Tayrone - Monografia 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DE TRS LAGOAS DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS CURSO DE GEOGRAFIA

AGROINDUSTRIALIZAO CANAVIEIRA EM APARECIDA DO TABOADO/MS: O ANTAGONISMO CAPITAL/TRABALHO NA (RE)PRODUO DA ESPACIALIDADE CAPITALISTA DO LUGAR

Tayrone Roger Antunes de Asevedo

Trs Lagoas/MS 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DE TRS LAGOAS DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS CURSO DE GEOGRAFIA

AGROINDUSTRIALIZAO CANAVIEIRA EM APARECIDA DO TABOADO/MS: O ANTAGONISMO CAPITAL/TRABALHO NA (RE)PRODUO DA ESPACIALIDADE CAPITALISTA DO LUGAR

Monografia apresentada como exigncia parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Geografia junto ao Departamento de Cincias Humanas/CPTL/UFMS, sob a orientao do Prof. Dr. Jlio Czar Ribeiro.

Trs Lagoas/MS 2010

TERMO DE APROVAO

A monografia intitulada: AGROINDUSTRIALIZAO CANAVIEIRA EM APARECIDA DO TABOADO/MS: O ANTAGONISMO CAPITAL/TRABALHO NA (RE)PRODUO DA ESPACIALIDADE CAPITALISTA DO LUGAR apresentada em ___ de _______ de 2010 por Tayrone Roger Antunes de Asevedo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Bacharel em Geografia Banca Examinadora da UFMS, Trs Lagoas/MS, foi considerada _____________.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________ Prof. Dr. Jlio Czar Ribeiro Orientador

_________________________________________ Prof. Dr. Francisco Jos Avelino Jnior Membro da Banca

_________________________________________ Profa. Dra. Rosemeire Aparecida de Almeida Membro da Banca

EPGRAFE

Todos esto loucos, neste mundo? Porque a cabea da gente uma s. E as coisas que h e que esto para haver so demais de muitas. Muito maiores diferentes. E a gente tem de necessitar de aumentar a cabea. Para o total. Joo Guimares Rosa. Grande Serto: Veredas, 1956.

No comeo, era o Topos. E o Topos indicava o mundo, pois era lugar; no estava em Deus, no era Deus, pois Deus no tem lugar e jamais o teve. E o Topos era o Logos, mas o Logos no era Deus, pois era o que tem lugar. O Topos, na verdade, era poucas coisas: a marca, a re-marca. Para marcar, houve traos, dos animais e de seus percursos; depois, sinais: um seixo, uma rvore, um galho quebrado, um cairn. As primeiras inscries, os primeiros escritos. Por pouco que fosse, o Topos j era o homem. Assim como o slex seguro pela mo, como a vara erguida com boa ou m inteno. Ou a primeira palavra: O Topos era o Verbo; e algo mais: a ao, Am Anfang war die Tat. E algo menos: o lugar, dito e marcado, fixado. Assim o Verbo no se fez carne, mas lugar e no-lugar. Henri Lefbvre. Lgica Formal/Lgica Dialtica, 1995.

SUMRIO LISTA DE SIGLAS............................................................................................................ ix LISTA DE FIGURAS......................................................................................................... x LISTA DE QUADROS...................................................................................................... x LISTA DE MAPAS............................................................................................................ x LISTA DE GRFICOS...................................................................................................... x LISTA DE ANEXOS.......................................................................................................... x RESUMO............................................................................................................................ xi ABSTRACT........................................................................................................................ xii INTRODUO.................................................................................................................. 13

CAPTULO I A CRIAO DE MATO GROSSO DO SUL E A EXPANSO DA CANA: O JOGO DAS ESCALAS NAS (TRANS)FORMAES TERRITORIAIS DO AGRONEGCIO........................................................................................................ 15 1.1 Des(re)povoamento, formao do Estado, gnese e regncia do latifndio: consideraes sobre a construo espacial do Mato Grosso do Sul............................... 16 1.1.1 Uma geografia arquitetada para o agronegcio: origem e termos do fortalecimento da agroindstria canavieira no Mato Grosso do Sul.................................... 28 1.2 Regionalizar e Integrar: articulaes sociais entre Mato Grosso do Sul e Aparecida do Taboado/MS.............................................................................................................. 38 1.2.1 Da pecuria cana: as grafias de Aparecida do Taboado no modo capitalista de (re)produzir o campo............................................................................................................ 42 CAPTULO II ENTRE O LOCAL E GLOBAL NA ERA DA FLUIDEZ: ORIGEM E REESTRUTURAO PRODUTIVA DA ALCOOLVALE EM APARECIDA DO TABOADO SOB A GIDE DA ACUMULAO FLEXVEL.......................................................................................................................... 47 2.1 Contextualizando a reestruturao do agronegcio canavieiro no Mato Grosso do Sul: consideraes a partir do municpio de Aparecida do Taboado................................... 48 2.1.1 O Grupo Unialco em Aparecida do Taboado e a reestruturao da atividade com a atuao da Alcoolvale S.A. lcool e Acar.................................................................... 50 2.2 Territrio mutante: Aparecida do Taboado no mapa e na rede da cana...................... 54 2.2.1 O territrio nacional e as verticalidades de controle dos agentes transnacionais: a Clean Energy Brazil e a Central Energtica Aparecida do Taboado em cena................... 61 CAPTULO III O PAPEL DO TRABALHO NA CONFORMAO DA GEOGRAFIA SOCIETRIA DO CAPITALISMO: AS RELAES CAPITAL/TRABALHO, CAPITAL-CAPITAL E TRABALHO-TRABALHO NA ALCOOLVALE.................................................................................................................. 70 3.1 O carter multifacetado do trabalho na tessitura geogrfica das relaes sociais: exposies emprico-tericas................................................................................................

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3.1.1 A relao capital/trabalho na Alcoolvale: discurso e prtica, antagonismo e precariedade.......................................................................................................................... 77 3.2 Trabalho e acumulao flexvel: as marcas da reestruturao na Alcoolvale............................................................................................................................. 89 3.2.1 Das geografias do presente ao vir-a-ser da agroindstria canavieira no municpio.............................................................................................................................. 94 4 CONSIDERAES FINAIS....................................................................................... 97 5 REFERNCIAS........................................................................................................... 98

LISTA DE SIGLAS BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CANASAT Mapeamento da cana via imagens de satlite de observao da Terra CAND Colnia Agrcola Nacional de Dourados CENAL - Comisso Executiva Nacional do lcool CEO - Chief Executive Officer CEB Clean Energy Brazil CIMA - Conselho Interministerial do Acar e do lcool CNAL - Conselho Nacional do lcool EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria EPI - Equipamento de Proteo Individual FAMASUL - Federao da Agricultura e Pecuria do Estado de Mato Grosso do Sul FCO - Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste FPM - Fundo de Participao do Municpio IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica ICMS Imposto sobre Circulao de Mercadorias e Servios INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INPE - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano ISS Imposto sobre Servios MI Manuteno Industrial NOB Estrada de Ferro Noroeste do Brasil PCM Planejamento e Controle de Manuteno PNA - Plano Nacional de Agroenergia PND Plano Nacional de Desenvolvimento PNRA - Plano Nacional de Reforma Agrria POLOCENTRO - Programa de Desenvolvimento dos Cerrados PROALCOOL Programa Nacional do lcool PRODEAT - Programa de Desenvolvimento de Aparecida do Taboado PRODEGRAN - Programa Especial de Desenvolvimento da Regio da Grande Dourados PRODEPAN - Programa Especial de Desenvolvimento do Pantanal PROSUL - Programa Especial de Desenvolvimento de Mato Grosso do Sul SENAR - Servio Nacional de Aprendizagem Rural SEPROTUR - Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrrio, da Produo, da Indstria, do Comrcio e do Turismo SOMECO - Sociedade Melhoramentos de Colonizao UDOP Unio dos Produtores de Bioenergia UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UNICA - Unio da Indstria de Cana-de-acar ZP - Zancaner Participaes

LISTA DE FIGURAS Figura 01 - Localizao do Municpio de Aparecida do Taboado/MS LISTA DE QUADROS Quadro 01 - Distribuio das terras no Mato Grosso do Sul 1985 Quadro 02 - Distribuio das terras no Mato Grosso do Sul 1995/96 LISTA DE TABELAS Tabela 01 - rea Devoluta no Mato Grosso do Sul Tabela 02 - Imveis e rea Improdutiva no Mato Grosso do Sul LISTA DE GRFICOS Grfico 01 - Participao dos municpios na atividade canavieira Mato Grosso do Sul Grfico 02 - rea Total Cultivada com cana-de-acar Mato Grosso do Sul Grfico 03 - Distribuio percentual da rea total, segundo categoria de imvel Grfico 04 - Distribuio percentual dos imveis rurais, segundo categoria de imvel Grfico 05 - Valores totais comercializados nas exportaes de acar Grfico 06 - Participao percentual do acar no volume total de produtos exportados LISTA DE ANEXOS Anexo 01 - Colheitadeiras adquiridas pela Alcoolvale em 2008 Anexo 02 - Colheitadeiras em funcionamento Anexo 03 - Trabalhadores do corte manual Anexo 04 - Trabalhador do corte manual Anexo 05 - Planta fabril da Alcoolvale em 2008 Anexo 06 - Sede do programa Alimentao e Sade do Trabalhador Anexo 07 - Veculos da NUTRIPRESS Anexo 08 - rea dentro da sede do programa Alimentao e Sade do Trabalhador Anexo 09 - Residncia locada pela Alcoolvale para hospedar trabalhadores Anexo 10 - rea arrendada para plantio pela Alcoolvale

RESUMO Este trabalho visa compreender a agroindustrializao canavieira em Aparecida do Taboado/MS atravs da identificao das mltiplas escalas envolvidas e dos conflitos e emaranhamentos existentes entre o Estado, o capital e o trabalho. Avalia o regimento de controle e manuteno da ordem classista pelo Estado, com suas aes de incentivo e iseno fiscal, apoios jurdico-legais e, outras coisas, servios elementares de infra-estrutura, tudo no jogo territorial de formao histrica e espacial coeva. Pondera sobre a geografia do capital, a reestruturao produtiva do setor em termos de acumulao flexvel, todas as mudanas significativas, agora com agentes transnacionalizados que controlam com mais avidez os territrios nacionais, fazendo com que se (re)produzam lugaridades-particularidades num amplo projeto de construo de uma espacialidade capitalista. Tece consideraes sobre as relaes antagnicas entre capital e trabalho na agroindstria canavieira estudada, as contradies existentes e evidenciadas nos discursos, as condies precrias com que se realizam as atividades econmico-produtivas, com as falas dos sujeitos reais envolvidos, tudo objetivando demonstrar um quadro das marcas locais da toyotizao da agroindstria canavieira. Em meio a tantas contradies, no poderamos deixar de mencionar no apenas as possibilidades de continuidades de prticas no setor como, talvez, das reviravoltas, expressas numa ligeira visualizao do vir-a-ser do setor em mbito local e at mesmo regional. Palavras-chave: Agroindstria Canavieira, Aparecida do Taboado, Acumulao Flexvel, Relao Capital/Trabalho, Espacialidade Capitalista.

