TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

12
“Aqui a gente não come, engole!”: um olhar sobre as formas de perceber o comer entre trabalhadores e trabalhadoras do setor de telemarketing Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO Mestre em Nutrição Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Brasil. Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação Coletiva (GEPAC) Doutoranda do Instituto de Saúde Coletiva, UFBA, Doutorado Sanduiche Departamento de Antropologia e Trabalho Social Universidade Rovira I Virgili Espanha [email protected]; [email protected] Resumo O crescimento das atividades de telemarketing m se destacado no Brasil e no mundo pela rapidez da sua expansão. No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Telemarketing, em 2008 existiam cerca de 750 mil trabalhadores nessa categoria, transformando-se no maior empregador na área de serviços. O presente estudo analisa a alimentação no contexto do trabalho no setor de telemarketing a partir das experiências de trabalhadores e trabalhadoras de um call center na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Trata-se de um estudo de cunho etnográfico, com observações no ambiente de trabalho e nos distintos espaços utilizados para alimentação e entrevistas. As análises priorizam uma abordagem que problematiza as condições para a alimentação no mundo do trabalho contemporâneo, considerando tanto a dinâmica do trabalho quanto da alimentação. A empresa disponibiliza ‘máquinas de comer’ (sistema de auto-serviço), porém, outras estratégias são utilizadas para aliar o tempo, considerado escasso, e a necessidade de comer. Vigilância, controle, disciplina, ansiedade, são incorporados no processo de trabalho e repercutem nos modos de perceber o comer. Palavras chave: alimentação e trabalho, telemarketing, alimentação coletiva, saúde do trabalhador. Abstract The increase in telemarketing activities has been highlighted in Brazil and the world because of its rapid expansion. In Brazil, according to the Brazilian Telemarketing Association, there were about 750 000 workers in this category, making it the largest employer in the service area. This study

description

Palavras chave: alimentação e trabalho, telemarketing, alimentação coletiva, saúde do trabalhador. The increase in telemarketing activities has been highlighted in Brazil and the world because of its rapid expansion. In Brazil, according to the Brazilian Telemarketing Association, there were about 750 000 workers in this category, making it the largest employer in the service area. This study Resumo Abstract

Transcript of TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

Page 1: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

“Aqui a gente não come, engole!”: um olhar sobre as formas de perceber o comer entre

trabalhadores e trabalhadoras do setor de telemarketing

Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO

Mestre em Nutrição Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA),

Brasil. Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação Coletiva (GEPAC)

Doutoranda do Instituto de Saúde Coletiva, UFBA, Doutorado Sanduiche Departamento de Antropologia e Trabalho Social

Universidade Rovira I Virgili Espanha

[email protected]; [email protected] Resumo O crescimento das atividades de telemarketing têm se destacado no Brasil e no mundo pela rapidez da sua expansão. No Brasil, segundo a Associação Brasileira de Telemarketing, em 2008 existiam cerca de 750 mil trabalhadores nessa categoria, transformando-se no maior empregador na área de serviços. O presente estudo analisa a alimentação no contexto do trabalho no setor de telemarketing a partir das experiências de trabalhadores e trabalhadoras de um call center na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Trata-se de um estudo de cunho etnográfico, com observações no ambiente de trabalho e nos distintos espaços utilizados para alimentação e entrevistas. As análises priorizam uma abordagem que problematiza as condições para a alimentação no mundo do trabalho contemporâneo, considerando tanto a dinâmica do trabalho quanto da alimentação. A empresa disponibiliza ‘máquinas de comer’ (sistema de auto-serviço), porém, outras estratégias são utilizadas para aliar o tempo, considerado escasso, e a necessidade de comer. Vigilância, controle, disciplina, ansiedade, são incorporados no processo de trabalho e repercutem nos modos de perceber o comer.

