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Teatro Carlos Alberto20 ‑30 março 2014

cenografia e figurinos Ana Luenamúsica original, interpretação ao vivo e direção musical Peixedesenho de luz Rui Monteiroapoio vocal João Castroprodução executiva Mariana Ninaassistência de produção Luís Putoassistência de encenação Adriana Vaz de Carvalho

interpretação Joana Carvalho, Luís Puto, Margarida Gonçalves, Paulo Mota, Pedro Mendonça, Rodrigo Santos com a participação de Cristina Pereira, Manuela Leitão, Maria Alice de Pinho, Maria José Paraty, Marta Rosas, Rita Valério (formandos dos laboratórios promovidos pelo Teatro Bruto), Anthony Figueira, Diogo Freitas, Fábio Machado, Filipa Baptista, Luísa Santos, Pedro Daniel Silva, Soraia Silva (alunos da Escola de Teatro do Externato Delfim Ferreira)

coprodução Teatro Bruto, TNSJ

dur. aprox. 1:40M/12 anos

qua-sáb 21:30 dom 16:00

com BasE no romancE homónimo DEValter Hugo Mãe

EncEnação E aDapTação ana luena

o TnsJ É mEmBro Da

O FILHO DE MIL HOMENS

EsTrEia aBsoLUTa

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O Filho de Mil Homens

Talvez o tempo, por si só, explique a cada um de nós o que é necessário para a felicidade. Talvez a felicidade seja sempre outra coisa que em cada idade se revela para que nos esforcemos de novo, continuamente. Há um amor guardado para cada fim. No limite, já não podemos adiá ‑lo. Temos de amar sem olhar a quem até que, olhando, o perfeito desconhecido nos seja familiar. Até que se invente uma família, tão pura e fundamental quanto outra qualquer. A felicidade, afinal, é possível, embora se esconda atrás de um mundo de tristezas. Mas nenhuma tristeza nos deve vencer. O destino de cada um é só este: acreditar, mesmo quando ninguém mais acredite.

VaLTEr hUGo mãE

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Os felizes

Assumo esta adaptação como uma visão pessoal da obra O Filho de Mil Homens, criada para o coletivo de intérpretes deste espetáculo, distanciando ‑se intencionalmente da ideia de uma leitura transcrita para a cena teatral do romance de Valter Hugo Mãe. Por isso, o processo de adaptação do texto estendeu ‑se até aos ensaios, misturando ‑se voluntariamente com o processo de encenação e com a direção de atores.

Quando decidi encenar e adaptar O Filho de Mil Homens, sonhei que o espetáculo deveria, muito mais do que um manifesto de esperança, ser ele próprio absurdamente esperança. Que seríamos todos filhos de mil homens, porque já somos, à imagem de uma árvore genealógica, inequivocamente ligados à natureza – “E a natureza nunca seria burra. A natureza, estava claro, entendia e fazia tudo. Sabia tudo”.

O Crisóstomo, o homem que chegou aos quarenta anos e mudou o mundo, poderá ser a imagem que desejamos do homem moderno, todo ele livre, aceitando ser o que é, perseguindo o que lhe pertence, acreditando que a felicidade se constrói – “O Crisóstomo, fantasiando como sabia, sabia tudo”.

Encarando o teatro como um processo transformador, a criação como um ato de liberdade, as relações como laços familiares, faço uma analogia entre o processo teatral e a “história” que li em O Filho de Mil Homens. A adaptação e a encenação partem desta relação que estabeleci, não sendo por isso estranho que tenha convidado para participar neste espetáculo um grupo de formandos com quem tenho trabalhado em laboratórios promovidos pelo Bruto, e um grupo de alunos com quem já trabalhei em contexto académico. É a partir da individualidade de cada um, e da partilha que as relações promovem, que se forma este coletivo, combinando em cena intérpretes amadores, estudantes, atores e um músico. O reconhecimento de personagens trágicas, como o Antonino, a Maria, a Isaura e a Matilde, foi a inspiração para a criação de um coro de vozes, de corpos, de pessoas. O coro é aqui simultaneamente personagem e personagens, conflito, espaço e emoção. As personagens que os intérpretes constroem insistem em romper as fronteiras e entrar no território dos seus narradores, e o espetáculo surge ele próprio como uma surpresa. Construído como um puzzle, em que as peças se vão encaixando até formar um todo. Diferente do alinhamento do romance, mas aproximando ‑se conceptualmente da sua estrutura, que se divide em capítulos e em diferentes narrativas que se cruzam.

