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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES-URI CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTE PROGRAMA DE PÓS-GGRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA MEMÓRIA E TRAUMA EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE, DE GRACILIANO RAMOS TANIRA GIACON FREDERICO WESTPHALEN FEVEREIRO, 2015

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES-URI

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GGRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

MEMÓRIA E TRAUMA EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE, DE

GRACILIANO RAMOS

TANIRA GIACON

FREDERICO WESTPHALEN

FEVEREIRO, 2015

1

TANIRA GIACON

MEMÓRIA E TRAUMA EM MEMÓRIAS DO CÁRCERE, DE

GRACILIANO RAMOS

Dissertação apresentada a Programa de Mestrado em

Letras - área de concentração em Literatura

Comparada, na linha de pesquisa Literatura, História

e Memória, da Universidade Regional Integrada do

Alto Uruguai e das Missões, de Frederico

Westphalen. Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula

Teixeira Porto.

FREDERICO WESTPHALEN, FEVEREIRO DE 2015.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus,

autor da vida, que me sustenta em cada momento. Ele é presença constante, que me

dá forças para vencer as adversidades e prosseguir em busca dos meus sonhos.

À minha família,

por entender a minha ausência, pelo amor, carinho e por aceitarem e apoiarem

minhas escolhas.

Às amigas,

pelo carinho, compreensão e incentivo.

Aos professores do Mestrado em Letras da URI-FW,

pelos valiosos ensinamentos transmitidos.

Ao professor Dr. Lizandro Carlos Calegari e à professora Drª. Luana Teixeira Porto,

por aceitarem participar da minha banca examinadora, pela leitura atenta de meu

texto, pelas reflexões que contribuíram para a renovação de sentido deste trabalho.

Ao Professor Dr. Lizandro Carlos Calegari,

meu orientador, no início dessa dissertação, sempre com dedicação, competência,

sabedoria e amizade conduziu a fase inicial do trabalho. Obrigada pelo apoio,

paciência e o auxílio constante para que eu pudesse levar esse projeto a efeito.

À Professora Drª. Ana Paula Teixeira Porto,

um agradecimento especial pelas orientações, sempre com segurança, sabedoria,

competência, dedicação, incentivo e amizade. Pela incansável leitura de meus textos.

Devo a ela aprendizados que considero fundamentais e que levarei para minha vida.

Sua preocupação, orientação, capacidade de escutar e, quando necessário,

aconselhar, me fizeram perceber o seu grau de humanidade, algo fundamental para

quem ocupa a posição de professora e mestre.

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“A censura nunca acaba para aqueles que vivenciaram a experiência.

É uma marca no imaginário que afeta o indivíduo que sofreu. É para sempre.”

Noam Chomsky

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RESUMO

O objetivo principal dessa dissertação é analisar as relações entre memória e trauma

no livro Memórias do cárcere (1953), de Graciliano Ramos, levando em conta abordagens

sobre a tortura, a violência física e psicológica sofrida pelo personagem-narrador da obra. Este

trabalho dá ênfase a alguns tópicos da biografia do autor, bem como a um aporte teórico sobre

trauma e memória, para, com base nesses pressupostos, ser realizada uma análise da obra,

articulando-a com a realidade social e histórica do Estado Novo (1937 a 1945). O enfoque da

memória e do trauma é fundamentos teóricos de Márcio Seligmann-Silva e Maurice

Halbawachs. Analisando o livro de Graciliano Ramos, observa-se que o trauma e a memória

relatados pelo personagem constituem-se posicionamentos coletivos, mas com componentes

individuais, articulando um ao outro. O que liga o trauma à memória individual e coletiva é o

testemunho, um traço que caracteriza o texto do escritor ao mesmo tempo em que consolida o

diálogo que a obra estabelece com os episódios que singularizam o Estado Novo. Nesse

sentido, considerando o relato do testemunho de Graciliano Ramos, este avalia a degradação e

a miséria humana das prisões brasileiras por meio da narrativa em primeira pessoa e a

linearidade dos fatos. Aborda-se também a linguagem do discurso traumático presente nas

marcas linguísticas, como: o estado psicológico, as dificuldades de lembrar, falar e

compreender do narrador, diante do autoritarismo na prisão. Ressalta-se a narração como cura

e construção da memória na tentativa de o narrador curar suas lembranças traumáticas através

da narrativa. Por isso, a narrativa é um meio possível para construir uma memória dos fatos,

lutando que elas nãos sejam esquecidas. Por fim, salienta-se a função social e política da obra,

que apresenta uma visão mais crítica, reflexiva e a humanizadora diante dos fatos traumáticos

narrados.

Palavras-chave: Memórias do Cárcere. Trauma. História. Memória. Graciliano Ramos.

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ABSTRACT

The main objective of this dissertation is to analyze the relationship between memory

and trauma in prison Memories book (1953), by Graciliano Ramos, considering approaches to

torture, physical and psychological violence suffered by the work character-narrator. This

work emphasizes in some author's biography of topics and a theoretical contribution on

trauma and memory, based on these assumptions held a work analysis, articulating with the

social and historical reality of the Estado Novo (1937-1945). The focus of memory and

trauma is studied through theoretical assumptions as Márcio Seligmann-silva and Maurice

Halbawachs. Analyzing the book by Graciliano Ramos, it is observed that the trauma and

memory reported by the character constitute collective positions, but with individual

components, articulating each other. What connects the trauma to the individual and

collective memory is the testimony a trait that characterizes the writer of the text at the same

time consolidates the dialogue that the play sets with episodes that single out the New State.

Thus, considering the report of the Graciliano Ramos testimony, this evaluates the

degradation and human misery Brazilian prisons through the first-person narrative and the

linearity of the facts. Also tackles the language of traumatic discourse in this language brands

such as: the psychological state, to remember the difficulties, speak and understand the

narrator, before the authoritarianism in prison. We emphasize the narration as healing and

construction of memory in the attempt of the narrator heal their traumatic memories through

the narrative. Therefore, the narrative is a possible way to build a memory of facts, fighting

they no's are forgotten. Finally, we highlight the social and political function of the work,

which presents a more critical view, reflective and humanizing before narrated traumatic

events.

KEYWORDS: Memories of Prison. Trauma. History. Memory. Graciliano Ramos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 7

1 LITERATURA E SOCIEDADE: CONTEXTO DA OBRA DE

GRACILIANO RAMOS.............................................................................................. 12

1.1 O autoritarismo do Estado novo............................................................... 12

1.2 Graciliano Ramos: vida e obra................................................................. 21

1.3 Memórias do Cárcere: a obra e a fortuna crítica...................................... 28

1.4 O teor Autobiográfico em Memórias do Cárcere..................................... 36

2 LITERATURA, HISTÓRIA, MEMÓRIA E TRAUMA:

ALGUNS APONTAMENTOS TEÓRICOS ............................................................. 40

2.1 Ficção, história e memória ...................................................................... 40

2.2 Literatura e trauma ................................................................................. 49

2.3 Memória e esquecimento ........................................................................ 58

3 MEMÓRIA E TRAUMA EM GRACILIANO RAMOS: MEMÓRIAS

DO CÁRCERE ............................................................................................................. 68

3.1 A forma narrativa de Memórias do Cárcere............................................ 69

3.2 A narração e a linguagem do discurso traumático................................. 80

3.3 Narração como cura e construção da memória ..................................... 84

3.4 Memórias do Cárcere: função social e política contrária ao

apagamento da memória através da literatura..................................... 88

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 92

REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 96

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação visa a articular discussões acerca da memória e do trauma na

obra Memórias do Cárcere (1953), de Graciliano Ramos. Os conceitos de memória e trauma

podem ser associados a uma reflexão do testemunho do personagem-narrador da obra de

Graciliano e, por meio dessa abordagem, é possível fazer uma leitura da sociedade brasileira

no período de 1937 a 1945, quando o Brasil viveu um regime autoritário vinculado ao Estado

Novo, liderado por Getúlio Vargas. Logo, são estabelecidas relações entre literatura e história

a partir de um viés sociológico.

Além disso, nosso trabalho pauta-se em premissas de Antonio Candido (2000), que

aponta que se deve determinar o valor de uma obra, pelo efeito da criação artística, com o

objetivo de proporcionar o efeito emocional ou uma sensação de prazer e emoção através do

estético. A crítica literária, como a desenvolvida nesse trabalho, vale-se das circunstâncias da

sociedade por meio de seus costumes, crenças e valores, dando suporte para uma criação da

obra literária.

Ao analisarmos uma obra como a de Graciliano Ramos, entendemos que o trabalho

de crítica refere-se ao texto literário não somente como expressão de uma dada época ou de

um grupo social, mas sim como produto resultante de ações da própria construção artística, o

qual conduz a um valor estético, que incorpora a dimensão social. Esses fatores estéticos e

sociais propiciam um novo enfoque para a crítica e a sociologia. Na visão de Antonio

Candido (2000), podemos observar que existe, na obra literária, uma integração entre

acontecimentos sociais e históricos, ou seja, elementos externos, e produção artística.

Segundo o autor, nesse processo

o externo se torna interno e crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica.

O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao

lado dos psicólogos, religiosos, lingüísticos e outros (CANDIDO, 2000, p. 8).

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No entender de Candido (2000), os estudos sociológicos em literatura, os quais

podem estar fundamentados nas premissas acima, enfatizam as diversas maneiras de analisar

uma obra, ou seja, como a obra está diretamente ligada aos reflexos tradicionais da sociologia

e da história. Dessa forma, os estudos sociológicos fazem uma relação com o conjunto da

literatura, assim como o gênero e o período, acrescentando a uma dada situação coletiva de

uma sociedade.

O texto dialoga com a comunidade, analisando tanto a estética como a linguagem,

numa construção do texto em si. Na definição antiga, os fatores externos apresentam-se

contrários, já que a estrutura não é dependente, pois combinam como condições de recursos

necessários para a compreensão de um texto. Nessa perspectiva, leva-se em consideração, na

análise de uma obra literária, o social, não se importando com conceito e nem com a causa,

mas sim enfatizando a importância dos elementos sociais na elaboração da estrutura, como

parte interna de um texto.

A sociologia na literatura não se detém ao valor em si da obra, porque possui um

interesse maior pelo modo de viver e de ser de uma dada sociedade, visando à divulgação de

um livro, o gosto pelo gênero, pela classe social e pela maneira como a vida social e política

podem interferir no conteúdo de uma obra. Ou seja, interessa saber como o autor constrói uma

dada realidade social através da visão do mundo de uma obra e transmite para seus leitores

esses ideais e vivências.

Com base nisso, o tema desta dissertação é importante para analisarmos de que

maneira as memórias e os traumas marcaram a sociedade brasileira na primeira metade do

século XX e como a literatura os representa, tomando como objeto de análise a obra de

Graciliano Ramos produzida no contexto do Estado Novo. Considerando esses pressupostos,

o objetivo geral da dissertação consiste em analisar as relações entre memória e trauma no

livro Memórias do Cárcere, levando-se em conta abordagens sobre a biografia do autor, a

tortura, a violência física e psicológica sofrida por ele na prisão. Visamos também a estudar a

questão da autobiografia de Graciliano Ramos, investigar o contexto histórico do Estado

Novo, com vistas a fundamentar o estudo sobre a obra, analisar o trauma de escritor e sua

relação com a forma estética do livro em questão, estudar referências sobre memória e trauma

na obra, avaliar a memória individual e coletiva presente no livro, relacionando-as à memória

e ao trauma de Graciliano Ramos no Estado Novo.

Para alcançar tais objetivos, primeiramente, no primeiro capítulo desta dissertação,

apresentamos um estudo sobre o contexto histórico do Estado Novo, ressaltando que, por

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meio da repressão e da violência, esse momento gerou no país transformações de diversas

ordens, pois as pessoas não tinham voz ativa e nem podiam opinar e se manifestar diante de

assuntos relacionados ao governo de Getúlio Vargas. Destacamos que o Estado Novo iniciou

em 1937, com a campanha presidencial para as eleições de 1938, num momento cheio de

tensão, pois o governo relembrava o movimento militar de 1935 e temia as possibilidades de

novas ameaças pelos comunistas no país. Em setembro de 1937, o pretexto de Vargas veio

com a invenção de um suposto plano de insurreição comunista, sendo um documento forjado,

com o nome de Plano Cohen, no qual tinha a assinatura de Cohen, um militante comunista

judeu, que tinha como pretensão a posse do poder com o apoio soviético.

Apontamos, nessa retomada histórica, que o Estado Novo era semelhante ao modelo

fascista europeu em voga naquele período. As modificações foram diversas, tais como os

direitos individuais suspensos, a instituição da pena de morte aplicada em casos de crimes

contra a organização do Estado Novo; nesse contexto, os estados perderam seus poderes,

ficando subordinados ao Executivo, tendo a colaboração do capitão Olímpio Mourão Filho,

membro do Estado-Maior do Exército e chefe do Serviço de Inteligência da Ação Integralista

Brasileira. Assim, surge a necessidade da implantação do Departamento Administrativo do

Serviço Público (DASP) com o objetivo de obter melhorias no serviço público, formado

apenas com funcionários concursados.

Acrescentamos no primeiro capítulo que o fim do Estado Novo veio com a derrota

nazista na Segunda Guerra Mundial, já que o Brasil envolvera-se na luta contra os nazistas

porque era a favor da democracia no país. Segundo Del Priore (2010, p. 261), “sob pressão do

Exército, o criador do Estado Novo deixa o poder”. Sendo assim, a pressão da sociedade

levou o governo a marcar para dois de dezembro de 1945 a realização de eleições gerais,

sendo autorizadas a formação de partidos políticos e a organização de campanhas publicitárias

dos candidatos ao governo.

Em seguida, damos ênfase à biografia de Graciliano Ramos quando esteve na prisão,

pois entendemos que conhecer o contexto de publicação de Memórias do Cárcere é

importante para compreendermos o trauma vivido pelo autor no cárcere. A obra Memórias do

Cárcere é composta de dois volumes e está inserida num período em que a literatura brasileira

estava numa nova fase em que os escritores da época retratavam a realidade social na qual

estavam inseridos. Em 1953, no mesmo ano da morte do escritor, publicou-se a obra póstuma,

intitulada, Memórias do Cárcere. Obra esta que relatou toda a dor, sofrimento e o testemunho

do personagem-narrador, Graciliano Ramos, quando esteve preso, na época da Era Vargas, no

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ano de 1936. De acordo com os estudos de Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira Porto a

obra Memórias do Cárcere focaliza um estudo sobre a experiências de tortura e repressão do

regime autoritário brasileiro da época do governo Vetulista. (2012), o que nos aponta para um

singular diálogo do livro com o contexto social daquela época. Nesse sentido, Memórias do

Cárcere possibilita-nos uma reflexão sobre a violência e opressão, retratada na literatura, a

triste realidade de um governo ideologicamente autoritário, valendo-se da memória individual

do personagem-narrador e também da memória coletiva dos indivíduos que fizeram parte

dessa narrativa, diante do autoritarismo da Era Vargas.

Logo após, enfatizaremos dados da obra Memórias do Cárcere e sua fortuna crítica,

ressaltando o que críticos literários destacam sobre ela com o objetivo de mapear questões

relevantes do texto abordadas por pesquisadores diversos. Posteriormente, analisarmos a

autobiografia de Graciliano Ramos com enfoque dado ao gênero autobiográfico que

transparece na obra.

O terceiro capítulo do trabalho enfoca a análise do texto literário, correlacionando com

o aporte teórico sobre memória e trauma especialmente. Nessa perspectiva, o eixo de reflexão

está pautado em quatro enfoques: a forma da narrativa; a narração e a linguagem do discurso

traumático; a narração como cura e construção da memória; e por fim a função social e

política contrária ao apagamento da memória através da literatura. Esses quatro tópicos de

observação foram eleitos por considerarmos sua coerência com a proposta geral do estudo e

com o referencial teórico adotado.

Essa proposta de estudo está pautada em alguns fatores, entre os quais meu apreço e

admiração quanto aos textos do escritor Graciliano Ramos. Além disso, o caráter realista de

seus textos que oportunizam uma reflexão sobre a sociedade brasileira e sobre temas sociais

relevantes motiva a seleção do corpus e o recorte temático desenvolvido nessa dissertação.

Ainda salientamos que, além desse interesse e gosto pessoal por Memórias do Cárcere,

observamos a necessidade de ampliar o conhecimento sobre a memória e o trauma de

personagem Graciliano Ramos durante a época de repressão do Estado Novo, liderado por

Getúlio Vargas. Neste caso, o autor é relevante conhecer mais acerca da experiência

traumática vivida pro prisioneiros na época e como as narrativas literárias contam tais

episódios. Além disso, o estudo da obra contribui para registrar a uma política da memória.

Para o desenvolvimento da dissertação, são levadas em conta abordagens que auxiliam

na análise e na interpretação de elementos do trauma e da memória presentes na obra

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Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos. O estudo dá ênfase, basicamente, a alguns

tópicos acerca da biografia do autor e aos traumas e às memórias presentes na sua obra,

procurando articulá-las com a realidade social e histórica do Estado Novo. Para a abordagem

das temáticas selecionadas, busca-se respaldo em referências da História Social e Literária,

tendo em vista o estudo da memória e do trauma o que confere à pesquisa uma relação

intrínseca com a área da literatura comparada.

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1 LITERATURA E SOCIEDADE: CONTEXTO DA OBRA DE GRACILIANO

RAMOS

1.1 O autoritarismo do Estado Novo

Antes de estudarmos o Estado Novo, convém analisarmos o contexto histórico da

Revolução de 30, marco inicial que contribuiu para o autoritarismo da Era Vargas

posteriormente. A Revolução de 1930 surgiu com as transformações provocadas pela crise

mundial de 1929, as quais se refletiram na sociedade brasileira através das transformações na

área econômica, política e social. No entanto, a crise mundial gerou um desequilíbrio entre os

partidos políticos brasileiros, como a política café com leite e a formação de uma nova chapa

ao governo federal para concorrer às eleições de 1930, chamada Aliança Liberal, liderada por

João Pessoa e Getúlio Vergas, ambos com o apoio do estado de Minas Gerais. Conforme

afirma Antonio Pedro Tota (1987):

Nasceu em Minas Gerais, a Aliança Liberal. O objetivo era [...] concorrer às eleições

presidenciais como oposição. O apoio da oligarquia gaúcha foi imprescindível:

Getúlio Vargas foi escolhido como candidato para concorrer à presidência da

república pela aliança Liberal. (p. 10)

A Aliança Liberal era semelhante às propostas da oligarquia tradicional. Entretanto,

continha algumas inovações que iam ao encontro às reivindicações dos trabalhadores urbanos,

como o voto feminino secreto e melhores condições de trabalho para os operários. Sendo

assim, o Brasil do início da década de 1930 era marcado pela urbanização e industrialização,

no entanto, ainda permanecia no cenário social e econômico a predominância agrária. Apesar

do avanço social e econômico, o poder da oligarquia cafeeira era praticamente inabalável.

Em 1918, com o término da Primeira Guerra Mundial, o Brasil se viu inserido num

mundo bastante mudado. Os Estados Unidos tornam-se a nação mais poderosa do mundo. Ao

longo das décadas de 1920 e 1930, muitos países europeus adotaram os regimes ditatoriais. O

Brasil também passou por mudanças. Com o crescimento das indústrias, aumentou o número

de operários e de outros trabalhadores urbanos, crescendo e tornando-se mais importante nas

camadas médias urbanas. Intensificaram-se os movimentos operários, mas muitas vezes eram

reprimidos à força. Jovens oficiais voltavam-se contra a política tradicional, baseada no

autoritarismo, na oligarquia e na fraude eleitoral. Juntou-se a isso o agravamento da crise

econômica em fins da década de 1920, propiciando um cenário para inúmeras revoltas que

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culminaria com a Revolta de 1930, que depôs o presidente Washington Luís e levou Getúlio

Vargas ao poder.

A partir da Revolução de 1930, temos o início da Era Vargas. Conforme salienta

Rafael Pires Rocha (2008, p. 17) “Após a queda da República Velha, com a chamada

Revolução de 1930, implantou-se no Brasil uma „nova ordem‟, cuja proposta central era

erradicar as mazelas políticas e sociais do período anterior.” Sendo assim, a Revolução de

1930 trouxe mudanças significativas na política e na sociedade brasileira, por intermédio da

Era Vargas, sendo dividida em três períodos, tais como: Governo Provisório, Governo

Constitucional e Estado Novo. O primeiro período, Governo Provisório, cuja preocupação era

defender a cafeicultura, promoveu a valorização do café, tão desvalorizado na crise de 1929.

O Governo Constitucional preocupava-se em reorganizar uma nova constituinte, sendo

fundada em 16 de julho de 1934.

A Constituição de 1934 regularizou vários atos tomados durante o Governo

Provisório. Dentre eles, podemos destacar: extinção do cargo de vice-presidente e como isso o

presidente da câmara assumiria em caso de impedimento do presidente; e instituição da

Justiça do Trabalho, com jornada de oito horas, salário mínimo, repouso semanal obrigatório,

etc. Depois de aprovada a Constituição, foi elaborado um Código eleitoral, instituindo o voto

secreto, tendo o direito de votar homens e mulheres com mais de 18 anos. Antes, o voto era

apenas para os homens maiores de 21 anos.

O Estado Novo iniciou em 1937, com a campanha presidencial para as eleições de

1938, num momento cheio de tensão, pois o governo relembrava o movimento militar de

1935 e temia as possibilidades de novas ameaças pelos comunistas no país. Com as eleições a

caminho, foram lançados três candidatos: Armando de Sales Oliveira, Plínio Salgado e José

Américo de Almeida. Durante a campanha, Getúlio Vargas agiu com aparente naturalidade,

mostrando-se indiferente e com pouca simpatia pelos candidatos. A sua única preocupação era

preparar o golpe de Estado que garantiria sua permanência no poder.

Em setembro de 1937, o pretexto de Vargas para ascensão ao poder veio com a

invenção de um suposto plano de insurreição comunista a partir de um documento forjado,

com o nome de Plano Cohen, no qual tinha a assinatura de Cohen, um militante comunista

judeu, que tinha como pretensão a posse do poder com o apoio soviético. De acordo com os

estudos de José Raimundo Inocêncio Ferreira (2008, p. 9), “O pretexto para o Golpe de

Estado foi justificado com a „descoberta‟ de um documento que delineava um suposto golpe

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comunista, foi o conhecido „Plano Cohen‟”. O plano foi anunciado nos principais jornais do

país e, com isso, o Congresso apoiou a decretação do estado de guerra. Sendo assim, Vargas

deu um golpe de Estado em novembro de 1937, com o apoio da cúpula das Forças Armadas,

dos intelectuais e dos integralistas. Ao estabelecer o Estado Novo, pôs fim aos partidos

políticos, bem como à suspensão da constituição, dando início a uma era de autoritarismo que

se estenderia até 1945.

Assim, Vargas, após o golpe, organizou uma nova Constituição, que atribuía amplos

poderes aos executivos, já que a nova organização do Estado Novo era semelhante ao modelo

fascista europeu em voga naquele período. As modificações foram diversas, tais como os

direitos individuais suspensos, a instituição da pena de morte aplicada em casos de crimes

contra a organização do Estado Novo; nesse contexto, os estados perderam seus poderes,

ficando subordinados ao Executivo e tendo a colaboração do capitão Olímpio Mourão Filho,

membro do Estado-Maior do Exército e chefe do Serviço de Inteligência da Ação Integralista

Brasileira. Assim, surgiu a necessidade da implantação do Departamento Administrativo do

Serviço Público (DASP) com o objetivo de obter melhorias no serviço público, formado

apenas com funcionários concursados.

O Estado Novo passou a investir na política econômica, preocupando-se com a

valorização da produção interna das indústrias brasileiras e, com isso, contribuiu para um

crescimento na economia do país, cujo desenvolvimento foi através das indústrias e empresas.

No entender de Michael George (2008, p. 04) “A economia brasileira se desenvolvia em um

contexto estatizante composta de grandes corporações empresariais e industriais.”. Contudo,

com o crescimento empresarial e industrial no Estado Novo, o país deixou sua economia

voltada para as oligarquias e passou a direcionar-se para a burguesia. Nessa perspectiva, o

Governo apoiou a instalação da Companhia Vale do Rio Doce e a Siderúrgica Nacional. Logo

depois, em 1938, surgiram o Conselho Nacional do Petróleo e o Instituto Nacional do Pinho.

Já em 1939, houve a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),

desempenhando um papel importante no Estado Novo: cuidar da censura aos meios de

comunicação, como o cinema, a imprensa escrita e o rádio, e também da propaganda oficial

do governo. O DIP tinha, por fim, segundo Antonio Pedro Tota (1987, p. 34), a meta de

centralizar, coordenar, orientar e superintender a propaganda nacional interna ou

externa e servir permanentemente como elemento auxiliar de informação dos

ministérios e entidades públicas e privadas na parte que interessa à propaganda

nacional.

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Para o processo de legitimação, o Estado utilizou meios de comunicação mais

modernos para atingir as massas populares. Mesmo sendo oficializado em 1939, esse

departamento já funcionava há muito tempo. Abrangia todos os veículos de comunicação, em

especial, o papel da imprensa com suas propagandas políticas, bem como o rádio. Este, por

sua vez, tornou-se um veículo da ideologia do trabalhador e também outras manifestações

culturais, como a canção popular. Assim, é visível o autoritarismo do governo Getulista, nos

meios de comunicação, bem como a imagem de “pai da nação” de Getúlio Vargas. O rádio

passa a transmitir em cadeia nacional, obrigatoriamente, a “Hora do Brasil”, anunciando os

informativos oficiais do Estado Novo e também propagandas culturais. Entretanto, havia

concursos, promovidos pelo DIP, para apurar as melhores canções escolhidas pela população.

Foi no autoritarismo que Getúlio Vargas manipulava sua ideologia de governo, para que a

mesma fosse transmitida a toda sociedade da época; tal ideologia era considerada pelos

governantes como um modelo ideal de sociedade para a população brasileira.

Todos os anos, no dia 1º de maio, o presidente Getúlio Vargas anunciava com

eloquência a história e a importância dos trabalhadores na sociedade brasileira. Conforme

afirma Tota: “símbolos e festejos tradicionais da classe operária, como o 1º de maio” (TOTA,

1987, p. 39). Assim, o populismo de Getúlio Vargas aumentava na proporção que seus

discursos exaltavam a importância dos operários para a industrialização brasileira. Em todos

os pronunciamentos, Getúlio Vargas anunciava uma inovação nas chamadas leis trabalhistas,

a qual era transmitida pelo rádio para todo o país.

O autoritarismo do Estado Novo estava presente em vários acontecimentos sociais no

Brasil, como a instituição, em 1º de maio de 1938, do Dia do Trabalho, no Estado Novo.

Getúlio Vargas declarou em tom autoritário, segundo Tota, que

O trabalhador é maior fator de elevação da dignidade humana [...] ninguém pode

viver sem trabalhar. O operário não pode viver ganhando apenas o indispensável

para não morrer de fome. O trabalho justamente remunerado eleva-o na dignidade

social. (VARGAS apud TOTA, 1987, p.41).

Primeiramente, o presidente falou sobre a valorização do cidadão brasileiro por meio

do trabalho, já que todos os indivíduos precisam trabalhar, defendia. A Legislação Trabalhista

foi fundada com o intuito de atribuir melhores condições de trabalho para os brasileiros,

juntamente com a criação do salário mínimo, em 1º de maio de 1942. Na visão de Simon

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Schwartzman (1983, p, 342), “Salário mínimo, (...) é capaz de satisfazer (...) as necessidades

normais de alimentação, habitação, (...) do trabalhador adulto, sem distinção de sexo.”.

Porém, Getúlio Vargas, além de prevalecer o autoritarismo na sua maneira de governar o país,

também se importou com seu povo, melhorando um pouco a vida dos moradores urbanos.

Contudo, os moradores rurais ainda eram sujeitos à exploração do grande proprietário. De

acordo com Nélson Jahr Garcia (2000, p. 41), “Os trabalhadores rurais encontravam-se

totalmente marginalizados.” Assim, esses trabalhadores possuíam um baixo nível de estudo e

cultural, sendo vulneráveis à manipulação constante dos coronéis, sendo inviável qualquer

forma de reivindicação trabalhista, o que permitiu, assim, o crescimento do setor do

capitalismo agrário.

