Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

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Tarefas do Cristianismo de Libertação (I): crítica da idolatria Jung Mo Sung Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo Adital 25.02.2011 Em um artigo recente, eu escrevi que uma das questões fundamentais do nosso tempo é que "o Império global de hoje domina por sedução”. Diferentemente de todos os impérios anteriores, o atual sistema capitalista global não tem no poder e força militar o seu principal instrumento de expansão e dominação. Usa sedução e fascinação, a ostentação do seu modo de vida (na verdade da sua elite) como sua arma de conquista. Pessoas e povos que se sentem fascinação pelo modo de viver de um grupo assume este modo como o seu modelo de vida, deseja ser incorporado neste mundo e não deseja nada diferente e, por isso, crê que não há alternativas. E o seu medo é não ser reconhecido pela elite do mundo e ser expulso do "banquete do mundo”. Fascinação, medo e ausência de alternativa são características do "sagrado”. E os ideólogos do Império sabem exploram muito bem essa aura religiosa em que está envolto o sistema capitalista atual e reforçam esse processo de sacralização do Império. Em um mundo assim, as palavras do jovem Marx se tornam atuais novamente: "A crítica da religião é a condição preliminar de toda crítica”. Sem a crítica da religião, não é possível ou eficaz as críticas políticas e econômicas, pois o que é visto como sagrado não pode ser criticado. É claro que a crítica imprescindível da religião hoje não é a da cristandade da época de Marx, mas o capitalismo como a "religião da vida cotidiana”. Esta consciência do caráter religioso, sagrado, do capitalismo não é apenas de Marx ou de alguns teólogos da

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Tarefas do Cristianismo de Libertação (I): crítica da idolatria

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade

Metodista de São Paulo

Adital

25.02.2011

Em um artigo recente, eu escrevi que uma das questões fundamentais do nosso tempo é que "o

Império global de hoje domina por sedução”. Diferentemente de todos os impérios anteriores, o atual

sistema capitalista global não tem no poder e força militar o seu principal instrumento de expansão e

dominação. Usa sedução e fascinação, a ostentação do seu modo de vida (na verdade da sua elite)

como sua arma de conquista.

Pessoas e povos que se sentem fascinação pelo modo de viver de um grupo assume este modo como

o seu modelo de vida, deseja ser incorporado neste mundo e não deseja nada diferente e, por isso, crê

que não há alternativas. E o seu medo é não ser reconhecido pela elite do mundo e ser expulso do

"banquete do mundo”.

Fascinação, medo e ausência de alternativa são características do "sagrado”. E os ideólogos do

Império sabem exploram muito bem essa aura religiosa em que está envolto o sistema capitalista

atual e reforçam esse processo de sacralização do Império. Em um mundo assim, as palavras do

jovem Marx se tornam atuais novamente: "A crítica da religião é a condição preliminar de toda

crítica”. Sem a crítica da religião, não é possível ou eficaz as críticas políticas e econômicas, pois o

que é visto como sagrado não pode ser criticado.

É claro que a crítica imprescindível da religião hoje não é a da cristandade da época de Marx, mas o

capitalismo como a "religião da vida cotidiana”. Esta consciência do caráter religioso, sagrado, do

capitalismo não é apenas de Marx ou de alguns teólogos da libertação que desenvolveram a crítica

da idolatria do mercado ou do capitalismo como a tarefa teológica principal – ao invés da

justificação da fé ou do sagrado para um mundo aparentemente não-religioso –, mas também

encontramos em autores como Max Weber e W. Benjamim. Permita-me fazer uma longa citação de

Weber: "[Hoje] Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo [...]. Os

gregos ofereciam sacrifícios a deus das cidades; nós continuamos a proceder de maneira semelhante,

embora nosso comportamento haja rompido o encanto e se haja despojado do mito que ainda vive

em nós. [...] A religião tornou-se, em nosso tempo, ‘rotina quotidiana’. Os deuses antigos

abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes impessoais, porque desencantados, esforçam-se

por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas.”

Os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força

impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e demanda

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sacrifícios de vidas humanas, as dos mais pobres. Como vivemos em uma sociedade "ilustrada” e

desencantada, as linguagens e os sacrifícios não são mais explicitamente religiosos, mas –como diz

Weber– tudo se passa como no mundo Antigo. Não perceber isso e pensar que a tarefa dos

cristianismos e teologias da libertação é apresentar e justificar o sagrado ou deus no mundo de hoje é

–penso eu– perder a criticidade teológica e a perspectiva profética do cristianismo.

Diante desta realidade, há uma tarefa que o cristianismo de libertação e, em particular, a teologia da

libertação precisam assumir como uma tarefa fundamental: a crítica da idolatria, a crítica prática e

teórica da religião dominante, do sagrado que gera fascinação, medo e senso de absoluto em torno do

capitalismo global. É uma crítica que, se os setores religiosos e teologias não fizerem, ficará uma

lacuna na luta por um por outro mundo, e outra globalização.

Teologias de libertação críticas de idolatrias não são necessárias e importantes porque alguns

teólogos querem manter a relevância social das teologias, mas sim porque podem contribuir de modo

substancial no desmascaramento da fascinação e absolutização do atual sistema de dominação e

opressão em escala global.