ABSTRACT This work seeks to understand the industrialization of sugarcane in Aparecida do Taboado/MS through the identification of the multiple involved scales and of the conflicts and existent entanglements among the State, the capital and the work. It evaluates the control regiment and maintenance of the classe organization for the State, with their incentive actions and fiscal exemption, juridical-legal supports and, other things, elementary services of infrastructure, everything in the territorial game of historical formation and space. To build analyzes about the geography of the capital, the productive restructuring of the section in terms of flexible accumulation, all of the significant changes, now with agents transnationalized that control with more avidity the national territories, doing with that if (re)produce places and particularities different in a wide project of construction of a capitalist spacialty. Accomplishes evaluations about the antagonistic relationships between capital and work in the studied sugar cane agribusiness, the existent contradictions and evidenced in the speeches, the precarious conditions with that the take place the economical-productive activities, with the speeches of the involved real subjects, everything aiming at to demonstrate a picture of the local marks of the toyotizao of the sugar cane agribusiness. Amid so many contradictions, we could not stop not just mentioning the possibilities of continuities of practices in the section as, maybe, of the turns, expressed in a quick visualization of the cometo-being of the section in local extent and even regional. Key-words: Sugar cane agribusiness, Aparecida do Taboado, Flexible Accumulation Work/Capital Relation; Capitalist Spacialty.

INTRODUO Este estudo objetiva compreender a agroindustrializao canavieira em Aparecida do Taboado/MS. Cremos que o mesmo origina-se de apreenses imagsticas ofuscadas dessas relaes sociais manifestas no municpio, portanto, permeia nossas indagaes antes mesmo de constituir-se como saber cientifico no ambiente universitrio que, mesmo com seus delineamentos ou envolvimentos prticos, no cessou o interesse pelo entendimento das diferentes tramas e tenses que se faziam nesse locus de relaes to amplas e complexas. Destarte, a assimilao das manifestaes transescalares assumidas pelo modo de produo capitalista, para que busquemos constituir um exame das contradies despertas no lugar e as articulaes deste com o mundo tarefa fundamental formulao de uma compreenso dialtica desta singular geo-grafia que se promulga. Para alm de uma discrio factual e empirista, optamos por identificar as contradies essenciais comandadas pela racionalidade instrumental tcnico-quantitativa que assume forma no real, corporificando relaes de poder que apresentam diferentes articulaes e conflitos, manifestos, entre outras, nas relaes de trabalho, na apropriao social contraditria da terra, condicionando ambos ao projeto unifuncional de (re)produo de capital, perpetuando continuamente a lgica da explorao e precarizao da existncia humana em suas facetas mais simples e imediatas. Delimitamos os captulos para abranger, inicialmente, os trs elementos-chave compreenso das formaes sociais capitalistas: o Estado, o capital e o trabalho. Pretendemos compreender, atravs dos fenmenos abordados, os relacionamentos existentes, as conflitualidades emanantes, mesmo que iniciais sejam os passos aqui dados. Abriremos o debate discorrendo sobre a formao histrico-geogrfica de Mato Grosso do Sul, como manifestao da formao do Estado nesta parte do Oeste brasileiro, observando, por conseguinte, o carter dessa esfera de regimento das classes no capitalismo, tudo isto para estabelecermos bases slidas, dando-nos cho e corpo para adentrar num universo complexo, a agroindstria canavieira, suas reestruturaes permanentes, com expanses e redefinies intensas. No bastou descrever a localizao puramente formal do municpio de Aparecida do Taboado no Estado de Mato Grosso do Sul, realizamos uma exposio das principais articulaes, denotando as principais caractersticas que o fazem parte componente, como, por exemplo, a presena marcante da pecuria e do latifndio. Neste nterim, partiremos para as primeiras manifestaes da atividade canavieira no municpio com

a Destilaria Santa Quitria at chegar ao incio da dcada de 2000, quando envolvidos em sucessivas crises os empresrios vendem a empresa ao Grupo Unialco. A seguir, queremos apresentar as principais caractersticas que motivaram a expanso recente da agroindstria canavieira para o Mato Grosso do Sul, tomando como condio emprica o caso do municpio de Aparecida do Taboado com a chegada da Alcoolvale S.A. lcool e Acar. Analisamos as primeiras tramas e parcerias tecidas pela agroindstria para se chegar a segunda metade da dcada de 2000, em que essa empresa se estabelece como uma das principais representantes do setor no Estado, estabelecendo-se no mapa e rede da agroindstria da cana-de-acar. O que despertou, em muito, a averiguao das escalas da produo geogrfica da sociedade capitalista, pois, com a entrada de agentes transnacionais, novas perspectivas foram lanadas, com as relaes globalizadas-mundializadas desses agentes, manifestas no lugar. Posteriormente, realizamos uma exposio terica sobre trabalho e suas relaes com o capitalismo e a Geografia. Apresentamos alguns condicionantes empricos para se entender as transformaes dentro de um contexto de acumulao flexvel, discorrendo sobre esse rearranjo produtivo do capital, indo desde esse universo at as prticas e representaes da vida, o palco cotidiano. Ressaltamos, tambm, algumas caractersticas manifestas na agroindstria estudada, contrastes significativos entre modernidade-flexibilidade e precariedade das formas e contedos sociais existentes. Fechando o debate, lanamos algumas pistas para as condies futuras, tanto das condies mais tpico-locais at mesmo do setor em mbito regional, exposies breves que so nutridas visualizando o vir-a-ser a partir das geografias que se realizam no presente.

CAPTULO I - A CRIAO DE MATO GROSSO DO SUL E A EXPANSO DA CANA: O JOGO DAS ESCALAS NAS (TRANS)FORMAES TERRITORIAIS DO AGRONEGCIO

1.1 Des(re)povoamento, formao do Estado, gnese e regncia do latifndio: consideraes sobre a construo espacial do Mato Grosso do SulLembro de um velho ndio contando histrias, de glrias e tragdias que no vivi, quando das estrelas vieram deuses e seus sinais esto por a, depois de um certo tempo eles foram embora, deixando para trs um povo feliz, mas os portugueses e os espanhis invadiram a terra dos guaranis, ento vieram os bandeirantes e os retirantes l das Gerais, por muito tempo no houve paz sofreu demais quem te ama, bela Serra de Maracaj, seus mistrios quero traduzir, descobrir as lendas e memrias, de cada lgua que eu te percorri... Eu cheguei aqui com os meus prprios ps e hoje tenho minha raiz, dos antigos lados dos xaras toco chamams que eu mesmo fiz, de hoje em diante somos iguais quem de nossa terra te chama, bela Serra de Maracaj...

Serra de Maracaj - Almir SaterCada indivduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivduo. Evitar as distribuies por grupos; decompor as implantaes coletivas; analisar as pluralidades confusas, macias ou fugidias. O espao disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos h a repartir. preciso anular os efeitos das reparties indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivduos, sua circulao difusa, sua coagulao inutilizvel e perigosa; ttica de antidesero, de antivadiagem, de antiaglomerao. Importa estabelecer as presenas e as ausncias, saber onde e como encontrar os indivduos, instaurar as comunicaes teis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreci-lo, sancion-lo, medir as qualidades ou os mritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espao analtico (...). A primeira das grandes operaes da disciplina ento a constituio de quadros vivos que transformam as multides confusas, inteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. (FOUCAULT, M. 2004)

Ao principiarmos a discorrer sobre a construo do espao de Mato Grosso do Sul, uma preocupao, tnue, chamou-nos a ateno e, por conta disso, de certo modo, acabou por reorientar-nos no desenvolver deste captulo, qual seja: como formular e demonstrar diferentes processos, constituidores da realidade contempornea, sem cair numa narrativa essencialmente histrica e alijada de uma formulao crtica sobre o espao ao qual nos pomos a compreender? Certamente que nas poucas palavras aqui expostas, muito gerais por assim dizer, podemos vislumbrar outras formas de apreenso, mas no abranger todos os acontecimentos, fenmenos e relaes que se estabeleceram em diferentes contextos. Postulamos, desde j, que no de nosso feitio apresentar todas essas caractersticas como tmporo-espacialmente

cumulativas, seqenciais e homogneas. Nosso intuito mais se aproxima do interesse em trazer ao debate as geografias conformadoras da realidade scio-espacial contempornea, principalmente no que diz respeito expanso da agroindstria canavieira para Mato Grosso do Sul. Entendemos que as caractersticas gerais que levaram ao povoamento dessa poro do Oeste brasileiro e os processos histrico-geogrficos que culminaram com a constituio de Mato Grosso do Sul so complexos, erigidos numa sucesso coexistencial de sujeitos sociais diferenciados, reconstruindo um espao e tornando-o peculiarmente antagnico e conflituoso, j que demarcado pelo (des)encontro de povos distintos nos valores e comportamentos. Anteriormente chegada de europeus, esse espao era de domnio de diferentes etnias indgenas; nos trabalhos de Valverde (1972) e Campestrini e Guimares (1991) demonstrado que povos pertencentes ao grupo lingstico guarani percorriam-no, compondo mesmo a presena humana mais marcante por essas paragens. Possuam caractersticas especficas e incursionavam desde os Andes at Cuzco, passando pelo norte do atual estado de Mato Grosso ou at mesmo prximo das bacias dos Rios Pardo e Taquari1, como de igual modo perambulavam nas divisas das bacias dos Rios Paraguai e Paran2. Sociedades no-classistas, baseadas na relao harmnica entre o Ser (individualcoletivo) e o Estar (geogrfico-cultural) ento se reproduziam. Diferenciando-se da sociedade de classes que cruza o Atlntico e expande seus horizontes (s vezes os encurta) e territrios. Fazendo com que os modos de vida preexistentes sejam reduzidos, porque subvalorizados ante o espao-mercadoria a ser domado pelo homem branco, cristo e civilizado, missionrio incumbido de voltar todos os coraes e mentes cruz de um santo devir. Conforme avana essa sina acumulativista-antropo(euro)cntrica, esvai-se outras formas de ver e ser no mundo. O que nos pe a concordar com o fato de que a A histria no comea com o Estado, exceto a histria da dominao regulada politicamente de maneira classista (RIBEIRO, 2006, p. 199). Apesar de sculos de perseguio e morte:Seis naes conseguiram sobreviver ao domnio branco e chegar ao terceiro milnio sobre o cho de Mato Grosso do Sul. Lutando pela terra e contra o processo de aculturao, os povos Ofai, Kadiwu, Terena, Guarani, andeva e Kaiow contam com uma populao de aproximadamente 50.000

Hoje, nas microrregies administrativas do Alto Taquari e Trs Lagoas, regies que envolvem os municpios de Camapu, So Gabriel do Oeste, gua Clara e Ribas do Rio Pardo, todos no Mato Grosso do Sul. 2 Nas regies centrais de Mato Grosso do Sul, principalmente nas envolvidas pela Serra de Maracaj, divisor de guas das duas grandes bacias hidrogrficas.

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ndios e fazem do estado o segundo maior em populao indgena do pas (AVELINO JUNIOR, 2004, p. 85).

