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1 TEATRO DE MAMULENGO E A QUÍMICA: UMA ALTERNATIVA PARA LEVAR CIÊNCIA AO PÚBLICO Daniela S. Jesus, Ortência P. Santiago, Edenilza M. Santana, Fernando C. Santos, Everton S. Oliveira, Marcelo Leite dos Santos, Edson José Wartha e Erivanildo L. da Silva Resumo Neste trabalho são apresentadas de modo descritivo as atividades de divulgação e popularização da ciência desenvolvida por estudantes de Licenciatura em Química da Universidade Federal de Sergipe, utilizando como meio de divulgação o Teatro de Mamulengos. O projeto possibilitou relacionar saberes populares muitas vezes apresentados pelo público durante as apresentações, à saberes científicos através de apresentações teatrais, denominadas historietas, sendo essas atreladas a experimentação química. Palavras-Chave: Mamulengo, Ensino de Química, Popularização da Ciência. Introdução Neste trabalho apresenta-se um relato de parte das atividades desenvolvidas no âmbito da divulgação científica realizadas por professores e estudantes de graduação de Química da Universidade Federal de Sergipe. Como uma alternativa para abordar conhecimentos científicos, a iniciativa busca contribuir para a popularização e divulgação da ciência, apresentando em escolas e povoados o Teatro de Mamulengos. Essa abordagem artística permite romper com o isolamento do conhecimento científico, possibilitando que essa forma do conhecimento humano possa chegar ao público em geral de modo a permitir um diálogo entre ciência e sociedade (MARANDINO, 2003). A divulgação científica, por meio da abordagem do Teatro de Mamulengos, apresenta uma característica peculiar que é interpretar cientificamente o conhecimento popular do próprio público que interage com a encenação (GUINSBURG, FARIA e LIMA 2009). Considerando essas premissas, o grupo idealizou o projeto “Química também é cultura com teatro: show da química com teatro”, que contou com apoio financeiro da FAPITEC (Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe) e do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Para Oliveira (2011), o Teatro de Mamulengos é estruturalmente composto por pequenas cenas para a apresentação dos personagens, sendo o espetáculo apresentado em uma espécie de barraca (palco) revestida por tecidos

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TEATRO DE MAMULENGO E A QUÍMICA:

UMA ALTERNATIVA PARA LEVAR CIÊNCIA

AO PÚBLICO

Daniela S. Jesus, Ortência P. Santiago, Edenilza M. Santana, Fernando C. Santos, Everton S.

Oliveira, Marcelo Leite dos Santos, Edson José Wartha e Erivanildo L. da Silva

Resumo

Neste trabalho são apresentadas de modo descritivo

as atividades de divulgação e popularização da

ciência desenvolvida por estudantes de Licenciatura

em Química da Universidade Federal de Sergipe,

utilizando como meio de divulgação o Teatro de

Mamulengos. O projeto possibilitou relacionar

saberes populares muitas vezes apresentados pelo

público durante as apresentações, à saberes

científicos através de apresentações teatrais,

denominadas historietas, sendo essas atreladas a

experimentação química.

Palavras-Chave: Mamulengo, Ensino de Química,

Popularização da Ciência.

Introdução

Neste trabalho apresenta-se um relato de parte das

atividades desenvolvidas no âmbito da divulgação científica

realizadas por professores e estudantes de graduação de

Química da Universidade Federal de Sergipe. Como uma

alternativa para abordar conhecimentos científicos, a iniciativa

busca contribuir para a popularização e divulgação da ciência,

apresentando em escolas e povoados o Teatro de Mamulengos.

Essa abordagem artística permite romper com o isolamento do

conhecimento científico, possibilitando que essa forma do

conhecimento humano possa chegar ao público em geral de

modo a permitir um diálogo entre ciência e sociedade

(MARANDINO, 2003).

A divulgação científica, por meio da abordagem do Teatro

de Mamulengos, apresenta uma característica peculiar que é

interpretar cientificamente o conhecimento popular do próprio

público que interage com a encenação (GUINSBURG, FARIA e

LIMA 2009). Considerando essas premissas, o grupo idealizou o

projeto “Química também é cultura com teatro: show da

química com teatro”, que contou com apoio financeiro da

FAPITEC (Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação

Tecnológica do Estado de Sergipe) e do CNPQ (Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

Para Oliveira (2011), o Teatro de Mamulengos é

estruturalmente composto por pequenas cenas para a

apresentação dos personagens, sendo o espetáculo apresentado

em uma espécie de barraca (palco) revestida por tecidos

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populares. Nesse espaço os criadores do espetáculo apresentam

os bonecos de mamulengos que são conduzidos com o auxílio

das mãos, de forma semelhante àquela que é utilizada pelos

fantoches. Essa abordagem teatral não apresenta uma

dramaturgia amarrada na escrita, contudo obedece a um

padrão de transmissão oral, com histórias, lendas, linguagem

própria, personagens fixos, brincadeiras, piadas, música, dança

e até mesmo Ciências.