Se o que foi dito tem algum sentido, a pergunta que se segue é:em que consiste a crítica prática e

teórica da idolatria do mercado? (a continuar)

[Co-autor, com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos

pobres”].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (II): modernidade e a idolatria

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade

Metodista de São PauloAdital

No artigo anterior, eu apresentei a ideia de que o atual Império global domina por sedução,

fascinação, ao mesmo tempo em que impõe medo e a idéia de que não há alternativa ao sistema de

mercado capitalista. Características de um sistema sagrado, que por ser sagrado exige sacrifício de

vidas humanas. (Sagrado exige sacrifício, enquanto Deus da Bíblia quer misericórdia em lugar de

sacrifico. Os profetas chamaram o deus/sagrado que exige sacrifício de ídolo.) Diante deste tipo de

capitalismo, que Marx chamou de "religião da vida cotidiana” fundada na fetichização da mercadoria

e do capital, a crítica da religião se tornou novamente a condição preliminar de toda crítica.

Sem dúvida, uma das críticas mais potentes contra esta "idolatria do mercado” foi feita por alguns

teólogos da libertação, como Hugo Assmann, Franz Hinkelammert, Jon Sobrino e Júlio de Santa

Ana. Infelizmente a maioria destes livros está fora do catálogo das editoras e é pouco discutida ou

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estudada pelas novas gerações. Muitas das discussões no campo da teologia não consideram o atual

sistema econômico-social como um tema teológico (no máximo como um tema da ética social ou da

doutrina social), e, por outro lado, muitos dos cientistas sociais críticos não percebem o caráter sacral

e religioso do atual sistema global. Entre cientistas sociais mais conhecidos no Brasil, Michael Löwy

é um dos poucos que aprofundaram essa questão.

Esta separação ou distinção entre a teologia/ciências da religião e as ciências sociais como dois

campos de conhecimento autônomos e independentes dificultam a compreensão mais acurada e

crítica do caráter religioso do capitalismo, que Marx, M. Weber e W. Benjamin, entre outros mestres

do passado, já haviam apontado. Por isso, eu penso que um dos passos fundamentais para fazermos

uma crítica teórica da idolatria do mercado é repensar a própria concepção da razão e do fazer

ciência gestada no mundo moderno.

Para entender melhor este desafio, é preciso primeiro criticar ou repensar a própria concepção do que

é a modernidade. Normalmente a modernidade é compreendida e também criticada pela pretensão de

construir um mundo baseado na razão e pela proposta de emancipação da humanidade ou de

revolução libertária. A crítica pós-moderna se concentra na crítica da razão moderna e na pretensão

de construir um "novo” mundo a partir da noção de revolução.

O problema é que nós assumimos a noção de modernidade que o próprio mundo Ocidental e

moderno, através dos seus intelectuais, pintou sobe si, isto é, assumimos a ideologia do mundo

moderno como a "verdade” sobre a modernidade. Se olharmos bem, veremos que a modernidade foi

construída sobre a exploração colonial do continente que eles chamaram de América. Para acumular

ouro e prata, escravizaram primeiro os nativos do Continente e depois os negros da África. Não

satisfeitos com milhões de mortes causadas em nome da acumulação "racional” da riqueza/capital,

colonizaram também os países da África e da Ásia. Em resumo, no outro lado da razão moderna está

o irracionalismo de genocídios em nome da acumulação do capital-ouro; o lado luminoso da

ilustração esconde o lado obscuro da modernidade, o seu lado irracional, sacrificial e opressivo.

Muito antes do holocausto –que no fundo é resultado extremado da razão moderna–, Europa

moderna já tinha causado genocídios na África, América e Ásia. Genocídios esses que pouco

escandalizaram a Europa por serem de povos considerados inferiores pela razão moderna.

A base material da ilustração-razão moderna foi construída com a conquista, escravidão e

exploração. Como Dussel já mostrou, a afirmação que iniciaria a modernidade, "Penso, logo sou!”,

foi procedida e tornada possível por "Conquisto, logo sou!”

Eu penso que a separação radical entre assuntos teológicos e sociais, entre a dimensão religiosa e a

racional da sociedade, tem a ver com esta tentativa de esconder o lado irracional, sacrificial,

idolátrico da modernidade do seu lado aparentemente racional e ilustrado.

O mundo moderno não é anti-religioso. Ele é contra religiões que se opõe à racionalidade da

acumulação do capital e utiliza-se das religiões ou grupos religiosos que servem ao seu objetivo. Pior

ainda, cria sua própria religião, que é expressão social do seu espírito idolátrico.

Sem uma compreensão crítica da modernidade e, portanto, também dos equívocos ou insuficiência

das críticas pós-modernas e da própria noção de pós-modernidade, não podemos repensar a relação

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entre teologias críticas e teorias sociais críticas e fazer uma crítica teórica séria da idolatria do

mercado.

[Co-autor, junto com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário

aos pobres”, Paulus].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (III): crítica da lógica sacrificial

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

No primeiro artigo desta série eu afirmei que o Império global hoje domina por sedução e que os

sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força

impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e impõe sacrifícios

de vidas dos mais pobres. No segundo, eu expus a tese de que é preciso superar a imagem da

modernidade pintada pelo próprio mundo ocidental moderno e repensá-la, não como centrada na

razão e emancipação, mas como racionalidade a serviço da irracionalidade da acumulação de capital

à custa de escravidão, colonização e genocídios; emancipação construída sobre exploração de outros

povos.