Getúlio Vargas, na política externa, preferiu seguir uma linha de neutralidade,

negociando com outros países como a Grã-Bretanha, a Alemanha e os Estados Unidos, e

assinando acordos comerciais. Porém, no início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o

Brasil mantinha-se neutro e, com isso, os Estados Unidos pressionaram o país pelo

rompimento de relações diplomáticas e comerciais com os países do eixo que seriam

Alemanha, Itália e Japão. No entanto, em fevereiro de 1942, os navios brasileiros foram

afundados supostamente pelos alemães, e o Brasil determinou sua entrada no conflito mundial

na luta contra os nazistas. Sua contribuição foi no fornecimento de matérias-primas como a

borracha, minério e ferro e as bases militares em Belém, Natal, Recife e Salvador. De acordo

com Mary Del Priore (2010, p. 257), “o ditador aproveita-se da tensa situação internacional

do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir vantagens”. Getúlio Vargas

aproveitou a delicada situação internacional para receber vantagens pela participação no

combate contra a Alemanha na Itália. Esses créditos foram usados na recuperação da ferrovia

e construção da Usina Siderúrgica.

A cultura na era Vargas foi intensa, principalmente nos anos de 1930 e 1940. Segundo

Nelson Werneck Sodré (2004, p. 627), “a fase de liberdade, sempre relativa naturalmente,

inaugurada nos fins de 1930, é encerrada em fins de 1935, quando se abre uma fase de

repressão política”. Assim, antes de ir ao ar qualquer programa de rádio, a censura analisava a

programação para que fossem possíveis as devidas modificações quando necessário. O rádio

representou um importante veículo na divulgação da música popular brasileira, consagrando

cantores como Carmem Miranda, Orlando Silva e muitos outros. Portanto, o rádio tornou-se,

com seus programas de auditório, musicais e novelas, um dos entretenimentos preferidos da

população.

17

Na arquitetura, Oscar Niemeyer ganhou destaque com o projeto arquitetônico de

Brasília, contratado pelo presidente da época, Juscelino Kubitschek, para planejar a estrutura

da nova capital do país. O artista plástico Candido Portinari destacou-se na retratação da

realidade brasileira em suas obras plásticas. Já na literatura, as obras Vidas secas (1938), de

Graciliano Ramos, Perto do coração selvagem (1943), de Clarice Lispector, e Terras do sem

fim (1942), de Jorge Amado, foram consagradas, por retratarem a sociedade brasileira.

O fim do Estado Novo surgiu com a derrota nazista na Segunda Guerra Mundial, já

que o Brasil envolvera-se na luta contra os nazistas porque era a favor da democracia no país.

Segundo Del Priore (2010, p. 261), “sob pressão do Exército, o criador do Estado Novo deixa

o poder”. Sendo assim, a pressão da sociedade levou o governo a marcar para dois de

dezembro de 1945 a realização de eleições gerais, sendo autorizadas a formação de partidos

políticos e a organização de campanhas publicitárias dos candidatos ao governo.

Getúlio Vargas também tinha interesse em permanecer no cargo, mas a oposição

pressionou e, em 30 de outubro de 1945, foi intimidado pelos militares a renunciar. A eleição

seguiu normalmente, sendo eleito Eurico Gaspar Dutra da coligação PSD-PTB. Porém,

Vargas passou a disputar ao mesmo tempo o cargo de senador, situação em que foi eleito e,

devido a isso, passou a residir em São Borja, no Rio Grande do Sul, para aguardar o momento

de retornar ao governo federal, o que ocorreu em 1951 quando foi eleito pelo voto popular.

O Estado Novo foi um dos momentos mais autoritários e repressivos de toda história

nacional. Uma época em que o Brasil tinha um líder severo: Getúlio Vargas. Segundo Moacyr

Flores (2008), “O presidente Vargas passou a governar por decretos; extinguiu os partidos e

instituiu a pena de morte para os crimes contra o Estado” (p. 222). O Estado Novo concluiu a

obra iniciada em 1930, aperfeiçoando as leis trabalhistas, passando por um processo de

conclusão e consolidação. Getúlio Vargas passou a governar o país com autoridade, e com

isso, a intervenção do Estado nos sindicatos contribuiu para o avanço da economia brasileira.

Sendo assim, o Estado Novo agradou os empresários industriais da época, porque facilitava a

importação de bens de produção. O Estado era um agente da industrialização, iniciando dois

planos, considerados arrojados para o país da época: a hidrelétrica de Paulo Afonso e as obras

da usina de Volta Redonda, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional.

Segundo os estudos de Luiz Roberto Lopez (1983), com a implantação do Estado

Novo, foi publicada, no Diário Oficial, uma Carta Constitucional. Era o coroamento da queda

da política, tendo seu início a partir da Revolução de 30. Sendo assim, houve a união entre o

18

fascismo internacional e o autoritarismo de Getúlio Vargas. Conforme reitera Lopes, “O

Estado Novo uniu a influência do fascismo internacional ao tom do autoritarismo Varguista”

(1983, p. 90). Com isso, o Estado Getulista salientou que a classe dominante estava disposta a

abrir mão da sua atuação direta para apoiar o processo da luta das classes, bem como a

garantia da sua segurança. Já para os militares, eles defendiam sua instituição de um regime

burocrático e repressivo, realizando no país uma mudança moderna, mas que ainda era

conservadora, imposta pelas lideranças militares.

A Carta Constitucional de 1937, elaborada por Francisco Campos, amparava o

presidente Getúlio Vargas, na possibilidade de interferir diretamente nos Estados por meio de

decretos e leis, conforme a realidade local de cada Estado. Conforme afirma o historiador

Luiz Roberto, “A nova constituição ampliava a possibilidade do presidente de intervir nos

Estados e dava-lhe a faculdade de expedir decretos-leis” (LOPEZ, 1983, p. 91). Com isso, o

Estado Novo foi o regime sintetizado na autoridade de um único líder, Getúlio Vargas. Assim,

o Governo Getulista suspendeu as funções do Poder Legislativo dos Estados, bem como

determinou o controle policial, a censura das manifestações intelectuais, através do DIP, e a

total suspensão da liberdade civil.

Para Maria Yedda Linhares (1990), a centralização do autoritarismo, imposta pelo

governo de Getúlio Vargas, vem ao encontro da nova definição do país. Conforme afirma a

pesquisadora, “Tratava-se, para o Estado, de fundar um novo Brasil, homogêneo e uniforme

em seus valores, comportamentos e mentalidades” (LINHARES, 1990, p. 344). Getúlio

Vargas, através da negação nas manifestações artísticas, como peças teatrais, músicas e obras

literárias, almejava um país com igualdade civil, ético e moral. Porém, ele procurava

inviabilizar as formas de expressão da sociedade, ou seja, a sociedade tinha um

comportamento limitado, diante dos acontecimentos sociais e políticos do país.

Getúlio Vargas governava com autoritarismo e utilizava a força policial como suporte

na manutenção do seu governo. Conforme afirma Elizabeth Cancelli (1991, p. 48), “a

existência de um Estado violento suportados pelas ações policiais, que se via no poder da

polícia um caráter administrativo”. A polícia no Estado Novo era extremamente violenta e

contra ideias democráticas. O Estado devia amparar o direito do cidadão; no entanto,

passaram a controlar a sociedade com inúmeros crimes, como a privação das ideias e

liberdade, a censura e as práticas de assassinatos e torturas. Qualquer pessoa, independente da

classe social, seja crítico social ou adversário político, sofria punições e repressões do Estado

Novo.

19

O período pós-30, sobre a liderança de Getúlio Vargas, contribuiu para a definição de

uma nova realidade social no país, como o aumento significativo de operários nas grandes

cidades e a redefinição de um espaço urbano e político. As lideranças políticas preocupavam-

se com a dominação da sociedade e empregavam inovações no controle social, centralizando

a sociedade como um todo. Segundo Elizabeth Canelli:

Sob a direção e liderança de Getúlio Vargas, aparece ainda na história social do

Brasil delineado por uma nova realidade: a presença de multidões de trabalhadores

nas grandes cidades, a redefinição do espaço urbano e o projeto político de um

Estado que se autoimpunha a tarefa de promover a inovação moral e política de toda

a sociedade através de novas estratégias de dominação, que negavam, em sua

essência, os princípios políticos do liberalismo clássico. (CANELLI, 1991, p. 55)

Assim, o governo Getulista almejou a necessidade de disciplinar a sociedade. Aliou a

polícia nacional, impondo no Brasil uma nova forma de governar, através da violência e

repressão social a todo o cidadão brasileiro contrário às leis implantadas no Estado Novo. No

entanto, a sociedade brasileira estava sobre vigilância constante através de um aparato

policial, que exercia o controle social, disciplinando o dia a dia dos trabalhadores, bem como

a negação da individualidade das pessoas, com a imposição de sentimento e comportamento.

Getúlio Vargas teve o apoio do Exército, controlado pelos generais Góis Monteiro e

Gaspar Dutra, visto que o Exército precisava de Vargas, porque o processo de unificação do

país era recente. Assim, Getúlio Vargas, simpatizante do fascismo europeu, conta com a

presença policial na vigilância pública e na interferência da ordem do espaço privado para a

implementação das prisões, gerando terror e opressão à sociedade brasileira. Conforme reitera

Elizabeth Cancelli, “A prisão fazia parte do espaço extralegal dominado pelas forças policiais,

[...] seu caráter secreto e reservado contribuía no sentido da implantação do terror”

(CANCELLI, 1991, p. 64). Com isso, a dominação policial no complexo penitenciário

induzia o medo e o controle social como forma de “purificação da sociedade” para justificar a

ação da polícia, visto que os atos de violência tornaram-se rotina durante a Era Vargas.

Os alvos mais constantes de prisão eram os comunistas, seus militantes e

simpatizantes, considerados pela polícia inimigos da Era Vargas. Os comunistas tinham

lançado a tomada do poder em 1935 e, desde então, passaram a ser o primeiro inimigo a

combater. Entretanto, os métodos de tortura usados nas detenções se estendiam nas delegacias

e cadeias penitenciárias, levavam a óbito muitos presos pela falta de assistência médica básica

e pelo tratamento humano básico relacionado entre presos e carcerários.

20

As técnicas e os métodos usados nas prisões para torturas das pessoas em busca de

depoimentos eram uma humilhação de todos os tipos. Os mais frequentes eram: socos e

pontapés, pancadas com cassetetes, arames serviam para enfiar em ouvidos ou uretra,

aquecimento com maçarico, até ficar em brasa, para queimar as mais diversas partes do corpo.

Havia falta de comida e de água. Para Elizabeth Cancelli:

A forma de tortura mais comum e generalizada, entretanto, era debilitar ao máximo

o corpo dos prisioneiros, a fim de que eles fossem morrendo aos poucos. Essa

debilidade dos corpos, [...] fazia com que os homens se tornassem também

prisioneiros de si mesmo, e que a vida na prisão se transformasse em uma luta

individual pela sobrevivência. (CANCELLI,1991, p. 395)

A tortura era uma política desumanizadora de governar para combater seus

adversários, desrespeitando e reduzindo-os a nada. O Estado, através da tortura, queria

mostrar a impotência dos presos diante de seus carcereiros, entretanto, os torturados

executavam ações autorizadas, baseada na ideologia da dominação do Estado Novo, sobre a

sociedade, diante da figura de Getúlio Vargas, sendo ele a representação de uma nação

autoritária.

A polícia mantinha o medo nas ruas, fazia a sociedade sentir-se impotente, mas todo o

tipo de tortura veio ao fim juntamente com a queda de Getúlio Vargas, em 1945, com a

derrota do nazismo na segunda Guerra Mundial. Os mesmos generais do Exército, Góis

Monteiro e Gaspar Dutra, que apoiaram Era Vargas, agora estavam apoiando as

manifestações da sociedade, autorizando a consolidação de novos partidos políticos, para uma

renovação ao governo.

No governo autoritário de Getúlio Vargas, vários escritores da literatura brasileira

sofreram os reflexos da concepção ideológica do Estado Novo. Alguns dos principais

escritores consagrados, como Graciliano Ramos, Jorge Amado e José Lins do Rego,

abordaram a realidade do seu tempo, ou seja, criaram um universo fictício, baseado nas suas

realidades sociais. Conforme manifestou Antonio Candido (1989, p. 187), “O decênio de

1930 foi a extensão das literaturas regionais e sua transformação em modalidades

expressivas.” Essa literatura regionalista e realista, escrita por críticos ou comunistas, ajudou

os indivíduos a refletir sobre os fatos sociais e históricos, nos quais estavam inseridos. Com

isso, o Estado Novo através do DIP censurou inúmeras obras literárias, ordenando queimá-las,

para que a população não tivesse acesso a esse tipo de leitura. Sendo assim, Graciliano

Ramos, após o término da Era Vargas, teve publicada em 1953, a obra póstuma Memórias do

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Cárcere, denunciando o drama, o sofrimento e a tortura física e psicológica enfrentada nas

prisões brasileiras daquela época. É um texto que merece atenção não apenas por suas

particularidades estéticas, mas pelo diálogo que constrói com o Estado Novo e pela interação

entre fatos sociais e produção artística.

Para compreendermos melhor sobre a sociedade do Estado Novo, convém abordarmos

o estudo de Peter Burke sobre a história. Conforme os estudos de Peter Burke (1992) surge, a

partir da década de 50, uma necessidade de atribuir novos conceitos acerca da história. Nesse

sentido, ele pondera que é importante a história ser analisada sobre o ponto de vista das

classes menos favorecidas. Para o autor: “a história vista de baixo, em outras palavras, com

as opiniões das pessoas comuns e com suas experiências da mudança social.” (BURKE, 1992,

p.03). Por esse viés, Peter Burke pondera que a história contada apenas pela visão da elite é

menos enfatizada, e passa a voltar sua atenção para as pessoas “comuns”, por essa razão surge

a chamada “história vista de baixo”. Portanto, homens que tinham suas histórias ignoradas e

silenciadas começam a serem ouvidos, pois suas experiências se tornam importantes para a

historiografia. Por essa razão, a obra Memórias do Cárcere vem ao encontro dos estudos de

Peter Burke fazendo alusão a “história vista de baixo”, pois Graciliano Ramos narra suas

experiências dolorosas e traumáticas decorrentes dos dez meses que esteve preso, nas diversas

prisões brasileiras, juntamente com outros indivíduos. Portanto, a obra é importante para a

historiografia porque acentua o testemunho de Graciliano Ramos sobre a vivência hostil, o

trauma e a autoridade da década de 30. Isso nos remete a pensar também em Graciliano autor,

sua vida e obra.

1.2 Graciliano Ramos: vida e obra

A obra Memórias do Cárcere, de autor Graciliano Ramos, é texto de um dos mais

importantes escritores da literatura brasileira moderna e um dos maiores representantes do

chamado romance de 30, no Brasil. Na visão de Ada Maria Hemilewski (2007, p. 65), “Os

trabalhos de Amando Fonte, Graciliano Ramos, (...) são geralmente enquadrados, tanto pela

crítica quanto pela história literária, no denominado „romance de 30‟”. Entretanto, Graciliano

Ramos escreveu de maneira a contemplar e a denunciar uma série de informações contextuais,

levando ao apontamento das estruturas sociais, sendo por isso denominada “regionalista” ou

“romance-social”. Sua atividade literária foi intensa, bem como o trabalho desenvolvido na

22

comunidade de Alagoas, no qual se salienta a reformulação dos métodos de ensino com

técnicas inovadoras, que despertassem o interesse do estudante em aprender, trazendo a sua

realidade para a sala de aula.

O escritor nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em 27 de outubro de 1892, época em que

se iniciava a liberação dos escravos e se instituía o trabalho assalariado para todos os

trabalhadores, além de se observar um crescimento monetário. Mudou-se com os pais

Sebastião Ramos e Mara Amélia Ferro Ramos para Buíque, Pernambuco, e depois para

Alagoas, residindo em Viçosa e Palmeira dos Índios até 1914. De acordo com Ana Paula de

Oliveira da Silva (2012), “Graciliano Ramos nasceu na cidade de Quebrangulo, mas saiu de lá

com dois anos de idade, (...) a família, então, decidiu abandonar o interior de Alagoas pelo de

Pernambuco, mais especificamente na cidade de Buíque, onde seu pai começou a trabalhar

com o comércio.” Assim, em 1915, teve uma rápida passagem pelo Rio de Janeiro,

trabalhando como jornalista. Ainda neste mesmo ano, retornou a Palmeira dos Índios, e casou

com Maria Augusta Barros, falecendo de parto cinco dias depois.

Em 1925, Graciliano começou a escrever uma história passada numa cidade do

interior, sendo uma antiga aldeia dos Caetés. Graciliano conheceu os problemas das escolas

municipais, quando foi presidente da Junta Escolar de Palmeira São Bernardo dos Índios.

Quando foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios, em 1928, abriu três escolas nas aldeias:

Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. Um mês depois de sua posse, casou com Heloísa

Medeiros com quem teve quatro filhos: Ricardo, Roberto, Luísa e Clara. Graciliano era rígido

com as filhas e liberal com os filhos.

Em 1930, Graciliano renunciou à prefeitura e foi para Maceió, onde foi nomeado

diretor da Imprensa Oficial, demitindo-se no ano seguinte. Já em 1932, retornou a Palmeira

dos Índios, fundando uma escola, e começou a escrever. Como estava doente, interrompeu o

trabalho e foi operado em Maceió.

Em 1933, publicou se primeiro romance, intitulado Caetés, cujo personagem

principal e narrador era João Valério, um caetés de olhos azuis, que falava um português

ruim. O romance tem como espaço a cidade de Palmeira dos Índios. De acordo com Marcelo

Magalhães Bulhões (1999, p. 29): “A narrativa transcorre em Palmeira dos Índios, cidade em

que Graciliano viveu (...); na época em que vivia em Palmeira dos Índios, Graciliano Ramos

escrevia Caetés”. Em Caetés, o enredo era o caso amoroso entre João Valério e Luiza, esposa

de Adrião, chefe de João Valério. Adrião, por meio de uma carta anônima, ficou sabendo do

23

adultério de sua esposa e, em seguida, suicidou-se. João Valério, arrependido com o que fez,

afastou-se de Luiza. Assim, João passou a dedicar-se em seu livro, com o intuito de escrever

um romance histórico dos índios caetés, de seus antepassados. Segundo Marcelo Magalhães

Bulhões (1999, p. 29): “O narrador de Caetés, João Valério, escreve um livro sobre os índios

caetés.” Sendo assim, o leitor estava diante de dois livros, a obra Caetés de Graciliano Ramos

e o livro “caetés”, de João Valério, na qual ambos não têm semelhanças.

Ainda podemos ressaltar a questão metalinguística envolvida no enredo de Caetés,

visto que o romance sugere o livro dentro do livro. Segundo Afrânio Coutinho, (2001, p.

392): “A estrutura ficcional de Caetés desenvolve-se e constrói em dois planos nítidos, ora

alternando-se ora encruzando-se.” Contudo, a obra Caetés contém um plano interior e

exterior, que ressaltava a consciência dos seus personagens, visto que o personagem-narrador

relata a vida dos habitantes de sua cidade, porém os mesmos têm uma vida cheia de tédios e

sem glórias.

Ao deixar definitivamente Palmeira dos Índios, em 1933, Graciliano foi residir em

Maceió, sendo nomeado diretor da Instituição Pública de Alagoas. Lá trabalhou intensamente,

reformulando os métodos de ensino para se adequarem às escolas, tão necessitadas de amparo

e novos horizontes.

Em 1934, publicou o livro São Bernardo. A referida obra tem como cenário a

fazenda São Bernardo, na cidade de Viçosa, em Alagoas. Paulo Honório foi o personagem-

narrador, que decidiu escrever um livro sobre sua vida. Em referência a Paulo Honório,

Graciliano Ramos (2002, p.1) afirma que: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo

pela divisão do trabalho”. No entanto, o personagem-narrador produziu uma obra

autobiográfica, valendo-se da ajuda dos amigos para desenvolver o enredo. De acordo com

depoimento de Graciliano Ramos, (2002, p. 1), “Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos

consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais.”

Paulo Honório relembrava todos os fatos de sua vida. Da infância, não lembrava

muito. Já adulto lembrou-se do período em que esteve preso e com isso ficou obcecado em

obter dinheiro e ser o dono da fazenda São Bernardo, onde trabalhava. Ao sair da prisão,

algum tempo depois, comprou a fazenda e nela fundou uma escola, sendo Madalena a

professora. Paulo Honório e Madalena casaram. Paulo Honório foi um homem desconfiado e

sem escrúpulos. Já Madalena tinha ideias socialistas. Segundo André Luis Mitidieri (2012, p.

43) “Começa a se destacar a divergência entre as concepções de mundo de Madalena e Paulo

Honório.” Assim, Madalena entristeceu com facilidade, diante das desconfianças de traição e

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da diferença de pensamento entre ela e Paulo Honório, o que também ocasionou uma difícil

convivência entre ambos. Madalena, de tanta tristeza, suicidou-se. Paulo Honório, triste e sem

ânimo para seguir com os negócios da fazendo, acabou endividado e falido.

Para Vera Prola Farias (2012, p. 53), a obra São Bernardo está inserida na ideologia

da oligarquia brasileira, pois, “No âmbito ideológico do mundo das oligarquias de um Brasil

rural, Paulo Honório encara o mais caro mito da sociedade capitalista moderna.” No entanto,

o Brasil, nos anos 20, era capitalista e sua agricultura era baseada na oligarquia, oriunda do

coronelismo. Paulo Honório veio de uma infância pobre, ficou preso durante três anos, por um

crime que cometera, e mediante a violência do sertão, conseguiu prosperar na vida. Conforme

a pesquisadora, “apesar da infância miserável, (...) conseguiu „vencer‟ sozinho e tornar-se um

homem próspero.” (FARIAS, 2013, p. 53). Assim, o personagem-narrador, em meio às

dificuldades, venceu na vida. Para isso, valeu-se da falta de caráter, já que almejava inserir-se

na sociedade capitalista, sendo um sujeito dotado de poder.

De acordo com os estudos de André Luis Mitidieri (2012), a obra São Bernardo

apresenta uma construção memorialista por fazer uma alusão aos devaneios da vida

conturbada de Paulo Honório. No entender do pesquisador: “É assim que a memória contém a

totalidade do passado, (...) na memória do narrador-personagem, uma discussão entre Godim

e Padilha detalha outros traços de Madalena.” (MITIDIERI, 2012, p. 40-41). Contudo, Paulo

Honório, quando lembrava de sua trajetória, relacionava-a com um conjunto de lembranças

semelhantes, fazendo parte da memória individual e memória coletiva. Assim, ele escreveu

sua autobiografia.

Graciliano Ramos ainda trabalhava como diretor da Instituição Pública de Alagoas,

quando, no início de 1936, começou a receber misteriosos telefonemas, com ameaças ocultas.

Mesmo assim, Graciliano não se intimidou e continuou trabalhando normalmente, até que, no

dia 3 de março, foi surpreendido em sua residência em Maceió, foi preso por atividades

consideradas revolucionárias, sem, no entanto, ter sido acusado formalmente. Permaneceu

preso por dez meses e sofreu todo o tipo de humilhações. Percorreu vários presídios no Brasil.

Não se tendo provas de que Graciliano Ramos era comunista, foi inocentado e libertado, em

janeiro do ano seguinte. Após sair da prisão, Graciliano não voltou mais ao Nordeste e passou

a residir no Rio de Janeiro, num quarto de pensão com sua mulher e as filhas menores.

Escreveu nesse período, sendo premiado pelo Ministério da Educação no concurso de

literatura infantil, em 1937.

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Ainda morando no quarto de pensão, Graciliano Ramos escreveu seu último

romance, Vidas Secas, vindo a ser publicado em 1938. Essa obra relata a história da família de

retirantes: Fabiano, Sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais venho e a cachorra

Baleia. A história se passa no sertão nordestino, visto que o escritor retratou a realidade da

época, num ambiente precário e pobre, bem como a terra seca. Em referência à obra Vidas

Secas, Denise Almeida Silva (2012, p. 93) afirma que: “Em Vidas Secas, à terra áspera e seca

correspondem seres rudes, de poucas palavras, tão concentrados em sobreviver que quase não

lhe resta alento para „fraquezas‟”.

Vidas Secas, além de retratar o drama da seca enfrentada pela família de Fabiano,

também apresenta outro viés, como a frieza e aspereza na relação familiar, bem como a falta

de carinho e ternura. Segundo Graciliano Ramos, “Sinha Vitória não conversou um instante

com o menino mais velho.” (2002, p. 26). A falta de diálogo e carinho entre os filhos é

constante na obra, porém estes são chamados de menino mais novo e menino mais velho sem

referência que os identifique como nomes próprios. Assim, Sinha Vitória e Fabiano, tão

acostumados com a rudeza do sertão, esquecem de ser carinhosos com eles mesmos e com os

filhos, pois se preocupam somente com o trabalho na terra seca, onde o que se plantava,

pouco nascia, decorrente da seca nordestina.

Notamos, na narrativa de Vidas Secas, diversas situações de problemas sociais,

como a violência e a opressão. Na perspectiva de Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira

Porto (2012, p. 105): “Vidas Secas é também marcada por experiências de violência e

opressão: Fabiano, sua esposa e os filhos são oprimidos e explorados pelo patrão.” Entretanto,

a família de Fabiano e Sinha Vitória, além de sofrer com a difícil realidade social na qual

estavam inseridos, também sofre com a autoridade, representada pelo patrão de Fabiano e pela

força policial. Sendo assim, Fabiano é enganado pelo patrão e violentado pela polícia,

representado pelo Soldado Amarelo. Contudo, a forte influência do meio em que vivem, por

meio, do ambiente difícil, rude e áspero, os moldou de tal forma que a única preocupação é a

sobrevivência.

Em 1939, Graciliano Ramos é nomeado Inspetor Federal do Ensino. Nesse mesmo

ano escreveu Histórias de Alexandre, contendo histórias do folclore nordestino e destinadas,

principalmente, para a juventude e tendo um foco singular em sua produção: a literatura

infantojuvenil. Para Erwin Gimenez (2004, p. 188)

essas histórias de feitio popular se põem exato na passagem da ficção à confissão: o

escritor parece desprender-se então do romance, em textos curtos e descontínuos,

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ensaiando já os quadros da infância que, se aqui surgem por meio dos relatos

ouvidos no sertão (e ora recriados), adiante irão narrar as experiências pessoais.

A obra Infância foi publicada em 1945 quando o Brasil vivenciava o término do

Estado Novo, de Getúlio Vargas, bem como, no contexto internacional, o fim da Segunda

Guerra Mundial. A obra é o primeiro livro sobre memórias de Graciliano Ramos, podendo ser

lido como romance, no entanto é também um conjunto de contos. Conforme afirma Souza,

“Infância retoma a forma de composição estruturada sobre capítulos e contos e expõe também

questões de ordem social, mas com uma narrativa em primeira pessoa.” (SOUZA, 2001, p.

94). Assim, a obra possuiu contos com elementos que falam sobre a vida social e pessoal e

também os dramas enfrentados pela sociedade nordestina, narrados pelo narrador-

personagem.

O livro Infância consta de memória biográfica de Graciliano Ramos. De acordo com

Souza: “O tema da infância será finalmente o núcleo narrativo predominante (...) Graciliano

Ramos narra a partir da perspectiva da criança” (SOUZA, 2001, p. 52). Graciliano Ramos é o

personagem-narrador que conta sua vida desde menino até a fase de amadurecimento interior,

narrando toda a opressão de sua vida.

Contudo, o livro interage com as condições social e o desenvolvimento psicológico

das personagens, moldados pela triste realidade da seca no sertão nordestino. Conforme

reiteram Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira Porto: “Graciliano cria contos que

assumem um tom memorialista por fazerem alusão à infância, cuja vivência é acompanhada

de opressão, secura e frieza” (2012, p.101). Para dar conta dessa temática, a linguagem da

obra é simples, e a secura e a frieza estão presentes nas relações humanas, inclusive nos

diálogos curtos entre personagens. Assim, o meio difícil em que vive o personagem-narrador

deixa transparecer nos atos das pessoas a influência da difícil vida no sertão. Graciliano

Ramos escreve sua autobiografia, no período de 1892 a 1903, na faixa etária de 0 a 12 anos,

das suas origens em Quebrangulo, Alagoas, e também Buique, Pernambuco. Os contos de

Infância trazem as memórias de uma criança em crescimento, bem como suas lembranças,

detalhadas a partir dos sete anos. As memórias de Graciliano enquanto criança são retratadas

num texto rico em detalhes sobre a vida no engenho e os problemas sociais do nordeste e a

seca.

Graciliano participou em Salvador do Congresso para Escritores em 1950, onde foi

eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores, participando também de congressos

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em Porto Alegre. Foi convidado também para participar das comemorações dos 150 anos de

nascimento de Vítor Hugo. Assim Graciliano foi a Paris, à Tchecoslováquia e à União

Soviética.

