Teatralidade e Textualidade, Sílvia Fernandes

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* Sílvia Fernandes é professorado Programa de Pós-Graduaçãoem Artes Cênicas da ECA/[email protected]

1 Em seuDicionário deTeatro (editado no Brasil pela

Perspectiva, em 1999, comtrad. de J. Guinsburg e MariaLúcia Pereira), Pavis defineteatralidade como “ aquilo que,na representação ou no textodramático, é especificamenteteatral (ou cênico)”, ressaltando,logo a seguir, que “o conceitotem algo de mítico, deexcessivamente genérico,até mesmo de idealista eetnocentrista” (p. 372). Emestudo posterior, “La théâtralité

en Avignon”, publicado naedição revista e ampliada deVoix et images dela scène. Versunethéoriedela pratiquethéâtrale(Villeneuve-dAscq, PressesUniversitaires du Septentrion,2000, p.317-337), o ensaístaretoma o conceito para operar aleitura a que me refiro.

Teatralidade e textualidade.A relação entre cena e textoem algumas experiências de teatro

brasileiro contemporâneo.Sílvia Fernandes*

Para que serve o conceito de teatralidade? Esta é a questão queinicia um texto recente de Patrice Pavis, e antecede um esboço deteatralidades plurais, em que o ensaísta discrimina a idéia do especi-

ficamente teatral a partir de práticas cênicas concretas, em geral di-vergentes, apresentadas no Festival de Avignon de 1998. Com baseem alguns espetáculos da mostra, Pavis projeta vetores múltiplos deteatralidade, parecendo reconciliar-se, ou até mesmo liberar-se doconceito que considerava, em seu dicionário, algo mítico, excessi-vamente genérico e idealista 1. Na operação de leitura das teatrali-dades plurais de Avignon, mostra como é possível dissociar o termode qualidades abstratas ou essências inerentes ao fenômeno teatral,para trabalhá-lo a partir do uso pragmático de certos procedimen-

tos cênicos e, especialmente, da materialidade espacial, visual, tex-tual e expressiva de escrituras espetaculares específicas. Segundo Pa-vis, para o espectador aberto às experiências da cena, a teatralidadepode ser, por exemplo, uma maneira de atenuar o real para torná-loestético, ou erótico, ou uma terapia de choque destinada a conheceresse real, e a compreender o político, ou ainda um embate potentede regimes ficcionais que parecem disputar a primazia de constitui-ção do teatro, ou simplesmente, e por que não, o discurso linear deum narrador tencionado para o final do mito, mas que volta sempre

ao princípio. Ou uma categoria que se apaga sob formas outras deperformatividade, descobrindo campos extra-cênicos, culturais, an-tropológicos, éticos. Ou a capacidade de mudar de escala, de sugerire fabricar o real com a voz, a palavra, o som e a imagem.

Procuro, neste texto, examinar três experiências cênicas à luzdessa noção migratória de teatralidade, que oscila na forma e na fun-ção à medida que percorre espaços teatrais diferenciados. Tomo comoponto de partida o ensaio canônico de Roland Barthes, para especu-lar sobre sua validade contemporânea. Se Barthes vê na teatralidadeo teatro menos o texto, essa “espessura de signos e sensações” queliga a uma espécie de “percepção ecumênica de artifícios sensuais,gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob aplenitude de sua linguagem exterior”, hoje parece arriscado dissociarteatralidade de textualidade, já que muitas vezes a criação conjuntade cena e texto supera a polarização entre as duas instâncias e con-tribui para a diluição de fronteiras rígidas, abrindo espaço a um vasto

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critiques. Paris: Seuil, 1964, p.41-42.

