TCC - Diógenes, o cínico

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO SÉRGIO LUIZ LIMA GRECCO O CINISMO DE DÍOGENES X O CONSUMISMO DA SOCIEDADE Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Universidade Gama Filho como requisito do Curso de Pós-graduação lato sensu em Filosofia. Orientador: Professor Ms. Emerson Rocha PORTO ALEGRE 2012

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Consumismo de nossa sociedade e o contraponto na filosofia de Díogenes, o cão.

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

SÉRGIO LUIZ LIMA GRECCO

O CINISMO DE DÍOGENES X O CONSUMISMO DA SOCIEDADE

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Universidade Gama Filho como requisito do Curso de Pós-graduação lato sensu em Filosofia. Orientador: Professor Ms. Emerson Rocha

PORTO ALEGRE 2012

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo estudar e entender o porquê do consumismo

de nossa sociedade, cada vez mais exacerbado, contrapondo com a filosofia de

Diógenes, e demais seguidores do Cinismo, que buscava o despojamento de

quaisquer bens materiais como forma de alcançar liberdade e felicidade, criticando a

relação do homem com o consumo que já existia na época.

PALAVRAS-CHAVE: filosofia, cinismo, Diógenes, consumo, consumismo.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 5

2 CINISMO................................................................................................................................ 7

3 DIÓGENES ........................................................................................................................... 10

4 CONSUMISMO ..................................................................................................................... 15

5 O QUE DIÓGENES PODE NOS ENSINAR?................................................................................................................................ 21

CONCLUSÃO........................................................................................................................... 25

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................... 26

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ABSTRACT

This work aims to study and understand why the consumerism of our society,

increasingly exacerbated, in contrast with the philosophy of Diogenes, and other

followers of cynicism, which sought the divestiture of any material goods as a way to

achieve freedom and happiness.

KEYWORDS: philosophy, cynicism, Diogenes, consumerism.

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INTRODUÇÃO

Para muitos, a felicidade é a mola propulsora da vida. Alguns tentam buscá-la

através da conquista de status, fama e reconhecimento entre seus pares,

consumindo produtos que “demonstrem” suas qualidades ou lhe tragam prazer.

Outros, poucos, de forma diversa, tentam alcançar a felicidade se despojando de

tudo que consideram supérfluo.

Por que consumimos tanto? Realmente necessitamos de tantos bens para

sermos felizes? Muitos acreditam serem estas perguntas formuladas apenas pelos

homens contemporâneos, nascidos pós-revolução industrial. No entanto, desde a

Grécia antiga, filósofos já se perguntavam se o consumir traria felicidade ao homem,

ou ao contrário, o escravizava.

Diógenes, e outros seguidores do Cinismo clássico, se despojaram de

quaisquer bens materiais, inclusive de suas moradas, como forma de alcançar a

verdadeira liberdade. Como as idéias destes filósofos podem nos ajudar a responder

as perguntas formuladas acima? Este é o objetivo deste trabalho.

Partindo dessa problematização, foram traçados os seguintes objetivos para

esta pesquisa:

a) Compreender a filosofia de Diógenes e demais filósofos cínicos;

b) Estudar por que o consumo faz parte da natureza social humana e por que

o seu exagero pode ser maléfico ao homem e à sociedade;

c) Perceber e examinar como a filosofia dos cínicos gregos pode ajudar o

homem atual a ser mais livre e feliz, consumindo de forma consciente.

Para dar conta desses objetivos, será empreendida uma pesquisa

bibliográfica sobre assuntos diversos como sociedade, consumo, filosofia grega,

cinismo e a filosofia de Diógenes. Após, a pesquisa exploratória avaliará quais

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teorias ou conceitos existentes nos filósofos cínicos gregos serão aplicadas neste

trabalho, procurando entender a relação entre consumo, liberdade e felicidade.

A pesquisa bibliográfica utilizada neste artigo se baseou em livros sobre

filosofia, como a Antologia Ilustrada de Filosofia, de Nicola Ubaldo; sobre o cinismo,

com A History of Cynism, de Donald Dudley; sobre a filosofia e a vida de Diógenes,

com a obra Diógenes, O Cínico de Luis E. Navia; e finalmente um estudo sobre o

consumo baseado na obra Darwin Vai às Compras - Sexo, Evolução e Consumo, de

Geoffrey Miller.

O conjunto das obras estudadas irá ajudar a entender por que, para o homem

atual, ser é ter, pois só consumindo acreditamos poder fazer parte da sociedade. Já

Diógenes, o filósofo que morava em um barril e tinha orgulho de ser chamado de

cão, acreditava que só nos despojando de nossos bens é que poderemos alcançar a

verdadeira liberdade. Desta forma, o objetivo deste trabalho é comparar essas duas

visões de mundo, buscando um equilíbrio entre elas e, quem sabe, indicando a

melhor maneira de viver possível para os homens em nossa sociedade.