Ao retornar para o Brasil, Graciliano adoece, sendo diagnosticado com câncer. Em

setembro de 1952, vai a Buenos Aires fazer uma cirurgia. Em outubro voltou ao Brasil e

completou sessenta anos. Seu aniversário foi comemorado na Câmara Municipal do Rio de

Janeiro. A homenagem foi feita por seus amigos, dentre eles, Jorge amado, José Lins do

Rego, Jorge de Lima e entre outros, mas apenas a filha de Graciliano compareceu,

agradecendo a homenagem, já que o pai estava de cama. Em 23 de janeiro de 1953, internado

na Casa de Saúde e Maternidade, depois de dois meses, faleceu Graciliano, sem nunca ter

escrito nada sobre o Rio de Janeiro mesmo morando lá por dezessete anos.

Em 1953, no mesmo ano de sua morte, publicou-se a obra póstuma, intitulada

Memórias do Cárcere. Obra esta que relatou toda a dor, sofrimento e o testemunho do

personagem-narrador, Graciliano Ramos, quando esteve preso, na época da Era Vargas, no

ano de 1936. De acordo com os estudos de Luana Teixeira Porto e Ana Paula Teixeira Porto a

obra Memórias do Cárcere “está mais direcionada a experiências de tortura e repressão do

regime autoritário brasileiro da ditadura de Getúlio Vargas” (2012, p. 105). Memórias do

Cárcere possibilita-nos a reflexão sobre a violência e a opressão, retratada na literatura, a

triste realidade de um governo ideologicamente autoritário, valendo-se da memória individual

do personagem-narrador e também da memória coletiva dos indivíduos que fizeram parte

dessa narrativa. Acentua essas experiências com olhar sobre o autoritarismo da Era Vargas.

Para tanto, Graciliano Ramos apropria-se das lembranças do que viveu nas prisões

brasileiras para poder aproximar-se do real. Conforme reitera Ada Maria Hemilewski (2012,

p. 73), “É percebido o esforço, empreendido pelo Velho Graça, de aproximação ao real

vivido, quer dizer, aos cárceres do governo Getulista.” Porém, Graciliano Ramos, ao criar a

narrativa de Memórias do Cárcere, aproximou-a do real, já que ela referiu-se à realidade do

Estado Novo, relatando a opressão dos cárceres brasileiros. O texto é narrado de forma linear

de modo a obedecer à ocorrência dos acontecimentos, interagindo com o tempo histórico, já

que ele faz parte dos fatos da obra, sendo assim, Graciliano Ramos constituiu seu testemunho

literário. Sobre essa narrativa, é importante trazer algumas leituras críticas que contribuem

para melhor compreensão de sua estrutura e proposta, o que se contempla na seção a seguir.

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1.3 Memórias do Cárcere a obra e a fortuna crítica

A obra Memórias do Cárcere é composta de dois volumes e está inserida num período

em que a literatura brasileira estava numa nova fase em que os escritores da época retratavam

a realidade social em que estavam inseridos. O período de 1930 a 1945 marcou a estreia de

alguns escritores relevantes para a literatura brasileira no romance regionalista, que são

Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos.

Graciliano Ramos é o próprio personagem-narrador da obra Memórias do Cárcere,

sendo escrito dez anos após a ocorrência dos fatos ocorridos na prisão: “Revolvo-me a contar,

depois de muita hesitação, casos passados há dez anos” (RAMOS, 2004, p. 33). O escritor

conta suas memórias e seus traumas e os de tantas outras pessoas que estiveram presas

durante o Estado Novo. Graciliano foi preso em março de 1936, acusado de ligações com o

Partido Comunista. De acordo com Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira (2011, p. 144),

“No ano de 1936, ainda sob os ecos da Revolução de 30, já no governo de Getúlio Vargas, o

escritor Graciliano Ramos foi detido no dia 03 de março. Na ocasião era funcionário da

Instituição Pública de Alagoas.” No entanto, Graciliano Ramos, assim como inúmeras

pessoas, foi levado para vários presídios brasileiros e, em janeiro de 1937, foi libertado, já que

não tinham nenhuma prova do seu real envolvimento com os comunistas.

O livro é dividido em quatro partes: “Viagens”, “Pavilhão dos Primários”, “Colônia

Correcional” e “Casa de Correção”. Enquanto esteve preso, Graciliano descrevia diariamente

todo o pânico, sofrimento e torturas das pessoas que se encontravam no cárcere. Segundo

Massaud Moisés, o autor redigiu “páginas candentes de realismo cru, libelo contra o regime

penitenciário e político dos anos 30” (2001, p. 175). Pode-se entender como eram tratados os

presos nessa época, bem como sua memória traumática por meio do narrador-personagem que

saiu de Alagoas, sua terra natal, para os cárceres do Rio de Janeiro.

Na primeira parte, “Viagens”, Graciliano narra as ameaças recebidas por telefone na

Instrução Pública de Alagoas. Conforme afirma o próprio autor: “No começo de 1936,

funcionário na instrução Pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas,

com veladas ameaças, me procuravam o endereço” (RAMOS, 2004, p.38, v. 1). Graciliano

não considerou as ameaças, alegando ser apenas intriga de algum inimigo, todavia, ele não

imaginava que fosse de cunho oficial.

29

Posteriormente, um amigo procura alertá-lo sobre sua possível demissão no cargo de

administrador. Segundo Graciliano: “(...) minha permanência na administração se tornara

impossível. Não me surpreendi” (RAMOS, 2004, p. 38, v. 1). Graciliano não estava surpreso

com a demissão, visto que, neste cargo, oito pessoas já haviam trabalhado, no entanto, ele

superou as dificuldades encontradas, permanecendo no cargo por três anos. Na sua gestão,

priorizou a educação, pedindo que nas escolas tocassem o Hino de Alagoas, mas foi infeliz na

sua atitude, interpretada por lideranças do governo como uma ofensa ao Estado de Alagoas. O

governador Osman Loureiro encontrava dificuldades para demiti-lo, pois seria necessário seu

afastamento involuntário.

Graciliano Ramos estava em casa, quando recebeu a visita de uma parente, assustada,

com a possível prisão de Graciliano. Ela insiste para Graciliano fugir da polícia. Segundo

Graciliano: “Ao meio-dia uma parente me visitou. (...) Essa pessoa indiscreta deu-me

conselhos e aludiu a crimes vários praticados por mim.” (RAMOS, 2004, p. 44). Graciliano,

mesmo diante das acusações, decidiu permanecer em casa e aguardar a polícia. Já não temia

mais a ideia de ser preso embora estivesse na conclusão de seu livro, achava que, se ficasse

alguns dias não prisão, seria produtivo para concluí-lo. Conforme afirma Ramos: “Naquele

momento a ideia da prisão dava-me quase prazer. (...) a cadeia era o único lugar que me

proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o livro”. Assim, a prisão

remete a Graciliano um ambiente sereno para a revisão de sua obra além de ficar longe das

pessoas de seu convívio profissional.

Graciliano arrumou a mala com algumas roupas e o livro. Acomodou-se na sala com

sua família, para aguardar a polícia que veio buscá-lo. Sobre esse momento relata Graciliano:

“Que demora, Tenente! Desde o meio-dia estou à sua espera.” (RAMOS, 2004, p. 47, v.1 ).

Graciliano esperava ansiosamente pela polícia. E quando chegaram, foi preso sem processo

formal, acusação ou interrogatórios. Por isso, “Nada afinal do que eu havia suposto: o

interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos

e anotações, testemunhas sumiram-se” (RAMOS, 2004, p. 52, v. 1). Graciliano estava

esperando justificativas e esclarecimentos sobre sua prisão, mas nada havia acontecido,

ninguém explicou o motivo de ele estar lá e tampouco da viagem que faria a Recife.

Graciliano julgava os militares ásperos e severos. Já no navio Manaus, os presos

conviviam com sujeira, calor, dormiam no chão ou nas redes onde jogavam cascas de laranjas

como se fossem lixeiras. O autor afirma: “Um chiqueiro, evidentemente. Era como se

fôssemos animais” (RAMOS, 2004, p. 167, v.1). Ramos comparou o tratamento que recebeu

30

com animais, pois viviam com todo o tipo de sujeira, como o vômito e a urina, contribuindo

para o semblante desanimador dos presos. E assim Ramos ficava angustiado e preocupado,

porque não sabia o que mais ia enfrentar na viagem e no novo lugar que iam chegar.

Na segunda parte de Memórias do Cárcere, “Pavilhão dos Primários”, relata-se que

Graciliano e os demais presos, ao chegaram no Rio de Janeiro, deparam-se com um alto

edifício. Dirigem-se às celas. Ao entrar, são recepcionados pelos demais presos, que cantam

eufóricos uma pequena parte do Hino Nacional para saudar os revolucionários do norte.

Graciliano surpreende-se com a atitude dos presos e observa como essas pessoas estavam.

Segundo Ramos: “Quase todos ali vestiam pijamas, ou apenas traziam cuecas; usavam

tamancos. Eram trinta ou quarenta pessoas” (RAMOS, 2004, p. 208). Portanto, os presos

eram de uma simplicidade excessiva, magros e tristes. Em seguida, Graciliano é convidado

para juntar-se à cela com o Capitão Mata, Enzmann Cavalcante e Newton Freitas.

Conversaram sobre suas profissões. Segundo o relato do narrador-personagem, Graciliano

passava o dia conversando e conhecendo pessoas, olhando tudo ao seu redor com atenção. À

noite, Renato comandava e apresentava a “Rádio Libertadora”. Não era apenas um

divertimento para os presos, mas um momento de notícias de jornais, críticas ao governo,

comentários, algumas canções bastante patrióticas, cantadas pelas mulheres que ficavam no

alojamento ao lado.

As refeições na prisão eram péssimas. Serviam-lhe arroz sem gosto e carne misturada

com peixe. Não tinham faca nem garfo, apenas colher. De manhã, serviam ainda na cela, num

caneco de alumínio, café adocicado e enjoativo e pão amanhecido com manteiga rançosa.

Apenas Capitão Mata achava bom, porque motivava Graciliano, e este acabava comendo um

pouco.

Graciliano relata que conheceu muitas pessoas na prisão, fez novas amizades, mas o

ambiente ainda é de opressão intensa. Segundo o autor era claro, “o reflexo de gritos e uivos

causados por agulhas a penetrar unhas, maçaricos abrasando músculos” (RAMOS, 2004, p.

260, v. 1). Os policiais frequentemente valiam-se da violência para a tortura física e a pressão

psicológica, deixando os presos fracos e em péssimo estado físico e mental, porém a luta pela

sobrevivência na prisão é constante.

Ramos é avisado da visita de sua esposa na segunda-feira. Fica aborrecido e

preocupado com Eloisa. Imaginou a esposa desamparada, pobre e necessitada de sua ajuda.

Como estaria andando nas ruas desconhecidas do Rio de Janeiro?, perguntava. “Que

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estupidez! (...) imaginei-a pobre, desarmada e fraca, a mexer-se à toa na cidade grande”.

(RAMOS, 2004, p. 268, v. 1). Suas aflições desanimaram-no, visto que não podia ajudar

Eloisa, em nada. Não tinha dinheiro para dar-lhe. Sua saúde já não era mais a mesma, tinha

dormência na perna, pouca energia e não sentia os membros. Por essa razão, sentia-se inútil.

Eloisa veio visitar-lhe, na companhia de Luccarini, seu funcionário, em Alagoas.

Graciliano, ao vê-la, alegra-se. Sua raiva e preocupação desaparecem, dando lugar à

ansiedade de conversarem e saber como está sua família. Assim: “A raiva e o desatino

causados pelo súbito aviso em alguns dias se haviam decomposto, substituídos por uma

expectativa ansiosa.” (RAMOS, 2004, p. 271, v 1.). Entretanto, Graciliano, mais calmo,

conversa com Eloisa sobre sua situação na prisão. Ramos emociona-se ao perceber em Eloisa

sua força, dedicação, energia e determinação, para ajudá-lo na prisão. Ramos agradece

emocionado Luccarini, por ter vindo junto com sua esposa. Eloisa fala a Graciliano que foi

conversar com o editor José Olímpio, para a publicação do seu romance, mas Graciliano tem

medo de publicá-lo.

Na terceira parte, “Colônia Correcional”, o enredo tem como espaço o cenário carioca

localizado em Dois Rios na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, Graciliano narra a sua difícil

mudança para a Colônia Correcional, tão temida pelos maus-tratos. O narrador, ao chegar à

Ilha Grande, analisa as condições precárias de onde vai ficar. Desce da lancha com cuidado

para não cair. Segue a pé, acompanhado de alguns soldados, mas a caminhada forçada reaviva

dores nas pernas, sequela de uma operação antiga. Segundo Graciliano: “A perna me

atormentava e não me seria possível correr. Declarei isto ao sargento.” (RAMOS, 2004, p. 47,

v. 2). Ramos explica ao sargento das dificuldades de continuar andando. O sargento oferece

um cavalo para Ramos continuar. Ele recusa e diz que poderá chegar ao local até o fim da

tarde.

Segundo o narrador da obra, na Colônia Correcional, os presos sofrem maus-tratos,

sentem-se indivíduos reduzidos à condição de sobrevivência humana. Ao toque da corneta,

são obrigados a fazer filas para a formatura geral. Nesse instante, o sargento de farda branca

diz frases desanimadoras. Segundo relata Ramos, o sargento dizia: “Aqui não há direito.

Escutem. Nenhum direito. Quem foi grande esqueça-se disto. Aqui não há grandes. Tudo

igual.” (RAMOS, 2004, p. 69, v. 2). Assim, os presos passam pelas piores privações, vivendo

num ambiente perigoso que despersonaliza os indivíduos, sendo entregues à própria sorte.

Conforme o relato, Graciliano passa por momentos de angústia e pela triste experiência da

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prisão, visto que os soldados podiam jogar os presos no chão e enchê-los de pontapés, porém,

o que leva o narrador a concluir que os prisioneiros viviam como bichos.

Os presos conviviam num ambiente desumano, desanimador, cercado de sujeira,

morte, dor e muita fome. Quando alguém morria, era enterrado em valas, como lixo. A

comida continha mistura de excrementos de ratos, provocando nos presos muita dor.

Conforme afirma Graciliano, “Na farinha escura havia excremento de rato” (2004, p. 77, v.

2). Essa mistura na comida provocava cólicas intensas, bem como a decomposição da

fisionomia. Graciliano também passava muito mal ao ingerir a comida, contorcendo-se de dor

intestinal. As condições de higiene eram péssimas, não tinham banheiro e nem vaso sanitário,

o que tinham eram apenas buracos. Os presos cada vez mais perdiam a paciência e a

educação, comportando-se muitas vezes como selvagens.

Graciliano estava doente, fez vários exames e não quis ser operado na prisão. Segundo

ele: “De fato, os pobres músculos haviam atrofiado. (...) afirmava-me com dificuldade, a

arrastar a perna trôpega” (RAMOS, 2004, p. 147, v. 2). Nessas memórias, Graciliano relata

que não se alimentava, estava em jejum por vários dias. Como consequência, ficou muito

fraco e, como não estava bem e não havia provas contra ele, foi transferido para a Casa de

Correção. Ao sair, prometeu ao médico que iria escrever um livro sobre o que viveu na prisão.

Na quarta parte do livro, “Casa de Correção”, tem-se o relato de que Graciliano e os

demais presos são transferidos para a Casa de Detenção. Somente nesse instante é que se dão

conta do quanto estavam magros, desfigurados, tristes e que pareciam cadáveres humanos. O

narrador enfatiza que “estava medonho. Magro, barbado, covas no rosto cheio de pregas, os

olhos duros, encovados. Demorei-me um pouco diante do espelho” (RAMOS, 2004, p. 191).

Com isso, Graciliano conclui que o Estado Novo desejava pessoas totalmente acabadas física

e psicologicamente para não terem poder de reação e argumentos perante as decisões do

governo.

No dia seguinte, logo pela manhã, o guarda Moreira trouxe a Graciliano lápis e papel.

Anota o nome de alguns médicos que queria consultar, já que tinha muita dor nas pernas,

pensava ser doença grave. Conforme ele declara: “As dores nas pernas anunciavam doença

grave. Iam do tornozelo ao joelho, era como se os ossos estivessem desfazendo.” (RAMOS,

2004, p. 200, v. 2). O narrador tinha dificuldades de se mexer, as pernas não tinham mais

consistência, tinha medo de caminhar e cair. Passara quinze dias de jejum na Colônia

33

Correcional. A fraqueza tomava-lhe conta do corpo e da alma. De noite, não conseguia dormir

muito bem, mas não se julgava tão mal assim.

Relata o narrador que, no Pavilhão dos Primários, à noite, houve gritos das mulheres,

visto que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues à Gestapo. A polícia alegou que as

duas seriam transferidas de prisão. Na prisão ao lado, José Brasil organizava o protesto.

Graciliano logo pensou nos campos de concentração na Alemanha. Conforme ele afirma:

“Sentado na cama, pensei com horror em campos de concentração, fornos crematórios,

câmaras de gases” (RAMOS, 2004, p. 274). Assim, Graciliano pensava na triste realidade dos

campos de concentração e o horror que Olga e Elisa iriam sofrer. A polícia prometeu aos

presos que Elisa e Olga não iriam sair do Brasil e que podiam levar dois amigos. Segundo

Ramos: “Olga e Elisa seriam acompanhadas por amigos, nenhum mal lhes fariam” (RAMOS,

2004, p. 278, v. 2). Os presos aceitaram a proposta e, junto com elas, foram Campos da Paz

Filho e Maria Werneck. Logo, Campos e Maria regressam ao Pavilhão dos Primários. Depois,

souberam que Olga e Elisa foram assassinadas no campo de concentração, na Alemanha.

Conforme relato do narrador, na sala da capela, houve luta física entre os presos. O

motivo da briga eram as palavras. Os presos já não se entendiam mais. Segundo Graciliano,

“Havia na sala da capela indivíduos assim, não tão rudes, mas férteis em absurdos e

inconciliáveis” (RAMOS, 2004, p. 313, v. 2). Tornavam-se comuns os gritos e a tolerância

era cada vez menos presente na prisão. A desordem era frequente. Falavam palavrões,

bagunçavam tudo o que estava ao seu redor. Uma tarde, na sala do café, uma nova bagunça

surgiu. Envolveram-se muitas pessoas. José Brasil esforçava-se para amenizar a gritaria dos

presos e xingava Graciliano por nunca se envolver nas folias.

No processo de construção dessa narrativa, morre o escritor: Graciliano Ramos faleceu

quando faltava apenas um capítulo para concluir Memórias do Cárcere. Segundo Ricardo

Ramos (2004); “Não tentou concluir suas Memórias do Cárcere.” (p. 318). Graciliano não se

importava em concluir a obra, pois a atenção era desviada para esquecer o sofrimento

prolongado vivido nas prisões do Recife e Rio de Janeiro.

Segundo Lamberto Puccinelli (1975), a obra Memórias do Cárcere não apresenta um

relato da atuação política do escritor, no entanto, relata as várias consequências que essa

atuação lhe causou. Assim, Graciliano, frustrado com a situação política do país e consigo

mesmo, tem a possibilidade de esclarecer sua psicologia, ou seja, tudo o que ele sofreu na

prisão, apropriando-se da produção literária em um processo artístico que confere a Memórias

34

do Cárcere a singularidade de registrar literariamente, a partir de uma perspectiva realista e

focada no trauma, a experiência de prisão no Estado Novo.

Quando Graciliano estava na prisão, no Recife, Capitão Lobo, ao informar que seria

transferido, ofereceu-lhe dinheiro. Conforme afirma Graciliano, “eu pus aí num banco

algumas economias que não me fazem falta por enquanto. Ignoro as suas posses, mas sei que

foi demitido inesperadamente” (RAMOS, 2004, p. 108). Graciliano Ramos ficou

surpreendido com a generosidade do Capitão Lobo ao oferecer dinheiro a ele, que neste

momento era apenas um preso que estava prestes a ser transferido, não sabia para onde ia e

tampouco qual era a razão da sua prisão.

Sendo assim, diante da atitude de bondade do capitão, Ramos chegaria a conhecer a

solidariedade humana. Para Puccinelli, “As criaturas não são apenas brutalidade e violência,

mas seria impossível que essa redescoberta do mundo lhe proporcionasse felicidade”

(PUCCINELLI, 1975, p. 106). No entanto, Graciliano, surpreso com a generosidade do

Capitão Lobo, percebe que nem todos os indivíduos que trabalham na prisão possuem atos de

violência e brutalidade, ou seja, alguns seres humanos ainda são menos ásperos. Mesmo

diante da revelação de uma humanidade mais compreensiva, Ramos não se alegra, visto que

sua sensibilidade fora arranhada e sua integridade ameaçada.

Já para Alfredo Bosi (2002), a obra Memórias do Cárcere remete aos laços que ligam

o autor Graciliano Ramos ao seu depoimento em relação à história política brasileira dos anos

de 30. Assim, a memória de fatos históricos se apropria da construção literária, através do

testemunho do personagem-narrador. Segundo Bosi; “O narrador contempla corpos sofridos,

que às vezes emitem palavras, talvez ideias, farrapos de ideias, (...) a solidariedade que lhe

inspiram aqueles homens.” (BOSI, 2002, p. 223). O personagem-narrador testemunha todo o

sofrimento das pessoas vitimizadas pela censura, tortura, repressão e violência. O que vemos

nessa narrativa de Memórias é um relato comovido de um sujeito à margem do sistema e que

luta pela sobrevivência.

Para Alfredo Bosi, a escrita do testemunho, em Memórias do Cárcere, é abordada

pelas memórias de Graciliano Ramos no seu testemunho de fatos históricos. Segundo o

pesquisador: “O testemunho é subjetivo e, por esse lado, se apresenta com a narrativa literária

em primeira pessoa” (BOSI, 2002, p. 222). O testemunho de Graciliano Ramos é o

depoimento emocionante e traumático do Estado Novo. No entanto, Graciliano apropria-se do

35

seu testemunho, para construir uma literatura realista de episódios que marcaram a história

brasileira da primeira metade do século XX.

Segundo os estudos de Hermenegildo Bastos (1998), em Memórias do Cárcere, o

leitor não pode esquecer o relato traumático, ou seja, a memória do testemunho. Porém,

testemunho é diferente de documento, visto que o testemunho é construído na visão do

sujeito-autor. Conforme afirma Hermenegildo Bastos: “Em Graciliano, a literatura é sempre

testemunha.” (1998, p. 20). Nesse sentido, o testemunho é feito em registros com a literatura,

e a obra Memórias do Cárcere é um testemunho baseado na realidade histórica das prisões

brasileiras a partir da perspectiva da experiência vivida pelo autor.

Memórias do Cárcere, além de ser uma obra com o denso relato carcerário do

personagem-narrador, configura-se como um livro dentro do livro, ou seja, a revisão da sua

própria obra Angústia (1936). Conforme afirma Marcelo Magalhães Bulhões (1999, p. 61):

“As várias referências a Angústia em Memórias do Cárcere configuram a correspondência

mútua entre os dois livros” Para Graciliano, tomar nota sobre a difícil realidade na prisão era

tão importante quanto revisar a obra Angústia (1936). No momento em que o narrador de

Memórias vê a semelhança com um personagem de sua criação - Angústia, o autor explica a

relação de intertextualidade entre as duas obras. Conforme afirma Graciliano: “A cadeia era o

único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranquilidade necessária para corrigir o

livro.” (RAMOS, 2004, p. 45). A obra Memórias do Cárcere faz alusão a Angústia, já que se

refere ao momento de composição da obra dentro da cadeia. Graciliano julgava fácil a

correção do livro, ficaria horas concentrado, reescrevendo e consultando o dicionário em meio

aos homens com roupas zebradas que nada tinham a fazer. Ao construir essa metaficção,

vemos em memória outro aspecto singular da obra: o seu caráter autobiográfico.

1.4 O teor autobiográfico em Memórias do Cárcere

Memórias do Cárcere pode ser visto como um texto autobiográfico sobre as condições

traumáticas de Graciliano Ramos. Durante vários meses, esteve na prisão e conheceu a

crueldade do governo getulista, uma experiência que aparece narrada nessas memórias.

Segundo Alfredo Bosi, “Memórias do Cárcere, um dos mais tensos depoimentos da nossa

época, é por certo, o mais alto da nossa literatura” (1994, p. 404). Graciliano descreve não

apenas a sua experiência pessoal, mas retrata, com impressionante nitidez, o drama de uma

36

época histórica marcante de nosso país, por essa razão, a obra é cheia de depoimentos da

época.

Somente após dez anos de sua libertação, Graciliano começou a escrever suas

impressões do cárcere. A decisão em redigir suas memórias demandou muito tempo de

reflexão e amadurecimento. Isso porque o período em que esteve encarcerado foi muito

marcante. Ele foi metido no porão de um navio, misturado a outros indivíduos considerados

criminosos e, por fim, conduzido ao presídio situado numa ilha. Portanto, na vivência do

próprio autor, está o testemunho do fascismo, da situação daquelas pessoas sem destino,

entulhadas em navios, alojadas em porões, sujeitas às piores condições de sobrevivência

humana, com alimentação e higiene precárias, sofrendo todo tipo de torturas e privações.

Em Memórias do Cárcere, é perceptível uma visão não otimista de Graciliano Ramos

sobre a realidade humana. O narrador avalia o homem como um ser pessimista, sem

esperança, desencorajado e com a possibilidade de uma vida anulada pela triste realidade da

prisão. Segundo o próprio narrador-personagem, “provavelmente não havia lugar para nós,

éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere” (RAMOS, 2004, p. 179, v. 1), uma

passagem da obra que pode explicitar tanto a memória do personagem narrador quanto a do

próprio escritor, dada que na biografia deste a prisão fora uma realidade cruel. Assim,

podemos entender que Graciliano não destaca apenas o drama individual, mas o coletivo, uma

vez que a experiência narrada pode se referir ainda a indivíduos que carregam em si traumas,

incertezas e pessimismo interior decorrentes das políticas de um governo autoritário.

A obra Memórias do Cárcere vem ao encontro da perspectiva de Antonio Candido

(2000). À luz dos estudos de literatura e sociedade, o crítico estabelece uma relação entre a

obra e seu meio social. Para o crítico, a obra literária passou a ser vista de modo diferente no

decorrer do século: antes a obra não precisava necessariamente apresentar um conteúdo que

expressasse a realidade social, pois ela já possuía seu valor e sentido, o que definia um

conteúdo fundamental. Posteriormente, mostrou-se o contrário, confirmando-se que a obra

possuía um sentido secundário, como podemos observar na citação abaixo:

procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua

importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindo uma

peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos,

sobretudo sociais (...) ( p.5)

37

Graciliano Ramos, na obra Memórias do Cárcere, retratou, de forma traumática, a

violência sofrida na prisão, durante o Estado Novo, e também retrato as inúmeras pessoas,

assim como o próprio personagem-narrador vivenciou, no ano de 1937, mostrando, através de

sua obra, uma sociedade governada pelo forte autoritarismo da época. Assim, nos dias de

hoje, é praticamente impossível ler a obra sem relacioná-la ao seu conteúdo social, pois

só podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialética íntegra

e que o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro,

norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se

combinam como momentos necessários do processo interpretativo. (CANDIDO,

2000, p. 6)

Graciliano Ramos, com sua literatura de cunho denunciador da realidade social

brasileira, instiga seu público leitor a refletir diante dos inúmeros acontecimentos de uma

época, marcada pela repressão social e política, mediante seu testemunho. Ao discorrer sobre

Memórias do Cárcere, Ada Maria Hemilewski (2007, p. 66) revela que “O alagoano explora

diferentes facetas das escritas do eu, (...) as experiências do homem adulto, réu encarcerado

pela ditadura Vargas.” No entanto, Graciliano Ramos constrói uma autobiografia através de

suas memórias, marcadas por um testemunho traumático da difícil realidade encontrada nos

cárceres brasileiros da época Vargas. Sendo assim, a crítica literária analisa a obra como

comunicação íntima e familiar, interessando-se em certificar as ações que estruturam-na de

maneira particular, bem como a organização interna da obra. Conforme reitera Candido:

Tomando o fato social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria

(ambiente, costumes, traços, grupos, ideias), que serve de veículo para conduzir a

corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor

estético). (CANDIDO, 2000, p.6)

Graciliano Ramos, no tempo em que escreveu Memórias do Cárcere, possuía uma

nova visão da realidade brasileira, passando por momentos em que modificou sua concepção

de mundo, ampliando seus pensamentos diante da sociedade brasileira. Quanto aos estudos

sobre o universo sócio-cultural na prisão, perceptíveis em Memórias do Cárcere, Amadeu da

Silva Guedes (2011, p. 254) salienta:

38

podemos afirmar dois tempos próximos no texto de Graciliano: o tempo em que ele

viveu as experiências e o tempo em que ele colocou essas experiências na literatura,

este último já marcado pela visão amadurecida diante das experiências passadas.

