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Tatiana Belinky

...E Quem Quiser Que Conte Outra

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Tatiana Belinky...E Quem Quiser Que Conte Outra

Sérgio Roveri

São Paulo, 2007

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Coleção Aplauso Série Perfil

Coordenador Geral Rubens Ewald FilhoCoordenador Operacional

e Pesquisa Iconográfica Marcelo PestanaProjeto Gráfico e Editoração Carlos Cirne

Assistente Operacional Felipe GoulartTratamento de Imagens José Carlos da Silva

Revisão Sarvio Nogueira Holanda

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

Diretor-presidente Hubert Alquéres

Diretor Vice-presidente Paulo Moreira LeiteDiretor Industrial Teiji Tomioka

Diretor Financeiro Clodoaldo PelissioniDiretora de Gestão Corporativa Lucia Maria Dal Medico

Chefe de Gabinete Vera Lúcia Wey

Governador José Serra

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Apresentação

“O que lembro, tenho.”Guimarães Rosa

A Coleção Aplauso, concebida pela ImprensaOficial, tem como atributo principal reabilitar eresgatar a memória da cultura nacional, biogra-fando atores, atrizes e diretores que compõem acena brasileira nas áreas do cinema, do teatro eda televisão.

Essa importante historiografia cênica e audio-visual brasileiras vem sendo reconstituída demaneira singular. O coordenador de nossa cole-ção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou,criteriosamente, um conjunto de jornalistasespecializados para realizar esse trabalho deaproximação junto a nossos biografados. Ementrevistas e encontros sucessivos foi-se estrei-tando o contato com todos. Preciosos arquivosde documentos e imagens foram abertos e, namaioria dos casos, deu-se a conhecer o universoque compõe seus cotidianos.

A decisão em trazer o relato de cada um para aprimeira pessoa permitiu manter o aspecto detradição oral dos fatos, fazendo com que amemória e toda a sua conotação idiossincrásicaaflorasse de maneira coloquial, como se o biogra-fado estivesse falando diretamente ao leitor.

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Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator impor-tante na Coleção, pois os resultados obtidosultrapassam simples registros biográficos, reve-lando ao leitor facetas que caracterizam tambémo artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e obiografado foram tomados desse envolvimento,cúmplices dessa simbiose, que essas condiçõesdotaram os livros de novos instrumentos. Assim,ambos se colocaram em sendas onde a reflexãose estendeu sobre a formação intelectual e ideo-lógica do artista e, supostamente, continuadanaquilo que caracterizava o meio, o ambiente ea história brasileira naquele contexto e mo-mento. Muitos discutiram o importante papelque tiveram os livros e a leitura em sua vida. Dei-xaram transparecer a firmeza do pensamentocrítico, denunciaram preconceitos seculares queatrasaram e continuam atrasando o nosso país,mostraram o que representou a formação de cadabiografado e sua atuação em ofícios de linguagensdiferenciadas como o teatro, o cinema e a televi-são – e o que cada um desses veículos lhes exigiuou lhes deu. Foram analisadas as distintas lingua-gens desses ofícios.

Cada obra extrapola, portanto, os simples relatosbiográficos, explorando o universo íntimo e psi-cológico do artista, revelando sua autodeter-minação e quase nunca a casualidade em ter setornado artista, seus princípios, a formação de

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sua personalidade, a persona e a complexidadede seus personagens.

São livros que irão atrair o grande público, masque – certamente – interessarão igualmente aosnossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foidiscutido o intrincado processo de criação queenvolve as linguagens do teatro e do cinema. Fo-ram desenvolvidos temas como a construção dospersonagens interpretados, bem como a análise,a história, a importância e a atualidade de algunsdos personagens vividos pelos biografados. Foramexaminados o relacionamento dos artistas comseus pares e diretores, os processos e as possibili-dades de correção de erros no exercício do teatroe do cinema, a diferenciação fundamental dessesdois veículos e a expressão de suas linguagens.

A amplitude desses recursos de recuperação damemória por meio dos títulos da Coleção Aplauso,aliada à possibilidade de discussão de instrumentosprofissionais, fez com que a Imprensa Oficial pas-sasse a distribuir em todas as bibliotecas importan-tes do país, bem como em bibliotecas especializa-das, esses livros, de gratificante aceitação.

Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfi-co, em formato de bolso, documentado com ico-nografia farta e registro cronológico completo paracada biografado, em cada setor de sua atuação.

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A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar oscem títulos, se afirma progressivamente, e esperacontemplar o público de língua portuguesa como espectro mais completo possível dos artistas,atores e diretores, que escreveram a rica e diver-sificada história do cinema, do teatro e da tele-visão em nosso país, mesmo sujeitos a percalçosde naturezas várias, mas com seus protagonistassempre reagindo com criatividade, mesmo nosanos mais obscuros pelos quais passamos.

Além dos perfis biográficos, que são a marca daColeção Aplauso, ela inclui ainda outras séries:Projetos Especiais, com formatos e característicasdistintos, em que já foram publicadas excep-cionais pesquisas iconográficas, que se origi-naram de teses universitárias ou de arquivos do-cumentais preexistentes que sugeriram sua edi-ção em outro formato.

Temos a série constituída de roteiros cinemato-gráficos, denominada Cinema Brasil, que publi-cou o roteiro histórico de O Caçador de Dia-mantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, conside-rado o primeiro roteiro completo escrito no Bra-sil com a intenção de ser efetivamente filmado.Paralelamente, roteiros mais recentes, como oclássico O Caso dos Irmãos Naves, de Luis SérgioPerson, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach,Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fa-

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zer um Filme de Amor, de José Roberto Torero,que deverão se tornar bibliografia básica obri-gatória para as escolas de cinema, ao mesmo tem-po em que documentam essa importante produ-ção da cinematografia nacional.

Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior,da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu ea queda da TV Excelsior, que inovou os proce-dimentos e formas de se fazer televisão no Bra-sil. Muitos leitores se surpreenderão ao desco-brirem que vários diretores, autores e atores, quena década de 70 promoveram o crescimento daTV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Ex-celsior, que sucumbiu juntamente com o GrupoSimonsen, perseguido pelo regime militar.

Se algum fator de sucesso da Coleção Aplausomerece ser mais destacado do que outros, é ointeresse do leitor brasileiro em conhecer o per-curso cultural de seu país.

De nossa parte coube reunir um bom time dejornalistas, organizar com eficácia a pesquisadocumental e iconográfica, contar com a boavontade, o entusiasmo e a generosidade de nos-sos artistas, diretores e roteiristas. Depois, ape-nas, com igual entusiasmo, colocar à disposiçãotodas essas informações, atraentes e acessíveis,em um projeto bem cuidado. Também a nós sen-

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sibilizaram as questões sobre nossa cultura quea Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sorti-légios que envolvem palco, cena, coxias, set defilmagens, cenários, câmeras – e, com referênciaa esses seres especiais que ali transitam e se trans-mutam, é deles que todo esse material de vida ereflexão poderá ser extraído e disseminado comointeresse que magnetizará o leitor.

A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter cri-ado a Coleção Aplauso, pois tem consciência deque nossa história cultural não pode ser negli-genciada, e é a partir dela que se forja e se cons-trói a identidade brasileira.

Hubert AlquéresDiretor-presidente da

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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Dedico este livro à memória dos meus queridos

‘que se encantaram’ e já não estão mais aqui ao

meu lado. A meu pai Aron, minha mãe Rosa, meu

marido Júlio, meu filho André e meu irmão

Benjamim.

Tatiana Belinky

À minha família e aos meus amigos. Que no

fundo são a mesma coisa.

Sérgio Roveri

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Introdução

Uma criança de 87 anos

Você tem certeza de que quer contar a minha

vida?, perguntou-me ao telefone uma incrédula

Tatiana Belinky, assim que eu a informei sobre

o desejo da Imprensa Oficial de ter seu nome

entre o das personalidades biografadas pela

Coleção Aplauso. Eu não sou atriz, não sou

diretora. Será que alguém vai se interessar pela

minha história? Depois de gastar alguns argu-

mentos no intuito de convencê-la, fez-se um

breve silêncio do outro lado da linha, logo

interrompido pelo inconfundível ruído de

páginas sendo viradas. Estou aqui com a minha

agenda. Vamos marcar uma entrevista para a

semana que vem? Quem sabe não encontremos

juntos, então, algumas coisas interessantes que

possam justificar um livro.

Tatiana Belinky vive em um amplo sobrado em uma

rua tranqüila e arborizada do bairro do Pacaembu,

em São Paulo. É ela mesma quem atende o

interfone e abre a porta para o entrevistador no

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primeiro dos nossos encontros. Antes de me dar

passagem, olha rapidamente para o céu e diz:

tomara que você traga bom tempo, depois de tanta

chuva. Foi a primeira de uma série de intervenções

que ela fez ao longo das entrevistas para

demonstrar que, nem seus 87 anos de vida, nem as

dezenas de livros que escreveu, justificariam qual-

quer tratamento mais parcimonioso ou a ausên-

cia de intimidade entre nós dois.

Seu quartel-general, onde ela passa a maior

parte do dia, está instalado em um dos cantos

da sala-de-estar, e compreende uma poltrona

listrada de encosto alto (que deve ser muito

confortável, já que Júnior, um gato siamês que

sabe umas seis ou sete palavras, sorrateiramente

se aloja nela à primeira distração da dona), um

descanso para os pés, o telefone, o interfone e

uma escrivaninha com tampo móvel, sobre o qual

repousam lápis, canetas, agendas, clipes e o

aparelho de controle remoto da televisão de 29

polegadas, situada a uns três metros a sua frente.

Ela refere-se a este cantinho como sendo a sua

sucursal de escritório. As paredes deste cômodo,

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aonde se chega após cruzar uma porta de vi-

dro, estão coalhadas de retratos, dezenas de-

les, de pessoas queridas, insubstituíveis em sua

vida e fundamentais em seu trabalho, mas não

estão mais por aqui: o marido Júlio Gouveia,

psiquiatra, educador e comandante de uma

aventura televisiva chamada Sítio do Picapau

Amarelo, no início dos anos 50, o filho André,

jovem ator e diretor que não teve tempo de fa-

zer amadurecer sua vocação intelectual, a mãe

Rosa, uma dentista rechonchuda, comunista e

boa de briga, não necessariamente nesta ordem,

e o pai Aron, homem de negócios com alma de

poeta e a doçura de um monge.

Acomodada nesta espécie de trono high tech,

ela deixa fluir a maior das suas habilidades – a

da irresistível contadora de histórias que nos

últimos 50 anos propagou este dom em forma

de livros de crônicas, poesias, memórias, roteiros

de programas infantis e seriados adultos, críticas

de teatro e traduções. Não teria feito a metade

do que fez, acredita ela, se não tivesse como

aliada uma prodigiosa memória, capaz de

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recuperar, com surpreendente exatidão, os

versinhos lidos pelo pai quando tinha quatro

anos, na gelada Riga, capital da Letônia, onde

passou a maior parte da infância antes de se

mudar com a família para o Brasil, o longínquo

país tropical que primeiro a seduziu com seus

inacreditáveis cachos de bananas e depois a

assustou com suas gigantescas baratas. A cabeça

está ótima, o problema é a carcaça, diz rindo,

para justificar as cada vez mais raras saídas de

casa. Hoje eu só viajo com os livros e com minha

imaginação. É um método muito mais fácil e

barato de viajar, e que não causa nenhum

problema de coluna.

Tatiana Belinky vive rodeada pelas suas memórias,

mas não permite que elas lhe desviem o olhar do

futuro. Cada recordação serve, acima de tudo,

como estímulo para um novo livro, uma nova

crônica, uma nova possibilidade de trabalho.

Durante as entrevistas, várias foram as ocasiões

em que, ao afastar a poeira de algum episódio

perdido no tempo, disse para si mesma: engraçado,

algum dia, ainda preciso escrever sobre isso. Nos

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últimos tempos escrever tem sido, para ela,

sinônimo de dor – mas não a famosa dor da criação

ou os temíveis bloqueios que costumeiramente

acometem os escritores. Estamos falando de dor

nas juntas mesmo. Uma artrite teimosa tem

provocado inchaços nos dedos das suas mãos,

afastando-a do computador. Quando acorda,

principalmente nas manhãs mais frias, as

articulações custam a lhe obedecer. Sem auto-

piedade, ela dirige alguns palavrões para as mãos

e obriga cada um dos dedos a pegar no tranco e

sustentar a caneta para mais um dia de labuta. Um

artista, costuma dizer, está sempre trabalhando,

ainda que refastelado em uma rede. Não tenho

culpa se o meu trabalho é diferente, ué! Uma re-

cente cirurgia no pulso afastou a rigidez e o

enformigamento na mão esquerda, com a qual ela

consegue escrever tão bem como com a direita.

Vantagens de uma canhota que soube domesticar

as duas mãos.

O telefone ao seu lado toca várias vezes durante

o dia. Embora recuse muitos convites, Tatiana

Belinky, ou Tati, como os netos a chamam,

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continua sendo uma mulher muito requisitada.

Jovens escritores insistem em mostrar seu

trabalho, editoras (e ela trabalha com 14 delas!)

cobram prazos e revisões, escolas despejam

convites para palestras. Este último tópico,

garante, é o mais sedutor. Falar para crianças é

encantador, desde que não se refiram a este

encontro como palestra. É uma conversa entre

uma criança de 87 anos e outras um pouco mais

jovens. As exigências que faz para atender a este

tipo de convite são tímidas – uma condução que

a leve até a escola, água e café no intervalo. Ah,

e sem escadas no caminho, por favor. Outro item

indispensável em seu bate-papo com a garotada

é uma mesa – e isso não tem nada a ver com sua

idade. Ela nunca conseguiu falar em pé sem ser

vítima de um ataque de tremedeira. E, nestas

horas, contar com um apoio para os cotovelos é

uma benção.

A escritora parecia torcer, em cada uma das

entrevistas, para que o gravador desse logo o

sinal de que a fita havia finalmente chegado ao

fim – não para interromper a conversa, pois

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papear hoje é um dos seus passatempos

prediletos – mas para dirigir-se com um prazer

quase infantil até o armário da sala ao lado, de

onde retornava com uma garrafa de vinho do

Porto, dois cálices e uma travessa com frutas

secas. Abastecida com duas doses do Porto, a

velha dama reunia forças e entusiasmo para

mais uma batelada de perguntas e recordações.

Como boa russa, eu deveria tomar vodca, não

é? Mas isso aqui é maravilhoso, diz, apontando

para o cálice. Depois de terminar seu trabalho,

continue vindo para me acompanhar nestes

brindes. Quando está entre amigos, é incapaz

de dizer não a um copo de chope, dois no

máximo. Mas não costuma apreciar os que se

entregam a doses muito maiores que esta.

Entre as dezenas de histórias que contou – e que

o leitor poderá ver nas páginas seguintes – existe

apenas uma que ainda consegue arrepiar-lhes

os seus cabelos encaracoladinhos. Talvez ela ima-

ginasse que tal relato não fosse chegar ao co-

nhecimento do público, mas ele é essencial para

que as pessoas compreendam a alma espevitada

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da escritora. E por isso peço licença para narrá-

lo. Há muitos anos surgiu, não se sabe direito

de onde, uma espingardinha de pressão na casa

que ela dividia com o marido Júlio Gouveia. Cer-

to dia, ele resolveu colocar em xeque a cora-

gem da mulher. Pôs um cigarro na boca, afas-

tou-se por aproximadamente uns oito metros e

disse: duvido que você consiga tirar o cigarro

da minha boca com um tiro de chumbinho.

Tatiana não hesitou: apontou a espingarda e fez

um disparo certeiro que partiu o cigarro ao

meio, deixando o marido petrificado. O irmão

mais novo, Benjamim, que presenciou a cena,

quase caiu da cadeira, não sem antes repreendê-

la. Você escreve para crianças, não pode sair por

aí dando tiros de espingarda, onde já se viu?,

disse. Ué, ele me provocou, respondeu. Hoje ela

fica enrubescida quando recorda da cena. Meu

Deus, que vergonha. Mas pelo menos tive cer-

teza de uma coisa: minha pontaria era ótima.

Que o leitor, ao findar este livro, não tenha

nenhuma dúvida sobre a importância desta

mulher que escancarou as portas da televisão, do

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teatro e da literatura para a criançada. E que, ao

contrário do que fez a própria no primeiro

telefonema, carregue a certeza de que sim, a vida

de Tatiana Belinky merece ser contada. E muito.

Sérgio Roveri, janeiro de 2006

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Em 1921, com a mãe

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Capítulo I

Ou São Petersburgo ou a menina

Cheguei ao Brasil no dia 29 de setembro de 1929,

com dez anos de idade, após três semanas de

viagem a bordo do transatlântico alemão

General Mitre, que zarpou do porto de

Hamburgo. Eu nasci na Rússia, na cidade de São

Petersburgo, que na época era chamada de

Petrogrado. Depois virou Leningrado, em 1922,

e voltou a ser São Petersburgo em 1991, que é

seu nome verdadeiro. Minha certidão de

nascimento foi escrita pela mão do meu pai.

Porque nem máquina de escrever eles tinham

naquela época.

Vim ao mundo no dia 18 de março de 1919, em

plena guerra civil. A Revolução Russa havia

eclodido em 1917, dois anos antes. Quando eu

tinha pouco mais de um ano, derrotados pela

grave crise econômica, meus pais voltaram para

a Letônia, um pequeno país do Mar Báltico e

que era a terra natal deles.

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Rosa era o nome da minha mãe. Ela se formou

em Odontologia na Estônia, em 1914. Ela era co-

munista-dentista. Pouco antes do meu

nascimento, meu pai estava estudando

psicologia em um liceu em São Petersburgo. Meu

pai era quase três anos mais novo que minha

mãe. Ela se formou e ele não teve tempo de

concluir o curso por causa da guerra. Estávamos

no início do século XX e meu pai já estudava

psicologia. Meu pai se chamava Aron, um nome

bíblico, o irmão de Moisés. O sobrenome Belinky,

em russo, quer dizer branquinho. Eles eram

prafrentex, meus pais.

Quando eu nasci, minha mãe tinha consultório

montado em São Petersburgo. Ficava perto de

uma fábrica. Então eu tinha muito contato com

operários, desde pequena. Até nisso minha mãe

mostrava o quanto era comunista. E tão ardorosa

que o primeiro filho ela perdeu em um comício

de Leon Trotsky. Era um menino, seria o primeiro

filho dos meus pais. Mas ela o perdeu, espremida

pela multidão. Ela estava no meio da gravidez,

tempo suficiente para ver que era um menino.

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Ela era uma mulher incrível. Meu pai era muito

diferente dela neste aspecto, ele era laissez-faire,

liberal. Um democrata-liberal. Eles tinham

opiniões diferentes sobre tudo. E opiniões muito

marcantes. A tal ponto que, uma vez, em uma

conferência, um comício a portas fechadas antes

da Revolução, alguns comunistas passaram o

chapéu entre os presentes para pedir alguma

contribuição para o partido.

Em 1921, com os pais

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E como minha mãe não tinha dinheiro na bolsa,

tirou um anel, o de noivado, um imenso solitário,

e o atirou dentro do chapéu. Isso era típico dela.

Ela apoiou a Revolução, como toda gente boa

da época.

Minha mãe era também uma mulher muito

teimosa, ela não chegou a mudar de idéia sobre

a Revolução Russa mesmo depois de ver o rumo

que as coisas tomaram. O pior cego é o que não

quer ver é um ditado que podia ser aplicado

perfeitamente a ela. Nós temos comunistas que,

mesmo depois de tudo o que aconteceu,

continuam do mesmo jeito, não enxergam a

verdade. Porque todo mundo viu o que se passou

na Rússia, logo após a revolução de outubro de

1917, mas eles preferem acreditar que o

resultado da Revolução Russa foi apenas um

engano. Ah, foi apenas um engano, eles dizem.

Nos desculpem. Mataram 20 milhões de pessoas,

mas, ah, foi apenas um engano.

Eu tive dois irmãos. Quando viemos para o Brasil,

eu, a mais velha, estava com 10 anos. O segundo

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irmão, Abram, que sempre foi chamado de

Abracha, era dois anos e meio mais novo do que

eu, e o temporão, Benjamin, chegou aqui com um

aninho. Dos filhos, fui a única nascida em São

Petersburgo, meus irmãos nasceram em Riga, ca-

pital da Letônia, famosa pela madeira que expor-

tava para o mundo inteiro, o pinho-de-riga. Na-

queles anos, gastavam-se duas horas de trem de

Riga a São Petersburgo, aquela Brasília que Pedro,

o Grande, resolveu construir – uma cidade artifi-

cial erguida sobre um pântano, um lugar horrí-

vel. Tudo porque ele queria uma janela para a

Europa. Era assim que ele se referia à cidade. A

cidade foi erguida a partir de um plano urbanísti-

co feito por arquitetos estrangeiros, franceses e

italianos. A construção custou milhares de libras

porque foi feita sobre um solo horrível. O resulta-

do foi uma linda cidade de clima horroroso. Mas

São Petersburgo era uma metrópole mesmo. Da-

quela época, eu me lembro muito bem de uma

coisa: frio, frio, frio. Vinte graus abaixo de zero.

Voltei para Riga uma vez, como turista, quan-

do estava com 45 anos. Mas, ao chegar lá, eu

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conhecia tudo. Eu dispensei o guia turístico, dis-

se que não precisava dele. Saí sozinha fazendo

turismo pelas ruas. Eu sabia andar pelas ruas,

lembrava-me do apartamento em que a minha

família morava – e olhe que eu vivi naquela ci-

dade só até os dez anos, antes de nos mudar-

mos para São Paulo. Meu aniversário de nove

anos eu passei em São Petersburgo, acompa-

nhando minha mãe, que foi visitar as irmãs.

Quando visitei São Petersburgo, eu me lembra-

va de muita coisa de lá também.

Eu tive uma infância boa. Meus pais eram filhos

de gente abastada. Meu pai, quando menino,

tinha um cavalinho dele, um pônei, só para ele,

porque o pai dele era dono de cavalos e

carruagens. Ele chegou a ter um barco só dele

também, cresceu como um principezinho. Ele foi

o décimo quinto filho, num tempo em que as

famílias tinham 15 filhos. Minha mãe também

teve 14 irmãos. Só que a mãe dela, minha avó,

foi mais prática, teve vários gêmeos. Já com a

mãe do meu pai foi de um em um, coitada. E

meu pai era o caçula.

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Em 1927, com a mãe e o irmão

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Meu pai e os irmãos dele se criaram em São

Petersburgo. Naquela época era muito difícil

morar na capital. Só se fosse por um acaso de

haver ficado muito rico em algum lugar, daí era

possível. Meus avós maternos moravam na

Letônia, pertinho de Riga, em uma cidade de

entroncamento ferroviário chamada Proitka. De

alguma maneira, era como se eles também

morassem em uma capital, só que Riga era uma

cidade bonita, com bairros e prédios de quase

seiscentos anos. Se comparada a Riga, São

Petersburgo é uma cidade nova, fundada

praticamente na mesma época de Ouro Preto.

Quando eu tinha pouco mais de um ano, passei

a sofrer de problemas respiratórios provocados

pelo clima de São Petersburgo. O pediatra,

então, chegou para minha mãe e disse: Agora

você escolhe: ou quer morar em São Petersburgo

ou quer ter uma filha, porque aqui ela não vai

sobreviver. E sabe que, outro dia, eu li uma

entrevista de não sei que senhora importante

que contou a mesma história: os pais dela

também tiveram de sair de lá. Porque as crianças

morriam em São Petersburgo.

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Era uma época horrorosa. Quando eu nasci, a

Rússia continuava sofrendo os efeitos de uma

guerra civil. Não havia comida, não havia nada

naqueles anos, logo após a revolução. Com a

chegada dos comunistas ao poder, minha

família perdeu tudo. Eles eram muito ricos e

tudo que eles tinham foi simplesmente

confiscado, levado. Pronto, acabou de uma hora

para outra. Agora, em Riga, tínhamos uma vida

de classe média-média. Tínhamos um

apartamento no quarto andar de um prédio que

dava para o rio Dáugava, que banha a cidade

antes de desembocar no mar, perto de onde

havia um túnel. No verão nós íamos para a praia,

para os chalés de férias chamados dátchas,

pequenas construções de madeira que ficavam

a uma hora de trem do nosso apartamento. Eram

praias com flores e vegetação. E era ali também,

perto da praia, que começavam os pinheirais.

Ao longo da costa via-se aquele pinheiral, com

aquelas pinhas lembrando abacaxizinhos. Então

o cheiro dos pinheiros se misturava ao da

maresia, e o resultado era muito delicioso. Vinha

gente da Europa inteira passar as férias lá.

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Era um lugar maravilhoso. Chegávamos à praia

em julho e ficávamos até agosto, quando já esta-

va ficando frio. Havia horários estabelecidos para

freqüentar a praia naqueles anos. Das seis às oito

da manhã, por exemplo, apenas os homens podiam

tomar banho de mar. Das oito às dez, era a vez das

mulheres e crianças. Os banhos mistos eram

permitidos após as dez da manhã. Havia muitas

dunas, que dividiam a praia por áreas.

Os horários dos banhos de mar eram diferentes

para homens e mulheres porque, na época, todos

nadavam pelados. Então, homens e mulheres não

se misturavam, a não ser no horário misto,

quando o uso de maiôs discretíssimos era

obrigatório. Eu via todas aquelas mulheres

peladas na areia e achava aquilo horrível. Eu já

havia visitado o Museu Hermitage, em São

Petersburgo, que é um deslumbramento. Então,

para a menina que eu era, os nus deveriam ser

tão esplêndidos quanto o daquelas estátuas e

esculturas que eu vi no museu. Agora, na praia,

as tias, os meninos, as meninas, cada gente feia.

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Era tão difícil encontrar alguém bonito por lá. Era

gente pelancuda demais, eu andava e não via

nenhuma Vênus. Eu tenho até uma fotografia de

um grupo na praia, com a nossa babá alemã, a

nossa fräulein, embrulhada na toalha.

A nudez, naquele contexto, não significava falta

de pudor. Havia guardas que zelavam pelo bom

comportamento dos banhistas. Eram oficiais que

ficavam no alto da duna olhando para a praia, para

todas aquelas mulheres peladas. Ninguém

estranhava, era assim mesmo. Acho que agora não

é mais assim, era só naquele tempo. Ali não era

praia de nudismo, era praia comum. Praia de

nudismo normalmente respeita uma legislação, e

os freqüentadores têm de segui-la. Lá era praia

pública, só os horários tinham de ser respeitados.

Minha mãe acompanhava-nos naquelas férias.

Meu pai trabalhava durante a semana e ia nos

ver no sábado e no domingo. Ele tinha um tra-

balho de representação comercial. Minha mãe

havia deixado a odontologia de lado por uns

tempos e estava dedicando-se à casa.