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CINISMO

O cinismo foi uma corrente filosófica que defendia independência em relação

aos outros, às paixões e às coisas, para que possamos chegar à plena autonomia e

autossuficiência. Defendia que a realização da vida e a única meta da existência era

a felicidade. Também apregoava o desapego a coisas supérfluas, com a intenção de

alcançar a verdadeira liberdade e felicidade. Radicalmente, chegavam inclusive a

condenar o excesso de erudição, conforme podemos constatar na seguinte

passagem:

Os mais dignos dentre os seres humanos, teria dito Diógenes de acordo com Estobeu, são os que menosprezam os estudos e preferem um estado de ignorância – ignorância estendida não no sentido de nada saber, mas no sentido de dispensar estudos desnecessários, adquirindo apenas o conhecimento suficiente para uma vida simples e boa. Isso é o que Diógenes identificava como o único significado e propósito da filosofia. (NAVIA, 2010, p.88).

A corrente filosófica Cínica é relativamente pouco conhecida e tem seu nome

confundido com o atual significado da palavra cínico, totalmente diferente de sua

significação original: o nome surgiu a partir da palavra grega para cão (kynós), pois

os seus contemporâneos comparavam a vida de Diógenes e demais filósofos cínicos

com a dos cães, já que dispensavam tudo que era supérfluo, viviam nas ruas e

faziam suas necessidades onde bem entendessem. Sobre os diferentes significados

que a palavra cínico tomou, Navia explicita:

Por meio de uma curiosa transformação lingüística, o cinismo de Diógenes passou a significar, na modernidade, algo tremendamente diferente do que tinha sido. Na linguagem moderna, o Cinismo passou por uma transformação radical e tornou-se cinismo, e os filósofos cínicos antigos foram substituídos por hordas de pessoas cínicas, as quais estão tão distantes de Diógenes quanto aquelas criaturas “menos-que-humanas” contra quem dirigiu sua retórica

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cínica. O cinismo, então, em seu sentido ordinário moderno, adquiriu um significado que não é sequer um tênue reflexo de seu significado clássico antigo. É por essa razão que Bertrand Russell traçou uma aguda distinção entre o Cinismo associado a Diógenes e o cinismo em sentido moderno: Os ensinamentos de Diógenes não foram de modo algum o que chamamos “cínico” – muito pelo contrário. Ele tinha uma paixão ardente pela “virtude”, em face do que desconsiderava os bens mundanos. Procurou a virtude e a liberdade moral no despojamento dos desejos: fique indiferente aos bens que a fortuna tem para conceder e você estará emancipado do medo... O mundo é mau; deixe-nos aprender a ser independente dele. (RUSSEL, B., A History of Western Philosophy, 1972, p. 231-2) (2010, p. 222)

Para sermos cínicos, portanto, hoje em dia, devemos ser em tudo avessos a Diógenes, exceto quanto a certos aspectos superficiais e ao nome. (2010, p. 224).

Os filósofos Cínicos acreditavam que riqueza e poder eram os maiores

responsáveis pela corrupção e mazelas entre os homens. Relata-se que Diógenes,

ao observar um camundongo, radicalizou ainda mais seu modo de vida:

Conta-se que, depois de observar um camundongo perambulando no mercado, despreocupado com o luxo e sem medo de lugares escuros, Diógenes aprendeu uma das lições fundamentais do cinismo, a saber, dispensar coisas supérfluas e adaptar-se a toda sorte de situação. (NAVIA, 2010, p.74).

Os filósofos cínicos defendiam o agir, ao invés do pensar, ao contrário do que

fazia Platão com sua metafísica, por isso seu modo de vida era sua própria filosofia1.

Os cínicos viviam nas ruas (Diógenes morava em um barril) e todos tinham mais ou

menos o mesmo “uniforme”: um manto, um cajado de madeira, um farnel de couro e,

ocasionalmente, um cão como companheiro. Normalmente dependiam de esmola e

ajuda para comer, mas não se sentiam envergonhados por isso, pois acreditavam

1 Há relatos de textos escritos de Diógenes, porém nenhum deles chegou até nós.

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que tudo pertencia a todos. É famoso o relato de Diógenes pedindo esmola a uma

estátua; quando perguntado por que fazia tal coisa, respondeu que era para se

acostumar a não receber algo de alguém.

Os cínicos tinham como uma espécie de modelo a ser seguido Héracles

(também conhecido como Hércules), por seu caráter sem vícios, simplicidade e

grandiosidade no combate aos monstros que afligiam os homens, vencendo os

prazeres mesmo sob certo sofrimento:

Durante os jogos ístmicos2 Diógenes despachava um discurso longo e ferido sobre a necessidade de lutar contra a arraigada carência humana de prazer e conforto que consome as pessoas e sobre a importância de se exercitar na disciplina de subjugar desejos e impulsos contranaturais. Com um ar de genuína seriedade e responsabilidade, evocou a memória do grandioso Héracles, que tantos monstros combateu na forma ou de bestas ou de gente vil, assim como na forma de vícios humanos, tais como sensualidade, ambição e soberba. (NAVIA, 2010, p.100).

O cinismo evoluiu para a corrente filosófica do estoicismo, iniciada por Zenão

de Cítio, que foi discípulo do famoso cínico Crates de Tebas. Há uma dúvida dentre

os estudiosos sobre qual filósofo iniciou a corrente filosófica Cínica. Alguns

defendem que se iniciou com Antístenes3, e outros com Diógenes. No entanto, é

unânime que o maior representante e ícone do cinismo foi Diógenes de Sinope.

