TCC Guile Martins - Por Um Nomadismo Sonoro
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8/6/2019 TCC Guile Martins - Por Um Nomadismo Sonoro
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A Mquina de Gorjear. Paul Klee
Por um Nomadismo Sonoro
por Guile Martins
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O objetivo desta escrita desmanchar o trabalho que tivemos como captador de som
direto e editor de som nos curtas-metragens A estria da Figueira (Fico, 35mm, 15
min.) e Tarabatara (documentrio, 35mm/S-8mm, 23min.), e ser ela prpria uma escrita
desmontvel, no sentido de que no se enrijea num modelo inclinado a delimitar o alcance
de uma fora livre e fluente como o som, cuja natureza voltil tem nos parecido bastantehbil em atravessar formas, sujeitos e estratificaes - alegria do uivo que, partindo da
garganta do lobo, pode encontrar-se com novas matilhas de sons e se transformar no
barulho do vento, balanando rvores na tela de cinema.
Para ns o som no se encaixa bem em sistemas fechados, como gua corrente
escorrendo por entre os dedos de quem o tenta agarrar. Trata-se de uma potncia sensorial
atravessada por afectos1, capaz de estabelecer com as imagens infinitas relaes de
velocidade e lentido, mais do que preenchimento ou decalque.
Para deduzirmos a natureza transterritorial do som temos o exemplo da Estria da
Figueira, quando o mesmo rudo de taas de cristal tilintando e vibrando com gua, gravado
em estdio, foi usado primeiramente como notas musicais sugerindo badalos de sinos, na
cena em que o fantasma da me aparece pendurado numa rvore. Logo em seguida esse
mesmo material sonoro assumiu a funo de sonorizar os gestos deste fantasma, durante
sua corrida pelo laranjal. tambm de cristal o som agudo das pazadas do Jardineiro, na
cena em que ele briga com a terra. So sinos de msica ali, gestos frgeis de fantasma
acol, choque agudo de p com pedra so partculas sonoras cristalinas liberadas a partir
de uma taa de cristal, migrando de um evento flmico a outro, saindo da msica para virar
rudo de sala, sempre mudando de natureza ao se conjugar com novas variveis, e
continuando livres para composies porvir.
Em Tarabatara o som de um serrote sacudido, tambm gravado em estdio,
conjuga-se ao movimento dos faces das mulheres ciganas na abertura da cena final, para
depois, nesta mesma seqncia, ter pequenos fragmentos transformados em coaxar de sapos
quando a imagem nos oferece um lago. Sapos de metal, ondas de movimento metlicovibrando no ar, energia sonora potencial. Fica claro que um mesmo som assume diferentes
formas e funes, vaporoso, territorializa-se num gesto para logo em seguida coaxar num
lago.
1 Achamos que aqui o termo bem adequado porque no um sentimento pessoal,tampouco uma caracterstica, ele a efetuao de uma potncia de matilha, que subleva efaz vacilar o eu. (Deleuze e Guattari, em Mil Plats).
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A vibrao do cristal se aproxima muito de uma freqncia pura. O serrote sacudido
parece operar uma variao ondulante entre freqncias ou timbres metlicos. Quanto mais
perto chegamos destes sons, das freqncias puras e das intensidades sonoras em variao
contnua, mais do que descries de um objeto especfico, temos a oportunidade de tornar
audveis foras no-sonoras, e a chance de ouvir notas primordiais da terra, como o chorode uma planta, o transcorrer do tempo no interior de uma molcula, a respirao numa
cratera ou o marulho do Cosmos. Isto no conseguido, no entanto, sem a delicada
simplicidade com que estas foras sonoras se recombinam pela natureza, com pacincia,
sobriedade e alguma dose de acaso.
Acreditamos que os sons nos atingem a partir de um campo de composio onde as
micropropriedades sonoras, mais do que significado ou significante a priori, so
intensidades livres em contnua efervescncia molecular. So vetores que podem assumir
diferentes relaes de velocidade e lentido e mudar de natureza ao se conjugarem entre si
e com imagens. Vetores traando com as imagens mapas recombinveis e fronteiras
mveis, para compor um fluxo transportador de afectos.
A criana liberta a relao tradicional entre um objeto e seu som quando senta-se
mquina de escrever e, ao invs de formar no papel uma frase legvel, resolve tocar as
teclas para com elas produzir o som de um trem andando. A mquina, mais do que imitar o
trem, agenciada pelos dedos da criana numa relao de desejo, velocidade e lentido
com o andamento da locomotiva, at que no lugar de palavras ela passa a datilografar
paisagens, descrever percursos, marcar paradas e distncias dentro de um ritmo ou
itinerrio fluente. A criana, atravs de seu desejo, encontra nas teclas da mquina
movimentos e repousos que num plano de composio conjugam-se ao pulso do trem. Uma
partcula de ferro sobre uma linha de graxa.
Se gravarmos a performance da criana mquina de escrever e extrarmos desse
som algumas partculas para serem recombinadas com rudos e silncios, ritmos e
intensidades de um trem de verdade, e se tambm colocssemos um apito que na verdadeo som do vapor saindo de uma antiga mquina de fabricar chapus, e quem sabe ainda o
som de umas hlices, teramos talvez construdo, no atravs de metforas nem analogias,
mas pela efetiva recombinao entre materiais sonoros, uma nova mquina, um novo meio
de transporte que no leva mais passageiros, palavras nem chapus, mas transporta apenas
afectos, distncias e proximidades entre materiais sonoros. Ento passamos pelo campo da
msica. Ou pelas intensidades musicais exteriores aos instrumentos e prpria msica, pois3
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percorrem tudo que soa no universo, das estrelas s molculas.
Agora no teremos mais uma mquina de escrever ou um trem, nem uma analogia
entre dois objetos, mas uma zona de vizinhana indeterminada entre mquina e locomotiva,
um intervalo entre o qual os sons guardam ainda traos de indiscernibilidade, trazem
mltiplos encaixes e no podem ser atribudos a formas, objetos ou sujeitos delimitados.So partculas sonoras liberalizadas, lanadas para fora de seu territrio original
possibilitando novos engates e composies. No papel datilografado pela criana no
teremos uma frase legvel, mas possivelmente um emaranhado de linhas capaz de ser lido
apenas como partitura musical. Os pontos no papel faro sentido quando se conectarem em
linhas de um andamento, um ritmo com pausas e intervalos. Ao invs de um enunciado,
apenas partidas, paradas e itinerrios desejosos.
Acreditamos que sentados ilha de edio de som tambm devemos encontrar, em
ns e em tudo que nos envolve, movimentos e repousos que nos aproximem da criana
mquina de escrever, promovendo, atravs do desejo, cruzamentos entre multiplicidades
sonoras que mudem de natureza ao sair de sua terra natal para encontrar o silncio de uma
imagem. Em nosso papel desejamos datilografar mapas que possam tambm ser lidos como
msica, pois tero um pulso e tambm pausas, coordenadas e fronteiras permeveis, zonas
de indeterminao, velocidades e lentides sobre uma linha de trem ou tapete voador.
Grande perigo que se abre diante do mundo das intensidades sonoras livres deixar
o mapa virar borro, ser cacofonia ruidosa levando ao aniquilamento no s do filme como
de todo encantamento sonoro, que requersimplicidade e prudncia, pois se compe, acima
de tudo, de silncios e quietudes. As freqncias puras no so boas ou ruins, mas gozam
de intrnseca cegueira quanto aos fins, como so, potncias de meio, justamente o meio em
que sempre nos encontramos.2 O fascismo, por exemplo, se propagou sobre uma linha de
intensidade livre que o corpo do Estado j no podia conter, assim como o cncer no corpo
humano ou os fluxos mundiais financeiros na economia internacional. A msica da qual
falamos de poucas notas, molecular, de um ritmo assimtrico como o mar, construda nonvel de cada tentativa, a cada nova passagem de intensidade, ventos ou cristais,
irmanando-se daquilo que emite voz e respira.
Tentaremos agora recombinar blocos de memria de nosso trabalho nestes dois
filmes, no para consolidar um modelo que se mostre eficaz em novos projetos, mas na
tentativa de manter vivo o dinamismo da busca diria pela alegria do som.
2 Luiz B.L. Orlandi, no texto Que estamos ajudando a fazer de ns mesmos?.4
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A funo do som pode ser a de supor e traar um mapa aberto e tridimensionalque
se ligue s linhas que atravessam a paisagem enquadrada pela imagem. Podemos mapear
um casebre beira de um remanso, um moinho mais afastado que bombeia gua cristalina
quando venta, e o respiro do mar, batendo longe na serra, calando-se apenas em raras
noites, quando da janela aberta do casebre ouve-se o canto apaixonado de uma sereia.A ligao entre estas linhas de imagem e som pode ser percorrida por intensidades
temporais ou geogrficas, dramatrgicas ou amorosas, cromticas ou luminosas, trmicas
gestuais, ssmicas, eltricas, velocidades, lentides, sincronicidades, etc... O sincro no
cinema, por exemplo, uma intensidade capaz de ligar em nosso crebro uma imagem a
um som. Uma luz que muda de cor continuamente pode estabelecer conosco imprevistas
relaes emotivas ao se conjugar com determinados sons, da mesma maneira que um arco-
ris pode ter tantas sonoridades quantos forem os cruzamentos desejosos possveis entre as
7 cores e as 7 notas da escala musical, passando pelas intensidades cromticas fora do
espectro visvel e pelas freqncias nmades que atravessam as escalas. Como a criana
sonorizaria o arco-ris ? Como o cego ou a planta o fariam? Como cada editor de som o
faria?
O cuidado aqui o de sermos capazes de encontrar o menor circuito entre as linhas,
ou a sonoridade mais limpa na composio mais simples, que esteja o mais prxima do
murmrio elementar da terra e seja capaz de sonorizar uma imagem de encontro emoo
desejada.
Acreditamos que o som no seja s o entorno racional da imagem, nem o seu
decalque lgico, mas que sons e imagens juntos fazem entorno. Tecem mapas para dar
origem a uma paisagem rtmica e meldica e, atravs de velocidades e lentides
combinadas, marcam emocionalmente o espao e o tempo.
Traar um mapa sonoro que estabelea com a imagem coordenadas, componha com
ela geografia, relevo, frestas e passagens secretas, entre em relaes de desejo at que se
liberem naturezas e entornos possveis, numa dupla articulao. O som afeta a imagem aotempo que afetado por ela. Quando a imagem ia velas o som assobia nos ventos. Quando
a imagem quer voltar ao porto ou ilha o som vem com as mars. Cartografia e Cartofonia
audiovisual.