Palavras chave: alimentação e trabalho, telemarketing, alimentação coletiva, saúde do trabalhador. Abstract The increase in telemarketing activities has been highlighted in Brazil and the world because of its rapid expansion. In Brazil, according to the Brazilian Telemarketing Association, there were about 750 000 workers in this category, making it the largest employer in the service area. This study

Page 2: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

analyses the act of eating in the context of telemarketing work based on the experiences reported by the workers of a call-center in Salvador, Bahia, Brazil. This is an ethnographic study, using observations of the work environment and the specific areas used for eating, and interviews. The analyses prioritize an approach that problematizes the conditions for eating in today’s working world, taking into consideration the dynamics of work and eating. The company has vending machines, but workers use other strategies to balance time, which is considered scarce, and the need to eat. Surveillance, control, discipline, and anxiety, are incorporated in the working process and affect how workers perceive the act of eating. Key words: food and work, telemarketing, food service, occupational health. Introdução

inda que alguns autores questionem a centralidade do trabalho na vida das pessoas, considera-se a assertiva de que o trabalho representa a categoria central na organização social e é uma das determinações do processo

saúde/doença. Assim, em uma perspectiva de construção da saúde, pode estar inserido em um processo capaz de estruturar as dimensões biopsíquica, social, cultural e ambiental (NUNES, 1989). A alimentação, por sua vez, é considerada uma dimensão da vida humana intimamente vinculada com a sobrevivência básica e, ao mesmo tempo, com elementos social e simbolicamente construídos; de tal modo, o comportamento relativo à comida, liga-se diretamente à identidade social do indivíduo, e isto sugere valer para todos os seres humanos em qualquer ambiente que se encontre: no trabalho, na rua, em casa e no lazer (MURRIETA, 2001; MINTZ, 2001).

Em relação à alimentação no ambiente de trabalho, os estudos sobre o tema alimentação do trabalhador no Brasil, ainda são escassos. Artigo de revisão recente que teve como objetivo entender, em uma perspectiva histórica, o tratamento dado à questão, pelo campo científico brasileiro, constatou entre outros resultados, que o tema é rarefeito nos estudos de saúde do trabalhador e que mesmo na nutrição as investigações são poucas, concentradas principalmente no Programa de Alimentação do Trabalhador, predominantemente de natureza quantitativa e desconsiderando a categoria processo de trabalho nas análises (ARAÚJO; SOUZA; TRAD, 2010).

Na tentativa de preencher importante lacuna e entendendo que os desafios enfrentados pelos indivíduos para alimentar-se, somam-se a uma infinidade de outros nesta complexa rede que envolve trabalhar e viver no cenário contemporâneo levou-se a cabo um estudo de caso, focando o olhar para os trabalhadores do telemarketing, seu processo de trabalho, e as distintas estratégias utilizadas para comer no trabalho.

Numa descrição sumária sobre o surgimento do telemarketing no Brasil, buscou-se informação da Associação Brasileira de Telesserviços (ABT) que descreve a história a partir de filiais multinacionais, empresas de cartão de crédito e operadoras de

A

Page 3: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

telefonia no final da década de 80. Destaca-se que a sua expansão iniciou-se na década de 90 devido a importantes fatores, tais como: a privatização de grandes empresas estatais, o lançamento do Código de Defesa do Consumidor (que protege os negócios feitos por telefone), as próprias mudanças dos costumes culturais e o desenvolvimento da informática, o que possibilitou a mensuração das ligações, a produtividade, a unificação dos cadastros e o uso do marketing (ABT, 2007).

Sabe-se, que a partir dos anos 80, vem ocorrendo um processo denominado de reestruturação produtiva, fruto da crise estrutural do capital, evidenciada a partir da década de 70, com o esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista, cujos desdobramentos têm sido estudados por diversos autores. Dentre estes, Ricardo Antunes salienta que as mudanças inseridas nas organizações produtivas têm alterado os processos e as relações de trabalho, com repercussões importantes e desastrosas para a classe trabalhadora, pois a desproletarialização e a precarização das formas de trabalho acarretaram a complexificação da classe trabalhadora, e o enfraquecimento da sua unidade (ANTUNES, 1999).

O processo de reestruturação produtiva, que consiste em uma nova forma de produzir, organizar e gerenciar o trabalho, em um contexto de grandes avanços tecnológicos, modifica o perfil do trabalho e dos trabalhadores, e, certamente tem impacto na vida deste grupo populacional. É nessa perspectiva da atualidade que emerge o tele-trabalho e novos setores de tecnologia de ponta se desenvolvem, a exemplo do crescimento das atividades denominadas de telemarketing, que vêm na esteira do aumento crescente da participação do setor terciário da economia, em detrimento das atividades do setor industrial, após o processo de automação observado nestas últimas décadas.