So sociedades que vivenciam-percebem-concebem a natureza num metabolismo harmnico, em que o trabalho condio primordial para a humanizao, no aprimoramento do Ser, por gerar valores-produtos de uso buscando o bem-estar individual mediante a realizao do coletivo. O Ser social uma extenso da natureza que dela parte, toma conhecimento de si e lhe retorna em reconhecimento e ao teleologizada. As frentes de povoamento no-ndio so suscitadas pelas Bandeiras e Mones, correntes do incio a meados do sculo XVIII. Com o descobrimento do ouro, os bandeirantes, e logo aps os monoeiros, incitaram o povoamento e o processo de indexao dos espaos longnquos coroa portuguesa, elegendo-os categoria de capitanias desmembradas de So Paulo. Com intento de tomar/domar essa poro de um Brasil por eles inda longe do total descobrir, foram conformando a realidade que hoje salta-nos aos olhos em perversidade3. Aos bandeirantes caberia a funo de desbravar e conquistar o territrio. Assassinando, enclausurando e maltratando, abriram-se assim as primeiras vias. Eis que descobriram o ouro, uma virada nas intenes da coroa e um lugar fatdico ao Oeste nas geografias da acumulao. Os Monoeiros incursionavam cursos dgua serto adentro e, alm de explorar, faziam desses canais naturais a principal via de acesso mercantil s reas de minerao, secundarizando neste perodo as rotas terrestres de escoamento do ouro, atividade que j demonstrava sinais de declnio no final do sculo XVIII. Temos no perodo da minerao um relativo avano no urbano-povoamento, um espao pouco articulado, mas que, todavia, com o enfraquecimento da minerao, assiste a muitas rotas terrestres serem criadas, pois na passagem do sculo XVIII ao XIX incurses comerciais e exploratrias vindas de Minas Gerais, principalmente, cortavam o cerrado: as chamadas estradas boiadeiras, pelas quais se comercializavam gado por toda a recm criada provncia,

Atualmente, no Estado de Mato Grosso do Sul, conflitos violentos entre indgenas e proprietrios de terra noindgenas agitam toda uma imprensa classista, conformando uma situao particularmente instigante mas revoltante. As mobilizaes contra os laudos antropolgicos e as determinaes jurdicas de demarcao de terras para as comunidades indgenas so evidentes. Marisvaldo Zeuli, presidente do Sindicato Rural de Dourados, argumenta sobre o lugar e o papel do ndio hoje, em suas palavras: Se quer que o ndio viva numa condio que todo mundo merece, tem que deixar de lado a presso das ONGS (Organizaes NoGovernamentais) e a cultura dos ndios, traz-lo para a sociedade, inseri-lo no mercado de trabalho e dar a ele deveres e obrigaes. Cf. Questo indgena trava crescimento do MS. JB Online RJ 08/09/2009. Disponvel em http://www.canaweb.com.br/conteudo/noticia.asp?id_materia=36163 (acesso em 03/11/2009) As nuances que permeiam essas tenses contemporneas remetem a um contexto no muito distante, que poder ser desvelado a seguir.

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formando ncleos de povoamento que punham em relevo as fazendas pecuaristas, marcando o iniciar do carter concentracionista e oligrquico das terras nestas bandas do pas. Se as atividades mineradoras decaem, o mercado regional de gado experienciava momentos de auge no Sul, e as estradas boiadeiras de ento j haviam se tornado grandes fazendas e, assim, terras concedidas e ou tomadas foram se transformando em extensos latifndios, germinando povoados e uma teia de novas relaes. Logo aps esse perodo, com a Guerra do Paraguai (1864-1870), h uma substantiva atenuao no povoamento, rotas e cidades se estagnam e o comrcio de gado com os estados vizinhos parcialmente cessado. Contudo, pouco tempo depois flui com intensidade o povoamento na poro sul, tudo devido ao contexto da guerra, conforme observou Almeida (2006), que ressalta suas peculiaridades. E a extrao da erva-mate, que no incio da guerra dava seus primeiros passos, sofre profundas transformaes aps a mesma. A Cia. Matte Laranjeira surge nesses termos, explorando os fartos campos de erva-mate do sul ao suor de trabalhadores paraguaios e indgenas, pondo-se comercializao do produto na regio platina. E foi arrendando e comprando terras que essa empresa chegou a deter e explorar 1 milho de hectares. O papel da Cia. Matte Laranjeira substancial para o entendimento das questes que envolvem a criao de Mato Grosso do Sul, pois mesmo em se tratando de uma atividade itinerante, permitia que vias fossem criadas para a extrao, escoamento e comercializao do produto, cunhando povoados e articulando essa poro do espao a outros mercados regionais. Abreu (2001) aponta que a Companhia possua milcia para defender e conquistar os ervais e que possua ntimas relaes com o Estado, pois conferiam grandes rendas a este, a ponto, inclusive, de conceder emprstimos. Nota-se, tambm, que as reas arrendadas para a explorao pertenciam aos ndios Kaiow e Guarani e, certamente, conflitos armados ocorriam na disputa das terras com o avano da explorao mercantil da erva-mate. Logo aps a guerra, o Estado nacional necessitou expandir e fixar o domnio da fronteira e, paralelamente a isso, o mercado nacional precisava, a todo custo, ser integrado. Ir aos mais longnquos lugares e estabelecer as relaes tipicamente exploratrias era a meta de um capitalismo em processo de internacionalizao, exigindo, tambm por conta disso, que os mercados regionais brasileiros fossem embrionariamente unificados. Mas esse processo demorou a materializar-se. Foi preciso a Independncia poltica e, mais adiante, um Estado planejador montado para que a integrao comeasse de fato a ser mais bem ensaiada.

A integrao atravs de vias rodoviria e ferroviria consubstancia as bases dos interesses, complementando as atividades infra-estruturais suscitadas pela Cia. Matte Laranjeira. Caso da Ferrovia Noroeste Brasil, que interligou o estado de So Paulo ao ento Mato Grosso, cruzando inmeros municpios. Ferrovia essa que desempenhou papel crucial na formao do Mato Grosso do Sul, por impulsionar ideais divisionistas que se intensificariam anos aps, at conseguir cindir de fato o anterior territrio. Segundo consideraes de Queiroz:O advento da ferrovia permitiu ao Sul uma ligao direta e rpida com os grandes centros do Sudeste brasileiro, notadamente So Paulo e Rio de Janeiro (enquanto a populao cuiabana continuava a depender da difcil navegao dos rios Cuiab e Paraguai at Porto Esperana, ponto terminal da ferrovia). A ferrovia estimulou, enfim, o crescimento de outra potencial concorrente da velha Cuiab: a cidade de Campo Grande, que logo, alis, suplantaria a prpria Corumb na condio de principal plo comercial do Estado (2006, p. 156).

Nesse contexto de ocupao das fronteiras e dos vazios que surgem os projetos de colonizao, promovidos pelo Estado Novo (1937-1945) de Getlio Vargas. Exemplos so a criao da Colnia Agrcola Nacional de Dourados (CAND), a atuao de empresas privadas como a Sociedade de Melhoramentos e Colonizao (SOMECO), a Cia. Viao So Paulo Mato Grosso e a Cia. Moura Andrade que tinham por escopo apaziguar as intensas lutas populares travadas num Brasil que clamava pelo acesso terra e distribuio de renda. Projetos que, no nosso entendimento, vieram intensificar os conflitos, pois se assentavam num discurso ideolgico desprovido de compromisso real com a reforma agrria, redundando no abandono dos migrantes e colonos, alargando as brechas ao aliciamento das terras e dando continusmo concentrao fundiria, ainda que existisse, em menor nmero, pequenas propriedades originadas com a colonizao, poucas dedicadas ao trato efetivo com a terra. Evidncias de todo um projeto econmico-poltico estrategicamente articulado de integrao, sementes do que se iria estabelecer definitivamente anos mais tarde, com a criao do novo Estado. Neste caminho interpretativo, Abreu argumenta:O Mato Grosso do Sul era uma rea compreendida como estratgica pela sua capacidade produtiva, especialmente para a pecuria e a agricultura comercial, e pela incorporao de novas tecnologias e insumos: mquinas, implementos agrcolas e tratores, agrotxicos. Esta situao contribuiu para promover uma reconfigurao espacial, diferenciada da existente at ento, na sua poro austral. As pequenas propriedades, resultado do loteamento da

Colnia Agrcola de Dourados (CAND) e de outros projetos de colonizao privada, em boa parte, foram vendidas, consolidando uma outra estrutura fundiria, agora baseada na mdia e grande propriedades, para a instalao da agricultura moderna (2001, p. 229).

Outra contradio que a maioria das reas destinadas colonizao perfazia as terras tradicionais de Kaiow e Guarani que desde o final da dcada de 1970 lutavam pela demarcao das mesmas; uma insistncia que j resultou na recuperao de algo em torno a 22.450 hectares (BRAND; FERREIRA; AZAMBUJA, 2008, p. 44). Conquistas vlidas, mas ainda pequenas ante as conseqncias engendradas pelos projetos, cujo legado se fazem presentes nos diversos impasses sociais, polticos e jurdicos no Mato Grosso do Sul de hoje. Como vimos, a arrumao meticulosamente ordenada da existncia social vai tomando corpo com o Estado Novo, pois sua formao e estabelecimento se sustentam na coero, quando no no abrandamento dos conflitos, recriando as condies necessrias reprodutibilidade legitimada pelos aparatos legais inerentes estrutura do poder econmico reinante. O que comprova que o Estado no deve ser concebido segundo o ver que o tem como algo acima dos interesses antagnicos manifestos na sociedade, como uma esfera de conciliao entre classes sociais, mas, pelo contrrio, deve ser concebido pelo papel que possui em assegurar a propriedade privada dos meios de produo, como a continuidade da ordem classista. Ou seja, o Estado, no fundo, sinonimiza-se orquestra de instrumentos e normas dispostas com o fito de entenebrecer as prticas das lutas contraditrias imanentes ao ser social capitalista, com o objetivo de seu engessamento e conduo circular. (RIBEIRO, 2007, p.17). Os aparelhos de Estado caracterizam-se, ento, por ter papel de gestores, controladores dos conflitos. Obviamente que os mesmos possuem uma autonomia relativa que deve ser considerada, pois como diz o prprio Marx: A liberdade consiste em converter o Estado de rgo que est por cima da sociedade num rgo completamente subordinado a ela (2001, p.12). Lnin, no intuito de combater o revisionismo presente na Segunda Internacional, escreveu sobre o Estado, ressaltando sua funo de regimento e controle, seu lugar e papel no processo revolucionrio.O Estado a organizao especial de uma fora, da fora destinada a subjugar determinada classe. Qual , pois, a classe que o proletariado deve subjugar? Evidentemente, s a classe dos exploradores, a burguesia. Os

trabalhadores s tm necessidade do Estado para quebrar a resistncia dos exploradores, e s o proletariado tem envergadura para quebr-la, porque o proletariado a nica classe revolucionria at o fim e capaz de unir todos os trabalhadores e todos os exploradores na luta contra a burguesia, a fim de a suplantar definitivamente. As classes exploradoras precisam da dominao poltica para a manuteno da explorao, no interesse egosta de uma nfima minoria contra a imensa maioria do povo. As classes exploradas precisam da dominao poltica para o completo aniquilamento de qualquer explorao, no interesse da imensa maioria do povo contra a nfima minoria dos escravistas modernos, ou seja, os proprietrios fundirios e os capitalistas (LNIN, 2001, p. 13).