Deleuze e Guattari definem bem a diferena entre mapa e decalque quando dizem
que O mapa aberto, conectvel em todas suas dimenses, desmontvel, reversvel,
suscetvel de receber modificaes constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,6
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adaptar-se a montagens de qualquer natureza. Um mapa tem mltiplas entradas
contrariamente ao decalque que volta sempre 'ao mesmo'..
Um som pode decalcar uma imagem ou fazer mapa com ela.
Duas aventuras sonoras no perodo de pr-filmagens da Estria da Figueira :
Numa tarde quente nos enfiamos com o equipamento de gravao no meio do mato.
Chegamos at uma mangueira, grande rvore honrando o cho com seus frutos cados. Ao
redor das mangas apodrecidas circulavam muitas espcies aladas, moscas de diversos
tamanhos, besouros multicoloridos, vespas, borboletas e mamangavas. Para o microfone tal
paisagem sonora assemelhava-se a uma sinfonia de leves hlices, num movimento vivo e
circular feito carrossel de fadas. Sem pressa gastamos meia hora de fita ou mais. Depois
que iramos descobrir a importncia das asas dos insetos no filme montado. Moscas que em
breve teriam sonoridades to variadas quanto aquela festa alada na clareira.
O que testemunhamos ento foi um evento sonoro, que iria acontecer
independentemente de nossa presena naquela tarde de calor. Em alguns casos, mais
importante do que conceberum som, estarpresente no evento sonoro, entrar de mansinho
e sem fazer barulho nas festas da floresta. Somos caadores de matria invisvel e nosso
nico dever ser capaz de ficar em silncio, preservar e sentir o silncio de cada lugar. No
caso, silncio de mltiplas asas. Fazer sistema com a mangueira generosa, a clareira, os
frutos podres, os insetos alegres, a cpsula do microfone e a pequenina floresta de plos que
vive dentro dos nossos ouvidos. Sistema aberto. Dispositivo ouvinte ligando-se a uma
mquina sonora. Ou encontro entre Floras.
Em outra situao samos de madrugada, com muita prudncia para no acordar os
lobisomens. Andvamos por um campo aberto quando comeamos a ouvir cachorros
latindo, muito, muito longe. Paramos e comeamos a gravar. Era um silncio de grilos
espaado com ressurgncias de uivos longnquos. Nossa audio reteve-se nos ces, sentiua distncia que nos separava, sups espaos vazios. O marulho estava calmo. Num timo
um pssaro noturno e de mau agouro ps-se a gritar, muito perto do microfone. Pudemos
ouvir o bater silencioso de suas asas. Nunca tnhamos escutado um canto assim, era como
um lamento que assustava. Tanto que no pudemos usar este som no filme porque ele foi
poludo por um pequeno grito incontido de nossa parte. No entanto foi tirada a certeza de
que a natureza, e consequentemente o mundo sonoro, realmente opera por7
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imprevisibilidade e surpresas, pequenos sustos ela nos d. So sustos saudveis capazes de
recombinar nossa relao com os espaos, quando as intensidades que pulsavam no escuro
longnquo fazem um arco e so trazidas flor dos nossos ouvidos, atravs do canto lunar de
uma ave em fuga.
Pudemos perceber como a paisagem sonora se dilatava e rarefazia-se nas horas decalor em oposio ao furor dos bichos na aurora. Como os ces se chamavam por uivos
distncia, os galos marcavam seus territrios aos gritos, sapos que se faziam presentes
apenas por som. Percebemos que os espaos comportam-se como uma espcie de oceano,
tm marulho prprio, oscilaes sujeitas a infinitas variaes, ventos inesperados vindo
para refrescar a cuca. No chegamos a ver nem dez por cento dos entes que ouvimos nestes
dias. A natureza opera por sonoridade, em alguns casos mais do que por visualidade. Os
territrios e as fronteiras, as horas do dia, so marcados pelos cantos dos pssaros, pelos
tambores dos sapos. O uirapuru, por exemplo, se propaga por som enquanto esconde sua
imagem pequenina. J existiam gravaes de seu canto mas muito ainda se demorou at
que conseguissem film-lo. Isso, no entanto, no impediu que ndios mesmo sem v-lo,
atravessados pelas intensidades correntes em seu som, pudessem reagrupar estas foras em
fbulas e assim reencaminh-las paisagem renovada, s tragdias ou s estaes chuvosas,
fazendo-as passar no s pelo homem ou pelo pssaro, nem pela audio ou pela viso, mas
pulsarpor entre toda natureza, em contnua e variante afirmao da vida.
Parados no meio da mata, em silncio com microfone em punho, nos tornamos
imperceptveis. Fazemos sistema aberto com o entorno, conectamo-nos a uma mquina
sonora pulsante tecendo malhas moleculares em sutil variao. Deixamos de ser homo
sapiens predador por nos tornarmos apenas ouvido, mil plos auriculares vibrando em
sistema com a multiplicidade sonora que nos envolve.
Gravamos a cachoeira ao longe, vamos chegando perto, adaptando o corpo equipado
ao relevo incerto, descobrimos a gua correndo por dentro de uma loca de pedra, eco
agradvel. Outra experincia foi levar ao campo apitos de chamar passarinhos einstrumentos que produziam sonoridades parecidas com vento e chuva, e faz-los soar num
espao aberto, longe do microfone, para que seu som se misturasse aos sons da paisagem,
fizesse sistema, ouvisse respostas, mais um ente marcando seu territrio, ou um novo matiz
alterando sutilmente a paisagem.
A partir destas experincias pudemos entender a construo dos ambientes na edio
de som como a tecelagem de um mar. Os ambientes so como o marulho de um filme. So8
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os batimentos distantes que nos chegam de uma zona brumosa - ltima camada audvel, no
limiar entre uma imagem e o silncio. Este marulho dos ambientes pode ser tambm vivo
como um oceano, inconstante, estar em variao e supor profundezas. O marulho de um
filme pode ser, como o mar, capaz de uma violncia incompreensvel, mas tambm de uma
piedade inaudita. Calmaria e borrasca. O ambiente pode, atravs de um pssaro zombeteiro,rir da tristeza de um personagem, ou ir se calando ao longo de um ritual de feitiaria. Pode
avanar at ser a nica coisa audvel ou recuar em direo ao silncio. O ambiente pode
indicar direes, mudar os ventos do filme, aproximar o deserto ou afastar as florestas,
trazer as turbinas ou silenciar as sirenes. o ambiente quem traz o fora e permite as fugas,
prolonga as margens da imagem na medida em que supe amplides imensurveis na
paisagem.
O ambiente a multido que se faz presente no filme apenas por som. Claro que
esta multido pode e deve ser molecular, criativamente selecionada, composta acima de
tudo por quietudes. Como a multido de partculas viajantes do ar, roando sem pressa as
sinetas de um mensageiro dos ventos.
Talvez encontremos no marulho dos ambientes possveis respostas inquietao de
Tarkovski: tenho a sensao de que devem existir outras maneiras de trabalhar com o
som, que nos permitiriam ser mais exatos, mais verdadeiros para com o mundo interior que
tentamos reproduzir na tela, no s o mundo interior do autor, mas aquilo que intrnseco
ao prprio mundo,que faz parte de sua essncia e no depende de ns .
A aventura do som direto continuou quando a equipe de arte comeou a trazer
objetos das fazendas vizinhas para compor o cenrio. Objetos autnticos de tempos
incertos, com o nico critrio de que no remetessem era do plstico, do papel-moeda e
da indstria. Penso que grande parte da simplicidade visual do filme vem do fato de uma
histria fantstica estar inserida numa direo de arte que no vai buscar fantasia em
objetos aliengenas, papis brilhantes ou em artefatos fora de escala, mas sim na
proximidade das vizinhanas.Em pouco tempo comearam a chegar cadeados do tempo da escravido, tachos de
cobre, panelas leves e pesadas, ferramentas de jardim, carriolas feitas mo, etc... Como
no tnhamos pressa, donde se v mais uma vez a importncia de encontrar meios para
driblar o ritmo acelerado dos sets de filmagem, fomos eu e o microfonista Ricardo Saito
pacientemente extraindo sons destes objetos. Meu companheiro de trabalho os tocava como
que musicalmente. Tocava-os sem exageros para deixar claro ou grifar que tal objeto era9
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realmente tal objeto, mas tambm sem demasiado esforo em parecer musical. Tinha, na
verdade, a leveza e o cuidado de extrair destes objetos um gro de metal antigo, uma
partcula dos rangidos da madeira chorosa, cristais dos assobios da roda enferrujada,
movimentos e repousos das carcias da chave na fechadura, enfim, velocidades e lentides
que lanassem para fora da forma de um objeto partculas sonoras liberalizadas, que seconjugariam com outras tantas para agenciar a multiplicidade sonora de um filme.
Caso fizssemos diferente, isto , se gravssemos com esforos voltados em grifar o
objeto emissor, um rudo de cadeado s poderia ser usado para sonorizar um cadeado na
imagem, ao invs de poder, entre outras coisas, tambm ser usado para sonorizar um
cadeado na imagem. Rudo de sala como extrao ou garimpo de partculas preciosas de
livre encaixe.
Lembramo-nos ainda da aula de som, em que cada aluno deveria encontrar em casa
um objeto, no por sua forma mas por sua sonoridade. No escuro da sala fechvamos os
olhos para que cada um fizesse soar seu objeto. No final, mais do que adivinhar qual era o
objeto a emitir tal som, no que seria apenas um jogo de analogias formais, tnhamos que
traar e dividir com os colegas os mapas emotivos, timbrticos, as passagens secretas
trazidas pelas linhas sonoras que escapavam do objeto e das fronteiras de sua forma
Sem perceber, a direo de arte da Estria da Figueira era tambm direo de
sonoridade. Nos prximos trabalhos isso ser percebido e conversado. Transmigraes
entre as linhas de composio no set de filmagem. Autenticidade e simplicidade dos objetos
vizinhos, sons vizinhos contra didatismo das bibliotecas de sons homogeinezados. Fazer
trans-usos das bibliotecas de som, usar seus sons para outros fins que no os propostos no
ndice, tencion-los - uma carruagem sonorizando o caminho da mo de um cego pela
parede. Rudo de sala e aventuras garimpeiras.
Peamos simplicidade para que, ao invs de nos vislumbrarmos com espetculos
ruidosos, nosso esforo se d no sentido de imantar foras capazes de fazer nosso trabalho
caminhar em direo ao rumor imperceptvel, como imaginamos ser o murmrio douniverso. Tornar audveis foras como o amor cristalino de um fantasma por sua menina de
cabelos dourados. Amor que, partida a taa, continua vibrando longemente no ar, com
branca voz de cristal.