Os felizes… porque, vistos assim, poderíamos ser nós!

ana LUEna

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Abriram ‑me a porta aos ensaios de O Filho de Mil Homens e algumas vezes, confesso, cheguei atrasada. Do lado de fora, estudei a discrição possível, o tempo de entrar sendo menos notada. Não chego a estes ensaios em verdadeira ignorância de causa, como acho sempre desejável: chego tendo já acompanhado um workshop de dramaturgia e a construção de uma conferência cénica em torno do mesmo material, em Dezembro passado. Conhecia, portanto, parte do caminho tentado, escolhido, e também abandonado, de que se foi fazendo a adaptação do romance. E fui reunindo um conjunto de notas à medida do que soube ver – de dimensão e densidade variável ao longo da cronologia –, com a cerimónia que deve merecer o trabalho inacabado, com a percepção e medida da sua fertilidade. Sugiro mais do que revelo, para não antecipar.

21 de Janeiro de 2014

0. Recordo ‑me de uma das primeiras imagens a que a Ana [Luena] recorreu para falar do espectáculo, a da árvore genealógica. Não deve ser por acaso que, face a este grupo de intérpretes que não reconheço, dirijo o olhar à procura das parecenças. Começo pelo panorama.

1. Grande parte do ensaio é de improvisação à volta da ideia de estigma. Maria, a mulher que uma manhã desata a falar com sotaque estrangeiro, passará o resto dos dias a alienar ‑se, estranhando e sendo estranhada. As propostas físicas que foram surgindo esclarecem o que em vida é impalpável, abstracto, pouco quantificável. Demonstram também como um gesto constante no eixo do tempo primeiro harmoniza, depois revela a qualidade pessoal da execução, e por fim estagna. No jogo entre três pessoas, é invariavelmente mais fácil designar e reconhecer um excluído.

2. Para uma companhia de teatro, o que teria de tão apetecível este O Filho de Mil Homens? Ou, por outras palavras, o que é que urgia manter na sua magra versão admissível em palco? Para além de um sopro de vida tão contingente quanto crível, o romance tem provavelmente o mesmo despudor que de há muito distingue os nossos melhores cronistas e prosadores, o saber tirar de ouvido. Aos olhos de quem ensaia, como aos olhos de quem escreve, em algum momento há ‑de parecer milagre todos os dias sabermos falar sem preparação e com eficácia. Valter Hugo Mãe é um desses escritores abençoadamente despudorados cuja ficção se adoça pelo ouvido. A força desta escrita faz ‑se de uma consciência de múltiplos usos da(s) língua(s) e da agilidade com que amplia as suas estruturas de invenção. Nos diálogos, como

Uma medida de fertilidadeconsTança carVaLho homEm*

* Tradutora, actriz,

et al.

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também no discurso indirecto livre, consegue essa aparência de “fala recebida” (estou a adaptar a preciosa expressão inglesa “received pronunciation” não porque me interesse o padrão, mas porque frisa a instância de transmissão e reconhecimento). Num conjunto de falantes tão diverso como é este elenco, com escolas tão diferentes ou nenhuma, é surpreendente como por vezes a menor deliberação ao dizer é a certíssima dicção para este tipo de texto. O casting de intérpretes menos treinados, as latitudes e sotaques aqui presentes, não são certamente da ordem do politicamente correcto ou exercício de acolhimento à comunidade; a diferença influi na criação e, quanto a mim, recebe ‑se como um patamar de verosimilhança.

