia de preservar o muro foram testemunhas de acusação, e outras se ofereceram para testemunhas de defesa.

O grupo da defesa alegou que os acusados eram membros atuantes da comunidade, pessoas confiáveis; que o dinheiro estava enterrado há décadas e destinava-se a proteger e preservar a comunidade, seja lá qual fosse sua origem. Algumas testemunhas alegaram que quantias bem maiores eram tiradas do povo, por parlamentares, para fins totalmente particulares, e o veredito rápidamente foi decidido: `inocentes’. Os acusados transformaram-se em heróis em menos de 10 minutos.

O segundo dia teve início com uma cena, por dois atores no papel de netos de pessoas que haviam vivido naquelas comunidades cercadas por muros. O foco da cena era a veiculação recente de notícias, com caráter de fofoca, sobre o dinheiro encontrado por ocasião da destruição do muro.

Após a cena, a turma, sentada em círculo, foi convidada a contar as histórias que haviam ouvido sobre os acontecimentos passados. Foi dado algum tempo para que imaginassem as histórias. Algumas crianças pediram para desenhar em vez de narrar, e foi decidido que os desenhos representariam velhas fotos daqueles eventos.

A próxima tarefa era criar, em grupos, cenas sobre a vida na época em que as duas comunidades estavam separadas pelo muro.

Finalmente foi construído um mural (uma parede inteira) que incluiu além de fotos e narrativas, pedaços de cenário e objetos de cena. O objetivo deste `memorial’ era mostrar às futuras gerações a história do muro e assim prevenir que outros muros fossem construídos. 4 NOTAS DE REFLEXÃO `Teatro em Trânsito’ pode ser inserido dentro do que as teorias atuais de performance denominam `work in progress’ – um projeto aberto a múltiplos procedimentos cênicos, onde a interatividade representa, de um lado, risco e processualidade; e de outro lado, um espaço expressivo para os espectadores.vii Texto, espaço e presença são definidos por muitas vozes: autor da peça (do pré-texto), diretor/professor, atores e espectadores-participantes. O cruzamento de memórias e mitologias individuais e de grupo, pode ser observado em todas as etapas e determinou a significação do evento. Daí a ambiguidade entre o imaginário e o factual na definição do real, e a reiteração das referências culturais através do processo. Isto garante que o trânsito teatral de `O Muro’ tenha narrativas totalmente distintas quando aplicado em contextos diversos. O plano de trilha para `Teatro em Trânsito’ apresentou alguns cortes, na experiência aqui relatada, uma vez que algumas ambientações não foram postas em prática devido a circunstâncias imprevisíveis: uma segunda sala de 5m X 6m iria ser utilizada como `centro comunitário’ para os habitantes dos dois lados do muro, separadamente; um beco, que atravessa o centro da favela, seria o percurso das manifestações que culminariam com a construção do mural no espaço aberto central da localidade. Porém, ambas as ações não puderam ser realizadas devido a forte chuvas e lama. A transferência de um lado do túnel para o outro, através de dois túneis secundários, cada qual num dos extremos da salaviii, também havia sido planejada, mas não houve condições de adiar a destruição do muro, dada à excitação das crianças, em grande parte provocada pelos estagiários, que pareciam mais excitados que todos. A atuação, em todos os fragmentos, intercalou interpretação e performance- houve cenas, personagens estranhos apenas cruzando o espaço, imagens silenciosas em

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movimento, sons inarticulados, narrativas deslocadas. O jogo entre silêncio e som, movimento e congelamento, salientou as imagens coletivas e jornadas. O uso reiterativo de imagens e/ou slogans, falas superpostas, atuação exacerbada, atendeu não só a objetivos de aprendizagem, mas também ao `work in progress’ enquanto forma narrativa. Estas características do trabalho envolvem a tecedura de histórias de vida, textos literários, espaços públicos, culminando com um texto vivo, aberto às intervenções do espectador. O uso de fragmentos do texto para planejar a trilha e as ambientações não significa, entretanto, uma collage; representaria talvez, um processo e um texto híbrido, tal como os processos de espetáculo propostos por Cohen (1997), onde cada situação foi recriada e um novo significado foi construído, em vez do simples sequenciamento de diversas situações do texto original. A etnografia foi então a opção metodológica desta pesquisa, uma vez que a complexidade de procedimentos e estratégias exigiram um processo contínuo de registro, discussão e planejamento – um diário de bordo (storyboard ou logbook) foi usado para registrar os comentários, impressões e questionamentos dos atores e professores durante o processo. Nele, é possível observar percepções contraditórias das interações crianças-atores/professores, dependendo de quem estava interagindo com quem, e em quais circunstâncias. Por exemplo, por um lado, houve comentários sobre a manipulação da voz e decisões das crianças – o argumento foi que não houve tempo suficiente para que estas investigassem as tarefas propostas, e os professores terminaram por induzir suas respostas. Por outro lado, houve aqueles que afirmaram que subestimaram o capacidade criativa das crianças, em consequência foram incapazes de desafiar ou questionar suas contribuições e acabaram por aceitar e estimular todas as contribuições, indiscriminadamente, e sem maiores questionamentos. Outra percepção divergente refere-se à narração de histórias. Enquanto um professor descreveu o narrador como excessivamente preso aos fatos descritos no texto, sem habilidade para engajar as crianças na visualização do contexto da ficção, outros relataram que as crianças estavam tão envolvidas que ficaram com medo de se aproximar dos personagens, uma vez que fundiram os contextos real e ficcional. Uma percepção generalizada, foi que todos os personagens super-atuaram (overacting) – a análise conjunta posterior à experiência, revelou que a necessidade de serem ouvidos pela comunidade do outro lado do muro foi a razão deste problema – e assim que o primeiro personagem super-atuou e obteve uma resposta positiva das crianças, o próximo fez o mesmo, e assim sucessivamente. Entretanto, o grupo de voluntários que costumam trabalhar com estas crianças, ficou entusiasmado com sua prontidão de resposta e atuação, e subsequentes relatórios mostraram que houve referências a este evento, e trabalhos posteriores baseados nele, meses após a experiência.