2 Os jogos ístmicos aconteciam em Corinto, na primavera de cada ano. 3 Famoso filósofo nascido em Atenas em 445 a.C., tendo sido discípulo de Sócrates.

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DIÓGENES

Diógenes nasceu entre 413 e 404 a.C. na cidade grega de Sinope4 e morreu

em Corinto, em 323 a.C., provavelmente no mesmo dia da morte de Alexandre, o

Grande.

Era conhecido como o “cão”, por seus hábitos – como fazer suas

necessidades em público, inclusive a masturbação – morar na rua (num barril), e

“latir” para quem quer que fosse que lhe desagradasse. Diógenes, com orgulho,

tomou o apelido para si:

Conta-se que ele se descreveu como um cão, o tipo que todo mundo elogia, mas que todos evitam, o que implica que, à distância e vicariamente, o estilo de vida de um cínico é admirado e respeitado por muitos, mas que poucos são os que têm a coragem e a clareza de pensamento para imitá-lo. (NAVIA, 2010, p.70)

Diógenes foi exilado de sua cidade natal Sinope devido à adulteração da

moeda cometida por seu pai, Hicésio, que era banqueiro. Exilado, viveu em Atenas e

Corinto. Acredita-se que Diógenes foi a primeira pessoa a utilizar a palavra

cosmopolita, pois ao ser perguntado onde era seu lar, dizia que não era de lugar

algum em especial, que seu lar era o cosmos. Diógenes desprezava os valores e a

opinião dos demais e vivia como um mendigo. Acreditava que a felicidade (a

verdadeira realização da vida e a única meta da existência para os cínicos) deveria

ser alcançada com autodomínio e liberdade. Sua filosofia combatia o prazer, o

desejo e a luxúria, pois impediam a autossuficiência. Defendia que devemos praticar

a virtude, ao invés de apenas pensar sobre ela; assim, filosofava com sua própria

maneira de viver.

4 Sinope situava-se no ponto central da costa meridional do atual Mar Negro. Era uma cidade com um porto marítimo próspero, famosa por sua cunhagem de moedas.

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Diógenes tinha admiração pelos espartanos, apesar de nunca ter morado lá,

por seu modo de vida ascético, simples e rústico, bem distante do materialismo

encontrado em Atenas. Dizia que o oportunismo e a ânsia de prazer são as forças

ocultas que guiam o comportamento humano. Sua filosofia era em grande parte

baseada no modo de vida dos animais, como podemos observar na seguinte

passagem de “Diógenes, o Cínico”, de Luis Navia, que resume de uma forma

excepcional os principais conceitos e modo de vida dos cínicos:

Refletindo sobre como o camundongo cuidava da sobrevivência com tão pouco, disse Diógenes com seus botões:

‘Como é que pode? Cá está um camundongozinho que usufrui das migalhas que caem de tuas mãos e se alimenta delas. Tu, pelo contrário, a despeito de tua inteligência clara, reclama e sofre por não seres capaz de obter bebida ou de se repastar com uma comida maravilhosa nem de dormir em algum lugar sobre uma coberta confortável e bordada’.

Ele se deu conta que camundongos não precisam de um lugar especial para morar e dormir e que comem o que quer que encontrem pelo caminho. Pudessem camundongos falar e talvez dissessem o que, conforme uma fonte árabe, disse um dia Diógenes quando lhe perguntaram se tinha uma casa: sua casa era onde quer que pudesse deitar-se e repousar. Nem distinções sociais, nem sistemas filosóficos elaborados têm significado algum na vida dos camundongos. Não estão eles atravancados por convenções sociais atávicas, nem preocupados com o passado ou o futuro, vivendo sempre no momento presente e para ele. Assim, pensou Diógenes, camundongos vivem de modo natural, sendo portanto mais felizes que os seres humanos, razão pela qual são eles dignos de serem imitados. Consequentemente, camundongos e outros animais deveriam ser modelos para nós, por serem invariavelmente melhores e mais autênticos do que as importunas espécimes humanas em qualquer lugar encontradas, as quais escolheram distanciar-se da natureza e efetivamente construíram para si mesmas um mundo no qual nem sossego, nem felicidade podem ser alcançados.

Também os cães, especialmente os de rua, vivem de acordo com a natureza. Independência, simplicidade, habilidade de adaptação a circunstâncias cambiantes, falta de inibição com relação a seus sentimentos e necessidades físicas, indiferença a propósito de onde ou como viver e do que comer, absoluta honestidade, liberdade de expressão - já que latem sempre que querem e a quem quer que

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lhes desagrade -, tais são a virtude e a fortaleza que caracterizam a espécie canina e tais são os traços que Diógenes e seus descendentes cínicos admiravam e julgaram dignos de imitação. (2010, p.75).