3 Ainda que a coralidade nãoseja o tema deste texto, éinteressante constatar a forçadessa figura no teatro dosanos 90, incluindo algumascriações de grupos brasileiros,como é o caso do Vertigem.A reivindicação da coralidadeaparece como uma dasraízes do trabalho do grupo,

especialmente quando se levaem conta o fundamento coralque o sustenta. Como observaChristophe Triau em textorecente, “Ser em conjunto,falar da comunidade, falar doheterogêneo tanto quantodo grupo, e da dialéticapermanente entre os dois,abrir a representação para oespectador”, são os fundamentosdessa noção que tem omodelo do coro antigo como

referência, na medida em quereivindica um funcionamentocoral da produção cênica,que se manifesta mais comoaspiração e tensão do que comorealização efetiva. Ver a respeitoo número 76-77 deAlternativesthéâtrales, “Choralités”, outubrode 2003.

campo de práticas que subsidia e informa tanto a produção do textoliterário quanto do texto cênico 2. É o que se percebe, por exemplo,nos chamados processos colaborativos de produção de dramaturgias eencenações baseadas em pressupostos construtivos semelhantes, o quenão significa, evidentemente, uma perda total de especificidades, massem dúvida explica, ao menos em parte, a inclinação desses textos

para a incorporação de alguns paradigmas cênicos. Talvez os trabalhos do Teatro da Vertigem, dirigidos por An-

tonio Araújo, constituam um campo de teatralidade fértil para sepensar a relação entre texto e cena no teatro brasileiro contemporâ-neo. A divisão da autoria dos espetáculos entre atores, dramaturgo,diretor e demais artistas agregados, os longos processos criativosrespaldados em pesquisa conjunta, a ausência de um treinamentoespecífico que garanta a sintonia dos desempenhos, o recurso a pro-cedimentos de composição individualizados, que podem tangenciar

a autobiografia e funcionam, em geral, como filtros idiossincráticosda experiência comum, a troca de dramaturgo a cada novo proces-so, o convite a colaboradores externos, que se juntam ao núcleooriginal apenas para a realização de um projeto e, especialmente,a potência da escritura cênica de Araújo, vetor de unificação delinguagem mantido desde o primeiro espetáculo,Paraíso Perdido, de1990, talvez sejam os principais fatores de definição da teatralidadehíbrida do Vertigem. A natureza dos espaços públicos escolhidospara as apresentações, com carga simbólica e política explícita –

uma igreja paraParaíso Perdido, um hospital paraO livro de Jó, umpresídio paraApocalipse 1, 11 – e a agressiva ocupação desses luga-res, nos desvãos mais íntimos e nas dimensões mais perigosas, commarcações de movimentos expandidos em largura, profundidadee altura, e um desempenho que agride o espectador pela violentaexposição corporal do ator, mantido nos limites de resistência físicae psíquica, dão aos espetáculos a contundência de eventos de risco,de formalização instável, quase fluxos processuais de teatralidade,inacabados e atualizados a partir dos vetores referidos, de ocupaçãoespacial e fisicalidade. A par disso, ainda que a definição da escrituracênica de Araújo aconteça aposteriori, e funcione como uma espéciede edição das contribuições individuais, é indisfarçável sua marcaforte no transbordamento barroco da cena, excessiva na movimen-tação ascendente, em espiral, na composição distorcida das figuras/personagens, paradoxalmente infiltradas de realidade e alegoria, noresgate da expressividade integral dos corpos distendidos até o limi-te, e potencializados no movimento coletivo acelerado e convulso,uma espécie de coralidade cinética que arrasta o espectador e o en-volve no desconforto de um corpo-a-corpo real 3. Talvez a teatra-

lidade do Vertigem se deva, em parte, à habilidade de compor essastrajetórias físicas e metafóricas, que desestabilizam o espectador.

EmO Livro deJóa proliferação descentrada de potencialidadescênicas era submetida ao vetor unificador da técnica dramatúrgica deLuís Alberto de Abreu, autor teatral de extensa prática e teorias preci-sas sobre o que um texto de teatro pode ser. Ainda que o dramaturgo

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4 É o que acontece na passagemem que a mulher de Jó, aMatriarca, lastima a morte

dos filhos: “Jó – Então Jó selevantou, rasgou seu manto,raspou sua cabeça, caiu porterra, inclinou-se no chãoe disse: ‘Nu saí do ventrede minha mãe. E nu para lávoltarei. Deus me deu, Deusme tirou. Bendito seja o nomede Deus’.