Ainda que alguns autores assinalem que o telemarketing nasce da antiga profissão de telefonista, a sua história é contada com contornos ainda vagos. Dados da Euro-Work informam que o primeiro tipo de call center foi criado na década de 60 quando um juiz ordenou a Ford Motor Company a disponibilizar uma linha de telefone gratuito para facilitar a renovação de carros com defeito (BAGNARA, 2007).

Curiosamente, Marques (2005) remonta a história a 1880, quatro anos após a invenção do telefone, quando um pasteleiro norte-americano montou uma lista de 180 clientes e, empiricamente, passou a oferecer seu produto através de contato telefônico. Quase um século depois, em 1967, a empresa norte-americana Bell lançou o primeiro serviço de atendimento tipo 0800. Em 1970, com intuito de aumentar a venda de carros, a Ford realizou a primeira campanha de marketing por telefone. O objetivo era identificar futuros clientes com potencial para compra de um automóvel. Contratou 15 mil donas-de-casa, que realizaram mais de 20 milhões de chamadas de suas próprias residências (MARQUES, 2005). No entanto, somente na década de 80 do século XX, observa-se o uso do termo telemarketing.

A telefonia foi automatizada, entrou no mundo digital onde foram criadas as condições para o nascimento do telemarketing ou call centers. O call center é um termo amplo que contempla a central telefônica situada em um setor de empresa ou a empresa

Page 4: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

propriamente dita. A palavra marketing resulta da união da palavra market, que significa mercado, com o sufixo ing, que significa ação. A adição do prefixo tele deriva de revoluções tecnológicas e transformações na divisão do trabalho em construção desde a invenção do telefone, até a telemática na contemporaneidade. O marketing pode ser realizado à distância, mediado por empresas especializadas que se transformaram em um dos mais dinâmicos setores do serviço da atualidade (PENA, et al. aceito).

No que se refere aos estudos sobre as condições de trabalho em call centers, pontua-se alguns fatores que afetam a saúde dos trabalhadores, tais como: pressão temporal, rigidez postural, contornar situações difíceis e inusitadas, rotinas de trabalho rigidamente impostas com o controle do tempo e da qualidade do trabalho, estímulos à competitividade, insuficiência de pausas, existência de curtos intervalos para recuperação entre os atendimentos e restrições ao diálogo, forte solicitação da memória, monitoramento eletrônico das chamadas, imposições afetivas para lidar com o público, utilização contínua da voz, exposição aos sons gerados pelo fone de ouvido e ruído ambiente, desconfortos térmicos, iluminação deficiente, restrições à satisfação das necessidades fisiológicas, entre outros (RAMALHO, et al., 2008; MARINHO-SILVA, 2007; MARINHO-SILVA; ASSUNÇÃO, 2005; VILELA; ASSUNÇÃO, 2004).

Tal cenário remonta ao clássico estudo de Le Guillant, em 1956, que descreve a “neurose das telefonistas”, a tensão nervosa gerada pelo processo de trabalho como fator de rendimento e aceleração das tarefas, e atribui aos sistemas de controle e anotação de chamadas a piora destes sintomas (LE GUILLANT et al., 2006), o que evidencia a atualidade dessas constatações em relação à importância dos processos tecnológicos e das questões de controle de tempo no adoecimento dos trabalhadores na área de telefonia.

No setor de telemarketing a utilização de novas técnicas gerenciais (informática, informacional, comunicacional e mecânico-sensorial), assume papel central, sendo aplicadas aos trabalhadores e trabalhadoras, assim como a utilização de práticas de precarização do trabalho, cujo resultado tem sido o grande aumento de patologias clássicas e outras ainda desconhecidas no processo saúde/doença relacionado ao trabalho.

Vale ressaltar os sintomas e doenças decorrentes do trabalho, problemas de saúde e a amplitude do envolvimento físico e mental exigido nas atividades do setor de telemarketing: a LER/DORT, disfonia, estresse, problemas gástricos, infecção urinária, afecções respiratórios, rouquidão, depressão, hipertensão, amigdalite, sinusite, otites, intolerância a sons altos, estresse, entre outros distúrbios mentais e psíquicos (ALMEIDA, 2009, GUENA, 2009, RAMALHO, et al., 2008; FERREIRA, et al. 2008; OLIVEIRA, 2007).

Na atualidade, observa-se o interesse de pesquisadores acerca do telemarketing focando o olhar sobre o processo de adoecimento e as condições de trabalho, onde é possível verificar relatos de diversas queixas, sintomas e patologias que podem estar relacionadas direta ou indiretamente à alimentação. No entanto, evidencia-se carência

Page 5: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

de estudos que abordem a alimentação do trabalhador nesse setor, que parece estar invisível aos distintos olhares.