Radical em seu modo de vida, sabia que sua forma de viver era impraticável

para a grande maioria dos homens. No entanto, ele queria ser radical de tal maneira

para abalar as idéias pré-concebidas e as ideologias dominantes, procurando ser um

exemplo extremado, e assim quem sabe fazer com que os demais o seguissem em

pelo menos alguns aspectos de sua vida, como o líder de um coro:

Ele costumava dizer que imitava o exemplo dos líderes dos coros, pois estes, de fato, entoavam o tom mais alto para que os demais alcancem o tom conveniente. (NAVIA, 2010, p. 244).

Diógenes, para se acostumar às dificuldades, rolava sobre a areia quente no

verão e no inverno abraçava as geladas estátuas cobertas de neve. O filósofo tinha

um orgulho sem igual, pois seus valores não se sustentavam no ter ou na opinião

alheia, como se pode apreender nessas passagens famosas sobre sua vida:

(...) quando Diógenes foi capturado por piratas e posto à venda, estes lhe perguntaram qual era sua ocupação, ao que ele lhes respondeu: “Comandar”. (NAVIA, 2010, p. 242).

(...) narra-se que, uma vez, um homem garboso demonstrou assombro com sua notável feiura, o que lhe arrancou o comentário de que sua aparência física não era algo que tivesse escolhido, ou que estivesse no seu poder mudar, razão pela qual não deveria ser censurado por isso. Tampouco a beleza de seu interlocutor, acrescentava, era algo que ele tivesse escolhido, razão pela qual não deveria ser louvado por ela. Louvor e censura pertenceriam apenas ao que está no nosso poder modificar. (NAVIA, 2010, p. 63).

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Entre os admiradores de Diógenes estava Alexandre, o Grande. Alexandre

teria inclusive dito que “se não tivesse sido Alexandre, gostaria de ter sido Diógenes”

(NAVIA, 2010, p. 243). Muitos encontros de Diógenes e Alexandre são retratados,

mostrando a oposição entre dois estilos de vida tão diferentes; o opulento de

Alexandre e o frugal de Diógenes:

Certa vez, Alexandre convocou Diógenes à sua presença, mas o filósofo enviou-lhe de volta esta mensagem irônica: “És poderoso demais para precisares de mim, e eu, autossuficiente demais para precisar de ti”. (NAVIA, 2010, p. 176).

A uma pessoa que considerava Calístenes feliz porque desfrutava do esplendor em companhia de Alexandre, o Grande, Diógenes disse: “com certeza é um infeliz, pois almoça e janta quando Alexandre bem entende”. (NAVIA, 2010, p. 250).

Outro personagem famoso que era uma espécie de antagonista filosófico de

Diógenes era Platão. Diógenes muitas vezes zombou das idéias metafísicas de

Platão; conforme define NAVIA: “no encontro entre Diógenes e Platão, temos um

exemplo da oposição entre o Cinismo, com sua ênfase no concreto e no individual,

de um lado, e, do outro lado, o Platonismo, com seu postulado de um mundo

transcendente de formas ideais, muito mais real que o mundo revelado pela

percepção do senso comum.” (2010, p. 255). Diógenes não acreditava em nenhuma

forma de superstição, defendia apenas o uso da razão para alcançar a felicidade:

Ele também costumava dizer que, quando via médicos, filósofos e pilotos de navios, considerava o homem o mais inteligente de todos os animais; porém, quando via intérpretes dos sonhos, adivinhos e todos os que recorriam a eles, julgava-o o mais estúpido de todos os animais. Ele dizia constantemente que, para a condução correta da vida, necessitamos apenas da razão, ou de uma corda para nos enforcarmos. (NAVIA, 2010, p. 239).

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No entanto, o encontro mais famoso do filósofo Cínico realmente aconteceu

com Alexandre, o Grande. A resposta de Diógenes à pergunta de Alexandre resume

de forma excelente suas idéias sobre o consumo:

Conta-se que, quando Alexandre visitou Diógenes em Corinto e indagou-lhe o que porventura desejaria dele, a resposta de Diógenes foi: “sai da frente da luz”. Nada precisava do imperador, a não ser que se desviasse da luz solar que o aquecia. O homem que tinha tanto, nada tinha que pudesse ser útil a Diógenes, que só precisava das coisas que, como ele dizia, pudessem ser obtidas de graça: a luz solar, a água, o ar e um lugar para se esticar. O mais das coisas, objetava, tende a ludibriar a mente e o desejo a ponto de escravizar-nos e nos auferir o mais precioso dentro os bens que possuímos, a liberdade, a qual, insistia ele, Héracles considerava a coisa mais valiosa e bela do mundo. Esse mundo, teria dito Diógenes, é como um mercado em uma estrada, e o viajante sensato é aquele que passa por ele e compra apenas aquelas poucas coisas que o vão suster em sua jornada. Destarte, se nos dispusermos a atingir autossuficiência e preservar nossa liberdade, precisaremos abandonar a necessidade sociamente criada de coisas e relações, possuir e nos apropriar de tão poucas coisas quanto possível e nos desvincular dos laços humanos, especialmente dos que nos atam ao Estado, já que eles são o maior inimigo da liberdade humana. O verdadeiro poder e a realeza não pertencem aos que, como Alexandre, conseguem conquistar o mundo, acumular fortunas, colecionar títulos e honras, mas aos que são autossuficientes e livres. (NAVIA, 2010, p. 177).