Nas atividades do projeto existe o intuito de relacionar os

saberes científicos e populares, principalmente destacando que

os saberes populares se acumulam ao longo dos anos e são

transmitidos de geração para geração, de indivíduo para

indivíduo, ou até mesmo entre grupos sociais, por meio da

linguagem falada, de gestos e atitudes e através de diversas

influências do meio podem ser transformados (GONDIM e MÓL,

2009). Como forma de ocorrer à abordagem do conhecimento

científico é acrescentado mais um componente em meio à

atividade teatral, que é a figura de quem realiza e explica os

experimentos, uma espécie de monitor que relaciona a parte

científica à encenação dos mamulengos, ou seja, em meio aos

atos são estabelecidas pausas para demonstrações

experimentais relacionadas aos conceitos e seus respectivos

saberes populares que estejam em discussão.

A primeira historieta foi adaptada a partir de uma

questão de vestibular e adaptada a um contexto nordestino

relacionado ao cangaço. A segunda foi embasada a partir de

uma sequência de experimentos encontrados na literatura que

geravam conflitos de conceitos por parte do público (BRAATHEN,

2000; COFFEY, 2008; GALIAZZI, 2005). O processo de

construção das duas últimas historietas buscou investigar

saberes populares da região do Agreste sergipano e, a partir

desses, procurou-se identificar possíveis relações com o

conhecimento científico (BOHRER, KROB e KINDEL). Após esta

etapa passou-se a confeccionar os bonecos relacionados aos

personagens, os testes experimentais (que são realizados antes

das apresentações) relacionados aos aspectos científicos das

historietas, passando pela elaboração do roteiro de falas dos

bonecos e, por último, a realização das apresentações para o

público. Vale salientar que os bonecos de mamulengos são

confeccionados pelos próprios integrantes do grupo, o que

infere o processo de criação dos bonecos e confecção das

roupas (Figuras 1 e 2).

Figura 1: Confecção dos bonecos de mamulengo

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Figura 2: Bonecos produzidos, estande das

apresentações e roupas dos bonecos.

Em doze meses de atividades, o projeto já atendeu a

cerca de 1200 pessoas de um público diversificado, tendo essas

apresentações ocorridas nas escolas públicas, feiras livres e

praças públicas. As atividades ocorreram em 12 escolas e 4

praças públicas, além de três feiras livres, sendo todas essas

ações em cidades do Agreste e Sertão sergipano.

Descrição das Historietas Elaboradas

Para a construção das apresentações teatrais com

bonecos, que foram denominadas de historietas houve a

investigação dos saberes populares presentes nas famílias que

compõem parte do agreste sergipano por meio de conversas

informais. A historieta pioneira surgiu através de uma questão

de vestibular, que por sua vez, foi relacionada ao cangaço, este,

é um aspecto cultural extremamente recorrente no cenário

nordestino, tal cultura, por ser reconhecida nacionalmente,

despertou o interesse dos monitores, por conta disso, a primeira

historieta denominada “Corisco e Sabonete - Os químicos do

Sertão”, surgiu sobre essa perspectiva e desencadeou o

surgimento das demais historietas. Trabalhou-se com a

apresentação de quatro historietas (a) Corisco e Sabonete - Os

químicos do Sertão; (b) Aconchego da Vovó. (c) Ciência versus

Religião; (d) A Química presente na água. Essas serão

descritas a seguir.

- Corisco e Sabonete - Os químicos do Sertão

Na primeira das historietas elaboradas, “Corisco e

Sabonete: os químicos do sertão” busca-se encenar um episódio

fictício formado por três personagens: Maria Bonita, a mulher

de Virgulino Ferreira, o Lampião; Corisco, o braço direto de

Lampião e Sabonete, parceiro de Corisco. Cada personagem

tem características definidas: Maria, uma mulher valente e

determinada, Corisco um homem valente, com muitos princípios

machistas e o Sabonete cangaceiro medroso, preguiçoso e

muito atrapalhado.