Diante deste cenário, o presente artigo tem como objetivo analisar a alimentação no contexto do trabalho no setor de telemarketing a partir das experiências de trabalhadores e trabalhadoras de um call center na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Para tanto, desenvolveu-se um estudo de cunho etnográfico, onde foram priorizadas, dentre outras técnicas empreendidas em campo, as observações no ambiente de trabalho e nos distintos espaços utilizados para alimentação e entrevistas. O campo Após negociação com o sindicato da categoria e aprovação do projeto no comitê de ética em pesquisa, necessitava da autorização de um call center para desenvolver a pesquisa. Após negativas de algumas empresas, e, impossibilitada de ‘entrar’, decidi que ficaria um período na porta de dois call centers, enquanto empreendia outras tentativas. Porém, obter a autorização de uma empresa para desenvolver o trabalho, representava um marcador metodológico que julgava importante. Era urgente a necessidade de ‘estar lá’, na rotina de trabalho, no espaço interno da empresa, tentando vivenciar a dinâmica daquele trabalho e as estratégias utilizadas para “comer no trabalho”. Assim, após negociações com o representante de um call center, consegui permissão para entrar. As portas foram abertas, e, pouco a pouco, com a paciência de quem terce uma “colcha de retalhos” foi possível circular pelos distintos espaços internos e externos da empresa. A empresa, onde desenvolvi a pesquisa, funciona desde a década de 80, conta com quatro call centers localizados na Bahia e São Paulo, com mais de 4.000 empregados diretos e atua em diferentes segmentos do mercado. O call center estudado está localizado na cidade de Salvador, Bahia, Brasil e funciona 24 horas por dia, na prestação de serviços aos usuários de telefonia móvel, com turnos de seis horas de trabalho que inclui, também, os sábados, domingos e feriados.

A partir deste call center foram analisadas as opções disponíveis e utilizadas pelos trabalhadores e trabalhadoras para alimentar-se no período de trabalho. Assim, priorizaram-se observações nos distintos espaços da empresa e arredores, nos diferentes turnos, feriados, finais de semanas, onde foi possível olhar sob diferentes focos. Ainda em campo, nominava os distintos espaços de ‘dentro’ e ‘fora’, considerando como ponto de referencia a empresa.

Nos espaços de ‘dentro’, por exemplo, considerou-se a recepção, local de trabalho propriamente dito (baias ou célula), banheiros, refeitório, corredor de circulação para o refeitório, escadas, salas de espera para atendimento médico e área de circulação externa ao prédio, e os limites do muro e portão que demarcavam bem este lugar.

Já nos espaços de ‘fora’, priorizou-se os locais de venda de alimentos, como supermercados, barracas e ambulantes. No decorrer da pesquisa, atenta aos movimentos e circulação destes trabalhadores e trabalhadoras, outros espaços se

Page 6: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

apresentaram importantes, exemplo das estações e paradas de ônibus, como possibilidade, algumas vezes, de interação e conversa.

O que, como, quando e com quem comem, os comportamentos nos momentos de trabalho e de comer, faziam parte do roteiro inicial de observação. Estar ali, na convivência diária com aquelas pessoas, representava a possibilidade de partilhar do chegar, do estar, do sair, dos desabafos no banheiro e nos espaços de comer, da individualização, mas também de tentativas de socialização, dos ruídos e dos odores. Observação direta e entrevista foram as principais técnicas utilizadas nesta pesquisa. O trabalho Escolhi fragmentos das entrevistas e dos apontamentos do diário de campo, na tentativa de mostrar o cotidiano de trabalho, dilemas e vivências de trabalhadores e trabalhadoras do setor de telemarketing. Antes, porém, apresento de forma resumida a descrição destas atividades.

O Código Brasileiro de Ocupações (CBO), versão 2002, agrupa e classifica as ocupações de tele-atendimento sob o termo “Operadores de Telemarketing” com a seguinte descrição de atividade: “Descrição sumária: Atendem usuários, oferecem serviços e produtos, prestam serviços técnicos especializados, realizam pesquisas, fazem serviços de cobrança e cadastramento de clientes, sempre via tele atendimento...” (BRASIL, 2002)”.