Neste terceiro, eu quero aprofundar o tema da lógica sacrificial. Para entender a importância deste

tema, precisamos nos lembrar que nós vemos, analisamos e julgamos a vida pessoal, social e a

dinâmica da sociedade através do que Hinkelammert chama de "marco categorial”, isto é, um

conjunto de categorias articuladas por uma determinada lógica. E um das categorias fundamentais do

Ocidente tem sido a de "sacrifício”.

Sacrifício (ato sagrado), no sentido mais primitivo, é uma oferenda – geralmente a vida de uma

pessoa ou animal – que um sacerdote (pessoa sagrada) oferece a Deus, cumprindo com a exigência

divina em troca de um benefício ou da suspensão de algum castigo. Nas teologias sacrificiais, Deus

ou deuses são sempre exigentes, não dão nada de graça e nem perdoam. O não cumprimento das

suas leis produz uma grande desgraça, por isso o contínuo oferecimento de sacrifícios para evitar a

ira divina.

O segredo é a aceitação de um pequeno mal – como sacrificar a vida de alguém ou aceitar algum

sofrimento na vida pessoal – para conseguir um bem maior. Assim, na lógica sacrificial, a imposição

de sofrimento ou morte sobre alguns se transformam no bem. Isto é, a lógica sacrificial inverte o mal

em um bem! É uma completa inversão de valores humanos-éticos em nome de deus, ou, segundo a

crítica bíblica, em nome do ídolo.

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Esta é a razão pela qual Jesus, retomando uma afirmação de Oséias, acusa o sistema social e

religioso do seu tempo de não ter entendido que Deus quer misericórdia e não o sacrifício!

Infelizmente a cristandade – o cristianismo que se alia ao império – retomou a teologia sacrificial e

assim reforçou a lógica sacrificial dominante nos impérios. Quando a sociedade crê que deus não

pode salvar sem exigir sacrifícios, até mesmo do seu próprio filho amado, é claro que vai aceitar

como "natural” o discurso do sistema de mercado capitalista quando fala dos sacrifícios necessários

exigidos pelo mercado. Assim como aceitou a escravidão e exploração colonial como sacrifícios

necessários para o progresso e, também, para a salvação da alma desses sacrificados.

Sem uma crítica radical à lógica sacrificial presente no inconsciente coletivo ou no fundo das nossas

culturas, a crítica radical ao sistema de mercado global não será eficaz. Para isso, é preciso começar

com uma afirmação teológica básica: Deus não quer sacrifícios, mas sim misericórdia e justiça para

os pobres e oprimidos! Esta é uma tarefa que a teologia e o cristianismo de libertação precisam

assumir.

E a morte de Jesus na cruz? Jesus e os evangelhos não interpretaram a cruz como uma exigência

sacrificial de Deus que deveria ser aceita. Pelo contrário, Jesus afirmou que ele dava a sua vida

livremente, não como obediência uma exigência da lei divina. Isto é "dom de si”, doar a sua vida na

luta pela vida dos mais fracos. Pedro, no primeiro discurso após pentecoste diz claramente que o

Templo matou Jesus e Deus ressuscitou. A ação de Deus não está presente na crucificação, pois não

era sua vontade, mas só na ressurreição para mostrar o erro da lógica sacrificial.

Os sacrifícios exigidos e aceitos só se justificam através do cumprimento das promessas da

recompensa. Quando isto não ocorre, foi um sacrifício em vão e os sacrificadores não são mais

vistos como sacerdotes, mas como assassinos. É por isso que os "sacerdotes” do Império dizem que

a razão do não cumprimento das promessas do mercado para o mundo todo é que ainda faltam mais

sacrifícios. Se reconhecessem que estão impondo sacrifícios em vão, eles se perceberiam como

assassinos.

Por outro lado, quem doa sua vida pela vida do seu próximo, não faz por obediência a uma lei

divina, mas livremente, deixando-se levar pela força interna da compaixão e do amor-solidário. Por

isso, quem luta livremente por amor ao próximo, mesmo que não logre o objetivo político-social,

não sente como se tivesse feito um sacrifício em vão. Sabe que a luta valeu por ela mesma, porque

foi expressão da sua liberdade e solidariedade e assim se tornou mais livre e mais humano.

[Autor, de "Sujeitos e sociedades complexas”, Vozes. No twitter: @jungmosung].

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Tarefas do Cristianismo de Libertação (IV): a metáfora do Êxodo

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

Nos três primeiros artigos desta série, eu coloquei o foco mais sobre alguns aspectos do capitalismo

global que o cristianismo e teologia da libertação precisam levar em conta. Neste quarto, eu quero

propor algumas reflexões sobre um aspecto interno do cristianismo de libertação (CL) que pode

provocar estranhamento em alguns leitores. Mas penso que é preciso correr risco de ser mal

entendido e criticado.