Voltemo-nos agora, especificamente, aps essa breve digresso sobre a funo do Estado para a reproduo ampliada do capital e regulao das partes envolvidas, a alguns processos que culminaram com a criao de Mato Grosso do Sul4, a saber: o projeto divisionista, bem como sobre as aes dos governos militares, mediante os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs). O Sul de Mato Grosso j se encontrava ento sob o regime truncado das oligarquias e de seus vastos latifndios, em uma situao de controle econmico-poltico latente, como se estivesse se tornando o palco a uma trama de pretensa superioridade, que, por sua vez, alimentar, em muito, o projeto divisionista5. Na passagem do sculo XIX ao XX, os interesses dspares entre os detentores do poder poltico regional acentuavam-se e a poro sul de Mato Grosso ganhava expresso ao se articular aos mercados regionais. Impulsionando esse processo, teremos a Cia. Matte Laranjeira, o intenso comrcio de gado e, tambm, a mobilidade acarretada pela Ferrovia Noroeste Brasil, que se expande ao sul. A liberao da navegao no rio Paraguai para o esturio do Prata, aps a guerra, conferiu a Corumb importncia comercial crucial na regio, contribuindo para que a postura de domnio poltico das elites cuiabanas definhasse. Nessa disputa regional, pretendido tecer uma identidade por parte dos sulistas e nortistas, no somente para estabelecer e criar representaes de mando e afeio pelos que aqui se encontravam, mas, tambm, livrar o Oeste do estigma que o acompanhava desde muito, o de regio de brbaros, preguiosos, de restolho da dignidade, povos a serem acalentados pelo manto digno dos soldados da nao, os detentores da honra... Dessa somatria de fatores e com o intuito de ganhar apoio do governo central para estear esse projeto de Brasil que se expandia e estabelecia suas fronteiras que osAtravs do decreto-lei n. 31 de 11 de outubro de 1977, propugnado pelo presidente Ernesto Geisel. Ficou estabelecida a criao do novo estado, definitivamente, em 1 de janeiro 1979. 5 Sobre o projeto de construo das identidades regionais por parte dos sulistas e nortistas no contexto divisionista, ver: QUEIROZ, Paulo R. C. Mato Grosso/Mato Grosso do Sul: divisionismo e identidades (Um breve ensaio) Revista Dilogos. Maring: DHI/PPH/UEM, v. 10, n 2, p. 149-184, 2006.4

representantes polticos regionais mantm relaes prximas Unio, o que nutrir, em parte, o desfecho das disputas, culminando com a criao de Mato Grosso do Sul logo aps. Portanto, os representantes sulistas mato-grossenses apoiaram a ideologia de que a diviso favorecia o controle poltico-territorial da nao que se ia desenhando. No contexto dos governos militares, intensifica-se a ocupao e expanso da fronteira pari passu integrao regional-nacional. So criadas diversas polticas de incentivo econmico e h abertura e adeso do Brasil aos ditames de uma lgica internacional do capitalismo, que busca ento nos pases dito terceiro-mundistas aumentar as taxas de acumulao. Fenmeno que ocorria sobremodo nos pases de capitalismo avanado, com o Welfare State do ps-guerra, que pretendia evitar a propagao ao restante do mundo do avano de governos socialistas e dos de tipo nazi-fascista. Desse momento em diante o Estado:passa a intervir na economia, investindo em indstrias estatais, subsidiando empresas privadas na indstria, na agricultura e no comrcio, exercendo controle sobre preos, salrios e taxas de juros. Assume para si um conjunto de encargos sociais ou servios pblicos sociais: sade, educao, moradia, transporte, previdncia social, seguro-desemprego. Atende demandas de cidadania poltica, como o sufrgio universal (CHAU, 2000, p. 48).

Essa geopoltica territorial dos Estados nacionais capitalistas-imperialistas determina formas gerenciais repressoras e desenvolvimentistas, forjando-se rgos internacionais especficos que formulam normas e regras almejando a governabilidade, direta ou disfarada, dessas regies do mundo. Quais foram, ento, as conseqncias diretas nas polticas adotadas nos pases terceiro-mundistas, que, o sabemos, tiveram polticas estatais diferenciadas se comparadas quelas do Norte do mundo?Os pases mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas: atravs do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional (FMI), fizeram emprstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos servios sociais e em empresas estatais; e, atravs dos servios de espionagem e das foras armadas, ofereceram ajuda militar para reprimir revoltas e revolues. Com isso, estimularam, sobretudo a partir dos anos 60, a proliferao de ditaduras militares e regimes autoritrios no Terceiro Mundo, como foi o caso do Brasil (ibidem, p. 48).

Do que podemos depreender que a desigualdade material do capitalismo tambm se reflete em desigualdades nas capacidades de gesto e interveno dos Estados: enquanto uns promovem bem-estar, outros promovem represso escancarada populaes insatisfeitas que queiram realizar agitaes.

Por conseguinte, as redefinies espaciais e territoriais para o Estado de Mato Grosso do Sul, que se estabelecia, ficam evidentes nessa diferencialidade dos arranjos polticoeconmicos existentes. No que respeita territorialidade desse estado, o II Plano Nacional de Desenvolvimento6 teve importncia crucial ao processo de desmembramento, pois por essas bandas o bem-estar que se procurava era antes de uma classe (dominante) que o da sociedade como um todo. Com o intuito de articular diferentes regies e estas a um projeto de integrao econmica e de ocupao produtiva que programas regionais especficos foram criados. Os subprogramas visaram a diversificao e o desenvolvimento econmico-produtivo do novo estado e seu real estabelecimento. Devido ao e ao grau de transformaes territoriais efetivas no espao sul-matogrossense, destacamos como os mais importantes: o Programa Especial de Desenvolvimento de Mato Grosso do Sul (PROSUL), o Programa Especial de Desenvolvimento da Regio da Grande Dourados (PRODEGRAN), o Programa Especial de Desenvolvimento do Pantanal (PRODEPAN) e o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO). O PROSUL (Programa Especial de Desenvolvimento de Mato Grosso do Sul) alm de contribuir para montar a mquina administrativa do novo estado, suplementaria os demais programas. Ele tinha por diretriz geral o desenvolvimento econmico como meta nuclear para se obter melhorias sociais, urbanas e rurais; em princpio reduzindo as importaes de produtos bsicos alimentao e, tambm, elevando as exportaes de carne e soja, com o intento de gerar uma acumulao estadual que promovesse a agroindustrializao, elevando o beneficiamento/processamento das matrias-primas regionais. Para tanto, era essencial aumentar os servios de distribuio de energia e telecomunicao por todo o estado, promovendo a construo de malha viria e melhorando a j existente. O Programa Especial de Desenvolvimento da Regio da Grande Dourados (PRODEGRAN), apesar de ter a regio da Grande Dourados como locus das aes, influenciou toda a regio sul do novo estado. Por se tratar de uma regio com amplo potencial agrcola devido fertilidade de seu solo, proveniente da decomposio do basalto as aes voltaram-se no sentido de estimular a produo e comercializao de gros, sendo, por conta disso, realizados investimentos no controle e preveno de eroso, no armazenamento da produo, na infra-estrutura logstica e no desenvolvimento tcnico-cientfico aplicado Mais sobre a atuao dos governos militares via Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) e as vinculaes com o Centro-Oeste, principalmente no que diz respeito formao, redefinio e diviso do espao de Mato Grosso, ver: ABREU, Silvana de. Planejamento governamental: a SUDECO no espao matogrossense; contexto, propsitos e contradies. Tese (Doutorado em Geografia), So Paulo: FFLCH/USP, 2001.6

agropecuria. As relaes com os mercados prximos, principalmente o Centro-Sul do pas, j existentes anteriormente, so alavancadas, elevando a regio da Grande Dourados ao posto de principal representante econmica de Mato Grosso do Sul. J o Programa Especial de Desenvolvimento do Pantanal (PRODEPAN) tinha como rea de atuao toda a regio abrangida pelo bioma do Pantanal, totalizando 26 municpios do antigo Mato Grosso e quase a metade de toda a sua populao. Os subprogramas desdobrados a partir do PRODEPAN visaram o aproveitamento dos extensos recursos da regio do Pantanal, integrando-o ao desenvolvimento econmico-produtivo almejado. Para isso, foram realizados investimentos na distribuio de energia, na infra-estrutura de transportes (interligando a regio s principais vias instaladas, frrea, rodoviria e hidroviria), na promoo do saneamento ambiental, no desenvolvimento tcnico da pecuria local e na promoo da industrializao, beneficiando as matrias-primas nativas. O Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO) tinha por campo de atuao o Planalto Central, nas reas de cerrado, englobando os estados de Gois, Minas Gerais, Mato Grosso e, posteriormente, Mato Grosso do Sul. Especificamente para o espao de Mato Grosso do Sul, temos as reas-programas denominadas Campo Grande/Trs Lagoas e Bodoquena. A primeira rea-programa realizava aes em toda a regio nordeste, totalizando 17 municpios. Foram realizados investimentos em infra-estrutura de transporte, construindo e reformando estradas vicinais e interligando a regio ao sudeste e sul do pas, contribuindo com a expanso da transmisso de energia, executando melhorias no beneficiamento e armazenagem da produo agrcola existente e pretendida e investindo na pesquisa e experimentao do setor agropecurio. Na rea-programa Bodoquena, o investimento voltavase para o aproveitamento das densas reservas de calcrio, em estimular a produo e comercializao de insumos agrcolas, apoiando aes estratgicas na melhoria das vias frrea e rodoviria, com vitais estmulos para a expanso da transmisso de energia e armazenamento da produo agrcola que se expandia significativamente. Apesar de objetivar aes em todo o estado, os subprogramas investiam efetivamente em algumas regies, pois os interesses polticos adentravam as decises e eram essenciais. Por esse motivo, os desequilbrios regionais acentuaram-se, as melhorias sociais propostas pouco se efetivaram, mas a incorporao de Mato Grosso do Sul ao desenvolvimento geograficamente desigual e combinado do capital se concretizou. Neste sentido, o planejamento estatal promovido estabeleceu uma configurao espacial elementar ao desenvolvimento das foras produtivas. As regies dotaram-se de vocao e construram as paisagens do arranjo espacial que se estabeleceria finalmente.

Silvana de Abreu demonstra as caractersticas gerais do ocorrido.O conjunto de programas implementados no Oeste brasileiro evidenciou uma forma de atuao governamental, que beneficiou a acumulao e a valorizao do capital, baseada na promoo da agroindustrializao, na concentrao fundiria e na consolidao do crescimento populacional urbano superior ao rural (2001, p. 265).