Matriarca – A mulher de Jó,porém, amaldiçoou o reto/otorto desígnio de Deus,que ainda não era morto. Eaconteceu que a mulher de Jóe mãe de seus filhos, que agoraestavam mortos, enlouqueceude dor e gritou: ‘Deus, devolvemeus filhos!’

 Jó – Bendito seja o nome deDeus!

Matriarca – Maldito!

 Jó – Não blasfemes!

Matriarca – ‘Alguém terá debeber minha fúria! Não sou

filha de sua espúria resignação!’Assim falou a mulher de Jó, e oeco maior de seu grito sacudiua terra e os homens aflitoschoraram.” Luís Alberto deAbreu, O livro de Jó, in Teatroda Vertigem. Trilogia Bíblica,São Paulo, Publifolha, 2002,p.123-124.

se pusesse a serviço do processo colaborativo, funcionando a partirdosworkshopse das improvisações dos atores, conseguia uma eviden-te unidade em seu texto, jogando, inteligentemente, com as fraturasde discurso surgidas da diversidade dos materiais expressivos, paratransformá-las em procedimentos de composição. Amparado no fiocondutor do livro bíblico, Abreu definia seu princípio construtivo na

alternância entre a narrativa e a dramatização, compondo situaçõesna leve oscilação entre as falas épico-líricas e as propriamente dra-máticas, dialogadas e armadas no confronto entre as personagens. Apassagem, entretanto, era feita sem cortes, num movimento silenciosoque levava o ator-Jó, por exemplo, a iniciar um episódio narrando suafé para, sem rupturas, opor-se dialogicamente à mulher que lastimavaa perda dos filhos. É interessante observar que, na construção textual,esse diálogo, paulatinamente, cedia espaço a nova narrativa, pela al-ternância de tempos verbais no passado, em terceira pessoa, e no pre-

sente, em primeira, como se as figuras se projetassem por meio de umdistanciamento elaborado, observando-se de fora para, na seqüência,agirem as paixões narradas, mas mudassem de estatuto sem alarde,organicamente, conferindo ao texto a estranheza adequada à disso-nância daperformance, sem lhe impor, no entanto, uma estrutura total-mente harmônica4. Essa oscilação, que segundo Jean-Pierre Sarrazacé rapsódica, pois se faz da montagem de elementos líricos, épicos edramáticos, resultava numa narratividade que, apesar de ostensiva, nãoprocedia por mecanismos de epicização do tipo brechtiano 5. Quan-

do narravam seus papéis, os atores/personagens não assumiam umolhar crítico nem tinham pretensão de expor objetivamente os fatos.Ao contrário, filtrado pelo subjetivo, o texto ganhava um violentoefeito poético, que lhe dava a qualidade de um poema dramático. Esseprincípio lírico forçava um desdobramento dos desempenhos, já queos atores funcionavam como narradores, testemunhas e intérpretes desujeitos de intensa expressividade.

A multiplicidade de relações salientava a ordenação estruturaldo texto, fruto da admissão de pressupostos cênicos incontornáveis,pois atores-criadores evidentemente não prescindiriam de solos ex-pressivos e nenhuma progressão dramática seria mais forte que a ca-minhada teatral num hospital desativado, do saguão de entrada à salade cirurgia, no último andar. Incorporando, portanto, as exigênciasdessa teatralidade específica, o dramaturgo compôs seu texto comouma espécie de drama de estações, pautado em quadros autônomosinterligados pelo protagonista. Dessa forma, apresentava a jornadaficcional de Jó em busca de Deus e, ao mesmo tempo, seguia aregulação espacial planejada por Araújo no Hospital Humberto I,organizando o enredo numa trajetória ascensional, tencionada para

o final transcendente, que encerrava o sofrimento numa epifaniabastante discutível, uma espécie dedeus ex machina literal.