Eu penso que a principal metáfora que norteou reflexões e ações do CL foi e, em muitos lugares

continua sendo, a do Êxodo. É claro que Êxodo tem um fundamento histórico, mas a imagem da

passagem da escravidão para a terra da liberdade "onde corre leite e mel”, foi usado como metáfora

que oferece a estrutura de fundo para ações e pensamentos mais imediato e até para reflexões

teóricas.

Para perceber melhor a importância da discussão sobre metáforas, é preciso lembrar que o

pensamento humano é construído com o uso de metáforas. Sempre que precisamos fazer uma síntese

ou oferecer uma visão global, utilizamos uma figura de um outro campo ou área como instrumento.

Por ex., quando alguém diz que o mercado evoluiu como a natureza ou que o universo funciona

como um relógio está se utilizando de metáforas. Este "como” mostra isso. E a escolha adequada de

metáforas é importante porque elas influenciam e, de certa forma, direcionam o modo de pensar e de

viver.

Contra uma teologia que colocava toda atenção no "sair do mundo em direção ao céu”, negando o

valor da história humana, a TL deu uma grande contribuição chamando atenção para a o fato de que

a missão do cristianismo se dá no interior da história humana. E para isso apresentou a metáfora do

Êxodo como modelo fundamental do pensar e agir: a passagem da opressão para o Reino de Deus.

Nas palavras de L. Boff, na década de 1970: que "'por um lado, a libertação é concebida como

superação de toda escravidão; por outro, como vocação a ser homens novos, criadores de um mundo

novo'."

A metáfora do Êxodo pressupõe que na "Terra prometida” não haverá nada que lembre a escravidão

e será completamente novo, até com novo homem e nova mulher. Em termos de hoje, na nova

sociedade que devemos construir não haverá e nem deverá haver nada que nos lembre do tempo da

exploração e opressão, o mercado. Como a marca da opressão hoje é o sistema de mercado global,

na nova sociedade não deveria haver nada de mercado, nada que nos lembre do capitalismo. Esta

forma de pensar, muitas vezes inconsciente, leva alguns, por ex, a criticar de forma radical os

governos Lula e Dilma, mesmo sendo ou tendo sido petistas porque eles, apesar de avanços na área

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social, não acabaram com o mercado. E se eles não lutam radicalmente contra o mercado estão fora

do paradigma do Êxodo. É quase como "tudo ou nada”.

É interessante notar que no NT essa metáfora perde espaço. A história do povo de Israel e a situação

histórica levam, por ex, a Jesusa optar por outras metáforas. Na imagem do "sal da terra”, por ex, o

caminho não é de saída da opressão para liberdade, mas de imersão no mundo para modificá-lo a

partir de dentro, aproveitando e interagindo com o que o mundo tem. Paulo de Tarso também opta

por uma "estratégia” de missão que privilegia a criação de comunidades no interior do Império para

modificá-lo desde dentro. Na minha juventude eu taxaria essas propostas de reformistas, mas hoje eu

penso que a clássica divisão entre pastoral assistencialista, reformista e libertadora precisa ser

repensada. (Eu analisei as questões dos dois últimos parágrafos com mais detalhes, e não de forma

tão "bruta” como aqui, no livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor-solidário com os

pobres”, co-autoria com H. Assmann).

A mudança de metáfora não é simplesmente escolha de uma outra imagem, mas pressupõe uma nova

visão da realidade e das possibilidades históricas. "Sal da terra e luz do mundo” revela uma nova

opção "estratégica” em relação ao êxodo. É claro que Jesus e o NT oferecem outros tipos de

metáforas, mas estou propondo essas reflexões como provocação para repensarmos seriamente a

metáfora do êxodo. Porque por mais que desejemos um mundo sem relações mercantis e mercado –

que sempre provocam distorções sociais –, não é possível construir outra sociedade viável sem

mercado e algumas outras instituições que existem no capitalismo. Vários delas existiam antes do

capitalismo e vão (ou podem existir) após a sua superação.

Em uma situação como a nossa, a de Império Global (extremamente amplo e complexo), talvez seja

interessante aprofundar a discussão sobre o uso de outras metáforas, como a do "sal da terra e luz do

mundo” para nossas ações e reflexões.

[Autor de "Sujeito e sociedades complexas”, Ed. Vozes; no twitter: @jungmosung].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (V): para além das Cebs?

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

No artigo anterior, eu propus repensar a metáfora do Êxodo que norteou uma boa parte do

pensamento teológico e estratégico do cristianismo de libertação nos últimos 40 anos. Neste artigo,

quero continuar a reflexão sobre esse assunto com algumas reflexões sobre as comunidades de base.

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Durante 30 primeiros anos da experiência das Cebs, estas foram apresentadas como um modelo de

Igreja que supera o modelo de cristandade (aliança entre a Igreja e o Estado e a elite da sociedade) e

propostas como "um novo modo de toda Igreja (deveria) ser”. Eu penso que as principais

características das cebs, que as diferenciava do modelo "tradicional” da igreja católica eram: a)

relações interpessoais e comunitárias entre seus membros, possibilitadas pelo número menor de

membros e pelo incentivo de participação e diálogo; b) rompimento do clericalismo e a vivência de

uma igreja "povo de Deus”, onde o padre não era alguém especial, sagrado, mas todos eram cristãos

pelo batismo e padre (ou pastor, porque mesmo em menor número houve experiência semelhante no

mundo protestante) tinha uma função especial; c) a centralidade da Bíblia, substituindo o

"catecismo” como o meio principal de formação e de argumentação religiosa; d) abertura aos

problemas concretos da vida social, que trazia para dentro da cebs e da discussão religioso-teológica

temas econômico-social-político; e) a opção pelos pobres e articulação entre práticas pastorais e

movimentos populares e sociais como resultado da nova compreensão da missão: "construir” o

Reino de Deus e não mais aumentar o número de batizados e catequizados.