Surge ento uma nova grandeza no som direto com a chegada dos atores no set.
Principalmente de dois deles, o Jardineiro e o Fantasma da me. Membros de um grupo de
teatro que desenvolve treinamentos corporais rigorosos, como ensaios intensivos na10
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madrugada, desenvolveram um trabalho que chamam de ao vocal. Fazer uso do
aparelho vocal em sua plurivocidade, emitir sons para muito alm da formao de palavras
e enunciados. Assobios, respiraes, um grito sugado pela garganta, melodias vindas de
longe cabendo s vezes num murmrio quase inaudvel. Treinam a emisso de sons que
cheguem o mais perto possvel do mundo animal sem que passem pela imitao, do mundodos mortos sem que passem pela morbidez.
Fomos ento com estes atores at uma igreja abandonada, na inteno de aproveitar
a reverberao natural do espao. Cada um deles emitiu os sons, desempenhou as aes
vocais que acreditavam fazer parte do universo do filme e de seus personagens. Tocaram
tambm pequenos instrumentos, como um berimbau de boca. Repetimos este procedimento
com os outros atores que pouco a pouco foram desenvolvendo suas prprias aes vocais.
De forma que no final das filmagens tnhamos um rico arquivo sonoro, matria bruta
intensiva a ser lapidada de acordo com as modulaes da montagem final. Surpresa a nossa
quando o assobio do ator-Jardineiro encaixou-se perfeitamente na cena de apresentao do
Pai da menina, quando ele visto sozinho andando de costas pela estrada, carregando um
saquinho de moedas e assobiando uns mistrios. O cantarolar fantasmagrico da me,
originado nos treinamentos de But desenvolvidos pela atriz, tambm foi muito usado,
assim como as criancices da menina dos cabelos dourados. Tudo envolto pela reverberao
natural e suficiente da igreja abandonada.
Por ora nos contentamos em encerrar aqui a aventura deste som direto, na qual, para
alm da captao dos dilogos e das cenas propriamente ditas, que foram feitas com todo
esmero que nos ensinado nesta escola como em nenhuma outra, tivemos tambm a chance
de dissolver um pouco as fronteiras da especializao, atravs da pluralidade possvel em
nosso ofcio. Fomos escaladores de cachoeiras, caadores de borboletas, colecionadores de
pssaros, sentimos medo e coragem, transformamo-nos em tocadores de carriolas e
cadeados, e melhor de tudo, no sabamos bem onde iramos chegar. Recolhamos matria
intensiva vivendo o presente daquelas descobertas. No ramos editores nem intelectuais,ignorvamos o fim, ouvamos o meio enquanto colhamos natureza invisvel.
A aventura do Som Direto no Serto
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Em Tarabatara, o calor furioso do serto no nos permitiu trabalhar das dez horas da
manh at s quatro horas da tarde. A no ser quando presencivamos um evento especial,
que nos obrigava a armar o equipamento com a rapidez com que se trocam os pneus na
frmula-1 e suar feito um jegue por dentro dos fones de ouvido.Durante nossa primeira semana de estadia com os ciganos no lanamos mo do
equipamento de filmagem, que se manteve escondido por precauo. Este perodo foi
essencial para que pudssemos ouvir o lugar, sem a preocupao do registro. Num
caderninho anotvamos os sons que nos pareciam importantes : os pssaros cantando na
alvorada, a briga de galo, as rvores secas rangendo ao vento, os tmidos filetes dgua que
serpenteavam pelas florestas vizinhas, os burburinhos em lngua estranha dos ciganos, a
voz grave do velho e, mais importante de tudo, os sons que nos remetiam ao movimento, s
andanas de um povo que esteve sempre se deslocando, arrastando paisagens e sons,
borrando fronteiras numa vida pelo meio do mundo, percorrida por tantas pausas e
dinamismos.
Eram sons de carroas, trote de jegues e cavalos, relinchos, chicotes estalando ou
girando no ar, o ranger musical do carro de boi, vozes tocando boiada e gritando com os
animais, gemidos de antigas rodas, etc. Tambm sons que evocassem o bando, a matilha e o
rebanho. Cabras berrando e chacoalhando suas sinetas, boiadeiros conversando em
movimento ou seus ces latindo em disparada.
Ao tomar conhecimento destes sons tivemos a seguinte idia junto com a diretora,
Julia Zakia, antes mesmo de comearmos a filmar : Os ciganos do bando de seu Francisco
pararam de andar, tornaram-se temporariamente sedentrios. Vivem um momento de pausa
em seu nomadismo, sem que no entanto seus gestos, vozes e olhares, seu cotidiano e suas
cantorias sejam percorridos pelos dinamismos de quem viveu deriva pelo mundo e traou
mapas mveis sobre um territrio fixo chamado nordeste. Assim, pensamos que a abertura
do filme seria construda por imagens fixas de estradas vazias em super-8, e estas imagensseriam atravessadas por sons de movimento e matilha. Cavalos trotando, relinchos, carro de
boi gemendo feito rabeca, homens rindo ao tocar boiada, ces latindo e crianas correndo.
Claro que esta idia amadureceu muito at a montagem final, mas foi em sua essncia a
soluo audiovisual encontrada para dar conta no de uma possvel contradio cigana, mas
das linhas de fuga que atravessam o aparente sedentarismo e nos trazem foras vindas de
longe ou de perto. Um plano fixo atravessado por energia sonora em movimento pleno.12
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Traamos alguns planos para a captao do som direto. Primeiramente deveramos
dar conta das pulsaes do dia-a-dia daquele acampamento. A agitao matinal com os
galos e as crianas chorando, os momentos rarefeitos nas horas de calor, cantorias
sombra, segredos em idioma desconhecido, as noites beira do fogo ou da televiso, rodas
de mulheres conversando, brincadeiras das crianas, o cigano doidinho que falavasozinho...
Outra parte do plano era fugirmos, de preferncia a ss, para o meio do mato em
busca de sons de natureza pura, sem interferncias humanas diretas. Remansos de gua
batucando nas pedrinhas aqui e ali, gua corrente, galopes livres e sinfonia de pssaros.
Para este trabalho tambm deveramos atentar s variaes ao longo do dia aurora,
manh, tarde e noite. Tudo gravado numa pasta especial para sons de natureza pura
(utilizamos um gravador HD que criava pastas). Estes ambientes foram gravados em
estreo, de maneira que obtivemos um resultado muito satisfatrio na finalizao em 5.1,
preservando a espacialidade aberta do local sem grandes quebras-cabeas na edio de som.
Curioso que, justamente quando houve uma interveno humana numa destas
expedies solitrias em busca de uma suposta natureza pura que pudemos captar um
belssimo som, bem usado no comeo do filme. Vimos um cavalo vindo de muito longe e
apontamos o microfone. Era lindo ouvir o ambiente com guas correntes misturando-se ao
trote do cavalo chegando, cada vez mais perto. Havia um cavaleiro sobre o cavalo. Cavalo e
cavaleiro tomaram nossa direo e fizemos imenso esforo para no emitir nenhum som,
nenhum um bom-dia que pudesse estragar a captao. O cavalo passou por ns em alta
velocidade e o cavaleiro, sem frear, soltou um murmrio para nos cumprimentar. Cavalo e
cavaleiro se distanciaram, at que s ouvamos o rio. Pensamos que este murmrio, p,
inteno de voz no de palavras, traz a humanidade necessria ao cavalo que ouvimos
chegar na primeira estrada vazia em super-8. Traz a voz de algum sobre a velocidade de
um animal.
Tambm foi parte de nossa estratgia acoplar um microfone (Schoeps cardiide) nacmera, pois muitas vezes Julia andava filmando sozinha, desenvolvendo momentos de
grande intimidade com as mulheres e o velho Francisco. Desta maneira a captao dos sons
destes instantes estaria garantida, por um microfone relativamente aberto e muito fiel.
Certo dia Julia veio at ns, sua equipe, e disse que no filme no apareceriam
homens, com exceo do velho Francisco. S as mulheres trabalhavam ento era justo que
s elas aparecessem no documentrio. Claro que esta certeza foi se modificando ao longo13
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dos dias, no entanto nos alertou para a urgncia de gravar todos os sons dos incontveis
trabalhos femininos. Mulheres lavando roupa, cozinhando, esfregando panelas, acendendo
o fogo, varrendo o rancho, cuidando das crianas. Andar microfonado pelas feiras feito uma
cigana, mangueando ao invs de dinheiro ou comida, sons. Apenas uma atividade no nos
foi possvel gravar : as expedies pela mata em busca de lenha. Isto porque nenhumhomem pode participar de tal caminhada. As ciganas tm de passar por cercas de arame
farpado, erguer seus vestidos, o que faz desta operao um momento exclusivamente
feminino. Neste caso foi Julia quem se equipou e gravou belas conversas, que ondulavam
feito msica, garranchos estalando, passos na mata, rvores inteiras sendo postas abaixo,
risos, faces amolados na pedra e vibrando no ar.
Na inteno de evitar posteriores problemas de sincronismo, as entrevistas do filme
foram gravadas diretamente na cmera, com o microfone direcional 416.
Com este plano de captao de som, que durou dois meses e rendeu 20 horas de
material bruto, acreditamos ter dado conta no s das pulsaes internas do acampamento,
mas tambm do entorno que o circunda.
Muitos segredos ainda haviam de ser descobertos para a edio de som, mas j
tnhamos uma pista bem valiosa : em nossa primeira noite vivida ao lado dos ciganos, dois
anos antes das filmagens, no conseguimos dormir de alegria. Apertvamo-nos na estreiteza
de nossa barraquinha de praia quando, certa hora da madrugada comeamos a ouvir algum
que cantava ao longe. Era uma msica que j tnhamos ouvido muitas vezes naquele serto,
um forr contemporneo entoado por voz masculina. A voz foi chegando mais perto e a
msica pouco a pouco foi se transformando em cantoria serpenteada, ondulando em idioma
estrangeiro, parecendo vir de algum oriente desconhecido. Era o cigano doidinho que
passava por ns em sua cantoria metamorfoseante da madrugada
Aquela voz aluada encontrou, por dentro do forr dirio, velocidades e lentides
capazes de compor uma dobra Brasil-Egito, Portugus-Cigans, Serto-Deserto, num
mesmo fluxo. O cigano tencionou o forr at que ele perdesse sua forma para se tornarmusicalidade em estado puro, tencionou o portugus at a ininteligibilidade, e tencionou
sua prpria lngua, que deixou de ser idioma secreto para se tornar material sonoro livre,
arrepiando nossas espinhas. Esta experincia de compor dobras no tempo e no espao a
partir da desterritorializao dos materiais sonoros foi fundamental na edio de som do
filme.