11 de Fevereiro de 2014

3. Desde a última vez em que cá estive, o arco do espectáculo mudou substancialmente. A Margarida [Gonçalves] é agora uma espécie de regente: anuncia ou, melhor dizendo, dirige o anúncio do título alternativo do espectáculo. A encenação da leitura, ponto de partida para a conferência cénica, deu lugar à encenação de um concerto. Há um evento dentro do evento, porventura até mais do que um. Brinca ‑se com a noção de autoria, pondo em cena uma cadeira de realizador. Há zonas de condução e zonas de assistência.

4. A rádio e o púlpito são aqui quase a mesma coisa. O homem da rádio, uma personagem que mal existia e de que o Rodrigo [Santos] se apropriou sem qualquer embaraço, era originalmente mencionado apenas como voz na lista de suaves estímulos com que Antonino busca saciar ‑se. Agora, é uma voz que corporiza autoridade e doutrina. Defendida nessa ausência de rosto própria da função, e tão mais forte quanto replicada, é uma voz que vem de cima, que os de baixo assim acolhem. Fomenta outra ordem de desejo.

5. Ao ver a cena em que a virgem Isaura é disputada, a inevitável recordação de Amarcord, de Fellini. Levo do ensaio alguns instantâneos da improvisação em que se procura o tosco ardor da primeira sexualidade. Que brava juventude, tão perto das suas próprias descobertas, a deixar ‑se parecer simultaneamente indefesa e risível.

2 de Março de 2014

6. Hoje o cenário está praticamente todo montado. A praia insinua ‑se num passadiço, nas lonas verdes e brancas, a montanha abate ‑se no peso dos troncos e dos mastros. Apercebo ‑me de que, na paisagem, as chávenas de chá são menos adereço do que sonoplastia.

7. Ao ver o ensaio corrido, apercebo ‑me de que foi excluída uma cena imensamente cómica, a negociação escancarada de um casamento de conveniência. Percebo que fosse sentida como desvio, mas não deixo de lamentar. As aspirações pessoais e a contagem das galinhas, ambas cabiam no mesmo debate. Deixa saudades, a ironia, e a desfaçatez deste deve ‑e ‑haver.

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8. O Filho de Mil Homens não é um romance dócil. Sendo certo que a personagem central derrama sobre o livro a brandura da paternidade que descobre por vocação, isso não reduz a ambivalência característica da maioria das personagens. Reconhece ‑se o romance, e julgo que se sentirá o espectáculo, como profundamente meridional naquilo que tem de fustigado – de sol, de sal, de vida transpirada e comentada; viver como uma empena exposta, sempre a dar a cara, talvez ajude a explicar este nosso misto de humor acre e sede de redenção. A diluição das personagens por vários intérpretes evita simpatias fáceis, ajuda a veicular, aliás, essa ausência de polimento ou conforto em que há igual inclinação para o sumamente bom e o sumamente mau. O corpo em recuo da mulher preterida pode bem vir a ser um corpo activado na censura; a voz a quem ouvimos prósperos desígnios é também voz que instiga à violência.

9. A escala e a natureza de uma estrutura social são de algum modo sugeridas pela importância dada ao seu senso comum, inseparável da ideia de concílio e da própria história das cidades, das praças. O espaço aberto é um espaço de retórica e a retórica é um espaço de virtude ou pretensão dela. Tal como foi pensada, esta disposição da cena concorre para a assunção de que tudo é coisa pública e sujeita a escrutínio. Onde há caridade, entrevê ‑se uma urgência de préstimo moral, mais do que solicitude benévola, oportunidade para recriminações e sentenças; a vergonha, parecendo de outro foro, é mostrada como tão actuante a priori que apenas soprada, sussurrada, se transforma em mortalha dos vivos. Quem nos deu a ágora também nos deu o coro. E há uma tradição de urbanismo e de cena para ajudar a ouvir essa voz que, embora repartida, é uniforme. O espaço proposto, porquanto aberto, é o estreito afectivo em que a intimidade é atropelada pela rua.