Tudo isso era resumido no próprio nome: comunidade (diferente de grandes e, muitas vezes, frias

paróquias) eclesial (centrada na Bíblia e na consciência da missão cristã) de base (formada por

pessoas da base da sociedade e da igreja lutando pela vida das pessoas que vivem na "base” da

sociedade).

Passadas dezenas de anos após o fervor, tanto dentro quanto fora da igrejas, em torno das

cebs ,devemos reconhecer: foi uma novidade "revolucionária” na Igreja e também na sociedade.

Apesar das grandes conquistas, muitos de nós ficamos frustrados ao olhar por essa caminhada e ver

hoje que o "fogo” passou e parece que o velho modelo conservador venceu. Eu penso que uma boa

parte desta percepção se deve à metáfora do Êxodo.

Tendo como pano de fundo a expectativa da "passagem plena” de um modelo tradicional, vertical,

sufocante e desvinculado dos problemas reais da vida para uma Igreja que seria cebs, é claro que o

resultado final é decepcionante. Mas, se julgarmos os resultados a partir de uma outra metáfora, a do

"sal da terra (igreja)”, podemos ver que conseguimos muitas coisas, o jeito de a Igreja ser mudou.

Até mesmo a reação mais conservadora do interior da Igreja também teve que se adaptar e assumir

certas novidades das cebs.

Além disso, o enfraquecimento é também devido ao seu sucesso. Na medida em que as cebs fazem

diferença positiva na vida local, elas crescem e com o número maior de pessoas, as relações

interpessoais e comunitárias se enfraquecem. Mais, comunidades maiores "atraem” párocos,

enviados por bispos mais preocupados com o crescimento da igreja do que com RD. Párocos pensam

a partir do modelo de paróquia, (que não é problema quando só expressa o tamanho da comunidade)

que reintroduz o clericalismo, a diferença qualitativa (e não só de ministério) entre padre e o leigo.

As CEBs, como sal, deram mais sabor à vida de muitas pessoas na sociedade e nas igrejas, mas,

como sal, também se modificam e são modificados na realização da sua missão. É preciso deixar um

pouco de lado o saudosismo e pensar em novos modelos que possam hoje fazer o papel do "sal da

terra”. Novos modelos que mantenha o espírito de relações comunitárias, a centralidade da Bíblia (e

não a doutrina ou catecismo), inserção na vida social e a opção pelos pobres, dentro de um novo

marco de organização e funcionamento.

Page 9: Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

Comblim, na conferência publicada aqui na Adital, sobre evangelho e a atual situação da Igreja

Católica, pensava que o futuro da Igreja Católica está ligado aos leigos. E diante de bispos e padres

que não lhes permitem atuação relevante na sociedade em nome da fé, ele propõe que leigos/as

procurem formar "um sistema de comunicação, um sistema de espiritualidade, um sistema de

organização de presença na vida pública, na vida política, na vida social” que seja autônomo. Acho

que vale a pena pensar com profundidade esta sabedoria do nosso saudoso padre Comblin.

[Autor de "Sujeito e sociedades complexas”, Vozes. No twitter: @jungmosung].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (VI): desafio da espiritualidade

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

Em uma das aulas no curso de mestrado em teologia, em 1986, Hugo Assmann nos disse que se a

teologia da libertação perder a bandeira da espiritualidade para setores mais conservadores e

carismáticos será o seu fim. É claro que ele não falava do fim no sentido literal, mas da perda da sua

força social e eclesial, pois há teologias que sobrevivem por anos mesmo sem muito impacto na vida

das igrejas ou na sociedade. Hoje, tantos anos depois, depois de tantos debates e textos sobre as

causas do declínio da força e influência da teologia da libertação, das cebs e no sentido mais amplo

do próprio cristianismo de libertação, não é difícil reconhecer que Assmann tinha apontado para um

problema real.

Desde o início, os principais teólogos da libertação afirmaram que a TL é o momento segundo,

sendo que o primeiro é a prática de libertação e o momento "zero”, a experiência espiritual de

encontrar nos pobres a face de Jesus. Com o passar do tempo, foi se perdendo referência a este

momento "zero” e o discurso se tornou cada vez mais "árido”, marcado pelo tom sócio-político.

Mais do que isso, podemos dizer que a TL, mesmo que inconscientemente, acabou reproduzindo a

lógica teológica mais tradicional de pensar que tinha uma verdade (no caso aqui a libertadora) que

deveria ser transmitida (através da "conscientização” ou de cursos) às igrejas e ao povo.