Para Graciliano Ramos, as vivências e experiências acarretaram no seu

amadurecimento, bem como na ampliação dos seus horizontes mediante a realidade

angustiante na prisão, transpondo isso para a literatura. Assim, Antonio Candido diz que as

obras retratam a sociedade, falando dos seus diversos aspectos, mostrando suas diversidades

sociais. De acordo com o crítico (2000, p. 10):

As obras espelham ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários

aspectos. É a modalidade mais simples e mais comum, consistindo basicamente em

estabelecer correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro.

Na obra literária, era retratada a realidade social na qual o escritor estava inserido.

Assim, Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, mostrou o perfil da sociedade dos anos

de 1937 a 1945, narrando um país autoritário que sofreu com a repressão do Estado Novo.

Através do livro tem-se uma representação dos indivíduos, com seus costumes e valores que

são representação da sociedade, como, por exemplo, na representação de contos nas peças de

teatro o russo Checov, contextualizando em uma obra a história e as relações sociais,

oferecendo aos leitores uma visão realista sobre a sociedade. Tal ponto de vista pode ser

desenvolvido sob o olhar da sociologia da literatura.

A sociologia da literatura concentra-se na investigação sobre relações entre obra e

público, analisando como é a aprovação e o efeito de ambos e também focalizando o escritor

com suas relações. Conforme Candido, essa perspectiva de reflexão “estuda a posição e a

função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção

e ambas com a organização da sociedade.” (CANDIDO, 2000, p.11). O escritor está

diretamente ligado à estrutura da sociedade, porque ele focaliza um assunto e organiza-o de

acordo com os seus ideais, retratando uma determinada época, assim ele faz uma articulação

do seu ponto de vista, levando em consideração sua posição social.

Nos estudos sociológicos, temos o objetivo de apontar a função política das obras,

analisando-as a fim de averiguar a ideologia do texto e também a investigação de alguns

gêneros literários e sobre a literatura em geral; nos estudos da sociologia na literatura

consideram-se a obra e o ambiente social, como articuladores da função de uma sociedade.

Como podemos observar na citação: “nota-se o deslocamento e o interesse da obra para os

39

elementos sociais que formam a sua matéria, para as circunstâncias do meio que influíram na

sua elaboração.” (CANDIDO, 2000, p.12). Entretanto, a sociedade influencia a obra, com

seus elementos sociais, por meio das descrições de hábitos, casas, roupas e seus personagens,

bem como suas características próprias, marcadas pelas ideias e sonhos.

Quando discorremos sobre Memórias do Cárcere, percebemos que esse diálogo entre

a obra e os condicionamentos sociais da época, assim como acontecimentos que se referem

diretamente à vida do escritor Graciliano Ramos, são articulados na matéria narrativa. Tudo

isso é levado em consideração na elaboração da obra, já que Graciliano Ramos vale-se de sua

experiência vivida numa época em que a expressão da sociedade era banida e que a tortura e a

violência eram usadas como forma de controle e repressão, como foram na Era Vargas. Mas

representa esse contexto a partir da voz de um narrador-personagem que apresenta suas

memórias, sendo estas caracterizadas como as de um sujeito traumatizado com essa

experiência. Um sujeito cuja história se assemelha com a história do próprio Graciliano autor,

o que nos permite identificar o caráter autobiográfico presente no texto.

Podemos pensar que o caráter autobiográfico do texto não é simplesmente um

arranjo formal criado pelo artista. De acordo com Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira

(2011, p. 145): “Apesar de estar num ambiente sem higiene e sem condições mínimas de

sobrevivência para um ser humano, o autor sentia um imperioso desejo de escrever, de relatar

sua situação insólita e humilhante.” Graciliano Ramos sentia a necessidade de escrever o seu

testemunho diante de tanta barbárie, logo o meio em que ele estava vivendo influenciou

diretamente na elaboração da obra Memórias do Cárcere, caracterizada pela tensão da

realidade do personagem-narrador. O tempo narrado está relacionado ao universo do Estado

Novo, mais exatamente, o ano de 1936.

40

2 LITERATURA, HISTÓRIA, MEMÓRIA E TRAUMA: ALGUNS

APONTAMENTOS TEÓRICOS

2.1 Ficção, história e testemunho

De acordo com os estudos de Paul Ricoeur (2010), a ficção cruza-se com a história,

por meio de um passado histórico a ser transferido do mundo fictício do texto para o universo

efetivo do leitor. Assim sendo, a história e a ficção levam-nos a uma teoria da recepção, visto

que o ato de leitura é fundamental. Segundo Paul Ricoeur, “As análises do entrecruzamento

da história e da ficção (...) remetem a uma teoria ampliada da recepção, na qual, o ato de

leitura é fenomenológico.” (2010, p. 311). Contudo, o ato de ler proporciona a teoria da

leitura, uma inversão para as narrativas históricas e ficcionais, valendo-se da divergência para

a convergência dessas narrativas, uma vez que a história e a ficção possuem uma estrutura

fundamental, que é a concretização de suas intenções tomadas de empréstimo à

intencionalidade da outra. Conforme reitera Paul Ricoeur: “A história se serve de alguma

maneira da ficção para refigurar o tempo, (...) a ficção se serve da história com o mesmo

intuito” (2010, p. 311-312). Num processo de mão dupla, a história apropria-se da ficção para

recriar o tempo, bem como a ficção vale-se da história com a mesma razão.

A ficcionalização de uma história serve-se da imaginação da perspectiva de um fato

passado tal como ele foi, visto que a imaginação incorpora-se no passado de histórias

possivelmente vividas. Em referência à imaginação, Paul Ricoeur declara que: “O imaginário

se incorpora à perspectiva do ter sido, sem enfraquecer sua perspectiva realista.” (2010, p.

312). Porém, a ficção está presente na narrativa, na medida em que há um passado possível e

semelhante e um mundo “irreal”, baseado a fatos reais na imaginação de uma história,

valendo-se de uma tese realista diante de um passado histórico, para reinscrever o tempo da

narrativa no tempo do universo. De acordo com os estudos de Carla Luciane Klôs Schöninger

(2010); “As reflexões sobre a ficção imaginária e a realidade (...) pretendem ressaltar o estudo

das relações dos textos entre si no tempo e dos textos no seu contexto histórico.” (2010).

Assim, o texto literário serve-se da ficção imaginária aliada à realidade para narrar os fatos

reais de acordo com o seu tempo, bem como o seu contexto histórico.

Já para Wolfgang Iser (2003) apud Umbach (2008), existem três elementos

importantes relacionados à criação literária, formada pela tríade que compõe a realidade, a

ficção e o imaginário. Rosani Ketzer Umbach (2008, p. 13) salienta que: “No modelo

41

proposto por Wolfgang Iser também existem três elementos relacionados à criação literária,

(...) trata-se da tríade formada pelas instâncias do real, ficcional e imaginário.” Para Iser

(2003), os textos ficcionais contêm elementos da realidade. Já os textos não-ficcionais, como

as autobiografias, na maioria das vezes contêm elementos ficcionais. No entanto, a ficção está

presente também nos textos literários, mediante a apresentação de situações reais. Já o

imaginário imerge no entrelaçamento do texto ficcional com elementos da realidade,

enfatizando o imaginário.

Os elos entre literatura e história também podem estar direcionados à função

testemunhal da obra de arte. De acordo com os estudos de Márcio Seligmann-Silva (2005), a

ficção está ligada com o testemunho diante de uma cena traumática. Segundo o crítico (2005,

p. 105), “devemos abrir mão da diferença entre a noção de ficção e a de construção da cena

traumática.” Assim, a ficção constrói-se na medida em que um indivíduo passa a testemunhar

algo traumático, compreendido como uma narração que procura registrar possíveis fatos

ocorridos. No entender de Marisel Valerio Porto e Aulus Mandagará Martins (2011, p. 2) “A

realidade a que o testemunho se reporta é a experiência que, pelo trabalho de ficção, ressoa na

memória coletiva do evento histórico.” Nesse sentido, o testemunho na literatura não apaga

um acontecimento traumático da história, mas a realidade em que ele está inserido, podendo

apropriar-se da ficção para narrar suas experiências do passado.

No ensaio “A literatura do trauma”, Márcio Seligmann-Silva salienta que há

algumas indagações acerca da literatura de testemunho e sua relação entre literatura e

realidade. Conforme afirma o autor, “não só aquele que viveu um „martírio‟ pode

testemunhar; a literatura sempre tem um teor testemunhal” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.

48). A ideia de testemunho não é apenas das pessoas que vivenciaram um sofrimento, sendo

capazes de testemunhá-lo, mas também a literatura apropria-se desse conteúdo traumático

para testemunhar. Seja como for, essa literatura de testemunho provoca um repensar na visão

da história. Segundo Paul Ricoeur (2007, p. 41); “o testemunho constitui a estrutura

fundamental de transição entre a memória e a literatura.” Porém, o testemunho faz um

intermédio entre memória e literatura, uma vez que a literatura precisa da memória e da

história do testemunho para constituir-se.

Desde os anos de 1970, a questão do testemunho tem sido cada vez mais estudada.

Ao averiguar o testemunho, almeja-se a caracterização do teor testemunhal, uma vez que

marca toda a obra literária, por meio da relação metonímica entre o real e a escritura. De

acordo com Seligmann-Silva é “(...) uma face da literatura que vem à tona na nossa época de

42

catástrofes e que faz com que toda a história da literatura (...) a partir do questionamento e do

seu compromisso com o real.” (2003, p. 1). O real não é no sentido da “realidade” tal como

era pensada pelos escritores naturalistas e românticos, mas o real a ser estudado é no enfoque

do trauma, uma vez que não pode ser representado pelos autores românticos e naturalistas,

porque o trauma é conservador à representação.

O conceito de testemunho remete a inúmeras reflexões sobre a literatura,

apropriando-se de algumas interrogações entre o literário, o fictício e o descritivo. O

testemunho aborda uma ética na escrita, valorizando sua maneira de se exprimir, ou seja, a

literatura está presente nas diversas ações e manifestações do testemunho traumático presente

nas narrativas. Na visão de Seligmann-Silva; “o testemunho aporta uma ética da escritura. (...)

a literatura está ali onde o sujeito se manifesta na narrativa” (2003, p.1). É nesse sentido que

a literatura, juntamente com uma base histórica que acompanha o testemunho, salienta uma

visão referente ao real e à ficção literária, com o propósito de reflexão sobre os modos e os

limites da representação. Portanto, nas últimas décadas, o testemunho tornou-se o objeto

principal da teoria literária devido a sua capacidade de relatar o seu trauma e pensar num

espaço para a escrita e a leitura daqueles que antes não tinham direito a elas.

Ao testemunhar algo deplorável, exige-se uma descrição detalhada do que está se

relatando, mas o ato de testemunhar é obtido por parte do real, podendo ser, em algumas

circunstâncias, ser constantemente traumático. Segundo Seligmann-Silva (2003, p. 48), “a

experiência traumática é [...] aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre”.

O trauma não se constitui enquanto tal no momento do acontecimento, como, por exemplo,

um acidente, mas após esse acontecimento, já que é, nesse instante, que a vítima narra os fatos

violentos, visto que, muitas vezes, encontra resistência na compreensão dos acontecimentos

traumáticos.

A literatura tem uma tensão dupla com a representação da realidade, podendo ser de

negação ou afirmação. A literatura e o testemunho passam a existir por meio do espaço entre

as palavras e as “coisas”. Nesse sentido, as experiências reais e a possibilidade de registrá-las

fazem parte do testemunho. Segundo Seligmann-Silva, “o testemunho tem sempre parte com

a possibilidade ao menos da ficção, (...) nenhum testemunho será possível e, de todo o modo,

não terá mais o sentido do testemunho” (p. 2003, p. 374). O limite ente “realidade” e ficção

não são delimitados porque o testemunho almeja resgatar no “real”, importando-se com tudo

o que existe de cruel para expô-lo, podendo necessitar da literatura.

43

Paul Ricoeur (2010), em seu ensaio sobre História, abordou-a epistemologicamente,

salientando que a história apropriou-se do passado através da memória. Paul Ricoeur (2010)

declara que: “É na possibilidade e pretensão de reduzir a memória a um simples objeto da

história entre outros fenômenos culturais que se diferenciam muito claramente as duas

abordagens” (RICOEUR 2010, p. 3). Essa redução da memória a um objeto da história foi

decorrente pelo desenvolvimento da história como ciência humana. Nesse sentido, a história e

a memória desenvolveram-se na escrita, sendo uma maneira de inscrever a experiência

humana por meio de um suporte material, como cartaz, disco compacto, livros, pergaminho e

etc. Já os jardins, as estrelas, os monumentos não transcrevem a voz humana. Essas foram a

linha da memória ao longo das etapas de construção da história.

O trabalho da historiografia foi abordado por alguns fenômenos por Paul Ricoeur

(2010). Inicialmente, o papel do testemunho num período de apuração documental. Conforme

abordou Ricoeur; “O testemunho é, num sentido, uma extensão da memória” (RICOEUR

2010, p. 3). Essa extensão da memória concretizou-se na fase da construção da narrativa,

visto que o testemunho apropriou-se de um dado acontecimento, afirmando a outro indivíduo

por meio da sua experiência, levando em consideração que só há testemunho se a narrativa de

um acontecimento foi divulgada. Nesse sentido, Ricoeur salientou que “o indivíduo afirma a

alguém que foi testemunha de alguma coisa que teve lugar; a testemunha diz: “creiam ou não,

em mim, eu estava lá”. (RICOEUR, 2010, p. 3). Portanto, o indivíduo, ao afirmar alguma

experiência as pessoas, transmite o seu testemunho com convicção de que o fato ocorrido diz

respeito a si e a suas memórias, mesmo podendo surgir dúvidas quanto a isso. O outro

indivíduo, ao receber o seu testemunho, escreve-o e conserva-o. E, assim, pode-se haver a

necessidade de se testemunhar novamente, o que implica, de uma certa forma, o que implica

estabelecer a prova documental, já que foi possível opor os testemunhos uns aos outros, e em

relação à fidelidade dos fatos relatados.

Nessa perspectiva, Ricoeur reitera que “nasce a confrontação dos testemunhos,

principalmente dos escritores; são levantadas questões: por que foram preservados? Por

quem? Para benefício de quem?” (RICOEUR, 2010, p. 3). Essas questões conflitantes não

podem ficar apenas no campo da história como ciência, uma vez que elas surgiram dos

conflitos contemporâneos, remetendo às vezes a perguntas formuladas coletivamente e

destacando uma tradição da memória contrapondo outras diversas memórias tradicionais.

Dando sequência aos fenômenos da historiografia, deparamo-nos com a importância

da interpretação diante do que o historiador queria transmitir com suas histórias, por meio do

44

comprometimento em abordar algumas temáticas. Conforme Ricoeur, “Com a interpretação,

passa a primeiro plano a implicação pessoal do historiador. Sem subestimar os preconceitos,

as paixões, a parcialidade do comprometimento do historiador (RICOEUR, 2010, p. 4). A

interpretação não foi apenas um conjunto de operações históricas, e sim, um trabalho que

visou ao estabelecimento do arquivo e dos testemunhos juntamente com a explicação da

causalidade ou da finalidade que teve como base uma determinada cultura abordada pelo

escritor.

O ensaio intitulado “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin (1994),

remete-nos a algumas indagações acerca da história, mais precisamente no período de 1940. O

filósofo escreveu dezoito teses, com o objetivo de refletir o seu pessimismo, a sua desilusão e

o seu descontentamento com o desenrolar dos acontecimentos que cercavam principalmente à

Europa dos anos 30 e 40, bem como o rumo que a história seguia, juntamente com os avanços

da tecnologia e da ciência. Foi nesse contexto que Walter Benjamin deparou-se com o

progresso crescente da sociedade industrial e capitalista e previu uma onda de catástrofes para

a humanidade decorrentes das transformações da sociedade principalmente após a Segunda

Guerra Mundial e o fascismo alemão.

Conforme os estudos de Renata Ribeiro Gomes de Queiroz Soares (2012), no que

tange às teses de “Sobre o conceito da história”, de Walter Benjamin, “as teses Sobre o

conceito da história propõem uma visão histórica „do ponto de vista dos vencidos‟, das

classes oprimidas.” (SOARES, 2012, p. 95). De acordo com essas abordagens, a história foi

considerada como uma sucessão de derrotas aliadas às opressões das pessoas dominadas pelo

dominante maior, ou seja, o fascismo. Este, por sua vez, possuía a capacidade de dominar e

manipular facilmente a população, já que ele foi responsável por um falso passado sem a

detenção de precedentes, como os testemunhos das catástrofes da humanidade.

Sob esse prisma, Walter Benjamin, em suas teses “Sobre o conceito da história”,

alegou o materialismo histórico e o historicismo. Este último, ao qual Benjamin se referiu, foi

o que norteou a escrita da história universal. Nessa perspectiva, o tempo foi criado como

linear e de acordo com o espaço sendo dividido em momentos iguais. Por essas rações, o

tempo é nomeado pelo autor como “homogêneo e vazio”. Nesse ideal, o passado foi

apresentado ao historiador como uma imagem eterna. Segundo Walter Benjamin (1994); “O

passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em

que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994, p. 224). Portanto, a imagem remete-nos a marcas do

passado, tornado-as inesquecíveis ao passo em que o historiador se detém a um instante

45

histórico, podendo resgatar alguns acontecimentos e identificando-se com as condições de

uma determinada época.

A historiografia em voga importou-se com as narrativas das vitórias históricas das

classes dominantes que eram formadas por imperadores, reis e papas. Por isso, elas obtinham

o poder político e econômico bem como o domínio das classes subalternas. Sob esse viés,

Walter Benjamin atribuiu o conceito de cultura aliado à barbárie. Para o autor: “Nunca houve

um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. (...) como a

cultura não é isento de barbárie, não o é, (...) o processo de transmissão da cultura”

(BENJAMIN, 1994, p. 225). Logo, o autor compreendeu que a cultura e a barbárie eram

documentos históricos, e seu registro serve de testemunho da civilização como confirmação

das guerras e da crueldade delas resultantes.

Já o materialismo histórico, no entender de Walter Benjamin (1994), denota a

oposição ao historicismo. Dessa forma, deixa de ser importante a sua ligação entre os vários

momentos da história. O materialismo histórico tem como base o princípio construtivo do

tempo histórico porque ela não foi um momento fechado em si mesmo, e sim teve uma

relação com outras épocas, períodos e movimentos da história. Segundo Walter Benjamin; “O

materialismo histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição,

mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define (...) aquele que descreve a

história” (BENJAMIN, 1994, p. 230). Portanto, é nesse contexto que o historicista apresenta

uma imagem do passado. Já o materialismo histórico apropria-se desse passado e transforma-

o em uma única experiência, obtendo-se um vigor para dar continuidade a outras histórias.

De acordo com os estudos sobre história de José Martins Rodrigues Remedi (2002),

“Benjamin queria romper com duas concepções em que se baseavam a historiografia burguesa

e a progressista” (REMEDI, 2002, p. 200). Walter Benjamin (1994), em suas concepções

abordou a historiografia burguesa como cronologia e linear enquanto que a progressista teve

como ideia a do progresso da humanidade sem limites. Por esse viés, o autor queria criar um

novo conceito de tempo, por intermédio de um historiador que pudesse visualizar, no passado,

a violência e a maldade de uma outra história, considerando o sofrimento da classe

trabalhadora e valorizando as suas experiências frustradas.

Em relação ao texto de Walter Benjamin, Márcio Seligmann-Silva explicou que as

teorias de história serviram de inúmeras pesquisas sobre a literatura do testemunho sendo

abordada como uma arte, na medida em que foram produzidos textos a partir da Shoah, na

46

qual Walter Benjamin relatou nos seus textos de testemunho. Por esse viés, Seligmann-Silva

salientou:

Se a arte e a literatura contemporânea têm como seu centro de gravidade o trabalho

da memória, a literatura que situa a tarefa do testemunho no seu núcleo, por sua vez,

é a literatura par excellence da memória.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 388)

Portanto, a literatura contemporânea e a arte em geral têm como centro o trabalho da

memória, porém não se constituem apenas uma rememoração memorialismo, uma vez que o

campo da literatura tinha como necessidade lembrar de alguma situação desagradável ou até

impossível. Para ela não houve adversidade entre a memória e o esquecimento. Walter

Benjamin (1994), em meados do século XX, reduziu a relação do passado com os registros da

historiografia. Nesse sentido, a historiografia tradicional, principalmente a historiografia

alemã, manifestou-se, alegando que havia uma integração entre a historiografia e as

experiências dos indivíduos, ou seja, suas experiências pessoais do seu passado, servindo para

eliminar a característica do testemunho, porque o passado deve ficar limitado à ciência do

passado, bem como a memória coletiva.

Já o historicismo referiu-se à consciência temporal, ou seja, aos experimentos dos

indivíduos, independente em que tempo da vida, podendo ser no passado, no presente ou no

futuro. Essas experiências pessoais deviam ser sempre história e, mediante isso, também

eliminou-se a memória individual. Marcio Seligmann-Silva reiterou que Walter Benjamin

reafirmou o esforço do trabalho da memória:

... o Historicismo- que apenas reproduziu a alienação entre a experiência e o

indivíduo moderno. -, Benjamin reafirmou a força do trabalho da memória: que a

um só tempo destrói os nexos (na medida em que trabalho um conceito forte de

presente) e (re)inscreve o passado no presente. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.

389)

Dentro dessa perspectiva, o materialismo histórico abordou as experiências do

indivíduo moderno, servindo de estudo para Walter Benjamin em relação ao trabalho da

memória, como os fatos ocorridos no passado, escrevendo-o no presente, surgindo assim, uma

nova Historiografia baseada na memória, servindo-se de testemunha para relatar os sonhos

não concretizados, bem como as insatisfações com o presente e as promessas não cumpridas,

na medida em que as reescrituras foram ascendentes no campo da história. Na visão de

Márcio Seligmann-Silva; “ao invés da linearidade limpa do percurso ascendente da história

47

(...) na historiografia tradicional, encontramos um palimpsesto aberto a infinitas re-leituras e

re-escrituras” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 389). Nesse contexto, a historiografia

tradicional valia-se de várias possibilidades tanto na releitura quanto na escritura no

transcorrer da história.

Na concepção de Márcio Seligmann-Silva, Walter Benjamin não foi apenas um

filósofo da história, mas, sim, um pensador e filósofo do tempo. O filósofo referiu-se ao

tempo e ao espaço sendo transcendental ao nosso modo de pensar, já a História tinha o modo

linear em direção à sociedade racionalista. Para Walter Benjamin (1994), o tempo não é vazio,

mas sim matéria e compacto. Mediante isso, a teoria de História, que era ligada a ciência da

História, passa a ser uma teoria da memória, pois se aproxima dos trabalhos artesanais, cujo

historiador deixa suas marcas digitais na sua obra. Márcio Seligmann-Silva reitera que:

A historiografia com essa concepção de tempo- deixa de ser a narração de uma

história de sucessos (e do sucesso) e explode em fragmentos e estilhaços- vale dizer:

em ruínas. Ruínas representam aqui justamente a síntese paradigmática entre tempo

e espaço; a ruína é uma imagem-tempo. (SELIGMANN-SILVA 2003, p. 390)

Como destacou Márcio Seligmann-Silva (2003) sobre a historiografia, esta deixou de

estar estagnada no tempo como uma simples narração de história bem sucedidas e passou a

relatar as ruínas, ou seja, as narrativas de catástrofes que permearam toda a concepção de

história de Walter Benjamin. Por isso, o historiador defendido por Walter Benjamin (1994) é

aquele que aborda a manifestação de acontecimentos sociais e políticos as catástrofes e as

ruínas da história para recolher o que sobrou, ou seja, relatar as histórias catastróficas, por

exemplo: as guerras mundiais e o Nazismo na Alemanha, podendo se reescrita, porém jamais

traduzida.

De acordo com Márcio Seligmann-Silva; “(...) em uma escritura imagética, (...) que

pode, por um lado, ser infinitamente re-inscrita, mas nunca definitivamente traduzida, e, por

outro, a visão do mundo dominado por Ausnahmezustand.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p,

394). Nesse contexto, podemos destacar a escritura imagética como o centro da concepção

freudiana do nosso aparelho psíquico. Em Walter Benjamin (1994), a historiografia é vista

como um “aparelho”, semelhante ao nosso aparelho psíquico, porque o passado é lido como

uma escritura num determinado presente, ou seja, o agora. Assim, a concepção de

48

Ausnahmezustand possibilita-nos analisar a literatura dos campos de concentração na

Alemanha Nazista.

Por esse viés, Márcio Seligmann-Silva, à luz dos estudos de catástrofes em Walter

Benjamin, pondera que: “O mundo moderno seria o mundo dos choques e os seus habitantes

estariam totalmente mobilizados para apará-los, e desse modo, impedir o esfacelamento do

Eu.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 395). Essa concepção de mundo moderno atendeu à

construção do choque e da real experiência humana em conjunto com a memória,

evidenciando certos acontecimentos do passado, tanto individual como coletivo. Walter

Benjamin (1994) detectou a experiência da Segunda Guerra mundial e em Shoah como um

choque das catástrofes ocorridas na História, podendo ser vista como ruína e aniquilação,

porque exigiu e resistiu a sua (re) escritura.

Dentro dessa perspectiva, o estudioso Michael Löwy (2002) destaca que “Benjamin

coloca no centro de sua filosofia da história o conceito de catástrofe. (...) A catástrofe é o

progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história” (LÖWY 2002, p.

204). Walter Benjamin (1994) assimilou o progresso e a catástrofe como uma significação

histórica; sob a ótica dos vencidos o passado é um encadeamento de inacabadas derrotas

catastróficas. Conforme reitera Michael Löwy; “uma teoria da história a partir da qual o

fascismo possa ser percebido. (...) as irregularidades do fascismo são apenas o avesso da

racionalidade instrumental moderna.” (LÖWY 2002, p. 204). Portanto, o fascismo ocupou

um lugar importante e central nas teses de Walter Benjamin devido à tristeza e o sofrimento

das pessoas, bem como a tortura, a morte e o extermínio. Essas ruínas serviram como

reflexões históricas, evidenciando o fascismo alemão e por essa razão foi comparado como

um regresso da sociedade moderna.

Em relação às proposições de Walter Benjamin sobre o conceito de história, a

professora Jeanne Marie Gagnebin (2009) explica que as teses de “Sobre o conceito de

História” abordam não somente uma crítica à ideologia do progresso da social-democracia e

da sabedoria do historicismo, como também evidenciam o tempo homogêneo e vazio.

Conforme destacou Jeanne Marie Gagnebin (2009):

(...) a historiografia que se baseia nesta concepção trivial do tempo como cronologia

linear opera com dois princípios narrativos complementares: primeiro um conceito

totalmente embotado de causalidade histórica, como se a sucessão cronologia fosse

sinônimo de uma relação substancial de necessidade histórica. (GAGNEBIN, 2009,

p. 96)

49

Dentro dessa perspectiva, Jeanne Marie Gagnebin (2009) salienta que Walter

Benjamin (1994) entende que o tempo é homogêneo e vazio como indiferente e infinito por

retratar o sofrimento e o horror, bem como a felicidade. Já o historicismo concentra-se em

determinar uma conexão causal entre os vários momentos da história. Por isso, todo o fato por

ser causa é história. Para Walter Benjamin (1994), toda a causa da história remete o tempo e

ao presente, ou seja, o surgimento do passado e do presente. De acordo com Jeanne Marie

Gagnebin (2009); “(...) esse desenvolvimento temporal infinito que se esvazia e se esgota e

que chamamos- rapidamente demais- de história. (GAGNEBIN, 2009, p. 97).” Essa história

de oprimidos pode resultar uma narrativa que apresenta o trauma resultante de uma catástrofe,

e a literatura pode ser um instrumento dessa representação.

2.2 Literatura e trauma

Para refletir sobre a relação entre literatura e trauma, primeiramente, convém

apresentar o conceito de trauma. Conforme o dicionário Aurélio, “trauma é uma desagradável

experiência emocional de tal intensidade, que deixa uma marca duradoura na mente do

indivíduo.” É visto também como é um tipo de lesão psicológica, causada por algum

acontecimento difícil ou até mesmo drástico. Nesse sentido, sua raiz pode vir de um

acontecimento traumático, originado pelas guerras, agressões em geral, atentados e as demais

experiências traumáticas, sofridas pelo indivíduo.