A filosofia de Diógenes pode muito ensinar ao homem ocidental atual, onde o

trabalho, o dinheiro e o consumo os faz inserir como membro da sociedade. Quanto

mais posses tem, mais respeito acredita o homem ter junto ao seus semelhantes.

Consumir, para o homem atual, é existir. Como pôde-se apreender, nada mais

contrário ao que Diógenes defendia. Analisaremos melhor o consumo no capítulo

que segue.

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CONSUMISMO

O consumismo provavelmente é inerente à natureza humana. Ele reflete

nossa necessidade de pertencer e ser aceito por um grupo. Consumindo

determinados produtos, acreditamos inconscientemente, e às vezes

conscientemente, que iremos demonstrar nossas aptidões e qualidades ou que

iremos “pertencer” a determinado grupo de pessoas que consomem o mesmo

produto. As normas sociais seguidas por nossos semelhantes, ou por aqueles que

queremos nos assemelhar, dominam nossos valores e expectativas. Em decorrência

disso, alguns chegam a roubar e até a matar para adquirir, pois em nossa sociedade

ter é ser. “Se não consumo, não existo”; aí, a principal causa da violência

encontrada em nosso país, onde dos muitos, poucos conseguem comprar.

Geoffrey Miller inicia seu livro Darwin Vai às Compras - Sexo, Evolução e

Consumo perguntando-se “Muito embora o bom-senso afirme que compramos

coisas porque vamos adorar possuí-las e usá-las, pesquisas mostram que os

prazeres da aquisição são, na melhor das hipóteses, de curto tempo. Então, por que

insistimos na rotina consumista – trabalhar, comprar, almejar?” (2012, p. 1). O autor

em seguida nos esclarece:

A biologia nos fornece uma resposta: os seres humanos evoluíram em pequenos grupos sociais em que a imagem e o status têm importância primordial, não somente para a sobrevivência, mas também para atrair parceiros, impressionar amigos e criar filhos. Hoje em dia, ornamentamo-nos com bens e serviços mais para impressionar os outros do que por curtirmos ter um pedaço de matéria – o que torna “materialismo” uma expressão profundamente enganosa no que diz respeito a grande parte do consumo. Muitos produtos são, primeiramente, sinais, e só em segundo plano assumem o aspecto de objetos materiais. Nosso vasto cérebro sócioprimata evoluiu rumo a uma meta social predominante: fazer bonito para os outros. E comprar produtos impressionantes, numa economia baseada em dinheiro, é apenas a maneira mais recente de alcançar este objetivo. (2012, p. 1).

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Se formos pensar racionalmente, parece absurdo dedicarmos uma vida toda

de trabalho somente para adquirir produtos em sua maioria inúteis. Dedicamos um

terço de nosso dia em tarefas desgastantes, pois são poucos os que trabalham com

o que realmente gostam; contando com o tempo gasto em deslocamentos e uma

média de oito horas diárias de sono realmente não nos sobra muito tempo para fazer

o que realmente é de nosso agrado e de nossa natureza, como conviver com

amigos, família e filhos. Fazendo uma brincadeira, Geoffrey Miller imagina um ser

humano atual viajando no tempo para a época de nossos ancestrais Cro-Magnon,

tentando explicar a eles nossa sociedade de consumo:

- Então, qual é a parada? O que teríamos que fazer para conseguirmos essas facas e esses sapatos?

- Tudo o que teriam de fazer é ficar sentados em uma sala de aula todos os dias durante 16 anos para desenvolver capacidade contraintuitivas. Depois, é só arranjarem um emprego e se deslocarem de casa para o trabalho (e vice-versa) durante cinquenta horas por semana, por quarenta anos, mantendo funções maçantes em empresas imorais, longe de parentes e amigos, sem ter qualquer sistema decente de creche, senso de comunidade, poder político ou contato com a natureza. Ah, e vocês teriam que tomar remédios especiais para evitar tendências suicidas e ter mais de dois filhos. Na verdade não é tão ruim assim. Os detalhes dos sapatos são realmente maneiros.

(...) a respeitada matriarca Cro-Magnon, olha diretamente em seus olhos e pergunta, com infinita piedade:

- Você está completamente louco? (MILLER, 2012, p.15)

Consumimos basicamente dois tipos de produtos: o primeiro tipo seria de

produtos que indicariam nosso status, e consequentemente nossas características

desejáveis, quando o outro vê que o possuímos; demonstrariam nossas aptidões,

saúde, capacidades e nos trariam a sensação de pertencimento a um grupo. O

segundo tipo de produto é aquele que nos traz satisfação e prazer, mesmo que

ninguém saiba que o possuímos. O consumo que considero como de certa forma

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prejudicial e exagerado seria o de produtos do primeiro tipo, e é esse consumo que

definiremos como uma forma de Consumismo. Diógenes condenaria o consumo de

ambos os tipos de produtos, porém acredito ser uma crítica exagerada.