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Em 1928

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Mas, quando chegamos ao Brasil, três meses de-

pois ela já estava trabalhando. Ela tinha um diplo-

ma estoniano, de uma universidade importante,

mas não valia aqui. Então ela conseguiu, junto a

um figurão do serviço sanitário, uma licença es-

pecial de prático licenciado, o que lhe permitiu

exercer a profissão.

O navio que nos trouxe ao Brasil fez uma escala

de três ou quatro dias no Rio de Janeiro, antes

de desembarcarmos em Santos, de onde viemos

de trem para São Paulo. Aqui não havia nenhum

tipo de prevenção contra judeus, mas lá estava

começando. E na Europa sempre houve anti-

semitismo. Meus avós não sofreram com isso,

no início, porque eram madeireiros ricos. Tanto

que meu avô podia morar na capital. Mas, de-

pois que o partido nazista chegou ao poder na

Alemanha e Hitler começou a invadir os países

europeus, toda a nossa família e nossos amigos

foram mortos, em campos de concentração ou

fuzilados. Eu tinha um primo de onze anos que,

no dia em que partimos de Riga, ele nos

acompanhou até a estação ferroviária.

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Na plataforma, pouco antes do nosso embarque,

ele segurou a minha mão e pediu para que eu

nunca me casasse no Brasil. Ele disse que eu deveria

esperá-lo, pois ele também viria para o Brasil mais

tarde e se casaria comigo. Foi a última vez que o

vi. Alguns anos depois, ele foi morto pelos alemães.

Meus pais foram alfabetizados em russo, fizeram

colégio e faculdade em que o russo era a língua

oficial. Em casa, tínhamos uma babá que falava

alemão. A primeira escola que freqüentei era

alemã. Então alemão e russo são as minhas

línguas. Russo mesmo, alemão quase. Nunca quis

perder o contato com estas duas línguas, que

me seriam muito úteis mais tarde, em meu

trabalho como tradutora. O letão foi uma língua

que eu perdi, sobrou apenas um restinho. Eu me

recordo da minha mãe falando frases em

supermercados, coisas assim, quanto custa? Mas

a essência da língua eu perdi mesmo.

Quando chegamos a São Paulo, imediatamente

meus pais se inscreveram em duas bibliotecas

circulantes, uma alemã e outra russa, baratinhas,

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é claro, pois viemos com uma mão na frente e

outra atrás. Eles não queriam perder o contato

com a literatura alemã e russa, e não queriam

que os filhos também perdessem. Eu nunca perdi.

Um pouco mais tarde é que fomos aprender

português. Meu pai era poliglota, falava inglês e

francês além do alemão e do russo. Português

ele aprendeu no navio. Ele veio sozinho, três

meses antes do restante da família. Quando

chegamos aqui, ele estava nos esperando no

porto com o dicionário na mão, já tinha um

razoável domínio do português. Como ele ha-

via estudado latim, acredito que não tenha en-

contrado muitas dificuldades para aprender o

português. Ele tinha um talento impressionan-

te para idiomas. Nas três semanas da viagem de

navio, ele passou a falar português. Com sotaque,

mas falava.

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Em 1930

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Capítulo II

E a vaquinha foi para o mar

Eu comecei a ler aos quatro anos, em casa. Lia

muito, comecei a ler e nunca mais parei. E via

meu pai, minha mãe e meu avô com livros na

mão. Mas isso não era um hábito apenas da nossa

família, ler fazia parte da classe social a que

pertencíamos. Eu aprendi a ler muito cedo

porque tinha uma gana de saber as histórias que

meus pais me contavam. Meu processo de

alfabetização foi muito peculiar. Meu pai

comprou uma caixinha de bloquinhos de letras

e me deu de presente. Disse: Isso é para você

brincar. Fazer ponte, casinha, fazer o que quiser.

Mas é claro que ele sabia que a gente ia

perguntar, porque criança não é burra, e

perguntamos que figurinhas eram aquelas. Mas

ele relutou em dizer o que aquelas figuras

representavam. A certa altura eu insisti: O que

é isso aqui?. E ele disse b, e isso é u. Sabe que

juntando fica bu? Fascinante. Em poucas

semanas eu estava lendo, lendo letras de fôr-

ma, pequenas palavras.

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Depois fui pegar os livros que ele lia para mim e

cujas histórias eu sabia de cor. Com isso, aos

cinco anos eu estava lendo fluentemente e nun-

ca mais parei. Quando meu primeiro neto fez

quatro anos – hoje ele está com 41 – eu quis

repetir com ele a mesma brincadeira que meus

pais fizeram comigo, até por curiosidade. E fiz

do mesmo jeito, aqui em casa, com o mesmo

joguinho que eu ganhara na infância. Logo ele

começou a perguntar o que era aquilo. Um mês

e meio depois, eu me sentei com ele no tapete

da sala, peguei as letrinhas e formei duas

sílabas. Ele olhou aquilo, olhou de novo,

apontou com o dedinho e leu vovó. Leu e

traduziu. Isso é alfabetização! Eu fui alfa-

betizada assim e ele também.

Quando eu fui para a escola alemã, a Décima

Quarta Escola Básica para Meninas de Riga, eu

já estava muito adiantada em relação aos ou-

tros alunos. Lia, escrevia e sabia muita poesia.

Então foi fácil. Difícil era tolerar os professores,

todos muito chatos. Estudei apenas um ano lá,

depois já viemos para o Brasil.

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Eu tinha de pegar o bonde para ir à escola, meu

pai e minha mãe não tinham carruagens. Eu

precisava atravessar uma ponte para chegar à

escola, nosso prédio dava para o estuário e o

centro da cidade ficava do outro lado. Havia três

pontes sobre o rio Dáugava, que nós

conseguíamos enxergar pela janela. A primeira

ponte era usada por pessoas e veículos, e que

abria sua grande estrutura para permitir a

passagem dos mastros e chaminés dos navios. A

segunda era de uma estrada de ferro, e sobre

ela passava um trem. A terceira ponte,

provisória, foi construída pelos alemães durante

a Primeira Guerra Mundial, em 1914, quando o

exército alemão passou pela Letônia. Minha

última lembrança de Riga é desta ponte durante

o inverno. O rio congelava e as pessoas e seus

cavalos preferiam cruzar diretamente sobre ele.

Havia também os paquetes, pequenos ferry

boats utilizados na travessia do rio, que no in-

verno ficavam sem função. Eu me lembro de ver,

também pela janela, alguns loucos que faziam

buracos no rio, uma espécie de poço. Muitos

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porque pescavam e outros simplesmente por-

que entravam debaixo daquele gelo todo. Eles

faziam essas valentias para se mostrar. A gente

via isso da janela, interessante. Durante a pri-

mavera, aquele gelo se expandia, e começava a

estourar. Era mais que um ruído, parecia um

canhão. Um barulho enorme, estrondos que

lembravam explosões. Os blocos de gelo

rachavam e o rio ia levando os pedaços embora.

Era um espetáculo. Não me esqueço de uma vez

em que eu vi uma vaca em cima daquele bloco

de gelo. Coitada, ela estava atravessando e foi

levada para o mar. Foi uma noite romântica

aquela lá... Eu fiquei com muita pena da vaca.

O degelo da minha última primavera em Riga

foi tão intenso que até a ponte foi levada. A

ponte provisória, feita pelos alemães e que

durou anos. Mas naquela primavera de 1929 ela

foi arrancada e levada embora pelo rio. É a última

imagem que tenho daquela cidade: a ponte

sendo destruída e aquele barulho espetacular.

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Em 1930, com o irmão

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A família, em 1930

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Capítulo III

Meu primeiro papel: uma mosca

Eu me recordo mais das coisas que aconteceram

quando eu tinha uns quatro anos. Eu tive uma

infestação no couro cabeludo que me fez cair

todo o cabelo. Foi uma doença provocada por

algum bicho. Eu tinha alguns bichinhos de

pelúcia, entre eles um cachorrinho que eu

adorava, e eles foram todos queimados, nin-

guém me perguntou nada. Eu fiquei careca. E,

como era muito tímida, chorava. Minha avó fez

toucas para mim. Uma touca de cada cor para

cada dia da semana. Para cobrir a careca.

Eu devo ter apanhado um parasita qualquer. Eu

era uma criança esperta e esse negócio de me

olhar e me ver careca... Eu chorava muito. Meu

cabelo era liso, que nem japonês, com franjinha.

Depois da queda, quando o cabelo voltou a

nascer, ele veio crespo, como carneirinho.

Mudou. Mas demorou meses. Foi outra expe-

riência dramática.

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E aos quatro anos também houve um incêndio

no prédio onde morávamos. O fogo começou

um andar acima do nosso. Nós estávamos no

quarto. Também me lembro drasticamente da

água lançada pelos bombeiros escorrendo na

sala, chovia na sala. E me lembro de botas, de

botas altas. Eram os bombeiros que andavam de

um lado para outro.

E, também aos quatro anos, uma experiência boa:

meu contato com teatro. E teatro como atriz. Eu

já tinha assistido a espetáculos, meus pais me le-

vavam para tudo quanto era espetáculo. Mas, era

meu aniversário, fizemos uma festa e depois um

espetáculo em que eu participei como atriz. Eu

era uma mosca. Uma mosca, aos quatro anos. E

era um solo. Por favor, um monólogo. Eu estava

vestida de mosca, com asinhas, com antenas. Eu

imitava uma mosca, afinal, mosca eu conhecia. Eu

cantava, andava pelo chão, e voltava a cantar, em

russo, uma canção que dizia assim: Estou andando

pelo teto, e vou visitar meu amigo besouro. Esta

sensação eu tenho até hoje: andar pelo teto é

muito interessante.

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Porque eu tinha absoluta certeza de que estava

andando pelo teto, de cabeça para baixo. Essas

foram grandes impressões. Não sei quem criou

esta peça. Era uma musiquinha cantada, e eu

era a mosca.

Não sei se foi esta experiência que despertou

minha paixão pelo teatro. Teatro eu sempre vi.

Meus primos, por exemplo, mais velhos do que

eu, faziam teatro no nosso apartamento, no nosso

quarto e no quarto dos meus pais. Entre o meu

quarto e o dos meus pais havia uma porta larga,

que abria para os lados. Meu pai até improvisou

um balanço lá, entre os dois quartos. Meus primos

penduravam alguns lençóis e colchas no batente

e faziam teatro. Meu quarto passava a ser o palco

e, o quarto dos meus pais, a platéia.

Quando vim para o Brasil já estava como um saco

de cultura até aqui. Eu sabia o que era teatro.

Eu lia peças de teatro. Como eu conseguiria, mais

tarde, escrever peças de teatro sem nunca ter

tido aulas de dramaturgia? Eu sabia como se

escreve teatro.

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Como se põe um personagem, as marcações, as

rubricas, o cenário, eu sabia porque já tinha lido.

E quando aconteceu de eu precisar fazer isso,

eu sabia como fazer. Então o teatro sempre fez

parte da minha formação. Além do que, toda

minha família era muito ligada à cultura. Lia-se

muita poesia na minha casa, meu pai dizia poe-

mas, era como um artista. Até quando eu come-

cei a ler, ele dizia: Com expressão. Não podia ler

blablablá de qualquer jeito, não. Ele me dirigia,

desde sempre. Meus pais falavam muito de tea-

tro. Quando eu conheci o Júlio Gouveia, por

volta dos meus 20 anos, nós íamos muito ao te-

atro, antes mesmo de nos casarmos. Sempre que

havia alguma coisa para ver, nós víamos...

Quando meus pais decidiram vir para o Brasil, a

vida estava se tornando complicada também em

Riga. A situação econômica era difícil, e eles resol-

veram tentar a sorte em outro lugar. Mas imagi-

ne se naquela época alguém ia escolher o Brasil

para se mudar. Eles queriam era ir para os Estados

Unidos. Na verdade, acho que pensavam em ir

para a Suécia, mas não sei por que não foram.

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Talvez porque, acima de tudo, fosse melhor sair

da Europa. O problema é que havia uma fila de

três anos para se obter visto de entrada nos Esta-

dos Unidos. Aí, a segunda opção seria, claro, o

único país civilizado da América do Sul, a Argen-

tina. Esta era a fama da Argentina na época, a de

um país próspero. Além do mais, todo mundo já

conhecia o tango. Meus pais tinham algumas in-

formações sobre a Argentina.

Mas meu pai tinha um primo-irmão que vivia no

Rio de Janeiro. Ele precisou fugir dos pais e dos

avós e se mandou, com a namorada, para um

lugar impossível chamado Brasil. Fugir para o

Brasil, na América do Sul, era um negócio com-

pletamente louco. Mas eles foram e viveram

muitos anos no Rio de Janeiro.

Um dia, ele escreveu para o meu pai, dizendo

alguma coisa mais ou menos assim: Você tem que

vir para o Brasil, não é nada do que você pensa,

aqui é muito bom, é muito bonito. É muito fácil

vir para cá porque não existe fila na imigração.

Ao contrário, eles estão chamando os imigrantes.

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Em 1928 e 29 houve uma onda de imigração de

russos para o Brasil. Claro que não era o nosso

tipo de imigrante, era gente que vinha atrás de

um emprego na lavoura. Mas as portas estavam

abertas para qualquer imigrante. Então houve

um contingente de gente de classe média vindo

para cá. Eles não eram lavradores e nem

operários, eram profissionais liberais. Então,

meus pais resolveram se aventurar pelo Brasil.

Isso era muito raro, mas eles vieram.

Papai veio na frente. Depois mandou nos chamar.

Aí viemos, mamãe e as três crianças. Sem saber a

língua, sem dinheiro, sem nada. Primeiro fomos

de trem, de Riga para Berlim, e de Berlim para

Hamburgo. Em Berlim ficamos dois dias, não sei o

motivo. Mamãe foi fazer compras, adquiriu

instrumentos novos de dentista. E nossa bagagem

era uma arca e um pouco de bolsas de mão. Nem

tinha como levar muita coisa. Em Berlim,

passeamos um pouco. Ela quis mostrar a cidade

às crianças. Eu nunca tinha visto uma cidade como

aquela. Foi a primeira vez em Berlim na minha vida

e, imagine, tenho medo de lá até hoje.

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De Berlim seguimos para Hamburgo, onde irí-

amos embarcar no transatlântico General

Mitre, que era de propriedade da companhia

de navegação Hamburgo Americana do Sul

Companhia de Viagens a Vapor. Eu acho que o

navio estava sob o comando de três militares

sul-americanos, todos da Argentina. Viemos de

terceira classe, com bagagem e tudo. Pela ma-

nhã, nós saíamos para ficar no segundo deque.

Eu e meus irmãos. Meu irmãozinho de um ano

estava começando a andar. Um dia, o capitão

do navio passou lá para ver como estavam as

coisas e viu aquela senhora loirinha com as

criancinhas. Aquela senhora que não tinha cara

de operária, não tinha cara de lavradora e ain-

da falava alemão. Claro que ele perguntou

quem nós éramos. Aí mamãe contou nossa his-

tória para ele, falando em alemão. Ele, então,

disse que nós não iríamos mais ficar na tercei-

ra classe, que ele nos mudaria de lugar no na-

vio. Fomos transferidos para uma cabine de

oficial, um quartinho com janela redonda, en-

tão estávamos bem instalados. Não estávamos

mais em armários de terceira desgraça.

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No navio ainda havia uma classe inferior à nossa,

que era um porão habitado, um navio negreiro.

Viajavam ali alguns imigrantes paupérrimos, que

iam não sei para onde, deviam estar fugindo de

alguma coisa. No navio havia um salão comprido

reservado para o almoço. Todos comiam lá. E

aquele lugar era o paraíso, sabe por quê? Porque

havia bananas! Em cima da mesa! Banana nós

só víamos uma vez por ano, e uma banana só.

Meu pai comprava banana muito de vez em

quando, porque era uma coisa muito cara. Então

ele trazia uma e a gente dividia, eu e o meu irmão

do meio, porque o pequenininho ainda mamava.

Então a gente dividia aquela única banana.

Na minha imaginação, a banana aparecia em

uma árvore grande, com dez metros de altura,

e cada árvore dava apenas uma banana. Aí,

quando eu via em cima da mesa um cacho de

bananas, uma coisa assim, era extraordinário, a

gente queria avançar. E os terceiro-classistas

realmente avançavam nas bananas, que era só

para ser sobremesa, mas eles comiam todas as

bananas antes das refeições. Era uma briga.

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Em 1931, com os irmãos

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Em 1931, com a mãe e os irmãos

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Capítulo IV

Um paraíso de bananas

Para uma criança, aquela viagem não foi

entediante, ao contrário, foi interessantíssima.

Imagina, o deque, o mar, poder dar voltas... O

pôr-do-sol, o nascer do sol, coisas maravilhosas,

extraordinárias, belíssimas. O balanço do mar.

Eu não enjoava. Eu descia para comer e metade

do povo nem comparecia mais, porque estava

enjoado. Eu não, para mim era interessante

demais para ficar enjoando, não podia perder

tempo enjoando. E, voltando às bananas, meu

primeiro amor brasileiro foram as bananas

mesmo, porque quando o navio chegou ao Rio

de Janeiro, eu olhei para baixo e eis que estava

ali um cacho de bananas, da minha altura, uma

coisa assim. Aí eu disse, isso é a Cocanha. Sabe o

que é a Cocanha? É um país lendário, medieval.

Onde os frangos assados entram pela boca dos

moradores. Era coisa de conto de fadas. Parecia

o país mais rico do mundo. Eram tantas bananas

assim, largadas ali no meio do porto. Foi

extraordinário. E eu amo banana até hoje.

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Aliás, eu acho que alguma coisa estava errada,

porque não era maçã que estava no Paraíso, não,

era banana mesmo. Até porque a maçã não era

a fruta daquela região, onde ficava o Éden e tal.

Ah, pensei que era o paraíso e pronto.

Durante a viagem, eu tinha idéia de que havia

um país tropical à minha espera. Eu lia muito

em alemão, tinha visto livros que não acaba-

vam mais. Tinha lido que nos países tropicais

as cobras andavam pelas ruas, isso quando ha-

via ruas, além de macacos e feras, enfim, uma

concepção completamente torta. E do Brasil eu

nunca tinha ouvido falar. Aliás, tinha, sim: ha-

via uma cançoneta popular que dizia Quando

chegar o cruzador brasileiro, Brasil antes que

cresça, o capitão vai lhes contar das gueixas,

gueixas, a cínica dança africana.... Era uma mis-

tura de várias lendas, vários ritos numa única

canção. Era uma canção que falava de um cru-

zador brasileiro. Mas também falava de gueixas

e da tal cínica dança africana. Nunca vi uma

mistura mais exótica.

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Esta foi minha primeira referência sobre o país,

ao lado de uma outra. Meu pai colecionava

moedas e selos, ele tinha um selo do Brasil, que

eu tinha visto. Acho que era uma imagem da

cidade de Santos, com alguém carregando um

saco de café, uma coisa assim. Mas eu não fazia

muita idéia do que era aquilo. Eu lia mais livros

americanos, sobre os Estados Unidos.

Quando o navio parou fora da baía, no Rio de

Janeiro, dava para ver a cidade, um negócio

esplendoroso, aqueles morros, aquelas praias, que

a gente via de longe... Um colar de pérolas

formado pela iluminação da praia. De noite,

aqueles globos pareciam mesmo um colar de

pérolas. Foi uma coisa deslumbrante. E ficamos

vários dias no Rio de Janeiro. Como lá ainda era a

capital do País, os passageiros aproveitavam a

escala do navio para colocar em ordem a papelada

sobre vistos de trabalho e permanência no país.

Nós ficamos hospedados em uma pensão no bairro

de Laranjeiras, que se chamava Pensão Laranjeiras

mesmo, era encostada no morro.

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Meu pai e minha mãe precisavam sair a toda hora

para resolver coisas e eu ficava sozinha, tomando

conta dos meus irmãozinhos, o que foi muito

emocionante. Houve momentos, assim,

dramáticos, quando aparecia uma barata, por

exemplo. Eu nunca tinha visto barata. Eu conhecia

as baratinhas minúsculas, de mar. Nunca tinha visto

barata tropical, era um monstro, eu quase morria

de medo. Hoje eu rio disso, mas na época, chorei

muito. Nestes dias no Rio de Janeiro não houve

tempo de fazer turismo. Nós, crianças, não

fazíamos nada na cidade. Laranjeiras era um bairro

arborizado, mas não dava para ver o famoso Rio

das belas praias. Turismo só fizemos bem mais

tarde. Mas em São Paulo, assim que chegamos,

viramos turistas.

Em São Paulo nós desembarcamos na Estação

da Luz, depois de subir a serra de trem. Foi uma

viagem emocionante: a beleza da Serra do Mar,

todos aqueles túneis, aquele trem soltando

fumaça e ainda sendo puxado por cabos de

aço. São Paulo era um outro mundo. Saímos

da estação e pegamos um táxi. Eu nunca tinha

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entrado num automóvel. Eu só tinha andado

de ônibus, quando tinha dois anos e meio, para

atravessar a ponte em Riga. E disso eu não es-

queci nunca mais, eu tenho uma memória fan-

tástica. Quer dizer, minha primeira memória

mesmo é essa.

Ao sair da Estação da Luz, eu estranhei aquelas

casas muito baixas, que havia do outro lado da

rua. Eu nunca tinha visto casas daquele tipo. E

em algum lugar havia uma placa grande, onde

estava escrito Trololó. Pensei: o que significa

isso? Não entendi o que era aquilo, uma casa

trololó. Até hoje um mistério. A estação era

muito bonita, excelente. Muito maior do que

as que eu tinha visto. Aí fomos para a cidade,

com nossas malas e tudo. Passamos por vários

pontos de São Paulo, papai fez questão de

mostrar o que era esta cidade. Ele havia

chegado três meses antes e estava morando

numa pensão. Aí, antes de irmos para a pensão,

passamos por vários lugares lindíssimos. Eram

demais. A praça Ramos de Azevedo, o Teatro

Municipal, o Viaduto do Chá, o prédio da Light

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iluminado por todos os lados. Era todo bran-

co. E tinha um holofote, era tudo muito

impressionante e muito bonito.

A pensão ficava na rua Jaguaribe. Usei o nome

da rua para batizar o livro sobre a segunda fase

da minha infância, dos dez aos 13 anos: Da Rua

dos Navios à Rua Jaguaribe. Moramos em três

locais diferentes nesta rua. Primeiro na pensão,

que na minha saudosa memória era muito

desagradável. Depois, num sobradinho quase na

frente da Santa Casa e, por último, em uma casa

mais confortável, na esquina da rua Aureliano

Coutinho. O sobradinho ainda existe, não sei

como ainda não o derrubaram. Ali funcionou o

primeiro consultório da minha mãe. Meus pais

e os dois filhos homens dormiam no quarto

maior, o quarto menor minha mãe sublocou

para três jovens imigrantes, enquanto eu dor-

mia em cima da arca que trouxe nossa bagagem,

em um canto da sala, atrás de uma espécie de

biombo que separava este meu dormitório do

consultório de mamãe. Enfim, era uma casa com

consultório num lugar civilizado.

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Capítulo V

Herr Tabor perdido na selva

Não havia muitas mulheres dentistas no início

dos anos 30, o que contou a favor dela foi a

experiência. Ela se formou muito jovem. Co-

meçou a ter clientes logo de cara. Uma boa parte

da clientela era formada por gente da Santa

Casa. Eram médicos, enfermeiras e freiras que

começaram a se tratar com ela.

Desde que viemos para o Brasil e fixamos

residência em São Paulo, eu nunca mais me mudei

de cidade. Para ser sincera, nunca sequer imaginei

como seria a vida em outro lugar que não São

Paulo. Costumo dizer que passei aqui 17% dos 450

anos da cidade. Nós moramos em três casas na

Rua Jaguaribe, depois em três na Rua Pará, depois

na Rua Itacolomy e, dali para frente, nesta casa

da Rua Itaguaçu, onde vivo há mais de 50 anos.

Não tive problemas sérios para aprender o por-

tuguês pois, quando cheguei, eu falava três idi-

omas e meio – russo, alemão, latão e iídiche,

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que era a língua falada pelos meus avós. E é

fato que as crianças aprendem uma língua nova

com muito mais facilidade que os adultos. Cri-

ança não tem medo de língua, não tem blo-

queio. E quando se dominam três idiomas, é

fácil perceber que existem palavras parecidas,

ou construções comuns, em todos eles. Há pa-

lavras que vieram do latim, há aquelas que tra-

zem uma combinação de alemão com inglês. É

tudo uma salada. E o português carrega um

pouco de tudo. Criança aprende, tira de letra,

não estuda, absorve. E na Rua Jaguaribe eu

absorvi um bom pedaço.

A primeira escola em que estudamos aqui foi uma

escola alemã, a Olinda Schule, porque meus pais

acharam que seria mais fácil nossa adaptação se

fôssemos estudar uma língua conhecida. Na épo-

ca, esta escola alemã funcionava na antiga Rua

Olinda, nas imediações da Praça Roosevelt. Mas

nem chegamos a esquentar os bancos: menos de

três meses depois nós caímos fora. Lá os

professores batiam nas crianças. Batiam mesmo,

davam tapa na cara, principalmente nos meninos.

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E eu ali, com meu irmãozinho, que tinha sete anos

e meio. Eu tirava tudo aquilo de letra. Como eu

havia freqüentado uma escola alemã em Riga, eu

lia e escrevia muito bem. Eu era boa aluna sem ser

boa aluna, porque era fácil demais. Eu tinha no-

tas boas sem fazer sacrifício. Para o meu irmão,

no entanto, não era assim tão fácil, ele estava em

outra sala, em outra classe. Eu não podia

acompanhá-lo de perto. Havia um professor que

gostava muito de mim, era um professor simpático

chamado Herr Tabor, um alemão que falava

português muito bem. Ele se perdeu na África,

tirou férias para fazer um safári, eu acho, e nunca

mais voltou. Desapareceu.

Meu irmão estava começando a aprender o idio-

ma e tinha certa dificuldade. A gente se encon-

trava na hora do recreio e, uma vez, ele apare-

ceu chorando, dizendo que a professora havia

batido nele. Depois, eu vi quando bateram nele.

Os professores chamavam para a frente da sala

os alunos que tinham cometido algum pecado

mortal e papapá, davam umas boas bolachas. E

sempre na cara. Eu ficava horrorizada.

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Só que a moda pegou, e no recreio os alunos

maiores batiam nos menores, os meninos bati-

am nas meninas, era um horror. E já havia aque-

le cheiro de nazismo, de anti-semitismo no ar.

Mas quando o meu irmãozinho chegou para

mim e disse a professora me bateu, meu sangue

subiu. Eu nem perguntei o motivo, porque não

tinha que perguntar o motivo. Isso era uma coi-

sa que não entrava na minha cabeça. Ah, por-

que era para escrever com tinta e eu escrevi com

lápis, ele me revelou. Está bem, eu disse. Vamos

pegar nossas malas e nossas coisas. Não estuda-

mos mais aqui. E nunca mais voltamos.