10. Vim para casa a pensar no lugar que a generalidade do teatro, do cinema e da televisão em Portugal permite ao grotesco, ao feio, à escatologia. Ocorrem ‑me primeiro os casos em que são elementos ostensivos, a sua consumação vertida em alfa e ómega; só depois os mais raros exemplos em que os vi aparecer como parte do todo, vitalíssimo contraponto; e finalmente, em anos recentes, vi que se afirmavam como gosto adquirido (confrontar o regresso e legitimação de O Menino da Lágrima). Se estes dados me apontam um diagnóstico, arriscaria dizer que fomos sendo educados num paradigma de mimese algo purista, até decorativo, que dispensou e julgo dispensar ainda as muito aproveitáveis exigências do programa romântico, depois disso já tantas vezes reconfiguradas. Dou por mim a recuar a Victor Hugo, que em 1827, no prefácio a Cromwell, formulava de modo incontornável: “A musa moderna verá mais coisas com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz”.1 A grosseria dos gestos e das caricaturas que passaram da improvisação ao formato final não é um acidente, é a congruência de um fresco que se recusa a ser inócuo. O Filho de Mil Homens cultiva esta amplitude e o espectáculo homónimo, feliz e corajosamente, também.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia

1 HUGO, Victor –

Do Grotesco e do

Sublime: tradução do

prefácio de Cromwell.

Trad. e notas de Célia

Berrettini. São Paulo:

Perspectiva, 2002.

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Um dos mais bem ‑sucedidos subgéneros da ficção ocidental dá pelo nome de “romance de formação”, tradução para português do germânico Bildungsroman. Nessa modalidade ficcional se narram os sucessos e insucessos que pautam a emancipação afectiva, material ou intelectual de uma personagem que, para o efeito, começa jovem, quando não criança. Quer o acento recaia no rocambolesco, como no Wilhelm Meister de Goethe, ou no desengano amargo, como nas Ilusões Perdidas de Balzac (para referir dois espécimes canónicos), o vector é sempre o pathos, o dramatismo da hesitação e da decisão, a educação sentimental. Acompanhamos os dilemas, as escolhas, as vitórias, os fracassos e as dores de crescimento implicadas na génese de uma personalidade, não no que esse processo de formação recobre de particular e circunstancial, mas no que dele se pode induzir de universal, de condições iniciais comuns a todos os seres humanos. Não se estranha por isso o desígnio pedagógico que subjaz a muitas dessas narrativas, nem a sua especial fecundidade no século das Luzes.

O Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe (2011), não é um romance de formação no sentido estrito (como o é o romance de estreia, O Nosso Reino, de 2004). É antes um romance da meia ‑idade, do mezzo del cammin, do meio da vida, tendo por caminhante um homem de quarenta anos, Crisóstomo, pescador que sente o apelo da paternidade. Irá pois aprendê ‑la, passando da ignorância à experiência, da expectativa à concretização. Não por planeamento consciente, mas por instinto, lidando com os acasos, com aquilo que a vida lhe põe no caminho; e no caminho lhe aparece Camilo, de quem se fará pai. Esta a posição de partida, porque ao longo da narrativa outras personalidades experienciam uma educação sentimental, não isoladamente mas por fricção mútua, por coexistência e coabitação. No final do romance, aquelas que sobreviveram compõem uma família singular, “inventada”. Como frequentemente sucede na ficção de Valter Hugo Mãe – desde logo em O Nosso Reino –, o desenlace final é uma metamorfose, um sair à luz, um renascimento noutro modo de ser.

Aludimos acima ao iluminismo. Mas a óptica de O Filho de Mil Homens é exactamente a oposta do racionalismo setecentista e do seu optimismo técnico ‑científico. O que comanda estas personagens é o instinto, a natureza, a dimensão animal – não raro a dimensão bestial. É o corpo que pensa. Em cumplicidade sensória com os fenómenos elementais, com os bichos e as coisas rudimentares. Tal como sucede na poesia do autor a partir de A Cobrição das Filhas (2001) e Útero (2003), não há metafísica mas somente meta física (do corpo). A própria sabedoria é instintiva: é por instinto que Crisóstomo sabe que Antonino, o “homem maricas”, é “o melhor ser humano do mundo”.1 Dá ‑se o paradoxo de coexistirem no mesmo romance uma progressiva melhoria sentimental e moral das personagens e uma visão reaccionária do ser humano, que não é dado como produto da civilização

O amor dos infelizesrUi LaGE*

* Poeta e ensaísta

1 MÃE, Valter Hugo

– O Filho de Mil

Homens. 9.ª ed.