Na medida em que se pensa que possui a verdade sobre o evangelho da libertação, passa a ter muita

dificuldade em lidar com pessoas e grupos que pensam diferente ou que expressavam a mesma

experiência espiritual (momento zero) com uma linguagem religiosa ou social diferente. Para

aqueles que crêem que têm a verdade, quem pensa diferente não pensa diferente, mas errado. Esta

postura, além de errada, é contraproducente, pois há, por ex, pessoas com linguagem espiritual-

religiosa carismática (católicos e protestantes) ou pentecostal (evangélicos e pentecostais) que

compartilham da mesma experiência espiritual e a mesma indignação ética frente a injustiças e

pobreza. E, ao invés de um diálogo e aliança, passa a ter uma relação de confronto ou de rivalidade.

Page 10: Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

É claro que muitos no cristianismo de libertação trataram do tema da espiritualidade. Temas como

"mística e revolução” e livros sobre espiritualidade a partir da Bíblia são provas disso. Mas algo

aconteceu e não conseguimos criar uma espiritualidade forte no interior das lutas sociais e políticas

ou uma espiritualidade com a marca da libertação. Justapomos o tema da espiritualidade e mística ao

lado de temas sócio-políticos, mas tivemos muita dificuldade em fortalecer a vivência e reflexão da

espiritualidade que está na origem e impulsiona as práticas de libertação de dentro. O que exige

reflexões e práticas espirituais (como retiros espirituais) que respondam aos problemas e perguntas

que surgem na luta. Tais como, frustrações diante de expectativas não realizadas, o mistério do mal

no nosso meio, como manter se fiel à causa dos pobres quando participamos do poder ou de

privilégios econômicos etc.

Eu penso que devemos retomar alguns dos princípios fundantes da TL. Gustavo Gutierrez nos dá

uma pista: "Seguir a Jesus define o cristão. Refletir sobre esta experiência é o tema central de toda

teologia sadia. [...]

A firmeza e a força de uma reflexão teológica estão, precisamente, na experiência espiritual que lhe

serve de respaldo. Esta experiência é, antes de tudo, um encontro profundo com o Senhor e sua

vontade. [...] Uma reflexão que não nos ajuda a viver segundo o Espírito não é uma teologia cristã.

[...] uma teologia que não se prende a um contexto de vivência da fé corre o risco de converter-se

numa espécie de metafísica religiosa, numa roda que gira no ar sem mover o veículo” (Beber do

próprio poço).

Fortalecer a espiritualidade de libertação que seja expressão da "vida espiritual” no interior das

práticas de libertação e construir diálogo e aliança com outros setores do cristianismo que expressam

a mesma experiência espiritual (momento "zero”) com linguagens e símbolos diferentes são

caminhos fundamentais para o futuro do cristianismo comprometido com a vida dos pobres e

oprimidos/as.

[Autor, com Hugo Assmann, do "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos

pobres”, Paulus. No twitter: @jungmosung].

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Tarefas do Cristianismo de Libertação (VII): teologia crítica e a nova geração

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

Não haverá um cristianismo de libertação sem que haja um pensamento teológico crítico que reflita

criticamente a experiência de fé e práticas sociais de libertação, além de criticar a idolatria que move

a sociedade atual. Muito já se escreveu sobre teoria ou um pensamento crítico, por isso, quero

mencionar aqui somente alguns aspectos de um pensamento teológico crítico que penso serem

importantes para o cristianismo de libertação.

O primeiro é a consciência de que o oposto da verdade não é o erro ou a falsidade, mas sim a

"injustiça dos homens que mantém a verdade prisioneira da injustiça” (Rom 1,18). Não estamos

falando aqui sobre a verdade em termos da ciência, que trabalha com o binômio "afirmação correta

X a errada”, mas sim em termos da "verdade que liberta”, no sentido da verdade que realiza o

sentido humano da vida, o que deveria ser, versus a mentira que mata.

Entendida a verdade desta forma, o critério fundamental não é mais a ortodoxia, que se preocupa

com a formulação correta da doutrina religiosa, mas a ortopraxis, a prática que realiza ou liberta a

verdade das injustiças e, portanto, da mentira que encobre os assassinatos e injustiças. Este tipo de

pensamento assume como uma das suas tarefas fundamentais o desvelamento e a crítica das

ideologias que encobrem a idolatria (sacrifícios de vidas humanas em nome de alguma instituição

elevada à categoria de sagrada, no caso do capitalismo neoliberal, o "mercado livre”). Por isso, como

diz Hinkelammert, citando Marx, no "imperativo categórico de lançar por terra todas as relações em

que o ser humano seja um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezado”.

Sem teologia(s) crítica(s), não há um cristianismo de libertação. E sem uma nova geração de

teólogos e teólogas que produzam esse tipo de teologia, também não haverá esse tipo de

cristianismo. Isso nos leva ao grande desafio hoje de formar a futura geração de pensadores críticos

– seja no campo da teologia ou nas outras áreas de conhecimento humano e social – que sejam

capazes de articular a experiência da fé, a sabedoria (ou a revelação) contida na tradição bíblico-

cristã e a análise crítica da realidade social hoje. Quem conhece um pouco da realidade dos

seminários ou faculdades de teologia, seja no mundo católico, protestante ou evangélico, sabe que

este tipo de teologia não goza de muito prestígio ou aceitação. O que não quer dizer que não haja

grupos que estão lendo e discutindo livros dessa linha.