Dentro dessa concepção, Márcio Seligmann-Silva (2005), em seu ensaio intitulado

“Literatura e trauma: um novo paradigma,” pondera que, ao longo do século XX, a

humanidade viveu o que o crítico denomina de catástrofes, ou seja, acontecimentos pautados

nas tragédias, sendo caracterizadas como o pós-massacre, por exemplo, sendo o pós- Primeira

e segunda Guerra Mundial, pós- Shoah e etc. Segundo Seligmann-Silva (2005):

Esse prefixo “pós” não deve levar a crer, de jeito nenhum, em algo próximo do

conceito de “superação”, ou de “passado, que passou”. Estar no tempo “pós-

catástrofe” significa habitar essas catástrofes”. E claro para qualquer um de nós que

a continuidade das mesmas não permite que sequer “tomemos pé” a cada evento

novo e aventemos uma mudança de curso. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 63)

50

Como destacou Márcio Seligmann-Silva (2005), o significado do prefixo “pós” não é

uma mera superação das dificuldades de compreender o passado trágico da humanidade

diante das catástrofes ocorridas. Porém, as catástrofes do pós-Guerras Mundiais chocam-se

contra nós, porque novamente fomos ao encontro delas. Nesse contexto de terror, a

humanidade mergulha nessas experiências de dor e trauma porque, segundo Marcio

Seligmann-Silva (2005), “Estamos e somos revelados como parte de uma encenação da

catástrofe” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 63). Portanto, os indivíduos fizeram parte do

contexto da guerra, e com isso contar sua história tornou-se singular para o mundo por meio

da sua representação de trauma e catástrofe.

A sociedade do século XX esteve sob um dilema: a guerra mata pessoas, assim como

o terrorismo também mata pessoas. Diante dessa constatação, assistiu-se pela televisão aos

inúmeros casos de terrorismo. Foi assim que se passou a guerra novamente em meio à política

de imagens, porque, ao produzir essas imagens, reproduziu-se a catástrofe e também

multiplicou-se o trauma. Dentro dessa perspectiva, em relação ao texto de Walter Benjamin,

Márcio Seligmann-Silva (2005) explicou que o autor diagnosticou, em 1936, as várias

repetições da imagem do terror na televisão e na mente das pessoas. Deixou-se de produzir a

arte propriamente dita para representar por exemplo, o horror pós-Primeira Guerra. Márcio

Seligmann-Silva destaca que:

Essas imagens são tanto sintetizadas quanto têm um caráter indicial da escritura

luminosa dos eventos. Aqui, síntese e reprodução são inseparáveis. O universo da

informação só funciona através do culto da novidade e da estratégia de exploração

dos choques em doses cada vez maiores, cujas imagens são atiradas contra um

telespectador cada vez menos sensível. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 64)

Nesse contexto, foi no universo da informação que tivemos acesso tanto às

informações sobre as catástrofes, como também sobre a atualidade. Já a encenação

catastrófica foi vivenciada por alguma vez na nossa vida pelos nossos processos individuais,

porque nossa sociedade esteve regredida diante das situações catastróficas. Por isso, nossa

reação podia ser de bloqueio através de um agir que esconde o evento traumático, impedindo

a recordação.

Diante dessas concepções sobre a catástrofe e sua representação, Marcio Seligmann-

Silva (2005) sugere uma reflexão sobre a literatura e a sua relação com o trauma. Algumas de

suas ponderações indagam se seria realmente válido insistir em continuar com uma literatura

tradicional, abordando o formalismo e o poético, ignorando o mundo dominado pelas

51

informações ideológicas e abalado pela presença do choque, ou seja, o trauma. Segundo

Márcio Seligmann-silva (2005), “O trauma é um conceito central da psicanálise, e (...) ele não

pode ser pensado independentemente da noção de realidade traumática” (SELIGMANN-

SILVA, 2005, p. 64). Portanto, o elemento traumático dos acontecimentos da história invade

nossa vida real, servindo de alicerce para o nosso passado. Diante desses acontecimentos

temporais, é importante a questão da representação nos mais diversos veículos de

comunicação tanto no rádio, televisão, jornais, cinema, na arte, e, enfim, na literatura.

De acordo com os estudiosos Augusto Sarmento-Pantoja e Ana Maria Baía

Rodrigues (2008), o trauma pode ser coletivo ou individual. No entender de Ana Maria Baía

Rodrigues e Augusto Sarmento-Pantoja (2008, p. 1): “O trauma coletivo é fruto da opressão,

(...) o trauma individual é vivenciado por um único ser humano”. Assim, o trauma coletivo é

oriundo da tortura, opressão e extermínio de vários indivíduos, da guerra ou de ditaduras. Já o

trauma individual provém da vivência de um único ser humano, sendo a tortura um exemplo

de trauma individual. Conforme reitera Rodrigues Sarmento-Pantoja (2008, p. 1): “A tortura

acontece quando uma pessoa (o torturador) causa sofrimento, dor (seja de natureza física ou

psicológica) a outro indivíduo.” Porém, a tortura foi causada pelo torturador, acarretando dor

e sofrimento físico e psicológico ao indivíduo que a vivenciou. Assim, quando o indivíduo

sofre a tortura, fica abalado psicologicamente, uma vez que ele não consegue assimilar

totalmente a tortura, ou seja, o que aconteceu. A partir dessas concepções, pode-se enfocar a

teoria psicanalítica do trauma de Sigmund Freud para, em seguida, analisar a literatura do

trauma.

A questão do trauma está ligada aos estudos da história e das ciências humanas que

se desenvolveram no século XX a partir de um diálogo com a psicanálise, cujo importante

criador foi Sigmund Freud, responsável pela transformação no estudo da mente humana.

Partindo desses pressupostos, o trauma era visto como um problema psicológico, chegando a

ser comparado com uma ferida na memória. Já a história do trauma é marcada pela narrativa

de um choque violento e também de um desencontro com a realidade. Assim a linguagem

apropria-se dos limites do que não foi subentendido no ato de sua recepção, e o traumatizado

repete constantemente a cena violenta.

De acordo com os pressupostos da teoria psicanalítica do trauma de Sigmund Freud

(1996), a noção de trauma constitui-se na observação e tratamento de seus pacientes

neuróticos, em particular, os que tinham histeria. Assim, Freud analisa a causa do sofrimento

52

de seus pacientes e chegou à constatação de que os mesmos sofriam de acontecimentos reais

ou imaginários, decorrentes do passado.

A base da situação traumática encontra-se nas diversas vivências sexuais prematuras

na infância, decorrentes do abuso sexual, de um adulto, geralmente da própria família.

Naquela época, os valores morais eram rígidos e os desejos, principalmente de natureza

sexual, eram reprovados. É nesse sentido que Freud (1996) encontra a causa da histeria,

alegando ser de natureza sexual, devido a temores, repressões e reprovação. Conforme

afirmam os estudos de Leopoldo Fulgencio, “A histeria já era concebida como uma

psicopatologia que tinha na sua origem, um acontecimento traumático de natureza emocional,

muitas vezes de conteúdo sexual.” (FULGENCIO, p. 2). Portanto, a concepção de conflito

psíquico seria a consequência da repressão, determinada pelo trauma de fundo real e sexual,

sofrido na infância, criando, na criança, repressões depositadas no seu inconsciente. A

probabilidade de a criança ficar traumatizada, pela experiência sexual, é através do grau de

trauma vivido, porém, quanto mais intenso for o trauma, maior é a força da repressão.

Nessa perspectiva, o tratamento da histeria seria feito a partir da consciência das

cenas enterradas na memória, no entanto, os sintomas histéricos provêm de recordações que

atuam no inconsciente. A histeria é uma doença desencadeada através da reação e defesa,

mediante nova situação que provocasse o estado de recalcamento da pessoa diante de

recordações inaceitáveis. Porém, a cena de sedução é a base da situação traumática.

Segundo Sigmund Freud (1996), o trauma está presente na vida do indivíduo,

quando ele se detém a fatos passados. Conforme afirma Sigmund Freud, “o trauma é capaz de

vincular um indivíduo ao passado e deter sua vida de tal forma que ele pode ignorar

totalmente o presente e o futuro.” (FREUD, 1996, p. 282). Nessa perspectiva, o indivíduo

tende a afastar-se do seu convívio social, na busca de subsídios para suportar dificuldades e

traumas na sua vida. Portanto, o indivíduo afastou-se do tempo presente, ou seja, distanciou-

se da sua realidade da qual estava vivendo, e passou a não ter mais perspectivas em relação a

seu futuro, já que o trauma, ocorrido no passado, influenciava diretamente sua vida,

impedindo-o de viver socialmente bem como banindo os sonhos de melhorar sua vida.

O estudo do trauma foi retomado novamente com o fim da Primeira Guerra Mundial

(1918). Conforme manifestou Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 65), “Freud trata das

neuroses traumáticas a partir da experiência coetânea dos soldados e sobreviventes daquele

evento.” No entanto, indivíduos que viveram ou testemunharam as situações traumáticas de

Guerra ou de Governo autoritário, como a Era Vargas (1937-1945), relembraram esses

53

acontecimentos habitualmente, revivendo o sofrimento do evento traumático, seja ele

consciente ou inconsciente do indivíduo.

Os efeitos dos eventos traumáticos da guerra tornaram-se objeto de estudo para a

“Teoria da neurose de guerra” em 1918, apresentada em Budapeste, em congresso sobre a

psicanálise das neuroses de guerra e onde estiveram presentes vários teóricos do trauma,

como: Ferenczi, Abraham, Simmel e Jones. Todos contribuíram para uma reflexão, da

vivência pós-guerra dos indivíduos, bem como seu trauma. No entender de Márcio

Seligmann-Silva: “O trauma é descrito com fixação psíquica na situação de ruptura. Esse tipo

de fixação, Freud compara à do paciente com hésterico. (...) é alguém que sofre de

reminiscência.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 66). Portanto, a raiz da neurose traumática

está situada em uma fixação, no mesmo instante em que acontece um acidente traumático, no

qual essa situação violenta pode se repedir com frequência através do sonho, levando o

indivíduo a um completo evento traumático. Segundo Freud (1996, p. 282), “O indivíduo

revive tal situação como se ela não tivesse terminado, com a impressão de que essa

circunstância ainda faz parte do presente.” Entretanto, pessoas que foram testemunhas ou

vivenciaram situações traumáticas, como o Estado Novo de Getúlio Vargas revivem tais

acontecimentos traumáticos com frequência.

Sob esse prisma, o trauma marcou o século XX pelas suas catástrofes e as

experiências extremas vividas pelas pessoas nos mais diversos tipos de acontecimentos

traumáticos; dentre eles, no contexto histórico brasileiro podemos destacar o drama, a

repressão e o trauma sofridos pelas pessoas na época de tortura nas prisões brasileiras, diante

do governo autoritário brasileiro, vigente nos ano de 1937 a 1945.

Conforme reitera Seligmann-Silva (2003), diversos autores desenvolveram a teoria

do trauma para uma melhor compreensão do que de fato foi o trauma na era das catástrofes do

século XX. Os estudos sobre os sobreviventes dos campos de concentração nazista

contribuíram para novas reflexões e elementos sobre a teoria do trauma. Conforme manifestou

Seligmann-Silva (2003, p. 68), “O sobrevivente é caracterizado por uma situação crônica de

angústia e depressão, marcado por distúrbios de sono”, e esse sobrevivente pode ser um

sujeito que sofre de trauma. Assim, a angústia e a depressão, presentes nos sobreviventes de

guerra, contribuíram para o pesadelo, recorrentes de problemas somáticos, bem como a

incapacidade de narrar sua experiência traumática na guerra.

Com relação ao trauma, Bohleber faz uma síntese, baseada nas pesquisas de Martin

Bergmann (1996), ponderando que, há cinco consequências aos sobreviventes conforme a

54

teoria do trauma. A primeira é a importância para a duração e a intensidade do terror a que os

sobreviventes foram submetidos; a segunda é a incapacidade de causar ou sofrer grande

mágoa, causando a depressão; a terceira consequência é indispensável para abordar a

representação da cena traumática; na quarta é o distúrbio traumático, caracterizado pelo

sentimento oculto, por um longo período, podendo chegar a atingir décadas. Passado essa

fase, a neurose traumática, surge; já na quinta consequência, os sofrimentos traumáticos dos

sobreviventes marcaram gerações seguintes, visto que as famílias negavam-se a falar do

trauma, mediante as vivências que os pais sofreram. Porém, as crianças recebiam essas

informações de modo superficial, ou seja, de modo inconsciente dos fatos ocorridos, com os

quais elas fantasiavam essas informações.

Outra importante contribuição para a reflexão do trauma foi do teórico Dori Laub

(1995), que destaca o trauma e o testemunho dos sobreviventes de KZ. Conforme manifestou

Dori Laud (1995), “Existe em cada sobrevivente uma necessidade imperativa de contar e

portanto, de conhecer a sua própria história.” (LAUB, 1995, P. 63, apud SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 70). Porém, quando o sobrevivente conhece a sua história, deixa de lado os

fantasmas que o atormentam, e, com isso, o indivíduo passa a viver melhor consigo mesmo,

uma vez que aprendeu a administrar os seus anseios e traumas, sofridos numa determinada

situação traumática. Nesse sentido, os estudos de Zilah Bernd (1998) contribuem para a

literatura. A estudiosa destaca que “a literatura é a representação da realidade e a história de

certa forma também o é” (BERND, 1998, p. 127) e que foi através de um texto literário que

tivemos acesso às verdades históricas de uma realidade, ou seja, tanto a história quanto a

literatura, ambas têm o mesmo objeto de estudo que é o texto, valendo-se da palavra para

formar uma relação entre as duas disciplinas.

Dentro dessa perspectiva, Lizandro Carlos Calegari (2010), em seu ensaio intitulado

“Autoritarismo, memória e trauma no filme Araguaia: a conspiração do silêncio, de Ronaldo

Duque”, contribui para a reflexão do trauma no que diz respeito aos atos de violência nas

narrativas orais sobre um acontecimento no passado. Segundo Lizandro Carlos Calegari

(2010): “atos de violência cometidos no passado, devem-se levar em conta os diversos

mecanismos de traumatização. Pesquisas sobre o trauma têm aumentado significativamente

nas últimas décadas” (CALEGARI, 2010, p. 78). Portanto, todo o acontecimento individual

ou coletivo que gerou sofrimento para a humanidade, ou seja, todo o trauma gerado por

situações que marcaram a história, como, Holocausto, suscitaram investigações feitas para

estudar o que aconteceu com os sobreviventes no campo de concentração nazista. Assim,

55

esses testemunhos contribuíram para a literatura retratar e enfocar o trauma nas suas

temáticas, já que o estudo do trauma vem aumentando significativamente ao longo dos

séculos, tendo como um dos objetivos compreender os problemas psíquicos dos sobreviventes

que seriam a depressão, pesadelos, angústias, distúrbios do sono, incapacidade de narrar a

experiência traumática e, dentre outras. Essas características desconfortáveis foram

decorrentes da sobrevivência.

Em relação à teoria do trauma de Sigmund Frued, Lizandro Carlos Calegari (2010)

explica que o trauma foi analisado como uma ferida na memória que, não cicatrizada, poderia

causar um sofrimento a partir do momento em que houvesse uma repetição do evento.

Segundo Lizandro Carlos Calegari: “O trauma, então, seria algo não findado e atemporal. A

sua cura, ou pelo menos o alívio da dor, repousaria na necessidade de um processo

hermenêutico do episódio traumático” (CALEGARI, 2010 p. 77). Por isso, para haver a cura,

seria necessário que o paciente narrasse algumas situações traumáticas e, com isso, tem a

possibilidade de trazer à memória determinados acontecimentos e exterminá-los.

Nesse contexto, Jaime Ginzburg (2012), em seu ensaio intitulado “Escritas da

tortura”, também aborda a importância da literatura para a superação de fatos ocorridos no

passado. Conforme Jaime Ginzburg (2012): “A importância da literatura para a consciência

social (...) é enorme, por conseguir, por recursos de construção, certa fidelidade ao impacto da

violência (...) aos que viveram o impacto da experiência da tortura.” (GINZBURG, 2012, P.

490). Portanto, a leitura de textos literários voltados para a violência remete-nos a uma

aproximação do leitor no que diz respeito ao procedimento do torturador. O indivíduo, após

viver a dor extrema, perde suas referências para a construção de um sujeito.

Walter Benjamin (1987), em seu breve ensaio intitulado “Conto e cura”, usa

argumentos oriundos de uma antiga tradição para explicar o poder curativo das palavras. De

acordo com Walter Benjamin: “A criança está doente. A mãe a leva para a cama e se senta ao

lado. E então começa a lhe contar uma história, seus movimentos eram altamente

expressivos.” (BENJAMIN, 1987 p. 269). Na visão de Walter Benjamin, a mãe da criança

conta a história e em algumas vezes com gestos para encená-los, porque para ela a narrativa

era uma maneira curativa. Nesse contexto, Walter Benjamin (1987) afirma que “o relato que o

paciente faz ao médico no início do tratamento pode se tornar o começo de um processo

curativo.” Por isso, Walter Benjamin (1987) pressupõe que a narrativa tornaria o clima

propício para a condição de cura. Contudo, ao se referir sobre a dor comparada a uma

barragem que se opõe a corrente da narrativa, o autor percebe todo o amor materno diante de

56

uma força capaz de superar tudo. Segundo Walter Benjamin (1987): “Se torna acentuada o

bastante para largar tudo o que encontra em seu caminho ao mar do ditoso esquecimento.”

(BENJAMIN, 1987, p. 269).

Walter Benjamin (1994), em seu ensaio “Experiência e pobreza”, menciona que,

após a Primeira Guerra Mundial, a maioria dos soldados sobreviventes, ao retornarem para

seus países, apresentam um comportamento diferente em relação ao que tinham antes de ir à

Guerra. Conforme reitera Walter Benjamin (1994):

[...] entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. (...) Na

época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de

batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de

guerra inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes.” (BENJAMIN, 1994,

P. 114 E 115)

Nesse sentido, o ponto mais crítico do comportamento dos soldados dizia respeito

aos distúrbios mentais e à impossibilidade de uma elaboração de discurso mediante as

experiências vividas nos campos de batalhas. Com o passar dos anos, surgiu a problemática

em torno da organização das ideias no testemunho de guerra, gerando uma triste característica

e um desconforto mental dos testemunhos, porque jamais houve experiências radicais no

sentido da desmoralização que a vivência da estratégia de guerra de trincheiras, assim como a

experiência do corpo pela fome.

Para a crítica Cathy Caruth (2000), o trauma, além de ser apresentado como uma

patologia, como também é observado por Freud, é em sua definição, uma resposta a um

evento traumático arrebatador e imprevisto, visto que ele não foi compreendido no mesmo

instante, retornando posteriormente como distúrbios do sono, pesadelos e flashback.

Conforme Cathy Caruth (2000):

A noção de trauma nos confronta não somente com uma simples patologia, mas

também com um enigma fundamental que diz respeito à relação da psique com a

realidade. Em sua definição genérica, o trauma é descrito como a resposta a um

evento ou eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente

compreendidos quando acontecem, mas retornam mais tarde em flash-back,

pesadelos e outros fenômenos respectivos.( CARUTH, 2000 p. 111)

Cathy Caruth (2000) acredita que o trauma não pode ser analisado como uma ferida

no corpo, porque uma cicatriz pode ser curada ou desaparecer com o tempo, porém ela deixa

uma marca na memória. Para a autora, o fato de os soldados sobreviventes terem passado por

situações e experiências inexplicáveis e traumáticas nos campos de concentrações foi o que

57

ocasionou na memória a ferida aberta que sempre irá retornar eternamente, por ações

repetitivas, dificuldades de assimilação dos acontecimentos, pesadelos, entre outros.

Seligmann-Silva (2003), em seu ensaio sobre trauma e literatura, cita os estudos de

Walter Benjamin acerca da teoria da modernidade e do homem moderno, concebendo este

como um indivíduo que acumulou experiências estéreis. Também menciona a importância da

construção de narrativas que se nutririam posteriormente de experiências autênticas. Assim,

segundo Seligmann-Silva, “Essa experiência, para Benjamin, só seria capaz de perdurar na

modernidade de modo fragmentado, como uma memória involuntária.” (SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 72). Diante disso, as características do choque na modernidade fazem com

que surja a mobilização no homem moderno de uma lembrança consciente. Nessa perspectiva,

Benjamin afirma que as experiências da modernidade comparam-se com as experiências do

choque.

A propósito de tais ponderações, Seligmann-Silva (2003) completa seu pensamento,

afirmando que a característica da literatura é não ter limites, passando, assim, a existir

continuamente e com isso ela nega o seu limite. O autor ainda explica que a literatura, na

visão de Walter Benjamin, ensina-nos a jogar com a linguagem. Ela é a marca de

representação da realidade e, por isso, ela nos fala da vida e da morte. A literatura é vista

como uma cripta. Esta, cripta era uma tentativa de dar conta de uma nova realidade do homem

moderno, tanto psíquica, quanto social, fazendo parte desse contexto a realidade violenta do

pavor das guerras. De acordo com Seligmann-Silva:

A cripta é criada como resposta à incapacidade de enlutar, à recusa de introjeção.

Assim como a teoria do trauma em Freud corresponde em linhas gerias a uma

tentativa de dar conta de uma nova “realidade” psíquica e social do homem

moderno- incluindo aí a realidade cotidiana violenta e a do terror das guerras- do

mesmo modo seria equivalente desvincular a teoria da cripta da experiência histórica

do século XX. (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 72)

Nessa perspectiva, a realidade do século XX, por meio da escala demográfica, gerou

um número tal de assassinatos nunca antes ocorrido na história mundial. Com isso a realidade

da morte ficou evidente na proporção em que ela era silenciada. Posteriormente, as

indagações acerca dos assassinatos retornam na mente de uma sociedade que não consegue

entender a sua história. Perante tais considerações, Seligmann-silva cita a literatura de Kafka,

voltada para uma linguagem sem esperança, decaída, sem a utilização de metáforas, levando

seus leitores ao desespero. Como a catástrofe era um resumo da vida real, ela foi representada

como se fosse um acontecimento trivial. Portanto, as narrativas de Kafka tinham uma

58

temporalidade estagnada, por apresentarem uma redução do mundo a imagens, limitando o

vínculo entre elas.

Diante disso, Seligmann-Silva apresenta o “trauma” do indivíduo alienado moderno

que porta em si a marca do choque. Kafka nos fala de uma “ferida... rasgada por um raio que

ainda perdura. Esse raio é o mesmo flash „real‟” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 75). Por

isso, a sociedade real foi considerada “midiática” por Kafka, porque produz imagens sem

significados. Essa reflexão mostra que nos identificamos com a literatura de Kafka, porque de

alguma maneira nos reconhecemos com os sobreviventes e nos sentimos culpados pelo que

aconteceu, pondera Seligmann-Silva (2005). Esse sentimento de culpa remonta à história da

humanidade como uma história de recalcamento e barbárie.

Perante tais considerações, a literatura no século XX, em grande parte, é marcada

pelo seu presente traumático e diante de tais acontecimentos, obtém um teor testemunhal.

Diante de tais ponderações, Seligmann-Silva esclarece que “cabe a nós aprendermos a ler esse

teor testemunhal: assim como aprendemos que os sobreviventes necessitam de um

interlocutor para seus testemunhos.” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 77). Portanto, a

literatura de uma era de catástrofes desperta nos indivíduos a sensibilidade para ler e

reescrever uma história do ponto de vista do testemunho. Nesse caso, por exemplo, o livro A

trégua (1963), escrito por Primo Levi, retoma a era da catástrofe pelo testemunho traumático

do autor, ao narrar a terrível passagem no campo de concentração nazista de Auschwitz, e

dessa forma, como o fez Levi, a literatura é um instrumento que traz à tona a memória,

fugindo de uma perspectiva do esquecimento de experiências de dor, violência e barbárie.

2.3 Memória e esquecimento

De acordo com os estudos sobre memória, Márcio Seligmann-Silva declara que a

memória é uma criação ao lado do esquecimento, completando um ao outro. Segundo o

crítico, “um complementa e alimenta o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve”

(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 53). A memória é uma elaboração feita no presente

momento, a partir das experiências que ocorreram no passado e está junto com as lembranças

dos acontecimentos da vida da humanidade.

No texto “Catástrofe e a arte da memória”, Seligmann-Silva declara que uma pessoa

consegue recordar uma dada situação passada traumática por meio de sua memória

59

topográfica, conectada ao momento a ser lembrado. Conforme afirma o estudioso, “a memória

topográfica é também, antes de qualquer coisa, uma memória imagética” (SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 56). Assim, a memória topográfica está na concentração de ideias e imagens

a serem lembradas, remetendo-as a ambientes conhecidos anteriormente. Já para os que se

lembram desse ambiente passa-se, assim, a percorrer as paisagens mnemônicas ocultas no

conceito das imagens.

A literatura de testemunho mantém relações com um determinado trauma, e este, por

sua vez, estabelece um determinado vínculo com a memória. Segundo Seligmann-Silva, a

teoria da memória ganhou novo olhar no século XX com os teóricos Walter Benjamin e

Maurice Halbwachs. Para esse último, a memória individual existe a partir da memória

coletiva, pois elas são criadas na interiorização de grupos, tendo sua origem nos sentimentos,

reflexões e ideias, baseadas na memória individual. Entretanto, as lembranças de

acontecimentos dos indivíduos continuam coletivas, já que nunca estamos sozinhos. Assim, o

autor afirma que “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros”

(HALBWACHS, 2006, p. 39). No entanto, mesmo estando distante da época dos

acontecimentos e das pessoas que fizeram parte da nossa vida, lembramos delas por meio da

coletividade.

Segundo Maurice Halbwachs, ao retornarmos a uma casa ou cidade, onde já

estávamos, constatamos um cenário com algumas partes esquecidas pela memória. Assim,

Maurice afirma: “[...] voltamos a uma cidade em que já havíamos estado e o que percebemos

nos ajuda a reconstruir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. [...]”

(HALBWACHS, 2006, p. 29). É nesse sentido que nossas lembranças antigas se adaptam a

nossa memória como um todo por meio da recepção do pensamento em constatar o conhecido

do passado, relembrando ao observarmos o ambiente.

O autor toma como base uma lembrança qualquer vista como um conjunto de

consciência plenamente individual, chamado de intuição sensível, que nos remete ao

entendimento dos elementos do pensamento social, no qual existe momento em que as

sensações refletidas em objetos exteriores fazem ligação com outras pessoas e seres ao seu

redor. Já na lembrança infantil, ela não tem uma ligação tão significativa a nenhuma base,

pois a criança ainda não se tornou um ser social, no entanto ela nunca está sozinha e, sim,

cercada de pessoas, como seus familiares, professores e amigos.

Com relação à memória, Maurice Halbwachs (2006) pondera que ela se constrói a

partir do momento em que o indivíduo torna-se um ser social, porém, é difícil lembrar da

60

primeira infância, visto que as impressões que a criança tem ainda não estão ligadas a

nenhuma base até o momento em que o indivíduo se torna um ser social. Conforme

manifestou o autor (2006, p. 251); “No primeiro plano da memória de um grupo se destacam

as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e

que resultam de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais próximos.”

Entretanto, os grupos podem ter lembranças e pensamentos em comum, mediante contato com

seu grupo social.

A memória de um grupo evidencia as lembranças dos acontecimentos e da prática de

seus membros como resultado das relações com grupos mais próximos, bem como os que

possuem um maior contato com ele, porém, passamos à significação que aquele grupo tem

para nós. Ao se tratar de lembranças, às vezes, não as encontramos quando solicitamos: “[...]

Nem sempre encontramos as lembranças que procuramos, porque temos de esperar. [...]”

(HALBWACHS, 2006, p. 53). As lembranças nos remetem a novas situações em que nem

sempre nosso desejo tem muita influência de representação. Entretanto, as lembranças

reaparecem devido à aproximação e à percepção em que estão expostos os objetos sensíveis.

O testemunho e a memória mantêm uma íntima relação. Os estudos de memória têm

ocupado um grande espaço na sociedade pós-guerra e pós-ditadura na América Latina, já que

as memórias são construídas, e os testemunhos são publicados. É nesse contexto de memória

e testemunho que surgem os estudos de Walter Benjamin sobre a memória para auxiliar na

construção de uma cultura da memória, sendo também uma luta contra as injustiças sofridas

nas guerras e nas ditaduras, e o esquecimento de ambas.

Para Seligmann-Silva (2003), a memória é sempre coletiva, e o trauma também é

coletivo, com componentes individuais, articulando um com o outro. Por isso, o que liga o

trauma à memória individual e coletiva é o conceito de testemunho e também o testemunho

histórico dos sobreviventes de guerras e ditaduras. A partir do seu testemunho, ele apresenta o

trauma individual e, por sua vez, apropria-se dele como um todo para se trabalhar uma

memória coletiva, portanto, o autor, através do seu relato, apresenta um trauma individual e,

em certa medida, coletivo.