EmApocalipse1, 11 a entrada do novo dramaturgo, FernandoBonassi, altera as coordenadas de criação. A falta de especialização deBonassi no trabalho de teatro, aliada à experiência anterior no jorna-lismo, no romance, no conto minimalista e nos roteiros de cinema,

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coloca para o grupo, já de saída, um parceiro avesso a modelos rígi-dos de composição e indica um exercício de correspondências entredramaturgia e roteiro, prosa e reportagem, ou entre produção teatral,literária e visual, que realmente se efetivou. A par disso, o interessepelo texto de Bonassi revela a preocupação do grupo com o momentobrasileiro de extrema exclusão social e com a crescente violência ur-

bana, medida nos índices alarmantes de criminalidade e insegurançapública. No texto deApocalipse1, 11, Bonassi transpõe esse imagináriodo medo e da violência em duplo registro. Por um lado, persiste o re-alismo bruto de algumas criações anteriores, em que parece importarmais o referente extra-teatral que os processos de elaboração ficcional,e prevalece a relação imediata, quase selvagem, com o real, que às vezesaproxima o texto de um mero registro da experiência urbana, comoacontecia na cena de um negro espezinhado pelo preconceito racial.Por outro lado, ao associar a situação social brasileira a um imaginário

apocalíptico, especialmente o do livro bíblico de João, o dramaturgoopõe a esse hiper-realismo soluções textuais de caráter visual, espacial,gestual, cinético, com projeções de imagem que Anne Übersfeld con-sidera micro-cenários de palavras, e que diluem o impulso documentalanterior 6. Essa oscilação permitia que texto e espetáculo transitassemda personificação de idéias a um naturalismo feroz, e alternassem figu-ras alegóricas, como Talidomida do Brasil e o Anjo Poderoso, a cenasde uma brutalidade desconcertante, que à primeira vista pareciam maisum recurso de reprodução do real. No entanto, um observador atento

percebia uma alteração de estatuto nessas breves intervenções de rea-lidade. Pois a impressão que se tinha era de que os criadores procura-vam anexar fragmentos desse real ao tecido teatral que se apresentava.Era visível, por exemplo, que os traumas da mobilização inicial para oespetáculo, como a queima do índio pataxó, em Brasília, e o massacredos cento e onze detentos no presídio do Carandiru, em São Paulo,ganhavam analogias brutais, como a cena do corredor polonês, em queos espectadores, pressionados contra a parede, no escuro, eram roçadospelos corpos que os atores carregavam sob rajadas de metralhadora; oua cena do ator crucificado, suspenso pelos pés de uma altura alarmante,ou a da atriz escancarando o sexo diante de espectadores perplexos, ousofrendo agressões físicas reais, depois que um ator urina em seu corpo.A sofrida experiência do elenco e a exposição de sua intimidade emestados extremos, em que os corpos pareciam manifestar o estado deguerra urbano, funcionava como fragmento do horror da vida públicabrasileira das últimas décadas. Era como se a violência dessa teatralida-de espetacular, às vezes próxima do monstruoso, abrisse frestas para ainfiltração de sintomas dessa realidade. O que definia o parentesco daexperiência com alguns dos processos mais radicais da performance

contemporânea, pelo enfrentamento dos limites de resistência física eemocional dos atores, pela resposta agressiva às questões políticas e so-ciais da atualidade brasileira e, especialmente, pela diluição do estatutoficcional. Era evidente que, nesses momentos de intensa fisicalidade eauto-exposição, a representação entrava em colapso, interceptada peloscircuitos reais de energia desses vários sujeitos7.

5 Em vários estudos, Jean-PierreSarrazac trabalha o conceito derapsódia ou de autor-rapsodo,como em “L’oeuvre hybride”,inL’avenir du drame, Paris, Circé,1999, p.36-43.