Nisso eu tinha 11 anos. Chegamos em casa e

contamos para os meus pais. Eles ficaram

horrorizados. Claro, no dia seguinte não fomos

mais. Acabou aquela escola alemã. Então eles

nos matricularam no Mackenzie, escola

americana. E lá era o paraíso. Lá era uma

maravilha, um ambiente muito bom,

democrático, fraternal, cordial. Eram classes

mistas, graças a Deus.

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A alfabetização se dava em português, com au-

las de inglês algumas vezes por semana. Eu en-

trei no quarto ano primário. Por um lado, eu

estava adiantada, pois tinha visto grande par-

te das matérias, mas eu não sabia o português

e nem história do Brasil. Os professores incen-

tivavam muito a leitura. Ter que ler, para mim,

imagina. Era só o que eu queria na vida. Então

eu lia fluentemente, mesmo entendendo uma

parte e não entendendo outra, mas lia com

muita fluência. E meus coleguinhas, além de

mais novos do que eu, eram muito crus em lei-

tura. Eu, embora aos trancos e barrancos, lia.

Só que lia do meu jeito, com sotaque. E não

sabendo muitas palavras. Uma vez, aconteceu

de eu ler uma palavra simples, um texto sim-

ples, mas eu li errado porque não sabia o signi-

ficado daquela palavra. Acabei de ler a frase e

perguntei para a professora o que que era aqui-

lo?. Ela olhou e disse telhado. E a classe toda

quá-quá-quá. Essa gringa aí, pensa que sabe al-

guma coisa? Quer ler depressa e não sabe o que

é telhado?. Quá-quá-quá. Pegaram no meu pé,

por vários dias seguidos.

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Está bem, vocês vão ver com quantos paus se faz

uma canoa. Bem, não era essa a expressão que eu

usei, porque eu não a conhecia. Eu vou mostrar

para vocês. No boletim seguinte eu era a primeira

aluna da classe em tudo! Lia furiosamente.

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Capítulo VI

Meu amiguinho Paulo Autran

Eu tinha poucos meses de Brasil, mas falava,

falava na rua, falava na escola, falava de algum

jeito, mas falava. E lia. Lia, lia, lia. Uma das

primeiras coisas que fiz quando comecei a

estudar na escola americana foi correr para a

biblioteca, um prédio de três andares. Biblioteca

George Alexander. Fui correndo para lá, entrei

naquela sala grande, procurei a maior estante e

comecei a mexer. Mexi, mexi, mexi, escolhi um

livro. Não sabia muito bem o que era, mas me

pareceu interessante. E fui mostrar para a

bibliotecária. E ela disse hã, hã, isso não é pra

você. Como não é pra mim, isso não é biblioteca

circulante?. É, respondeu ela, mas não é para

você. Como? Não é para menina, ela me explicou.

Aí eu já fiquei espantada. Por que para menina?

Existe livro para menina e para menino? Não é

isso, é que este livro não serve para você. Mas

por quê?. Porque é impróprio, ela continuou. O

que é impróprio? Por que existe o impróprio?

Ela disse não importa, não é para você.

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Você pode retirar livros daquela estante ali.

Daquela estante você pode escolher o que qui-

ser. Aí eu escolhi. Era uma estante que não era

imprópria, que não era de meninas, sei lá o que

era aquilo. Livros de capa cor de rosa. Escolhi

pelo título, peguei dois e levei para casa. Li e

odiei. Eram uns negócios melados. Umas coisas

bobas. Pelo menos eu achei que era. E um me

deixou intrigada a partir do nome da autora.

Por que o escritor pode se chamar Madame? Era

Madame Delly. Eu me queixei para o meu pai.

Ele disse deixa. Sentou e escreveu um bilhetinho

em português castiço, perfeito para a

bibliotecária: Minha filha Tatiana está

autorizada a retirar da biblioteca o livro que ela

quiser. Levei aquilo gloriosamente para a

biblioteca. Mostraram para a diretora, foi um

escândalo, mas, em última instância, meu pai

tinha pátrio poder, ninguém podia se meter. Os

livros que eu queria ler eram livros de aventura,

de Júlio Verne, livros de caubói. Livros de

meninos que eles julgavam impróprios para

meninas, sei lá.

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A proibição era uma bobagem. Eu queria ler li-

vros de bons autores, autores brasileiros tam-

bém. Aí eu pegava os livros, ficava com eles uma

semana e quem fazia uso da minha biblioteca

era um menino chamado Paulo Autran. Isso por-

que a irmã dele, Gilberta, era minha colega de

banco na escola americana. Éramos muito ami-

gos. E ela tinha a minha idade, o Paulo tinha a

idade do meu irmão do meio. E ela, que sabia

tocar violão, levava o irmãozinho para a minha

casa, onde inventamos de fazer teatro, brincar

de teatro. O palco era a garagem, que ficava do

lado de fora, com os trapos, os panos. A gente

punha as cadeiras do lado de fora, convidava as

pessoas, os pais, os vizinhos.

Estas sessões ocorriam na casa da Rua Jaguaribe.

Era geminada, mas tinha uma entrada grande,

no fundo, com a garagem onde encenávamos

as pecinhas. E meu pai, que era aquela pessoa

que gostava de teatro, e gostava de criança, e

sabia tudo, nos ajudava, nos dirigia, nos

orientava. O Paulo Autran, ou Paulinho, deixa-

va claro naquela época que havia nascido ator.

Isso acontece, é uma vocação mesmo.

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Enfim, a gente inventava coisas, nossos irmãos

participavam. Ficamos alguns anos fazendo tea-

tro lá, até que o pai da Gilberta e do Paulo, que

era um delegado simpático e muito culto, resol-

veu nos ajudar. Um dia ele arranjou um alvará

permitindo que a gente se apresentasse no audi-

tório de um clube escandinavo que funcionava

onde hoje é o Teatro Cultura Artística.

Fizemos um espetáculo lá, com convite e tudo. E,

depois disso, nunca mais paramos. Eu e o Júlio

Gouveia, psiquiatra, terapeuta e educador com

quem eu viria a me casar mais tarde, sempre fomos

muito teatreiros. Íamos até Buenos Aires só para

ver teatro, meu pai incentiva essas viagens. Depois

desta apresentação no clube escandinavo, ficamos

ligados ao teatro pelo resto da vida.

Minha experiência nos palcos, de verdade, teve

início em 1948, quando eu, o Júlio, então meu

marido, e nosso grupo começamos a fazer tea-

tro para a prefeitura de São Paulo. Começou

como uma brincadeira. Naquele ano, inventa-

mos de fazer um teatrinho para comemorar o

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aniversário de sete anos da filha de uns conhe-

cidos nossos. A família tinha uma casa imensa,

com uma sala muito espaçosa e um praticável

na frente da lareira, que ficava ao fundo. Trans-

formamos aquele praticável em um palquinho.

O Júlio, então, mais que depressa, escreveu um

ato, uma cena de uns 20 minutos baseada na

história do Peter Pan. E nós mesmos interpreta-

mos. Eu fazia uma mãe, o meu irmão também

fazia alguma coisa, mas não me lembro o quê...

Eu conservo até hoje o convite desta brincadei-

ra, sei que está guardado em algum lugar. Esta-

vam presentes naquele aniversário algumas se-

nhoras de uma sociedade de leitura, alguma so-

ciedade beneficente cultural. Elas gostaram

muito daquela brincadeira e vieram pedir para

o Júlio aumentar a cena. Por que você não cres-

ce isso para uma hora e a gente faz no Teatro

Municipal? A prefeitura pode ceder o teatro e

a gente se encarrega de vender os ingressos, elas

disseram. Nós fazemos uma festa, lotamos o

teatro, vocês se encarregam do espetáculo e ain-

da conseguimos arrecadar algum dinheiro para

a nossa sociedade de leitura.

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Com Júlio Gouveia

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Foi o incentivo que o Júlio precisava para au-

mentar a peça. Chamamos alguns conhecidos

que também gostavam de teatro amador e

estreamos estrondosamente. Claro que aquelas

senhoras conseguiram lotar o teatro,

convidaram centenas de outras senhoras que

vieram apinhadas de crianças. A apresentação

durou quase uma hora. A irmã do Paulo Autran

ficou com o papel da mãe do Peter Pan, o Clóvis

Garcia fez o pai. As crianças da peça, os garotos

perdidos, foram interpretadas pelos nossos

filhos e também por um garoto hiperativo que

mais tarde iria se tornar um dos grandes críticos

de teatro do Brasil, o Alberto Guzik. O Peter Pan

propriamente dito foi feito pela Haydée

Bittencourt, que era mocinha e fazia teatro com

certa experiência. Nosso cenógrafo foi o

Ruggero Jacobi, que se referia a mim e ao Júlio

como os Tatianas.

O prefeito de São Paulo na época assistiu a esta

apresentação e nos procurou após o espetáculo,

pedindo para que fizéssemos outra sessão em

breve, assim ele poderia trazer os netos.

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E aí, puft, fizemos mais uma vez o espetáculo,

as senhoras conseguiram lotar o Municipal de

novo. Imediatamente a prefeitura nos convidou

a fazer teatro infantil regularmente, nos fins de

semana. A prefeitura se encarregou de conse-

guir espaço, infra-estrutura e até um cachezinho

para o sanduíche. De nossa parte, teríamos a

obrigação de fazer um espetáculo infantil gra-

tuito para a criançada de São Paulo. Cada sema-

na no teatro de um bairro. A idéia era fazer uma

turnê pela cidade. A estréia do projeto seria no

Municipal, com direito à utilização dos maqui-

nistas e até do guarda-roupa do teatro, que era

riquíssimo, utilizado nas óperas. Havia algumas

maravilhas dentro daquele guarda-roupa. E a

gente só tinha que preparar e mostrar.

A prefeitura conseguiu até um serviço de ônibus

para transportar a garotada. Durante a semana,

um carro de som visitava o bairro, anunciando

que tal dia haveria um espetáculo infantil de

graça. Os ingressos eram numerados, não havia

nenhuma bagunça.

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Foi uma experiência muito boa porque inúme-

ras crianças iam ao espetáculo acompanhadas

de um monitor, sem os pais por perto para atra-

palhar. Pais atrapalham muito em teatro infan-

til. Ou sentam na frente da criança, que não

enxerga nada, ou ficam mandando calar a boca,

mandando bater palma. Perturbam e inibem as

crianças. Ao passo que um teatro lotado de

crianças, com um monitor só em volta, é o melhor

público do mundo, o mais espontâneo, o mais

verdadeiro. Então este período serviu como uma

escola. Esta turnê paulistana se estendeu por

todos os fins de semana durante quase três anos,

adquirimos uma prática muito grande. Começou

em 48 e quando apareceu a televisão, em 50, 51,

nós estávamos craques.

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Capítulo VII

Tudo em cima da hora. Tudo ao vivo

A televisão começou usando o pessoal que vinha

do rádio. Todo mundo na televisão era gente de

rádio, que sabia falar, que sabia fazer teatro,

cantava, era gente boa. Mas fazer teatro de corpo

inteiro eles não sabiam fazer. Eles ligavam o

microfone e colocavam as pessoas na frente,

lendo. Um dia, uma equipe da TV procurou o nosso

grupo de teatro com a seguinte proposta: Nós

queremos que o grupo de vocês faça um

espetáculo na televisão. Vocês só têm de ir até o

estúdio e nos informar das coisas de que vocês

precisam, cenografia, iluminação, tudo que for

necessário para fazer o programa. Vocês só têm

de trazer a peça e nos dizer o que precisa ser feito.

A gente transmite. Isso aconteceu no primeiro ano

de operação da televisão no Brasil, em 1950. Havia

chegado o fim do ano e eles se deram conta de

que não havia nada programado para as crianças.

Por mais difícil que seja de acreditar, não houve

esforço algum. Eles pegaram o nosso grupo,

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levaram para o estúdio e transmitiram o nosso

teatro. Tivemos esta nossa primeira experiência

televisiva na TV Paulista, uma emissora

experimental, cujos estúdios ficavam na Avenida

Paulista. O diretor-artístico da emissora era o

Ruggero Jacobi. Foi ele quem nos tranqüilizou,

dizendo assim: Vocês, que fazem teatro, façam

uma cenazinha, para a gente experimentar como

funciona. Novamente o Júlio nos salvou: ele

escolheu dois textos do Sítio do Picapau Amarelo,

A Pílula Falante e O Casamento da Emília para

esta apresentação. Naquela época, o Júlio já

respondia pela direção do Teatro Amador do

Sesc, cujo primeiro diretor foi o Décio de

Almeida Prado. O Júlio foi convidado para

assumir este cargo em razão de um trabalho an-

terior que ele havia feito no TBC, ao lado do

Paulo Autran. Foi um tempo em que as coisas

aconteceram muito rapidamente, de maneira

atabalhoada. Logo após esta passagem pela TV

Paulista, recebemos o convite para levar nosso

espetáculo para a TV Tupi onde, assim que

terminou a apresentação do nosso primeiro

programa, o público começou a telefonar para

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elogiar. Eles estavam maravilhados, tudo era

novidade. E surgiram muitos patrocinadores

querendo anunciar.

O convite da TV Tupi era para que fizéssemos

um programa semanal. Como ainda estávamos

tocando o projeto da prefeitura de levar teatro

infantil para os bairros, o Júlio foi cauteloso. Ele

veio conversar comigo, queria saber como a

gente faria, assim de repente, para criar um

programa de televisão. Eu disse: Olha, Júlio,

acho que a gente pode fazer fábulas. Você tem

atores bons lá no Sesc, não tem? Você dirige

bem. A gente faz uma coisa simples. Fábulas,

histórias brasileiras, fábulas russas. Pode deixar

que eu escrevo. Eu faço um textinho e você

dirige. Chamamos o programa de Fábulas

Animadas. E lá fomos nós para a TV Tupi, com

nossas fábulas animadas, uma vez por semana.

A cada semana uma fabulinha que eu escrevia. O

programa, ao vivo, era transmitido de manhã. E

foi muito bem recebido. O público telefonava,

pedia mais. Não havia programas específicos para

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crianças. A emissora tinha lá os programas de

auditório com crianças, alguém fazendo alguma

coisa, um barulho, um misterinho. Mas

programa voltado só para criança não havia.

Então a emissora chamou o Júlio de novo e disse:

Agora queremos um programa semanal

brasileiro, com temática brasileira. E aí o Júlio

respondeu. Então tem de ser Monteiro Lobato.

O Lobato a gente conhecia pessoalmente, mas

antes de existir a televisão. A idéia do Júlio era

usar os mesmos atores das Fábulas, e seguir adi-

ante agora com as histórias de Monteiro Lobato.

Mas aí você vai escrever para mim, ele pediu. E

eu disse: Ah, eu não sei. E ele retrucou: Não sabe,

mas vai ficar sabendo. Já viu como é que funci-

ona, você faz, eu sei que você faz. Claro que eu

fiz. E aí foi um Monteiro Lobato por semana

durante pouco mais de 13 anos, sem interrup-

ção. De 1952 até 1965.

Durante todo este tempo, o Júlio não quis

assinar contrato com a televisão, da mesma

forma que não havia assinado com a prefeitura

para levar o teatro infantil aos bairros da capital.

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Ele queria ter liberdade total de criação. Eu faço

as coisas do jeito que eu acho que têm de ser

feitas, a Tatiana escreve do jeito que acha que

deve ser, a gente se entende. Eu sou psicólogo,

sou educador, eu sei o que eu quero. E eu não

quero que ninguém meta a colher torta no que

eu faço. Maaaas, o patrocinador..., diziam os

chefes da emissora. Eu não quero patrocinador

dando palpite, ele respondia. Maaas, a editora,

a emissora.... Nem a emissora dando palpite.

Tenho carta branca, eu faço do jeito que eu faço,

ou no dia seguinte eu não venho. E assim foi:

quase três anos sem contrato na prefeitura e

mais de 13 na televisão, só na palavra.

Treze anos sem contrato e fazendo tudo em cima

da hora, tudo ao vivo. Era um trabalho insano.

Porque logo depois a emissora quis mais

programas. Eles substituíram o nome Fábulas

Animadas por Sítio do Pica-pau Amarelo e

criaram novas atrações. Aí comecei a escrever

ainda mais. Mas não me preocupei, afinal eu

tinha tanto material, li tanta coisa, tinha tanto

livro em casa. Eu me lembrava de tantas coisas e

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tinha acesso a tantas histórias em outros idio-

mas, que a falta de assunto não seria um pro-

blema. Decidimos fazer romances em capítulos,

o que hoje chamam de minissérie. Na época não

existia este nome. Cada capítulo caminhava sem-

pre para a frente. Não era novela que tem

flashback, que fica marcando passo. Também

não era como agora, quando as novelas têm

quase 200 capítulos.

Nossas histórias tinham, em média, 60 capítulos.

E, como eram semanais, chegavam a ter mais de

um ano de duração. E lá fui eu, me meter a

escrever capítulos! Eu escrevi 12 minisséries de

quase 60 capítulos – algumas tiveram só 50. Então

eu era responsável pela redação de dois progra-

mas, o Sítio e os romances televisionados. Em

seguida, e emissora teve a idéia de colocar no

ar um novo programa, um teatro mais

crescidinho, que passou a ser transmitido aos

domingos. Os outros dois eram apresentados

durante a semana. O Sítio ocupava o horário

nobre. Este novo programa dominical recebeu,

no início, o nome de Era uma Vez.

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Eram apresentados contos fantásticos, históri-

as de fadas. Tinha mais ou menos uma hora e

meia de duração, ao vivo, é claro.

Depois de alguns meses o público começou a

reclamar, porque o programa era transmitido às

dez da manhã do domingo, e as crianças e jovens

não queriam mais ir à missa: preferiam ficar em

casa, vendo televisão. O público exigiu que o

programa fosse transferido para o período da

tarde, e assim foi feito. O nome do programa

mudou para Teatro da Juventude, teve seu tempo

de duração ampliado e deixou de ser

infantilzinho. Não era proibido para criança, nem

para adulto. Eram bons romances, boas histórias

russas e contos, uma liberdade total. E funcionou

muito bem. Os patrocinadores se revezavam na

Tupi. Um patrocínio durava de dois a três anos.

Quando acabava um patrocínio, era preciso

colocar outro patrocinador no lugar. E o Júlio não

aceitava qualquer patrocinador. Tinha isso. Eu

não vou fazer propaganda de um produto que

não é bom para criança. Além disso, ele não

queria interrupção, intervalo comercial, nada

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disso. No começo do programa, o locutor dizia

assim: Chocolate Lacta apresenta e no fim

Chocolate Lacta apresentou. Mas nada durante.

Havia só uma interrupção, que fazia parte do

próprio programa. Era a chamada Hora do

Lanche. A tia Anastácia fazia bolinho de chuva,

era uma espécie de intervalo, mas sem

propaganda. Era a hora da merenda, nem era a

hora do lanche, que é uma palavra estrangeira.

A Dona Benta chamava as crianças, onde quer

que elas estivessem, no país das fábulas, na Lua,

onde for. Aí elas voltavam. Já pra casa, pessoal,

hora da merenda, ela dizia. E todo mundo

blublublu, aparecia para comer pipoca, bolinho

de chuva, era o intervalo. Mas não era intervalo

para fazer propaganda, era um intervalo que

fazia parte do contexto do programa.

Sem saber que iríamos provocar uma revolução

no mercado publicitário, nós implantamos uma

prática que hoje todo mundo conhece –

merchandising. Esta palavra nem existia, e se

existia eu não conhecia. Apareceu um

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patrocinador que produzia uma bebida maltada

que se chamava Completo Puritas. Era leite com

chocolate, uma bebida maltada boa, que o Júlio

aceitou como patrocinador. Eu tive a idéia de

colocar Completo Puritas em um copo com

canudinho na hora da merenda, para ver quem

bebia mais depressa. De brincadeira. Então eles

vinham e tomavam tuuuudo. Foi o sucesso!

Tamanho sucesso que depois de seis meses nós

perdemos o patrocínio: o fabricante não dava mais

conta de atender a demanda. Foi demais, eles não

estavam preparados. Aí tivemos grandes

patrocinadores. O Tio Candinho, que era muito

amigo do Monteiro Lobato, o Biotônico Fontoura,

os chocolates Lacta, os biscoitos Duchen.

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Em 1980, com Júlio Gouveia

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Capítulo VIII

Um herói para São Paulo: Emílio Ribas

Nesta época eu escrevia quatro teleteatros ao

vivo por semana: o Sítio do Pica-pau Amarelo,

que passava duas vezes, os romances em

capítulos e o teatrão de uma hora ou mais, que

era exibido aos domingos. E eram histórias que

tinham obrigatoriamente de caminhar para a

frente, pois não havia gravações e nem

flashbacks. A história não voltava e nem parava.

O elenco era composto pelos atores do nosso

grupo, que se chamava TESP, Teatro Escola de

São Paulo. Havia alguns atores remanescentes

do Teatro Amador do Sesc, que o Júlio dirigia,

entre eles a Lúcia Lambertini, que fazia a Emília.

O restante do elenco era completado pelos

nossos amigos, todos amadores. Engenheiros,

estudantes, professores, pais de família. Uma

gente que não era ator, que vivia de outras

coisas, mas ficava à disposição, ficava sem fim

de semana, porque havia os ensaios.

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Tínhamos de decorar tudo muito rapidamente,

não havia a figura do ponto. O que havia era

meu irmão, que se arrastava que nem uma

lagartixa no chão, com os cartazes dando a

deixa, para o caso de algum ator esquecer a fala.

Estávamos todos preparados para um

imprevisto, porque nada era improvisado.

Diziam muito por aí que televisão era

improvisada. A nossa não era. Eram textos

teatrais muuuito bem decorados, e muuuito bem

ensaiados. Com todo o tempo de ensaio, com

trabalho intensivo. Até porque havia uma

responsabilidade literária.

Em 1954, durante as comemorações do IV

Centenário de São Paulo, a Tupi, que alcançava

algumas cidades do interior paulista mas não era

captada no Rio de Janeiro, resolveu fazer um

mês de festa. A emissora decidiu que o

programa-símbolo das comemorações seria o

nosso teatro dos domingos, que durava cerca

de uma hora e meia. Nós teríamos de

representar São Paulo, pois a emissora queria

uma peça histórica que simbolizasse a vida de

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um herói paulistano. E ninguém poderia fazer

isso senão nós. E aí o Júlio disse: E agora? Vão

querer que eu coloque no ar um bandeirante

qualquer, um truculento? Não vou querer. He-

rói de São Paulo para mim é médico. E eu disse:

É? E por que não? E que médico? Emílio Ribas,

ele respondeu. O Emílio Ribas foi o precursor

da medicina sanitária no Brasil, foi ele quem

descobriu que a febre amarela era transmitida

pelo mosquito aedes aegypti. Ninguém acredi-

tava que a doença era transmitida pelo mosqui-

to, achavam isso uma grande bobagem. E o

Emílio Ribas tanto fez que até se submeteu a

ser picado pelo mosquito para provar, foi co-

baia dele mesmo. Contraiu a febre amarela, foi

tratado e salvo. Foi ele quem começou com es-

tas campanhas de saúde pública. Mas quem fi-

cou com a fama foi o Oswaldo Cruz, que fez a

campanha da vacina no Rio de Janeiro.

O que o Emílio Ribas fez foi heróico, ele se

submeteu a uma doença que podia ser mortal.

Então o nosso herói de São Paulo foi o Emílio

Ribas. Comecei a fazer uma grande pesquisa

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sobre a vida dele. A mulher dele ainda estava

viva na época, entrevistei filhos e netos do

médico. Furiosamente escrevi um script, um ro-

teiro que deu duas horas e não sei quanto. Todo

o nosso grupo participou, mas o Júlio não quis

dar o papel do Emílio Ribas para ninguém. Eu

dirijo, mas eu também faço o papel porque eu

não confio, podem dizer uma besteira qualquer

e isso não é brincadeira.

As coisas que o Emilio Ribas falava eram aquelas

coisas, e não outras. O Emílio Ribas era um

homem moreno, parecido com o Júlio, usava

uma barba grande. Com um pouco de

maquiagem e a barba bem-feita, o Júlio ficava

parecido com ele. O que o Júlio queria era evitar

que um outro ator colocasse cacos no meio do

texto, ele queria que o diálogo seguisse

fielmente as idéias do médico. Em outras

produções os atores até colocavam cacos no

contexto, mas ali eles não cabiam. O espetáculo

foi captado por uma estação retransmissora no

Rio de Janeiro, foi a primeira vez que isso foi

feito. Então foi a glória. E foi um belo espetáculo,

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ficou muito bom. Todo mundo caprichou mui-

to. O nome do espetáculo era Emilio Ribas: Um

Herói de São Paulo.

Como o Júlio dirigia e havia muito pouco

tempo de ensaio, ele fazia uma leitura de mesa,

em que demonstrava as intenções do texto

para os atores. Nos ensaios, ele até mostrava

como fazer, vivia fazendo caras, bocas e olhos.

Ele era muito bom ator. E muito bom diretor,

sabia lidar com as pessoas, com as crianças.

Trabalhava feito louco. Durante mais de dez

anos ele se afastou do consultório para se

dedicar exclusivamente ao teatro. Nos

primeiros dois anos ele ainda conciliava o

trabalho de terapeuta com o de diretor. Depois

ele disse que não dava mais para conciliar, que

se era para fazer bem-feito, ou ele fazia uma

coisa ou outra. Não se brinca com psicologia e

com terapia e também não se brinca com teatro

e com criança, ele disse. Ele era formado em

medicina pela Universidade de São Paulo, e se

especializou em psiquiatria e psicologia.

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Foi o teatro que ensinou o Júlio a lidar tão bem

com as crianças. O teatro e os nossos dois filhos.

E também o meu irmão menor, que era quase

dez anos mais novo que eu. Praticamente, eu

fui mãe dele também. Minha mãe trabalhava, e

eu tinha de tomar conta do irmãozinho. Dava

banho, dava comida, levava para a escola. Até

tenho um caso engraçadinho que aconteceu com

ele. Na hora das refeições, eu o colocava em um

banquinho e dava de comer para ele. Ele gostava

de comer comigo, comia muito bem. Ele tinha

um companheiro invisível, o que é muito comum

no caso de crianças que passam muitas horas

sozinhas. Este amigo invisível só se dava com ele,

só ele o via e se referia a ele de vez em quando.

O nome deste amigo era Bidínsula. Uma vez eu

perguntei: ô, Benjamin, por que você inventou

um nome como este, Bidínsula? Ele respondeu:

Eu não inventei, foi ele quem me disse. E eu não

interferia naquilo, aquilo era coisa dele. Ele

falava, brincava com o Bidínsula. Mas um dia ele

não queria comer, de jeito nenhum. Eu fazia

aviãozinho, ele virava a cara, fazia trenzinho,

contava história, ele não queria.

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Uma hora ele empurrou minha mão, o mingau

voou e eu perdi a esportiva. Ah, Benjamin, come,

olha o Bidínsula aqui, como ele está comendo

bem!. E ele disse: Ele não está aí, ele está aqui. E

eu fiquei com cara de tacho. Até hoje eu não sei

se o Bidínsula estava aqui ou se o Benjamin

estava me gozando. Tenho muitas historinhas

de crianças para contar. Aprendi mais com as

crianças do que nos livros.