Já para a memória individual, é difícil de esquecer e falar sobre ela diante de

situações traumáticas. Conforme afirma Seligmann-Silva, “a memória procura um sentido e

encadeia-o em outras construções, que do ponto de vista da identidade pessoal, fazem sentido,

criam nexos e explicações, constroem uma espécie de auto-história” (SELIGMANN-SILVA,

61

2003, p. 131). A memória busca amenizar os conflitos interiores, fechar as feridas,

reconstruindo uma nova história pessoal, esquecendo as lembranças que afetaram

psicologicamente inúmeras pessoas.

Nessa perspectiva, Rosani Ketzer Umbach (2008) declara que a memória e a

literatura relacionam-se tanto na dimensão individual quanto na coletiva, apropriando-se de

autobiografias, relatos de viagens, memórias e romances históricos, valendo-se de temas

culturais de primeira ordem. Com isso, constrói-se uma temática voltada para as relações de

memória e literatura. Segundo a autora (2008, p. 11):

A relação da literatura com a memória, tanto em sua dimensão individual como

coletiva, tornou-se um tema cultural de primeira ordem, como comprovam

autobiografias, diários, relatos de viagem, memórias romances históricos que

inundaram o mercado editorial nos últimos vinte anos, não só na Europa e Estados

Unidos, como também no Brasil.

A literatura e a memória estão ligadas por um elo de temáticas e produzem as mais

diversas possibilidades de acesso às leituras. Tal associação propicia a interdisciplinaridade,

como a da literatura e os estudos culturais, valendo-se da memória de uma dada época

relatada através da obras literárias. De acordo com Rosani Ketzer Umbach; “Com a temática

da memória, abordam-se, portanto, concepções distintas advindas de diferentes disciplinas.”

(UMBACH, 2008, p. 11). Porém, a literatura, aliada à memória individual do personagem-

narrador, denuncia um período histórico, como o Estado Novo, e evidencia a retratação

conturbada da sociedade brasileira através da repressão e, assim, valendo-se da memória

coletiva.

Sendo assim, a memória está presente nos estudos literários, em três possíveis

categorias, de acordo com Erll, apud Umbach (2008, p. 11): Na primeira categoria, a memória

da literatura é baseada no sistema de memória simbólica da literatura, manifestando-se de

diversas maneiras, como nos textos com referências intertextuais, ou seja, é quando uma obra

literária vale-se de uma literatura anterior, nomeada de intertextualidade distintas, baseando-

se nos esquemas de pensamentos, expressões, bem como a tradição. No que tange à teoria da

literatura pós-estruturalista, os estudos de Rosani Ketzer Umbach afirmam que “a

intertextualidade é definida explicitamente como a „memória da literatura‟” (UMBACH,

2008, p. 12). A memória da literatura apropria-se da intertextualidade, podendo incluir os

gêneros literários. Essa apropriação resulta na memória intertextual, recebendo uma forte

62

contribuição dos gêneros memorialísticos, como a autobiografia, o romance histórico, a

epopeia e o romance de formação. Analisando pelo viés da memória da literatura, ela adquire

uma importante inserção, considerada a memória no sistema social literário, tendo como

representante a história da literatura e os cânones, institucionalizando a memória de uma

literatura social e tradicional.

Já na segunda categoria, sobre os estudos de memória na literatura, Rosani Umbach

(2008) destaca a mímese da memória, encontrada na encenação da memória, sendo atribuída

nos textos literários por meio das lembranças e recordações, permitindo, assim, um diálogo

direto com o discurso da memória, produzindo e trazendo seus processos na problematização,

de acordo com Assmann apud Umbach (2008): “trazendo à mostra o funcionamento,

processos e problemas da memória (individual e coletiva) no campo ficcional.” (2008, p. 12).

Nesse sentido, a memória individual e coletiva, na área ficcional, atribui-se aos procedimentos

estéticos de uma obra literária.

Sendo assim, na terceira categoria, Rosani Ketzer Umback (2008) pondera que a

literatura é vista como um veículo da memória coletiva, ressaltando a história como atribuição

importante e necessária, na formação das culturas memorialistas. Nesse sentido, a literatura

adquire novas funções, dentre elas, podemos ressaltar a função de veículo da memória.

Segundo a autora (2008, p. 12): “a literatura preenche diversas funções como veículo da

memória, por exemplo, na formação de versões do passado.” Nessa linha, a literatura faz um

elo com a memória, valendo-se na formação de inúmeras situações do passado e, com isso,

cria uma nova versão dos fatos antigos para valer-se da construção da identidade coletiva,

visto que a memória passa a adquirir funções de supervisionar e criticar os processos

culturais, relacionando-se à memória.

Já para Paul Ricoeur (2007), há várias indagações a respeito da memória individual

e coletiva, pondo-as em sentidos opostos. Paul Ricoeur (2007, p. 106) afirma que: “memória

individual e coletiva são postas em posição de rivalidade, (...) mas em universos de discursos

que se tornaram alheios um ao outro.” Paul Ricoeur faz alusão à memória individual e

coletiva, sob a qual se apropria da teoria da memória individual e coletiva de Maurice

Halbwachs (2006), fazendo algumas reflexões do real sentido da teoria de Maurice, alegando

ser uma superficial. Paul Ricoeur propõe a relação de memória individual e coletiva como

uma aproximação, para com isso fazer uma mediação entre o eu e os coletivos.

63

Paul Ricoeur (2007) salienta que, em relação à memória individual, esta faz uma

ligação com o uso da linguagem. Paul Ricoeur (2007, p. 107) reitera que “a memória

individual tem vínculos nos usos da linguagem comum e na psicologia (...) que avalia esses

usos.” Porém, a psicologia assume o papel de avaliadora da linguagem comum por meio da

experiência dos sujeitos, uma vez que, ao lembrar de algo, alguém pode lembrar de si mesmo.

Com isso, há três traços distintos que se relacionam com a memória. No primeiro traço, Paul

Ricoeur (2007) aborda a memória como radicalmente singular, visto que uma lembrança

individual não é coletiva. Segundo Ricoeur: “Minhas lembranças não são as suas. Não se

pode transferir as lembranças de um para a memória do outro.” (2007, p. 107). A memória é

um paradigma de posse, ou seja, é algo privado como as experiências do sujeito, adquiridas ao

longo da vida. Já no segundo traço, é retratado o vínculo da presença constante do passado na

memória. No entender de Paul Ricoeur: “a memória passado, e esse passado é o de minhas

impressões; nesse sentido, esse passado é meu passado.” (2007, p. 107). O passado deixa

marca na memória e, assim, tem-se a continuidade temporal da pessoa, contribuindo para a

identidade pessoal, marcada pelos traços da lembrança onde elas distribuem e organizam o

sentido de um acontecimento mais longínquo da vida, enquanto a memória. Vale-se da

capacidade de percorrer e remontar, por meio da lembrança, o tempo passado. No terceiro

traço, a memória está orientando e dando sentido na passagem do tempo. Conforme Paul

Ricoeur: “À memória que está vinculado ao sentido na orientação na passagem do tempo;

orienta em mão dupla, do passado para o futuro.” (2007, p. 107). A memória remete aos

acontecimentos do passado, trazendo para o tempo presente, e, com isso, a memória gera

expectativas à lembrança, através do presente vivido.

A concepção sobre a memória remete-nos aos receptáculos das experiências da

humanidade, importando-se com o passado, enfatizando suas experiências temporais e

religiosas, podendo transformar-se de acordo com novas experiências, resultando em novos

conhecimentos adquiridos pelas reflexões. Nesse sentido, para Santo Agostinho, apud José

Caros da Costa e Lurdes Kaminski Alves (2010, p. 101), destaca que:

Eis-me diante dos campos dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros

de inúmeras imagens trazidas por percepções, (...) lá estão guardados todos os

nossos pensamentos, (...) de qualquer modo as aquisições de nosso sentimento, e

tudo o que ai depositamos ou reservamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido

pelo esquecimento.

64

Santo Agostinho reitera que o conhecimento e a experiência de vida permanecem na

memória como um conjunto de imagens, visto que essas vivências dos humanos penetram na

memória através das imagens sensíveis e dos pensamentos que se evoca. Assim sendo, é

compreensível que a memória seja uma imagem que nos remeta à lembrança, trazendo as

experiências para serem avaliadas de acordo com os nossos princípios, onde estamos inseridos

socialmente.

Rosani Ketzer Umbach (2012), ao se referir sobre os estudos de memória, salienta

que a escrita era vista como um meio mais seguro de conservação da memória. De acordo

com Umbach (2012), conceber a escrita como uma força conservadora da memória pressupõe

a ideia de que memória e escrita são inseparáveis. A escrita não é um meio de imortalização,

no entanto funciona como base da memória, já que os textos e as imagens servem de apoio

para estabelecer relações com o passado.

Rosani Ketzer Umbach (2012) aborda a memória na dimensão individual e coletiva

como um dos assuntos mais densos da literatura. Para muitos escritores que consideravam a

escrita um recordação do passado, a memória tem uma importância significativa nas

narrativas memorialísticas. Segundo Umbach: “E, no processo de escrita de memória,

misturam-se elementos construtivos à narrativa.” (UMBACH, 2012, p. 16). Portanto, a

memória individual e coletiva é de uma importância central nas narrativas memorialísticas da

literatura, e, por esse motivo, convém salientar sobre o relacionamento da memória com a

experiência de repressão, principalmente ao se tratar do testemunho no qual a narrativa torna-

se ficção. Nesse sentido, a memória da repressão foi associada, interiormente, às experiências

individuais de violência, ligando a memória coletiva, encontrando-se na passagem entre a

literatura, a cultura e a história.

Márcio Seligmann-Silva, ao citar Walter Benjamin, argumenta que esse autor, em

um dos seus ensaios sobre a historiografia, discute que historiografia é uma invenção do

século XIX, porém concebido no século XX. Diante dessa abordagem, Marcio Seligmann-

Silva destaca que “Pode-se dizer com Walter Benjamin que essa historiografia representaria

mais um dos sonhos que penetraram o umbral da nossa Era.” (SELIGMANN-SILVA, 2003,

p. 60). Portanto, a humanidade está despertando desse sonho, refletindo sobre o passado

recorrente do historicismo que acreditava na possibilidade de conhecer os acontecimentos do

passado e o que de fato aconteceu.

65

Diante dessas reflexões, Walter Benjamin foi um dos estudiosos que melhor abordou

o despertar dos sonhos e suas interpretações na historiografia. Seligmann-Silva, ao citar

Nietzsche, comenta que, em seu texto “Dos usos e desvantagens da história da vida”, o autor

menciona que “é totalmente impossível de se viver sem o esquecimento”. (SELIGMANN-

SILVA, 2003, p. 60). Nesse sentido, o esquecimento passa a ser percebido como uma parte

importante e necessária na vida da humanidade. Nietzsche estava convicto nas suas reflexões

sobre o esquecimento de que era importante o bem estar dos indivíduos. Segundo Nietzsche

(apud SELIGMANN-SILVA, 2003):

A alegria, a boa consciência, o ato feliz, a confiança naquilo que vem- tudo depende

de cada indivíduo, assim como do povo, da existência do que separa o visível claro,

do que não pode ser clareado ou escuro, de que se saiba tanto esquecer na hora certa,

como também que se recorde na hora certa, de que as pessoas sintam um instinto

forte quando é necessário senti-se de modo histórico. (NIETZSCHER, apud

SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 61)

De acordo com as concepções de Nietzsche sobre o esquecimento, é essencial o

estado de alegria dos indivíduos bem como a confiança no que estavam presenciando. Por

isso, é necessário que os indivíduos saibam esquecer e lembrar no momento certo. E, com

isso, para a saúde de cada indivíduo, de um povo e de uma cultura, ao lembrarem o passado,

podem ser incapazes de transmitir o seu aprendizado oriundo da experiência e da dor.

Márcio Seligmann-Silva (2003), em seu ensaio sobre “Reflexões sobre a memória,

história e o esquecimento”, ao citar Nietzsche, salienta que “(...) o tempo certo para se

esquecer e o tempo certo para se lembrar pode levar à ideia inocente de que podemos

controlar nossa memória.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 61). Nesse sentido, Nietzsche

(apud Seligmann-silva, 2003) defende a ideia de que houve um tempo certo para o

esquecimento e um tempo certo para lembrar. Assim, gera um conceito segundo o qual houve

a possibilidade de controlar a memória. Porém, a historiografia é a que mais aproximou dessa

concepção, porque ela é capaz de arquivar os inúmeros acontecimentos. Foi sob esse enfoque

da história que Nietzsche abordou sua crítica, já que a memória, ao fazer registros, foi seletiva

nas lembranças e nos esquecimentos. Sob esse prisma, Márcio Seligmann-Silva (2003), ao

citar Walter Benjamin, alega que o autor, ao descrever o trabalho de Penélope sobre a

reminiscência, ponderou: “Assim como nos devemos „lembrar de esquecer‟, do mesmo modo

não nos devemos esquecer-nos de lembrar”. Nesse contexto, essas concepções são

66

mandamentos da memória e são válidas para a História, portanto, História e memória, no que

tange a um registro, não devem apagar um ao outro.

Já para as estudiosas Caroline Cristina Sousa Silva e Juliana Ventura de Souza

Fernandes (2010) e para o estudioso e professor Matheus Henrique de Faria Pereira (2010), o

esquecimento propõe um novo sentido para os estudos dos fenômenos da memória; eles

observam que o esquecimento é para a memória um afastamento e um distanciamento. Já o

esquecimento de reserva provavelmente tem a preservação da memória, por meio que os

mecanismos ocultos são vistos como a dimensão feliz do esquecimento. Analisando o

esquecimento por esse viés, ele esteve relacionado com a memória feliz, ou seja, o

reconhecimento. Nesse contexto, os estudiosos afirmam que “O reconhecimento que pode

assumir formas distintas: daquilo que se teve e „retornou‟ e daquilo que parece da ordem do

inédito.” (FERNANDES, PEREIRA, SOUZA, 2010, p. 7). Portanto, reconhecer uma

lembrança é reencontrá-la e torná-la disponível com a espera da recordação, no âmbito da

experiência do reconhecimento, o que remete ao estado de lembrança da impressão de

imagens construídas de uma percepção e interpretação do tempo.

Para refletir sobre a relação da memória e do esquecimento, primeiramente convém

ressaltar o conceito de esquecimento. Conforme o dicionário Aurélio, esquecimento é o ato de

esquecer, falta da memória e descuido. É também como um dano a confiabilidade da

memória, ou seja, uma luta contra o esquecimento. Diante da importância do esquecimento

em relação à memória, os estudos do filósofo francês do século XX Paul Ricoeur (2007)

contribuem para analisar de que maneira as lembranças, o esquecimento e a memória

relacionam-se. Nesse sentido, o esquecimento manifesta-se através da noção de rastro

cerebral. Isso também é abordado nos documentos escritos presentes na nossa memória bem

como nas impressões psíquicas. Portanto, rastro e esquecimento têm uma noção em comum

que foi a destruição e o apagamento dos rastros. Dentro dessa concepção, Paul Ricoeur (2007)

aborda que

Nas ciências neuronais, costuma-se enfrentar diretamente o problema dos rastros

mnésicos, visando a localizá-los ou a subordinar as questões de topografia às de

conexidade, (...) daí, passa-se às relações entre organização e função e, com base

nessa correlação, identifica-se o correspondente mental (ou psíquico) do cortical em

termos de representações e de imagens, entre as quais as imagens mnésicas. O

esquecimento é então evocado nas proximidades das disfunções das operações

mnésicas, na fronteira incerta entre o normal e o patológico.” (RICOEUR, 2007, p.

428)

67

Na concepção de Paul Ricoeur (2007), no que tange ao esquecimento, foi papel do

filósofo fazer relações com os rastros mnésicos e a problemática central do passado através da

fenomenologia. As releituras do passado foram comandadas pela dialética das imagens

mnemônicas. O esquecimento é a distorção da memória quando ele é definitivo devido ao

apagamento dos rastros e passou a ser vivido como uma ameaça para a memória, já que o

esquecimento está associado a mesma. Quanto ao fenômeno mnemônico, foram vividos no

silêncio e o esquecimento comum, esteve ao mesmo lado da memória comum. Já para o

esquecimento de recordação manifestou-se nas figuras do esquecimento, desafiando a

tipografia, como as expressões verbais, os ditos de sabedoria popular, os ditados e os

provérbios. Portanto, essas manifestações individuais do esquecimento estão misturadas em

suas formas coletivas.

Quanto aos estudos de esquecimento e à memória impedida, Paul Ricoeur (2007)

reiterou que a memória impelida lembra a repetição, rememoração e também ela está

relacionada com: “um „luto de melancolia‟ é uma memória esquecidiça.” (RICOEUR, 2007,

p. 452). Portanto, essa memória faz alusão à facilidade de esquecer aliada à tristeza e ao

abatimento do indivíduo. Baseada nessa concepção, Paul Ricoeur citou Sigmund Freud em

seu ensaio “O esquecimento e a memória impelida” e destacou que:

Lembramos da reflexão de Freud, (...) o paciente repete ao invés de se lembrar. Ao

invés de: a repetição vale esquecimento. E o próprio esquecimento é chamado de

trabalho na medida em que é a obra da compulsão de repetição, a qual impede a

conscientização do acontecimento traumático. (RICOEUR, 2007, p. 452)

Dentro dessa perspectiva, um dos ensinamentos da psicanálise abordou a repetição

de histórias constante dos pacientes, sendo relevante para o esquecimento, porque o excesso

de repetições baniu a noção de atitudes traumáticas. Nesse sentido, havia duas lições da

psicanálise que destacou: em primeiro, o trauma, mesmo sendo inacessível, e depois deste

surgiram sintomas que mascararam o possível retorno do recalque das mais diversas formas

estudadas nos indivíduos. Já a segunda lição tange partes inteiras do passado em situações

particulares, cujos conceitos esquecidos e perdidos podem retornar. Contudo, Paul Ricoeur

(2007) reitera que “umas das convicções mais firmes de Freud foi mesmo que o passado

vivenciado é indestrutível.” (RICOEUR, 2007, p. 453).

68

3 MEMÓRIA E TRAUMA EM GRACILIANO RAMOS: MEMÓRIAS

DO CÁRCERE

Esta seção está centrada na análise de Memórias do Cárcere e abordará a forma

narrativa, a linguagem no discurso do narrador, a narração como cura, a construção da

memória, a função social e política da obra ao aparecimento da memória por meio da

literatura. Para isso, os enfoques eleitos serão divididos em quatro partes tendo como objeto

de estudo a obra já mencionada. Com isso, o objetivo será aprimorar a compreensão de como

o autor construiu suas memórias através da visão degradante da prisão por meio da

coletividade. Vamos nos apropriar de textos dos estudiosos renomeados da teoria e da crítica

literária à luz de Márcio Seligmann-Silva, Theodor Adorno, Antonio Candido, Walter

Benjamin, entre outros.

O primeiro enfoque a ser analisado será a forma narrativa de Memórias do Cárcere,

tendo como objetivo a observação da estrutura dos capítulos, a linearidade do enredo, a

fragmentação, o discurso em primeira pessoa e as lembranças do narrador, ressaltando a

presença da voz- testemunha, que conta o que viveu e dá a sua versão sobre os fatos, a qual

pode ser diferente da visão da história oficial.

Abordaremos também, a narração e a linguagem do discurso traumático tendo como

objetivo o estudo do trauma no discurso traumático, as marcas linguísticas, o estado

psicológico, as dificuldades de lembras, falar e compreender do narrador, e como ele vê o

Estado. Posteriormente analisaremos a narração como cura e construção da memória, tendo

como objetivo a tentativa do narrador de curar suas lembranças traumáticas através da

narrativa. Com isso, mostraremos que a narração é um meio possível para se construir uma

memória dos fatos, lutando para que eles nãos sejam esquecidos. Portanto, essa perspectiva

pode ser ampliada no sentido de que a obra é uma luta contra a repetição da barbárie.

Por fim, vamos estudar a função social e política da obra ressaltando a luta da

literatura contra o apagamento da memória. Nosso objetivo será ressaltar, em que sentido a

obra nos ajudará a compreender melhor a sociedade da época do Estado Novo. Com isso,

instigar a uma visão mais detalhada e crítica, através da reflexão e posteriormente a

humanização diante dos efeitos narrados.

69

3.1 A forma da narrativa

Será dada ênfase inicialmente à observação à estruturação dos capítulos de Memórias

do Cárcere com objetivo de analisar a linearidade, a fragmentação (entendida apenas como a

divisão da obra em partes) e se a obra é de memória ou ficção através da presença da voz-

testemunho, ressaltando a legitimidade da voz do narrador que conta o que viveu dando a sua

versão sobre os fatos. O primeiro aspecto que chama atenção antes da primeira e segunda

parte do livro é uma nota explicativa, redigida pelo historiador e literato Nelson Werneck

Sodré, na qual estão destacados os motivos que levaram Graciliano Ramos a escrever

Memórias do Cárcere. No prefácio, Nelson Werneck Sodré (2004) salienta que:

Graciliano dizia como pensava em escrever estas memórias, como abordaria certos

aspectos, como definiria alguns ângulos. Foi muito depois de pensar e projetar que

se lançou a tarefa, para ele muitas vezes penosa de se passar ao papel os capítulos

em que descreveu, passo a passo, não a sua experiência pessoal, mas, o que é

importante, o que é fundamental, o retrato de uma época. (SODRÉ, 2004, p. 09)

Essa justificativa deixa o leitor preparado para a compreensão de que estamos diante

de uma obra densa com significados expressivos de uma época, aliando as memórias de

Graciliano Ramos, as quais de certa forma trazem um cunho testemunhal de momentos

específicos. Portanto, o testemunho de Graciliano Ramos, interpretado por Sodré (2004) como

“retrato de uma época”, apresenta uma dimensão histórica ratificada tanto pelas memórias

apresentadas, quanto pelas referências a episódios e personagens reais, como Olga Prestes, e

pela própria nota explicativa da edição do livro. É assim um depoimento, um testemunho de

um momento histórico doloroso de nossa história.

Quando nos referimos à questão do depoimento, precisamos fazer algumas

observações. Antonio Candido (1992) pondera que o livro mescla depoimento e testemunho:

“é o depoimento, relato que se esforça por ser direto e desataviado, o testemunho sobre o

mundo da prisão, visto do ângulo da sua experiência pessoal, (...) o livro é desigual.”

(CANDIDO, 1992, p. 88). Graciliano Ramos, por um lado, deixaria de produzir obras

exclusivamente ficcionais, como fazia desde então, e se dedicaria, em Memórias, a sua última

obra de cunho biográfico, testemunhal, concentrando-se na documentação dos fatos por meio

de sua arte narrativa e de sua visão de mundo. Por essa razão, Candido, considera uma obra

70

desigual, por obter uma longa elaboração dos fatos ocorridos no Brasil na década de 30

unidos a uma perspectiva artística.

Mesmo estando com a saúde debilitada, o escritor insistentemente escreve o seu

testemunho, deixando seus amigos e familiares preocupados com o declínio de sua saúde e

temendo que essa situação viesse a se agravar de súbito e também interrompendo a

possibilidade daquele depoimento indispensável. Diante dessa situação, o autor usou o bom

humor para prosseguir a sua profunda exigência sobre a necessidade do seu depoimento, de

pô-las no papel sem pretender tornar-se a figura central da sua obra, sem a pretensão de

alimentar a sua vaidade sem rabiscar um triste e ridículo depoimento pessoal, por ser um

escritor equilibrado e lúcido. Diante de tais considerações, a obra Memórias do Cárcere é

estruturada em dois volumes com aproximadamente 697 páginas, seguindo uma narrativa

linear mesmo que o narrador não mantenha uma progressão temática linear entre parágrafos.

A obra é dividida em quatro partes para melhor compreensão do leitor, nas quais o

escritor Graciliano Ramos deixa-nos cientes das suas impressões sobre o que ocorreu no

Brasil na época da Era Vargas. Por esse viés, passamos a analisar o que essas partes nos

dizem sobre a história relatada pelo testemunho de Graciliano Ramos, conduzindo um relato

linear.

A divisão linear presente no livro é fundamental para que o leitor acompanhe e tenha

compreensão dos fatos narrados, como a prisão sem justa causa de Graciliano Ramos e sua

viagem ao navio Manaus. Por esse motivo, a primeira parte é intitulada “Viagem”, trazendo a

reflexão do narrador sobre o governo Getulista e a degradante viagem até o Pavilhão dos

Primários, o que podemos observar na passagem a seguir: “Algumas dúzias de criaturas vivas

agitavam-se, falavam, davam-me a impressão de passear num cemitério. Eram as que me

interessavam. As trouxas humanas abatidas pelos cantos.” (RAMOS, 2004, p. 178, v.I). Nessa

passagem, Graciliano Ramos testemunha a realidade sofrida do porão do Manaus; quando usa

a palavra “cemitério”, ele acentua um subsolo de miséria e dor, sendo impossível ignorar

tamanho infortúnio. A viagem segue até o Pavilhão dos Primários.

Dando sequência à obra, temos, na segunda parte “Pavilhão dos Primários”, a

exposição da gradativa e cada vez mais acentuada dor e desumanização na prisão. Nesse

sentido, o próprio título dessa parte nos remete a um pavilhão, sendo a prisão onde se

concentram pesos primários, ou seja, é a primeira vez que esses indivíduos estão vivendo

numa prisão e que aos poucos vão moldando-se, adquirindo novas características físicas,

como o corpo debilitado, magro, doente e fraco, decorrente da alimentação precária. A tortura

71

física também era outro agravante. Conforme Graciliano Ramos acentua: “Ao deixar a sala de

tortura, Sérgio mexia-se a custo: andava na ponta dos pés feridos, arrastando os sapatos, os

calcanhares fora dos tacões: a rigidez do couro magoava-lhe a carne viva, sangrenta”

(RAMOS, 2004, p. 230. V. I). Esses atos de tortura física, feitos pela polícia carcerária, eram

de cunho investigativo, e, na medida em que acontecia a tortura, geravam-se a dor física e a

dor na alma, originando o trauma psicológico.

Nesse sentido, Graciliano Ramos, ao escrever Memórias do Cárcere, vai preparando

o leitor “sutilmente” com a situação degradante que viria em seguida. Por isso, em sua

narrativa, há um certo caráter “didático”, pois mostra a sequenciação da experiência de prisão

através do seu testemunho na Era Vargas. Por essa razão, na terceira parte do livro, “Colônia

Correcional”, cujos fatos são localizados no litoral do Rio de Janeiro, o narrador destaca as

condições desumanas a que os presos eram submetidos: maus tratos, estupros, assassinatos e

toda forma de violência faziam parte da rotina dos presos. Diante dessa abordagem,

observamos um fragmento de Graciliano Ramos: “Vemos um sujeito sem as unhas dos pés,

sabemos que elas foram arrancadas a torquês.” (RAMOS, 2004, p. 29 v. II). Portanto, esse

local paradisíaco, cujo isolamento facilitava os objetivos do governo com a “correção” ao

indivíduos que tinham ideias contrárias ao Estado Novo. Por isso, na colônia eles eram

dominados pela tortura física conforme notamos nas palavras “sem unhas dos pés” e

“arrancados com torquês”; ao lermos tais fragmentos, deparamo-nos com muita crueldade e o

autoritarismo da polícia sob o prisma de quem viveu ou viu essa dor de perto.

Por fim, na quarta parte, na “Casa de Correção”, tem-se o momento em que

Graciliano Ramos, com a saúde debilitada, é internado para exames médicos e para uma

possível cirurgia, mas ele nega em fazê-la nesse lugar hostil e traumático. De acordo com

Graciliano Ramos: “Levaram-me à enfermaria, (...) Demorei-me numa saleta. Chamaram-me

ao consultório médico e um rapaz taciturno examinou-me, prescreveu injeções de vitaminas e

estricnina” (RAMOS, 2004, p. 231, v. II). Nessa passagem, Graciliano Ramos caracteriza o

médico de “taciturno” porque remete à melancolia, à tristeza, enfim a algo bem familiar com

o ambiente em que vive. A prescrição de vitaminas é decorrente da sua fraqueza nas pernas

que vinha se acentuando desde sua permanência na Colônia Correcional. Portanto, com o

enfraquecimento de Graciliano Ramos e não havendo provas concretas sobre o seu real

envolvimento com o partido comunista, ele é posto em liberdade. O leitor presencia a

acentuação da tortura e com as penas disciplinares violentas, que iam das chicotadas às

péssimas condições de higiene vividos pelo personagem da Era Vargas.

72

Dando sequência à narrativa do livro, destacamos os estudos de Hermenegildo

Bastos (1998) sobre Memórias do Cárcere (1953) no qual o pesquisador caracteriza a obra

como uma narrativa primitiva e atual. De acordo com Hermenegildo Bastos (1998); “a

narrativa primitiva era obra do eu narrado, a narrativa atual é obra do eu- narrador.”