Pesquisas demonstram que os homens aumentam o consumo, principalmente

de produtos do primeiro tipo, quando estão interessados em acasalar, pois nossos

instintos tentam inconscientemente demonstrar certas características pessoais

desejáveis (cada vez mais através de aquisição de bens, uma vez que as normas

sociais ditam o que é bom e desejável, não somente em relação aos bens que

possuímos, mas em relação inclusive a nossos empregos, relações e parentescos).

Geoffrey Miller define essa demonstração de características desejáveis como

indicadores de aptidão:

Indicadores de aptidão são os sinais das características e qualidades de um indivíduo que podem ser percebidos pelos outros. Quase todas as espécies animais possuem os próprios indicadores de aptidão para atrair parceiros sexuais, intimidar rivais, dissuadir predadores e solicitar ajuda aos progenitores e parentes. (...) as aves-do-paraíso machos constroem ninhos, os humanos de ambos os sexos adquirem produtos de luxo. (MILLER, 2012, p. 24)

Compramos coisas por status ou por hedonismo, para ostentá-las aos outros ou para agradar a nós mesmos, para enviar falsos indicadores de aptidão aos outros ou para simulá-los para nós. Lembre-se que esses indicadores são sinais das características e qualidade de um indivíduo (bons genes, boa saúde, bom nível de inteligência social, e assim por diante) que podem ser percebidos pelas outras pessoas – sinais como a cauda do pavão, os ninhos das aves-do-paraíso ou o Ipod do consumidor. (MILLER, 2012, p. 81)

Se fossemos levar em conta somente o valor utilitário daquilo que

compramos, a imensa maioria dos produtos custa muito mais do que deveria.

Porém, como funcionam como “amplificadores” de nossas características, não nos

preocupamos em pagar mais por algo que tenha uma marca reconhecida. Os

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produtos básicos para sobrevivência são baratos, em contraste com os artigos de

luxo, caríssimos, pois são ostentadores de nossa boa saúde financeira.

Defensores do consumismo advogam que se ele não existisse estaríamos em

eterna recessão, pois ninguém usaria seu dinheiro para adquirir novos produtos, já

que teríamos tudo necessário para a sobrevivência – acabando assim com a

economia. Geoffrey Miller fala a respeito:

Se as funções básicas dos bens de consumo permanecessem estáveis e se a forma seguisse a função, então o design modernista teria conseguido fixar rapidamente a forma perfeita para cada categoria de produto – independentemente de se tratar da cadeira, do carro ou da casa ideias. Ademais, já que os consumidores exigem precisão conspícua, conforme fica manifesto no trabalho perfeito, na qualidade e na confiabilidade, então todos os produtos deveriam operar eficientemente durante muitas décadas, se não por toda vida, sendo transmitidos de uma geração para outra como legados importantes, semelhantes aos legados biológicos de nossos genes. Um sistema desse tipo, entretanto, resultaria numa catástrofe econômica, já que eventualmente ninguém teria de produzir ou comprar mais nada. Esse era o pesadelo dos empresários da década de 1950, e o problema foi solucionado – com a elaboração de uma estratégia explícita entre os investidores, os marqueteiros e os políticos – com as várias formas de obsolescência planejada e o pseudoprogresso tecnológico (...)

As empresas se deram conta de que, caso quisessem continuar a vender carros novos, sendo que a estética modernista ditava que cada uma das funções de um automóvel podia ser desempenhada apenas por uma gama de formas de design otimizadas, a única maneira de “aperfeiçoar” o novo modelo de carro do ano era incorporar novas funções que surgiriam através da perpétua inovação técnica.

Assim, a sinalização consumista realizada através da precisão exagerada acarreta uma proliferação muito rápida de novas características e funções nos produtos frequentemente por meio de inovação técnicas mínimas e pseudoinvenções. O desperdício resultante não costuma ficar tão óbvio em qualquer produto individual, porém se torna grave quando somamos todos os produtos sucessivamente obsoletos que um consumidor compra durante toda a vida. (MILLER, 2012, ps. 171 e 172).

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Assim, percebe-se que o consumo realmente é necessário para o bom

funcionamento da sociedade, porém o consumo exagerado e supérfluo não o é, já

que concentra a riqueza e escasseia as matérias-primas.

Cada vez mais os produtos se diferenciam não por seu tamanho e massa,

mas se valorizam através do seu design e complexidade. Uma constatação

interessante feita quando analisados os produtos de luxo é que inclusive sua

publicidade é feita principalmente para atingir não quem consome o produto, mas

aqueles que perceberão que determinada pessoa possui o bem luxuoso:

A teoria da sinalização custosa salienta o fato de que a brand equity existe principalmente nas mentes dos receptores de sinal (observadores do consumo de produtos de outras pessoas), não nas dos próprios sinalizadores (os reais consumidores de um produto). As marcas de luxo com a brand equity mais elevada (Louis Vuitton, Gucci, Chanel, Rolex, Hermes, Tiffany, Cartier, Bulgari, Prada e Armani) o compreendem perfeitamente. Elas anunciam na Vogue e GQ não para informar sua existência aos ricos consumidores potenciais, mas para assegurar que os leitores mais pobres da Vogue e GQ vão reconhecer e respeitar essas marcas quando as virem exibidas por outros. Esse é o motivo pelo qual o típico anúncio de produtos de luxo inclui uma modelo extremamente atraente, vestida como uma herdeira de status elevado, ostentando uma expressão de desdém e despreza pelo observador. (MILLER, 2012, p. 175).