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Capítulo IX

Um marido embaixo da mesa

Eu estudei no Mackenzie por quase oito anos.

Meu irmão Benjamin ficou por lá muito mais tem-

po que eu. Ele entrou lá no jardim-de-infância e

saiu engenheiro. Na hora de ir para a faculdade,

escolhi Filosofia por um motivo muito prático:

porque a faculdade de Direito, que era outra

opção, ficava no Largo de São Francisco e eu ti-

nha um emprego na Rua Boa Vista, que sai no

Largo de São Bento, onde era o curso de Filoso-

fia. Ou seja, era muito mais perto. Este meu pri-

meiro emprego, na Rua Boa Vista, teve uma his-

tória engraçada. Eu saí do Mackenzie como se-

cretária bilíngüe, trilíngüe, não sei o quê. Algu-

mas firmas, especialmente as americanas, colo-

cavam anúncios lá procurando funcionários no-

vos, secretárias que falassem e escrevessem em

inglês e português. Quando eu vi um desses

anúncios, eu pensei, ah, acho que vou tentar.

Eles me chamaram para uma entrevista e lá fui

eu. Era um grande frigorífico americano. Eu fa-

lava inglês direitinho, aprendi bem inglês.

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O homem disse All right, quanto você quer? Eu,

muito sem-vergonha, e com muito medo, por-

que engenheiro recém-formado no Mackenzie

ia trabalhar na Light, ia não sei para onde, ti-

nha um emprego garantido e ganhava um bom

ordenado que era 400 mil réis ou uma coisa

assim, por mês. E eu, não querendo ser aceita,

chutei: 800!. E pensei: agora ele me empurra

escada abaixo e fico livre dessa, não quero

mesmo o emprego. E ele disse All right, pode

vir amanhã. Nunca vi tanto dinheiro na minha

vida. Era um ordenado de pai de família naque-

la época. Eu tinha acabado de sair do Mackenzie,

tinha 18, 19 anos... Eu tinha pedido aquela

quantia para ser recusada. E eles aceitaram. E lá

fui eu, tomar ditado! Taquigrafia. E escrevendo

em inglês. Não era minha praia. Porque escrever,

mesmo em inglês, sobre corpos traseiros, bife,

presunto e coisas assim... Eu achava horrível

aquilo, chato demais! O ordenado de 800 mil

réis era pago sempre em três vezes. Até que um

dia eu disse, agora chega, não agüento mais isso.

O que eu fiz? Saí na primeira vez com dinheiro

na mão e pensei agora vou me vingar do mundo!.

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Porque éramos pobres. Não pobres pobres, por-

que pobre é um estado de espírito. Éramos du-

ros. Minha mãe era dentista, meu pai sempre

tinha trabalho, mas o dinheiro era pouco. E

tanto assim, que com sapato novo eu não

podia nem sonhar. Andava com umas sandálias,

morria de inveja dos meninos do Mackenzie

que tinham sapatos bonitos e tal. Disse, agora

eu vou comprar aquele sapato!. E na Rua São

Bento existia uma sapataria que vendia os

sapatos mais caros de São Paulo. Entrei lá e

comprei o sapato mais liiindo! Fui para casa,

torrei o dinheiro todo em presentes, aquela

farra de comprar aquele sapato foi minha

vingança da vida. Duas vezes aconteceu isso,

mas eu pedi demissão depois.

No curso de filosofia do Largo de São Bento eu

conheci o Clóvis Garcia, que mais tarde passaria

a escrever sobre teatro infantil. Eu nunca tinha

pensado em fazer Filosofia. Mas aí arranjei ou-

tro emprego na Rua São Bento, no escritório de

um advogado, que não advogava coisa nenhu-

ma, era um escritório de faz-de-conta.

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Mas eu combinei com o chefão, com o advo-

gado, que aceitaria o emprego com uma

condição: a de que eu pudesse sair às 16h30

porque tinha aula na faculdade. A uns cinco

minutos dali. Ele aceitou. Agora, ele era um

cara muito esquisito, que fazia umas coisas

esquisitas. Na entrevista, ele me fez um

monte de perguntas bobas: E a sua religião?

Eu disse judia, tem alguma coisa?. Ele disse

não, não, até gosto. Se gosta, tá bom!. Então

ficou assim, fiquei um tempão lá,

praticamente sem fazer nada porque ele

queria se exibir, ele se orgulhava demais,

porque eu falava várias línguas e ele era

analfabeto de Português, desses bacharéis

que não sabem redigir nada. Ele ditava cartas

para mim, mas eram sobre cavalos e cachorros

e, sei lá, Jóquei Clube, coisas assim. Então eu

tomava nota e ele me chamava na sala dele e

me exibia para os amigos dele. De vez em

quando vinha algum amigo dele e ele dizia:

Vem cá, dona Tatiana!. E mandava: Fala

alemão com ele! Fala em inglês!. Ele achava

isso um fenômeno.

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Eu também era malcriada, quer dizer, não dei-

xava que pisassem no meu calo. Uma vez ele

estava com alguém e tocou a campainha para

mim, plim, plim. Peguei meu bloco de tomarnota e fui lá. Eu trabalhava a cinco passos dele,daqui até ali. Ele falou assim depressa, depressa,dona Tatiana. Eu disse depressa, depressa,doutor Fulano, isso o senhor faz lá com seuscachorros, comigo não. Ele pediu desculpas, nahora, na frente dos amigos. Eu disse o senhorestala os dedos com os seus cachorros, pra mim,não. Uma outra vez ele ditou uma carta em queameaçava um vizinho, porque ele tinha 17cachorros em casa, que latiam muito. O vizinhoficou impaciente e disse que ia tomar umaprovidência e matar os cachorros, sei lá o queele disse. Mas aí ele me pediu para redigir umacarta cujo sinal era se alguém tocar numcachorro meu, eu mato. Bati à máquina, ele leu,assinou, e eu disse o que eu faço agora, doutor,com essa carta? Não vou falar o nome dele, elejá morreu. E ele disse o que a senhora acha quedevo fazer com essa carta? Eu rasgaria a carta,isso não é carta que se mande para ninguém.Advogado, hein? E ficou por isso mesmo.

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A carta foi rasgada. Havia, pelo menos, umas 27

anedotas sobre este meu chefe.

Quando eu comecei a namorar o Júlio ele ainda

estava na faculdade. Como eu tinha um

emprego, nós só nos víamos à noite. Então ele

vinha me buscar para jantar, e depois íamos

namorar na Praça Buenos Aires. A gente ficava

lá em cima, no banco, namorando. Aí uma noite,

deviam ser umas 11 horas, nem era muito tarde.

Estávamos lá e de repente um guarda se plantou

na minha frente e perguntou assim: Vocês são

namorados?. E eu somos, por que, não pode?

Não, é que eu nunca vi namorados assim, vocês

só falam! Porque a gente conversava muito,

tinha muito do que falar. De teatro, de cinema,

de livro, de poesia, política. A gente falava e

falava e falava. Nem só, é claro. Mas o guarda

achou que era demais! Que era muito papo e

pouca ação.

Quando eu conto como conheci o Júlio,

ninguém acredita, acham que também é outra

anedota. Foi num casamento na Rua Itacolomy.

Eu morava numa casa e, na casa em frente, na

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esquina, tinha um palacete, uma casa muito

importante, onde viviam algumas meninas, uma

delas era minha colega de banco, na escola

americana. Pertinho, a duas quadras da escola.

E a irmã mais velha dessa moça ia se casar com

um médico, um doutor, médico importante. Eu

fui ao casamento como convidada da noiva. E

na sinagoga, na Rua Avanhandava, eu estava

lá em cima, no balcão, com a Gilberta Autran,

irmã do Paulo, olhando lá para baixo. E vimos

lá embaixo os noivos e um rapaz muito boni-

to, de chapéu. Eu disse: Olha, Gilberta, aquele

rapaz é muito bonito, mas o chapéu não é dele,

é emprestado! Ele não tem cara de usar cha-

péu. E ficou por isso mesmo. Depois, haveria

uma recepção, lá na casa da esquina, no casa-

rão importante. E lá fui eu, para a festa. Uma

festa para uns 200 convidados, grande. Era um

banquete enorme, as mesas tinham toalhas até

o chão, e mil coisas em cima da mesa, e mil

pessoas andando de um lado para o outro. E

também estava na festa um amigo meu, um

rapaz que eu conhecia do Mackmed, que era

uma competição anual entre Mackenzie e Fa-

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culdade de Medicina, como se fosse uma olim-

piadazinha, com todas as modalidades de

esporte. Eu conheci muitos estudantes de Me-

dicina por causa dessa Mackmed. Um deles era

o Alexandre, que estava na festa. Esse Alexan-

dre disse: Olha, Tatiana, eu quero te apresentar

um amigo meu, o Júlio, acho que você vai gos-

tar dele. E lá fomos procurar o Júlio, e não o

encontrávamos naquela multidão. E eu disse: Ah,

Alexandre, acho que ele já foi para casa. O Ale-

xandre retrucou: Ah, você não conhece o Júlio,

imagina se ele é bobo de perder uma boca-livre

dessas? Ele está por aqui, vamos procurar. Aí o

Alexandre teve uma iluminação: Eu acho que

sei onde procurar o Júlio! Sabe o que ele come-

çou a fazer? Levantar a toalha das mesas. Na

terceira mesa, lá estava o Júlio e era o tal rapaz

do chapéu. Estava embaixo da mesa, de pernas

cruzadas, uma garrafa de champanhe do lado

dele, com uma taça e uma travessa assim de ovos

recheados. Estava na dele, no sossego, ninguém

atrapalhava, estava bebendo e estava tão alto

que nem sei como não derrubou a mesa. O Ale-

xandre disse: Apareça, Júlio, que eu quero te

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apresentar uma amiga. E aí ele levantou a toa-

lha e apareceu a cara do Júlio. Ele era um rapaz

muito bonito. Tinha cada olho grande assim,

sobrancelhas pretas, um cabelo bonito, uma

covinha irresistível no queixo.

Uma cara linda. Com barba assim, cerrada, muito

bem escanhoada. Bonita pele. Ele pôs aquela

cara lá com os olhos meio melados e o Alexandre

disse: Tatiana, esse é o Júlio. Júlio, essa é a

Tatiana, minha amiga. O Júlio olhou assim para

mim e falou com a voz pastosa: Tatiaaaana, quer

casar comigo? Foi a primeira coisa que eu ouvi

dele, bem bebido, bem alto. Eu disse: Quero,

vamos casar! Disse brincando. Ai fui para casa e

pensei eu nunca mais vou ver esse cara bêbado

aí, tão bonito. E fui para casa dormir.

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Em sua formatura

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Capítulo X

A russa cai no samba

Passou algum tempo, eu ia para o meu emprego

e de lá para a faculdade. Uma noite, quando saí

da faculdade, estava com uma amiga na Praça

do Patriarca, a Margarita, esperando o ônibus

para voltar para casa. Eu olhei para o outro lado

e disse: Olha lá, Margarita, aquele um que o

Alexandre falou, que me pediu em casamento

de cara, ele não vai nem me reconhecer. Mas

ele reconheceu, atravessou a rua, tum, tum,

tum... E veio falar com a gente.

Depois de nos cumprimentar, ele nos convidou

para ver um filme. Eu respondi que não iria ao

cinema a três. Com seu jeito brincalhão, o Júlio

disse que resolveria o impasse no cara ou coroa.

E jogou a moeda. Eu ganhei. Assim, lá fui eu ver

um filme da Shirley Temple. No dia seguinte, ele

me enviou um ramo de flores, acompanhado de

um bilhete onde compôs um acróstico a partir

do meu nome. Até hoje eu o sei de cor:

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Trazes no peito um sonho de ventura

Amável sonho que te embala a vida

Tornado-a suave e menos malsofrida

Irmão do seu sequioso de ternura

Arde outro sonho dentro do meu peito

Não te parece assim bela medida

Amarmo-nos os dois num só proveito

Com as flores, o acróstico e aquele palmo de

queixo que ele tinha, de onde despontava um

furinho bem no meio, resistir quem há de? Seis

meses após aquela noite, estávamos casados.

Gostar de teatro, eu sempre gostei. Mas, depois

que conheci o Júlio, o teatro passou a ser o nosso

tipo de lazer predileto. Até que o lazer se

transformou em assunto sério.

Poucos meses depois do meu casamento com o

Júlio, enfrentei um dos momentos mais tristes da

minha vida. Meu pai morreu em um acidente

aéreo, no início do mês de novembro de 1940. Eu

era secretária dele, trabalhava com ele, saía com

ele. Dizem que foi o primeiro acidente com um

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avião da Vasp no Rio de Janeiro. Meu pai estava

vindo do Rio para São Paulo e nos telefonou antes

de embarcar. Daqui a uma hora vocês podem me

buscar no aeroporto, ele disse. E o avião decolou.

Mas um piloto americano, um cretino que estava

no comando de um avião pequeno, resolveu brincar

de passar por baixo do avião de passageiros em

que meu pai viajava, e houve a colisão. O avião da

Vasp caiu no mar e todos os ocupantes morreram.

Com a morte do meu pai eu soube o que era

trabalhar de verdade. Fiquei no lugar dele e virei

arrimo de família... Eu!

Na época em que morreu, meu pai era dono de

um depósito de peças de refrigeração, um

pequeno negócio dele. Mas ele também exercia

um trabalho mais rentável: era representante de

celulose para fábricas de papel. Esta celulose vinha

dos Estados Unidos, Canadá e Suécia, era um

grande negócio. Não havia fábrica de celulose aqui

naquela época. Quem fazia papel era obrigado a

importar o produto. O que ele ganhava vendendo

uma quantia ínfima de celulose era suficiente para

nos sustentar durante quatro meses.

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Mas eu era garota, tinha 20 anos. E quando pa-

pai morreu daquele jeito, deixou minha mãe, que

não estava trabalhando, meu irmão do meio

prestando vestibular no Mackenzie e meu irmão

mais novo com apenas 12 anos.

Foi uma coisa brutal, uma tragédia, um horror.

Aí, os amigos da família começaram a dizer para

minha mãe que eu tinha de procurar emprego.

Mas minha mãe disse emprego coisa nenhuma, a

Tatiana vai continuar os negócios do pai. E eu

morta de medo, deprimida, passei a visitar os

clientes de meu pai, naquele estado, daquele jeito

triste em que eu me encontrava. Eram grandes

firmas, grandes executivos que conheciam meu

pai e me receberam bem. Eles sabiam que eu

entendia das coisas que meu pai fazia, então

começaram a me ajudar. Continuaram fazendo

grandes pedidos.

Eu passei três anos em depressão. Em depressão e

tendo que trabalhar. E trabalhar mesmo. Não só

executando o que meu pai fazia, mas também a

parte burocrática, a correspondência com as

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firmas. Chorando de noite e trabalhando de dia.

O Júlio era recém-formado em Medicina e não

estava ganhando nada, estava só começando a

engatinhar. Meu irmão foi aprovado no vestibular,

mas não conseguiu se matricular no curso por causa

da situação financeira. E o pequeno, bem, ele era

pequeno. Quanto à minha mãe, a força era ela!

Sem ela a gente ia desabar. Foi impressionante

como ela resistiu a este episódio. Se viemos para o

Brasil, foi por causa dela. Foi ela quem forçou. Daria

para escrever um livro sobre minha mãe. Ela era

uma pessoa muito interessante. Pequena, um metro

e meio. Forte por dentro e forte por fora. E

engraçada. Uma fortíssima personalidade. E ela

então, dando todo o apoio moral. O Júlio nos

ajudou como podia. E no meio disso tudo nasceu

o meu primeiro filho, Ricardo, no dia 31 de

dezembro de 1942.

Quando ele estava prestes a completar um ano,

as coisas continuavam difíceis na nossa casa.

Minha mãe decidiu que eu tinha de ir aos Estados

Unidos conhecer os executivos que nós

representávamos aqui.

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Ela insistia em que eles precisavam me conhecer

pessoalmente, para assegurar a continuidade dos

negócios. Havia muitas pessoas interessadas em

entrar naquele ramo, porque era um trabalho

muito interessante. Pioneiro e compensador.

Eu e o Júlio, então, decidimos dar ouvidos aos

conselhos da minha mãe e viajamos para os

Estados Unidos em 1943, em plena guerra. Viajar

para lá não era uma tarefa fácil, estava tudo

muito complicado por causa da guerra. Ainda

mais para uma russa. Mas o Júlio era oficial da

reserva do Exército e, graças a isso, conseguiu

autorização para viajar comigo. Sozinha eu não

poderia ir. Mas ele disse que iria comigo, e

realmente foi, como oficial do Exército. Graças

a isso, conseguimos viajar, mas o avião era,

naquele tempo, uma maria-fumaça.

Foram tantas as escalas que demoramos mais de

três dias para chegar a Nova York. Paramos em

várias cidades para dormir. Em cada uma dessas

escalas havia troca de passageiros, então sempre

aparecia alguém mais importante do que nós para

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viajar, e tínhamos de ficar esperando. Quando

chegamos, Nova York estava às escuras por causa

do blecaute provocado pela guerra. Ficamos nos

Estados Unidos por um mês, porque era preciso

visitar clientes em várias cidades. Só eu conversava

com os executivos, o Júlio não falava nada de inglês.

Como já havia trabalhado como secretária bilíngüe

de uma multinacional, meu inglês era muito bom.

Mas eles estranhavam o sotaque, viviam me

perguntando de que região dos Estados Unidos

eu era. No final de 1943, quando o Ricardo estava

completando seu primeiro ano de vida, aqui em

São Paulo, eu estava em Nova York, na escuridão

de Nova York. Chorei muito também. Primeiro

aninho dele e eu longe. Um dia ele vai entender

mais das coisas e não vai mais querer saber da

gente, eu dizia para o Júlio.

Meu período de visitas de negócio nos Estados

Unidos foi proveitoso. Eles me acolheram muito

bem, e pediram para que eu continuasse com o

trabalho, para ver no que ia dar. Não perdi

nenhum cliente. Os Estados Unidos, naquele

período, estavam vivendo um clima de racio-

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namento muito rígido, não havia carne. E nós

com saudade de café e de feijão, além da carne,

é claro. Uma vez chegamos a seguir um cheiro

de café pela rua, como se fosse uma cena de

desenho animado. Eu disse para o Júlio que

estava sentindo cheiro de café de verdade, e não

daquele chá horroroso que eles servem lá. Uma

coisa que não dava para tomar. E finalmente

encontramos o tal café brasileiro.

Vários episódios engraçados ocorreram conosco

lá. Uma vez fomos a uma boate, boate mesmo,

onde começaram a tocar samba. Imagine só,

americano tocando samba naquele tempo.

Quando as pessoas começaram a dançar, o Jú-

lio olhou para mim e eu para ele... O que é isso,

ele me perguntou? Que coreografia é esta? O

Júlio decidiu, então, mostrar para eles como re-

almente se dança o samba. O Júlio sabia sambar

muito bem e eu o acompanhava direitinho. No

começo da música, os americanos ficaram nos

olhando de um jeito engraçado. Quando aca-

bou, recebemos uma salva de palma. Logo eu,

sambista. Uma russa com samba no pé.

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Outras coisas muito interessantes ocorreram du-

rante esta viagem. Uma vez, fomos visitar um

senhor iraniano, que trabalhava com tapetes

persas. Nem me lembro o motivo da visita. Só sei

que fomos procurá-lo e ele era casado com uma

mulher que devia ser um pouco mais velha do

que eu. Era um sujeito muito simpático,

encantador, que nos recebeu muito bem e fez

questão de nos levar para passear por vários

lugares muito agradáveis. E depois nos levou para

o aeroporto com o carro dele, quando

pegaríamos o avião de volta. Ele se despediu de

mim no aeroporto com um abraço. Na hora deste

abraço, ele colocou em volta do meu pescoço um

colar de pérolas. O colar eu perdi... Engraçado,

perdi muitos anos depois, a caminho do Teatro

Municipal de São Paulo. Quando cheguei no fim

da escadaria, não tinha mais o colar.

Fomos até presos em Nova York. Numa manhã,

estávamos na rua e o Júlio resolveu fotografar

todos aqueles prédios. Naquele momento, nem

passou pela nossa cabeça que o país estava em

guerra e que as fotos ao ar livre estavam proibidas.

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De repente veio um policial dizendo que não

podia fotografar. Era uma medida tomada para

evitar espionagem. Eu expliquei que nós éramos

turistas, mesmo assim fomos levados para a

delegacia. E eu fui de braço dado com aquele

soldado. Na delegacia eu expliquei que éramos

brasileiros passeando pela cidade. O Júlio era

muito bonito, eu era bonitinha. Isso deve ter

ajudado bastante. Então eles disseram que

estava tudo bem, que nós podíamos ir, desde

que não fotografássemos mais nada. Eles nos

liberaram com a máquina, mas o filme ficou com

eles. Não tinha nada lá, só imagem de prédios.

Ao lado destes momentos engraçados, houve

outros, mais tensos. Claro, nem tudo foi

divertimento naquela viagem.

A volta desta viagem foi ainda mais complicada

que a ida. Porque fomos pelo Atlântico, mas

voltamos pelo Pacífico, com aquela maria-fumaça

batendo asas, parando a todo momento. E nós

ficamos encalhados, primeiro na Colômbia, depois

em Lima, por uma semana. A cada vez que o avião

pousava, embarcavam outros passageiros mais

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prioritários que nós. Durante aquela semana em

que permanecemos em Lima, nosso dinheiro

acabou. Claro, ficamos fora do país por muito mais

tempo do que o esperado. A gente tinha dinheiro

para chegar de avião, agora uma semana aqui, três

dias acolá, o dinheiro acabou.

E não era como hoje, que você liga e alguém

deposita dinheiro na sua conta e você se vira

com um cartão de crédito. Nem havia como es-

tabelecer esta comunicação. Quando partimos

de Lima, nossa próxima escala era Buenos Aires.

Eu e o Júlio embarcamos muito nervosos, con-

versando sobre o que poderia acontecer. Se en-

calharmos em Buenos Aires, eu pensava, não sei

como vamos nos virar. Estávamos os dois muito

angustiados. No avião, eu notei a presença de

um senhor que estava sentado do outro lado

do corredor, e não parava de olhar para trás, na

minha direção. Eu era bonitinha, viu? Não era

de se jogar fora, não. Ele não parava de olhar

para trás e aquilo estava começando a me inco-

modar. Eu desviava o olhar, puxava conversa

com o Júlio.

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Até que de repente ele se levantou e veio falar

comigo em inglês. Ele falou qualquer coisa, eu

respondi qualquer coisa, ele foi muito simpático.

Devia ter uns 45 anos, para mim era um velho.

Eu estava com 22 e era bem conservada, nem me

deixavam entrar em filmes de 18 anos. Olha,

conversa vai, conversa vem, e acabei contando

para ele a nossa situação. Aí ele disse que não

precisávamos mais nos preocupar: botou a mão

no bolso e tirou um monte de notas, dinheiro

vivo. E disse : Olha, fiquem com isso aqui, eu

tenho uma tia em São Paulo e vocês devolvam

para ela quando chegarem lá. Era um pacote com

mil dólares. Muito dinheiro. Ainda mais naquele

tempo. Eu recusei, disse que não era possível

aceitar uma coisa daquelas. Mas eu percebi,

depois, que aquilo era dinheiro miúdo para ele.

Eu perguntei o que ele fazia e ele disse que era

do ramo do petróleo. Bom, para ele dinheiro não

era mesmo problema. Ele queria mandar mil

dólares para a tia, mas desse jeito? E nós

tínhamos cara de cordeirinhos, claro. Então ele

achou que podia usar os nossos serviços para

esta empreitada.

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Vocês não se preocupem, depois é só vocês le-

varem o dinheiro para ela. Parece mentira uma

história dessa, mas aconteceu comigo.

Claro que encalhamos por quatro dias em Buenos

Aires. Mas, com mil dólares no bolso, imagina.

Estava uma maravilha. Eu conhecia Buenos Aires,

mas como a situação na Argentina não estava

tão complicada como nos Estados Unidos, come-

mos bife, ficamos num hotel de primeira e fize-

mos turismo. Desembarcamos em São Paulo com

muito menos de mil dólares. Quando descemos

do avião, em Congonhas, aconteceu uma coisa

que foi uma graça. Lá estavam minha mãe e meu

irmão menor carregando meu filhinho, o Ricardo,

que tinha acabado de fazer um ano. Olhei para

aquilo lá e comecei a chorar. Ele não vai querer

me ver, ele não vai querer saber de mim, eu pen-

sava. Mas o meu irmão colocou o neném no chão

e ele saiu andando assim, sabe criancinha quan-

do começa a andar de perna aberta? Ele me re-

conheceu de longe e foi sozinho ao meu encon-

tro. Atravessou aquele espaço todo e foi até a

gente. Para mim foi muito emocionante porque

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não vi quando ele começou a andar. Ele só

engatinhava quando saí daqui.

Alguns dias depois encontramos a tia do tal

homem que colocara os dólares em nossas mãos.

Então devolvemos o dinheiro para ela. Nunca

mais ouvi falar daquele homem, ele sumiu. Foi

um acidente de percurso em nossas vidas.

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Capítulo XI

O elefante branco na Liberdade

Fiquei mais três anos naquela firma de

representação. Meu irmão começou a ajudar,

mas o grosso quem fazia era eu. Eles ajudavam

como podiam, até o Júlio encontrou um tempo

para me auxiliar. Foram três anos muito difíceis,

principalmente para mim. Financeiramente as

coisas começaram a entrar nos eixos, porque nós

conservamos todos os nossos clientes. Continuei

negociando com grandes produtores de papel.

E aquela crise de depressão passou. Meu marido

era psiquiatra, afinal de contas. Ele podia até

me receitar remédio, coisa que ele realmente

fez. Mas eu passei muito tempo chorando.

Quando eu era pequena, eu tinha os meus livros

de chorar. Eu era danada de turrona. Por ser a

mais velha, não podia dar o braço a torcer, então

eu não chorava. Minha mãe dizia que era de

ruindade. Como eu não chorava, acabava

ficando angustiada. Criança fica, não é? Criança

parece gente. Então, de vez em quando eu

precisava chorar.

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Mas não ia chorar por minha própria causa, nun-

ca. Então eu tinha os livros de chorar. Comecei

a colecionar meus livros aos quatro anos, quan-

do aprendi a ler. Antes dos quatro eu não lia,

mas meu pai lia tudo para mim. Na estante, ha-

via um lugar reservado para os meus livros de

chorar. Eram histórias tristes, boas histórias que

me emocionavam. Havia uma especialmente

triste, sobre a morte de uma ursa. Então, quan-

do eu sentia angústia e precisava chorar, pega-

va aqueles livros e chorava. Mas não era por

minha causa. Eu não me daria o luxo de chorar

por minha causa, mas por causa do livro.

Quando meu pai morreu, chorei por tudo que

não havia chorado antes. Mas depois eu mudei.