(BASTOS, 1998, p. 132). Segundo Bastos (1998), a narrativa primitiva são as anotações de

acontecimentos vividos e observados por Graciliano Ramos enquanto esteve no Pavilhão dos

Primários. Ao viajar de lancha para a Colônia Correcional, decide desfazer-se de suas

anotações para não criar maiores problemas, conforme podemos constatar no livro: “as folhas

de papel cobertas de letras miúdas joguei-as na água. Representavam meses de esforço (...)

mas naquele momento experimentei uma sensação de alívio” (RAMOS, 2004, p. 39, v. II).

Nesse sentido, a narrativa primitiva é jogada na água por prudência, mesmo que ela

representasse muito trabalho para redigir e o cuidado que teve para esconder dos carcerários.

A perda da narrativa vem associada à consolação, porque ter em mãos essas anotações que

assinalam o aspecto degradante da prisão pode ser analisado por dois pontos de vista.

Primeiro, a escrita é vista como uma arma, pelas vinganças e maus tratos e, segundo, pela

denúncia das condições carcerárias. Sob esse enfoque, podia acarretar-lhe aborrecimento, ou

seja, punições na prisão.

Por outro lado, a narrativa atual é o testemunho de Graciliano Ramos, sem anotações,

contando com suas memórias. Por esse viés, podemos destacar a estrutura do primeiro volume

disposta pela fragmentação da obra com a primeira parte, intitulada “Viagens” que abrange

200 páginas e com 33 capítulos e aborda desde os acontecimentos que antecedem a prisão de

Graciliano Ramos até a sua chegada no Pavilhão dos Primários. Esse período corresponde às

viagens realizadas nos vários tipos de prisões brasileiras, bem como sua breve estadia nelas.

No início da primeira parte, Graciliano Ramos relata que foi conduzido ao 20º Batalhão de

Alagoas em Maceió, permanecendo lá por algumas horas. Conforme afirmou Graciliano:

“Mal fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara ao ouvido: “-

Viaja.” Para onde?” (RAMOS, 2004, p. 62, V. I). Graciliano Ramos sentia-se angustiado com

a ideia de levá-lo a cada instante para algum lugar sem explicações. Depois foi conduzido de

trem para o Recife. Segundo Graciliano Ramos: “Depois de uma noite de insônia,

despachavam-me para o Recife. Que diabo queriam de mim no Recife?” (RAMOS, 2004, p.

60, V. I). Nessa passagem, percebemos que o escritor ficou lá por algumas horas. Após,

viajou no porão do navio Manaus para chegar ao Pavilhão dos Primários. Nesse sentido, o

73

período da prisão e da viagem deixou marcas na memória de Graciliano Ramos porque sua

prisão não teve uma justificativa formal, e durante a viagem as condições de instalação eram

péssimas; tudo isso acentuou os questionamentos sobre o autoritarismo da polícia na sua voz

testemunhal, posicionando-se de maneira crítica e reflexiva. Quando o autor refere-se a

“despacharam-me” é o tom testemunhal do narrador que transparece porque ele conta o que

mais marcou lhe dos acontecimentos que testemunhou. Por essa razão, podemos compreender

que o testemunho, no entender de Márcio Seligmann-Silva, é abordado como o que

“justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no „real‟ para apresentá-lo”

(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 375). Portanto, o caráter testemunhal de Memórias do

Cárcere resgata do narrador a sua memória individual e coletiva, enfim o que existe de mais

marcante para testemunhar através de literatura.

A segunda parte, “Pavilhão dos Primários”, abrange 185 páginas, contendo 31

capítulos que abarcam os acontecimentos acerca da chegada na prisão esta localizada no

Recife. Quando Graciliano Ramos e outras pessoas chegaram lá, foram recepcionados com o

Hino Nacional. De acordo com Graciliano: “Avançamos entre duas filas de homens que, de

punhos erguidos, se puseram a cantar, na música do hino Nacional (RAMOS, 2004, p. 207 V.

I).” Diante dessa atitude dos presos, Graciliano recordou do que ouvira falar na véspera sobre

o Pavilhão, achando engraçado, e pensou ter entendido quando contaram a ele, que ali vivam

cantando e berrando como uns loucos. Essa parte concentra-se na retratação das pessoas e do

ambiente precário, desanimador e submetidos a violência física e mental. Para Graciliano:

“As violências estão próximas, (...) o reflexo dos gritos e uivos causados por agulhas a

penetrar unhas, maçaricos abrasando músculos.” (RAMOS, 2004, p. 260, V. I).

A estrutura do segundo volume traz a terceira parte, intitulada “Colônia

Correcional”, e abarca 186 páginas, dispostas em 35 capítulos. O discurso autobiográfico

segue com detalhes do temida Colônia Correcional1. Nela, encontravam-se cerca de

novecentas pessoas e Graciliano presenciou os maiores atos de desumanização e a

impossibilidade de pensar em algo melhor para sua vida, chegando a comprá-los como

animais. Graciliano reitera que: “Novecentos homens num curral de arame. Pensei na

estridência nos arrepios Tamanduá: - Bichos, vivíamos como bichos. (...)criaturas meio nuas,

varrendo a prisão” (RAMOS, 2004, p. 71, V. I).

Dando sequência à obra, temos a quarta e última parte, que traz como título “Casa de

Correção”. A presente parte aborda o estado da saúde debilitada de Graciliano Ramos que foi

1 Colônia Correcional, localizada na Ilha Grande no Rio de Janeiro.

74

hospitalizado algumas vezes para fazer exames e uma possível cirurgia. Já doente e sem

nenhuma prova concreta de que o escritor pertencia ao partido comunista, é deportado para a

Casa de Correção, onde passa seus últimos momentos na prisão. Não havendo provas sobre o

seu suposto envolvimento com o Partido Comunista, partido este de esquerda, o escritor é

liberado da prisão.

Nesse sentido, podemos perceber a intensidade e a preocupação de Graciliano Ramos

em narrar o que ocorreu com ele nos dez meses em que esteve no exílio. Sua narrativa é em

primeira pessoa, já que é ele o próprio narrador, havendo então uma associação entre escritor

e narrador, que é também personagem. Podemos salientar que Graciliano usa verbos no tempo

passado, no transcorrer de sua narrativa, conforme podemos notar na obra de Graciliano

Ramos:

Não era o que pretendiam. Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. (...)

Pedi que não me transmitissem mais essas tolices, (...) e esqueci-as: nenhum minuto

supus que tivessem cunho oficial. (...) um amigo me procurou com a delicada tarefa

de anunciar-me. (...) o aviso que me traziam era, pois, razoável, e até devia

confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo. (RAMOS, 2004, p.

38, V. I)

Em tal passagem, podemos perceber como Graciliano utiliza os verbos tanto no

tempo passado do modo indicativo como também no modo subjuntivo por meio dos verbos

“transmitisse” e “tivessem”, Graciliano vale-se desses tempos e modos verbais para abordar a

sua narrativa autobiográfica. Nesse sentido, ele usa o “eu” como uma maneira de salientar a

vontade de voltar para sua realidade e chamar a atenção do leitor, acentuando que o “eu” não

é um simples pronome. De acordo com os estudos de Hermenegildo Bastos (1998) sobre a

narrativa autobiográfica, “O eu dirige o olhar do leitor para fora do texto para encontrá-lo: eis-

me aqui. Mas depois desse esforço descomunal, a conversação ainda assim é inevitável.”

(BASTOS, 1998, p. 118). Analisando por esse viés, o propósito não é limitar o eu da narrativa

autobiográfica, já que ela é referencial a um ser de linguagem. Porém, o relato autobiográfico

é definido como um diálogo entre o sujeito que se oculta com a sinceridade na sua escrita e

sua figura relativa ao domínio da linguagem. Portanto, isso faz com que tenhamos os objetos

da escrita memorialística, já que o que se refere ao “eu” passa a ter a um conjunto dos seres da

linguagem. Nesse sentido, podemos observar neste trecho que o “eu” aparece de forma

enfática nas memórias relatadas:

Pus-me a fumar, embalado por uma doce tontura. (...) Sentia-me realmente bem. As

pessoas e as coisas em redor esmoreciam na fumaça do cigarro, as ideias escassas

decompunham-se, volatizavam-se, e afinal eu já nem sabia se aquela tênue neblina

75

estava dentro ou fora de mim. Adormecia, acordava a brasa do cigarro cobria de

cinza e avivava-se. As pálpebras uniam-se, descerravam-se penosamente. (RAMOS,

2004, p. 166, V. I)

Analisando por esse prisma, Graciliano Ramos usa o pronome “eu” para caracterizar

sua narrativa autobiográfica, acentuando que ele evita invocar o seu nome, ao escrever, por

exemplo: “sentia-me”, “adormecia”, “acordava”, de acordo com a citação acima, para se

referir ao que ele estava sentindo na viagem do navio Manaus. Além disso, a forma verbal

selecionada pelo narrador é também esclarecedora: o uso dos verbos no pretérito imperfeito

do modo indicativo acentua a ideia de que tais experiências eram contínuas, habituais em sua

rotina a ponto de dificultar até mesmo a distinção entre o que de fato era novo e o que se

repetia.

Diante de tal constatação, Graciliano deixa transparecer ao leitor que ele deposita na

pele de outro “eu”, de modo oblíquo, a questão da subjetividade e a identidade. Por isso, o

“eu” é o ser que tem como nome Graciliano Ramos. Nesse sentido, é curioso perceber que

esse ser real não atende, na obra Memórias do Cárcere, pelo nome de Graciliano Ramos, pois

o escrito evita dizer seu nome. Podemos abordar que Graciliano Ramos, além de ocultar a sua

identidade, também a fez com alguns companheiros de cadeia. Conforme reitera Graciliano

Ramos (2004):

(...) afligiu a ideia de jogar no papel criaturas vivas sem disfarces, com os nomes que

tem no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimos, fazer do

livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em histórias

presumivelmente verdadeiras? (RAMOS, 2004, p. 7 V. I).

Portanto, a mudança no sentido de identidade procede, tornando-se um problema.

Sob esse viés, a resolução possível é a narração, porque é através dela que a obra Memórias

do Cárcere, por intermédio de Graciliano Ramos, o personagem-narrador, propicia espaço e

tempo para narrar às experiências da prisão, conforme afirma Antonio Candido (1992): “o

testemunho sobre o mundo da prisão, visto do ângulo da sua experiência pessoal (CANDIDO,

1992, p. 88)”. Logo, Graciliano Ramos escreve sobre si mesmo, correspondendo abandonar as

maneiras de escrever ficção para centralizar no texto documental, Memórias do Cárcere, onde

o autor Graciliano Ramos aborda os traços da sua arte narrativa e sua visão do mundo.

Na forma narrativa dessas memórias, o personagem-narrador destaca: “Era o

pavilhão dos militares. O chão liso, as paredes nuas valorizavam demais o conforto escasso

76

perdido uma hora antes. (...) iríamos para a colônia? Essa pergunta muitas vezes se repetiu”

(RAMOS, 2004, p. 09 V. II). Diante de tais observações do narrador, no momento em que

estavam no pavilhão dos militares, ele e seus colegas de prisão deparam-se com um ambiente

hostil. O personagem-narrador utiliza os adjetivos “liso” e “conforto” para caracterizar o lugar

a fim de destacar o cenário como um ambiente frio, pouco aconchegante. O ambiente descrito

por Graciliano Ramos dá indícios do lugar precário que é a prisão, reforçando a visão de

desconforto tanto das instalações como do desconforto físico e psicológico que os detentos

ainda iriam presenciar.

Ainda no excerto em questão, diante da pergunta sobre a Colônia, Graciliano Ramos

analisa que era um lugar pior que este onde estava, no Pavilhão dos Primários, com mais

torturas e maus tratos, por isso a insistência em saber se iriam para lá. Essa memória do

narrador assinala para uma projeção do gradativo mal-estar presente na rotina dos prisioneiros

do Estado Novo que, a cada momento, são levados a lugares cada vez mais depreciativos que

o anterior em um processo que acentua as condições marginais de sobrevivência. Essa visão

sobre esse momento histórico é acentuada pela presença de um narrador que relata esses

acontecimentos a partir de um tempo distante daquele quando os fatos ocorreram.

A propósito de tais ponderações, é relevante relacionar algumas proposições de

Walter Benjamin que, em 1936, escreve um importante ensaio intitulado “O narrador:

considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, com o desígnio de discutir como a arte de

narrar, de transmitir o conhecimento de geração em geração, entra em declínio no instante em

que a experiência coletiva perde a força e abre espaço para a experiência solitária. Dessa

maneira, o narrador não está presente entre nós porque encontra dificuldades de narrar para

uma coletividade. Walter Benjamin (1994) pondera que:

Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse

ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de

extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.

Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se

generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia

segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1994,

p. 197-198)

Nesse sentido, Walter Benjamin (1994) acentua o quanto a dificuldade de saber

narrar está presente nas ações da humanidade como as experiências de vida, fenômeno este

cada vez mais em baixa. Diante de tais considerações, acentuamos que o contexto do Estado

77

Novo, período este de 1937 a 1945, narrado no texto de Graciliano, torna-se um manifesto das

prisões brasileiras a partir de uma perspectiva narrativa que revela dor em ter de contar

experiências dolorosas, como se a faculdade de intercambiar experiências como essa fosse

algo penoso para quem as viveu. Isso poderia justificar a escolha por memórias e não, por

exemplo, contos ou romance, pois construir memórias é uma forma de narrar inclusive

experiências de dor.

Nas memórias, percebemos que os detentos voltavam mudos das prisões, de forma

que suas experiências comunicáveis tornaram-se mais raras. Analisando por esse viés, o

narrador justifica a ausência de comunicação ao sair da prisão, alegando que os motivos que

os levaram ao silêncio foram uma série de fatores ligados ao período político vigente da época

e o quanto era difícil relembrar o sofrimento da prisão, o que nos remete novamente à ideia de

Benjamin (1994) que defende a ideia de que é difícil narrar experiências de barbárie. De

acordo com o narrador, a opção em relatar o que lhe acontecera na prisão foi uma decisão

penosa e, como se passaram muitos anos entre os acontecimentos e os relatos, muitos dados

se perderam. Logo o que se apresenta nas memórias são recortes da época:

Revolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos, (...)

Não conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer

do tempo, ia parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta

narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que

outros mais aptos se ocupassem dela. (RAMOS, 2004, p. 35, V. I)

A opção do narrador da obra de relatar, mesmo que com dificuldades, o que

experienciou na prisão durante o Estado Novo é também uma forma de o escritor registrar

memórias de sua biografia, dando não apenas uma dimensão pessoal sobre o período, mas

também induzindo a uma leitura de acontecimentos coletivos, comuns a tantos outros sujeitos

oprimidos pelo sistema de Vargas. Graciliano Ramos, após dez anos de sua libertação da

prisão, por meio da obra Memórias do Cárcere, sente a necessidade de narrar com o intuito de

construir um testemunho pessoal de fatos tipicamente recorrentes a inúmeros indivíduos que

lá se encontravam, dando dessa forma uma dimensão coletiva às memórias. Diante disso,

Graciliano Ramos, com sua saúde debilitada, decide tornar público através da literatura, sua

experiência de vida marcada pelo tempo, deixada por recordações dolorosas em que esteve

preso, o que confere a Memórias do Cárcere uma mescla de testemunho e autobiografia.

78

Ainda sobre a forma narrativa, é importante fazer algumas observações. O narrador

da literatura contemporânea é um sujeito que dialoga suas experiências com o leitor,

possibilitando uma construção, em conjunto, do sentido da narrativa. Esse novo narrador é

abordado pelo estudioso Theodor Adorno (1983), em seu ensaio sob o título “A posição do

narrador no romance contemporâneo”, no qual explica que o ato de narrar se confronta com

os tempos de catástrofes. Essa proposição contribui para uma perspectiva crítica na

reelaboração de um novo modo de narrar. Nessa perspectiva, Theodor Adorno(1983) salienta

que: “Ela se caracteriza, hoje, por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do

romance exija essa narração. O romance foi a forma literária específica da era burguesa.

(ADORNO, 1983, p. 269). Adorno (1983) nos remete a um novo horizonte na caracterização

do narrador moderno, na qual o ato de narrar se desprende das formas do romantismo

valorizada pela burguesia e ganha atributos de cunho realista, principalmente, após atos de

barbárie, pós-guerras, ao longo da história.

Por esse viés defendido por Adorno (1983), a obra Memórias do Cárcere apresenta

um narrador-personagem pós Era-Vargas e sua memória oculta dados da história política, mas

através do contexto entendemos o que suas memórias acentuam: uma dificuldade de narrar

episódios como os que caracterizam essa era. Ainda nessa perspectiva o relato de Graciliano

aborda as relações entre os indivíduos na prisão e com isso possibilita um diálogo entre o

texto e o leitor a partir de um ponto de vista que aproxima o leitor do que é narrado. Como o

narrador compartilha suas experiências marcadas pelo tom pessoal da narrativa, o leitor fica

na dúvida se o que está lendo é apenas ficção ou tem fundo de representação da realidade.

Podemos compartilhar a ideia de que a forma narrativa em tom pessoal, frases curtas,

por vezes com desarticulações entre parágrafos e seções e marcada pela referência à

dificuldade de contar o que aconteceu ao narrador-personagem confere a Memórias o caráter

híbrido do texto. Esse aspecto ganha ênfase com o cunho realista, marcado pelo testemunho e

trauma, gerando um novo olhar narrativo, voltado para a individualização à medida que a

memória é individual, mas ainda é coletiva, pois apresenta uma visão global.

Perante tais considerações, podemos lembrar a ideia de Antonio Candido (1992) que

se refere ao narrador como aquele sujeito maduro que tem condições de narrar experiências de

dor: “O adulto se empenha nas coisas do século, é preso, jogado dum canto para outro e desce

a fundo na experiência humana dos homens” (CANDIDO, 1994, p. 54). Nesse sentido,

podemos salientar uma fala do narrador de Memórias do Cárcere em que acentua seu

sentimento de raiva:

79

Ótimo. Num instante decidi-me. Não me arredaria, esperaria tranquilo que me viesse

buscar. Se quisesse andar alguns metros chegaria à praia, esconder-me-ia por detrás

de uma duna, lá ficaria em segurança. Se me resolvesse a tomar o bonde, iria até o

fim da linha, saltaria em Bebedouro, passaria o resto do dia a percorrer aqueles

lugares. (...) Expliquei em voz alta que não valia a pena. Entrei na sala de jantar.

Entrei na sala de jantar, abri uma garrafa de aguardente, sentei-me à mesa, bebi

alguns cálices, a monologar, a dar vazão à raiva que me assaltara. (RAMOS, 2004,

p. 44-45, V. I)

Nesse sentido, o narrador de Memórias do Cárcere, na referida citação, não

menciona a coletividade, porém apenas aborda a si mesmo, denominando como um sujeito

oculto, “eu”, quando menciona: decidi-me, chegaria, passaria, explique, entrei. Esses verbos

caracterizam a narrativa em primeira pessoa, na qual o narrador salienta os seus anseios e

inquietações diante da espera da polícia e menciona: à raiva que me assaltava. Esse

sentimento de rancor aflora no narrador a partir do momento em que ele decide ficar em casa

e enfrentar a situação esperando a polícia vir buscá-lo.

No que tange à questão da polícia, o país, na época, vivia a repressão da Era Vargas,

sendo motivo de prisão para inúmeras pessoas que fossem contrárias as suas ideias. Esse fator

é retomado quando, nos dois primeiros capítulos do livro, Graciliano está diante de uma

situação delicada, ainda em Alagoas, e recebe ligações anônimas em tom ameaçador,

alegando sua suposta prisão caso não deixasse de trabalhar de forma humanitária, visto que

ele estava sempre preocupado com as condições sociais e educacionais frente a seu cargo de

diretor da Instituição Pública de Alagoas. Por essa razão, destacamos um fragmento de

Graciliano Ramos: “o gabinete pequeno se transformara numa espécie de loja: montes de

fazenda e cadernos, que oferecíamos às crianças pobres.” (RAMOS, 2004, p. 39, v. I).

Através dessa passagem, o propósito de Graciliano Ramos era conceder “fazenda” e

“cadernos” à população carente e, diante dessa ação sensibilizadora, ele instiga a atenção do

governo Getulista de maneira negativa, porque a postura do Estado Novo não era

humanizadora com os pobres, mas opressora, violenta e autoritária. Por essa razão, nas

primeiras páginas de Memórias do Cárcere, é acentuada a presença constante do opressor,

com misteriosos telefonemas com objetivo de intimidar Graciliano Ramos, que tampouco

deixa abalar-se. Por isso, ele é visto como um membro do partido comunista, porém apenas

em 1945 ele alia-se ao partido. Essa postura corajosa e sociável com a população de Alagoas

resultou-lhe em dez meses exilado, testemunhando as atrocidades cometidas na prisão.

80

Diante desse contexto de violência em que o narrador está inserido, Theodor Adorno

reitera que: “É preciso apenas ter presente a impossibilidade de quem quer que seja, que tenha

participado da guerra, a narrasse como antes uma pessoa contava suas aventuras. (ADORNO,

1983, p, 269)”. Portanto, somente após algum tempo, o narrador consegue narrar as

dificuldade, atribuindo o seu ponto de vista diante de situações violentas. É o que ocorre com

o narrador de Memórias do Cárcere, a impossibilidade de narrar o que aconteceu nas prisões

brasileiras, serve como fuga do passado. Portanto, a obra apresenta um narrador que

compartilha sua perspectiva degradante da prisão, marcada pela sua descrição pessoal pela

violência e, após algum tempo, o autor decide relatar o fato ocorrido, por ser um narrador

contemporâneo.

3.2 A narração e a linguagem do discurso traumático

Ao narrar suas experiências na prisão a partir de um discurso de memórias,

transparece na voz no narrador uma visão traumática sobre os eventos. O trauma aparece no

discurso do narrador salientando, no decorrer da obra, a política do Estado Novo, decorrentes

da tortura sofrida por ele na prisão. Dessa maneira, o narrador destaca em sua obra memórias

que destacam sempre uma perspectiva sombria daquela época, relatada também com certa

ironia quando, por exemplo, afirma que os guardiões eram criaturas amáveis em excesso que

lhe traziam sentimentos negativos, como o de angústia, exemplificando no caso da passagem

a seguir:

A vigilância continua, embora exercida por uma estátua armada a fuzil ou por uma

criatura amável em excesso, começava a angustia-me. Isso e a instabilidade. Mal

fechara os olhos numa leve sonolência, alguém me sacudira e soprara ao ouvido: “-

Viajar.” Para onde? Essa ideia de nos poderem levar para um lado ou para outro,

sem explicações, é extremamente dolorosa, não conseguimos familiarizarmos com

ela. Deve haver uma razão para que assim procedam, mas ignorando-a, achamo-nos

cercados de incongruências. Temos a impressão de que apenas desejam esmagar-

nos, pulverizar-nos, suprir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos

cansados. Será necessária essa despersonalização? (RAMOS, 2004, p. 62-63. V.I)

Esse fragmento é uma imagem do passado que ficou na memória do narrador e que

expressa indignação diante da maneira como os carcereiros são tratados. Primeiramente, é

ressaltada a postura dos policiais na delegacia, em Alagoas, “estátua armada a fuzil”, que

81

expressa um cuidado redobrado com os prisioneiros que em seguida iriam viajar no porão do

navio Manaus com destino a Recife. Viagem esta, sem explicações, deixando marcas

traumáticas no narrador, porque para ele isso demonstrava o quanto o Estado abusava de seu

poder, sem dar explicações sobre o motivo e o destino da viagem. Podemos observar também,

no fragmento em questão, os seguintes vocábulos: “esmagar-nos”, “pulverizar-nos”,

“suprimir”, “despersonalização”; essas palavras nos remetem ao descaso com o ser humano,

provocando incógnitas a respeito da sua dignidade. Além disso, aludem à ideia de que são

trabalhos como objetos passíveis de serem manipulados e oprimidos. Diante disso, a angústia

vai se agravando por não serem tratados com respeito, pois o que prevalece é a severidade,

porque para a polícia essas pessoas eram seus desafetos.

Outra reflexão importante de Graciliano Ramos, no seu discurso, foi quando ele e

mais dezessete colegas de prisão foram conduzidos a celas separadas do Pavilhão dos

Primários, novamente, sem dar maiores informações da presença deles lá. Porém alguns

colegas de Graciliano Ramos já imaginavam para onde iriam, para a Colônia Correcional, tão

temida pelos presos. O próprio nome do local nos dá indícios de que seria um local afastado,

localizado numa ilha com o desígnio de “corrigir” os presos. De fato, o Estado apropriava-se

da autoridade para torturar as pessoas. Nesse sentido, Graciliano Ramos analisa alguns

homens que estavam voltando da Colônia Correcional, como podemos observar no seguinte

fragmento:

encontrei um bando a comprimir-se numa abertura estreita, e nos espaços que

haviam entre os corpos surgiam rostos magros e desbotados. (...) Os homens da

frente, quase nus, cabeças lisas, tinham muita sujeira, muita amarelidão, órbitas

cavadas, bochechas murchas. Deixavam provavelmente a enfermaria. À primeira

vista não reconheci nenhum. Quando principiaram a falar, depressa, em desordem,

como se o tempo não desse para todos, fui notando aqui e ali sinais guardados

inconscientemente. Sorriam, descobrindo as gengivas pálidas. O esqueleto que o

moço da rouparia tinha no punho voltou-me ao espírito. Os ácidos não haviam

desfeitos a medonha tatuagem. Por cima da cicatriz que repuxava a pele e se

estendia num desenho róseo, sobressaiam costelas, vértebras, o riso da caveira.

(RAMOS, 2004, p. 15, v. II)

Diante desse fragmento, notamos a visão do narrador quando ele observa seus ex-

colegas da prisão, provavelmente localizados num lugar pequeno e estreito. Com isso, os

presos ficavam aglomerados num ambiente sujo, conforme o narrador menciona, “tinha muita

sujeira”. Outra observação importante é o estado físico dos presos, quando são usadas as

palavras “rostos magros e desbotados”, “quase nus, cabeças lisas”, isso deixa em evidência a

precariedade, o descaso com o ser humano porque eram muito magros, tinham o tom da pele

82

amarelado, eram pálidos, não tinham roupas o suficiente para que ficasses relativamente

vestidos, seus cabelos foram cortados para que sentissem mais o frio e o calor. Isso deixava-os

vulneráveis às doenças físicas e mentais. Essa referência do narrador ao estado físico dos

companheiros de cela acentua uma visão traumática também sobre episódios na prisão.

Ainda no excerto em questão, observamos a tristeza e a melancolia que estão

impregnadas na vida dessas pessoas a tal ponto de os presos não terem mais noção do tempo

da oralidade, suas falas são rápidas e desordenadas, acham que o tempo de que dispõem não é

o suficiente para se comunicarem. Diante dessa situação, essas pessoas estão traumatizadas

pelo seu estado físico e psicológico.

Márcio Seligmann-Silva, em seu importante estudo sobre o trauma, ele pondera que:

“A fonte da situação traumática pode ser tanto uma excitação pulsional interna como vir de

uma vivência externa” (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 67). Nesse sentido, o trauma é

decorrente de uma ferida psicológica, de indivíduos que presenciaram situações difíceis, como

as torturas físicas. Percebemos através do narrador a vida hostil quando ele menciona que “os

ácidos não haviam desfeito as tatuagem”, notamos assim violência que as pessoas eram

submetidas originando a dor física e também abalando o estado psicológico. Isso gera a

dificuldade de falar, pois abordar a violência e o trauma constitui-se em desafios àqueles que

foram vítimas de acontecimentos catastróficos, de dor e de barbárie.

Essa dificuldade de comunicação que se refere também ao trauma do sujeito é

reiterada várias vezes no livro. Observamos um fragmento da obra no qual Graciliano Ramos

narra o seguinte: “Sebastião Félix, mudo e sombrio, ausente do mundo, em contato com os

espíritos num cubículo do Pavilhão dos Primários.” (RAMOS, 2004, p. 23, v. II). Nessa

passagem constatamos o isolamento, a falta de comunicação e expressão, a tristeza e a solidão

do preso, pois ele sente-se desamparado e chocado psicologicamente. Logo, sua condição não

permite que supere o trauma vivido.