As atividades realizadas por empresas de telemarketing podem assumir as formas ativo e receptivo. No ativo, o trabalhador toma a iniciativa do contato telefônico com o cliente. Em geral, está relacionado a vendas de produtos e serviços. Em sentido oposto, no receptivo, a iniciativa do contato telefônico parte do cliente. Estão relacionados aos serviços de atendimento ao cliente (SAC), serviços de reclamações e sugestões, prestação de informações, suporte técnico e vendas.

Paloma tem 18 anos, visualiza no trabalho em telemarketing a possibilidade de independência financeira. É o seu primeiro emprego, mas deixa claro que não gosta do que faz, pois considera o trabalho estressante demais e “puxa muito pelo psicológico da pessoa”. Imaginava outro cenário de trabalho e diz: “antes de trabalhar no telemarketing achava que era um trabalho ligth, numa sala com ar condicionado, só atendendo ligação, coisa e tal”. Ao entrar em contacto com a rotina de trabalho e as inúmeras insatisfações acumuladas nos seus quatro meses de experiência, assinala que pretende permanecer pouco tempo, mas, ressalta que necessita da experiência para “melhorar seu currículo e procurar coisa melhor”.

Percebe-se que as expectativas dos trabalhadores e trabalhadoras em relação ao trabalho no setor, de alguma forma podem variar de acordo com o projeto profissional e de vida no momento em que inicia a atividade. Assim, Ramalho et al. (2008), perceberam que, absorvidos pela oferta de emprego no mercado formal, e tendo em vista o grande número de vagas oferecidas, para alguns funcionou como “porta de

Page 7: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

entrada para uma área de trabalho que fazia sentido em sua trajetória profissional naquele momento [...] o sentido é o de meio e não de fim”. (RAMALHO, et al., 2008, p.23). Nessa direção o trabalho em telemarketing segundo Mocelin; Silva (2008) pode ser caracterizado como “emprego trampolim”.

Ao descrever seu dia de trabalho Paloma ressalta, apenas, os aspectos negativos: os diversos conflitos com “o cliente estressado”, “falar seis horas seguidas”, os problemas com a supervisão “que só sabe cobrar”. Na rotina do trabalho em call centers os indivíduos trabalham sentados, com movimentos breves e repetitivos de digitação, têm a atenção centrada na fala, controlada segundo regras rigorosamente definidas (scripts) e na escuta, e dispõem de um espaço de trabalho traduzido como “baia” ou ”célula”. Este cenário é marcado por um rítmo excessivo, controle rigoroso do tempo, múltiplas exigências, vigilância, disciplina.

O cliente em primeiro lugar, o bom atendimento em um tempo mínimo, passar o sorriso na voz, falar seguindo uma fraseologia determinada pela empresa, ser educado com o cliente, são atitudes constantemente vigiadas por sistemas sofisticados de controle. Estes e outros comportamentos são aprendizados que exigem adestramento, aplicação de métodos disciplinares que como explica Foucault (2007) passa principalmente pelo corpo.

O tempo para comer

O controle do tempo é incorporado no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras. O tempo, como um indicador importante de qualidade de trabalho e produtividade é cobrado através do TMA (tempo médio de atendimento) mais baixo quanto possível para evitar filas de espera e conseqüente insatisfação do cliente. Chegada a hora de comer continua a preocupação com tempo. O setor de telemarketing guarda uma peculiaridade importante em relação ao tempo e ao acesso de alimentos no local de trabalho. Os trabalhadores e trabalhadoras dispõem de um tempo nominado de “intervalo para repouso alimentação”, atualmente normatizado em vinte minutos, na jornada diária de seis horas de trabalho (Brasil, 2007).

Paloma está sempre atenta a tudo que pode levar a “gastar seu tempo”; desenvolve suas atividades no setor receptivo (aquele em que é o cliente que toma a iniciativa de ligar para a central de atendimento), explica a contagem do intervalo dizendo: “Olhe só, os vinte minutos são contados da hora que agente ‘desloga’ e sai, até a hora que agente ‘loga’ de volta. Por exemplo, quem trabalha no terceiro andar vai gastar mais tempo até chegar no primeiro andar, por exemplo”.