Dizem que em nenhum lugar do mundo existe uma msica cigana. O que existe 14
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uma musicalidade potente comum a este povo de ptria mvel, que por onde passa tenciona
a msica local (enraizada e formatada) imprimindo por dentro dela velocidades e lentides
de quem est sempre dizendo adeus ou chegando de fora. Criam passagens inesperadas que,
no tropeo de uma nica nota, vo da tristeza aguda do violino embriagada alegria do
trompete. Desenraizam a msica nativa ao passo que se deixam contaminar por ela, poisesto abertos ao fora, sentem em seu corao a msica dos terrenos por onde passam e a
fazem vibrar nas batidas de suas palmas e no trote de seus cavalos.
que devir no imitar algo ou algum, nem identificar-se com ele. Tampouco
proporcionar relaes formais. Nenhuma dessas duas figuras de analogia convm ao devir,
nem a imitao de um sujeito, nem a proporcionalidade de uma forma. Devir , a partir das
formas que se tem, do sujeito que se , dos rgos que se possui ou das funes que se
preenche, extrair partculas, entre as quais instauramos relaes de movimento e repouso as
mais prximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e atravs das quais nos
tornamos..3
No somos ciganos, no somos doidinhos nem aluados. Mas temos a certeza de que,
para editar som, viver ou fazer arte, devemos, atravs do desejo, instaurar entre as
partculas que nos circulam e nos percorrem, relaes que nos permitam devir-cigano,
devir-doidinho, devir-aluado, devir-criana, devir-passarinho
Quantas partculas sonoras de livre encaixe os ciganos cantores da famlia Ferraz,
possivelmente no Brasil h 500 anos, no devem ter encontrado, ao fazerem suas vozes
vibrar por dentro da pulsao de uma msica sertaneja ou seresta - rodas girando, coragem
de galo na aurora, serenata ao luar, joo-de-barro em dueto ou matilha. E a msica
sertaneja, passando pelo brilho dos dentes e pela sinceridade na voz e no olhar do cantor,
quantas paisagens possveis no faz ? Encontro das guas
O caminho da prudncia ou a arte das doses
Ao morrer o pai de Peter Parker, sem saber que seu filho est sofrendo srias
mutaes que permitiro a ele tornar-se, entre outras coisas, no Homem-Aranha, lhe diz :
com grandes poderes vm tambm grandes responsabilidades, e expira.
Como acreditamos que um poder a segmentao institucional de uma potncia ou
3 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix em Mil Plats : Capitalismo e Esquizofrenia..15
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uma fora formalmente domesticada, preferimos pensar que ao lidar com potncias
devemos ter prudncia e simplicidade para evitar que, em primeiro lugar uma potncia
estratifique-se num poder (potncia guerreira formata empoder de exrcito, potncia grave
do som reduzida a poder de assustar o espectador, devir-aracndeo territorializado no
uniforme do Super-Heri) e, em segundo lugar, para que as potncias no nos arrastem aocaos e ao aniquilamento de uma cacofonia disforme.
O som uma potncia. Ao edit-lo estamos compondo um agenciamento que o
regula, abre e fecha vlvulas que modulam sua passagem pelas caixas de som, como as
comportas de uma hidroeltrica. Qual nosso desejo? Iluminar uma cidade inteira e esmagar
as zonas de sombra e mistrio? Permanecer no escuro? Afogar Faunas e Floras que j
estavam l antes ns? Acender uma vela...
relativamente fcil, atravs dos sons, induzir sensaes. Medo, susto, leveza...
Mas ao nos dirigirmos a um nico fim atamo-nos ao sintoma e esquecemos dos meios e dos
micro-ecossistemas em mtuo funcionamento. Reduzimos o som a um efeito pontual na
medida em que regulamos sua potncia dentro de um poder. Poder de assustar, poder
pirotcnico do som. Artifcio versus Artesanato.
Pensamos que o trabalho de edio de som est muito prximo da homeopatia, arte
das doses que cultiva molculas envoltas em meio alcolico. lcool como meio fludo de
propagao de intensidades e no com finalidade de porre. Isso no nos impede de dizer
que um pequeno gesto de bebedeira em certas ocasies de lucidez excessiva pode tambm
fazer bem.
Foram muitas as pessoas que nos ajudaram a ter este cuidado com o som, como
Julia Zakia e o professor Joo Godoy ao visitarem o estdio durante a edio de som da
Estria da Figueira e de Tarabatara. Principalmente no segundo filme, mesmo porque
prximo ao estdio de Joo havia uma vida-recm chegada, que jamais poderia se assustar
com a presena do som durante sua primeira infncia.
Tnhamos um certo apreo por algumas construes sonoras do filme, como quandoo Jardineiro, aps saltar dentro do poo, tocava na grande mangueira e ouvia sons de um
incndio na mata e rangidos estonteantes de rvores caindo. Ou ainda algumas construes
que nos pareciam musicais e fantsticas na medida certa. Godoy foi o primeiro a assistir e
constatar que algo ainda estava desequilibrado. Dizia sentir falta de uma cama realista
para os sons fantsticos. Sendo que os sons fantsticos eram tambm naturais,
ligeiramente distorcidos ou recombinados. Sons naturais entrando em vizinhanas com uma16
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natureza fantstica.
O que fizemos em primeiro lugar foi abaixar radicalmente todos os sons que se
comportavam como anti-natureza agressiva. Depois efetuamos uma limpeza nas
composies excessivamente ruidosas, calando alguns sons e semeando silncios. Em
seguida procuramos nos sons ambientes manifestaes sonoras que pudessem estimular aecloso de rudos fantsticos, como o arrulho distante de uma pomba que fosse capaz de
liberar um canto fantasmagrico. Tudo passou a soar melhor. Percebemos que a tal cama
naturalista j estava l, nos ambientes, mas encontrava-se esmagada pela vontade
excessiva de criar sensaes. O marulho do filme, a pacincia do mar encontrava-se
soterrada por uma inquietao criativa que pertencia s a ns, mas no ao filme.
S ao terem suas intensidades reduzidas e seus encaixes recombinados que as
participaes anti-natureza do som conjugaram-se aos ambientes e, sem se anular, deram
origem a uma nova natureza, ao mesmo tempo fantstica e bem-vinda, musicalmente
natural. Devemos consolidar um territrio para em seguida vislumbrar frestas e linhas de
desterritorializao. Traar mapas para termos a chance de permear algumas de suas
fronteiras.
Os sons de floresta queimando e da rvore caindo continuaram ali, no entanto,
pulsavam agora dentroda rvore como o rumorejar de sua seiva, enquanto l fora o bem-
te-vi continuava cantando suas boas vistas. Os rudos fantsticos desenvolveram relaes
mtuas com o som ambiente que passaram a permitir sua ecloso. Desprenderam-se a partir
de partculas disparadas pelo prprio som ambiente. Entrelaaram-se com o entorno ao
invs de soterr-lo, fizeram entorno. Ao passo que o prprio som ambiente mudava de
natureza atravs deste encontro sadio...
Agora no eram mais nossos ouvidos que queimavam, nem a grande rvore imvel
da imagem. Agora uma molcula de incndio trazida pelo vento nos sugeria perigos,
tornavam-se audveis, atravs do Jardineiro, as intensidades que podem percorrer uma
rvore, a eminncia da queda ou da queimada, uma partcula de memria ou destino damatilha vegetal, insinuando-se pelo presente da clareira, sem que os insetos ao redor
parassem de tocar reco-reco.
Essa sntese de disparates no ocorre sem equvoco. talvez o mesmo equvoco
que se encontra na valorizao moderna dos desenhos de criana, dos textos loucos, dos
concertos de rudos. Acontece de se levar isso longe demais, de se exagerar, opera-se com
um emaranhado de linhas ou de sons; mas ento, em vez de produzir uma mquina17
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csmica, capaz de tornar sonoro, se recai numa mquina de reproduo, que acaba por
reproduzir uma garatuja que apaga todas as linhas, uma confuso que apaga todos os sons.
Pretende-se abrir a msica a todos os acontecimentos, a todas irrupes, mas o que se
reproduz finalmente a confuso que impede todo acontecimento () a sobriedade dos
agenciamentos que torna possvel a riqueza dos efeitos da Mquina.. (Deleuze e Guattariem Mil Plats.).
tambm importante dizer que no devemos nos sentar ilha de edio de som
com muitos freios. A ilha uma mquina de viagens imveis, lentas ou velozes, no temos
portanto o risco de bater num poste, pelo menos no literalmente. Cada dia de trabalho
como uma camada de tinta que lanamos na tela. Devemos esperar o dia seguinte para que
a tinta seque e recomear a pintar. A grande diferena que o som nunca seca, sempre
mido, fludo e no deixa marcas. Se tirarmos um som de uma seqncia nada poder
indicar que um dia ele esteve l. Devemos experimentar, ao ritmo do desejo, a manipulao
continuada desta matria malevel e desapegada como poucas outras. Depois necessrio
convidar outros ouvidos para escutar nosso trabalho, pois sempre ao atingir os pavilhes
do ouvido do outro que a edio de som se realiza, quando entradas e sadas de outros
labirintos conjugam-se s nossas. Caso contrrio seria acreditar que nossos ouvidos so
absolutos e nosso tmpano, um buraco negro.
Na verdade, editar o som de um filme pode ser a aventura de abrir na imagem
mltiplos ouvidinhos, ouvidos-voz. O ouvido-voz de um personagem que esqueceu seu
nome, o ouvido-voz do bando, ouvido-voz do urubu que sobrevoa a cena, que canta ou se
cala espreita, ouvido-voz das plantas, ouvido-vozes de infncia... At que a prpria tela
esteja tranada num agenciamento auditivo pluri-voclico, um labirinto ouvinte e falante
com mltiplas entradas e sadas, modulado pela prudncia, simplicidade e ternura que
devemos dedicar a este nosso ofcio.
How many ears must one man have, before he can hear people cry ?The answer my friend, is blowing in the wind
(Bob Dylan)
J que tocamos no assunto do susto e das sensaes de terror que o som pode nos
trazer, vamos falar sobre a sequncia em que a Madrasta castiga a Menina dos Cabelos
Dourados com um pote de abelhas.18
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A imagem e a montagem no revelam explicitamente o castigo. Vemos apenas a
menina sendo recebida na porta de casa pela madrasta, com os cabelos desfeitos, uns figos
comidos na mo direita e um pote de abelhas na mo esquerda. A menina entra em casa a
passos lentos, a madrasta vem atrs, com os figos e as abelhas, passa pela porta e a fecha
com os ps. Corta e vemos o rosto do pai da menina, em plano prximo, cheio deescurido. Depois vemos o Jardineiro acordando assustado no meio do feno. Ele pega uma
p e sai correndo apressado. H um corte que nos mostra a cama da menina vazia. Mais um
corte e vemos a madrasta andando ao relento a passos firmes, carregando entre os braos
uma trouxa de panos brancos.