Carnaxide, Alfaguara,

2013, p. 157. De

futuras referências

bibliográficas

constará somente

o número de página,

entre parêntesis.

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e da cultura, mas da natureza e da criação. O “conhecimento lúcido do destino”, lemos, depende da conformidade “aos instintos mais genuínos”, condição da “fortuna de viver” (p. 202); a falta de tais instintos tem como consequência a “participação cínica ou anestesiada na criação”, no que pode ser lido como divisa do romance e esboço da sua tese. A civilização está ausente de O Filho de Mil Homens, salvo na sua forma mais arcaica, a de comunidade, e mesmo esta precariamente costurada, feita de laços provisórios ou hipócritas. Tudo se passa no mais completo alheamento da dimensão tecnológico ‑científica, do progresso material e social. Não há referências ao tempo ou ao espaço. A pequena comunidade de pescadores retratada não pertence a uma moldura histórica e civilizacional específica. Não surge sequer equipada de um complexo de costumes, ofícios e saberes organizado, salvo pelas alusões à pesca e à exploração pecuária de “bichos” (termo preferencialmente usado em detrimento de “animais”), bem como por alguns ditos da sabedoria popular e escolhas lexicais que decorrem do calão ou de regionalismos. Imperam a crendice e a superstição generalizadas. Alusão ainda, no domínio espiritual, a uma fé em Deus e ao panteísmo de Crisóstomo, que pressente a sua ligação “a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si” (p. 229). Não espanta, em tal cenário determinista, que a felicidade seja “a aceitação do que se é e se pode ser” (p. 94) e que, por inversa ordem de razão, consista para o “homem maricas” em “ser o que não se pode” (p. 122).

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Os acontecimentos narrados em O Filho de Mil Homens tanto podem ter lugar num povoado do litoral português como numa aldeia piscatória da Noruega: para tal bastaria adaptar os nomes das personagens. Sem outras referências a vivências marítimas que não a casual ocorrência das palavras “mar” e “praia”, o espaço diegético podia até coincidir com o de uma aldeia do interior transmontano. Tais acontecimentos podem ter lugar no presente como numa Idade Média, ou até num futuro distópico. Porque se trata de um mundo indiferenciadamente pré ‑científico ou pós ‑científico, onde se acredita em coisas absurdas e não cabe qualquer arrumação racional dos fenómenos. Um mundo com algo de demoníaco, pelo qual os séculos não passaram, nem tampouco a informação e a educação. Notámos a referência a um hospital (p. 94), a um serviço de urgências (p. 98) e, ocupando quatro ou cinco linhas, a um “governo” e a “cidadãos aflitos numa sala de espera” (p. 136) – e aflitos porque solteiros, mais que por maleita física. Em dada passagem surge a referência a “rodas de carroças” (p. 54), que só não remete a diegese para um tempo arcaico porque o descarta a referência ao visionamento da televisão (p. 56). Nenhum topónimo. Nenhuma data.

Quer os dotemos de carga negativa ou positiva, os conceitos de civilização e de sociedade foram cancelados em O Filho de Mil Homens para darem lugar a um microcosmos comunitário, sem passado e sem futuro. O mundo foi reduzido à sua molécula essencial: a família. O que levará um escritor a tão radical e arriscada decisão? Para além, entenda ‑se, de explorar até aos limites o conceito de família e, no seio desta, a natureza do amor. Julgo que a resposta, que vale também para a poesia de Valter, reside no expressionismo que funda o seu universo estilístico e narrativo. O Filho de Mil Homens é um romance expressionista.