Este tempo para “repouso e alimentação” deve ser controlado pela supervisão que dispõe de um arsenal tecnológico capaz de esquadrinhá-lo em suas frações mínimas e registrar, por exemplo, um ou dois segundos de atraso de retorno ao trabalho. Pois, como nos ensina Foucault (2007),

trata-se de constituir um tempo integralmente útil [...]. O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade, e

Page 8: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

durante todo o seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício. A exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar [...] (Foucault, 2007 p. 128, 129).

O intervalo de vinte minutos é considerado insuficiente pelos trabalhadores e trabalhadoras, aliado a qualidade da oferta de alimentos disponibilizada pela empresa através da “máquina de comer” (sistema vending) que limita a escolha, a satisfação. Teoricamente, por estar localizada no refeitório, ‘dentro’ da empresa, seria mais rápido utilizar as “máquinas de comer”. No entanto, outras estratégias são utilizadas e o acesso aos alimentos vendidos nas máquinas não se configuram como principal opção para aquelas pessoas. Há que considerar que os preços dos alimentos disponibilizados pelo sistema vending são mais caros que os praticados ‘fora’ da empresa.

No momento da alimentação a pessoa se depara com uma máquina, onde na escolha do que comer se trava num “diálogo” muitas vezes difícil. João, trabalhador do turno da noite, diz:

Não tem o que gosto. Pergunto ao meu colega que foi antes de mim, o que tinha para comer. Ele fala, por exemplo, pãozinho de queijo, aí eu fico pensando no pão, querendo que chegue logo minha pausa. Quando chego lá, acabou o pão e não tenho com quem reclamar [...].

Na escolha do alimento, posiciona-se de frente para uma máquina e obedecendo rigorosamente os comandos anunciados pelo visor eletrônico é possível acessar um item por vez. Nesta escolha do que comer utiliza-se apenas a visão; o que poderia ser captado pelos outros sentidos fica no imaginário da pessoa. O sistema é automatizado em todas as etapas para acesso ao que se come e planejado para ser rápido, mas às vezes não funciona adequadamente. Não raro, observa-se devolução das cédulas e moedas pelo sistema, saída de alimento diferente do escolhido, “água choca” ao invés de chocolate, apenas para citar alguns exemplos, situações que podem ocasionar atrasos para o retorno ao trabalho e/ou redução do tempo que seria destinado à alimentação. Assim, este sistema de alimentação disponibilizado pela empresa, pode se configurar como mais uma fonte de estresse, além de tantas outras enfrentadas pelos trabalhadores e trabalhadoras no seu cotidiano de trabalho.

Outra opção, muito utilizada é a de “trazer marmitas de casa”. Tal escolha pressupõe um preparo prévio, acondicionamento adequado para “não estragar”. Para os que utilizam esta opção com maior ou menor frequência, tem que se considerar a fila para o uso do forno microondas ou “se não quer perder tempo, comer sem esquentar”. Ainda que se considere todo o empreendimento colocado em cena até a hora de comer, percebe-se, em alguma medida, entre os motivos explicitados para tal escolha a dimensão de segurança: “sei o que estou comendo”, para comida trazida de casa, em oposição a “não sei como foi preparada” para as outras formas. Assim, “preferir” utilizar as marmitas com a comida de casa, pode ser interpretado como uma tentativa de humanizar o comer no trabalho, de trazer para aquele ambiente o que a casa representa; pois a casa distingue-se “[...] como espaço de calma, repouso, recuperação e hostilidade, enfim, de tudo aquilo que define idéia de “amor” “carinho” e “calor

Page 9: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

humano”, a rua é um espaço definido precisamente ao inverso. Terra que pertence ao “governo” ou ao “povo” e que está sempre repleta de fluidez e movimento. A rua é um local perigoso” (DAMATTA, 1997, p. 57).

A comida “da rua” seria em oposição à “da casa”, aquela que não se sabe como foi preparada e este sentimento de incertezas na qualidade vai sendo relativizado nas narrativas daqueles que necessitam utilizá-la por motivos os mais diversos. Há os que preferem por “comodidade e economia de tempo”, pois para “trazer marmita” precisaria de uma estrutura familiar que não dispõem e/ou apontam as dificuldades para acondicionar, transportar, aquecer e comer. Etapas pontuadas como inconvenientes pelo desconforto de “levar de ônibus”, “às vezes derrama na bolsa”, “andar com vasilha na bolsa o dia inteiro”, “descongela e molha tudo”. Ao tempo que vão narrando, tentam cronometrar o tempo gasto para as distintas fases deste processo.