Tudo começa quando Maria Bonita, entediada com sua

rotina, ordena que Corisco e Sabonete preparem os alimentos e

realizem a devida salga da carne para conservação. Contudo,

essa ordem não agrada aos dois cangaceiros, pois pensam

nessa tarefa como sendo exclusivamente feminina. Nesse

recorte, a narrativa visa abordar a temática do machismo,

característica forte do povo nordestino, principalmente no

tempo do cangaço. Como comenta Souza (2006), a classe

feminina nordestina sofria muitos preconceitos em relação às

mulheres das demais regiões do país. O enredo se desenrola

com Maria Bonita fazendo ameaças de castigo aos homens e,

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então, os dois cangaceiros receosos de uma punição por parte

de Lampião começam a realizar a tarefa.

A encenação transcorre com as brincadeiras e falas

preconceituosas dos dois homens do cangaço, até que

sabonete, de forma desastrosa, deixa cair todo sal na areia.

Esse enredo possibilita introduzir a parte científica que envolve

a separação do sal derrubado na areia. Na encenação, os dois

cangaceiros iniciam uma discussão sobre as possibilidades de

recuperar todo o sal derrubado, uma vez que este era o único

sal que o bando trazia.

Com as falas procura-se criar uma atmosfera tentando

mostrar como os cangaceiros deveriam resolver o problema, ou

seja, como os dois homens poderiam obter o sal novamente. Os

mamulengos acabam questionando público sobre possíveis

hipóteses, as quais remetem ao uso dos métodos de separação

de mistura. O primeiro procedimento sugerido pelos

personagens é recolher a mistura de sal com areia em uma cuia

e adicionar água nesse recipiente. Corisco propõe o uso de um

pano para separar os componentes. Contudo, Sabonete

bastante curioso, acaba bebendo a água e descobrindo que ela

ainda encontra-se salgada. No enredo, ambos não souberam

criar uma alternativa para obter todo o sal, tendo em mãos

apenas uma cuia contendo água salgada. Prevendo uma coça de

Lampião os dois homens caem na caatinga e deixam a cuia com

água salgada exposta ao sol. Horas depois ao perceberem que

não poderiam ludibriar a todos, os dois resolvem contar a Maria

Bonita que derrubaram todo o sal. E então, para surpresa dos

cangaceiros eles encontram na cuia praticamente o sal que

haviam derrubado.

Após essa dramatização inicia-se de modo demonstrativo

a etapa experimental. O monitor filtra a mistura de sal e areia

acrescida de água e, após aquecimento da solução, apresenta o

sal obtido no processo. O Procedimento segue o esquema

ilustrado na Figura 3.

Figura 3: Modelo esquemático da experimentação “Mistura do cangaço”

Os monitores realizam alguns questionamentos visando

o entendimento do público sobre a abordagem da historieta e,

então, acabam apresentando os conceitos químicos de misturas

heterogênea e homogênea. Como no contexto da historieta o

processo de evaporação ocorre com contribuição solar, por

motivos de tempo utilizamos o processo de ebulição por meio

de uma fonte de calor introduzida, nesse caso o “candeeiro”.

Essa adaptação é devidamente explicada ao público.

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- Aconchego da Vovó

Essa historieta tem como personagens Vitinho, um

garoto levado, seu pai Antônio, um homem típico da cidade

grande, e sua avó Dona Zefinha, uma senhora com raízes do

interior nordestino. No enredo, Vitinho, enquanto almoça, deixa

cair uma bala de menta no refrigerante causando maior

confusão e sujeira na casa. O garoto logo pergunta ao pai o

porquê daquilo e o pai promete uma explicação para o fato, mas

logo após o almoço.

Mais tarde, antes da explicação do pai para o evento

anterior, Vitinho emenda outra pergunta: pai eu vi na escola

que o professor conseguiu fazer água subir na garrafa apenas

com ajuda de uma vela. Dessa forma, a historieta “Aconchego

da Vovó”, apresenta duas práticas experimentais que fazem uso

de materiais alternativos, são elas: erupção de refrigerante e a

vela que se apaga na garrafa.

Os monitores nessa historieta realizam a erupção de

refrigerante que consiste na adição de três balas de Mentos® a

uma garrafa de refrigerante de cola, Figura 4.