Nesses termos deu-se a criao do novo estado. O projeto divisionista notabilizou-se por condensar interesses econmicos e polticos ntidos desde seus primeiros suspiros. As elites sulistas trataram de articular o desmembramento, mesmo que esse no fosse o cerne de vrias aes. O planejamento espacial integrador dos governos militares acabou por dar os ltimos ns e pontos na construo/expanso/legitimao territorial do Estado-nao que se propugnava desde outrora. No concernente estrutura fundiria, o espao em questo7 vai ganhando novas roupagens. O planejamento aplicado no Mato Grosso do Sul apresentou suas primeiras caractersticas efetivas na dcada que sucede sua promulgao. Aps profundas transformaes infra e superestruturais, este Estado insere-se estrutura econmica nacional como um dos principais representantes da pecuria de corte e do cultivo de soja. Os capitalistas do setor so atrados pelas vantagens fiscais e creditcias oferecidas, intensificando as alteraes tcnico-produtivas e gerando uma maior articulao com os mercados regional/nacional e internacional, estendendo o Centro ao Oeste. Todavia, a integrao econmica do estado tambm o faz sentir os efeitos da crise. A crise da dcada de 1980 ser um desses momentos, quando os investimentos na modernizao agrcola so escassos, enquanto, contrariamente, os processos de urbanopovoamento e industrializao so acelerados, trazendo novos contornos ao espao sul-matogrossense. No campo, h o continusmo do latifndio aliado a vrias formas de violncia contra os posseiros, indgenas, meeiros, brasiguaios, trabalhadores temporrios, etc., que lutam por condies de sobrevivncia mediante a busca pela distribuio/conquista da terra e da renda, por uma urbanizao mais digna, entre outros.

O que j vinha de longa data, sendo apropriado indevidamente, haja vista que a Cia. Matte Laranjeira na poro sul de Mato Grosso controlou algo prximo a 1 milho de hectares; ou ento com o caso da construo da Ferrovia Noroeste Brasil, que em seus sinuosos trilhos, alm de integrar o mando do Estado-militar e subsidiar o capital em infra-estrutura para suas mutveis formas de reproduo, conferiu terras a muitos capitalistas, conforme apontado.

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Entretanto, ideologicamente, a concentrao fundiria no campo permanece obscurecida pelo discurso da produtividade. Neste sentido, o agronegcio tratou de esconder suas bases de sustentao; na contramo da dita produtividade erigem-se vastos latifndios improdutivos, incorporando, enclausurando e roubando terras indgenas, reas de preservao permanente (APPs) e pequenas propriedades de alicerce familiar-campons. Portanto, ele captura a renda social do campo8 vertendo-a as mos de poucos capitalistas, amalgamando a relao entre propriedade fundiria e capital, para especular, conseguir financiamentos, entre outros. Avaliemos os dados.Quadro 01: Distribuio das terras no Mato Grosso do Sul 19851985 Grupos de rea Total (ha) Menos de 10 10 a menos de 100 100 a menos de 1000 1 000 a menos de 10 000 10 000 e mais Total Nmero de Estabelecimentos 14.916 18.750 14.674 5.758 457 54.555 % 27,3 34,3 26,9 10,6 0,9 100 rea Ocupada 64.490 670.575 5.406.315 15.444.610 9.522.824 31.108.814 % 0,2 2,2 17,4 49,6 30,6 100

Fonte: IBGE, Censo Agropecurio, 1985. Org. ASEVEDO, T.

Observa-se que, somando os dois primeiros grupos de rea os de menos de 10 e de 10 a menos de 100 hectares , considerados como pertencentes ao rol das pequenas propriedades, teremos representados 33.666 estabelecimentos, perfazendo 61,6% do nmero total de estabelecimentos, todavia, com controle de apenas 2,4% da rea total do Estado ou 735.065 hectares. O grupo de rea 100 a menos de 1000 hectares de mdios estabelecimentos soma 14.674 estabelecimentos cadastrados, isto , 26,9% do total de estabelecimentos do Estado, o que, em termos da rea total ocupada, representa 17,4%, ou 5.406.315 hectares. Por fim, agrupando a rea de 1 000 hectares a menos de 10 000 com a de 10 000 a mais, consideradas como de grandes estabelecimentos, teremos um montante de 6.215 estabelecimentos, que perfaz 11,5% do nmero total, mas que abocanha, por outro lado, 78,4% da rea total cadastrada no Estado de Mato Grosso do Sul.H de se mencionar que esse modo capitalista de (re)produzir no campo densamente subsidiado pelo aparato institucional Estatal (FCO, Lei Kandir, MS-Empreendedor, apoios municipais), vertendo os fundos sociais pblicos aos capitalistas, por conseguinte, a sociedade civil paga sua prpria runa.8

Concentrao da propriedade da terra e deteno do poder poltico-administrativo na mo de pequenas oligarquias se entrelaam ao nascimento de Mato Grosso do Sul; e o acesso a ambos pela maioria da sociedade evitado historicamente. As tentativas de promover maior distribuio da renda social no campo atravs de projetos de colonizao ou polticas de cunho reformista foram incipientes e por vezes to-s intensificaram os conflitos. Na relao indissocivel e tencionada com essa infra-estrutura se levanta toda uma configurao regulatria e coercitiva, um arcabouo (i)material jurdico-poltico e ideolgicocultural (re)produtor da organicidade societria preponderante, a superestrutura; o que nos clarifica o papel e significao do espao nesses termos, ou seja, o arranjo espacial (...) numa sociedade de classes, reproduz em sntese as relaes de classes da formao econmico-social (MOREIRA, 1978, p. 15). nessa conjuntura que a matriz produtiva de Mato Grosso do Sul, tendo as atividades pecuaristas e a produo de gros para exportao como baluartes, agora sero acompanhados pela cana-de-acar, que d seus primeiros passos rumo ao Oeste. Vejamos mais atentamente essas transformaes. 1.1.1 Uma geografia arquitetada para o agronegcio: origem e termos do fortalecimento da agroindstria canavieira no Mato Grosso do Sul Adentrando o universo da produo agroindustrial da cana-de-acar, pretendemos incursionar pelas principais caractersticas que produziram a sua expanso recente ao CentroOeste brasileiro, particularmente no Mato Grosso do Sul. Por conta disso, discutiremos: 1) as alteraes no modo de produo capitalista em mbito mundial; 2) a participao do Estado brasileiro; 3) as tramas do capital que se funde, se reestrutura e se amplia em chos brasileiros e; 4) os dilemas lanados aos trabalhadores e, por conseguinte, s organizaes populares. Com as devidas ressalvas, podemos relacionar essa expanso criao de Mato Grosso do Sul. Algumas pistas j foram delineadas, ou seja, a regulao do Estado no tocante s transformaes tcnico-produtivas no campo, que promoveu diferentes geografias e, em certas circunstncias, proporcionou maior direcionamento e fluidez acumulao de capital; a estrutura poltico-administrativa emaranhada para atender os propsitos de grandes proprietrios de terras, como demonstrou Avelino Junior (2004, p. 54, 55) e; a reestruturao geogrfico-produtiva do setor, que agora busca nas reas no tradicionais maiores ganhos. Mato Grosso do Sul redimensiona-se, presentemente sob os ditames urbano-industriais, em meio a um pacto que entrelaa os traos de uma modernidade tecnolgica subvencionada e um amplo quadro de excluso/marginalizao scio-espacialmente (re)produzida.

Histria que ainda no passou em definitivo. Deixou marcas. E muitas delas se modificaram na forma (tcnicas e aspectos produtivos) para se manter no contedo (de expropriao da riqueza e gerao de passivos ambientais). Comecemos pelo final da dcada de 1970, quando surge a primeira destilaria no municpio de Pedro Gomes9. Trata-se da primeira destilaria de cana-de-acar da regio Centro-Oeste, como aponta Azevedo (2008) e Backes (2009). A origem da atividade no Mato Grosso do Sul vincula-se ao contexto de expanso agroindustrial subsidiada pelo Estado, principalmente nas atividades voltadas produo/beneficiamento de gros. No Mato Grosso do Sul os investimentos so principalmente de capitais nordestinos, fruto de toda uma reestruturao do setor que agora tem o estado de So Paulo como principal representante. Alm de capitais nordestinos, empresrios provenientes de So Paulo realizam investimentos, bem como verifica-se o acrscimo de capitais locais, ou seja, de grandes proprietrios de terras, produtores de gros e pecuaristas, que investem com o mpeto de obter maiores ganhos com atividades novas e potencialmente lucrativas. O setor canavieiro regional-nacional deveras impactado a partir do PROALCOOL10, agroindstrias canavieiras surgem em muitos Estados e municpios, fruto de profundas alteraes. A conjuntura poltico-econmica e social regional/nacional e internacional demonstrou distintas caractersticas, rebatendo diretamente na atuao do Estado no setor canavieiro. Apresentemos, ento, as fases do programa e da atividade e os relacionemos aos fatos sumariamente antecipados. O perodo de 1975 a 1979 corresponde fase inicial do programa. Trata-se de um contexto em que o setor encontra-se plenamente ancorado no Estado, que o planeja e subvenciona. O crescimento verificvel, pois confirmado o estabelecimento de noveE que mais tarde, em 1988, viria a se chamar Sonora com o desmembramento poltico-administrativo. Criado em 14 de novembro de 1975 atravs do decreto n 76.593, assinado pelo Presidente Ernesto Geisel, o Programa Nacional do lcool (PROALCOOL) caracteriza-se pelos pomposos investimentos pblicos ao setor agroenergtico. No incio do programa, as sucessivas crises internacionais das corporaes petrolferas suscitaram a tomada de um direcionamento econmico-poltico claro por parte do Estado atendendo as presses dos capitalistas nacionais e transnacionais do setor. O programa tem continuidade ao longo de diferentes governos, recebendo maior ou menor ateno de acordo com a conjuntura econmica vigente. Na ltima dcada, contudo, uma ateno especial dada a esse setor: a propaganda internacional realizada pelo governo brasileiro, a implantao de corporaes transnacionais automobilsticas, agroqumicas, etc. no pas, fazem com que o programa estabelea redes de relaes e parcerias, aumentando as benesses ao setor. Situaes que tem elevado o pas ao posto de principal produtor e negociador de agroenergia no mundo. Mais sobre o Prolcool ver: BRAY, Slvio C; FERREIRA, Enas R; RUAS, Davi G. G. As polticas da agroindstria canavieira e o Prolcool no Brasil. Marlia: UNESP, 2000. Sobre a atuao do PROALCOOL e sua vinculao com a agroindstria canavieira em Mato Grosso do Sul, ver: BACKES, Thaine Regina. O capital agroindustrial canavieiro no Mato Grosso do Sul e a internacionalizao da produo. Dissertao (Mestrado em Geografia). Dourados, UFGD, 2009.10 9