Sonorizamos a sequncia da seguinte maneira : no primeiro momento, quando
menina e madrasta se olham nos olhos, colocamos um som ambiente de brejo agitado.
Ouvimos tambm as abelhas dentro do pote, soando de maneira naturalista. A madrasta
pergunta : Onde esteve ?. Os sapos se agitam, ento outros sapos mais agudos surgem
para responder aos primeiros. Quando vemos o pote de abelhas em plano prximo os sons
dos sapos agudos misturam-se ao som das abelhas fervilhando num espao reverberado.
Uma abelha anda pelo vidro e seu percurso sonorizado por um zumbido que vai sendo
deformado em tempo real, indo do tom mais grave ao mais agudo, numa idia de
acelerao. Ouvimos as asas das abelhas se embolando. Esta composio foi formada por
sons reais de abelhas, moscas e asas de besouros, modificados no computador, como num
caldeiro de bruxa.
de fato uma sonoridade que aflige, ou incomoda, no entanto, no recorremos,
como a montagem no recorreu, a um ponto culminante de susto, a um evento nico, um
barulho pontual ou uma picada que liberasse o terror num s golpe. O que tentamos foi
deflagrar a propagao de uma ameaa de perigo que se espalha pelas coisas, um rumor de
medo conectando-se por linhas oscilatrias ao entorno, sem precisar de um evento pontual
para escapar e mostrar todas suas garras de uma vez.
A menina entra em casa, a madrasta a segue. O som das abelhas vai se distanciando.Ouvimos uma voz grave e distorcida, quase como um vento pesado e passageiro. A
madrasta fecha a porta com os ps e ouvimos o cadeado batendo na corrente, sem se
trancar. Ouvimos por fim, em segundo plano, o som ferico de uma p raspando na pedra.
Corta para o rosto do pai, sobre o qual ouvimos vozes humanas distorcidas, bem graves,
misturando-se a rangidos de madeira distorcidos que tambm parecem vozes. Procuramos
compor para este plano uma espcie de murmrio grave e secular de um ente de madeira e19
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carne que no sabe formar palavras. Em segundo plano ouvimos sons de correntes sendo
manipuladas, seguidos do som de um cadeado se fechando. Este ltimo som invade o plano
em que o Jardineiro acorda, como se deflagrasse seu despertar. O Jardineiro pega a p e sai
correndo. Colocamos o som da p batendo em alguma pedra pelo meio do caminho. A
vibrao do ferro da p prolonga-se at o prximo plano, quando vemos a cama da meninavazia. Deixamos essa imagem s com o som ambiente (sapos e insetos) que vinha
aumentando de intensidade desde o castigo, para atingir seu pice neste plano. Ento pouco
antes do corte ouvimos o som de uma longa raspada de p na pedra. Esse som da p sobre a
imagem da cama vazia nos dava a idia de rapto, uma raspagem agressiva sobre os lenis.
E trazia tambm partculas sonoras da p do jardineiro para esta abduo, colocando-os em
relaes suspeitas.
Quando vemos a imagem da madrasta carregando o corpo da menina, ou apenas
uma trouxa de lenol branco, chegamos no ponto mais importante : ao invs de crescer
ainda mais o som ambiente, o que teria sido uma primeira idia, diminumos radicalmente
sua intensidade, trazendo-o de volta escala natural. A nica coisa que ouvimos neste plano
alm do ambiente naturalista so os passos decididos da madrasta sobre a terra. As leis
naturais voltam a operar neste plano, e com exclusividade, trazendo a indiferena ao som
ambiente e a lei da gravidade aos passos da mulher. Neste instante cala-se a fantasia.
Duas hipteses : ou os bichos voltaram ao seu estado natural depois da morte da
menina, numa espcie de recusa em continuar dividindo suas partculas sonoras com o
campo de feitiaria da madrasta, ou os passos desta mulher eram to intensos que
encobriram o ambiente fantstico, pois carregavam agora o peso de dois corpos. O fato
que no plano que poderia ser o mais explcito da sequncia, optamos pela quietude. No
ouvimos gritos da menina, nem bichos exaltados. Apenas os grilos cuidando de seus
afazeres e os passos marcados na terra.
Pensamos que a montagem desta sequncia no revela o castigo com um momento
preciso, mas cria uma mquina de castigar dissolvida entre os planos, na qual todos ospersonagens esto envolvidos. A madrasta diretamente, o pai inerte resmungando no escuro,
o Jardineiro despertando inquieto. Da mesma maneira, partculas sonoras emitidas do
universo desses personagens tambm entram em relaes com a mquina da montagem
para compor um novo fluxo de castigo. Mas trata-se sempre de um castigo indeterminado e
no pontual, que percorre as imagens mas no se fecha sobre nenhuma delas. Fragmentos
de sons de correntes, vozes do pai e da madeira, o cadeado que se fecha, energia sonora20
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escapando do choque da p do jardineiro e vibrando sobre a cama da menina O que se
estabelece so pactos, alianas e traies entre personagens e entre partculas sonoras. Os
insetos, por exemplo, que tomam parte no castigo da menina, voltam ao normal depois que
vemos a trouxa que poderia ser seu corpo, e abandonam a madrasta com seus prprios
passos. O Jardineiro despertado pelo som do cadeado, talvez para salvar a menina talvezpara enterr-la, os sons de sua p pairam sobre um pequeno leito vazio.
Jamais seremos capazes de ter certeza de como uma mquina audiovisual se
conjugar aos espectadores e s multides intensivas que os atravessam, em constante
renovao. Ter essa certeza seria subestimar o prprio processo de desejo, nosso e do
espectador, a potncia dos livres encontros, e as novas linhas de fuga que encontram novas
passagens por qualquer obra j formatada. Alm do mais estas idias que aqui escrevemos
no so um modelo intelectual ou interpretativo que se colocou entre ns e a imagem
quando nela trabalhvamos, portanto, no so e jamais poderiam ser um pr-requisito para
que as pessoas sejam atingidas pelo filme. Isso iria contra toda orientao de nosso
trabalho, contra nossa prpria crena nas frestas do viver e nos processos desejosos, e
tambm contra a certeza de que um s espectador j multido.
Acreditamos, do fundo de nosso corao, que no estamos fazendo metforas,
analogias formais ou modelos transcendentes de interpretao. O que buscamos instaurar
relaes possveis de velocidade e lentido entre sons e imagens, a partir da combinao
variada entre intensidades sonoras de livre encaixe, tecidas por entre as conexes desejosas
que fazemos com o filme, que fazemos a todo instante em nosso viver. Conexes que nunca
podem ser curto-circuitadas num sujeito nico, pois s tornamaudvelao prolongar linhas
que atravessam os sujeitos, atravessam o filme e atravessam a terra. um trabalho de
encontro de matilhas. Como o choro ritual de um ndio alcanando o mergulho do cigano
nas guas incertas.
claro que ao editar o som de um filme usamos nosso pensamento e nossa razo,
mas temos certeza de que o desejo mais rpido para alcanar o som procurado, porque ele capaz de se conectar com qualquer coisa e prolongar qualquer linha de intensidade, mudar
de natureza a cada encontro, fazer vizinhana com qualquer terreno, encontrar sadas at
quando estamos dormindo. O desejo o corpo-sem-rgos do corpo orgnico.. O que
procuramos fazer, na verdade, permitir que processo de desejo e processo de pensamento
se atravessem, afetem-se mutuamente para produzir material audvel.
Se na estria da figueira utilizamo-nos apenas de sons naturais, em Tarabatara21
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recorremos ao sintetizador. Pensamos ser esta uma curiosa diferena entre os dois filmes.
Enquanto o primeiro uma fico fantstica construda por sons naturais, modificados e
recombinados aqui e ali, o segundo um documentrio que de to cigano abriu espao
tanto para interferncias de ondas de rdio quanto para sonoridades sintetizadas
eletronicamente.No primeiro filme tnhamos como desafio envolver uma histria fantstica num
meio-ambiente, encontrar nas construes sonoras ressonncias com a simplicidade viva do
olhar da pequena menina de cabelos dourados. Naturar movimentos fantsticos sem apag-
los. Em Tarabatara tnhamos diante de ns os grandes espaos vazios, um mar de
sonoridades possveis por entre as rotas desse povo, que caminha pela terra desde antes da
bblia. Nosso dever era encontrar frestas e dobras no territrio de um documentrio, sem
arruinar seu tempo e espao prprios.
Se pensvamos que o desafio da simplicidade estava resolvido pela experincia do
primeiro filme, tnhamos ainda muito a aprender com o segundo. O que s prova que tal
desafio dirio, se faz a cada passo e encontro, toda vez que novos mundos se abrem e
agenciamentos tm de ser operados. Devemos estar alertas e alegres a cada gesto.
Em Tarabatara, para a cena em que a cigana de vestido vermelho mata uma galinha
preta, reunimo-nos com um amigo, Bruno Palazzo, e criamos uma msica eletrnica num
sintetizador analgico dos anos 80. A msica ficou realmente boa, no entanto, tapava os
poros da imagem, como plstico derretido.
Quando Godoy assistiu a esta cena percebi sua cara de preocupao. Depois foi
Julia quem assistiu e finalmente disse : A no d. um filme da terra, sobre pessoas que
caminham pela terra, pertencem a ela. Essas pessoas nunca ouviram msicas assim e a
galinha est sendo preparada para comer. Comer na comunho do bando.
Foi triste e importante saber que nosso trabalho de som era capaz de cortar conexes
vitais. Banhar de leo uma ave migratria.
Escutemos Tarkovski quando diz que os sons eletrnicos devem ser depurados desua origem qumica, para que, ao ouvi-los, possamos descobrir neles as notas primordiais
do mundo..
Vendo o filme hoje nos parece bvio que a imagem j carregada de sangue, uma
galinha preta, uma cigana de vermelho. Quem quiser pensar em bruxaria vai pensar, mesmo
que a seqncia fosse muda. Mas uma cena de comida no de terror. Tiramos ento as
batidas e as freqncias eletrnicas contnuas. Mantivemos alguns sons sintetizados como22
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as bolhas graves de gua, algumas notas que se assemelhavam a piados de galinha, e o
vento. Diminumos a intensidade destes sons at que eles passassem a pertencer ao
ambiente, a tecer malhas com ele. No ambiente por sua vez, colocamos um delicado efeito
de reverberao que sugerisse uma ressonncia do mundo real, um pequeno atraso ou
mudana de velocidade em relao realidade, da mesma maneira que o Super-8 podepropor brumas em torno da imagem.
