TATUAGEM, METÁFORA DA COMPLEXIDADE CORPORAL

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TATUAGEM, METÁFORA DA COMPLEXIDADE CORPORAL Cresce a discussão em torno do estatuto corporal, sua completude e sua fragmentação, alternando uma visão naturalista a uma visão construcionista, ou seja, de intervenção cultural. Mauss já apontava o caráter fundacional do corpo. O desenvolvimento da visibilidade por meio das novas tecnologias certamente constitui elemento instigante de tais lutas simbólicas quando propaga a ideia da substituição ou confusão do corpo com a imagem, apelando para ideias como pós-humano e pós-orgânico. O corpo está em cena entre próteses e intervenções. O procedimento “tattoo” que vai se expandindo traz com ele perguntas concomitantes sobre o nó complexo bio-psico-sociológico que constitui o corpo e propicia inúmeras divagações. Serão as tatuagens uma afirmação da unidade do corpo? Serão comunicações de um tipo que passa menos pela palavra e pela racionalidade e mais pela emoção e pela memória, ou serão espécies de grafites que também não deixam de ter seu valor na semiose contemporânea? Aliás, a pele pode ser considerada o primeiro muro ou tela em que imprimimos nossas marcas. A tatuagem parece-me mais do que afirmar uma identidade impossível, uma forma mais consciente e explícita de colar de nossos fragmentos e descontinuidades. O tema corporeidade mais que corpo obriga o pesquisador a reconhecer que este constitui mais que uma resposta, uma interrogação, sobretudo no momento de instabilidade que vivemos quando o urbano não é apenas

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Entrevista cedida a Júlio Cavani, Revista Continente Multicultural (Pernambuco).

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TATUAGEM, METÁFORA DA COMPLEXIDADE CORPORAL

Cresce a discussão em torno do estatuto corporal, sua completude e sua

fragmentação, alternando uma visão naturalista a uma visão construcionista, ou seja, de

intervenção cultural. Mauss já apontava o caráter fundacional do corpo. O

desenvolvimento da visibilidade por meio das novas tecnologias certamente constitui

elemento instigante de tais lutas simbólicas quando propaga a ideia da substituição ou

confusão do corpo com a imagem, apelando para ideias como pós-humano e pós-

orgânico. O corpo está em cena entre próteses e intervenções.

O procedimento “tattoo” que vai se expandindo traz com ele perguntas

concomitantes sobre o nó complexo bio-psico-sociológico que constitui o corpo e

propicia inúmeras divagações. Serão as tatuagens uma afirmação da unidade do corpo?

Serão comunicações de um tipo que passa menos pela palavra e pela racionalidade e

mais pela emoção e pela memória, ou serão espécies de grafites que também não

deixam de ter seu valor na semiose contemporânea? Aliás, a pele pode ser considerada o

primeiro muro ou tela em que imprimimos nossas marcas. A tatuagem parece-me mais

do que afirmar uma identidade impossível, uma forma mais consciente e explícita de

colar de nossos fragmentos e descontinuidades. O tema corporeidade mais que corpo

obriga o pesquisador a reconhecer que este constitui mais que uma resposta, uma

interrogação, sobretudo no momento de instabilidade que vivemos quando o urbano não

é apenas gestão do espaço e ordenação dos indivíduos, mas impregna toda a

corporeidade como bem assinala Patrick Baudry em Violences invisibles: corps urbain

et singularité. A arte instalação é um bom exemplo. Criam-se ambiguidades corporais

que exprimem a relação do corpo consigo mesmo na aventura do espaço. É neste lugar

paradoxal que inscrevemos a tatuagem: o momento de perenidade e descartável marca

individual e coletiva, internalidade e interação, natureza e cultura. Na sua

complexidade, constitui uma metáfora contemporânea do que se perde e do que se

procura.