Hoje sou capaz de chorar ao ver uma novela,

mas não mais com coisas sérias. Fiquei tão

chocada com a morte do meu pai que levei um

mês para começar a chorar. Minha mãe, apesar

de ser o nosso esteio, também ficou meio

enlouquecida. Ela andava pela casa cantando,

porque cantava muito bem e meu pai gostava

quando ela cantava. Foi terrível. Uma vez pensei

em fazer um livro de crônicas sobre este período.

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Se o tivesse escrito, ele se chamaria Borrascas e

Bonanças, sobre as coisas tristes e alegres, e a

gente tem um pouco de tudo na vida. Até me dá

vontade de ainda escrever, mas talvez não para

as crianças. Se bem que minha neta, ‘que já viveu

o deserto que está maior do que eu’, me disse,

quando tinha sete anos, que livro que não dá

para rir, não dá para chorar, não dá para ter

medo, não tem graça.

Eu sei que é assim e que ela estava certa, aos sete

anos. Depois de Monteiro Lobato, a literatura

voltada para as crianças mudou muito. Antes

dele, produziam-se livros chatérrimos para as cri-

anças. Eram obras moralistas que diziam isso

pode, isso não pode e por aí. Livros chatos que

falavam mal até dos contos de fadas que, segun-

do eles, eram fortes demais e traumatizavam as

crianças. Balela. Nem as canções de ninar, como

o boi da cara preta, traumatizam as crianças. São

acalantos e as crianças dormem muito bem.

Eu tenho vontade de colocar as histórias tristes

no papel, só não fiz isso ainda porque fico

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pensando se vale realmente a pena. Algum dia

eu ainda vou fazer isso.

Algum tempo depois da morte do meu pai

apareceu em nossa casa um advogado muito

importante, vindo do Rio de Janeiro. Eu não

me recordo do nome dele, sei que era um pro-

fissional muito respeitado no Rio. Ele me dis-

se que nós poderíamos abrir um processo con-

tra a companhia aérea na qual trabalhava o

piloto do avião que passou por baixo da ae-

ronave da Vasp e provocou o acidente. Se-

gundo o advogado, havia 23 passageiros que

morreram e as famílias poderiam processar a

companhia daquele avião pequeno. Ele nos

informou que seria um processo muito com-

plicado, mas ganharíamos muito dinheiro se

vencêssemos. Meu pai tinha seguro de vida e

um outro seguro que era dado pela Vasp,

aquele que vem incluído no valor da passa-

gem. Mas o que o advogado estava nos pro-

pondo era um negócio grande. Ele havia pro-

curado os familiares dos outros passageiros

mortos. Ele sabia que o processo poderia se

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arrastar durante anos. Pela proposta, se os fa-

miliares ganhassem o processo, ele ficaria com

20% do valor das indenizações. Caso perdês-

semos, ficaria por isso mesmo – ou seja, não

teríamos de pagar nada, ele arcaria com to-

dos os custos. Até aquele momento, das 23

famílias apenas cinco tinham resolvido entrar

com o processo. Eu não tinha dinheiro para

pagar advogado algum. Mas, nas condições

que ele nos ofereceu, por que não? Achei que

não teríamos nada a perder. O processo se es-

tendeu por oito anos, mas saímos vitoriosos.

E realmente o dinheiro que chegou era gran-

de. Meu pai, coitado, cuidou de nós depois de

nos deixar. Quando chegou a indenização,

meu irmão menor já estava com 20 anos, pôde

estudar engenharia e abrir uma firma de ar-

condicionado. Então a vida mudou completa-

mente. Aquela turbulência financeira tinha

chegado ao fim.

Coincidentemente, vencemos o processo mais

ou menos na mesma época em que estávamos

começando a levar mais a sério o trabalho com o

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teatro. No início, o nosso grupo, o Tesp, ensaiava

em casa mesmo, em uma sala vaga. Mas depois a

mãe do Júlio morreu e deixou para ele, como he-

rança, um casarão na Liberdade, um verdadeiro

palacete. Era um prédio maravilhoso, com

jabuticabeiras no quintal e palmeiras imperiais na

frente. Mas estava tudo muito malconservado,

detonado mesmo. O prédio precisava de uma

reforma que custaria muito caro. E o imóvel não

podia ser vendido. Apelidamos o prédio de

elefante branco: não podia ser alugado, não

tínhamos dinheiro para uma reforma daquele

porte e, da maneira em que estava, ninguém podia

morar ali. E a taxa de imposto também era alta.

Resolvemos, então, instalar o Tesp lá. Como o

apelido do prédio era elefante branco, um amigo

nosso, o artista plástico Berto Udler, criou um

logotipo para o nosso grupo, com a imagem de

dois elefantinhos – um alegre e um triste, como

as máscaras do teatro grego.

Depois de algum tempo, meu irmão se casou e

acabou indo morar no prédio. Deve ter havido

alguma mudança na legislação, porque depois o

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prédio foi vendido. Quem comprou conseguiu

demolir o palacete e construir um edifício de

apartamentos no lugar.

Com aquele elenco do Tesp mantínhamos qua-

tro programas de televisão naquela época: o Sítio

do Pica-Pau Amarelo, na quarta-feira, as duas

minisséries, uma na quarta e outra na quinta, e

o teatrão no domingo. Dependendo do caso,

uma atração chegava a ter até três horas de

duração. Por ser um elenco numeroso, não eram

todos os atores que participavam de todas as

atrações. Ninguém ia para os estúdios para fi-

car esperando. Conforme a história, chamáva-

mos um ou outro ator, de acordo com o tipo

físico e as habilidades deles.

Independentemente disso, havia muito pouco

tempo de ensaio. Mas eles eram frenéticos,

furiosos. Ao contrário de hoje, ninguém tinha

tempo para compor um personagem. A gente

escolhia pelo tipo de cada um. Olhávamos para

o grupo e dizíamos: este tem cara disto, aquele

tem cara daquilo. Uma vez cheguei a abordar

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um senhor na rua com um convite para traba-

lhar. Nós precisávamos de um Nero para um es-

pecial do Sítio na Roma Antiga. Não tínhamos

no grupo ninguém que nem de longe lembras-

se o Nero. Meu Deus, quem vai fazer o Nero? E

nós tínhamos dois dias para resolver este pro-

blema. Naquela mesma tarde, precisei ir até a

Rua Barão de Itapetininga. Foi quando, do ou-

tro lado da rua, eu vi um Nero. Era um senhor

de cabelo escuro, meio cheio de pompa. Eu vi

que ele tinha o tipo do Nero. Atravessei a rua e

abordei o homem – eu não tinha cara de quem

aborda homem. Eu pedi desculpas e disse: Olha,

eu sou fulana de tal, talvez o senhor já tenha

ouvido falar, eu sou da televisão, nós fazemos

o Sítio do Pica-Pau e nós precisamos de um Nero,

no nosso elenco não temos um Nero e o senhor

tem uma cara de Nero. O senhor não quer fazer

dois programinhas só, como Nero? O homem

era engenheiro e se chamava Sucupira. Enge-

nheiro Sucupira. Ele gostou e disse vou, vou. Foi

e fez o Nero duas vezes. Foi um ator transitó-

rio. Nunca mais o vi.

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Capítulo XII

Uma Tatiana em cada esquina

Nossos programas só funcionavam porque havia

vontade de fazer. Não era trabalho, era mais um

divertimento, era uma paixão. O Tesp era uma

família, tínhamos até um jornalzinho, que se

chamava O Elefante. Havia no Tesp também um

prêmio, chamado de O Tespinho, eu guardo um

até hoje, era um elefantinho de bronze. Nós o

dávamos para o camarada do mês. Entre aquela

turma toda, tão dedicada, aquele que tivesse

mostrado mais empenho, ganhava o

elefantinho. Era um prêmio mensal. Algumas

dezenas de pessoas passaram pelo Tesp. Alguns

continuam na profissão até hoje, como Felipe

Wagner, que chegou a trabalhar em teatro com

o Paulo Autran, numa montagem de Otelo.

Foi uma época muito movimentada. Eu

trabalhava freneticamente. Fazia todos os textos

no mimeógrafo, não havia nenhuma tecnologia

para facilitar a vida da gente. Os técnicos de

televisão também eram poucos.

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Podíamos contar com uma mesa de som, mas acho

que ela era movida a lenha. Nossa sorte era que a

imaginação não dependia da tecnologia. A

imaginação ninguém segura. Nós tínhamos de

encontrar as soluções para dar conta de tudo que

o texto pedia. Inventávamos. De vez em quando,

eu escrevia a cena e dizia para o Júlio que queria

só ver como ele resolveria aquilo. Às vezes eu

sugeria como fazer. Era muito interessante. Muito

estimulante. O Júlio precisou afastar-se do con-

sultório durante dez anos para dedicar-se ao Tesp,

mas o grupo durou mais tempo que isso. Quando

o Júlio voltou a clinicar, o Tesp sobreviveu por mais

um ano e pouco.

Mesmo com a saída do Júlio, eu continuei a es-

crever os textos. E o grupo lá, muito felizardo,

conseguindo levar adiante, só que sem a direção

do Júlio. Um dia, ele disse que precisava virar

esta página da vida dele e reabriu o consultó-

rio. Morreu trabalhando.

Abandonar o Tesp e os programas de televisão

foram uma decisão pessoal dele. Quando ele

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começou a trabalhar na TV, ele disse que não

queria contrato, assim poderia abandonar

tudo se alguém começasse a atrapalhar. Não

sei se foi algum executivo da emissora ou al-

gum patrocinador que começou a meter o be-

delho e ele disse tchau e saiu. Deixou tudo en-

caminhado, funcionando. Eu continuei escre-

vendo, o programa durou mais um ano e pou-

co, até acabar o contrato da emissora com o

patrocinador, em 1965.

Em 1968, fomos procurados de novo pela tele-

visão, agora pela Bandeirantes. Aí já existia o

videoteipe e a emissora queria porque queria

levar o Sítio para lá. Em 68, o Júlio já estava

safenado, não tinha mais aquele ânimo de 15

anos atrás. Mas tanto tentaram e tanto fizeram

que ele aceitou. Ele dirigiu o Sítio por mais um

ano e três meses na Bandeirantes. O programa

passou a ser diário, mas não mais ao vivo.

Gravávamos tudo.

O elenco que foi para a Bandeirantes era pra-

ticamente o mesmo da Tupi. Mas o trabalho na

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Bandeirantes era diferente. Se o programa na

Tupi tivesse meia hora, ele era feito em meia

hora. Mas um programa de meia hora, se

gravado, leva no mínimo três horas de gravação.

Aí também acabou aquela magia, aquele

desafio. As pessoas sabiam que, se errassem, era

só interromper, cortar e fazer tudo de novo. Ou

mudar na hora da edição. Depois de um ano e

pouco, o Júlio disse que não queria mais, que

daquela maneira ele não gostava. Porque o que

fazíamos antes era teatro mesmo. A televisão,

daquele jeito gravado, não era teatro. Antes,

nós fazíamos um programa do início ao fim,

como se estivéssemos na frente de um público.

E estávamos mesmo, ao vivo. Já na Bandeiran-

tes era outra coisa. Para mim era até mais fácil,

porque os textos eram meus mesmo, eu não pre-

cisava reinventar nada. Quem não gostava nada

era o Júlio.

Na época em que fazíamos ao vivo, vários

profissionais de TV acompanhavam os ensaios

para saber o que iríamos fazer e evitar possíveis

erros. O cenógrafo, o sonoplasta e os câmeras

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sempre acompanhavam os ensaios. Eles eram

preparados para os imprevistos. Havia três

câmeras no estúdio. Se eles percebiam que

alguma coisa estava saindo errada, já mudavam

de cenário, antes que o público percebesse o

erro. Os atores também não podiam improvi-

sar, porque os textos eram de autores impor-

tantes. Também não existia a figura do ponto,

como no teatro. O que havia era um ator que

ficava se arrastando pelo chão com o texto. Se

algum ator se atrapalhava, ele dava a deixa.

Não estarei exagerando se disser que este

trabalho que fazíamos foi uma experiência

pioneira para o público infantil da televisão. Uma

vez, veio ao Brasil uma francesa que trabalhava

com televisão para crianças. Ela ficou bestificada,

disse que não existia aquilo em lugar nenhum.

Éramos malucos e só no Brasil se podia fazer uma

coisa daquele tipo.

Seria impossível, hoje, tentar reproduzir uma

experiência como aquela. A novela é, de certo

modo, um teleteatro. Só que tudo é preparado

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com tanta antecedência, tem edição, tem mon-

tagem. O que nós fazíamos agora é arqueolo-

gia, o que foi feito, foi feito e acabou. Fazíamos

quatro programas por semana e ninguém po-

dia ver nada antes, só na hora.

O público me conhecia apenas pelo nome, já que

eu não aparecia nos programas. Mas havia

alguns atores do Tesp que mal podiam andar na

rua. Eles já eram vítimas do culto à celebridade,

como conhecemos hoje. Quando eu estudava no

Mackenzie, era a única Tatiana. Ninguém

entendia direito este nome. Com a televisão, meu

nome passou a aparecer e começaram a batizar

as meninas como Tatiana. As mães me

telefonavam para dizer que tinham feito isso.

Às vezes, ainda acontecem algumas coisas en-

graçadas envolvendo meu nome. Não faz

muito tempo, uma vendedora de loja me disse

assim: Engraçado, uma senhora da sua idade

com o nome Tatiana. Eu respondi que era eu

quem tinha começado esta mania. Mas não é

Tatiãna, é Tatiáána. Tália é Tatiana no dimi-

nutivo. É por isso que você começa a ler uma

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obra de Tchecov, por exemplo, e uma persona-

gem chamada Maria logo passa a ser Masha,

Mariusha. Em casa, eu era chamada de Tália, ou

Taliusha, ninguém me chamava de Tatiana.

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Tatiana com duas encarnações atuais do Visconde de Sabugosae da boneca Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo

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Capítulo XIII

A pré-história dos efeitos especiais

Quando eu comecei a escrever os programas do

Sítio do Pica-Pau, eu sabia que o resultado ti-

nha de ser meio teatro, meio cinema. Mas sem-

pre com a idéia do palco na cabeça. Só que ha-

via o recurso das câmeras, que podiam focali-

zar meio corpo, ou apenas o rosto, ou ainda

pular de um cenário para outro, contando com

os imprevistos e os previstos também. Se pin-

tasse algum problema, a câmera ia para outro

cenário, e isso era uma linguagem de cinema.

Os próprios técnicos sabiam disso. Alguns

episódios do Sítio exigiam da gente uma dose

extra de criatividade. Um deles foi o programa

No Reino das Águas Claras. Nós tínhamos

algumas cenas dentro de um rio, mostrando

inclusive os peixinhos. Como é que faríamos isso?

Na época, eu tinha um aquário imenso, com

peixinhos e plantas. Eu disse que o Júlio deveria

levar o aquário até o estúdio e pedir aos atores

que fizessem as cenas atrás do aquário.

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E isso foi feito. O aquário ficou entre os atores

e a câmera. Na televisão, ficou parecendo que

os atores estavam dentro da água, com peixe e

tudo. Funcionou lindamente.

Nós éramos obrigados a fazer as vezes de

cenógrafo, de diretor, de especialista em efeitos

especiais. Todo mundo tinha de ser muito ágil e

muito criativo. A sonoplastia, por exemplo, nada

mais era do que soltar a agulha no ponto exato

do disco. E assim também era com os efeitos de

luz. Hoje, eu vejo que nós fazíamos três curtas-

metragens e um longa-metragem por semana.

Era um milagre, uma coisa louca que a gente

levava na brincadeira Depois das apresentações,

todo mundo ia para minha casa, almoçar, jantar,

fazer feijoada.

Quando eu escrevia, não tinha a preocupação

de ensinar uma mensagem. Eu me inspirava em

Monteiro Lobato e em meu pai também, que

era um grande contador de histórias. Eu, quando

pequena, gostava de fábulas animadas, histórias

de bichos que eram representações irônicas ou

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críticas. Eu odiava a moral da história, toda fá-

bula que tivesse moral da história eu achava um

desaforo. Que negócio é esse de alguém me dizer

o que eu tenho que entender? E o que eu tenho

dentro da minha cabeça, por acaso sou idiota?

Deixa que eu entendo sozinha. Me contem a

história que eu entendo do meu jeito. Educativo,

didático, tudo isso não passava de blablablá, eu

não queria nada disso. Deixem a criança usar a

própria cabeça. Mostrem as coisas e deixem o

resto com elas.

Claro que nós tínhamos nossas posições. O que

se chama hoje de politicamente correto, nós

fazíamos de outro jeito. Por exemplo, se não

queríamos mostrar bebidas e cigarros, então os

personagens não bebiam e nem fumavam. Mas

ninguém precisava dizer que não se podia fumar

ou beber, simplesmente não mostrávamos estes

hábitos. Nós não dizíamos isso é bom, isso é

ruim, faça isso ou faça aquilo. Havia uma

orientação ética, mas o programa não era

didático. Não era por aí. Até porque os bons

escritores que eu adaptava também não eram

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didáticos, não escreviam desta maneira. O pú-

blico podia até se identificar com o vilão, se ele

quisesse. Quando nós fazíamos o Peter Pan em

teatros dos bairros mais centrais da cidade, em

geral, a criançada torcia pelo Peter Pan. Na pe-

riferia, a maioria das crianças torcia pelo

Capitão Gancho. Você quer sociologia mais

nítida do que essa? Não precisava explicar nada.

Não precisava mesmo.

Emoção é você não ter de dizer isso é bom, isso

é mau. Tanto assim que o Júlio, como psiquiatra,

psicólogo e educador, dizia que o nosso teatro

era um teatro educacional formativo cultural.

Educacional, não didático. Claro que a

informação vem da própria ambientação do

espetáculo. O figurino usado em cena é

informação, a linguagem é informação, as idéias

transmitidas são informação. Então a gente

tinha a cabeça ligada nisso e nunca foi preciso

uma grande discussão entre nós: cada um sabia

como o outro pensava e tudo havia sido discu-

tido antes. Eu tenho a impressão de que quan-

do começamos a fazer teatro, havíamos falado

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de tantas coisas, de ética, de valores morais, de

justiça, lealdade. Mas é importante dizer que

estas palavras não precisavam estar escritas nas

peças, elas surgiam no contexto.

Nosso programa tinha uma receptividade muito

boa, tanto por parte do público como da críti-

ca. Todos eram muito favoráveis. Não era uma

superprodução, nós nos fazíamos notar pela

criatividade, pelos temas, pelos escritores que

adaptávamos e pelas histórias. Desculpem-me,

eu sou suspeita, mas tudo isso é verdade. Nós

recebíamos cartas de entidades culturais, de

padres, de políticos, todo mundo achava que o

programa era direcionado a eles. Era tudo tão

abrangente que cada setor da sociedade pare-

cia sentir-se como destinatário do programa.

Mesmo escrevendo quatro programas semanais,

eu nunca deixei de ser uma dona-de-casa que

tinha de cuidar de dois filhos pequenos. O de

treze anos não deixava de ser pequeno também.

Eu tinha dupla jornada: de dia, era dona-de-casa,

e à noite era roteirista.

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Eu passava o dia pensando no que iria escrever,

lia, lembrava de coisas, anotava. Quando as

crianças iam para a cama, entre nove e dez horas,

eu sabia o que iria escrever. Já tinha pensado

em tudo, separado as ações, criado as histórias.

Então, a execução do roteiro, o ato de colocar

no papel mesmo, não era muito demorado. Eu

levava cerca de três horas para criar cada

programa, algo em torno de 14 laudas

datilografadas. Claro que no começo não era

assim tão fácil, fui pegando o jeito com o tempo.

Depois virou uma atividade que fazia parte da

minha rotina.

Eu acho que escrever uma novela deve ser mais

fácil. A novela pode marcar passo, pode usar

flashback, e nós não. Embora eu concorde, é

lógico que, no caso das novelas, é humanamen-

te impossível escrever 200 capítulos todos ori-

ginais, todos pulsantes, de 50 minutos cada um.

Eu sei que é uma coisa de louco. Eu não podia

nem pensar em ter um bloqueio criativo. Eu es-

crevia, eles ensaiavam no dia seguinte, e era as-

sim que funcionava. Acho que, durante aqueles

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anos todos, eu não pude escrever em apenas

duas ocasiões. Tirando essas duas vezes, todo o

texto saiu da minha máquina de escrever.

Quando resolvemos adaptar Os Dez Manda-

mentos, cada um dos dez capítulos teve uma

hora e meia de duração. Nestes episódios, que

eu costumo chamar de esfera bíblica, nós

criamos alguns efeitos especiais, claro que

dentro das possibilidades da época. Houve

alguns momentos de trucagem na seqüência em

que Moisés estava tirando os judeus do Egito,

onde eles serviam como escravos. Moisés foi

conversar com o faraó, para negociar a liberdade

do povo hebreu, e o faraó, que estava

acompanhado pelo seu mágico, se recusou a

libertá-los. Então Moisés resolveu fazer uma

demonstração do seu poder, transformando um

cajado em cobra. Para os nossos padrões, a

transformação do cajado em cobra, que ocorreu

muito lentamente, foi uma superprodução. O

cajado ia virando cobra e o ator tinha de jogar

a cobra no chão, onde a metamorfose se con-

cluiria. Nós precisávamos de uma cobra de ver-

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dade, e conseguimos uma, muito mansinha, mas

gigantesca. Mas o nosso ator disse que não segu-

raria uma cobra, nem morto. Meu irmão entrou

em ação, dizendo que estava disposto a segurar a

cobra. Então, o braço que apareceu com a cobra

não era de Moisés, era do meu irmão. Deu para

fazer, ficou igualzinho ao cinema. Segundo a Bí-

blia, a cobra do Moisés mata a cobra do mágico

do faraó. E como resolver esta seqüência? Nós

tínhamos uma segunda cobra, mas era impossível

fazer com que uma comesse a outra. Então

conseguimos uma cena de um documentário sobre

o mundo animal, em que uma muçurana devora

outra cobra. As imagens eram em branco e preto,

como as nossas. Incluímos esta seqüência do

documentário no nosso programa e o público

ficou bestificado. Como é que vocês conseguiram

isso, eles me perguntavam. Até que foi fácil.

E o episódio em que o Mar Vermelho se abre para

permitir a fuga dos hebreus e se fecha logo em

seguida, afogando os egípcios? Eu dei a seguinte

idéia para o Júlio: ele deveria conseguir duas

grandes caixas-d’água, e colocar uma de frente

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para a outra. Depois, eles virariam as caixas, dei-

xando cair toda a água. Esta operação tinha de

ser filmada, para que depois o filme fosse projetado

de trás para frente, dando a idéia de que as águas

estivessem se separando, se abrindo. Ficou perfeito

também, outro truque que deixou o público de

boca aberta. Com isso, nós tínhamos resolvido

metade do problema. Mas como resolver o restante

da cena, em que o mar se fecha sobre os egípcios,

após a passagem dos hebreus? A direção da

emissora nos autorizou a utilizar um trecho da rua

no Sumaré. Construímos uma espécie de corredor,

e na parte de cima da estrutura penduramos muitos

sacos de água. E pedimos aos atores que

interpretavam os egípcios para que atravessassem

correndo este corredor, enquanto alguns operários,

com facões, iam furando os sacos de água. E aí

veio abaixo uma ducha de três metros de água.

Foi um xuá homérico. Claro que não mostramos

os sacos, nada, só a água caindo e molhando

realmente as pessoas. Funcionou que foi uma

beleza, mas deve ter sido o truque mais complicado

que fizemos.

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Capítulo XIV

Um colírio para o faraó

Tudo tinha de ser feito apenas uma vez, não podia

sair errado. As histórias de conto de fadas também

davam muito trabalho. Em A Bela e a Fera, por

exemplo, há a cena em que a Bela se encontra

sozinha no palácio da Fera. E ela é servida, mas

não se vê ninguém, só as coisas vindo. Isso foi fei-

to com técnica de marionete e teatro de bonecos.

O fundo preto, fios brancos, com um manipulador

fora de cena, em cima do cenário. Ele mexia a jar-

ra e não se via o fundo, só mesmo a jarra despe-

jando a água no copo. Muitas cenas desta histó-

ria foram feitas deste jeito.

Para que tudo isso funcionasse sem problemas,

era necessária a colaboração de todo o pessoal

no estúdio. Todos tinham de colaborar, do

faxineiro ao diretor. Não podia haver uma

bituca de cigarro no chão, para que a câmera

não pulasse. Não havia ninguém jogando

contra. O pessoal do estúdio falava assim: eles

inventaram isso, vamos ver agora como é

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possível resolver. Graças a isso é que pudemos

realizar muitas coisas.

Em outro episódio bíblico, Sansão e Dalila,

precisamos substituir, na última hora, o ator que

faria o Sansão. Ele se chamava José Serva. A Dalila

era a Beatriz Segall. Faltando uma hora para

começar o programa, fomos avisados de que o

Serva tinha acabado de ser internado, com uma

crise de apendicite. Ele teria de ser operado no

mesmo dia. O Elias Gleiser na época trabalhava

como figurante, ele acompanhava todos os

ensaios. O Sansão tinha de ser feito por um ator

grande e forte. O Elias era um pouco gordo

demais, nós até o chamávamos de Tone – de

tonelada. E aí o Júlio decidiu que teria de ser o

Tone. O Elias protestou, dizendo que nunca havia

feito um papel grande, importante. O Júlio

argumentou, dizendo que realmente ele nunca

tinha feito um papel importante, mas tinha visto

todos os ensaios e sabia direitinho como fazer.

O Elias ficou com muito medo, mas o Júlio sabia

como hipnotizar as pessoas. O fato é que o Elias

topou, fez as cenas muito bem.

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Ele derrubou lá o templo dos filisteus. E sabe o

que era o túnel do templo? Caixas de chapéu

redondas e pintadas. Então, na hora ele derruba

as caixas, começa a cair tudo e entra aquela

sonoplastia grandiosa.

O maior deslize que eu me recordo ocorreu

durante uma adaptação de uma história de José

e Seus Irmãos. A cena deveria mostrar a chegada

dos irmãos de José ao Egito para visitá-lo. Os

irmãos, muito pobres, chegam e encontram José

como um homem rico, importantíssimo. José

estava em uma espécie de trono e é claro que os

irmãos não o reconheceram. Mas ele os

reconheceu, embora não pudesse demonstrar isso.

O ator que representava o José chamava-se

Luciano Maurício, um homem com muita classe.

O script dizia o seguinte: quando José reconhece

os irmãos, uma lágrima deve cair dos seus olhos.

A câmera tinha de mostrar a lágrima, pois só assim

o público compreenderia que ele havia

reconhecido os irmãos, já que não podia dizer isso.