Anos atrás, o saudoso José Comblin escreveu que atual geração, que é mais pietista-carismática, não

quer saber de teologia (séria), porque teologia faz mal ao pietismo ou ao carismatismo atual. Mas

que é preciso continuar escrevendo teologia para que as próximas gerações não tenham que começar

do zero. Eu não sei se essas palavras ainda valem; mas é verdade que livros de teologia mais crítica

Page 12: Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

estão vendendo bem menos e mesmo editoras antes bastante comprometidas com essa linha estão

relutantes em publicar livros desse tipo também por conta da pouca venda.

Livros devocionais (que não deixam de ter a sua função) são consumidos como se fossem de

teologia, levando os leitores e estudantes a perderem a dimensão crítica da teologia. Com isso, vai se

erodindo um dos pilares fundamentais de um cristianismo crítico, o seu pensamento teológico

crítico.

O cristianismo de libertação enfrenta um desafio geracional: a formação de uma nova geração de

pensadores críticos competentes e a produção de teologias e pensamentos cristãos críticos que

correspondam ao nosso tempo e à atual geração. Pois, a repetição de teologias e teorias que foram

críticas nas décadas de 1980 e 90 e a mera sistematização dos autores clássicos não cumprem mais a

função de teoria crítica e nem formará a nova geração.

Penso que é uma tarefa difícil, mas fundamental, que exige alianças e trabalho conjunto entre grupos

e instituições do campo do conhecimento e de formação teológica. Trabalho conjunto este que só

será possível se diferenças menores (e também certas rivalidades) forem deixadas de lado.

[Autor, junto com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos

pobres”, Paulus].

Tarefas do Cristianismo de Libertação (VIII): ética e auto-organização

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

Neste penúltimo artigo desta série, quero apresentar algumas reflexões sobre uns conceitos que têm

sido cada vez mais usados no campo das ciências econômicas e sociais: a auto-organização e auto-

poiese (auto-produção) de sistemas complexos. Não é uma tarefa fácil em um espaço pequeno como

este artigo, mas o meu objetivo é de simplesmente provocar debates e reflexões.

As principais teorias de transformação social elaboradas no mundo moderno têm como sua estrutura

fundamental a relação sujeito-objeto: há um sujeito de ação ou transformação (por ex., proletários ou

a burguesia como sujeitos históricos) e um objeto que recebe esta ação (por ex, a sociedade ou

alguma instituição). Mesmo que se reconheça que estes objetos possam opor certa resistência às

ações dos sujeitos, não se reconhecia neles a possibilidade de uma ação própria.

Neste sentido, não há muita diferença com teorias de transformação social do mundo antigo. A

grande novidade do mundo moderno foi a de substituir Deus pelo ser humano no papel do sujeito

Page 13: Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

que dirige a história. Por isso, quando setores do cristianismo de libertação (e também de outras

religiões que assumiram a luta social) assumiram o discurso de "construção de nova sociedade e da

história” ou "a construção do Reino de Deus” não tiveram muita dificuldade em dialogar com

ciências sociais modernas. A relação sujeito-objeto –um sujeito com uma vontade e com valores

morais e sociais corretos atuando para transformar o objeto– estava mantida; o único desafio era

compatibilizar os termos do discurso religioso com o discurso político moderno.

A tomada de consciência que os sistemas sociais complexos (também os biológicos e físico-

químicos) possuem propriedades de auto-organização e auto-poiese –isto é, esses sistemas se

organizam (pelo menos parcialmente) e geram novas propriedades sem intervenção de um ser

consciente e externo ao sistema– modifica profundamente a relação sujeito-objeto e, com isso, as

teorias de transformação social.

Isto não quer dizer que sistema social é algo mágico, mas que não há nenhum sujeito externo ao

sistema organizando-o. Seres humanos e grupos sociais que agem com a intenção de modificar ou

mesmo de manter o sistema social são partes do mesmo sistema. Além disso, suas ações produzem

efeitos intencionais e também não-intencionais que vão provocar reações e interações no interior do

sistema que, ao final, o resultado não é expressão da vontade de nenhum dos agentes.

Os neoliberais, no fundo, pressupõem este processo de auto-organização do mercado e tiram a

conclusão indevida de que o mercado sempre produzirá benefícios para todos. Em reação a isso, o

que não podemos é negar a existência de mecanismos auto-regulares do mercado e também de

outros sistemas sociais complexos.

Hugo Assmann, um dos primeiros teólogos da libertação assumir essas noções, disse que a questão

crucial na análise de sistema econômico, "não está em admitir que o mercado tem mecanismos auto-

reguladores, mas em saber até que ponto são includentes e/ou excludentes.” (Desafios e falácias:

ensaios sobre a conjuntura atual , 1991). Não podemos cair no erro de críticas metafísicas que só

enfatizam o aspecto excludente, sem perceber e valorizar também os aspectos de inclusão e de

eficiência na solução de questões econômicas e sociais.

Além disso, não podemos esquecer que sistemas sociais complexos só chegam a se constituir e

funcionar por um período longo na medida que operam neles mecanismos auto-organizadores. Neste

sentido, o desafio é sabermos conjugar consciência social e sujeito ético com a auto-organização do

mercado. Reconhecendo que, em sociedades amplas e complexas, não é possível organizar economia

sem relações mercantis.