agroindstrias canavieiras no Mato Grosso do Sul. A produo, neste perodo, volta-se principalmente ao lcool anidro, que viria a ser adicionado gasolina, pois a mesma apresentava altos preos, resultado das sucessivas crises das corporaes petrolferas em nvel mundial. J no perodo de 1980 a 1986, etapa de afirmao do programa, as agroindstrias confirmadas entram definitivamente em funcionamento, acarretando um progressivo avano da produo de lcool hidratado. Temos, devido a isso, um contexto de fortes altas no preo do barril do petrleo e medidas que substitussem as importaes do combustvel fssil tornaram-se emergenciais. Em termos operativos, o PROALCOOL ficava sob responsabilidade do Ministrio da Indstria e Comrcio sob vistoria da Comisso Executiva Nacional do lcool (CENAL) e do Conselho Nacional do lcool (CNAL). O investimento ao programa era elevado, existindo todo um aparato institucional com rgos que planejavam o subvencionamento e abrangncia das relaes de produo tpicas ao setor em mbito nacional. Em 1987, a produo agroindustrial canavieira verificada nos municpios de Pedro Gomes, Aparecida do Taboado, Nova Andradina, Brasilndia, Rio Brilhante, Sidrolndia, Maracaj, Navira. Havia 94.538 hectares de rea plantada, empregando 10.850 trabalhadores e com uma capacidade de produo diria de 1.620.000 litros de lcool (KUDLAVICZ; MOTA; CAMACHO, 2007, p.11), figurando esse Estado definitivamente no cenrio nacional da produo de agrocombustveis. Sobre essa expanso do setor no Centro-Oeste, Backes atesta: No Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Gois no constavam produo de lcool antes do PROALCOOL. J em dezembro de 1985, estes estados eram responsveis por 11,6% da capacidade produtiva instalada de lcool no Brasil (2009, p. 37-38). O avano do capital canavieiro ps-Prolcool evidente, mas encontra entraves no perodo de 1986 a 1995, acarretando estagnao. Posteriormente a 1986, temos um momento de desregulamentao do setor em mbito nacional, e o Estado que at ento se figurava como incentivador/interventor/planejador modera suas aes e estabelece suas vinculaes como um coadjuvante da pea encenada. Os recursos so escassos, o cenrio energtico mundial contrape-se ao da fase de afirmao, ou seja, o preo do barril de petrleo est baixo, em torno de 12 a 20 dlares, opondo-se a faixa de 30 e 40 dlares da primeira metade da dcada de 1980. Em Mato Grosso do Sul, permanece as nove agroindstrias instaladas anteriormente; e em alguns casos, a produo de derivados da cana-de-acar quase que cessada. Nos dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), com o Censo Agropecurio 1995/1996, podemos averiguar sobre quais condies as atividades

econmico-produtivas no campo de Mato Grosso do Sul se realizavam. A concentrao fundiria agrava-se em comparao ao Censo Agropecurio 1985. Analisemos as informaes.Quadro 02: Distribuio das terras no Mato Grosso do Sul 1995/96Grupos de rea Total (ha) Menos de 10 10 a menos de 100 100 a menos de 1000 1 000 a menos de 10 000 10 000 e mais Total 1995/96 Nmero de Estabelecimentos 9.170 17.753 15.423 6.493 409 49.423 % 18,6 36,1 31,3 13,2 0,8 100 rea Ocupada 39.681 637.163 5.992.676 16.677.386 7.595.866 30.942.722 % 0,1 2,1 19,4 53,9 24,5 100

Fonte: IBGE, Censo Agropecurio de Mato Grosso do Sul, 1995/96. Org. ASEVEDO, T.

Nota-se que, os grandes estabelecimentos grupo dos 1 000 hectares a menos de 10 000 e de 10 000 e mais englobam 24.273,252 hectares, totalizando 78,4% da rea total, com 14% do total de estabelecimentos apenas. O grupo composto pelos mdios estabelecimentos rea superior a 100 hectares e inferiores a 1000 representa 19,4% do total (5.992.676 hectares), perfazendo 31,3% dos estabelecimentos cadastrados. E o de pequenos estabelecimentos menos de 10 hectares e de 10 a menos de 100 alcana uma rea de 637.163 hectares, em termos relativos: 54,7% do nmero total de estabelecimentos; e, em termos absolutos da rea ocupada: nada mais que 2,2% do cadastrado. Podemos evidenciar, com base nos dados apresentados, que a concentrao fundiria est presente praticamente em todo o estado de Mato Grosso do Sul, mesmo considerando-se as diversificaes regionais, que so significativas. Some-se a isso o carter do uso da terra, que nos grandes e mdios estabelecimentos caracterizam-se por empregar poucos trabalhadores, por vezes com uma pecuria extensiva pouco tecnificada e ou com atividades agrcolas com incremento tcnico-mecnico crescente e altamente subsidiado pelo Estado. Nos pequenos estabelecimentos (menos de 10 e 10 a menos de 100), de acordo com o Censo 1985 havia 33.666 estabelecimentos, 61,6% do total de estabelecimentos, o que representava 2,4% da rea total cadastrada. Em comparao ao Censo 1996, houve uma reduo de 6.743 estabelecimentos (6,9%) em termos de rea, o que significou uma diminuio da ordem de 58.221 hectares, um abatimento de 0,2% da rea total cadastrada.

No rol dos mdios estabelecimentos (100 a menos de 1000) tambm houve alteraes: um aumento de 749 estabelecimentos (acrscimo de 4,4%), que em termos de rea representam 586.361 hectares; uma elevao em 2% na rea total cadastrada. Tambm houve aumento do nmero de estabelecimentos no grupo de grandes estabelecimentos (1 000 a menos de 10 000 e 10 000 a mais): so 687 a mais; um acrscimo de 2,5%. Em termos de rea, a alterao para 1,8% negativa (a menos). Portanto, a tese de que a modernizao no campo promove a intensificao da precariedade da existncia dos trabalhadores no campo se confirma, pois so exatamente os pequenos estabelecimentos os que mais sofrem com todas essas transformaes; enquanto os mdios e grandes estabelecimentos tiveram alteraes em duas frentes, como produtivos, os integrados ao des-envolvimento, exportadores e modernos, ou improdutivos, os conhecidos latifndios ociosos. H que se mencionar que ambos apresentam carter rentista e por vezes para-militar, visto que se valem do Estado e de milcias armadas para se defenderem e se reproduzirem11. A partir de 1995, especificamente no perodo entre 1995 a 2000, o Prolcool entra em uma fase de redefinio, as condies mercadolgicas para os derivados de cana-de-acar esto cada vez mais favorveis. Nesse entretempo, a produo e comercializao eram crescentes e com relao participao do Estado, neste contexto, polticas governamentais que estimulassem e direcionassem o setor praticamente inexistem. As mobilizaes em torno do retorno da participao efetiva do Estado culminaram com a criao do Conselho Interministerial do Acar e do lcool (CIMA) em 1997. J em 1998, um forte impacto ao setor sucroalcooleiro foi promovido atravs da medida provisria n. 1.662, que dispunha que o Poder Executivo nacional elevasse em 22%, at o limite de 24%, a adio de lcool anidro gasolina. Outra ao foi repassar parte dos recursos tributrios obtidos com a gasolina, diesel e lubrificantes produo de lcool combustvel, o que j figurava o retorno do Estado como incentivador/interventor/planejador do setor. Em Mato Grosso do Sul essas medidas no so significantemente verificadas, as nove agroindstrias existentes desde a dcada de 1980 continuam em funcionamento. Na dcada de 2000, o capital canavieiro se cercar de certa autonomia, verificando-se um abatimento expressivo no que antes concernia tomada de deciso e ao planejamento por parte do Estado. A partir de 2003, com a tecnologia flexfuel e as altas no preo do barril do11

Mais sobre a temtica da militarizao da questo agrria em Mato Grosso do Sul e do Estado parceiro nessa processualidade, ver: AVELINO JUNIOR, Francisco J. A questo da terra em Mato Grosso do Sul: Posse/uso e conflitos. Tese (Doutorado em Geografia). So Paulo: FFLCH/USP, 2004.

petrleo, novas perspectivas so apresentadas e, rapidamente, esses carros popularizam-se e o lcool combustvel passa a ter preferncia pela maior economia proporcionada. O que vemos so modificaes cientfico-tecnolgicas adentrarem intensamente o universo da produo agroindustrial canavieira no Brasil, vinculando-se s transformaes experienciadas pelo modo de produo capitalista em mbito mundial nas ltimas duas dcadas. Essa flexibilizao da acumulao de capital no terceiro-mundo promoveu certas peculiaridades, formas produtivas hbridas, uma mescla entre as caractersticas fordistataylorista e as formas atuais toyotizadas. Tais alteraes ocasionaram desigualdades e antagonismos, uma densa diviso social e tcnica do trabalho, acarretando informalizao e precarizao dos trabalhadores, abatendo diretamente sobre as organizaes sindicais e populares. Evidenciamos, tambm, que ocorre expressiva expanso para reas que no tinham tradio no setor, como Tringulo Mineiro, Centro-Sul-Sudoeste de Gois, Leste do Mato Grosso do Sul, Noroeste do Paran, Oeste de So Paulo (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 152). Incidindo diretamente no processo, vrias fuses/aquisies na agroindstria da canade-acar em nvel nacional, outra reestruturao geogrfico-produtiva do setor, encabeada, de um lado, por capitalistas nacionais que visam expandir seus negcios e, de outro, pela marcha do capital transnacional que expande sua participao. Com relao ao rearranjo do papel do Estado em mbito federal com conseqentes reestruturaes regionais destacam-se os Fundos Constitucionais de Financiamento, os emprstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) e o Plano Nacional de Agroenergia (PNA). Grande parte dos recursos obtidos para o desenvolvimento do setor canavieiro no Mato Grosso do Sul provm do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES): linhas de crdito especficas e longo prazo de pagamento a juros baixos podem ser identificados, mesmo com altas taxas de inadimplncia e, consubstanciando-se a isso, a consolidao dos lobbies. Ratificando as artimanhas e entrelaamentos entre capital e Estado, Thomaz Junior (2009) corrobora nesta direo, ao nos avisar que:A amplitude geogrfica e espacial desses negcios se liga s vultosas inverses de investimentos pblicos e privados, para fazer valer o desejo da reproduo ampliada do capital. Os bancos estatais tais como Banco do Brasil e BNDES, tm fomentado e apoiado grandes somas de investimentos pblicos para a agricultura tecnificada. Se isso no bastasse, historicamente tm tambm perdoado, renegociado (via de regra com rolagem das dvidas

de grandes proprietrios de terra) e abonado dvidas junto a credores privados (p. 323).

Com relao ao Plano Nacional de Agroenergia, o documento Diretrizes de Poltica de Agroenergia 2006-2011 aclara os mecanismos e o discurso presente no aparelho do Estado para o desenvolvimento da agroenergia que, como demonstramos, sustenta-se na concentrao de terra e renda, na urbanizao catica, no enfraquecimento da proposta da soberania alimentar, entre tantos outros. Na contramo do que se verificam no mbito social e ambiental, as palavras apresentadas apontam os constituintes da expanso da agroenergia:No Brasil, promover importante aumento de investimentos, empregos, renda e desenvolvimento tecnolgico e ser uma oportunidade para atender parte da crescente demanda mundial por combustveis de reduzido impacto ambiental (...). O Brasil j possui uma matriz energtica com significativa participao de energias renovveis, tendo acumulado importante experincia na produo de lcool como combustvel. A ampliao dessa participao na matriz, a partir do desenvolvimento da agroenergia, propicia a oportunidade de executar polticas, de cunho social, ambiental e econmico, alm de alinhar-se com aes de carter estratgico no mbito internacional (...). A concretizao da expanso da agroenergia pressupe o alinhamento de diversas polticas governamentais, como poltica tributria, de abastecimento agrcola, agrria, creditcia, fiscal, energtica, de cincia e tecnologia, ambiental, industrial, de comrcio internacional e de relaes exteriores e, quando for o caso, do seu desdobramento em legislao especfica (BRASIL, 2005, p. 1).