i Estas teorias vem se concentrando, majoritariamente, nas obras de Bob Wilson, Tadeus Kantor, Lee Breuer; performers como Joseph Beuys, John Cage (occurrence art), Pollock (action-painting). ii A expressão e o conceito de pré-texto foram introduzidos por Cecily O’Neill (O’Neill, 1997) e referem-se à história, imagem, attitudes e/ou personagens que irá acompanhar o processo de criação, e facilitar a introdução de elementos que permitiram aos participantes tanto identificar a natureza dos eventos sendo explorados quanto entender seu contexto e os papéis dos personagens. iii O uso de `trama’ ou `enrêdo’, em vez de `estrutura’ significa que apenas as idéias e conflitos do texto foram utilizados, e mesmo assim modificados, de acôrdo com as imagens e opções das crianças. Não houve a intenção de seguir sua estrutura; as idéias foram utilizadas a fim de introduzir situações e vocabulário sobre o tema; os conflitos como temas geradores para a identificação de analogias referentes ao seu cotidiano. Coube ao grupo de pesquisa um trabalho contínuo de estruturação - seleção e sequenciamento das expressões individuais e de grupo.

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iv O grupo decidiu traduzir o título apenas desta forma, deixando as possíveis conotações para serem levantadas durante o processo, através de tarefas e/ou personagens específicas. v [email protected] vi O grupo estava preparado tanto para derrubar o muro, quanto para construir um túnel e possibilitar a jornada de cada comunidade para o lado oposto, através de trilhas diversas, e concomitantemente, de forma que os participantes não se encontrassem. vii As fronteiras entre espectador e ator não são bem definidas em Teatro na Escola. Dorothy Heathcote (1994), por exemplo, afirma que o professor de drama é o autor (playwright) que vai tecendo a narrativa dramática dos alunos. viii Um túnel em cada extremo da sala, permitiria a transferência de cada grupo para o outro lado, sem que se encontrassem, e a possibilidade de cada qual chegar a um local desabitado e abandonado, o que nos permitiria explorar outras imagens e sequências. REFERENCIAS Atkinson, P. The Ethnographic Imagination: textual construction of reality. Londres, Routledge, 1990. Cabral, Beatriz A V. “Plantas da Ilha – a História de Marina”, in Arte em Foco (Florianópolis, DAC/UFSC, 1998), Vol. 1, No 1, pp: 77-94. _____. (Org.) Ensino do Teatro – experiências interculturais. Florianópolis, DAC/UFSC, 1999. _____. “Signs of a Post-modern, yet Dialectic Practice”, in Research in Drama Education (Oxford, Carfax, 1996), Vol. 1, No 2, pp: 215-220. _____. “Ritual & Ethics – Structuring Participation in a Theatrical Mode”, in Stage of the Art (Arizona, AATE, 2000), Vol. 12, No 1, pp 20-26. Cohen, Renato. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo, Perspectiva, 1997. Counsell, Colin. Signs of Performance – an introduction to twentieth-century theatre. London, Routledge, 1996. Donelan, Kate. “Windows on the Drama Classroom: a collaborative, ethnographic approach to Research”, in Hugues, J. (ed) Drama in Education: the state of the art, Educational Drama Association, NSW, 1991. Haydon, Graham. Education and the Crisis in Values – should we be philosophical about it? London, The Tufnell Press, 1993. Hatch, J. Amos e Wisniewski, Richard. Life History and Narrative. Lindres, The Falmer Press, 1995. Pavis, Patrice. The Intercultural Performance Reader. New York, Routledge, 1996. Schechner, Richerd. The Future of Ritual. New York, Routledge, 1993.