Figura 4: Modelo esquemático da experimentação

“Erupção de refrigerante”.

Ao colocar as balas de Mentos® no refrigerante de cola, o

equilíbrio do dióxido de carbono (CO2) dissolvido no refrigerante

é perturbado, o que ocasiona a “expulsão” do refrigerante para

fora do recipiente na forma de uma erupção. O principal fator

para que a erupção ocorra decorre da superfície rugosa e

irregular, do ponto de vista microscópico, da bala de Mentos®,

conforme verificado por Coffey (2008). Essas “ranhuras

microscópicas” possibilitam a rápida nucleação de bolhas do CO2

que estava solubilizado no refrigerante, provocando a

impressionante erupção observada (PIRES e MACHADO, 2013).

No segundo experimento dessa historieta os monitores

fixam a vela ao prato fundo, acrescentam água e corante. Em

seguida a vela é acesa e uma garrafa de vidro é posicionada de

maneira que a vela acesa esteja em seu interior. A Figura 5

apresenta o esquema experimental.

Figura 5: Modelo esquemático da experimentação

“Vela do Cabrunco”.

Após certo tempo a vela se apaga e o nível de água

colorida dentro da garrafa aumenta. Na combustão, o dióxido

de carbono (CO2) formado é aquecido e fica menos denso que o

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gás oxigênio, concentrando-se na parte superior do recipiente.

Com o decorrer da reação, uma quantidade de dióxido de

carbono maior vai se acumulando na parte superior da garrafa,

dificultando a chegada de oxigênio, o que faz com que a

combustão se encerre. Enquanto a vela permanece acesa, o ar

dentro da garrafa também fica quente. Como o sistema

montado é aberto (permitindo a troca de matéria e energia), a

garrafa e o ar aquecido tendem a entrar em equilíbrio térmico

com sua vizinhança, cedendo calor. Com a diminuição da

temperatura do sistema o gás também diminui sua

temperatura, o que é acompanhado da compressão de seu

volume o que, por sua vez, ocasiona o aumento do nível de

água no interior da garrafa. Outro modelo explicativo para o

mesmo fenômeno é o de Braathen (2000) em que o vapor

d’água se condensa e o gás carbônico, por ser muito solúvel em

água, dissolve-se rapidamente. Como consequência da remoção

do gás oxigênio, a pressão dentro do cilindro diminui e a água

do recipiente sobe pelo cilindro até uma altura que corresponde

ao volume ocupado pelo gás oxigênio.

Figura 6: Modelo esquemático da experimentação

“Determinação da Vitamina C”.

O objetivo deste experimento (Figura 6) é mostrar a

diferença da concentração de Hipoclorito de Sódio (NaHClO),

geralmente presente em diferentes amostras de água, buscando

estabelecer um parâmetro da quantidade de material necessário

para eliminar germes e bactérias. Para deixar evidente a

diferença do teor de hipoclorito presente nas amostras, utilizou-

se como método de determinação a titulação iodométrica,

também empregada na determinação da Vitamina C, contudo

para soluções de concentrações distintas de Hipoclorito de Sódio

(HARRIS 2008).

Realiza-se inicialmente a titulação de três soluções

padrões, preparadas com concentrações diferentes, de modo

que fique perceptível o fato de que quanto maior for a

concentração de Hipoclorito de Sódio, maior é o consumo de

iodo. Em seguida realiza-se o teste com a água da torneira e

procura-se instigar o público sobre qual solução tem mais

Hipoclorito de Sódio, a água da torneira ou a solução utilizada

para lavar os alimentos, com base na quantidade de iodo

utilizada.

Após essa parte experimental, a historieta tem seu

fechamento mostrando que é possível ter uma ideia da

concentração adequada de Hipoclorito de Sódio presente na

água para o uso nas atividades domésticas diárias e que

somente reservar a água na moringa não é suficiente.

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- Ciência versus Religião

A segunda historieta, Ciência versus Religião, conta a

história de Jurema, uma garotinha levada e sua mãe Faustina,

uma beata conservadora e, simbolizando a ciência, juntos, um

médico e um professor. A encenação inicia-se com Jurema um

tanto gripada e sua mãe assinalando a necessidade de uma

“benzedeira”. Faustina acredita que a reza vai solucionar o

problema da gripe, contudo, Jurema, a filha, contrapõem-se a

mãe, afirmando que a Ciência produziu os remédios para a cura

das gripes.