Era um momento muito dramático. Eu sabia que

não seria fácil para o ator derramar uma lágrima

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exatamente naquela hora. Afinal, não basta aper-

tar o umbigo para se sair por aí chorando. Eu dis-

se para o Luciano que ele teria de encontrar uma

maneira de pingar um colírio ou qualquer coisa

nos olhos, mas não sabia como ele poderia fazer

aquilo. Estava indo tudo muito bem, a cena estava

linda. Estava combinado que o Luciano iria pingar

o colírio fora de cena, para que escorresse aquela

maldita gotinha.

Eu estava assistindo ao programa em casa quando

vejo a câmera mostrando tudo: Luciano tirando

um colírio do bolso e pingando nos olhos. Eu quase

morri do coração. Pensei na hora que tudo tinha

ido por água abaixo. Que, naquele momento,

milhares de telespectadores estariam gargalhando

em suas casas. Mas o Luciano era tão classudo e

tão bonito que, sentado naquele trono, com

aquele frasquinho na mão, acho que ele deve ter

feito o público acreditar que pingar colírio era um

gesto típico do Egito naquela época. Porque

ninguém percebeu nada, não houve nenhuma

reclamação. Ninguém morreu de rir e a cena ficou

linda. Foi como se ninguém tivesse visto nada.

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A adrenalina sempre era muito grande, mas não

havia o que se chama hoje de estresse. Aliás, nem

existia essa palavra. Nem surto e nem estresse.

A gente não surtava, a gente ficava excitado,

motivado. Não era exatamente ansiedade. O que

garantia o nosso equilíbrio era a confiança que

tínhamos no Júlio e no pessoal da técnica. Uma

confiança obtida ao longo de anos de trabalho,

não era coisa de uma semana ou um mês. Só na

Tupi ficamos juntos de 1952 a 1965.

Neste período surgiram, em São Paulo e no Rio

de Janeiro, outros programas voltados ao

público infantil. O Fabio Sabag, por exemplo,

começou com a gente aqui em São Paulo e

depois levou nossa fórmula para o Rio, onde

criou o Teatro Troll, que era uma versão do nosso

Teatro da Juventude. Inclusive com meus textos,

uma boa parte do que ele apresentou lá eram

textos meus.

Nesta época, eu não tinha tempo para me coçar.

Mais tarde eu recebi convite para escrever tex-

tos para outros programas, mas sem o Júlio eu

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não queria. Nós éramos uma dobradinha que fun-

cionava tão bem. A própria Globo, quando fez a

primeira versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo, me

convidou para escrever e o Júlio para dirigir. Ele

recusou alegando que estava com o consultório

e que o Sítio era página virada na vida dele. En-

tão pediram que eu escrevesse para um outro

diretor. Recusei novamente, disse que sem o Jú-

lio não me interessava. Então eles pediram que

eu vendesse os roteiros que havia escrito, pelo

menos. Até isso eu recusei, pois se era página vi-

rada para o Júlio, para mim também era. Façam

do seu jeito, eu disse. Eles tentaram me conven-

cer, dizendo que o programa seria muito bom,

pois teria a consultoria de psicólogos, pedagogos

e roteiristas. Psicólogos, pedagogos e roteirista

eu tenho em casa, respondi.

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Capítulo XV

Do Jeca Tatu a Tchecov

Quando o Sítio terminou, cada um seguiu seu

próprio rumo. Eu fui convidada para organizar

o setor infanto-juvenil da Comissão Estadual de

Teatro. Aceitei o convite e organizei a revista

Teatro da Juventude, que chegou a ser feita mas

não era impressa com regularidade, pois a

Imprensa Oficial era muito instável na época. A

revista deveria ser mensal, mas nem sempre era.

Comecei a organizar este trabalho em 1965.

Acho que muito do que produzi lá, a revista, os

esboços, os projetos, talvez tudo possa ser

encontrado em alguma biblioteca por aí.

Quando deixei a comissão, em 1972, recebi um

convite para começar a escrever no jornal Folha

de S. Paulo. O diretor do caderno de cultura era

o Boris Casoy. Ele me convidou para fazer duas

colunas semanais no jornal, uma sobre teatro

infantil e outra sobre literatura infantil. Como

o que havíamos feito no teatro era inspirado

em literatura, ele acreditou que eu poderia fa-

lar sobre os dois assuntos.

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E inventou essas duas colunas semanais que eu

escrevi durante dois anos e pouco. Graças ao

jornal meu nome começou a circular novamente,

para ser sincera, acho que meu nome virou ar-

roz-de-festa. Quando saí da Folha, eu estava

sendo chamada de crítica. Não me considero

crítica, prefiro articulista, ou comentarista. Eles

me perguntavam que tipo de crítica eu era, se

eu gostava de tudo. Eu não gostava de tudo, eu

apenas escrevia sobre o que eu gostava, é

diferente. Se eu tinha de recomendar alguma

coisa, é claro que recomendava alguma coisa que

prestasse. Existe uma diferença entre gostar de

tudo e escrever somente sobre aquilo de que se

gosta. Este segundo caso era o meu. Não ia

perder meu pouco espaço e meu pouco tempo

para ficar falando mal de alguma coisa que não

me interessa. Então, se não querem me chamar

de crítica não chamem, eu não sou crítica. Eu

gosto de pouca coisa, para falar a verdade, mas

quando eu gosto, eu falo.

Uma vez, algum redator da Folha cortou um

trecho grande de uma coluna minha, o texto foi

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publicado sem pé nem cabeça. Liguei lá para

saber o que tinha acontecido. Eles me disseram

que havia entrado um anúncio na página, um

anúncio importante, então precisaram cortar

meu texto. Eu disse que importante, para mim,

era assinar um texto de minha autoria que eu

pudesse reconhecer, e não aquilo que eles

haviam publicado. Como eles podiam publicar

um artigo incompreensível e ainda assinar meu

nome? Deixei o jornal no mesmo dia. Na semana

seguinte me telefonaram do Estadão, pedindo

que eu fizesse lá a mesma coisa que fazia na

Folha. E lá fui eu, por mais dois anos, manter

uma coluna no Estadão. Depois, durante um ano

e meio, escrevi para um jornal de bairro, a Gazeta

de Pinheiros. No Jornal da Tarde eu mantive uma

coluna só de literatura infantil, enquanto o

Clovis Garcia, que eu conhecia desde a época da

faculdade, escrevia sobre teatro infantil. Foram

sete anos de trabalho na imprensa, sem contar

os artigos esporádicos que escrevia para as

edições de sábado do Estadão. Virei jornalista.

Tenho até carteira de trabalho de jornalista.

Jornalista profissional colaboradora.

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155

Só que o sindicato da categoria não quis me

aceitar, alegando que eu não podia ser

considerada jornalista se não vivesse do

jornalismo. Eu era paga, tinha um cachezinho,

mas evidente que eu não vivia daquilo. Também

tive uma passagem de dois anos pela televisão.

Eu tinha uma coluna falada de literatura e teatro

para crianças no extinto programa Panorama, da

TV Cultura.

Eu nunca parei de trabalhar. Depois de minha

passagem pela Comissão Estadual de Teatro,

pela televisão e pelos jornais, fui procurada pela

Editora Ática, que acreditou que talvez eu

pudesse escrever contos. Isso ocorreu em 1985.

Até então, eu nunca tinha pensado em publicar

um livro, eu era ocupada demais para isso. Disse

para a editora que mandaria uns quatro ou cinco

contos, para ver se eles gostavam de alguma

coisa. Eu trabalhava muito depressa naquela

época, estava tudo na cabeça. Escrevi cinco his-

tórias. Eles recusaram apenas uma, e publicaram

as outras quatro. Então eu estreei na literatura

com quatro livros logo de uma vez, que estão

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em catálogo até hoje. Eram livros infantis que

precisavam de muito pouco texto. Às vezes, com

quatro laudas você já tinha um livro, até menos

em alguns casos. A ilustração ocupava muito

espaço. Tanto que quando me perguntam

quantos livros eu tenho publicados, eu até sin-

to vergonha de falar. São mais de 120, entre

traduções, adaptações, poesia e prosa. É um

currículo quase tão gordo quanto eu. Mas

deste total, poucos são os livros realmente

encorpados, a maioria é de livros fininhos.

Imagina, no meu tempo de menina um livro

infantil tinha 200 páginas, com histórias,

romances. Agora, escrever um livro de apenas

três laudas, deste jeito até eu.

Também trabalhei muito como tradutora do russo

e do alemão. Traduzi romances e peças, várias

obras de Tchecov que estão em catálogo têm

tradução minha. Na época do Teatro da Juventude

eu também traduzia muito, embora eu nunca

considerasse isso como um trabalho, eu fazia com

tanto prazer que era quase um hobby. Emprego,

mesmo, eu tive quando saí da escola, como

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secretária de um escritório de advocacia e na

multinacional das carnes. Ambos me pagavam

muito bem, mas eu não gostava deles. Quando

eu trabalhava para o advogado, um amigo dele

me pediu emprestada por algumas horas. Pedir

uma secretária emprestada, como alguém pode

acreditar nisso? Mas o advogado me emprestou.

Era para realizar um trabalho em um hotel. Eu

fiquei no hotel trabalhando para ele durante três

horas. No dia seguinte, ele me mandou um cheque

no valor de um salário do mês inteiro. Não achei

certo. Devolvi o cheque com um bilhete em que

dizia: agradeço, mas não posso aceitar porque

estava no meu horário de expediente. E não aceito

gorjetas. Muito obrigada. O que veio depois

sempre foi tão prazeroso que é difícil classificar

de trabalho.

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Capítulo XVI

É da casa do Júlio? Aqui é o Monteiro Lobato

Eu tenho certeza de que esta atitude de mulher

durona eu herdei da minha mãe. Muitas vezes,

eu me lembro de minhas histórias e acho que elas

poderiam muito bem ter ocorrido com ela, pois

ela teria tomado as mesmas decisões que tomei.

Minha mãe me dizia que eu era ruim, você é uma

cobra. Porque eu não chorava e não mentia.

Esta pose, de certo modo, sempre transpareceu

em minha escrita também. Eu escrevi sempre o

que eu quis escrever. Meu público-alvo era eu

mesma, criança. Tive filhos pequenos, irmãos

pequenos. Eu sempre soube como criança reage

a algumas coisas. Escrevo histórias para quem

quiser ouvir. Muitas vezes, me perguntam, prin-

cipalmente os professores, para que faixa eu es-

crevo. Digo que escrevo para a faixa que me es-

colhe. Não há sequer duas crianças iguais no mun-

do. Há coisas que uma criança de cinco anos apre-

cia, outra de dez não e vice-versa. Então o públi-

co é quem me escolhe. Sempre fui muito discipli-

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nada e com muita liberdade de dizer o que eu

penso. E também sempre levei muito a sério a

fidelidade aos autores que adaptei em meus pro-

gramas. No caso de Monteiro Lobato, então, isso

era uma obsessão. Não queria mexer em nada,

eu queria fazer o mais parecido possível.

Eu o conheci muito bem, mas gosto de dizer que

conheci o Lobato, não o Monteiro. Porque o

Lobato foi único, Monteiro tem vários por aí.

Meu contato com o Monteiro Lobato foi mais

uma prova de que eu nunca procurei nada, as

coisas é que me procuraram. Tudo sempre veio

muito facilmente para mim. Geralmente, para

montar uma peça, ou escrever um roteiro, ou

ainda escrever um livro, as pessoas batalham

tanto. Batalham, procuram, vão atrás. Comigo,

não. Elas vêm até onde eu estou, como os dóla-

res daquele homem no avião. E como o

Monteiro Lobato.

Uma noite, quando eu morava com o Júlio na Rua

Itacolomy, com os dois filhos pequenos, o telefo-

ne tocou. Nós não tínhamos televisão, nada.

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O Júlio era um jovem médico e eu uma jovem

dona-de-casa. Eu atendi. Do outro lado, uma voz

seca perguntou se era da residência do Júlio

Gouveia. Eu disse que sim. O homem, então,

disse que era o Monteiro Lobato e que queria

conversar com ele. Claro que eu pensei que fosse

trote. Imagine, o Monteiro Lobato ligando para

a nossa casa. Mas daí ele continou, dizendo que

havia lido um artigo do Júlio na revista Literatura

e Arte. O Júlio, de vez em quando, escrevia

artigos. Enfim, ele era poeta, tinha várias facetas.

E ele escreveu um artigo sobre a literatura

infantil do Monteiro Lobato, de quem ele era

um grande admirador, como eu também. Li o

artigo do Júlio na revista, gostei e queria

conhecê-lo pessoalmente. Posso ir aí hoje

mesmo? E foi assim que Monteiro Lobato entrou

nas nossas vidas.

Duas horas depois, ele estava em casa. Tocou a

campainha, o Júlio abriu a porta para ele, ele

olhou para o Júlio e disse: Na tua idade eu tinha

a tua cara. Foi a primeira coisa que ele disse para

o Júlio. Quanto a ser parecido, era e não era.

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Os dois tinham sobrancelha grossa, olhos pre-

tos. Mas, bom, o Júlio era bem mais jovem. Mas

Monteiro Lobato estava se referindo mais ao

tipo físico dos dois. Não foi a primeira vez que

o Júlio ouviu algo do tipo de alguém que aca-

bara de conhecer. Quando eu o apresentei para

o meu pai, ele olhou para mim e disse: Mas você,

hein! Achou logo um com a minha cara. Eles não

eram exatamente parecidos, mas tinham o mes-

mo tipo físico também. Homem, para mim, sem-

pre teve de ter barba cerrada, olhos pretos, so-

brancelhas grossas e pretas. Loirinho de olhos

azuis é irmãozinho.

Quando o Monteiro Lobato entrou em casa e

sentou-se na sala, ficamos os dois, eu e o Júlio,

olhando para ele com os olhos arregalados. Ele

tinha ido sozinho. Naquela época, meu irmão

Benjamin morava ali perto. Eu aproveitei a

desculpa de fazer um café para ligar para ele e

pedir que viesse correndo, pois o Monteiro

Lobato estava em casa. Ele também pensou que

era trote, é claro. Jurei que não era. Em cinco

minutos ele estava lá, até penteado.

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Ele devia ter uns doze anos, era loirinho de olhos

azuis. Entrou e deu de cara com o Monteiro

Lobato, ficou deslumbrado. O Lobato o olhou e

disse: Vem cá, Benjamin. Aí ele pegou na mão

do Lobato e quem disse de largar. E o Lobato

tentando tirar a mão. Até que ele conseguiu se

desvencilhar. Éramos todos grandes leitores do

Lobato, o Júlio também. Eu sempre falei que meu

casamento com o Júlio tinha sido o casamento

de duas estantes, a minha e a dele. Ele levou a

dele e eu a minha.

O primeiro texto de literatura brasileira que caiu

nas minhas mãos foi o Jeca Tatu, do Monteiro

Lobato, quando eu tinha doze anos e morava

na Rua Jaguaribe. Li e já me encantei de cara,

isso porque eu mal falava o português ainda.

Infelizmente, nossa convivência com o Monteiro

Lobato foi muito curta. Quando começamos a

fazer o Sítio na televisão, o Lobato tinha

morrido. Ele não chegou a ver nada. Ele morreu

em 1948, poucos anos depois de nos conhecer.

Eu e o Júlio chegamos a freqüentar por um

tempo a casa dele, conhecemos suas filhas, pois

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os dois filhos homens já tinham morrido. Ele era

um homem bastante amargurado, e isso se

acentuou ainda mais após a morte dos filhos.

Eu acredito que ele também não teve sorte como

homem de negócios, a própria editora que ele

criou não durou muito. Ele não era uma pessoa

alegre, mas conseguia falar coisas engraçadas. A

Emília dele era um achado incrível, aliás, a Emília

era ele mesmo. Uma vez ele me contou que

quando ele escrevia as histórias do Sítio do Pica-

Pau Amarelo, a Emília ficava ao lado dele, con-

tando coisas engraçadas, satíricas, coisas que ele

não sabia. Até que um dia ele perguntou para

ela: Afinal de contas, quem é você, Emília? Eu –

disse a boneca – eu sou a independência ou

morte. A Emília era a encarnação do Monteiro

Lobato. Quem nos deu a autorização para

adaptar o sítio para a televisão foi a viúva dele,

Dona Purezinha.

Nunca havia me ocorrido procurar o Monteiro

Lobato. Nós só o conhecemos porque foi ele quem

nos procurou. Eu sempre fui a antitiete. Nunca

tive vontade de conhecer os escritores que

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admirava, em parte porque, é claro, grande parte

deles eram autores clássicos que já haviam morrido

quando eu comecei a ler. Mas nunca fui atrás de

conhecer os vivos também. De repente, eles são

antipáticos, desagradáveis. Eu gostava da obra,

não queria conhecer a pessoa para não me

decepcionar com uma surpresa ruim.

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Capítulo XVII

Se eu gosto, escrevo. Se não gosto, falo.

Na minha vida, eu fiquei alguns anos em uma

coisa, outros anos em outra e depois em outra.

E me dei bem em todas elas. E mudava de assunto

de vez em quando. Eu nunca tive rotina. Sempre

me diverti com o que estava fazendo. O trabalho

no qual permaneci mais tempo foi o de roteirista,

quase 13 anos, fazendo quatro programas

semanais. Mas aí também era um assunto

diferente em cada história, um outro livro a ser

adaptado, outro poema, outra história, outro

jeito de apresentar uma situação. Não conseguiu

virar rotina.

Depois o jornalismo, como “crítica”, entre aspas.

Também não era rotina. Então sempre me diverti

com o que estava fazendo. Uma coisa puxava a

outra. Eu abraçava as ondas e ia em frente. A

primeira vez que eu tive medo no trabalho foi

quando comecei com roteiro. Ninguém sabia o

que era aquilo. Tive de ir com a cara e a coragem

para ver no que dava. E deu no que deu.

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Pensando bem, talvez não fosse exatamente medo

o que eu sentia. Eu estava um pouco preocupada,

cheguei a dizer para o Júlio que nunca havia feito

aquilo e não sabia como era. Então vai fazer,

alguém tem que começar, ele me respondeu. O

fato de o Júlio ser tão decidido me ajudava muito.

Ele inventava coisas. Nas coisas que ele fazia ele

era muito dedicado, era um diretor dedicado, fazia

com entusiasmo, com paixão. Nós andávamos

paralelamente. Por isso eu conseguia fazer tantas

coisas numa semana, porque não tinha discussão,

não havia opiniões diferentes, a gente trocava

idéias. Quer dizer, nem trocava, de tão de acordo

que a gente estava.

Sempre que eu começo alguma coisa, fico

pensando, como qualquer pessoa, se aquilo vai

funcionar ou não. No caso do meu debute na

literatura, com quatro livros de uma vez só, foi

a mesma coisa. Claro que estes livros eu fiquei

lambendo, como se fossem quatro crias. Adorei,

é muito bom. Em minha carreira, principalmente

na de escritora, sempre ouvi falar sobre a tão

famosa alma russa.

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Eu acho que é uma idéia que apareceu com os

primeiros grandes autores russos importan-

tíssimos, como Dostoievski e Tolstoi, que tinham

uma literatura muito rica em sentimentos,

sensações e emoções. Então ficou essa fama de

alma russa. Agora, claro, o povo russo, até onde

eu conheço dele, é uma gente romântica,

sentimental. Romântico pode ser do bem ou do

mal, como se diz agora, mas uma gente muito

intensa, muito ligada às paixões. Mas estamos

falando sobre conceitos e talvez tudo não passe

de uma idéia estrangeira sobre os russos.

O autor mais querido entre todos os que traduzi

é Tchecov. É maravilhoso, continuo achando-o

grande, senão o maior, um dos maiores. Ele

morreu três anos após a criação do Prêmio

Nobel, mas não chegou a ganhá-lo. Dentre suas

peças grandes, eu traduzi A Gaivota, mas traduzi

muitas pequenas também, como O Urso, Os

Males do Tabaco e, mais recentemente, A

Senhora do Cachorrinho, para a Ediouro, que

ele classifica de brincadeiras. E, na verdade, o

são. Aliás, ele costumava chamar de comédia as

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grandes peças dramáticas que escreveu. Mesmo

Tio Vânia às vezes é muito engraçada, outras

vezes nem tanto. Mas tragédia ele nunca as

considerou, preferia chamá-las de comédias

humanas. Também adaptei entre cinco e seis

contos do Tchecov para meus programas de te-

levisão. O maior desafio, naquelas adaptações

de um conto russo, por exemplo, era o de criar

um clima, fazer remissão àquelas paisagens. Não

havia nada de imediato nas obras de Tchecov,

as coisas iam acontecendo em seu devido tempo.

Mas o que é bom para criança é bom para adulto

também. Tchecov nunca escreveu para criança,

escreveu sobre crianças, sobre bichos também.

Eu li, quando criança, muitos dos contos dele.

Então Tchecov nunca me atrapalhou, não. A

idéia sempre foi contar uma história muito bem

contada, como diz a minha neta, para fazer rir,

chorar, ou ter medo ou ter raiva. Tínhamos de

mexer com as emoções, não fazer uma coisa

plana, chata, principalmente não fazer nada

moralista. Monteiro Lobato me ensinou muita

coisa, muita coisa mesmo. Entre elas o respeito

pela criança, pela inteligência da criança, pela

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facilidade que a criança tem de entender as coi-

sas. Eu também sabia disso por mim mesma, mas

ele foi o primeiro que soube realmente valori-

zar isso, respeitar a criança, tanto sua inteligên-

cia quanto sua resistência e sua fragilidade. Cri-

ança é uma coisa complicada.

Eu tenho esperança de que como jornalista meu

trabalho tenha ajudado a melhorar a qualidade

do teatro infantil no Brasil, ou ao menos ajudado

a aumentar a divulgação deste gênero. Porque

eu conversava com o pessoal do teatro sobre as

peças a que eu assistia. Mesmo sobre as quais

eu não escrevia, eu também conversava com os

diretores, com os atores. Eu só escrevia sobre o

que eu recomendava.

E eu não recomendava somente as peças que,

de alguma maneira, iam ao encontro do meu

ponto de vista. Eu não podia ter medo das

emoções. Podia haver coisas assustadoras no

espetáculo, coisas desagradáveis, várias coisas

que mexessem com os sentimentos, que dessem

a oportunidade para que o espectador torcesse

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para um dos lados, ainda que fosse para o vilão.

Mas, sim, tinha de haver uma atitude na peça.

Atitude é a palavra da moda.

O teatro infantil via a criança de uma maneira

muito boba antigamente. Agora respeita mais,

quem faz teatro infantil aprendeu muito com o

passar do tempo. Temos gente muito boa fazendo

teatro para a criança. Bons atores, bons diretores.

A dramaturgia era um pouco claudicante, ela

sempre foi a parte mais difícil. Mas hoje há coisas

bonitas e bem-feitas. Muito mais do que no meu

tempo de jornalista. Não só em quantidade, mas

em qualidade também.

Surgiram novos atores vindos de escolas de

teatro, gente com mais cultura e mais preparo.

E isso é uma coisa muito boa. Infelizmente exis-

tem muita coisa medíocre, muita bobagem tam-

bém. Pudera, você abre o jornal no fim de se-

mana e estão em cartaz mais de 30 espetáculos

para criança. É um pouco demais. Se bem que

São Paulo tem público para isso, mas não signi-

fica dizer que tudo seja bom. A SBAT (Socieda-

de Brasileira de Autores Teatrais) toda semana

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me envia um relatório sobre alguma peça mi-

nha que está sendo apresentada em algum bair-

ro da cidade. Peças minhas, histórias minhas, e

eu nem fico sabendo.

Cheguei a escrever algumas pecinhas de teatro.

Pecinha é um termo carinhoso, não é pejorativo.

São temas em que abordo muitas coisas do

folclore, daqui, dali, dacolá. Sempre tem alguma

coisa minha em cartaz, pipocando, tanto em São

Paulo quanto em outros estados.

Eu sei que hoje as crianças estão muito

tecnológicas, são movidas a computador, a

video games e chats. Isso poderia representar

uma crise para o teatro infantil. Mas o teatro

está em crise há quatro mil anos mais ou menos,

e ainda não morreu. E não vai morrer. Essa coisa

de ter uma pessoa viva na sua frente é diferente

de video game. Mas é um pouco demais deixar

a criança entregue ao computador, há pais que

não dão outra opção para ela. Porque do que as

crianças precisam mesmo é de opções.

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Se os pais deixam a criança trancada no aparta-

mento – e pelo menos em São Paulo são milhões

de crianças vivendo em apartamentos –, com uma

máquina daquelas, é óbvio que elas vão ficar in-

teressadas só na máquina. No entanto, as crian-

ças chegam aqui em casa e me pedem um livro,

porque elas sabem que aqui tem o livro e não

video game. Em todas as minhas palestras eu digo

às crianças que o livro é um objeto mágico. Quan-

do elas me perguntam por quê, eu respondo que

o livro é o único objeto muito maior por dentro

do que por fora. Dentro do livro cabem um

dinossauro, um castelo, um país estrangeiro. Se

isso não for mágico, eu não sei o que é.

É muito interessante observar as crianças no

teatro também. Elas reagem de uma maneira

muito espontânea, muito verdadeira, muito

autêntica, sem fingimento. Porque gente grande

finge que gosta daquilo que não gosta. Criança,

não. Se não gostou, pronto, se desinteressou. E

o teatro mexe diretamente com as emoções.

Um dos piores vícios do teatro brasileiro, e

espero que isso tenha diminuído um pouco, era

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o de provocar diretamente as pessoas da pla-

téia, fazer perguntas, puxarem para o palco.

Chamavam esta bobagem de participação, mas

não é. A participação é emocional. O Júlio dizia

que o barulho que as crianças fazem é indício

de muita coisa. Quando gritam, quando riem. E

sabe qual é a demonstração mais eloqüente que

uma criança pode oferecer, muito mais do que

o riso? É o silêncio. O silêncio é a grande

participação que as crianças podem oferecer. Se

estão quietas, é porque estão aprendendo

alguma coisa, é porque a cabecinha delas está

trabalhando. Se elas não gostam, conversam,

falam alto e fazem outros ruídos também. Se

você tem um teatro lotado com 300 crianças e

elas estão em silêncio, pode ter certeza de que

sua peça é boa e de que elas estão interagindo

com as emoções.

O que eu detesto é quando o ator vai até a

platéia para perguntar a uma criança onde

está o lobo. Isto é uma besteira. Não é emoção

nem participação, não passa de uma pro-

vocação barata.

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Obrigar uma criança a participar de um

espetáculo em curso é uma estupidez, não tem

outra palavra. Quer dizer, tem, mas eu não vou

dizer. O que é que isso tem a ver com público,

com teatro? Isso é, entre parênteses, programa

de auditório barato. Deveria ser proibido puxar

as crianças para o palco, mas sou contra a

censura, não proíbo nada, apenas odeio isso.

Uma vez perguntam para o Stanislavski como

deveria ser o teatro para as crianças. Ele disse

que teatro para crianças deveria ser igual ao

teatro dos adultos, só que melhor. Ele sabia do

que estava falando.

Eu acredito que faça parte da responsabilidade

dos pais apresentar a criança ao teatro, assim

como apresentá-la ao mundo dos livros também.