Recordemos que o expressionismo começa por surgir na Alemanha do início do século XX como reacção ao positivismo e à alienação do indivíduo suscitada pela industrialização crescente. Profundamente anti ‑racional, fazia a apologia da intuição, da emoção, da subjectividade, da vertigem da vida. Expressionismo latente em todos os aspectos desta obra. Constatamos o fascínio nosológico pela enfermidade e pela deformidade, pelo grotesco e pelo escatológico, de que é o mais destacado exemplo a anã que dá entrada no segundo capítulo. Características zoomórficas ou objectais são comumente emprestadas ao retrato dos indivíduos: as mulheres do povo escondem os “focinhos” sob capotes (p. 31); as mulheres não possuem vagina, mas “fenda” ou “ferida” pela qual “sofreriam eternamente” (p. 50). Abundam os diminuídos, os estropiados, os imbecis, os indigentes. Tal zoomorfização é transportada para o acto sexual, que só é sexual na dimensão reprodutiva, e não raro caracterizado pela bestialidade. Os nascituros e os filhos são “crias”, há uma rejeição da prole ou reconhecimento nela de uma certa monstruosidade congénita. Essa nosologia leva ‑nos aliás a uma convicção do naturalismo de finais do século XIX, absorvida pelo expressionismo (que no mais se lhe opôs): a da legibilidade moral da fisiologia humana e a crença na transmissão hereditária de vícios e traços de carácter à geração seguinte, num ciclo infernal. É vergonha o que as mães sentem pelos seus nascituros malformados, “filhos mal gerados”, “porque eram vistas como mães más, com o corpo burro, um corpo também ele defeituoso no processo de imaginação

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dos filhos” (p. 148). Tal faz com que Matilde, num passo em que contempla o rosto do filho homossexual, tenha tido “a certeza de que era culpada” pela sua degenerescência e de que “devia tê ‑lo rachado ao meio quando ele chegou aos dezasseis anos” (p. 126). A única esperança é a do rompimento desse ciclo.

A questão, a estranheza, é que essa absorção da moral pela fisiologia não acontece no quadro esterilizado de uma análise clínico ‑médica, de laboratório social, como num Zola, mas no quadro de uma emotividade brusca, puramente reactiva, que é a do universo infantil – quer pela bondade quer pela maldade irreflectidas. Mas também pelo desenho de um mundo elementar, miniaturizado, exíguo em adereços e descrições, que deve algo aos contos infantis e aos contos de fadas, e mesmo pelo recurso a diminutivos aparentemente inócuos mas que dissimulam malevolência, não raro atribuídos às mulheres do povo, espécie de coro colectivo do preconceito e da condenação comunitários. Trata ‑se, para o autor, de reproduzir dialectalmente e mentalmente a miséria espiritual e moral de um meio humano desesperado, com particular sucesso no que toca à psique beata das mulheres do povo, mas sem lhe procurar as causas. A ordem moral, quando existe, baseia ‑se em referentes primários, que a visceralidade dos comportamentos humanos tende a esfrangalhar.

Tudo em O Filho de Mil Homens se precipita em resultado de pecados originais, de ditos e acções impensadas ou de um destino que empurra as personagens para o “risco absoluto” (p. 43). Tudo se desenrola sob o signo do excesso e da hipérbole, com as cores puras do fauvismo, sem lugar à temperança. E sem lugar à inteligência, uma miragem no universo em que existem estas personagens. Nunca o espírito e o pensamento, como chega a desejar Isaura, são ilibados do corpo (p. 71). A condição da amada de Crisóstomo é a de quem faz “da tristeza ou da alegria estados de espírito muito elementares” (p. 245). As personagens d’O Filho de Mil Homens não possuem dimensão interior porque a sua dimensão interior é o corpo. Não se compreendem a si mesmas, nem querem: deixam ‑se cair pelo declive do corpo e dos sentidos. Caem para dentro de si mesmas, como nos é dito regularmente. Veja ‑se, por exemplo, como o instante do parto é antevisto pela anã como cataclismo que a irá desfazer por dentro, dada a exiguidade uterina. O parto é sujo e estraga. Diante dos fenómenos e transformações do corpo feminino experimenta ‑se espanto e morbidez. Ao mesmo tempo, a infertilidade é tida pela pior das maldições. Alfredo, avô de Camilo, pensava “que os filhos podiam ser só uma vingança contra o peremptório da morte”, variação sobre o “génio da espécie” schopenhaueriano. A vida, sentencia Matilde ao filho homossexual, é escolher uma moça e fazer ‑lhe filhos. As leis da existência humana não se distinguem aqui das leis da natureza, “cumpridas”, como crê Matilde, no “fazer do filho um homem” e “esperar depois pelos netos” (p. 138). A sensualidade é sempre visceral, o erotismo descende de Bataille, é libido moriendi concretizada num estertor efémero, a que se somam pulsões homicidas no que concerne ao destino do “homem maricas”, nutridas pela comunidade: “Mate ‑o. É um mando de Deus”, aconselha uma vizinha, no que será a versão mais benigna de um conjunto de imagens francamente perturbadoras.