Após a pequena discussão dos personagens de

mamulengos, a encenação traz o personagem médico

receitando à menina uma medicação apropriada e alimentação

rica em vitamina C. Assim, alguns dias passam e a medicação

parece não fazer efeito e frente a isso, Faustina se mostra

descrente com a indicação médica. Frente a descrença da Mãe a

menina busca a resposta com seu professor, sendo essa a deixa

para que os monitores apresentem a etapa experimental dessa

historieta. Então é realizada a pergunta ao público, como saber

qual alimento possui vitamina C?

Na etapa experimental, segundo o esquema da Figura 7,

os monitores abordam que a vitamina C é essencial para os

seres humanos, enfatizando que a sua deficiência pode trazer

alguns males a saúde e que suas principais fontes resumem-se

em frutas cítricas e vegetais.

Figura 7: Modelo esquemático da experimentação

“Iodométrica em amostras de água”.

O principal objetivo do experimento é determinar o teor

de vitamina C presente em dois tipos de sucos (acerola e

laranja). A técnica experimental utilizada baseia-se na titulação

complexométrica ou iodométrica que, como o próprio nome

sugere, trata-se da formação de um complexo oriundo da

adição de iodo como indicativo para quantificar a vitamina C.

Na abordagem com o público os monitores argumentam

que a vitamina C com certa quantidade de amido interage com

a solução de iodo e que, enquanto existir traços dessa vitamina

a solução aquosa permanece incolor. Após todo o consumo da

vitamina C, a solução, por conta da presença de amido, torna-

se azul. Logo, a conclusão formulada explica que, quanto maior

o teor de vitamina C presente maior será a quantidade

necessária de iodo para que a coloração azul promovida pelo

complexo se estabeleça. Nas últimas cenas, com a resposta

dada pelo professor em mãos, Jurema fala à mãe da quantidade

de vitamina C nas frutas e que vai consumi-las no dia a dia.

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- A Química presente na água

A historieta “A Química presente na água” busca abordar

a questão da qualidade da água utilizada para beber. A

encenação retrata uma situação vivenciada em uma cidadezinha

do interior, tendo como personagens Jocelina, uma senhora de

velhos costumes locais, Dora, filha de Jocelina, que ao contrário

de sua mãe, tem visão voltada à tecnologia e Livardina, a filha

de Dora, que gosta de discutir em casa os conhecimentos

apresentados na escola.

Tudo começa quando Livardina reclama à mãe de uma

dor na barriga e, então, Dora decide levar a garota ao médico,

sendo essa decisão questionada por Jocelina, a avó, pois na

visão dela bastava uma boa reza. Na consulta Dora recebe do

médico um diagnóstico que a garota pode estar em um quadro

de doença causada por verminose. Alguns poucos dias depois,

após as etapas de diagnósticos precisos, o médico informa que

a família deve estar consumindo água ou alimentos

contaminados.

Dora apresenta o diagnóstico para a avó de Livardina,

que então passa a contrapor-se a filha. Nesse contexto do

enredo algumas questões são apresentadas. Em que medida o

que Dora viu na internet e o que Livardina aprendeu na escola

poderá ajudar? Até onde as crenças da avó podem falar mais

alto? É realmente necessário tratar a água? Essas perguntas

são problematizadas para o público em geral, assim as pessoas

são provocadas a pensar sobre o hábito nordestino.

Livardina, considerando a fala do médico sobre a água

contaminada, acaba lembrando sobre o trato da água em

condições caseiras que o professor tinha abordado durante a

aula. Com base nas informações a menina tenta convencer sua

mãe e sua avó a adotarem cuidados possíveis com a água que

elas bebem, já que aparentemente isso tenha sido o problema

causador do mal da garota. Mas como tratar a água da

moringa? Pergunta Jocelina.

Após essa parte teatral tem-se início a etapa

experimental da atividade, ressaltando a importância da adição

de uma quantidade especifica de Hipoclorito de Sódio para cada

litro de água como um método eficiente para eliminar germes e

bactérias presentes nos alimentos. Ressaltando que, embora a

água pareça potável, são necessários alguns cuidados para

reservá-la na moringa. A Figura 7 apresenta um esquema

ilustrativo do tratamento da água e identificação do hipoclorito.