No espaço “da rua”, onde estão localizados pontos de venda fixos e ambulantes, há um marcador importante: ser atendido por uma pessoa, onde é possível, ao que parece, um diálogo mais proveitoso que o estabelecido com a “máquina de comer”. As pessoas que comercializam alimentos naquela região, expressam preocupação com o “tempo que eles têm para comer”. Assim, montam estratégias para minimizar ao máximo o tempo de espera, pois sabem que “o tempo é curto, eles já chegam aqui correndo. Então tem que ser tudo rápido, senão eles chegam atrasados e tem problema” (Diário de campo).

Os trabalhadores e trabalhadoras, por sua vez, vão tentando estabelecer vínculos com os vendedores e vendedoras dos distintos pontos de vendas, utilizando expressões como ‘tia’, ‘tio’, ‘brother’, etc e estão sempre à procura de opções mais baratas e mais rápidas.

O espaço da rua está sujeito às intempéries do tempo. Quando chove, há formação de poças de água dificultando o acesso. Cada ponto de venda tem suas particularidades, mas em geral os ambulantes trazem as “peças” (coxinha de galinha, quibe, pão de queijo, bauru, etc.) prontas para o consumo e são acondicionadas à temperatura ambiente. Os sucos, refrigerantes e água são mantidos em caixas isotérmicas com gelo. Os pontos que são fixos servem sanduiches variados e também algumas “peças” similares a dos ambulantes.

O refeitório da empresa é estruturado com mesas, cadeiras, fornos microondas, bebedouros, copos descartáveis, pia para lavagem das mãos com toalhas descartáveis, baldes para lixo, máquinas do sistema vending, televisão e quadro de avisos. A climatização é mantida por sistema de ar condicionado. Há câmaras localizadas em pontos estratégicos, que é vigiado e controlado como em qualquer outro ambiente da empresa (com exceção dos banheiros). Há reposição periódica dos descartáveis e regularidade na limpeza do piso, bancadas e cadeiras. Contudo, nos momentos de maior movimento, tais investimentos não conseguem dar conta da manutenção da higiene e limpeza satisfatoriamente.

Page 10: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

A cena mais comum nos distintos espaços utilizados para comer, é de pessoas em constante movimento, uns entram outros saem e neste ir e vir de corpos apressados, o celular é importante equipamento de controle do tempo. Enquanto comem, periodicamente observam o visor do celular. Não arriscaria descrever um ‘padrão’ de consumo naqueles espaços, onde é possível observar odores e cores de distintos alimentos, acessados de maneiras diversas. Recorrente é a pressa, possível de perceber ao entrar, ao estar e ao sair destes diferentes espaços.

A título de conclusão, poderia dizer que “aqui a gente não come, engole!” é a metáfora utilizada por aqueles trabalhadores e trabalhadoras, na tentativa de expressar as suas experiências quanto aos modos de perceber o comer, onde a ansiedade e a pressa experimentadas neste mundo (do trabalho) extremamente acelerado, (des) configuram as suas práticas alimentares e rompem tradições. Cabe aqui refletir sobre a rigidez no controle do tempo não apenas pelo interesse em maior produtividade, como também uma maneira de afirmar que se tem poder sobre o corpo do outro, de confirmar a sujeição dos trabalhadores e trabalhadoras do setor de telemarketing.

Referências ALMEIDA, A. C. (2009) E agora o que será de minha vida? Estudo sobre os significados das LER atribuídos por Operadores de Telemarketing. [Dissertação]. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Medicina. Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho. Salvador, Bahia, 118 p.

ANTUNES, R. (1999) Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo. Boitempo Editorial.

ARAUJO, M. P. N.; COSTA-SOUZA, J.;TRAD, L. A. B. (2010). A alimentação do trabalhador no Brasil: um resgate da produção científica nacional. Hist. cienc. saude-Manguinhos, vol. 17, p. 975-992.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE TELESERVIÇOS.Pesquisa da PUC-SP radiografa o call center brasileiro[on line]. Disponível em: < http://www.abt.org.br>. [08 de setembro de 2007].

ASSUNÇÃO, A. A; SOUZA, R. (2000) Telemática. Cadernos de Saúde do Trabalhador, 11. São Paulo: INST (Instituto Nacional de Saúde no Trabalho)/CUT (Central Única dos Trabalhadores). BAGNARA, S. Towards Telework in Call Centers [on line]. Euro-Telework, Call Center report, 2000. Disponível em: http://www.telework-mirti.org/bagnara.htm. [janeiro de 2010].