***

6 Anne Ubersfeld usa oconceito de hypotyposis, queempresta de Quintiliano, viaHenri Morier, para referir-se àconstrução de micro-cenáriosde palavras, que contamhistórias ou projetam quadros,por meio dos quais o espectadorcria imagens sem o auxílio deestímulos visuais. De acordocom Ubersfeld, uma dascaracterísticas essenciais dessafigura é a preservação de certaautonomia em relação à fábulae à ação. Ver a respeito LirelethéâtreIII. Ledialoguedethéâtre,Paris, Belin, 1996, p.137-140.7 A respeito das referidaspráticas da performance, verespecialmente COHEN,Renato,Performancecomolinguagem, São Paulo, Perspectiva,1989, eWork in progress nacena contemporânea, publicadopela mesma editora em 1998.

 Também de Cohen, consultaro ensaio “R ito, tecnologiae novas mediações na cena

contemporânea brasileira”,SalaPreta3, 2003, p.117-124, alémde BERNSTEIN, Ana, “Aperformance solo e o sujeitoautobiográfico”,Sala Preta1,2001, p.91-103.

8 COHEN, Renato. Rito,tecnologia e novas mediações na

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cena contemporânea brasileira.Sala Preta, 3, 2003, p.117-124.

É inevitável especular sobre o possível apagamento da repre-sentação nessa situação de turbulência expressiva. Pois parece claroque um teatro de vivências e situações públicas não pretende apenasrepresentar alguma coisa que não esteja ali. A impressão que se temé de uma tentativa de escapar do território específico da reprodu-ção da realidade para tentar a anexação dela, ou melhor, ensaiar sua

presentação, se possível sem mediações. Nesse movimento, o que pa-rece evidente é a dificuldade de dar forma estética a uma realidadetraumática, a um estado público que está além das possibilidadesde representação, e por isso entra em cena como resíduo, comopresença intrusa na teatralidade, indicando algo que não pode sertotalmente recuperado pela simbolização.

De certa forma, faz parte do mesmo processo a incorpora-ção de não-atores a algumas manifestações cênicas contemporâneas,como acontecia em Ueinzz – Viagema Babel , criado por Renato

Cohen e Sérgio Penna com pacientes do hospital psiquiátrico “ACasa”, em 1997, talvez um dos exemplos mais contundentes deuma experiência que inclui corpos desviantes, pela doença, pelaexclusão, pela transgressão da norma, para que interfiram na cenacom sua presença extra-cênica, que se apresenta mais como sintomaque como símbolo. A experiência cênica desses corpos no limiar daloucura define uma das etapas de um percurso que Renato Cohendenomina “teatro do inconsciente” e encerra comGothamSão Pau-lo, de 2003, seu último trabalho. No resgate de alguns pressupostos

do teatro da crueldade de Antonin Artaud, Cohen aproxima essa“cena da loucura” de inúmeras experiências limítrofes do teatrocontemporâneo como, por exemplo, o trabalho de Bob Wilson como autista Christopher Knowles, na tentativa de instaurar o que Gro-towski chama de pára-representação. É evidente que, nesse tipo deteatro, fica difícil discernir texto e cena, e o tênue roteiro ficcionalque o encenador descreve como a viagem de uma trupe nôma-de no deserto, em busca de esclarecimento do enigma primordial,ganha em cena uma dimensão quase trágica. Os atuantes cruzammitos inaugurais, como os do labirinto, da travessia e dos percursosdo herói, a fragmentos de Hesíodo, Paulo Leminski e Ítalo Calvino,propostos pelo encenador, que se rearticulam e se potencializamem seus corpos. Segundo Cohen, coube a ele e a Sérgio Pena, osdiretores-dramaturgos, a tarefa hermenêutica de trabalhar essa in-tertextualidade, dando conjunto cênico aos fragmentos cifrados queiam se apresentando no processo, e se aliavam aos excertos literáriose filosóficos, formando um complexo textual feito de lógicas para-doxais como a do “labirinto que anda” 8.