A decisão de anular a dimensão civilizacional do ser humano permite expor, sem concessões, a vulnerabilidade e o desabrigo de uma camada social enjeitada, a vulnerabilidade de indivíduos malquistos, existindo

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no completo alheamento da Pólis, da res publica, do Estado, encurralados no corpo e numa moral que dele mana como se excrescência fosse. A exposição escatológica da miséria moral, o exame intuitivo do “amor dos infelizes”, o único a que as personagens têm direito (p. 61), é mais inquietante que uma notação descritiva, neutra, entretida a partir de um miradouro sócio ‑histórico. Suscita a piedade. Mas não deixa de enfraquecer a obra. Porque o homem é também produto do diálogo com o seu tempo e com o seu espaço. Uma construção histórica e política, tal como o são a família e a paternidade. É devido a tal descontextualização sócio ‑histórica que a sanha homofóbica do povo em relação ao “homem maricas”, por exemplo, surge destituída de verosimilhança. De facto, a exageração paroxística de detalhes realistas abre caminho, por paradoxo, a uma espécie de surrealidade. Não sem efeito cómico, como ilustra o episódio em que Rosinha, a caseira de Matilde, considera a proposta de casamento feita por um ancião desconhecido. O cómico também decorre da absoluta indigência moral de algumas personagens, que podiam ter sido transplantadas de um bairro suburbano da Roma de Pasolini ou de Ettore Scola.

O romance é coerente até às últimas linhas com o alheamento da civilização e da sociedade. A família é inventada quando os seus membros “já não precisavam de falar. Pertenciam ‑se e comunicavam entre si pela intensidade dos sentimentos” (p. 252). Completa a metamorfose, as personagens são dispensadas da característica mais específica do ser humano, aquilo que por excelência lhe permite transcender a natureza e arrancar ‑se à condição animal: a fala.

Em paralelo, Valter Hugo Mãe leva a cabo um trabalho de campo ligado à investigação e descoberta da natureza do amor. Não que o amor seja aqui um sentimento espiritualizado ou idealizado – é quase sempre visceral, fauve –, mas ao longo do romance é ‑nos apresentado sob várias luzes e gradações, consoante a personagem que o focaliza e a fase do processo de formação afectiva. O amor é “ensanguentado e difícil” no capítulo terceiro, é o contrário da sanidade no capítulo sete, é “uma predisposição natural para se ser a favor de outrem” (p. 136), é “mérito” (p. 142), “é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conduzir ao sossego” (p. 157). Esta é a metamorfose comum a todas as personagens, concretizada na recomposição familiar final, superação, através do “sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade” (p. 213), da bestialidade e da torpeza, aquisição de uma dimensão interior que transcende o corpo.

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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companhia fundada em 1995, no porto, o Teatro Bruto produziu até ao momento quarenta espetáculos teatrais. É um projeto artístico que se materializa numa série de espetáculos de cariz transdisciplinar, cuja organização em ciclos de reflexão tem propiciado uma múltipla experimentação cénica sobre um variado conjunto de temas. Uma das matrizes diferenciais da companhia é a de privilegiar a encenação de textos originais, escritos para produções próprias, o que tem impulsionado o surgimento de novos dramaturgos, oriundos de diferentes géneros da literatura portuguesa.o Teatro Bruto investe num trabalho de carácter experimentalista e laboratorial, numa incessante procura de referências artísticas, no aprofundamento de temáticas específicas e no estímulo ao surgimento de novas dramaturgias portuguesas. Dá continuidade ao desenvolvimento de projetos de encenação que promovam o diálogo inter e pluridisciplinar, incorporando elementos de outras áreas artísticas e explorando temáticas que alimentam o pensamento artístico contemporâneo. É um grupo aberto que conjuga esforços e interesses diversos numa direção una, envolvendo uma equipa de criadores coesa num projeto alargado e complexo, com direção artística da encenadora residente ana Luena. ao afirmar