Na esfera nacional temos tambm os Fundos Constitucionais e, no concernente ao Mato Grosso do Sul, destacam-se os incentivos obtidos junto ao Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste (FCO12). Mato Grosso do Sul angaria 23% do volume total de recursos disponibilizados, atestando a importncia crucial do fundo na reestruturao do setor e em sua expanso. Em 2009, esse Estado abocanhou 96 milhes de reais para os projetos de instalao, reforma e ampliao das reas cultivadas. Destaca-se, tambm em nvel estadual, o programa MS - Empreendedor, que oferece iseno de at 67% do ICMS por at 15 anos para as atividades industriais que se instalarem ou se expandirem. Institucionalmente, na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrrio, da Produo, da Indstria, do Comrcio e do Turismo (SEPROTUR), podemos averiguar o amplo apoio agroindustrializao canavieira, seja pela formulao de diretrizes para o setor, seja pela disponibilizao12

de

apoio

financeiro,

ou

outras

medidas.

A

obteno

de

Esse fundo foi criado a partir da Constituio de 1988 com a lei 7.827/89, sendo gerenciado pelo Banco do Brasil. Apesar de ter outras linhas de crdito, notabiliza-se por realizar investimentos no Centro-Oeste com vistas ao desenvolvimento econmico-produtivo. No campo, caracterizado por ter seus investimentos pautados na modernizao capitalista da agricultura e pecuria. Mais sobre o assunto, ver: Mizusaki, 2005.

incentivos/isenes/emprstimos para a modernizao agrcola no Mato Grosso do Sul bem identificada por Mizusaki:Os incentivos fiscais tm sido um desses mecanismos regulados pelo Estado e apropriados pelo capital para promover o desenvolvimento do capitalismo no campo. O ICMS estadual, por exemplo, que refere-se s leis n 1.238/91 e n 1.798/97, d uma reduo de at 67% desse imposto para indstrias que se instalarem no Estado. Esse incentivo ainda vigora com a Lei Complementar n 093, de 05/11/2001. Com essa Lei, o Estado tambm oferece s indstrias iseno do diferencial de alquota incidente sobre mquinas e equipamentos adquiridos em outros estados e pases. Em 1996, tivemos tambm a Lei Kandir, isentando de ICMS para exportao de produtos primrios e semi-elaborados. Quando, em 1999, o Ministrio da Fazenda considerou a possibilidade de alterar a lei por presso de governadores, houve outra mobilizao por parte de representantes dos produtores rurais, agroindstrias e cooperativas do pas para no terem que pagar mais esse produto ao Estado (2005, p. 85).

H que se mencionar os benefcios dados pelos municpios. possvel verificar que em Mato Grosso do Sul os estmulos voltam-se reduo e/ou iseno total de impostos, bem como oferecimento de infra-estrutura de escoamento, transporte e armazenamento, doao de reas especificas para instalao de planta fabril e, em alguns casos, capacitao de mo-deobra (AZEVEDO, 2008, p. 76). A expanso notria: na ampliao da rea plantada, no predomnio do arrendamento e na parceria, no desenvolvimento cientfico-tecnolgico do processo produtivo, etc., que, por sua vez, rebatem incisivamente no mundo do trabalho, aprofundando a precarizao dos trabalhadores. Para no aludirmos participao crescente de capitais transnacionais, pois, como aponta Backes:O estado do Mato Grosso do sul, se difere dos nmeros apresentados em relao ao Brasil, pois de 8,4 bilhes de reais investidos em cinco anos, 50% de capital estrangeiro. J a produo de lcool que gira em torno de 1 trilho de litros de lcool, aproximadamente 90% da produo realizada pelas usinas estrangeiras (2009, p. 71)13.

Se o agronegcio demonstra estar em seu momento de auge no Mato Grosso do Sul14, na outra margem do processo, aes polticas expressivas com vistas distribuio de terras

Papel substancial deve ser dado a holding Louis Dreyfus Commodities, que representa exemplarmente a inciso de agentes transnacionais no setor em mbito nacional. 14 Com um discurso/propaganda/ideologia que ressalta seu benefcio ao desenvolvimento social pautado no crescimento econmico-produtivo, bem como denotando a posio/condio estratgica e a vocao desse estado para o agronegcio.

13

inexistem. A contradio existente no discurso que ressalta o carter produtivo que elimina a possibilidade de distribuio efetiva das terras sul-mato-grossenses mostra-se classisticamente antagnico se observamos os dados sobre rea devoluta e improdutiva 15 nas tabelas 01 e 02.Tabela 01 - rea Devoluta no Mato Grosso do SulTOTAL CADASTRADO rea em Hectares 35.713.989,85 REA DEVOLUTA Explcita 5.382.581,43

Fonte: INCRA/2003; Oliveira, 2008.

Com um total de 5.382.581,43 hectares de rea devoluta explcita, algo em torno de 15,07% da rea total cadastrada, Mato Grosso do Sul tem uma das maiores quantidades de rea devoluta do pas. E evidenciamos ainda que muitas dessas terras esto ocupadas indevidamente, sendo necessria a regularizao fundiria, pois so passveis, perante a legislao, de serem usadas para fins sociais junto ao Plano Nacional de Reforma Agrria (PNRA). Vejamos a rea improdutiva.Tabela 02 - Imveis e rea Improdutiva no Mato Grosso do SulTOTAL Nmero de Imveis 73.714 rea em Hectares 36.106.026,50 IMPRODUTIVO Nmero de Imveis 3.547 rea em Hectares 8.545.942,20

Fonte: INCRA/2003; Oliveira, 2008.

No caso da rea improdutiva, os dados aclaram as caractersticas da propriedade e uso da terra em Mato Grosso do Sul, ou seja, 4,8% do nmero total de imveis so improdutivos, isso corresponde a 23,6% da rea total cadastrada. Esses dados chocam de frente com o discurso da produtividade do agronegcio e do fim do latifndio, aqueles que apregoam a distribuio das terras, argumentando que as mesmas so produtivas e integradas ao desenvolvimento social, por conseguinte que o carter latifundista improdutivo haveria sido superado. Como vimos, sob essa estrutura que ocorre uma expanso significativa da produo agroindustrial da cana-de-acar no Mato Grosso do Sul. Nos dados do Instituto Nacional deO Capitulo II, Artigo 20, Pargrafo II, da Constituio da Repblica de 1988 declara que so bens da Unio, as terras devolutas indispensveis defesa das fronteiras, das fortificaes e construes militares, das vias federais de comunicao e preservao ambiental, definidas em lei. E de acordo com o Art. 188: A destinao de terras pblicas e devolutas ser compatibilizada com a poltica agrcola e com o plano nacional de reforma agrria.15

Pesquisas Espaciais (INPE), do projeto Mapeamento da cana via imagens de satlite de observao da Terra (CANASAT), podemos averiguar o crescimento da rea total cultivada e a participao dos municpios no setor.Grfico 01: Participao dos municpios na atividade canavieira Mato Grosso do Sul, ps-2005.

80 70 60 50 40 30 20 10

34 23 16 18

36

Safra 2005/06

Safra 2007/08

Safra 2009/10

Participao Municpios

Fonte: INPE/CANASAT, 2009. Org.: ASEVEDO, T. R. A.

O crescimento da participao dos municpios denota todas as benesses ao setor, mesmo com as discusses atuais sobre medidas legais que limitem a rea cultivada por municpio em voga no pas e por vezes aprovada, como o projeto de zoneamento agroambiental que atualmente cercado por acaloradas discusses. Certamente que essas regras podem incidir diretamente no setor; no caso do zoneamento, cremos que o mesmo disciplinar o avano da produo, servindo por vezes para acender o setor, j a limitao da rea plantada por municpio no demonstra fora poltica suficiente para sustentar-se. Vejamos os dados sobre a rea plantada em Mato Grosso do Sul.Grfico 02: rea Total Cultivada com Cana-de-Acar Mato Grosso do Sul, ps-2005.425.539

450.000 400.000 350.000 300.000 250.000 200.000 150.000 100.000 50.000

310.711 226.958 182.061 159.806

Safra Safra Safra Safra Safra 2005/06 2006/07 2007/08 2008/09 2009/10

Total Cultivada(ha)

Fonte: INPE/CANASAT, 2009. Org.: ASEVEDO, T. R. A.

A partir de 2005, conforme aponta os dados, h um crescimento vertiginoso da rea cultivada com a gramnea, por meio das 14 agroindstrias em funcionamento. As estimativas apontam que at 2011 haver uma produo de 2,5 bilhes de litros de lcool e at 2015 estaro em funcionamento 28 agroindstrias. Atualmente, um dos principais objetivos a criao de um poliduto atravs da parceria de Mato Grosso do Sul, Paran e Petrobrs, para escoar a produo desses Estados at o Porto Paranagu no litoral paranaense, uma obra logstica nica para o setor, que viabilizar o escoamento alm-mar dos agrocombustveis. Segundo palavras de Tereza Cristina Correa da Costa Dias, que comanda os trabalhos na Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agrrio, da Produo, da Indstria, do Comrcio e do Turismo (SEPROTUR): As indstrias esto arrendando [reas para plantio], esto plantando, fazendo parcerias. Na parte industrial, est assegurada a instalao de seis usinas neste ano, com possibilidade de efetivar ainda mais duas, totalizando oito, do total de dez inicialmente previstos 16. Toda a espacialidade necessria expressiva expanso recente da agroindstria sucroalcooleira est armada. Municpios disputam as empresas oferecendo-lhes as mais variadas condies, negcios a serem plenamente realizveis com incentivos massivos, um complexo redirecionamento urbano, agrrio e regional, aprofundando a relao cidade-campo que, agora, est traada e truncada em redes as mais variadas, indo dos nveis local/regional/nacional ao global. 1.2 Regionalizar e integrar: articulaes sociais entre Mato Grosso do Sul e Aparecida do Taboado/MS As marcas locais das transformaes que engendraram a criao de Mato Grosso do Sul e toda a intensificao e extensificao das relaes capitalistas de produo que se regionalizam so aqui buscadas na tentativa de introduzir o debate sobre as escalas da produo geogrfica da sociedade capitalista ps-fordista, seus entrelaamentos que, armados em rede, redimensionam o pensar e o fazer sociais. Nossas atenes voltam-se ao municpio de Aparecida do Taboado, localizado ao leste de Mato Grosso do Sul, conforme podemos visualizar no mapa a seguir.

16

Agroindstria da cana continua em expanso, mesmo com crise internacional Disponvel em: http://www.aparecidadotaboado.ms.gov.br/exibe.php?id=61691 (acesso em 28/06/2009)

Figura 01: Localizao do Municpio de Aparecida do Taboado/MS

Fonte: IBGE, 2009. Org.: ASEVEDO, T. R. A.