Para o espectador, o que emergia dessa teatralidade assusta-

dora eram densidades, pesos, signos opacos da experiência humanamais abissal que, entretanto, paradoxalmente, às vezes vinham or-ganizados por princípios de condensação e deslocamento, meca-nismos específicos da elaboração onírica que Freud discrimina eque definem princípios de operação da arte contemporânea. Pormeio deles, uma partitura instável de palavras, espasmos e movi-

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9 É o que Antonin Artaudsugere, por exemplo, no finalde “O teatro e a cultura”,quando compara os atores asupliciados que fazem sinaisa seus carrascos dentro da

fogueira. Evidentemente, oconceito de presença não é tãosimples, e requereria tratamentoespecífico. Basta lembrar, porexemplo, os argumentos de

 Jacques Derrida em “O teatroda crueldade e o fechamentoda representação” ou mesmoem “A palavra soprada”, ambospublicados no Brasil pelaPerspectiva, emA escritura ea diferença,1971. O ensaio de

 Jean-François Lyotard, “Le dent,

la palme”, foi publicado emDesdispositifs pulsionelles,ChristianBourgeois, 1994.

10 LEHMANN, Hans- Thies Lehmann.Letheatrepostdramatique. Trad. Philippe-Henri Ledru, Paris: L’Arche,2002, p. 104.

mentos se construía entre os atores, o espaço e o espectador. Eravisível a tentativa dos encenadores de organizá-la em esquetes fixos,acompanhados por música ao vivo, mas os atores sempre preferiama deriva. Interrompiam suas performances para assistir à cena dosoutros, ou para encarar o público, e retomavam, mais tarde, as se-qüências inacabadas, improvisando monólogos em vozes inaudíveis,

ou glossolalias estranhamente amplificadas pela eletrônica montadano espetáculo. O que Renato Cohen considerava uma “estriden-te partitura de erros”, de achados e de reinvenções, ia constituin-do, diante do público, uma espécie de ritual laico, plasmado numatemporalidade incomum, uma espécie de disritmia feita de pausasentre os monólogos e os movimentos, que colocava o espectadorem estado de produção. A verdade é que a relação entre o textoe sua presentação ficava profundamente alterada por esses novossujeitos da cena, que criavam uma espécie de suspensão da teatra-

lidade, sustentando-se no acontecimento e não na representação. Talvez acontecesse, nessa experiência, o que Jean-François Lyotardchama de “teatro energético”, para referir-se a um teatro que nãoprocura a significação, mas as forças, as intensidades e as pulsões dapresença. Uma proposta que, de certa forma, já se delineia na poé-tica artaudiana, como uma teatralidade de gestos, figurações e enca-deamentos, que procura evitar os signos de ilustração, indicação ousimbolização, na tentativa de projetar-se como corrente de energiaque atua como sinalização de limiar 9.

A encenação de Enrique Diaz deA paixão segundo G.H., inter-pretada por Mariana Lima em 2003, talvez esteja no outro extremodessa linhagem de teatralidades do real. É um espetáculo que confi-gura exemplarmente o que o ensaísta Hans-Thies Lehmann chamade teatro pós-dramático, referindo-se, entre outras coisas, à autonomiaradical da linguagem cênica contemporânea, que usa o texto apenascomo material de composição 10. Não por acaso, o trabalho de Diazfoi criado a partir do romance de Clarice Lispector, adaptado porFauzi Arap, o que indica a tendência dessa cena de apropriar-se detextos não dramáticos, para usá-los mais como matéria cênica quecomo matriz de atualização de tramas e personagens. No romance,Clarice esboça a via de ascese de uma mulher, em um percurso deconhecimento e superação da individualidade, que a conduz a umaespécie de união sensorial com uma identidade mais profunda, tal-vez cósmica. A quase fusão com a barata “tão velha quanto um peixefossilizado”, uma das passagens mais fortes do texto, revela um pro-cedimento usual na obra da escritora, que é o de focalizar, em planogeral, os seres mais prosaicos, para aos poucos descobrir e ampliar afresta que incita à passagem do campo da experiência ao da reflexão, e

da transcendência. Evidentemente, a potência metafórica de um textodessa natureza desaconselha todo tipo de concretização literal. Talvezpor isso os criadores tenham optado pela construção de uma lingua-gem paralela, soma de incisões de luz, cenografia, figurinos e imagensprojetadas, que tangenciavam, em alguns pontos, o romance, mas emgeral permaneciam como escritura de segundo grau, que se justapu-