Assmann expressa de uma forma muito clara esse desafio: "Aceitar, crítica mas positivamente, o

mercado, sem desistir de metas solidárias, exige uma reflexão nova sobre a própria concepção do

sujeito ético, individual e coletivo. (...) Trata-se de pensar conjuntamente as opções éticas

individuais e a objetivação, material e institucional, de valores, sob a forma de normatização do

convívio humano com fortes conotações auto-reguladoras.”( Metáforas novas para reencantar a

educação, 1996)

[Autor de "Sujeito e sociedades complexas”, Vozes; no twitter: @jungmosung]

Page 14: Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

Tarefas do Cristianismo de Libertação (IX): pessimismo e esperança

Jung Mo SungCoord. Pós-Graduação em Ciências da Religião,

Universidade Metodista de São PauloAdital

Cheguei ao último artigo desta série. Não porque eu tenha esgotado o tema, ou a lista de desafios e

tarefas deste setor do cristianismo que compreende e vive a sua fé a partir da "opção pelos pobres” e

da perspectiva da libertação. Simplesmente porque uma série tem que acabar uma hora, e nove

artigos (em dez semanas) já são suficientes para paciência de qualquer leitor que está a seguindo. O

objetivo da série, mais do que dar resposta aos problemas, foi provocar debates e reflexões sobre a

crise ou enfraquecimento do cristianismo de libertação na América Latina (ou qualquer outro

adjetivo que queiram usar) e seu refortalecimento.

Devo confessar que neste momento estou com humor pessimista. Participei nesta semana no III

Congresso do Anptecre (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em

Teologia e Ciências da Religião) e aproveitei para conversar com vários colegas e amigos/as sobre a

situação e o futuro do cristianismo de libertação. Talvez o cansaço desses três intensos dias de

debates e reuniões esteja interferindo, mas estou mais para pessimismo.

Estou relatando o meu estado de espírito aqui para apontar duas questões. Primeira é a necessidade

de pensarmos criticamente – seja em termos teológicos ou de mais sociológico – a partir da

experiência dos sujeitos ou das pessoas envolvidas com a luta. Nos últimos anos, a linguagem tem

mudado bastante, mas ainda eu sinto que a "linguagem estruturalista”, que enfatiza as questões

estruturais da economia, política e sociedade, tem prevalecido e, assim, as expectativas, angústias e

questões de fé das pessoas ocupam muito pouco espaço. É claro que não estou propondo uma

"subjetivização” da linguagem e das análises do cristianismo de libertação, mas resgatar um dos

princípios fundantes da teologia da libertação: o momento zero é o da indignação ética diante das

injustiças e sofrimentos dos pobres e vítimas das relações opressivas. A TL é ou deve ser uma

teologia que reflete criticamente a experiência de fé no meio de um mundo marcado pelo sofrimento

dos inocentes (cf Gutierrez, no seu importante livro "Beber do próprio poço”).

As análises mais estruturais nos ajudam a compreender os desafios e problemas das lutas de

libertação, mas elas não podem sufocar ou "empurrar” para um segundo plano as questões espirituais

das pessoas e das comunidades; muitos dos quais nascem no meio desta luta. Só para evitar mal

entendidos, por espiritual não entendo o que se opõe ao material ou social, mas a força que move as

pessoas, comunidades e sociedades em direção ao seu objetivo ou à sua utopia.

Segunda tem a ver com a postura que deve marcar a reflexão teórica que se pretende estar articulada

com movimentos sociais de "libertação”. (A palavra libertação vem aqui entre aspas porque penso

que é preciso fazer uma reflexão sobre os diversos sentidos que esta palavra foi adquirindo durante

os 40 anos do cristianismo de libertação.) Eu penso, seguindo a grandes autores, que a postura de

Page 15: Tarefas do Cristianismo de Libertação - Jung Mo Sung

quem faz essas reflexões precisa ser mais pessimista do que otimista. Otimismo, normalmente

baseada mais em desejos do que fatos, leva a uma reflexão não muito crítica, que normalmente

agrada mais ao "publico” no primeiro momento, mas que traz conseqüências problemáticas a médio

e longo prazo.

Este pessimismo intelectual deve ser contraposta à atitude de esperança. Esperança é diferente de

otimismo, pois este parece ter razões para isso; enquanto que esperança é algo que se tem ou vive

"apesar de”.

Ao final deste artigo, posso dizer que o meu humor está menos negativo do que no início, mas

continuo meio pessimista com o futuro do cristianismo de libertação. Pelo menos na forma como eu

tenho experienciado e visto. Mas tenho esperança de que outras formas podem estar surgindo por aí,

formas essas que, por serem novas, não estão sendo compreendidas ou captadas pelas teorias e

conceitos "velhos” que ainda usamos para ler a realidade.

Enquanto isso, continuo fazendo o que posso para contribuir na constituição de um novo "bloco” de

cristianismo que seja profético e libertador. Eu penso que um dos caminhos possíveis é criar uma

articulação entre setores católicos, evangélicos e pentecostais que, meio à margem das tendências

majoritárias das suas igrejas ou tradições, estão querendo viver um cristianismo profético no meio

deste mundo.

Amém!

[Autor, com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos

pobres].