Levá-la à biblioteca, à livraria, deixar que ela

escolha. Criança fica acelerada e quer tudo, quer,

quer. Eu sempre escrevia minhas matérias me

dirigindo a professores e pais, orientando-os a

levar as crianças aos espetáculos. E isso é

responsabilidade dos pais: levá-las ao teatro e

não atrapalhá-las. Mas eu entendo que, às vezes,

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o teatro infantil surge como opção para pais

divorciados que não sabem o que fazer com seus

filhos nos fins de semana. Então o que acontece?

A criança fica do lado de um adulto, ou até de

dois. Tem um adulto sentado na frente dela que

não a deixa enxergar direito o que está ocorrendo

no palco. As crianças ficam cercadas de adultos e

adultos acham que têm de dar palpites, em vez

de deixar a criança assistir. Fale baixo, não grite,

cale a boca, eles dizem tudo isso para as crianças.

Adulto atrapalha, não é o público autêntico.

Agora o público só de criança, ah, este é uma

escola para a gente.

É muito comum ouvir, hoje em dia, que as

crianças estão mais ágeis e mais espertas. Mas

estão muito mais agitadas também, não se

concentram mais. Isso não é bom. Brincadeira

tem hora. Crianças que vivem fazendo coisas

muito agitadas, muito frenéticas, não têm

tempo de se concentrar em nada, não é? Perdem

muita coisa.

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Capítulo XVIII

Que venham as lágrimas

O que é, hoje, uma boa história para criança?

Poderíamos fazer a mesma pergunta em relação

aos clássicos. O que é um clássico? Clássico é uma

coisa que é boa em todas as épocas. Os escritores

atuais acham que têm que escrever frases com

três palavras. Porque, coitada da criança, se tiver

cinco palavras ela não vai entender. No caso da

literatura e da poesia é preciso certo ritmo, é

preciso dar à criança oportunidade de assimilar

alguma coisa. É como engolir uma coisa atrás

da outra. Não digere, não assimila, não serve

para nada. A criança agitada e frenética perde

a capacidade de acompanhar. Por que é que

nossos jovens hoje chegam ao vestibular sem

saber redigir uma frase? Sem conseguir entender

uma frase redigida? Porque estão agitados

demais, mexidos demais. Sempre há as exceções,

sempre há os que lêem, os que gostam de teatro.

Mas os jovens conseguem fazer e resolver coisas

sozinhos. Criança não, ela é levada e trazida, não

resolve sozinha.

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Com seu filho André

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É muito raro uma criança fazer um programa so-

zinha. Meu filho André, quando estava com dez

anos e nós morávamos na Rua Pará, assistiu ao

musical Sete Noivas para Sete Irmãos. Ele viu sozi-

nho e adorou. Nos dias seguintes, ele voltava da

escola, fazia as lições e ia sozinho para o cinema,

para ver o mesmo filme. Foi dez vezes. Depois ele

virou cineasta, escrevia e lia o tempo todo. Tudo

vai depender do ambiente que a criança encontra.

São poucos os geniais, os que conseguem driblar

qualquer ambiente hostil e desenvolver

sensibilidade, critério e ética. Mas as circunstâncias

hoje não são de facilitar muito, não.

Tudo o que sei eu aprendi com as crianças.

Aprendi muito mais com elas do que com os

livros. Claro que o teatro ajudou, o cinema

ajudou. O livro certamente ajudou. Mas, assim,

na prática, eu aprendi muito com as crianças.

Uma vez, meu filho André me disse uma frase

que me fez matutar um pouco. Ele falou que

gostaria de ser muito rico para poder trabalhar.

O que é que ele queria dizer com isso? Que ele

queria não ter um trabalho do qual dependesse

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seu sustento. Ele queria ser muito rico para

poder criar, estudar, fazer aquilo do que ele

gostava – e isto era seu ideal de trabalho. Meu

outro filho, o Ricardo, me perguntou, quando

tinha 12 anos, se eu achava justo e democráti-

co tratar de modo igual filhos que não são

iguais. É claro que eu achava justo e democrá-

tico tratar meus dois filhos de modo igual. O

que tinha para um, tinha para o outro também.

E ele me colocou no lugar, me fez ver que os

filhos tinham de ser tratados de modo diferen-

te. Tratar filhos desiguais de forma igual não é

justo nem democrático. A coisa é muito mais

complicada do que isso.

Em uma outra ocasião, estávamos todos

almoçando. Eu, Júlio, o André, com quase quatro

anos, e o Ricardo, com sete. A certa altura o André

deu um suspiro e disse que gostaria que existisse

Deus. Nós nunca havíamos falado sobre Deus com

as crianças. Vínhamos de um casamento misto. Eu,

judia, o Júlio católico. A gente não discutia isso. O

que a gente queria era réplica, valores. A gente

nunca falou em Deus.

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E de repente um menininho de quatro anos fala

sobre isso. Eu perguntei por que ele disse aqui-

lo, e ele me respondeu que se Deus existisse, ele

iria pedir uma coisa. E a burra aqui ainda conti-

nuou. Ah, Andrezinho, eu disse, o que você iria

pedir para Deus que papai e mamãe aqui não

podem lhe dar? Ah, mãe, ele respondeu, se exis-

tisse Deus eu ia pedir para existir Papai Noel.

Com quatro anos de idade ele era um cético. Eu

fiquei pensando em quem poderia ter falado

sobre Deus com ele. Talvez a babá, que

acreditava em tudo, em Deus, em Papai Noel.

Agora você me pergunta o que eu aprendi com

as crianças? Só com os meus filhos, eu tive dúzias

de aulas magistrais.

As crianças mudam a sua perspectiva, sua

maneira de ver a vida. Quando o André estava

maior, com 12 ou 13 anos, eu perguntei se ele

havia fumado escondido. E ele me disse já parei.

Não disse que sim nem que não. Estas surpresas

eu continuo a ter nas minhas palestras. Aprendo

com as crianças o tempo todo, até com as

perguntas que elas me fazem.

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Seu filho André

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Uma boa pergunta é sempre melhor que uma

má resposta. Uma menininha de nove anos uma

vez me perguntou, no meio da classe: Tatiana

Belinky, você é a favor do aborto? E olha,

pergunta de criança você tem que responder

rápido. Tem de tirar uma resposta da cintura,

como um caubói. Ou responde logo ou diz que

não sabe. Eu disse que era a favor de métodos

anticoncepcionais. Ela disse obrigada e se sentou.

E na mesma turminha um menino negro me

perguntou se eu era racista. Você olhou bem

pra mim?, eu disse. As minhas orelhas são como

as de um burro? Eu zurro ou sei falar como

gente? Você sabia que só quem é muito burro é

racista? Me safei bem, não é?

As crianças fazem questões muito cabeludas. De

onde eu vim, que idade eu tenho. Se eu

respondo que tenho 80 anos, elas dizem que a

avó delas tem mais. Tem perguntas light, mas

há outras nem tanto. Temos de saber com

rapidez o que vamos responder, sem dúvidas e

sem preconceitos. Tem gente que diz que a

criança vai desmaiar se você disser uma coisa

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mais séria. Criança não desmaia, criança é mui-

to persistente. A maior parte delas sobrevive à

própria família.

Não existe assunto tabu para as crianças. Se elas

perguntam é porque não é mais tabu. Então é

melhor colocar direito. Não complicar, não

enrolar, mas falar a verdade. Agora quando a

coisa é muito esquisita, e você achar preferível

não tocar no assunto, é melhor dizer que não

sabe a resposta.

Eu me lembro de outro episódio, desta vez

ocorrido em um hotel na cidade de Lindóia,

interior de São Paulo. Eu estava no restaurante

do hotel, dando almoço para o Ricardo, que

estava com quatro anos. O André, então com

oito meses, dormia no carrinho ao lado. Então

chegaram umas senhoras, fazendo uma série

de perguntas. Quanto pesava o nenê, o que ele

comia, o que isso, o que aquilo. Uma delas re-

solveu puxar conversa com o Ricardo, que não

era muito de papo quando pequeno. No res-

taurante havia um quadrinho, com o desenho

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de uma cegonha. Então aquela mulher pergun-

tou se ele sabia o que era aquilo. Ele respondeu

que era um passarinho. E ela mas não é qual-

quer passarinho. Você sabe, esse passarinho, a

cegonha, sabe o que é que é? Ele disse não. Ele

falava bem, mas não era de falar qualquer coi-

sa. A cegonha, continuou a mulher, ela traz

os nenezinhos para as mamãe. Aí ele resolveu

responder. Disse que o irmão dele não tinha

vindo daquele jeito. Aí outra mulher, muito

assanhada, perguntou: Então como é que ele

veio? O Ricardo disse de automóvel. E acabou

a conversa. Era o meio de transporte que

estava errado.

Claro que eu sempre usei estas coisas na minha

literatura. Eu tenho quatro livros de crônicas.

Uma historinha dessas dá uma crônica de quatro

páginas. Eu conto, é tudo verdade. Uma vez uma

mãe me procurou para pedir conselhos por causa

de um livro. A história da Ursa Parda, que era

um poema russo do qual eu gostava muito

quando pequena. Uma história muito bonita,

toda contada em verso.

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Era uma história de uma ursa parda que numa

linda manhã de primavera sai pela clareira com

seus ursinhos filhotes, que ursinho filhote é uma

das coisas mais gracinhas do mundo. E os

ursinhos brincavam, davam cambalhotas. Nisso

aparece um homem, um camponês com um saco

nas costas, e carregando um tridente nas mãos e

com um facão na cintura. Ele queria pegar os

ursinhos. A ursa mãe saiu em defesa e ele a

matou. Depois, arrancou a pele dela e fez um

casaco para a mulher dele, pegou os ursinhos e

foi embora. Coisa de chorar. Era um dos meus

livros de chorar preferidos. E aí o poema

continua, dizendo que na cidade os sinos não

dobraram, mas na floresta correu a notícia e

todos os bichos correram para procurar o urso

pai que perdeu a esposa e os filhotes. Ele estava

chorando sozinho. Termina dizendo que depois

chegou a raposa esperta, o porco-espinho e não

sei mais quem.

A história termina assim, com os bichos

procurando o urso. Custou-me convencer a edi-

tora a publicar este livro. Eles me disseram que

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era muito triste, que as crianças iriam chorar.

Mas é bom chorar, eu comprei esse livro, eu lia

esse livro para chorar. É tão bom chorar, alivia.

Ah, vai traumatizar as crianças, eles alegavam.

Eu digo que o que traumatiza a criança é papai

e mamãe brigando na frente dela. Não é uma

história de faz-de-conta que vai traumatizar. En-

tão consegui que publicassem. Um mês depois,

me telefona uma senhora que eu não conhecia.

Tatiana, queria muito falar com você, posso ir

até aí? É por causa do seu livro da ursa.

E aí ela me contou o seguinte. Que ela tinha

um filhinho de quatro anos que gostava muito

de histórias, e ela costumava levá-lo com

freqüência à livraria para que ele escolhesse

alguns livros infantis que ela leria à noite para

ele. Eu até bati palmas. Disse parabéns, você é

uma senhora-mãe sábia. Então, um dia, o ga-

roto escolheu o livro com a história da ursa pela

capa, e a mãe comprou sem olhar, ela não co-

nhecia a história. Levei o livro para casa, me

contou a mulher, e quando foi de noite, na hora

de dormir, eu li o livro para ele. À medida que

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ia lendo, percebi que era uma história muito

triste. Pensei que ele ia ficar triste, ia chorar,

não deveria ter comprado aquele livro. Eu su-

geri ler outro livro. Mas ele insistiu e eu conti-

nuei até o fim. E, como eu imaginava, no fim

ele começou a chorar, e chorou muito. Eu pen-

sei que não deveria ter mesmo comprado aque-

le livro. Depois que ele dormiu, coloquei o li-

vro na estante. Na noite seguinte, peguei ou-

tro livro para ler, mas ele pediu o da ursa. Eu li

toda a história da ursa de novo, e ele chorou

de novo. No terceiro dia, a mesma coisa. E eu

pensando no que fazer com ele. No quarto dia,

eu disse basta, não quero ler esta história tris-

te para você chorar de novo. Para quê? Então

ele respondeu: Mãe, é que eu não sei, quem

sabe dessa vez não acaba tão mal.

A mulher não sabia como resolver esta situação,

por isso veio me procurar. Eu a aconselhei a

inventar um outro final para a história, um final

mais feliz. Mas repeti que chorar era muito bom.

Os chamados contos de fada, que geralmente

nem fadas têm, e que os russos preferem chamar

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de contos maravilhosos, a maior parte deles é

de histórias de terror. E crianças gostam de his-

tórias de terror. O Júlio se referia a isso como

treino das emoções. É muito importante este

conceito, porque a criança sabe que é um jogo

de faz-de-conta, mas ela chora, ri, fica com raiva.

Vai calejando as emoções, se preparando com

essas emoções de faz-de-conta para a chegada

das emoções verdadeiras.

Houve uma época, isso faz mais de 20 anos, em

que a moda era dizer que conto de fada era um

horror, traumatizava. O que é isso? As crianças

querem ouvir essas histórias, adoram. As emoções

emocionam, mas não traumatizam. O que

traumatiza são coisas de verdade. Criança sabe

muito bem o que é faz-de-conta e sabe muito bem

a hora de embarcar e desembarcar. Não faz

sentido ter medo de falar nisso, tem de falar. Você

tem maneiras e maneiras, mas fale a verdade.

Eu tenho cinco netos, adultos já, e três bisnetos,

um menina e dois meninos. São mais altos do que

eu, com 12, 13 anos e medindo 1m70.

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Já não se fazem mais crianças como antigamente.

Elas agora crescem muito. Elas estudam, se in-

formam, viram técnicos, mas as emoções ainda

são de criança. Tenho também muitos sobrinhos

e crianças que falam comigo, eu falo com tantas

e tão diferentes crianças. O teatro que fizemos

foi para crianças tão diferentes, de vários bairros.

E o que emociona, emociona. Existe um livro

francês que enumera 36 situações dramáticas

diferentes – e todas são variações sobre o mesmo

tema. A maneira de tratar a situação é que

muda. Cada escritor tem o seu jeito de contar

história. Mas no fundo eles querem chegar a isso

mesmo, às emoções. Com variações sobre época,

lugar e cultura.

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Capítulo XIX

Mentiras sinceras me interessam

Quando as editoras me procuram, a primeira

coisa que digo é que não gosto de trabalhar com

prazos. Eu sempre os cumpro, mas não gosto de

estabelecê-los. Falar em prazos, para uma mulher

de 87 anos, pode ser um assunto de risco. Mas

isso não me impede de continuar trabalhando

muito. No final de 2004, por exemplo, eu

entreguei quatro textos para editoras diferentes

no prazo de 15 dias. Eram a Cia. das Letrinhas, a

Moderna, a Salamandra e a Global. Mas eu não

sou capaz de dizer os nomes de todas as editoras

com quem trabalho, são 14.

E também não consigo falar sobre minhas obras

completas, nem tenho idéia do que são minhas

obras completas. Eu escrevi muito, muito

mesmo, durante os últimos 60 anos. Muita coisa

se perdeu. Todos os roteiros do Sítio, todas as

adaptações de livros, todos os teatros da

juventude. Era tudo datilografado, a maioria

se extraviou.

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Também publiquei, em 2004, uma antologia pela

Companhia das Letrinhas, chamada Mentiras e

Mentiras, uma série de pequenas crônicas sobre

a mentira. Uma das crônicas é baseada na prática

de adotar o primeiro de abril como dia da

mentira. Há também uma crônica sobre mentiras

literárias, mas a maior parte das histórias fala das

coisas da vida, do cotidiano, coisas até verda-

deiras acontecidas comigo, a que eu assisti. A

idéia é mostrar mentiras diversas para a criança

tirar sua conclusão, se foi bom mentir assim ou

se talvez tivesse sido melhor contar a verdade.

Dá um pouquinho de trabalho para a cuca, e

não vou sair dizendo que mentir é pecado, que

não se pode mentir, ora bolas. Às vezes é melhor

uma boa mentira do que uma má verdade, e há

mentiras em legítima defesa, muito generosas,

há mentiras safadas, há mentiras de todo tipo,

então eu quero contar histórias sem dizer se isso

é bom ou mal.

Eu conto também a história do escritor Romain

Gary. Ele era um aviador que acabou se tornando

um herói francês e depois escreveu muitos livros

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sobre animais. Uma de suas obras leva o nome

de A Promessa do Amanhecer, em que ele narra

um episódio sobre a mãe dele, que era uma atriz

de uma companhia mambembe russa. Ele

cresceu sem nunca ter conhecido o pai, mas foi

criado com muito carinho e muito desvelo pela

mãe. Um dia, ele foi convocado pelo exército

francês para servir como aviador em missões

perigosas. Ao se despedir da mãe, ela lhe disse

que ele não precisava se preocupar com nada,

que ela estaria bem e que escreveria para ele

uma carta por semana. Ele passou vários meses

servindo o Exército, foi condecorado e tudo.

Quando voltou para casa, ficou sabendo que a

mãe tinha morrido havia seis meses. Na verda-

de, ela estava muito doente quando ele foi con-

vocado pelo exército, ela sabia que iria morrer

logo. Então, escreveu uma série de cartas e pe-

diu para que um amigo colocasse uma por vez

no correio, toda semana. Assim, ela pôde cum-

prir a promessa de que ele receberia uma car-

ta dela por semana. Foi uma mentira que ela

contou para ele, mas uma mentira verdadeira.

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Uma mentira vinda de um tipo de mãe muito

especial. Este é o espírito do meu livro.

Outra coletânea, também publicada em 2004,

foi para aquela coleção Para Gostar de Ler,

reunindo crônicas que publiquei em vários

veículos. O nome do livro é Tatianices. Os editores

deram este nome e eu achei bacana, engraçado.

Tatianices são brincadeiras que eu faço. No

prefácio eu já anuncio que vou tratar de papo-

cabeça. Vou brincar com coisa séria, com

sabedoria popular, provérbios e nomes geo-

gráficos. Vou brincando e contestando até as

verdades verdadeiras, que nem sempre são, para

que as crianças usem as próprias cabecinhas para

concordar ou discordar de mim. Não venho

dizer que isso é bom ou ruim. Façam um favor,

eu peço as crianças, usem sua própria cabeça.

Eu quero que depois elas digam: isso eu aprendi

com Tatiana Belinky. Eu gostava de fábulas

russas, gregas, francesas, mas havia sempre a

famigerada moral da história no fim, que dizia

o que eu tinha que entender. Eu detestava

aquilo. É como vingança que escrevi este livro.

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Eu continuo trabalhando bastante. Estou sen-

tada aqui, refastelada, escrevendo coisas que me

divertem, não tenho horário, não tenho disci-

plina. É muito difícil eu ter prazo.Tinha, no tem-

po da TV, mas agora eu faço o que eu quero. Eu

escrevo à mão, Dostoievski escrevia à mão. No

fim ele editava, tinha uma taquígrafa que an-

dava com ele para todo lado. Todos os escrito-

res escreviam à mão antes da máquina de escre-

ver. Meu Deus, quantos e quão bons...sem me

comparar com eles. Eu nunca cheguei a adotar

o computador. Eu tinha uma máquina de escre-

ver, uma Olímpia portátil. Mas agora eu tenho

artrite nos dedos. Quando eu escrevo à mão vai

tudo bem, às vezes dói e então eu fico louca da

vida. Minha escrita é firme como há 20 anos.

Depois que escrevo, alguém digita para mim.

Quando a editora está com pressa, eles aceitam

o manuscrito de qualquer jeito.

O crítico preferido do meu trabalho era o Júlio,

agora é o meu filho Ricardo, que é escritor

também e não me dá mole. Se ele não gosta de

alguma coisa ele fala.

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Você sempre pode melhorar um texto, pode pi-

orar também, mas em geral melhora. Então eu

escrevo, guardo na gaveta, esqueço por alguns

dias. Aí eu tenho um espírito mais crítico. Depois

que está digitado eu acho que pode melhorar e

depois que está publicado também. Mas na hora

de fazer eu faço o melhor possível. Há um

provérbio russo que diz que a manhã é mais sábia

que o anoitecer. Então eu escrevo à noite e leio

de manhã. De manhã eu sou dona-de-casa, fico

sonada também. Na época da televisão, eu

começava a escrever às dez da noite e ficava na

máquina até uma da manhã. Às vezes, as pesso-

as falam que eu fico refastelada, sem fazer nada,

sentada. Eu pergunto: como você sabe que eu

não estou fazendo nada. Eu estou aqui pensan-

do, isso é vida de trabalho.

Hoje, eu não saio tanto de casa, não estou mais

dirigindo, estou com 87 anos, o que é uma certa

idade, tenho problemas de coluna, estou na fa-

mosa idade do condor. Com dor aqui, com dor

ali. Às vezes, a dor baixa mesmo. Já dancei mui-

to, andei de bicicleta, já pintei e bordei.

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De vez em quando, eu vou ao teatro, leio sem-

pre, a cabeça está muito boa, mas a carcaça não

quer mais nada. Mas continuo lendo de três a

quatro livros ao mesmo tempo. E perco, ou gan-

ho, religiosamente duas horas por dia lendo os

jornais. Leio todos os cadernos, os editoriais, os

colunistas. Quando acho que algum assunto

pode interessar para alguém, recorto para

entregar depois.

Eu sou boa apenas naquilo que gosto de fazer.

Vivi demais para fazer coisas das quais não gos-

to. Por exemplo: traduzir Dostoievski. Isso eu

não faço mais. Dostoievski é um autor bom para

ser lido, mas chato de ser traduzido. Se me

encomendam um trabalho que me excita, aceito

na hora. Caso contrário, fujo dele.

Produzi muita coisa ao lado do Júlio, que foi

meu parceiro intelectual e de vida também. Nos

últimos tempos, pouco antes de ele morrer, não

estávamos fazendo as mesmas coisas. Ele tinha

voltado ao consultório e eu andava às voltas

com minhas coisas.

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Foram 50 anos de cumplicidade e eu escrevi um

livro dedicado a ele. Ele morreu em 1989. Eu esta-

va na parte de baixo desta casa em que moro, e

ele na de cima. Ele era cardíaco. Não sei o que me

deu naquele dia, subi e ele estava lendo um livro.

Aí eu perguntei se ele estava bem. Ele respondeu

que não sabia, que estava se sentindo um pouco

mal, e que talvez ficasse melhor se se levantasse

um pouco. E então ele deixou o livro cair, foi se

abaixar para pegar e morreu. Morreu em cima de

mim. Ele chegou a ser levado para a UTI, mas não

adiantava mais. Mas foi a morte que ele sempre

pediu. E ainda com um livro na mão.

Em relação à morte do Júlio eu me sentia um

pouco como aquele rei da história, que tinha

tanto medo de morrer que tomava um pouco

de veneno todos os dias, para se vacinar contra

a morte. O Júlio tinha sofrido vários enfartes,

era safenado. Eu tinha medo de que ele tivesse

um derrame e ficasse paraplégico ou com

alguma outra incapacidade. O melhor para ele

acabou mesmo sendo uma morte súbita. Não

foi tão traumático como a morte do meu pai

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aos 46 anos, num acidente estúpido de avião. E

nem como a morte do meu filho André, num

acidente de moto na França, quando ele tinha

apenas 26 anos.

O André tinha sido convidado para participar

de um festival de teatro amador na cidade de

Nanci. A situação política dele aqui no Brasil não

era boa. Tinha surgido uma notícia de que ele

estava sendo perseguido pelo governo militar,

na época da ditadura. Então eu disse aqui em

casa que o André tinha de viajar. Disse que ele

não precisava fugir, bastava aproveitar o convite

para aquele festival de teatro e sair do país. De

um dia para o outro ele foi embora.

Ele ficou na Europa por dois anos. Eu viajei para lá

duas vezes, para visitá-lo em Londres e depois em

Paris. No dia do acidente ele estava em Versailles,

de moto, levando alguns papéis para o professor

de um curso que ele fazia. Estava de capacete e

tudo, mas veio um caminhão por trás e o

atropelou. Ele morreu na hora. A morte dele e do

meu pai foram os grandes traumas da minha vida.

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O André vivia com a mulher, em Paris. Alguns

dias antes do acidente, ela veio a São Paulo visi-

tar os pais. Ela havia acabado de perder o bebê

que eles estavam esperando. Ela estava no se-

gundo mês de gravidez quando resolveram fa-

zer uma viagem de Paris a Londres, de moto.

Logo depois ela perdeu a criança. Não cheguei

a ter netos do André.

O André morreu em março de 1971, no auge da

repressão aqui no Brasil. Um ano antes eu havia

perdido minha mãe, com 77 anos. O André era

ator e diretor, chegou a colaborar com o Glauber

Rocha em um roteiro. Ele era muito bonito. Era

excepcionalmente bonito. Muito brilhante, muito

inteligente. A morte dele foi um acontecimento

muito difícil. Eu fiquei tão arrasada que não tive

condições de viajar a Paris para cuidar do traslado

do corpo. Meu irmão Benjamin foi em meu lugar.

O corpo do André chegou a São Paulo no dia 16

de março de 1971, dois dias antes do meu

aniversário de 52 anos. Mas eu continuo

conversando com ele todos os dias, enquanto olho

para seus retratos na parede.

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O André gostava muito de me provocar. Um dia,

em uma de nossas conversas, ele me disse: Ah,

mãe, não dá para discutir com você. A gente

nunca sabe quando você está falando sério ou

quando está brincando. André, eu disse, eu

nunca sou tão séria como quando estou

brincando. É que eu sou uma séria light.

Eu quero ter excesso de humor na minha vida, e

excesso de poesia também. Poesia e humor são

fundamentais na vida, como a literatura e a

convivência com os outros. Há pouco tempo, um

escritor famoso me procurou para se queixar da

vida e das dificuldades da profissão. Eu tinha a

certeza de que ele estava à espera de um

conselho, ou de que eu o apoiasse naquele

pessimismo todo. Eu disse apenas que ele não

deveria se levar tão a sério, que deveria haver

algo de ridículo e risível naquela situação que

ele estava me descrevendo. Encontre o que há

de engraçado na sua vida e ria disso, eu falei.

Depois disso, ele começou a me ligar com certa

freqüência para dizer que tinha aprendido a

lição e estava vivendo melhor.

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Eu nunca briguei com o Júlio, porque eu levava

tudo na brincadeira. É uma arte, uma estraté-

gia. Senso de humor. Ter senso de humor foi

uma coisa que o Júlio aprendeu comigo, ele não

tinha tanto assim. Ele era poeta. Era muito com-

plicado. Eu não posso ser solene, isso não é co-

migo. Meu pai tinha muito senso de humor,

minha mãe também. Eles eram muito diferentes

um do outro, mas senso de humor os dois

tinham. Nós, judeus, temos de ter muito senso

de humor para dar conta de dois mil anos de

perseguições e tragédias.