Na abertura desta seqncia a cigana afia a faca na pedra. Inicialmente havamos
colocado sons de faca sendo afiada, sem nos preocupar com o sincronismo com a imagem.
Quando Godoy assistiu disse : isso precisa de sincro.
Pensamos e conclumos a importncia do sincronismo para a seqncia, nunca
como camisa de fora nem mecanismo de captura dos sons, mas como agente deflagrador
de velocidades. Ora, se o som da faca est em sincro o mesmo que dizer que aqueles sons
pertencem quela imagem. Encaixam-se nela com a exatido das peas de um quebra-
cabea. Ento, a partir deste encaixe preciso podemos traar linhas de fuga, remodelar o
quebra-cabea com outras conexes que no estavam previstas pelo fabricante, fazer com
que as peas se prendam umas s outras por campo de fora, sem mais precisar de encaixes
pr-determinados. S assim chegaremos a novas figuras. como se o sincro fosse um
primeiro chamado de clareza, convidando-nos a mergulhar na imagem. No bom se
banhar nas guas sem este primeiro mergulho preciso e prudente. Mas tambm no bom
observar um rio correr ficando sempre na segurana do cho. Devemos estar atentos aos
redemunhos e s espirais, mesmo que estes banhem e arrebatem apenas a planta de nossos
ps, como ccegas de infncia.
Alm do sincronismo da faca gastamos ainda muitas horas encaixando os rudos de
sala da galinha sendo depenada e cortada. Os sons da panela de presso foram captados no
prprio acampamento e ralentados em computador em busca de defasagens,
desaceleraes que pudessem encontrar na pressa da panela partculas de pacincia.
Mas algo ainda faltava seqncia. Algum fator naturalizante, doses de calma.Fomos buscar ento em nosso arquivo sons das ciganas conversando enquanto preparavam
sua comida. Estes sons mostraram-se essenciais e foram rapidamente elevados ao primeiro
plano. Era isso que mais interessava cena : as vozes dessas mulheres que preparavam o
alimento do bando. As protagonistas. S pelas frestas destes burburinhos que os sons
sintticos puderam ento se manifestar com bem aventurana.
Estava temperada a galinha, com muito apetite e uma pitada de mistrio.23
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Nota de sincronicidades
J que tocamos no delicado assunto do sincronismo, principalmente no que se refere
s imagens em super-8, cuja natureza intrnseca muda, vamos desenvolver a questo. Na cena em que o velho Francisco toca violo em super-8 comeamos nosso
trabalho da seguinte maneira : a sequncia se abre com crianas ciganas pulando feito
sapinhos em direo cmera. A palavra sapinhos foi a primeira que nos veio mente
quando assistamos ao material. De forma que os caminhos do desejo nos impulsionaram a
procurar em nosso arquivo de som direto um ambiente de brejo. Encontramos um lindo
ambiente estreo colorido de sapos de vrios tamanhos e timbres. Sabemos muito bem que
os sapos s cantam noite, e nossos olhos tambm perceberam que a imagem a ser
sonorizada era diurna. Talvez os gros do super-8 ou mesmo a liberdade no olhar das
crianas ciganas que tenha nos permitido tal disparate. Partculas de noite espalhando-se
por um dia granulado, proposta para um entretempo no caminho da noite para o dia. Filhos
do sol e da lua. Velocidades de pulo de criana alcanando lentides de sapo no brejo. O
desejo de ouvir para traar mapas e propor dobras com a imagem.
No canal do centro colocamos um som mono de sapo cururu, tambm gravado no
serto. No entanto, quando a imagem nos mostrava o velho tocando violo o ambiente dos
sapos assumia um papel excessivamente infantilizante, descolava-se da imagem. Ento
fizemos um fade-out nos sapos e abrimos caminho para um vento construdo em
sintetizador, intercalado com notas tambm sintticas que sugeriam pequenos cantos de
gaivotas distantes. A ventania sintetizada arrastou a imagem para um local talvez mais rido
e rarefeito.
Sentimos ento que a msica que vinha sendo tocada pelo velho no comeo da
sequncia, gravada tambm no acampamento, remetia mais imagem das crianas
brincando do que ao novo ambiente rarefeito alcanado. Era uma msica muito saltitante.Desta maneira decidimos que a msica deveria mudar de natureza, sofrer um tropeo, um
salto quntico. Investigamos nosso arquivo de som direto e encontramos uma gravao em
que o velho tocava uma linda seresta, mais lenta. Ento, para construir a passagem de uma
msica outra, aumentamos a intensidade do vento sinttico, como se uma lufada mais
forte tivesse resolvido soprar. Construmos uma lufada para que, por dentro deste novo
sopro, pudssemos operar a troca entre as msicas. Novas partculas musicais trazidas pelo24
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vento. Feita a troca, a ventania se abaixa e a seresta lenta assume o primeiro plano sonoro.
Quando Julia assistiu cena ficou um pouco incomodada. Disse que estes ventos
levavam o acampamento para um local muito incerto, enquanto na verdade o velho estava
apenas tocando violo em seu rancho, no fazendo uma viagem dimensional.
A primeira coisa que fizemos foi um esforo imenso para colocar o som do violoem sincro com a imagem, uma vez que a gravao do som da viola do velho havia sido
feita num momento diferente da captao da imagem. Fizemos nosso melhor e a msica
tornou-se mais natural, passou a fazer sistema com as mos do cigano, mesmo sem alcanar
um sincronismo perfeito.
Em seguida diminumos a intensidade da ventania como um todo, mantendo apenas
as pulsaes e a dinmica original entre os ventos. Tudo ficou mais calmo e tanto mais
interessante quanto mais microscpico se tornava. As lufadas estavam l, traziam a nova
msica do mesmo jeito, mas agora sem nfase excessiva, com a pacincia de um velho
cigano que sabe que as mudanas chegam sem alarde.
No entanto algo ainda soava estranho. Na verdade a imagem parecia estar um pouco
vazia, rarefeito demais. s vezes no basta diminuir a intensidade dos sons para
molecularizar a composio.
Comeamos ento a olhar para dentro da imagem ao invs de procurar solues
vindas de fora. Quase camos para trs ao perceber o bvio : a velha cigana Maria, mulher
de Francisco, em segundo plano limpando as panelas. Seus gestos no metal nos abriam
importantes linhas de fuga eram nova latitude no mapa da cena.
Em nosso arquivo de som tnhamos um amplo material de panelas sendo esfregadas,
com gua, mos e tambm raspadas com uma colher. Colocamos estes sons, inicialmente
em sincro com os movimentos de Maria. Mas a idia aqui no era decalcar seus gestos por
inteiro nem prender-se atividade de limpar panelas, mas liberar musicalidades,
instaurando novas relaes de movimento e repouso entre os sons e as imagens daquela
atividade domstica. Precisvamos do sincro como ponto de partida, mas estaramosperdidos se ficssemos presos a ele.
Assim, aps estabelecermos esta primeira relao sincrnica com os gestos de
Maria, fomos pouco a pouco criando defasagens entre os movimentos da cigana e os
tilintares de metal, encontrando ritmos, utilizando as panelas como pequenos tambores
domsticos. Batuque na cozinha a sinh no qu...
Percebemos ento que as panelas penduradas no paneleiro balanavam25
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delicadamente ao vento. Sonorizamo-as com o som do serrote sendo sacudido, que sugeria
tanto uma ventania quanto uma vibrao metlica.
Assim, atravs das panelas balanando e soando, a ventania sinttica passou a fazer
mais parte da imagem, a refletir-se nela na medida em que se conjugava ao movimento sutil
das panelas penduradas. A imagem foi ento sonorizada em toda sua profundidade decampo. Construiu-se uma mquina sonora conectada imagem por diversas linhas, pontos
de sincro e caminhos de fuga.
O mais interessante nesta cena que a msica da cigana Maria no faz o
acompanhamento percurssivo para a msica meldica de Francisco. Isso seria reduzir sua
potncia, territorializar uma msica na outra, as duas num s compasso, e estreitar as
possibilidades da construo sonora, fechar os mapas. O que temos so duas musicalidades
diferentes, com velocidades e lentides prprias, encontrando-se numa zona de vizinhana
e ocupando o espao em profundidade. Duas linhas de fuga fazendo espiral e no um
cachorro correndo atrs do prprio rabo. O cigano que toca violo, a cigana que faz fugir
ritmos do trabalho.
Construo possvel a partir de um ponto de sincro, no como buraco-negro
capturador dos sons, mas plat para lanar vos.
A sequncia continua com a pequena cigana Sielma entrando em quadro com seu
vestidinho branco e encarando a cmera. Tivemos vontade de sonorizar esta apario e
optamos pelos tilintares de cristal, j utilizados na Estria da Figueira. Se a velha cigana
emite partculas de metal, a criana caminha com leveza de cristal. Cria-se uma rima entre
os dois tilintares, cruzamento de partculas etrias num agenciamento sonoro. Batimentos
metlicos encontrando celeridades cristalinas.
A sequncia se encerra com outra ciganinha, Cia, encarando a cmera com
expresso emburrada enquanto foge de alguma coisa. Este alguma coisa para ns eram os
fogos de artifcio que iriam explodir na sequncia seguinte. Assim, sonorizamos o caminho
de Cia com o rudo agudo do busca-p, mesmo sabendo que na sequncia seguinte osciganos estariam soltando rojes.
Tal construo foi possvel porque acreditamos que em Tarabatara o Super-8 entra
num agradvel jogo de espelhamentos com o vdeo. So dois territrios que fazem
vizinhana e se tocam por vasos comunicantes. Possuem um entre, e uma membrana
permevel. Ao fazerem a travessia os sons mudam de natureza, surgem ou aquietam-se,
mas no perdem as linhas de intensidade que os ligam aos ciganos. Rojo soltado em bando26
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no vdeo antecipado pelo apito do busca-p na criana do Super-8. Isso liberta tanto o
super-8 quanto o vdeo, porque assim ambos tm a chance de serem percorridos por
intensidades que se modificam nos encontros, metamorfoseiam-se por entre as bordas e
continuam vibrando a uma nova maneira. Vdeo e Super-8 no so a mesma coisa mas
tambm no so dois blocos isolados. Atravessam-se num duplo caminho de afetar e serafetado.
H uma sequncia em vdeo que apresenta uma construo sonora muito parecida
com as do Super-8, e uma das que mais nos agrada. Trata-se da sequncia da escola.