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11 PICON-VALLIN, Béatrice.La mise en scène: vision etimages. In: PICON-VALLIN,Béatrice (org).La scèneet lesimages. Paris: CNRS, 2001, p. 24.

nha a ele e o interceptava em alguns momentos. A performance deMariana Lima talvez fosse a maior responsável por essa teatralidadequase autônoma. Amparada na técnica dosviewpointsda encenadoraamericana Anne Bogart, e no método do diretor Tadashi Suzuki, aatriz criava um corpo cênico que funcionava a partir de vários pontosde vista espaciais e construía relações elaboradas com os elementos

à sua volta, sempre adensando o centro de gravidade. Seu corpo, suavoz, seus movimentos, produziam uma dramaturgia que se justapunhaàs palavras, gerando um novo fluxo de imagens de GH a partir decontextos cênicos e performáticos que, na maior parte do tempo, nãofuncionavam como ilustração da narrativa, ainda que a presença daatriz e seu estado emocional evidentemente se relacionassem com ouniverso ficcional do romance. Se em alguns momentos a proliferaçãogestual incomodava, seja pelas tentativas mal-sucedidas de ilustrar otexto, seja por ocultar, sob a exuberância da partitura corporal, a flui-

dez de algumas metáforas, em geral constituía uma tessitura poética esensorial amplificada pelas superfícies de linguagem superpostas, anti-nômicas. Sem nunca interpretar integralmente a personagem, agindocomo uma espécie de suporte do texto, a atriz recriava as palavrascom um ritmo e uma respiração particulares e, a partir deles, construíauma fala de síncopes, intervalos e silêncios estratégicos, justaposta àpartitura física altamente elaborada que desenvolvia no espaço. Noinício, uma sala atulhada de roupas e, na seqüência, o “quadrilátero debranca luz” referido no romance, que em cena servia como tela de

projeção de imagens. Por exemplo, na cena em que o fundo de umarmário revelava imagens da atriz se debatendo, caindo, pairando, atése dissolver no fogo. Ou, em outro vídeo, quando a disjunção corporalse acentuava, e a tela mostrava apenas os olhos de Mariana, em meio afios suspensos e frestas que se superpunham a objetos, luzes e sons gra-vados. Essa proliferação de enunciadores se acentuava com a aberturade espaços contíguos à cena, pela utilização, entre outros recursos, decâmeras de segurança, que captavam imagens da atriz em um cômodoao lado, ou microfones colocados fora de cena, que abriam o espaçoa outras dimensões.

Além de ampliar o contexto e o espaço cênico, a introdu-ção das gravações sonoras e da imagem em movimento definiamo “impulso cinematográfico da escritura cênica” bastante comumno teatro contemporâneo, a que Béatrice Picon-Vallin se refere emensaio recente. Associado à ação física da atriz, esse impulso eraresponsável pela criação de uma teatralidade complexa ao extremo,regida por uma lógica de atomização e fragmentação que resultavanão apenas da ampliação dos suportes técnicos, mas da mistura dediferentes qualidades de imagem e de presença cênica, responsável

pelas “visões de desequilíbrio” que levavam à constante relativiza-ção do que se passava no palco 11.

As experiências diferenciais analisadas permitem especular so-bre a constituição da cena contemporânea como espaço movediço,que projeta teatralidades performativas e instáveis, propondo ao es-pectador um mergulho arriscado na realidade de seu teatro.

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