Os produtos de marca levam o consumidor a se considerarem com status mais elevado, sexy e sofisticado – sentimentos que, em última análise, são opressores (caso os observadores reconheçam um status mais elevado na pessoa que exibe o produto e, assim, se sintam inferiores), ou autoilusórios (caso os observadores não reconheçam realmente um status mais elevado). De qualquer maneira, o branding parece perverso – um desperdício de esforços, atenção e vaidade humanas no jogo inútil do status social. (MILLER, 2012, p. 176).

Diógenes, e os cínicos, ao contrário, valorizavam o ser e o não ter. O filósofo

que morava em um barril e tinha como únicos bens uma tigela e um bastão

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desprezava a opinião alheia e fazia questão de não “pertencer ao grupo”, sendo

contrário ao consumo, como podemos apreender na passagem abaixo:

Tampouco é possível referir-se a Diógenes como a um materialista no sentido ordinário do termo, isto é, como alguém que valoriza e acumula bens materiais, estima e adula o corpo e encontra sua completude apenas nos confortos e prazeres fornecidos pelo mundo material. Muito pelo contrário, o que nele se discerne é um desdém abissal por tais coisas e uma convicção de que o vínculo com o mundo é a fonte que ceva a confusão e a insatisfação em que o povo vive. Assim, vemo-lo não economizar palavras para condenar as inclinações e os hábitos materialistas da maior parte das pessoas, referindo-se a dinheiro, posses e comodidades como as raízes de seu caráter ruim. Em seu mundo, como no nosso, no que diz respeito a bens materiais e comodidades, mais era sempre visto como melhor do que menos. Em Diógenes, contudo, encontra-se uma disposição de espírito completamente diferente: menos é melhor do que mais. (NAVIA, 2010, p. 93).

Diógenes pode nos dar um contraponto excelente ao consumo desvairado

que aflige a sociedade atual. No capítulo que segue, tentaremos combinar as idéias

do filósofo com nossa natureza naturalmente consumista, procurando encontrar um

equilíbrio saudável.

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O QUE DIÓGENES PODE NOS ENSINAR?

O Cinismo, e a filosofia de Diógenes, tinha como idéias alicerce a

independência em relação aos outros, às paixões e às coisas, e principalmente o

desapego a coisas supérfluas, com a intenção de alcançar liberdade e felicidade.

Como o consumismo serve principalmente para nos “enfeitar” de aptidões e

qualidades, desviando-nos muitas vezes da meta da vida que é a felicidade, a

pobreza era valorizada pelos Cínicos:

(...) compreendendo que virtude e felicidade não podem ser encontradas por meio da busca e da aquisição de bens físicos, despoja-se de tantas coisas quanto possível, conservando apenas as necessidades básicas requeridas para se manter vivo que lhe asseguram a liberdade, estima por Héracles como a coisa mais preciosa do mundo. (NAVIA, 2010, p. 202).

Conforme já relatado neste texto, Diógenes baseou sua filosofia nas atitudes

de um rato, pois quando o viu no mercado, correndo de um lado para outro, sem

medo do escuro, e não almejando nada mais do que necessário para sua vida

(alimento, água e um lugar para viver), entendeu o que era realmente necessário

para o bem viver. Tudo além disso pode nos trazer preocupações desnecessárias,

quem sabe minando nossa felicidade. É claro que vivemos em outros tempos; hoje,

uma casa, uma boa cama, uma boa calefação e uma boa educação, entre outros,

não podem ser considerados bens supérfluos, pois sem eles não conseguimos viver

bem, não alcançando assim a felicidade. Porém, realmente precisamos de carros

cada vez maiores e comidas altamente elaboradas, de chef, caríssimas e de baixo

valor nutritivo, para sermos felizes?

A busca desenfreada por bens, por posição de status social, acaba também

por minar nossa empatia pelo próximo, que muitas vezes é visto como um obstáculo

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a nossas conquistas, como um colega de trabalho que pode ganhar nosso posto de

chefia:

Diógenes dizia que os homens competem cavando fossos e trocando pontapés para derrotarem uns aos outros, mas que ninguém compete para tornar-se valoroso e honesto. (NAVIA, 2010, p. 241).

Aquele que troca de carro todo ano, para ter “um zero”, poderia se basear no

que pensava Diógenes para mudar seu modo de agir. O valor que gasta com

encargos, impostos, seguro, etc. no carro novo equivale a meses de trabalho árduo.

Realmente essa troca de automóvel, a base de trabalho, que nem sempre é

prazeroso, faz esse homem mais feliz? Provavelmente não. Diógenes fazia

exatamente o contrário; ao invés de adquirir, se livrava do mais:

Certa vez, Diógenes viu um menino bebendo água com a palma das mãos e jogou fora o copo que trazia em sua sacola dizendo: “um menino deu-me uma lição de simplicidade!”. Além disso, ele jogou fora sua bacia quando, em outra ocasião, viu um menino que havia quebrado o prato comer lentinhas com a parte côncava de um pedaço de pão. (NAVIA, 2010, p. 245).