Vemos em plano prximo o cigano cantor nos dizendo que eles pararam de andar,
mas se acontecer, se o destino quiser, eles voltam, sem problema algum. Comeamos ento
a ouvir as rodas de um carro de boi girando sobre a areia. H um corte que nos mostra um
olhar certeiro e tambm sonhador de uma menina cigana. Continuamos a ouvir o carro de
boi rodando, combinado com um som ambiente do acampamento, misturado com leves
pssaros. A cmera vai se afastando, a roda a girar, o olhar da menina parece dar uma
ligeira escapada at que ouvimos, ainda sobre seu rosto, o sinal da escola tocando.
As pausas so repletas de dinamismos, o novo sempre vem, um sinal tocando segue
uma roda girando porque a gente no pode lutar contra o destino da gente. A roda gira,
berra o sinal, espalham-se as letras no quadro negro e nas vozes diversas das crianas
cantando o A B C. A cena na classe dura o tempo do ABC porque quando a professora diz,
E agora na sequncia... j estamos vendo a imagem de um casal infante caminhando
enlaados frente ao pr-do-sol. Os gritos da molecada na rua tomam o lugar do A B C e a
roda do carro de boi encontra-se apenas no giro das bicicletas. Dia-a-Dia. Tudo volta nova
normalidade, por enquanto com vista pro Oeste.
De volta questo do sincro.
Vemos o cigano doidinho, em vdeo, consertando algo com seu alicate. Um vento
acaricia seus cabelos quando ele percebe a cmera e a encara. O doidinho solta um suspiro.
H um corte que nos leva ao mundo granulado do Super-8, onde o mesmo cigano estdando cambalhotas alegres em guas incertas. Dizemos incertas porque tais guas no tm
geografia estabelecida no filme, podem estar a norte ou a sul da imagem anterior,
pertencem a um entretempo ldico, so intervalo, caminhos de cigano andar.
No entanto nosso desejo era de que o espectador tomasse parte nestes mergulhos,
sentisse a verdade destas guas para que, com a audio refrescada, se embrenhasse pela
sequncia. Foi Joo Godoy quem pediu licena e sentou-se ao computador para editar os27
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sons destes mergulhos. Ele disse : Deixa comigo que sou bom de gua. O mergulho ficou
em sincro, nos levando junto nas cambalhotas. Percebemos que os sons de gua so
maleveis o suficiente para poderem se conjugar a linhas de movimentos mais do que a
pontos exatos de sincro. Conectam-se de maneira fluente a pesos e gestos e se misturam
entre si com alegria. Prolongam as linhas de movimento de seus irmos com bolhas ouespirros, fazem rapidamente um sistema aquoso fluente. Em algum nvel todos os sons so
de gua
A partir deste mergulho o espectador estava convidado a submergir nas guas
incertas, ou pelo menos a saber de sua fluidez. O sincro da cambalhota veio para disparar
partculas midas que se conjugariam com outros sons num novo marulho. Piparote
doidinho tirando gua dos nossos ouvidos.
O ambiente dessas guas foi construdo por acaso. Havamos gravado um ambiente
estreo de um pequenino remanso dgua, repleto de pedrinhas nas quais a gua
tamborilava e estourava mnimas bolhas. Era um som muito bonito que apelidamos de
tamborzinho de prata. Quando lanamos este som na timeline, sem querer deixamos o
canal direito levemente defasado em relao ao esquerdo, criando uma agradvel sensao
de eco. Fomos surpreendidos por uma gagueira do acaso, pregaram-nos uma pea e assim,
por elas mesmas, as guas fizeram-se incertas.
Depois que o cigano afunda no lago colocamos, junto com as bolhas naturalistas,
sons feitos em sintetizador que se assemelhavam ao canto de um canrio, e rimavam com o
timbre dos estalidos da gua. Por que um som eletrnico ao invs do canto do prprio
pssaro? Talvez porque, nesta cena, buscssemos os caminhos das foras desejosas que nos
ligam ave e no a reproduo de seu canto. Entrar em devir com a ave e com o cigano
banhista. Tencionar uma freqncia pura at que ela chegue o mais prximo do passarinho,
at que ela seja capaz de se comunicar com ele sem precisar imit-lo. Relaes de
velocidade e lentido estabelecidas entre partculas que escapam do bico da ave e das teclas
do sintetizador, para se conjugarem num plano de composio que no comporta mais asformas deste pssaro ou daquele instrumento, mas apenas uma livre circulao de afectos
que, ao se conectarem, podem tornar audveis foras no-sonoras. Podem tornar audveis,
por exemplo, blocos de infncia do cigano doidinho que passa por ns e, de banho tomado,
afunda em direo ao canto amarelo do canrio aqutico.
Devir nunca imitar. Quando Hitchcock faz o pssaro, ele no reproduz nenhum
grito de pssaro, ele reproduz um som eletrnico como um campo de intensidades ou uma28
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onda de vibraes, uma variao contnua como uma terrvel ameaa que sentimos em ns
mesmos.. 4
A partir da os sons se encaminham para um agenciamento mais musical, que se
estender at o final desta sequncia. Uma rabeca cigana do leste europeu, combinada com
interjeies de crianas ciganas do serto, ritmada pelo tilintar metlico e aquoso da ciganalavando loua, o esfregar da vassoura no cho e um espirro de panela de presso. Estas
manifestaes de musicalidade entre as tarefas domsticas s foram possveis a partir de
pontos de sincro encontrados, mas s se efetuaram quando desprendeu-se a sincronicidade
exata entre gestos e sons. Quando gestos e sons passaram no mais a se demarcar, mas a se
espiralizar.
At que todos os sons acabam por se diluir no vento que percorre o espao aberto da
imagem seguinte, em vdeo. Para ns como se essas sonoridades mais musicais partissem
do mergulho na gua, passassem pelas crianas e pelo espirro da menina, que as leva at os
trabalhos femininos, percorressem o som da panela de presso para se calar no sopro do
vento, quando passamos ao vdeo e vemos a ciganinha Cia girando na ampla paisagem.
Ciganinha moradora brincando com o planeta de seu corpo numa translao despreocupada.
Ao sonorizar a sequncia final de Tarabatara, na qual as ciganas caminham pela
mata em busca de lenha, nos deparamos com duas propriedades da sincronicidade. A
primeira foi de tempo. Isto , quando dizemos que tal som est em sincronia com
determinada imagem por se encaixar com exatido na durao de determinado evento. O
som de um galho se partindo deve ocupar o intervalo exato em que na imagem um galho se
parte, para estabelecer com ela uma relao de sincronismo. A segunda seria um
sincronismo de corporeidade. Ou seja, para acreditarmos que aquele som de galho
estalando corresponde ao mesmo galho que se parte na imagem, este som deve ter o mesmo
peso, a mesma corporeidade do galho mostrado pela imagem.
Encontrando estas duas sincronicidades tnhamos o decalque realista exato de um
gesto, mas s traaramos um mapa ao colocar estas sincronicidades em variao.Pensamos que boa parte da energia da sequncia final vem do descompasso entre o
peso daqueles galhos que as ciganas carregam na cabea, a robustez das rvores que elas
pem abaixo, com a delicadeza de seus gestos e sua matilha, a leveza com que a cena foi
filmada e as cores pastis do Super-8.
Sendo assim, optamos inicialmente por preservar o sincronismo de tempo ao
4 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix em Mil Plats : Capitalismo e Esquizofrenia..29
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sonorizar os galhos sendo quebrados. No entanto, os sons que usamos eram de galhos mais
leves que os da imagem. Garranchos emitindo sons pequenos, estalidos do mundo
molecular da madeira. Ignoramos o peso dos galhos da imagem para alcanar a leveza que
percorria a cena. Se o peso real dos galhos j percebido atravs da imagem no
precisamos ouvi-lo decalcado pelo som. s vezes o que precisamos criar certosdescompassos entre o que se v e o que se ouve, para que o som se ligue, por exemplo, s
linhas de delicadeza que j atravessam a imagem muda de ponta a ponta, para ento torn-
las audveis.
Optamos por no sonorizar todos os passos nem todos os galhos que eram vistos.
Traamos vacolos de silncio ao redor de alguns gestos.
Depois percebemos que poderamos atrasar microscopicamente o sincro. Criar um
sincro doce, maneira do foco doce do Super-8. Tudo isso no no intuito de chamar
ateno para a construo sonora, nem de incomodar o espectador, mas no desejo de
encontrar solues sonoras para as foras que se cruzam no registro imagtico. Um
imperceptvel atraso, como se naquela floresta, unida entre galhos e cortes, o tempo
tambm gaguejasse e continuasse assim fluindo, em espirais.
Encerraremos esta nota com uma pequena piada de sincro. Na Estria da Figueira
estvamos sonorizando a cena em que vemos duas cabras em primeiro plano, quando o pai
da menina passa mancando pelo quadro. Uma cena simples, que parecia completa com o
som ambiente e o som dos passos do pai. Resolvemos tambm sonorizar as cabras, que
ruminavam. Aps assistir cena muitas vezes, percebemos que uma mosca cruzava o
quadro em altssima velocidade e depois sumia. Imaginamos que numa tela de cinema esta
mosca ficaria enorme e portanto merecia ser sonorizada. Como tnhamos um amplo arquivo
de moscas e insetos, escolhemos um som adequado e lanamo-lo na timeline. Do jeito que
ele caiu, ficou, provocando-nos longas gargalhadas.
que o som da mosca surgia, cruzava a tela e era abruptamente cortado (pois j
havia sido gravado com este corte) no exato instante em que a cabra mastigava algumacoisa. Por uma pea pregada pelo acaso e pelas propriedades territorializantes do sincro,
acabvamos de criar uma cabra engolidora de moscas. Muitos que assistem ao filme tm
uma leitura parecida e riem. Ora, a partir de um fator to exato e realista como o sincro
nascia uma nova espcie de cabra mutante que devora insetos.
Dizemos isto para concluir que o sincro pode ser uma propriedade repleta de frestas
e um excelente ponto de partida para vos livres. Sincronicidades possibilitando o30
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surgimento de novas espcies e pequenos descompassos espiralados
A descoberta do Sintetizador
Foram os filmes do cineasta russo Andrei Tarkovski que nos encantaram os ouvidosdiante das possibilidades dos sons eletrnicos no cinema. como se atravs deste
instrumento musical, deste agenciamento maqunico chamado sintetizador, pudssemos
ouvir a efervescncia em variao contnua que percorre a matria em seus nveis
moleculares. Essa efervescncia passa para o primeiro plano, se faz ouvir por si mesma, e
faz ouvir, por seu material molecular assim trabalhado, as foras no sonoras do cosmos
que sempre agitavam a msica um pouco de Tempo em estado puro, um gro de
Intensidade absoluta, um certo marulho do universo.