Eu vivo a viva sem fazer planos. Nunca os fiz. As

coisas simplesmente acontecem, nunca procurei

nada. Nem meu marido eu procurei, achei embaixo

da mesa. Aliás, quando eu era mocinha, achava

um horror as pessoas pensarem que eu estava

procurando marido. Eu não queria nem saber. Às

vezes eu percebia que havia algum rapaz querendo

alguma coisa, mas eu não deixava nem chegar

perto. Tudo acontecia naturalmente, aliás eu

tenho um livro chamado Acontecer, que fala

justamente sobre isso, o acaso da vida.

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Como todo escritor, penso que também gosto

de me esconder atrás da minha obra. Às vezes,

as pessoas me perguntam para que faixa eu es-

crevo. Eu não sei; às vezes, faço um livro assim,

adaptado para crianças, mas também pode ser-

vir para os universitários. Eu escrevo o que te-

nho vontade de escrever, acho que tudo dá sam-

ba, dá uma historinha. Qualquer coisa que acon-

tece com a gente pode virar uma história.

Talvez, meu grande talento seja o de fazer esta

transposição da realidade para as páginas de um

livro de maneira quase que instantânea. Eu até

poderia escrever um livrinho com este nome,

Instantâneos, como se fosse uma máquina

fotográfica, porque eu capto momentos da vida,

do cotidiano, eu não conto coisas ruins, coisas

tristes. Eu não tenho vontade de contar coisas

tristes, dramáticas.

Quando eu começo a escrever eu sei, mais ou

menos, como é o causo que eu vou contar. Eu

sei como vai ser, mas não sei como vai sair. Aí eu

escrevo, depois mexo um pouco até sair uma

coisa mais escorreita. Bonita essa palavra.

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E o resto vai se descobrindo à medida que se

escreve, e vai acontecendo. Quando a história é

emocionante, eu me emociono também, dou

risada. Tenho um livro dedicado ao Júlio que se

chama Namoro, são cinco crônicas chamadas de

namoro número um, dois, três, quatro e cinco.

E ele traz também os poemas do Júlio, as

cantadas. O acróstico que ele me enviou no dia 4

de outubro de 1939. Nós nos casamos em maio

de 1940. O Júlio era muito inteligente e

talentoso, não foi à toa que gostei dele. Ele era

capaz de pegar uma só palavra e trabalhar nela

um verso, uma idéia, uma intervenção. Eu tive

muita sorte com ele. Ele também teve um pouco

comigo, mas eu tive mais.

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Capítulo XX

Seu Sebastião sou eu mesma

Falar destas coisas, que aconteceram há 40 ou

50 anos, e me lembrar de alguns detalhes, não é

problema para mim. A memória sempre foi

minha aliada, desde pequena. O Júlio costumava

dizer que eu tinha memória fotográfica. Quando

meu pai terminava de ler um poema para mim,

ele costumava perguntar: o que é que o papai

leu? E eu era capaz de repetir quase na íntegra.

E eu tinha quatro ou cinco anos. Em meus livros,

recuperei muitas histórias que tinha ouvido em

russo e alemão, histórias que não estavam

escritas, eu as guardei somente de ouvi-las.

Eu visitei a Rússia pela última vez nos anos 60,

na época do Krushev. Não senti que as coisas

estivessem tão ruins por lá. Claro que, para nós,

aqui estava muito melhor. Eu sempre vivi com a

minha família por perto. Houve uma época em

que nós tínhamos sete casas aqui na rua, todo

mundo morava pegado. Era muito barato, então

praticamente criamos uma aldeia no bairro.

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Meus irmãos moravam por aqui – o mais novo

morreu, de câncer no pâncreas, depois de so-

frer muito – meus netos moravam por aqui. Eles

chegavam e gritavam: Tati, Tati, tem algum li-

vro novo pra gente? Meus netos sempre me

chamaram de Tati, e meus filhos nunca me

chamaram de mãe. O André, por exemplo,

primeiro me batizou de Tati, depois de Tiana, e

finalmente de Tião. Ele achava Tatiana muito

grande e começou a me chamar de Tião. A moda

pegou e alguns netos ainda me chamam de Tião.

Uma vez, quando morávamos na Rua Itacolomy,

um entregador perguntou se o Seu Sebastião

estava em casa. Eu disse que não havia ninguém

chamado Sebastião lá. Depois percebi que ele

estava se referindo a mim mesma. O seu

Sebastião sou eu, eu disse.

Minha mãe também não gostava de epítetos,

queria ser chamada apenas de Rosa, pelos filhos

e pelos netos. O Júlio a chamava de mama, mas

os filhos só a tratavam pelo nome. Ela tinha um

sotaque forte, engraçadíssimo. Lia de dois a três

jornais por dia, do jeito dela, é claro.

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Ela punha os jornais em cima da mesa para ler e,

alguns minutos depois, estava dando soco na

mesa. Ela era muito temperamental, por causa

da política, queria estar informada a respeito

de tudo, mesmo assim, nunca se envolveu com

a comunidade russa daqui de São Paulo. Era da

casa para o consultório e do consultório para

casa. Depois que meu pai morreu, ela não se

casou de novo. Acho que nunca mais chegou

sequer a olhar para alguém. Aquele amor deles

foi uma grande paixão. Eles não brigavam, era

ela que brigava com ele. Quando ele a via muito

irritada, ele dizia que ela era um spitche, que

em russo significa palito de fósforo, acende e

apaga à toa. Ela era baixinha e rechonchuda.

Mas quando acendia era brava.

Embora lesse livros e jornais em português, ela

conversava em russo dentro de casa. Falava em

russo até com o Júlio, se ele não entendesse,

problema dele. Uma vez ela descobriu o Eça de

Queiroz, que ela chamava de Eca. Na Rússia, não

sabíamos nada sobre Portugal, nunca havíamos

lido um autor de língua portuguesa.

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Então, após ler Eça de Queiroz, ela se sentiucomo se tivesse descoberto um tesouro. Ele éum grande autor europeu, ela me disse, do por-te dos franceses e dos russos.

Eu e o Júlio formávamos um casal completamentediferente dos meus pais. O Júlio, antes docasamento, era um pouco machista e foi meu paiquem ajudou a mudar isso. Quando ele me pediuem casamento, eu fiquei muito feliz. Eu estavaorganizando alguns arquivos para o meu pai ejoguei um monte de papel para o ar. Quandonos abaixamos para recolher tudo, o Júlio disseque o casamento seria muito bom para mim,porque eu não iria mais precisar trabalhar.Mulher minha não trabalha, disse ele. Eurespondi: o quê? Mulher minha? Tatiana não vaiser essa mulher. Nunca mais se tocou nesseassunto. Sempre trabalhei, desde os 15 anos, evou continuar trabalhando porque gosto. Agora,se você for muito rico e não precisar ganhardinheiro, vou trabalhar numa ONG.

Na adolescência, entre os 14 e 15 anos, eu tinhaum álbum. Em cada página alguma amiga es-

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crevia alguma coisa. Minha mãe escreveu o se-guinte: querida filhinha, seja independente, jus-ta e forte. Quando ela morreu, eu estava juntodela. Suas últimas palavras foram estas: o maisdifícil é ser justo. No mesmo álbum meu paiescreveu que a integridade do caráter era openhor da felicidade. Meu pai, tão carinhoso,

escreveu uma coisa tão séria, em russo.

Neste período de adolescência eu me sentia

muito diferente das minhas amigas brasileiras.

Elas se pintavam, já beijavam e eu não fazia

nada disso, eu era discretíssima. Por outro lado,

eu ia aos bailes do Mack sozinha se precisasse.

Na primeira vez em que quis ir ao baile eu ti-

nha 16 anos. Eu pedi para o meu pai me buscar

na saída, mas ele se negou a ir, alegando que

se eu não tinha um cavalheiro para me acom-

panhar, que ficasse em casa. E eu fiquei. Mas

no baile seguinte eu tinha um cavalheiro para

me buscar. Ele entrou em casa, se apresentou,

me acompanhou ao baile e me trouxe de vol-

ta. Era um estudante de engenharia que se cha-

mava Mario. Minhas amigas de Mackenzie eram

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chamadas de bolas pretas. Isso porque elas iam

aos bailes acompanhadas pela mãe ou pela avó,

com um pretinho básico, um colarzinho de pé-

rolas e ficavam olhando os meninos. Lá eu ia

sozinha, aos 16 anos eu já tinha a chave da mi-

nha casa. Tudo que eu fazia era diferente, eu

não era de namorar. Eu não me achava atraen-

te e não gostava que pensassem que eu queria

arrumar namorado.

De um lado, eu subvertia a ordem, do outro era

discreta demais. Eu cheguei a fundar um clube,

o Clube do Popeye, formado por rapazes e moças

que se reuniam na minha casa para ler poesias,

escrever e fazer tertúlias. Tínhamos até um

jornalzinho. A gente se reunia uma vez por

semana, para ler e conversar mesmo, não era

para namorar.

O meu casamento também foi uma coisa muito

diferente. Fizemos uma festa em casa, para 50

pessoas. Eu e o Júlio dançamos tanto e bebe-

mos tanto que no fim da festa eu disse que ele

deveria ir para a casa dele e vir me buscar só no

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dia seguinte. Eu estava bêbada, ele também.

Aonde nós iríamos chegar daquele jeito? Eu não

queria. E ele me obedeceu, acabou a festa e ele

foi embora. No dia seguinte, ele voltou, procu-

rou o meu pai e perguntou: posso levar sua fi-

lha? E só então me levou. Graças a isso, minha

primeira noite ocorreu somente na segunda

noite. Naquele dia em que saí da casa dos meus

pais nós fomos passear no Horto Florestal, te-

nho até uma foto deste dia. Esta é uma história

que não entrou em livro algum, mas poderia fi-

gurar em uma das minhas crônicas.

Logo após o casamento, eu fui morar com o Jú-

lio em um apartamento da Rua Avanhandava,

em um dos primeiros prédios do local. O aparta-

mento foi presente do meu pai. Quando chega-

mos, havia uma caixinha muito bem embrulha-

da em cima da mesa, eu sabia que era um pre-

sente do meu pai. O presente estava endereça-

do ao Júlio. Na hora eu pensei no que o meu pai

poderia ter dado para o Júlio. Abrimos e vimos

que era uma coleção de camisinhas. Sério mes-

mo. Você é capaz de imaginar um sogro presen-

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teando um genro com uma caixa de camisinhas,

no final dos anos 30? Meu pai foi capaz disso.

Quando o Júlio disse que queria pedir minha

mão em casamento ao meu pai, eu respondi que

ele tinha de pedir a minha mão primeiramente a

mim. E que só depois que eu dissesse sim é que

meu pai seria informado. Como eu aceitei, é cla-

ro, o Júlio foi a um laboratório e fez uma série

de exames de saúde. Quando ele foi falar com

meu pai, levou todos os resultados, para mos-

trar que ele estava com a ficha limpa, que tinha

saúde perfeita. Isso porque meu pai tinha mui-

to medo de doenças. As camisinhas ele deu por-

que achava que nós não deveríamos ter filhos

no momento seguinte. A minha vida foi uma

anedota atrás da outra. Claro que, entre uma

piada e a seguinte, eu também levei bordoadas.

Algumas muito fortes, por sinal.

Há alguns dias, eu li um artigo de página inteira

em que o autor do texto afirmava que as obras

russas ficam muito melhores quando traduzidas

do original. Adorei o artigo, até porque ele rea-

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firmava algo que eu venho repetindo há 50

anos. Cada autor tem o seu estilo, o seu sotaque

e a sua maneira de narrar que podem se perder

durante as traduções. Os franceses são peritos

em uniformizar aquilo que traduzem. Eles

acham que todos os autores precisam de algum

conserto, então eles transformam tudo em

literatura francesa e isso fica muito chato. No

ano passado, eu traduzi uma peça chamada

Querida Helena, de uma autora russa de nome

Ludmilla Razoumovskaya, que foi encenada em

São Paulo pelo diretor Iacov Hillel. Ele me trouxe

o texto, numa versão francesa, dizendo que o

elenco não havia gostado muito. E não havia

como gostar mesmo, era uma tradução

pomposa, quadrada, empolada. Como a peça

retratava alunos prestes a entrar na

universidade, o texto tinha de ser coloquial. Esta

tradução me deu muito trabalho, porque tive

de pesquisar uma série de gírias russas para

construir diálogos mais moderninhos. O

resultado ficou bom, tanto que a autora me

enviou um e-mail, em russo, me parabenizando

pelo trabalho.

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Hoje, quando começo a escrever alguma coisa,

eu percebo o quanto meu cardápio é variado.

Eu me interesso por muita coisa. Nas palestras,

as crianças costumam me perguntar de que tipo

de música eu gosto mais, se da clássica ou da

popular. Eu digo que depende do dia, às vezes

até da hora. Tem dias em que quero música

clássica, tem dias em que quero até rock, é raro,

mas posso querer. Eu não quero me empobrecer,

eu quero me enriquecer, eu quero tudo que é

bom. Eu quero ter visão panorâmica.

Agora me comprometi a traduzir um livro

magnífico do escritor Rudyard Kipling, cha-

mado The Jungle Book e The Second Jungle

Book. Esta obra recebeu uma tradução do

Monteiro Lobato, com o nome de O Livro da

Jangal. Vou receber os originais em inglês para

fazer uma nova tradução. Já disse aos edito-

res que vou trabalhar no meu ritmo, sem pra-

zo para entregar.

No entanto, quando entrego uma nova obra,

eu peço uma gentileza aos editores: por favor,

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publiquem rápido para que eu tenha tempo

de ver.

Estou com 87 anos e não sei se posso esperar

até os cem.

Até os 95 eu estou disposta, mas depois disso

não me comprometo.

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Os livros de Tatiana Belinky

(Obras autorais e traduções)

Sete Contos Russos (Cia. das Letrinhas)

O Gato Professor (FTD)

O Caso do Bolinho (Moderna)

O Caso dos Ovos (Ática)

Quem Parte Reparte (FTD)

O Caçador Valente (Paulus)

Teatro da Juventude (Nacional)

Rapunzel (Paulus)

Mentiras... e Mentiras (Cia. das Letrinhas)

Trazido Pela Rede (Caramelo)

Limeriques do Bípede Apaixonado (34)

Vovô Majai e as Lebres (SM)

17 é Tov (Cia. das Letrinhas)

Beijo, Não! No, No Don’t Kiss (Letras e Letras)

O Toque de Ouro - com N. Hawthorne (34)

Um Caldeirão de Poemas (Cia. das Letrinhas)

Chorar é Preciso (Paulus)

Bregaliques (Paulus)

Que Horta (Paulus)

A Saga de Siegfried: o Tesouro dos Nibelungos

(Cia. das Letrinhas)

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O Grande Rabanete (Moderna)

Tatu na Casca (Moderna)

Quem Casa Quer Casa (Global)

Ali Babá e os Quarenta Ladrões (Martins Fontes)

Beijo, Não (FTD)

Bom Remédio (Ediouro)

O Relógio e Mumu (Scipione)

O Urso e Outras Histórias (Scipione)

Olhos de Ver (Moderna)

Di-Versos Alemães (Scipione)

Di-Versos Hebraicos - com Mira Perlov (Scipione)

Di-Versos Russos (Scipione)

A História da Ursa-Parda (Scipione)

Simbad, o Marujo (Villa Rica)

Limeriques das Coisas Boas (Formato)

O Cocheiro Erudito (FTD)

O Samurai e a Cerejeira (FTD)

O Rei Que Só Queria Comer Peixe (FTD)

O Simplório e o Malandro (FTD)

As Três Respostas (FTD)

O Diabo e o Granjeiro (FTD)

Causos Russos - com Mikhail M. Zochtchenko

(Paulus)

Ilelena, a Sábia dos Sortilégios (Ática)

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Mandaliques: com Endereços e Tudo (34)

Sou do Contra - com Mariana Massarani (Do

Brasil)

Curto-Circuito - com Ivam Zigg (Do Brasil)

Vrishidabha e a Pomba (FTD)

Contanabos – O Senhor das Montanhas (FTD)

A História de Dois Irmãos (FTD)

Saladinha de Queixas (Moderna)

Coral dos Bichos (FTD)

Teatro da Juventude Vol. II (Nacional)

Rita, Rita, Rita! (Ave Maria)

Estorinha de Caçador (DeLeitura)

Desastreliques (José Olympio)

As Aparências Enganam (Cortez)

Teatro Para a Juventude (Nacional)

Antologia de Peças Teatrais: Mas Esta é Uma

Outra História (Salamandra)

O Grande Cão-Curso (Salamandra)

Limeriques (FTD)

Medroso! Medroso! (Ática)

A Operação do Tio Onofre (Ática)

Stanislau (Ática)

Cinco Trovinhas Para Duas Mãozinhas (Do Brasil)

Represália de Bicho (Do Brasil)

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As Coisas Boas do Ano (Paulinas)

Sabe Aquelas Histórias (Paulinas)

A Cesta de Dona Maricota (Paulinas)

Baba-laga no Pantanal (Olho d’Água)

Bumburlei (Formato)

O Crocodilo e Outras Histórias (Scipione)

Transplante de Menina - Da Rua dos Navios à

Rua Jaguaribe (Moderna)

Dez Sacizinhos (Paulinas)

ABC (Elementar)

A Alegre Vovó Guida Que é um Bocado Distraída

(Do Brasil)

Transplante de Menina (Agir)

Diversidade (Quinteto)

Salada Russa (Paulus)

O Pequeno Lorde (34)

Tudo Bem! Ou Não? (Noovha América)

O Flautista de Hamelin (Martins Fontes)

Cançãozinha e Outros Sons (Paulinas)

Lendo Tchecov (Ediouro)

Assim, Sim (Paulinas)

O Caso do Vaso (Paulinas)

Acontecências (Dimensão)

Clássicos Russos Para Jovens (Thex Editora)

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ABC e Numerais (Cortez)

O Gato de Botas (Martins Fontes)

Os Contos de Grimm (Paulus)

Onde Já Se Viu? (Ática)

O Galinho Apressado (Paulinas)

Joãozinho e Mariazinha (Paulus)

Contas Meio Tontas e Figuras Sem Criaturas

(Elementar)

A Aposta (Paulinas)

O Que eu Quero (Paulinas)

Quatro Amigos (Paulinas)

TV Sem TV e Outros Momentos (Paulinas)

Pontos de Interrogação - com André Neves

(Noovha América)

Histórias de Avós e Netos - com Moacyr Scliar e

João Carrascoza (Scipione)

Sete De Um Golpe Só (Martins Fontes)

Pinóquio (Martins Fontes)

O Patinho Feio (Martins Fontes)

A Gata Borralheira (Martins Fontes)

João e Maria (Martins Fontes)

Branca de Neve e os Sete Anões (Martins Fontes)

A Bela Adormecida no Bosque (Martins Fontes)

O Livro das Tatianices (Moderna)

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Cantiga do Tiripiri-Biribim (Do Brasil)

Bidínsula e Outros Retalhos (Atual)

Cachtanca Artista Por Acaso (Atual)

Brincaliques Quase Travalínguas (Evoluir Cultural)

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Índice

Apresentação - Hubert Alquéres 05

Introdução - Sérgio Roveri 13

Ou São Petersburgo ou a menina 23

E a vaquinha foi para o mar 39

Meu primeiro papel: uma mosca 45

Um paraíso de bananas 55

Herr Tabor perdido na selva 61

Meu amiguinho Paulo Autran 67

Tudo em cima da hora. Tudo ao vivo 77

Um herói para São Paulo: Emílio Ribas 87

Um marido embaixo da mesa 95

A russa cai no samba 105

O elefante branco na Liberdade 119

Uma Tatiana em cada esquina 127

A pré-história dos efeitos especiais 135

Um colírio para o faraó 145

Do Jeca Tatu a Tchecov 151

É da casa do Júlio? Aqui é o Monteiro Lobato 159

Se eu gosto, escrevo. Se não gosto, falo. 167

Que venham as lágrimas 179

Mentiras sinceras me interessam 193

Seu Sebastião sou eu mesma 207

Os livros de Tatiana Belinky 219

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Crédito das fotografias

Todas as fotos são do acervo pessoal de Tatiana Belinky.

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Coleção Aplauso

Série Cinema Brasil

Alain Fresnot – Um Cineasta sem AlmaAlain Fresnot

Anselmo Duarte – O Homem da Palma de OuroLuiz Carlos Merten

Ary Fernandes – Sua Fascinante HistóriaAntônio Leão da Silva Neto

Bens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach

Braz Chediak – Fragmentos de uma VidaSérgio Rodrigo Reis

Cabra-CegaRoteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman

O Caçador de DiamantesRoteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro

Carlos Coimbra – Um Homem RaroLuiz Carlos Merten

Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de ViverMarcelo Lyra

A CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner de Assis

Casa de MeninasRomance original e roteiro de Inácio Araújo

O Caso dos Irmãos NavesRoteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person

Como Fazer um Filme de AmorRoteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero

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Críticas de Edmar Pereira – Razão e SensibilidadeOrg. Luiz Carlos Merten

Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo ShimbunOrg. Alessandro Gamo

Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LGOrg. Aurora Miranda Leão

Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de SerOrg. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak

De PassagemRoteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias

DesmundoRoteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui

Djalma Limongi Batista – Livre PensadorMarcel Nadale

Dogma Feijoada: O Cinema Negro BrasileiroJeferson De

Dois CórregosRoteiro de Carlos Reichenbach

A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho

Fernando Meirelles – Biografia PrematuraMaria do Rosário Caetano

Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio

Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio

Helvécio Ratton – O Cinema Além das MontanhasPablo Villaça

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O Homem que Virou SucoRoteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito

João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas HistóriasMaria do Rosário Caetano

Jorge Bodanzky – O Homem com a CâmeraCarlos Alberto Mattos

José Carlos Burle – Drama na ChanchadaMáximo Barro

Luiz Carlos Lacerda – Prazer & CinemaAlfredo Sternheim

Maurice Capovilla – A Imagem CríticaCarlos Alberto Mattos

Narradores de JavéRoteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu

Pedro Jorge de Castro – O Calor da TelaRogério Menezes

Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella

Rodolfo Nanni – Um Realizador PersistenteNeusa Barbosa

Ugo Giorgetti – O Sonho IntactoRosane Pavam

Viva-VozRoteiro de Márcio Alemão

Zuzu AngelRoteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende

Série Crônicas

Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeçasMaria Lúcia Dahl

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Série Cinema

Bastidores – Um Outro Lado do CinemaElaine Guerini

Série Ciência & Tecnologia

Cinema Digital – Um Novo Começo?Luiz Gonzaga Assis de Luca

Série Teatro Brasil

Alcides Nogueira – Alma de CetimTuna Dwek

Antenor Pimenta – Circo e PoesiaDanielle Pimenta

Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik

Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como OficioOrg. Carmelinda Guimarães

Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior

João Bethencourt – O Locatário da ComédiaRodrigo Murat

Leilah Assumpção – A Consciência da MulherEliana Pace

Luís Alberto de Abreu – Até a Última SílabaAdélia Nicolete

Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa

Renata Palottini – Cumprimenta e Pede PassagemRita Ribeiro Guimarães

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Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBCNydia Licia

O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e PoesiaAlcides Nogueira

O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do TeatroIvam Cabral

O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista VilmaNoemi Marinho

Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o ArNeyde Veneziano

O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra PrometidaSamir Yazbek

Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em CenaAriane Porto

Série Perfil

Aracy Balabanian – Nunca Fui AnjoTania Carvalho

Ary Fontoura – Entre Rios e JaneirosRogério Menezes

Bete Mendes – O Cão e a RosaRogério Menezes

Betty Faria – Rebelde por NaturezaTania Carvalho

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Carla Camurati – Luz NaturalCarlos Alberto Mattos

Cleyde Yaconis – Dama DiscretaVilmar Ledesma

David Cardoso – Persistência e PaixãoAlfredo Sternheim

Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da VidaMaria Leticia

Etty Fraser – Virada Pra LuaVilmar Ledesma

Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no ArSérgio Roveri

Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus

Ilka Soares – A Bela da TelaWagner de Assis

Irene Ravache – Caçadora de EmoçõesTania Carvalho

Irene Stefania – Arte e PsicoterapiaGermano Pereira

John Herbert – Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa Barbosa

José Dumont – Do Cordel às TelasKlecius Henrique

Leonardo Villar – Garra e PaixãoNydia Licia

Lília Cabral – Descobrindo Lília CabralAnalu Ribeiro

Marcos Caruso – Um ObstinadoEliana Rocha

Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek

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Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa

Miriam Mehler – Sensibilidade e PaixãoVilmar Ledesma

Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em FamíliaElaine Guerrini

Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das OutrasSara Lopes

Paulo Betti – Na Carreira de um SonhadorTeté Ribeiro

Paulo José – Memórias SubstantivasTania Carvalho

Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho

Reginaldo Faria – O Solo de Um InquietoWagner de Assis

Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis

Renato Consorte – Contestador por ÍndoleEliana Pace

Rolando Boldrin – Palco BrasilIeda de Abreu

Rosamaria Murtinho – Simples MagiaTania Carvalho

Rubens de Falco – Um Internacional Ator BrasileiroNydia Licia

Ruth de Souza – Estrela NegraMaria Ângela de Jesus

Sérgio Hingst – Um Ator de CinemaMáximo Barro

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Sérgio Viotti – O Cavalheiro das ArtesNilu Lebert

Silvio de Abreu – Um Homem de SorteVilmar Ledesma

Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana?Maria Thereza Vargas

Suely Franco – A Alegria de RepresentarAlfredo Sternheim

Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho

Vera Holtz – O Gosto da VeraAnalu Ribeiro

Walderez de Barros – Voz e SilênciosRogério Menezes

Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat

Especial

Agildo Ribeiro – O Capitão do RisoWagner de Assis

Carlos Zara – Paixão em Quatro AtosTania Carvalho

Cinema da Boca – Dicionário de Diretores

Alfredo Sternheim

Dina Sfat – Retratos de uma GuerreiraAntonio Gilberto

Eva Todor – O Teatro de Minha VidaMaria Angela de Jesus

Eva Wilma – Arte e VidaEdla van Steen

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Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão BrasileiraÁlvaro Moya

Lembranças de HollywoodDulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim

Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx

Ney Latorraca – Uma CelebraçãoTania Carvalho

Raul Cortez – Sem Medo de se ExporNydia Licia

Sérgio Cardoso – Imagens de Sua ArteNydia Licia

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Formato: 12 x 18 cm

Tipologia: Frutiger

Papel miolo: Offset LD 90g/m2

Papel capa: Triplex 250 g/m2

Número de páginas: 240

Tiragem: 1.500

Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

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© 2007

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921 Mooca03103-902 São Paulo SPwww.imprensaoficial.com.br/[email protected] São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109Demais localidades 0800 0123 401

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial

Roveri, Sérgio Tatiana Belinky: ... e quem quiser que conte outra / Sérgio Roveri. - São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. 240p. : il. – (Coleção aplauso. Série perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho)

ISBN 978-85-7060-546-7.

1. Belinky, Tatiana, 1919 2. Escritoras brasileiras – Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II.Título. III. Série.

CDD 928.69

Índices para catálogo sistemático:1. Escritoras brasileiras : Biografia 928.69

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004)Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98

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Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria

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