Após ter visto um menino bebendo água com a palma da mão, Diógenes é descrito dizendo a si mesmo, enquanto se arrasta de volta pra seu tonel, pronto para cair no sono, “que tolo eu tenho sido, levando comigo todo tipo de coisa desnecessária”. (NAVIA, 2010, p. 245).

Diógenes costumava dizer que o amor ao dinheiro é a metrópole de todos os

males. O homem chega até mesmo a brigar com seus amigos, pais e irmãos por

causa de dinheiro. Essa disputa é sensata? O dinheiro ganho, mesmo a custa das

relações quebradas, vale mais do que elas? Diógenes dizia que os servos são

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escravizados por seus senhores, enquanto os homens vis são escravizados por

seus desejos. Essa escravidão criada por nossos desejos, por nossa vontade de nos

mostrarmos aos outros, não pode nos trazer felicidade; não seria sensato dizer ao

contrário. Um escravo nunca é feliz plenamente. Por que a maioria dos homens não

consegue se contentar com o que tem, com uma boa casa, com boa comida e boas

relações? Diógenes já falava a respeito, mesmo numa época sem tantos bens

supérfluos como a nossa:

Frequentemente ele proclamava, em altos brados, que os Deuses haviam concedido aos homens os recursos para viver bem, porém eles ignoraram esse fato e passaram a ter necessidade de bolos de mel, de unguentos e de coisas semelhantes. Pelo mesmo motivo, disse a um homem cujos sapatos lhe eram calçados por seu servo: “ainda não és feliz se este servo não limpa também teu nariz, alcançarás a felicidade suprema quando tiveres perdido o uso das mãos”. (NAVIA, 2010, p. 250).

Então, qual seria o consumo ideal? Particularmente, aquele que atende a

nossas necessidades, sem buscar extrapolar sua utilidade prática para indicar status

ou aptidões. Um carro pode ser necessário para alguém que trabalha em uma

cidade e mora em outra; porém, esse carro precisa ser “do ano”, e do modelo mais

caro? Acredito ser esse um consumo desnecessário, que só serve para nos

exibirmos aos outros. Conforme tratado no capítulo sobre consumo, os bens que

seriam ideais de serem consumidos seriam o do segundo tipo, ou seja, aqueles que

nos dão prazer e satisfação mesmo que ninguém saiba que os temos. Os demais

produtos, extravagantes em sua maioria, servem para exibir nossas características

desejáveis ao próximo, atendendo ao instinto humano de alcançar status no grupo

ou perante os potenciais parceiros sexuais.

Talvez seja utópico demais querer que paremos de consumir para nos

exibirmos, pois este é um instinto humano. Mas é racional trabalharmos em algo que

não gostamos, dedicando mais de um terço de nossa vida, somente para

mostrarmos ao próximo que temos um carro zero? Por que não podemos ter um

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carro com cinco ou dez anos? Isso nos torna pessoas piores ou menos atraentes ao

sexo oposto? Dificilmente. Geoffrey Miller também se questiona a respeito:

Parece improvável que as pessoas algum dia evitem a busca compulsiva por autoexibição, conforme os fracassos do comunismo e da utopia hippie demonstraram claramente. (...) Contudo, os modos de autoexibição das pessoas são muito flexíveis, como demonstrado pelo desenvolvimento de diferentes normas de exibição em variadas épocas históricas e culturas. Assim, a autoexibição poderia, um dia, ser deslocada das nossas atuais formas antissociais, irresponsáveis e não confiáveis de desperdício, precisão e reputação conspícuos para formas mais pró-sociais, conscienciosas e confiáveis, que continuem a deixar as pessoas ganharem seu sustento. (MILLER, 2012, p. 177).

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CONCLUSÃO

É utópico querer um mundo sem consumo supérfluo, porém é racional desejar

ao menos mudar certos padrões de nossa sociedade, onde o consumo exagerado é

considerado sinal de status perante o próximo. Diógenes, quatro séculos antes de

Cristo, já tentou mudar os hábitos de consumo do mundo, sem sucesso. No entanto,

atingiu desde lá várias pessoas: no mundo atual cada vez mais suas idéias fazem

sentido, sendo encabeçadas por diversos movimentos, como a onda ambientalista

que está tão em voga.

Não seria ideal trabalhar menos, comprar menos, e conviver mais com nossa

família e amigos? Essa idéia é tão boa que parece absurdo não ser seguida pela

grande maioria da humanidade. Espero, com esse trabalho, ter incutido tal

pensamento no leitor, quem sabe tornando-o mais feliz, o que Diógenes, e eu,

considerava como a verdadeira realização da vida.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUDLEY, Donald. A History of Cynism : Editora Methuen, 1937

MILLER, Geoffrey. Darwin Vai às Compras - Sexo, Evolução e Consumo : Best Business, 2012.

NAVIA, Luis E. Diógenes, O Cínico : Editora Odysseus, 2010

NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de Filosofia : Editora Globo, 2005