Poderamos, por exemplo, fazer com que o som do vapor escapando pela panela de
presso se metamorfoseasse, a partir de suas propriedades intrnsecas, em vento puro. Foi o
que tentamos fazer na sequncia da morte da galinha preta, inicialmente utilizando-nos de
um longo cross-fade entre o som natural do vapor e o som natural do vento. Mas no era
em absoluto um cross-fade que queramos. No soou bem, pois tratava-se ainda de uma
relao de analogia entre vento e vapor, relao biunvoca de substituio de uma forma
pela outra.
O que queramos era pinar por dentro do som do vapor velocidades e lentides,
micropropriedades sonoras, e instaurar por entre elas novas relaes de movimento e
repouso que as levassem o mais prximo de um vento, que por sua vez nunca seria um
vento naturalista, mas sempre um duplo. Uma zona de vizinhana indeterminada entre
vapor e vento, um campo de composio que retm da forma precisamente aquilo que
necessrio sua dissoluo. Plano de intensidades sonoras em variao contnua agitando
musicalidades imanentes Travessia de partculas, mutaes criativas entre as formas. Isso
s foi conseguido com o sintetizador.Uma mquina de sons (no para reproduzir os sons), que moleculariza e atomiza,
ioniza a matria sonora e capta uma energia do Cosmo. Se essa mquina deve ter um
agenciamento, ser o sintetizador. Reunindo os mdulos, os elementos de fonte e
tratamento, os osciladores, geradores e transformadores, acomodando os microintervalos,
ele torna audvel o prprio processo sonoro, a produo desse processo, e nos coloca em
relao com outros elementos ainda, que ultrapassam a matria sonora. (Deleuze e31
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Guattari).
No entanto, nem bem terminvamos de gravar os sons eletrnicos ao lado do
msico Bruno Palazzo, e j sentamos na boca um estranho gosto de plstico. Era como se o
documentrio acabasse de perder toda sua conexo com a terra, sendo recoberto por um
tecido sinttico que lhe tapava os poros. No h melhores termos para explicar o quesentimos : gosto de plstico, cheiro de plstico e tato de plstico. Vedao dos poros.
E durante algum tempo no ouvamos mais o nibus passando na rua, e sim as
micro-ondulaes de suas freqncias graves misturando-se, oscilando por dentro dos
harmnicos do helicptero sobre nossa cabea. Escutvamos linhas vocais e balbcios na
gua que escorria pelo ralo durante o banho e sentamos por dentro dos ossos as freqncias
eltricas vibrando no chuveiro. Escancaravam-se os portes do mundo das freqncias
puras, o campo das intensidades sonoras liberalizadas, a dissoluo dos significados e
significantes. E com eles o perigo do aniquilamento e da cacofonia.
Foi quando entendemos o que Tarkovski queria dizer com depurar as origens
qumicas dos sons eletrnicos para ento descobrirmos as notas primordiais do mundo, os
sussurros da terra. Levamos apenas dois dias gravando os rudos no sintetizador. E duas
semanas inteiras para limpar o filme de sua qumica, filtrar os venenos
Muitos sons que havamos gravado acabaram sendo banidos da verso final. Outros
tantos tiveram suas intensidades reduzidas at o limite da audio. Percebemos que sons de
natureza eletrnica funcionam quando misturam-se aos sons ambientes, emanam deles,
irmanam-se deles em sutis tessituras. Descobrimos a origem do encantamento suscitado
pelos filmes de Tarkovski em suas prprias palavras : a msica eletrnica tem a
capacidade exata de se dissolver na atmosfera sonora geral. Pode ocultar-se por trs de
outros sons e permanecer indistinta, como a voz da natureza, cheia de misteriosas aluses
Ela pode ser como a respirao de uma pessoa.
Os sons eletrnicos que sobraram em Tarabatara so justamente aqueles que
descrevem algum movimento em direo natureza, sem precisar imit-la, ao passo que osprprios sons naturais, ao receber estas participaes eletrnicas, mudavam sutilmente de
natureza, faziam nova natureza num encontro duplamente articulado.
Como na cena do mergulho, quando o som natural das guas caminha para um eco
(atravs de um pequeno atraso entre canal esquerdo e direito) para receber o canrio
eletrnico, em irmandade timbrtica. Um som se tenciona em direo ao outro : o canto da
ave se molha enquanto as guas assobiam.32
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Ou ento no incio do filme, quando o desejo de vo do ciganinho correndo de
braos abertos encontra velocidades de passarinho nas freqncias puras trazidas pelo
vento. Primeiro ouvimos o vento sobre a imagem do menino a correr, depois pequenos
piados sintetizados a partir de freqncias puras em intensidade crescente, que se
prolongam sobre a imagem seguinte do urubu planando no cu. Um ciganinho jamaispoder realmente voar. Urubus no piam, pois so aves silenciosas O sintetizador nunca
cantar como um pssaro. Tanto melhor, pois no campo de composio que as
intensidades que atravessam esses trs entes se encontram e, sobre um corpo sem rgos,
conjugam preciosas linhas de vos livres.
O campo de composio no um plano metafrico ou transcendente. Longe disso.
So multides intensivas nos atravessando aqui e agora, s quais nos ligamos a cada gesto :
Ao fazer de mim mesmo um fumante prazeroso ou no, meus eus sugadores, inaladores ou
sucantes, esto fazendo dos meus eus pulmonares atletas cada vez mais combalidos, esto
fazendo do meu eu financeiro, da minha insero na distribuio universal da renda, uma
aliana com multinacionais propensas ao genocdio, esto fazendo dos meus eus videntes e
ouvintes janelas por demais escancaradas a propagandas que imbecilizam a metamorfose
pica, lrica ou trgica das paisagens e atmosferas. E assim por diante. Por minsculo que
seja cada um desses eus, e por mais irrisria que seja sua atividade principal, ao fazer isto
ou aquilo seu fazer est sempre sobrefazendo ou subfazendo outras coisas, seja num plano
de composio molar, onde uma tarefa em cada lugar implica ou remete a outra, estando
todas como que enredadas numa composio plural, seja num plano molecular de
imanncia, onde o fazer est imerso em trans-lugares, em complexas zonas intensivas de
indeterminao. (Luiz B. L. Orlandi, no texto Que estamos ajudando a fazer de ns
mesmos?).
curioso o fato de no termos nem pensado em utilizar sons eletrnicos na Estria
da Figueira. Provavelmente porque tal recurso poderia ter arruinado o filme. Pensamos que
nesta histria fantstica o som acaba funcionando como uma espcie de fio-terra. Ajuda atrazer o filme para a natureza, ao passo que essa natureza tambm se deixa afetar pelo
filme. Recorrer ao sintetizador seria cortar este fio e abalar o delicado equilbrio conseguido
entre faunas e floras. Equilbrio entre intensidades de conto de fada e sons gravados in
loco.Loco especialssimus.
Ento, por que justamente um documentrio, suposto registro fiel da realidade, foi
permitir o uso de sons to estrangeiros?33
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Cigano. Embaralhando as fronteiras e as cartas. Tudo pode ser estrangeiro e tudo
pode nos pertencer quando a ptria to-somente este cho sob nossos ps, sobre o qual
caminhamos. Territrio deriva e um olhar sincero, eis o mistrio
Estratificao e Transmigrao das partculas sonoras
Da mesma maneira que territorializamos um som ao faz-lo caber num determinado
evento, estratificamos tambm toda a construo sonora ao dividi-la em camadas : so os
sons ambientes, rudo de sala, dilogos, trilha musical e efeitos. Mas j pudemos perceber
que chegaremos ao campo de composio molecular ou ao marulho primordial de um filme
quando houver tencionamento entre estes estratos, isto , quando eles forem levados ao seulimite ou s suas bordas, at que se toquem, se vazem, se calem e mudem de natureza.
claro que essa dissoluo entre os estratos no pode ser feita a cada momento do filme,
deve pulsar como a prpria montagem, sendo sempre capaz de se normalizar ou se
intensificar ao longo do tempo. Deve ser como uma respirao, que supe fragmentaes,
diluies, interseces e reagrupamentos entre os rgos respiradores.
No s a trilha musical que traz a musicalidade de um filme, mas todo
agenciamento entre as foras sonoras presentes na histria, do rudo de sala voz. Pode-se
encontrar musicalidade ao lanar partculas de som para fora de seus estratos, inclusive para
fora da prpria trilha musical, reagrupando-as numa espiral de rbita nmade e faz-las
vibrar musicalmente. Depois, permitir que essa espiral se conecte a outras ou se aquiete,
dissolva-se ou culmine numa exploso capaz de mandar as partculas de volta para casa.
Uma casa sobre rodas.
Quando um on energizado ele acaba sendo expulso de sua camada e libera luz no
caminho de volta. A energizao ou o tencionamento de cada som e das camadas da
construo sonora como um todo nos permite encontrar uma zona de indeterminao
intensiva entre-camadas, onde novas relaes so instauradas entre sons temporariamente
degredados de seu territrio de origem. Isso nos leva para perto da msica porque permite
uma nova ocupao emocional do espao e do tempo, engendrando novos espaos-tempos,
ao invs de decalcar uma suposta exatido fsico-cronolgica.
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Tal desterritorializao dos estratos no se aplica s a filmes fantsticos, muito pelo
contrrio, uma vez que novos espaos-tempos, mesmo que microscpicos, podem ser
deflagrados a partir do menor gesto. Guimares Rosa faz isso com as palavras, arranca-as
de seu territrio de origem, ou encontra para elas uma nova terra natal, prope novos
encaixes, faz gaguejar a linguagem, no em benefcio de uma loucura artstica masjustamente para trazer sentimentos to reais que a linguagem em seu estado original no
seria capaz de expressar. Ele no leva em conta as palavras apenas em termos de
significado e significante, mas a partir das intensidades que por elas passam. As palavras se
deixam arrastar por circunstncias.
Daremos um exemplo de transmigrao entre os estratos.
Os ciganos pulam uma cerca e cruzam uma propriedade privada. A cada cigano que
pula a cerca ouvimos os rudos dos arames farpados balanando (rudo de sala). Cada
arame uma corda spera, emitindo uma nota tosca, num ritmo assimtrico. Por entre o
som do arame comeamos a ouvir o ranger distante das rodas de um carro de boi (efeito).
Um carro de boi cruza o horizonte ao longe (o efeito vira rudo de sala) quando comeamos
a ouvir, vindas de dentro dos seus gemidos, as notas de uma rabeca sendo afinada (efeito ou
msica?). A rabeca ganha corpo (msica) e o tic-tac dos arames batendo vai sendo
ralentado a