Discussão da Relação dos Saberes e a

Divulgação Científica

As duas primeiras historietas desenvolvidas foram

utilizadas como teste para a metodologia, apesar das historietas

possibilitarem a divulgação científica não foi possível

estabelecer relação entre os saberes empregados. No entanto,

com a apresentação das demais, esta relação foi significativa e

perceptível, tais relações serão comentadas a seguir.

Nas ideias de Bachelard (1996), devemos romper com o

senso comum, o mesmo autor defende que na Ciência a opinião

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não deve prevalecer. Pensando nesse viés, algumas indagações

se colocam como podemos popularizar a Ciência se o

conhecimento científico e o senso comum se opõem como

afirma Bachelard? Como refazer um caminho que reaproxime o

diálogo entre conhecimento científico e senso comum na

perspectiva da popularização científica? Essas perguntas foram

importantes na construção das histórias.

Outro autor que comenta sobre conhecimento científico e

senso comum é Germano (2011), o mesmo esclarece que a

Ciência moderna em seu gênesis declarou guerra ao senso

comum. Entretanto a ideia negativa do senso comum, nas

palavras de Germano (2011) não ganhou forma no próprio

senso comum, mas a partir da própria Ciência, pois, segundo o

autor à medida que um conhecimento se especializa, este se

afasta e começa a julgar outro saber.

Essa discussão no que se refere a Ciência e o senso comum

é pertinente, uma vez que, em nossas apresentações, o grande

desafio era popularizar a Ciência, para uma parcela da população,

em sua grande maioria, iletrada cientificamente. Eram indivíduos

que tinham suas visões de mundo e suas explicações para os

fenômenos do seu cotidiano e que de certa forma resistiam a

mudanças de opiniões. O nosso papel não era suplantar os

conhecimentos primeiros da população, mais sim mostrar outra

vertente. A história em si mostra a questão do embate entre

Ciência e senso comum, ensinando que cada forma de saber

tem sua explicação de mundo, a qual devemos respeitar.

Foi possível identificar que algumas historietas

proporcionaram o estabelecimento de relações entre o

conhecimento científico e o saber popular. Durante as

apresentações da historieta “Ciência versus Religião” pode-se

perceber no momento de indagações feitas ao público que para

eles a fruta que contém mais vitamina C é a laranja, algo que já

está enraizado no senso comum das pessoas. A concepção de

que a vitamina C previne ou ajuda a combater a gripe também

é outra ideia bem difundida pelo público. Entretanto quando

algumas outras informações como a de que a falta de vitamina

C no organismo causa o escorbuto, surpreende as pessoas pois

é uma informação pouco dissemina, a compreensão das

potencialidades dessa substancia são pouco exploradas pelas

pessoas. O ponto mais impactante, entretanto, é quanto ao teor

de vitamina C presente me algumas frutas, assim como a

utilização de um método de análise para determinar seu teor,

tendo como resultado a acerola tendo um maior teor de

vitamina C é um dos pontos que causa impacto na concepção

de senso comum das pessoas. E até mesmo a ideia de que

frutas como a goiaba possuem vitamina C também vai contra as

concepções iniciais do público. Muitos ao final da apresentação

incorporam essas novas informações, talvez por considerarem o

conhecimento científico como sendo o mais válido, tendo em

vista a concepção de ciência que é transmitida no ambiente

escolar, espaço onde se desenvolveram boa parte das

apresentações.

A historieta “A química presente na água” promoveu a

junção de fatos populares com conhecimentos científicos,

proporcionando a ocorrência de uma discussão do público a

respeito das concepções prévias que esses possuem e do

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entendimento obtido a partir da apresentação da historieta e do

experimento abordado, e assim identificar contribuições que

estes puderam proporcionar.

Conseguimos captar a atenção do público e provoca-los a

pensarem sobre o hábito comum que é a importância do

preparo da solução para lavagem dos alimentos contendo uma

concentração ideal de hipoclorito de sódio, e que tal

procedimento traz benefícios a saúde. Em via de regra, a

discussão gira acerca dos elementos que podem ser prejudiciais

à saúde causando verminoses, diarreias, caso da historieta onde

a menina está com dor na barriga devido ao uso de alimentos

contaminados, e que é importante seguir os conselhos médicos

para solucionar muitas questões, complementando assim a

cultura popular com base no conhecimento cientifico.

Durante as apresentações há o relato das pessoas que

consomem os alimentos sem a devida lavagem, muitas vezes,

adquiridos em feiras livres, onde estão ainda mais “sujos”. Muitas

ressaltavam não saber como lavar corretamente e nem os danos

que poderia causar. Após as informações dadas sobre o uso da

água as pessoas disseram que começarão a tomar mais cuidados.