BRASIL, MTE, SECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO. Portaria no 09, de 30 de março de 2007: Aprova o Anexo II da NR17, Trabalho em

Page 11: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

Teleatendimento/Telemarketing. Diário Oficial da União. Edição no63, de 02 de abril de 2007.

BRASIL, MTE. Classificação Brasileira de Ocupação (2002) [on line]. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/busca/condicoes.asp?codigo=4223>. [08 de setembro de 2007].

DAMATTA, R. (1997) A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª ed., Rio de Janeiro, Rocco.

FERREIRA, L. P; AKUTSU, C. M.; LUCIANO, P.; VIVIANO, N. A. G. (2008) Condições de produção vocal de teleoperadores. Rev Soc Bras Fonoaudiol., vol. 13, p. 307-315.

FOUCAULT, M. (2007) Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Tradução Raquel Ramalhete, 34 Ed. Petrópolis, RJ: Vozes.

GUENA, R. M. (2009) Dando voz ao trabalhador: os significados da disfonia para os operadores de telemarketing. [Dissertação]. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. Mestrado em Saúde Coletiva. Salvador, Bahia, 123 p.

LE GUILLANT, L. et al. (2006) A neurose das telefonistas. In: Lima, Maria Elizabeth Antunes (org.). Escritos de Louis Guillaant: daergotera á psicopatologia do trabalho. Tradução de Guilherme Teixeira. Petropólis, Rio de Janeiro, Vozes.

MARINHO-SILVA, A. (2007) Condições de trabalho e adoecimento dos trabalhadores em teleatendimento: uma breve revisão. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente - vol.1, p.1-18.

______; ASSUNÇÃO, A. A. (2005) Negociações sociais para melhoria das condições de trabalho no setor de teleatendimento: o descompasso entre a posição das empresas e a realidade do trabalho. Comunic, Saúde, Educ, vol.9, p. 553-70.

MARQUES, F. (2005) Operadores de telemarketing são vítimas de estresse físico e emocional [on line]. Agência Fiocruz de Notícias, Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2005. Matéria elaborada a partir da entrevista com a socióloga Simone Oliveira, doutoranda da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). Disponível em: <www.fiocruz.br/ccs/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=182&sid=9&tpl=printerview>. [junho de 2007].

MINTZ, S W. (2001) Comida e antropologia: uma breve revisão. Rev. bras. Ci. Soc., vol.16, p.31-42.

MOCELIN, D. G.; SILVA, L. F. S. C. (2008). O telemarketing e o perfil sócio-ocupacional dos empregados em call centers. Caderno CRH, Salvador, vol. 21, p. 365-387.

MURRIETA, R. S. S. (2001). Dialética do sabor: alimentação, ecologia e vida cotidiana em comunidades ribeirinhas da Ilha de Ituqui, Baixo Amazonas, Pará. Revista de Antropologia, vol. 44, p. 39 – 88.

Page 12: TC11-Maria da Purificação Nazaré ARAÚJO final

NUNES, E. D. (1989) A categoria trabalho na medicina. In: NUNES, Everardo Duarte (Org.) Pensamento social em saúde na América Latina. Rio de Janeiro. Ed. Cortez, ABRASCO.

OLIVEIRA, S. S. S. (2007). Um olhar sobre a saúde a partir da dimensão gestionária do trabalho: contradições e ambigüidades no telemarketing [tese]. ENSP. Rio de Janeiro, 184p.

PENA, P. G. L.; CARDIM, A.; ARAÚJO, M. P. N.; SAMPAIO, V.; GUENA, R. M. Estratégias gerenciais nocivas e desenvolvimento tecnológico como condicionantes sociais das Lesões por Esforços Repetitivos em Operadores de Telemarketing em Salvador-Bahia. Caderno CRH, Salvador (aceito). RAMALHO, C. C. et al. (2008). Viver na baia: dimensões psicossociais da saúde e do controle no trabalho de teleatendimento. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, vol. 11, p. 19-39.

VILELA, L.V.O.; ASSUNÇÃO, A. A. (2004). Os mecanismos de controle da atividade no setor de teleatendimento e as queixas de cansaço e esgotamento dos trabalhadores. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol. 20, p. 1069-1078.