os projetos teatrais enquanto espaços de reflexão e valorização da língua portuguesa, propicia uma relação privilegiada com escritores disponíveis para integrar ativamente os processos criativos. o programa para 2013 -14 consolida a relação já estabelecida com Valter hugo mãe, que se concretiza na escrita de novos textos dramáticos para o Teatro Bruto, na adaptação do romance O Filho de Mil Homens  e na reposição de espetáculos anteriores, também de sua autoria. os espetáculos da companhia assumem sempre uma forte componente musical, com a colaboração, nos seus processos de criação e nos espetáculos, de compositores e intérpretes. há um claro e propositado investimento, ao longo dos anos, no desenvolvimento de uma estética arrojada, “bruta”, que explora o carácter sensorial da aventura cénica, destacando -se o trabalho do intérprete e o envolvimento plástico e sonoro das suas produções, articulado com o aprofundamento dos aspetos referenciais da criação teatral. no complemento da atividade que desenvolve, realiza ações de formação na área do teatro, dirigidas a um público tão amplo quanto possível.

Teatro Bruto

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ficha técnica tnsj

coordenação de produção Maria João Teixeiraassistência de produção Eunice Bastodireção de palco (adjunto) Emanuel Pinadireção de cena Cátia Estevesmaquinaria de cena António Quaresma, Carlos Barbosa, Joel Santosluz Filipe Pinheiro, Abílio Vinhas, Joaquim Madail, Nelson Valentesom João Oliveira, Cristóvão Carvalho

APOIOS tnsj

apoios à divulgação

agradecimentos tnsj

câmara municipal do portomr. piano/pianos rui macedopolícia de segurança pública

o Teatro Bruto é uma estrutura financiada pelo

ficha técnica teatro bruto

construção de cenário Américo Castanheira – Tudo Façoestagiários de cenografia Vitória Branco, João Abade (alunos da Escola artística de soares dos reis)vídeo e fotografia promocional Paulo Cunha Martins

apoios teatro bruto

agradecimentos teatro bruto

clínica Dentária de monsantoisabel pereiraEduardo BrandãoGabriela santoméEnVinorEquipa técnica do rivoli Teatro municipalJoão FontesVitória paula de sousarute pimenta & nuno simõesExternato Delfim FerreiraFundação casa da músicaFundação de serralvese adélia abreu, adriana Vaz de carvalho, afonso carvalho, andré rodrigues, antónio cabral, carla carneiro, constança carvalho homem, idalinda Fitas, maria Joana Félix, Jorge martins, Luís monteiro, paula meneses (participantes do Laboratório de Dramaturgia e criação O Filho de Mil Homens)

Teatro Brutorua da Fábrica social, s/n 4000 portoTm +351 918 799 571Tm +351 960 268 843

Teatro Nacional São Joãopraça da Batalha4000 -102 portoT 22 340 19 00

Teatro Carlos Albertorua das oliveiras, 434050 -449 portoT 22 340 19 00

Mosteiro de São Bento da Vitóriarua de são Bento da Vitória4050 -543 portoT 22 340 19 00

[email protected]

EDIÇÃO

Departamento de Edições do TNSJcoordenação João Luís Pereiramodelo gráfico Joana Monteirocapa e paginação João Guedesfotografia João Tunaimpressão Lidergraf – Artes Gráficas, SA

não é permitido filmar, gravar ou fotografar durante o espetáculo. o uso de telemóveis ou relógios com sinal sonoro é incómodo, tanto para os intérpretes como para os espectadores.

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