A formao desse espao intensificada na primeira metade do sculo XX, mas as atividades que condicionaram seu surgimento remontam primeira metade do sculo XIX com as estradas boiadeiras. Com o fortalecimento das atividades voltadas comercializao de gado tem iniciado a formao17 do municpio. No entendimento de Queiroz:Aparecida do Tabuado est localizada numa regio de divisas, nos limites de Mato Grosso do Sul com os Estados de Gois, Minas Gerais e So Paulo, os municpios foram formados principalmente por migrantes do tringulo mineiro e do oeste paulista. Por esse motivo o porto Tabuado situado nas barrancas do alto Paran, anterior ao municpio de Aparecida, era, segundo a tradio oral, importante ponto de travessia para o territrio paulista, sendo (...) a regio onde formou-se o municpio situada num importante caminho de escoamento das boiadas mato-grossenses e onde predominou, por longo perodo, a pecuria extensiva (QUEIROZ, 2008, p. 6).

O referido municpio teve sua emancipao poltica atravs da Lei n. 130, de 28 de setembro de 1948; anteriormente, ele fazia parte de Paranaba, como um de seus distritos. AsQuando optamos por analisar a formao histrica de Aparecida do Taboado notamos que dificuldades intrnsecas se estabelecem por conta da escassez de fontes; exceo a essa regra o trabalho de Silva (2008), que realiza uma anlise do processo histrico de formao do municpio e regio, atravs de entrevistas com sujeitos histricos e pesquisas em obras literrias, por exemplo. Diante disso, para aprofundar a temtica: SILVA, Cssia Queiroz. Sob o signo do boi: consideraes sobre a construo de uma identidade regional em Aparecida do Taboado na primeira metade do sculo XX. Monografia (Licenciatura em Histria). Trs Lagoas: UFMS, 2008.17

articulaes regionais firmadas com os outros Estados e o crescente que a atividade pecuria extensiva experienciava com as grandes fazendas, estabeleceu as balizas de uma contraditria e perversa geografia capitalista, alimentada vorazmente pela captao da renda social do campo, pois se vive sob a consolidao do boi como produto de exportao (...) dando pecuria status de monocultura, posto que s comeou a perder h menos de duas dcadas, para a cana-de-acar e a indstria (ibidem, p. 14). De imediato, percebe-se que a formao histrico-geogrfica de Aparecida do Taboado no se destoa do processo geral de formao econmico-cultural de Mato Grosso do Sul, atada concentrao fundiria e representao poltico-administrativa que oligarquias que se perpetuam no poder, em nveis local, regional e nacional, ostentam. Ampliando e fortalecendo essas relaes polticas, econmico-produtivas e culturais e articulando o local-regional aos processos globalizantes do capitalismo em transe transnacionalizao, despontam as aes planificadoras modernizantes dos governos militares. Essas iniciativas desenvolvimentistas, com suas foras regionalizadoras intrnsecas, comandadas pela relao entre capital-Estado, promoveram o desenvolvimento e a disparidade tcnica e cientfica, que acentuaram a mobilidade da fora de trabalho, da renda, bem como influenciou na representao poltica, o que, sob certas circunstncias, provocou vrios conflitos, como o da disputa entre os municpios e regies, por exemplo. Podemos facilmente identificar alguns resultados e caractersticas regionais, como: o crescimento da produo de gros para exportao; o desenvolvimento tcnico- cientfico com processamento agroindustrial da pecuria de corte; o desenvolvimento agroindustrial, com estabelecimento de frigorficos de frango de corte; o aumento exponencial da pecuria leiteira com tcnicas modernas de ordenha; e o crescimento urbano-industrial. Atravs dessas mutaes, a regio passou a ser dinmica e coesa, para alm de uma deteno ordenatria hierrquica externa, porque agora achava-se dotada de redes de fluxos que movimentavam toda sua (i)materialidade. Esse planejamento, em certa medida, conflitou com os regionalismos anteriormente existentes e, na dialtica existente entre continuidades/descontinuidades, particularidades/generalidades, esses recortes no territrio lanavam algumas oportunidades para avaliar o que se passava no plano do evento, para se pensar as geografias do movimento global do capital, j que nesses termos que o mesmo se realiza, nessas inseres espaciais desiguais. Nessa perspectiva, o Estado abstm-se de suas caractersticas e muda suas estratgias de gesto, agora com intuito de promover a gesto municipal:

Na agenda dos governos brasileiros, a promoo do desenvolvimento via planejamento localizado territorialmente passou a ser defendida pela possibilidade de uma maior flexibilidade, adaptabilidade e capacidade de atender as demandas e ofertas de um mundo cada vez mais interconectado. A receita para solucionar os problemas de crise financeira e fiscal foi estabelecer o elo entre desenvolvimento, poder local e gesto participativa atravs de um redimensionamento do tamanho do Estado na conduo das polticas pblicas, via a descentralizao. Tratou-se de buscar nos municpios as condies necessrias para que o capital continue a se reproduzir num novo contexto poltico-econmico-financeiro em que a intencional perda da centralidade dos estados nacionais acompanhada pelo despertar da capacidade empreendedora de cidades/locais, donde formas precarizadas de trabalho so ressignificadas, aparecendo sob manto ideolgico da inovao e de valorizao da identidade local (SANTOS, 2008, p. 3).

Configurando esse caminho interpretativo, j na primeira metade da dcada de 1990 a prefeitura municipal adota uma poltica de incentivos fiscais para o desenvolvimento do setor industrial, a promulgao da lei n 560/93, que cria o Programa de Desenvolvimento de Aparecida do Taboado18 (PRODEAT), por exemplo. Esse programa oferece amplos lotes no distrito industrial, at mesmo com servios de terraplanagem, alm de incentivos fiscais, como crditos e reduo do ICMS na ordem de 67%, podendo atingir at 100% no setor da indstria do vesturio, at 2011, com iseno de IPTU e ISS, entre outros. Essas aes promoveram a agilizao dos fluxos territoriais e engendraram a articulao do municpio com outras regies, consubstanciando melhorias nas redes de escoamento e armazenagem da produo; exemplo disso foi a inaugurao da ponte rodoferroviria pela FERRONORTE em 1998, conectando Aparecida do Taboado rede nacional; a qual se une as melhorias na rede rodoviria. O que complementa os investimentos municipais e, assim, intensifica a circulao de bens e capitais, lastreando o territrio implantao de inmeras empresas. A atividade pecuarista continua forte, refletindo-se diretamente na representao poltica, pois faz com que atores do setor figurem entre os mais representativos no Mato Grosso do Sul, abocanhando cargos pblicos estaduais. Mas a atividade vem se defrontando com novos desafios, lanados pela industrializao local, com evidncia para a agroindstria canavieira, pois o campo, locus de domnio da pecuria, convive agora com os arrendamentos para o plantio da cana-de-acar. Vejamos essas mudanas de perto na estrutura produtiva de Aparecida do Taboado.

Mais sobre os atrativos para o desenvolvimento industrial de Aparecida do Taboado, ver: TEIXEIRA, E.M; NERI, C.A; FEDICHINA, M.A.H; GOZZI, S.; JULIO, V.C. Estratgias pblicas para o desenvolvimento industrial de localidades de pequeno porte: um estudo aplicado no municpio de Aparecida do Taboado/MS. Disponvel em: http://www.ead.fea.usp.br/semead/12semead/resultado/trabalhosPDF/530.pdf (acesso em 19 de outubro de 2009).

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1.2.1 Da pecuria cana: as grafias de Aparecida do Taboado no modo capitalista de (re)produzir o campo Demonstramos anteriormente que a formao histrico-espacial de Aparecida do Taboado est intimamente ligada pecuria; a atividade exerce fortemente sua influncia na poltica municipal, pois influencia a eleio de vereadores, prefeitos e representantes pblicos diversos que, uma vez no poder, criam as leis municipais e polticas pblicas que os beneficiam, exercendo um papel fundamental na sua perpetuao. Eis que no incio do ano de 1981 surge no municpio a Usina Santa Quitria, iniciando suas atividades definitivamente em 1983, e que pertence a empresrios do Estado de So Paulo, mais propriamente famlia Zancaner, que somando foras com empresrios e proprietrios de terras de Aparecida do Taboado, criam o Grupo Santa Quitria19. Esses empresrios expandem seus negcios ao Mato Grosso do Sul no embalo de muitas transaes/fuses/aquisies que se realizam no perodo; e eles so os nicos paulistas a investir no setor no Estado nessa fase. Verifica-se que o estabelecimento do setor canavieiro no municpio de Aparecida do Taboado est relacionado a pretenses do poder poltico municipal em diversificar a economia local que, sob certos limites, sustentava-se na pecuria. H que se observar, tambm, que a ampla disponibilidade de terras a preos baixos foi um forte atrativo para o estabelecimento dos negcios, representando, junto com a localizao favorvel, prximo s divisas estaduais e mercados consumidores, os principais motivos criao da agroindstria. As vinculaes mercantis, neste perodo, perfazem o nvel regional, com baixos ndices produtivos, se compararmos s regies tradicionais do setor. No decorrer da dcada de 1980 a agroindstria apresenta 5.615 hectares de rea plantada, empregando 1.350 trabalhadores com uma produo de 150.000 litros/dia (KUDLAVICZ; MOTA; CAMACHO, 2007, p. 11). Na dcada de 1990, perodo de forte desregulamentao no setor canavieiro, a atividade local parcialmente cessada, mesmo com as iniciativas da prefeitura municipal expanso industrial. Ainda com a queda do setor canavieiro local, o municpio em questo desponta no cenrio regional como um representante vido pela modernizao do campo, tendo como pano de fundo uma concentrao fundiria corrosiva e, com o discurso do desenvolvimento econmico capitalista ancorado em relaes as mais retrgradas e opressoras, mediante a qualMencionamos que esse grupo de empresrios est notadamente vinculado s profundas transformaes propiciadas pelo Prolcool.19

a renda social do campo captada por capitalistas, e no transferida sociedade, os dados sobre estrutura fundiria denunciam os termos dessa dita modernizao, conservadora e excludente. Sem grandes esforos percebe-se que a distribuio percentual da rea total e do nmero de imveis realizada a partir de cinco categorias: grande, mdia e pequena propriedade, minifndio e imvel no-classificado; alm dos que indispem de informaes sobre rea explorvel ou, ento, que possuem divergncias de informaes sobre reas, estruturas e usos, conforme dados do INCRA (2005). Atentemos distribuio da rea total.Grfico 03: Distribuio percentual da rea total, segundo categoria de imvel

13%

3%

48%

36%

Grande Propriedade Mdia Propriedade Pequena Propriedade Minifndio e No-C lassificado

Fonte: INCRA/MS, 2005 (ORG. ASEVEDO, T.).

Os dados revelam, a propsito, que o municpio de Aparecida do Taboado tem 260.020,0 (ha) de rea total: sendo que 125.979,0 (ha) desses so caracterizados pela grande propriedade; 93.809,9 (ha) pela mdia; 33.169,8 (ha) pela pequena; 6.944,2 (ha) pelo minifndio e 117,1 (ha) so rotulados como imveis no-classificados. Informamos apenas, para efeito de melhor compreenso, que