E que depois de termos ensinado como se deve fazer, e o que isso

pode causar, ficou bem mais fácil. Outro relato frequente é que

alguns utilizavam vinagre para lavagem dos alimentos, porem

esse material não é tão eficiente na lavagem dos alimentos

como o hipoclorito, já que ele não mata os germes, apenas

ajudam a remoção, que pode não ocorrer completamente.

Um fato também observado é que os alunos pensam que

o na água existe o cloro, e não o hipoclorito de sódio. Isso se

justifica, talvez, porque que eles compram alvejantes comerciais

com o nome de cloro, achando essa ser a real composição dos

alvejantes, ou que os dois seriam a mesma coisa. Assim

procuramos mostrar que em condições ambientais o cloro é

simplesmente o gás cloro “Cl2” não sendo está a espécie

presente na água utilizada para o seu tratamento, mas sim o

Hipoclorito de Sódio (NaHClO).

Considerações Finais

Para realização do projeto “Química também é cultura:

show da química com teatro” pôde-se levar para a população em

geral os conhecimentos químicos de forma descontraída, usando

mamulengos típicos da cultura nordestina sergipana como forma

de ensino e aprendizagem, além de abordar conceitos básicos,

mostrando que saberes populares apresentam uma contribuição

nas concepções científicas e que as concepções que são

transmitidas pelas gerações anteriores podem não estar

equivocadas, precisando apenas ser complementadas, assim

como é apresentado por Marandino (2003).

Foi possível evidenciar que a Química também pode

ajudar a solucionar os problemas presentes no cotidiano

demonstrando que saberes populares podem contribuir para o

conhecimento científico e que essas tradições da cultura popular

podem ser complementadas pelo uso da Ciência, que tende a

aperfeiçoar técnicas antigas, em particular o uso e o tratamento

da água no nosso dia-a-dia, que pode ter contribuições tanto de

conhecimentos populares quanto científicos.

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Referências Bibliográficas

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de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

BOHRER, P. V.; KROB, A. J. D.; KINDEL, A. Trocas de saberes

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BRAATHEN, P. C. Desfazendo o mito da combustão da vela

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n. 12, 2000.

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GALIAZZI M. C. et al. Uma sugestão de atividade experimental:

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Sobre os Autores

Daniela S. Jesus

Mestranda em Ensino de Ciências e Matemática no Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe.

E-mail: [email protected]

Ortência P. Santiago

Mestranda em Ensino de Ciências e Matemática no Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe.

E-mail: [email protected]

Edenilza M. Santana

Mestranda em Ensino de Ciências e Matemática no Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe.

E-mail: [email protected]

Fernando C. Santos

Mestrando em Ensino de Ciências e Matemática no Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe.

E-mail: [email protected]

Everton S. Oliveira

Mestrando em Ensino de Ciências e Matemática no Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática

(NPGECIMA) da Universidade Federal de Sergipe.

E-mail: [email protected]

Erivanildo Lopes da Silva

Coordenador do projeto, doutor em Filosofia, História e Ensino

de Ciências na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e

professor doutor do Campus Prof. Alberto Carvalho –

Universidade Federal de Sergipe (UFS).

E-mail: [email protected]

Edson José Wartha

Doutor em Ensino de Ciências pela Universidade de São Paulo

(USP) e professor doutor do Campus Prof. Alberto Carvalho –

Universidade Federal de Sergipe (UFS).

E-mail: [email protected]

Marcelo Leite dos Santos

Doutor em Ciências pela Universidade Estadual de Campinas

(UNICAMP) e professor doutor do Campus Prof. Alberto

Carvalho – Universidade Federal de Sergipe (UFS).

E-mail: [email protected]

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MAMULENGO THEATER AND THE

CHEMISTRY: AN ALTERNATIVE FOR BRINGING

SCIENCE TO THE PUBLIC

Abstract

In this work are presented descriptively the outreach

activities and popularization of science developed by

undergraduate students of the Chemistry from the

Federal University of Sergipe, using as a means of

disseminating the Mamulengos Theatre. The project made

it possible to relate popular knowledge often made by the

public during the presentations, the scientific knowledge

through theatrical performances, called comic strips, and

those linked to chemical experimentation.

Key words: Mamulengo, Chemistry teaching,

Popularization of Science