Ao identificarmos, na voz do narrador, as experiências traumáticas dele e de outros

carcereiros, podemos relacionar esse discurso ao modo como esses sujeitos veem suas

experiências. Relacionando conceitos acerca do trauma (SELIGMANN-SILVA, 2005),

acentuamos que, quando os acontecimentos traumáticos são gerados, não queremos lembrar,

porque isso fere profundamente, a primeira defesa é tentar esquecer o que aconteceu, porque

essas lembranças que assombram continuam a nos ferir e magoar. Quando lembramos de algo

que nos magoou, é como se fôssemos vivenciar novamente a cena traumática. Após algum

tempo, sentimos a necessidade de narrar esses fatos como uma tentativa de sanar a situação

83

traumática. É isso o que se observa no discurso do narrador de Memórias, porque o trauma

está além da violência física, ele deixa feridas na alma não cicatrizadas.

O trauma e a violência instalados no ser humano geram uma dificuldade de falar o

que aconteceu porque o ser humano não quer lembrar de cenas tristes, já que elas ainda

incomodam como se fossem uma ferida que nunca vai curar. No contexto da obra de

Graciliano Ramos, essa perspectiva é notável, pois percebemos, através das frases

incompletas que aparecem no discurso do narrador, o quão precária era a condição de vida de

quem contrariava as ideias do governo: “- Bichos, exclamou Tamanduá. Vivemos como

bichos. (...) – Num curra de arames farpados, como bichos, prosseguiu Tamanduá” (RAMOS,

2004, p. 16, v. II). Na citação, podemos destacar duas leituras. A primeira através da narrativa

podemos contemplar as frases breves, usadas na comunicação, pelos presos. Nesse caso, é

pela voz do personagem Tamanduá, na Colônia Correcional, que se compreende a falta de

explicação quando é proferido as frases: “vivemos como bichos”, “num curral de arames

farpados”, um ambiente cheio de dificuldades, porque viviam largados, sujos, dormiam num

pavilhão em cima de tábuas. Já a segunda possibilidade de leitura diz respeito à maneira como

os indivíduos eram tratados na prisão, com muito rigor, pois a severidade do governo

ignorava que aquelas pessoas, acima de qualquer partido político ou posição social, eram

dignas de serem respeitadas. A indignação dos presos não era unicamente uma luta partidária,

mas sim uma indignação quanto ao seu modo de viver diante daquelas condições adversas.

Diante dessas considerações, a dificuldade de falar sobre episódios de dor e violência

remete à lembrança, e esta, por sua vez, traz a experiência ao consciente da memória.

Conforme os estudos de José Carlos da Costa e Lourdes Kaminski Alves (2010), no ensaio

intitulado “Representação da memória na literatura e na cultura” no qual citam Santo

Agostinho, “a experiência e o conhecimento das coisas são mantidos na memória como

imagens.” (AGOSTINHO, apud ALVES, CASTRO, 2010, p. 191). Agostinho (apud,

ALVES, CASTRO, 2010) compara a memória como imagem e compreende a lembrança

como resgate e transformação em linguagem. Portanto, no livro Memórias do Cárcere, as

lembranças do narrador, como a de que “vivíamos como bichos”, remetem a imagens de

experiências armazenadas no consciente da memória do narrador. Por essa razão, essas

lembranças são resgatadas da memória e convertidas na oralidade na tentativa de mostrar para

o leitor o quanto hostil e desprezível fora a vida na prisão.

84

3.3 Narração como cura e construção da memória

Na obra Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos busca superar o trauma à medida

que o narrador tenta contar, mesmo que com dificuldades, as memórias da época da prisão

durante o Estado Novo. Nesse sentido, através da narrativa, podemos encontrar um meio para

se construir uma memória dos fatos, lutando para que eles não sejam esquecidos. Portanto, é

importante narrar essas memórias de dor, violência e trauma porque seria uma forma de

resolver os conflitos e amenizar a dor e o trauma.

Diante dessa reflexão, ressaltamos um importante ensaio intitulado “Narrar o trauma

- a questão dos testemunhos de catástrofes históricas”, de Márcio Seligmann-Silva (2008),

com o intuito de discutir sobre o testemunho, a memória do trauma, a política da memória e o

trauma. Márcio Seligmann-Silva (2008) pondera que: “A memória do trauma é sempre em

busca do compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela

sociedade. (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 75). Nesse sentido, Seligmann-Silva acentua que

as catástrofes históricas como violências e perseguições geram a memória do trauma e é por

meio dela que o testemunho apropria-se da sua memória individual e também da memória

coletiva para dar o seu depoimento.

Com base nessas considerações, ressaltamos um fragmento de Memórias do Cárcere

(1953), com o objetivo de refletir como a memória individual do narrador faz parte também

da memória da coletividade. O trecho abaixo ilustra tal colocação:

Os percevejos da Detenção eram na verdade uma praga, e em vão tentávamos saber

onde se escondiam. (...) Deviam alojar-se nos ferros das grades, nas juntas das

camas, nas grades dos guarda-ventos. Examinávamos pacientemente os lugares

suspeitos, esmiuçávamos a roupa, as cobertas, os colchões, os travesseiros. Nenhum

sinal dos miseráveis. Durante o dia era possível esquecê-los. (...) À noite deixavam-

nos repousar alguns minutos: era como se calculassem o tempo, soubessem a hora

de atormentar-nos. Quando íamos adormecendo, uma ferroada nos despertava,

sentíamos carreirinha na pele, cócegas, comichões. A trave de ferro já não me

incomodava: habituara-me depressa a arrumar os ossos no colchão. Agora o

tormento era aquele, picadas, o teimoso fervilhar. Virava-me, coçava-me, erguia-me

afinal desesperado, sacudia os panos, em busca dos terríveis inimigos. Invisíveis,

pertenciam com certeza ao organismo policial, realizavam fiéis a tarefa de

importunar-nos da melhor maneira. (RAMOS, 2004, p. 245 v. I)

Através dessa passagem, Graciliano Ramos apresenta algumas características do

cotidiano de medo, dor e pânico em que estavam mergulhados os indivíduos. É uma imagem

85

do passado que ficou na memória individual do narrador porque expressa o trauma, a dor e a

indignação por ter que passar todas as noites cuidando para não serem picados pelos insetos.

Dessa maneira, a memória do trauma, nesse fragmento, além de ser individual, é coletiva,

porque está transmitindo uma situação traumática da coletividade. É o que notamos no

fragmento em análise, quando os presos, assim como o narrador-personagem, acreditam que

as picadas do inseto e o fervilhar serviram para deixá-los impacientes e agitados, impedidos

de dormir, e chegam à conclusão de que isso acontecia pela influência da polícia, já que os

policiais queriam importuná-los, até mesmo à noite. Portanto, a memória é sempre coletiva

por ser resultante de indivíduos que interagem entre si no presente.

A narração de Memórias do Cárcere é importante porque está contando os

acontecimentos vividos e presenciados pelas vítimas da prisão e também o que Graciliano

Ramos escritor teria experienciado, o que confere à obra uma consciência social e política

acerca da era Vargas. Com isso, surge a necessidade de Graciliano Ramos compartilhar com

as pessoas, através da obra, a sua aflição, como se, ao contar tais experiências, pudesse

amenizar a dor, livrar-se daquele passado doloroso, difícil de superar e de lembrar. Essa

atitude adotada é necessária para o ato da narração do trauma ou da dor. Nesse sentido, de

acordo com Walter Benjamin (1987) em seu ensaio intitulado “Conto e cura”, ele apropriou-

se dos argumentos de uma antiga tradição no que diz respeito ao poder da cura através das

palavras. Para Walter Benjamin:

A cura através da narrativa, (...) Daí vem a pergunta se a narração não formulário o

clima propício e a condição mais favorável de muitas curas, e mesmo se não seriam

todas as doenças curáveis se apenas se deixassem flutuar para bem longe (...) na

correnteza da imaginação. (BENJAMIN, 1987, p. 269)

De acordo com Benjamin, a narração proporciona o clima e condição apropriada para

muitas curas. Diante dessa reflexão, Graciliano Ramos, por meio da narrativa, busca contar

fatos resgatados da memória como uma maneira de resolver os conflitos e amenizar as dores e

os traumas. Segundo Graciliano Ramos:

As figuras estranhas apinhadas ali riam. Riam para mim como se eu fosse uma

carcaça também. (...) Estremeci. Não me acharia também daquele jeito? olhei para o

pijama curto e rasgado. Ultimamente dormia pouco, alimentava-me com dificuldade.

Extingui a comparação desagradável. Farrapos. Regressavam da Colônia, farrapos.

Iriam reconstituir-se, renascer, mas ali eram farrapos. (RAMOS, 2004, p. 15-16 v.II)

86

O trecho menciona as feições físicas dos prisioneiros vindo da Colônia. Graciliano

Ramos compara-os com o seu porte físico e assusta-se por constatar que também estava

magro, com o pijama rasgado como se fosse farrapo. Alega ainda, que vão se recuperar, mas

não na prisão. Ao narrar esse episódio da prisão, Graciliano Ramos estava atribuindo a cura

através das palavras, resgatando na memória a dor e a violência com o intuito de resolver os

conflitos.

Diante de tais considerações, o ato narrativo, para Graciliano Ramos, é uma

possibilidade de diminuir a dor interior, já que contar é externar, desabafar o que ele viveu e

presenciou calado sem ao menos poder defender seus colegas de prisão diante das atrocidades

da violência, tortura e dor causados aos carcerários. Por essa razão é importante, para

Graciliano Ramos, desabafar não somente o que ele viu, mas também o que ele sentiu perante

tais acontecimentos porque esses eventos trouxeram algumas mudanças na sua vida, como a

dificuldade de dormir, problemas respiratórios e o hábito de acordar às três da manhã para

escrever.

Após sair da prisão, Graciliano Ramos passou a residir na cidade do Rio de Janeiro e

a frequentar diariamente a livraria José Olímpio, onde frequentemente conversava com alguns

jornalistas renomados dos anos 40 e 50. Eles insistiam para que Graciliano contasse o que

realmente aconteceu na sua passagem pela prisão. Graciliano Ramos alegava que não tinha o

hábito de conceder entrevistas, principalmente sobre uma questão delicada, que diz respeito

não somente da sua experiência carcerária, mas de outros indivíduos que enfrentaram com

veemência a violência física e psicológica. Nesse sentido, os estudiosos Ieda Lebensztayn e

Thiago Mio Salla (2014) reuniram as conversas e as raras entrevistas de Graciliano Ramos,

numa obra importante sobre vida e obra do escritor. Conforme Lebensztayn e Salla:

Quando saiu da cadeia, por intermédio, de amigos, a saúde do homem, que não era

mais jovem, estava muito abalada: o homem tossia e ardiam os pulmões. Nunca

mais ele seria o mesmo. p. 173. “Nunca mais fui o mesmo. (...) Desde que deixei a

cadeia, minha saúde vai em altos e baixo. Um dia estou bem, outro dia passo mal

que é uma desgraça. Mas a casca é forte e teimosa: creio que morrerei de velhice.”

(LEBENSZTAYN, SALLA 2014, p. 174)

Diante do excerto em questão, é abordada a saúde de Graciliano Ramos,

evidenciando fragilidade de seus pulmões, resultado do frio e da umidade da Colônia

Correcional, já que dormia em cima de tábuas, postas diretamente no chão e pelo fato de usar

poucas roupas, ou melhor, a que tinha eram peças sujas e rasgadas, deixando-o pouco ou

87

quase nada aquecido. Outra observação significativa é quando Graciliano Ramos mencionou

“nunca mais fui o mesmo”: essa expressão possibilita-nos a interpretação não somente da

saúde física, mas também da psicológica. O fato de nunca mais ser o mesmo remete à

exteriorização da sua angústia e o quanto esse ressentimento provavelmente contribuía para

sua dor física. À medida que lembrava, tinha a convicção, apesar do sofrimento, que era uma

pessoa forte, o que notamos quando ele menciona “mas a casaca é forte e teimosa”.

Por essa razão, Graciliano Ramos, sempre leal com seus leitores, sentia a necessidade

de contar essas experiências tristes, porque a prisão abriu mais os seus olhos, aproximando-o

de uma realidade da prisão desde então desconhecida, fazendo enxergar a vida por outro

ângulo até então imperceptível. Nesse sentido, Graciliano Ramos, ao deixar a Colônia

Correcional, deixou claro para o diretor que um dia escreveria um livro relatando o que

aconteceu nos dez meses em que esteve preso. Conforme Graciliano Ramos:

– Levo recordações excelentes, doutor. E hei de pagar um dia a hospitalidade que os

senhores me deram.

- Pagar como? Exclamou a personagem.

- Contando lá fora o que existe na Ilha Grande.

- Contando?

- Sim, doutor, escrevendo. Ponho tudo isso no papel.

O diretor suplente recuou, esbugalhou os olhos e inquiriu carrancudo:

- O senhor é jornalista?

- Não senhor. Faço livros. Vou fazer um sobre a Colônia Correcional. Duzentas

páginas ou mais. Os senhores me deram assunto magnífico. Uma história curiosa,

sem dúvida.

O médico enterrou-me os olhos duros, o rosto cortante e cheio de sombras. Deu-me

as costas e saiu resmungando:

- A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.

(RAMOS, 2004, p. 158, v. II).

No fragmento em estudo, percebemos que Graciliano Ramos já estava determinado a

escrever uma obra destinada à Colônia Correcional. Ao declarar “Os senhores me deram

assunto magnífico”, na ironia da expressão, possivelmente pressupomos uma intenção de

cunho denunciador da violência, maus tratos e torturas que eram submetidos diariamente dos

presos. Essa informação deixou o diretor intrigado e surpreso, na qual percebemos quando ele

menciona: “A culpa é desses cavalos que mandam para aqui gente que sabe escrever.”, a

palavra “culpa” é usada porque não seria conveniente, para o partido em voga, que um de seus

88

presos relatasse, de uma maneira denunciadora, o que aconteceu na Colônia Correcional, ou

seja, todos os maus tratos, os serviços forçados e as péssimas condições de sobrevivência

nesse ambiente sombrio. Nesse sentido, Graciliano Ramos sentia a vontade, o desejo de tornar

a público o que presenciou, como um ato de desabafo para que a sociedade tivesse

discernimento do governo Getulista. Graciliano Ramos viveu como preso comum, com a

roupa zebrada dos criminosos, condenado a trabalhos forçados, de cabeça raspada, por

simples suspeita de ser comunista, porém não havia nenhum fato concreto e nenhuma prova

que o incriminasse. Por essa razão, narrar às suas experiências da prisão podem ser vistas

como uma possibilidade de amenizar os conflitos e diminuir a dor reprimida.

3.4 Memórias do Cárcere: função social e política contrária ao apagamento da

memória através da literatura

Com o passar do tempo, a literatura ganhou mais espaço na sociedade através de suas

obras literárias. No século XX, mais exatamente a partir da década de 50, surgem estudiosos e

críticos literários com o desígnio de explicar o papel da literatura na vida dos indivíduos.

Nesse sentido, o crítico Antonio Candido, em uma conferência em 1972, apresentou o texto

“A literatura e a formação do homem” com o intuito de falar sobre a humanização através da

literatura destacando o papel que a obra literária tem na sociedade. Para Antonio Candido

(2002):

A literatura pode formar; mas não segundo a forma pedagogia oficial, que costuma

vê-la ideologicamente como um veículo da tríade famosa- o Verdadeiro, o Bom, o

Belo, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço da sua

concepção de vida.” (CANDIDO, 2002, p. 83)

Com base nessas considerações, podemos nos perguntar em que medida a obra de

Graciliano Ramos pode formar e ainda qual seria sua função social. Ela pode formar na

medida que a literatura retrata a realidade e não apenas o “Bom” e o “Belo”. À proporção que

Memórias do Cárcere reflete uma possível versão dos fatos e a “Verdade”, o “Belo” e o

“Bom” não condizem com a narrativa, o historicista tradicional o leitor é convidado a

enxergar que na prisão não há nada de agradável e bonito, mas há o contrário, e ainda pode

89

perceber que essa visão dos fatos é omitida pelo Estado Novo. Por essa razão, a obra forma

leitores críticos e reflexivos, porque ela nos induz, nos sensibiliza e humaniza, toca-nos não

somente pelo que o livro conta, mas também pela forma como narra essas experiências desse

momento histórico, dando poder de fala a quem estava à mercê da voz autoritária do governo.

É portanto uma narração de uma história a contrapelo o que remete a ideia de Benjamin da

narrativa como uma tentativa de amenizar a dor.

Ao trabalhar também com questões temáticas relacionadas com a violência, o trauma

e a dor, Memórias do Cárcere aborda a perspectiva carcerária assumindo, assim, a função de

texto denunciador das atrocidades e do autoritarismo do governo e dos militares para a

sociedade. Com isso, induz a sensibilidade do leitor diante dos fatos narrados, como podemos

exemplificar com o seguinte fragmento:

Ouvimos um barulho grande, vozeria para os lados do Pavilhão dos Primários e o

faxina preto nos cochichou que a polícia especial tinha aparecido lá e quebrado

muita cabeça. Porquê? O informante erguia os ombros; tinham lhe dito apenas

aquilo: várias cabeças partidas. (RAMOS, 2004, p. 28 v. II)

Nesse sentido, a obra Memórias do Cárcere aproxima o leitor dos efeitos como a

violência, o susto ao escutar muito barulho e ao mesmo tempo, a angústia de não saber o que

exatamente aconteceu com os presos e o motivo de a política ter violentado ou até matado as

pessoas que lá estavam. Por isso, a obra literária aproxima o leitor dos efeitos narrados porque

ele terá conhecimento de uma realidade desde então desconhecida.

Uma das funções sociais da obra Memórias do Cárcere é aproximar o leitor dos

eventos do Estado Novo de forma reflexiva e analítica, assumindo, assim, uma visão mais

detalhada dos fatos ocorridos. A obra teve uma publicação bastante expressiva nos anos 1950,

sendo um livro relativamente caro e lançado em quatro volumes, e desde logo virou um best-

seller. Igualmente repercutiu na crítica com vários artigos de autores renomeados. Diante

desse sucesso, apenas os jornais comunistas silenciaram, ignorando-o, porque a obra

representava, para eles, um assombro em relação ao documento da época e o depoimento

estarrecedor sobre as misérias do governo de Getúlio Vargas.

Cabe aqui abordarmos o interessante estudo feito por Ricardo Ramos com a obra

intitulada “Graciliano: retrato fragmentado”2 sobre o pai e escritor, Graciliano Ramos. No

2 Ricardo Ramos morreu em 20 de março de 1992, deixando os fragmentos memoriais de Graciliano: retrato

fragmentado manuscritos e datilografados. Passados vinte anos é publicado o livro novamente.

90

referido estudo, Ricardo Ramos abordou algumas passagens da vida pessoal e profissional do

pai com o intento de tornar públicos alguns detalhes significativos no que diz respeito as suas

obras, um dos maiores escritores já lidos por retratar tão bem a realidade brasileira, por meio

dos contos, romances e autobiografias, algumas obras que problematizam a violência social,

como é o caso da obra Memórias do Cárcere. Nesse sentido, Ricardo Ramos (2011) alerta

para a crítica social em volta de Memórias do Cárcere. Ele pondera que

A leitura continuada de Memórias do Cárcere nos revela nitidamente, a extensão da

sua crítica. Ao militarismo que imperava no partido, herança do tenentismo,

dominando os altos escalões e, sem excluir ninguém, desde o seu principal dirigente,

afastava qualquer possibilidade de democracia ou simples discussão interna.

(RAMOS, 2011, p.213)

Através dessa passagem, na medida em a leitura da obra avança, os leitores deparam-

se com a turbulenta realidade carcerária e partidária do país, mas sem ter em mãos uma

perspectiva panfletária, estritamente documental ou jornalística. Com isso, os eventos do

Estado Novo emergiram para a sociedade através da narrativa, mostrando desde o militarismo

que dominava o governo em voga, passando pelo seu domínio exagerado com prisões e

torturas em que qualquer pessoa podia ser mandada para lá e o afastamento de ideias

democráticas que seriam contra a sua forma de governar. Nessa mesma linha de raciocínio,

encontramos na narrativa de Graciliano Ramos uma referência ao passado não democrático da

época Vargas:

Sem dúvida tencionavam provar-nos que eram fortes, podiam fazer conosco um jogo

de gato com rato. Ao mesmo tempo, em notas oficiais e em discursos badalados no

congresso, tentavam abafar tênues rumores, notícias vagas de maus tratos. A

liberdade de imprensa funcionava contra nós, achava o governo excessivamente

generoso, e essas mentiras me davam de que a reação ainda precisava enganar o

público e não dispunha de muita força, como nos queria fazer supor. (RAMOS,

2004, p. 343, v. I)

Em tal passagem, podemos perceber a análise de Graciliano Ramos ao escrever

sobre os policiais, que se achavam mais fortes porque tinham a autoridade e dispunham de

artifícios para mal tratá-los. Nesse sentido, surgem boatos, na sociedade sobre a violência na

prisão, porém foi negado no Congresso na tentativa de abafar essas informações do mal trato

com os prisioneiros. Com essa atitude, a imprensa apoiava o governo ao omitir fatos. Já os

presos, como também Graciliano Ramos, indignavam-se com tamanha esse fato, porque eram

91

eles que estavam sofrendo as mais diversas humilhações e nada podiam fazer. Diante das

ocultações de violência, a sociedade não se manifestava porque não tinha certeza sobre o que

acontecia nas prisões, já que nelas estavam líderes políticos e militares, escritores junto com

assassinos e assaltantes.

Ao narrar tais cenas que caracterizam aquela época, podemos identificar uma função

social da obra no que tange ao discurso que narra a história. Tem-se uma função social à

medida que se narra uma outra versão da história, não sendo uma versão oficial, mas uma que

expõe as fissuras, a dor e a violência a partir do olhar de quem as sofreu e não de quem está

no poder. Lendo tais memórias, deparamo-nos com uma perspectiva mais pormenorizada de

uma história que não se quer repetir, dado o trauma que acarreta na vida do sujeitos.

Dentro dessa perspectiva, Memórias do Cárcere pode ser associada a alguns

pressupostos teóricos de Candido quando este afirma que: “a literatura como representação de

uma dada realidade social e humana, que faculta maior inteligibilidade com relação a esta

realidade” (CANDIDO, 2002, p. 86). Portanto, uma das funções da literatura é uma aspiração

de representação da realidade, refletindo sobre o que de humano nós temos. Nesse sentido,

Graciliano Ramos através de Memórias do Cárcere aproximou o leitor dos eventos do Estado

Novo ao narrar momentos de pânico e péssimas condições carcerárias. Na passagem a seguir,

notamos essa aproximação, esse tom de realismo na narrativa de Graciliano Ramos:

Os homens do trabalho foram chegando, sujos de pó, vermelhos, suarentos. Cerca de

meio-dia saímos do galpão, outra vez nos dirigimos ao refeitório. (...) logo veio a

comida: feijão negro, farinha, um pedaço de carne. Uma insignificância, ninguém

podia alimentar-se com tão pouco. Mas o que me assombrava era o aspecto da boia.

Horrorizei-me, pensando em vômito, em lata de lixo. Afirmando a mim mesmo ser

impossível um estômago suportar aquilo. (RAMOS, 2004, p. 77 v. II)

Diante desse fragmento, notamos que os presos eram obrigados a trabalhar no sol,

não podiam tomar água, eram mal alimentados porque a comida, além de vir em pouca

quantidade, não era saudável e bem preparada. Graciliano Ramos, apavorado, não consegue

comer a comida. Com isso, a obra retrata a realidade do país e a dos presos sendo

desumanizados e desrespeitados. O leitor depara-se com uma obra que aborda o ser humano,

nesse ambiente, como despersonalizado e reprimido dos seus direitos. Por isso, essa literatura

aproxima o leitor dos efeitos narrados de Memórias do Cárcere e ajuda a compreender melhor

a sociedade da época do Estado Novo, sensibilizando e humanizando o leitor com os atos de

92

violência e desumanização. Tem-se assim uma visão acerca desse momento a qual é diferente

daquela apresenta por representantes do poder.

93

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação teve como objetivo analisar as relações entre memória e trauma no

livro Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, levando em conta abordagens sobre a

biografia do autor, a tortura, a violência física e psicológica sofrida por ele na prisão. O

objetivo foi alcançado por meio da leitura de estudiosos renomados da crítica e da teoria

literária que contribuíram para uma reflexão da memória individual e coletiva e do trauma

retratado sob uma perspectiva teórica que elucidou a compreensão sobre a história do Estado

Novo e as experiências de um narrador-personagem, assim com as de outros carcereiros que

estavam na prisão, sofrendo os reflexos da sociedade autoritária e repressora da Era Vargas.

Sendo assim, a obra é muito importante não apenas pelo seu valor histórico, mas também pelo

seu valor literário e ainda por retratar uma sociedade desumana, desmascarando um lado

obscuro e sombrio da história do país.

Na forma narrativa da obra, encontramos uma mescla de memória, testemunho e

autobiografia que estão relacionadas com o sujeito que tem a necessidade de narrar suas

experiências, e por isso as memórias surgem como uma opção. Nesse sentido, o narrador de

Graciliano Ramos traz à literatura brasileira um sujeito reflexivo e denunciador, dando uma

nova ótica ao narrador, ao modo de contar experiências de dor, violência e barbárie. Esse

narrador, por sua vez, sente a necessidade de compartilhar suas vivências carcerárias,

proporcionando um diálogo com o leitor que deve se tornar ativo, participando da construção

do sentido da narrativa.

Embora a obra apresente uma mescla de autobiografia e as memórias do autor que

conte algumas de suas lembranças, trazendo uma memória que se articula com o passado

porque é lá que ele busca informações para articular no presente as informações repressoras

capazes de se inserir na situação atual, não há como negar o cunho testemunhal do livro. Este

enfatiza o testemunho de Graciliano Ramos na prisão, abordando uma ética na escrita para

representar diversas ações de violência e dor através da sua capacidade de relatar o seu trauma

e o da coletividade. Sob esse prisma, o trauma de Graciliano Ramos e dos presos não se

constituíram no momento em que estavam encarcerados, porém após esses acontecimento, é

nesse instante que Graciliano Ramos narra os fatos violentos, visto que, muitas vezes,

encontra resistência na compreensão dos acontecimentos traumáticos e até mesmo dificuldade

de lembrar o que gostaria de esquecer.

94

A escolha estética abordada na obra permite ao leitor melhor conhecer as

experiências do cárcere, porque estamos diante da voz de quem viveu e observou à margem

naquela época. Por essa razão, Graciliano Ramos faz a obra fragmentada em quatro partes

divididas em dois volumes, para mostrar a sequenciação da experiência de prisão do

personagem. Entendemos também que a fragmentação em sequência é uma forma gradativa

de acentuar o horror, a violência e a dor vividos pelos personagens da Era Vargas. A primeira

parte intitulada “Viagens” ressalta a viagem no navio Manaus para a prisão no Rio de Janeiro,

sem acusações ou interrogatórios. No porão do navio Manaus, os presos viviam diariamente

com o calor, o lixo, a sujeira e as instalações eram precários. Graciliano Ramos compara os

indivíduos como cadáveres por serem sonâmbulos e terem uma aparência horrível. Ali são os

primeiros indícios da degradação. Na segunda parte, intitulada “Pavilhão dos Primários”, o

narrador observa o clima de opressão é intenso, pois os policiais usavam da tortura física e da

pressão psicológica para servir de cunho confessional. Nessa parte, percebemos o gradativo

aumento da tortura e da dor. Na terceira parte, intitulada “Colônia Correcional”, temos o grau

mais expressivo da degradação dos indivíduos. Os presos conviviam com a fome, sujeira, dor,

enfim, com a morte. Os presos já não tinham mais paciência e educação com eles mesmos e a

indignação com o governo do Estado novo aumentava diante das condições que estavam

expostos. Por fim, na quarta parte, intitulada “Casa de Correção”, retrata-se a transferência de

Graciliano Ramos e outros sobreviventes da Colônia Correcional para a Casa de Correção.

Nesse local, Graciliano Ramos observa o seu estado lastimável, desfigurado, um fantasma

decorrente da dor suportada. Nesse sentido, as quatro partes são divisões feitas para o leitor

compreender melhor com um certo caráter didático porque assim mostra a sequência

gradativa da tortura física e psicológica sofrida pelos presos na Era Vargas.

A obra estabelece diálogo com a história porque nela temos fatos verídicos

relacionados com o período de repressão que o Brasil viveu nos anos de 1936 a 1945. Esta

fase conturbada da história do país foi marcada pela violência, pelo autoritarismo e pelas

repressões que refletiam na sociedade da época no governo liderado por Getúlio Vargas e

incitara a sua narrativa em uma obra artística de cunho testemunhal. Nesse sentido, o diálogo

se faz na medida em que o narrador vai apropriando-se desses fatos históricos para fazer

ligações com Memórias do Cárcere através do testemunho de Graciliano Ramos, assumindo

um tom pessoal de seu depoimento para atribuir um maior efeito e com isso os fatos de tortura

física, maus tratos, alimentação precária serviram para aproximar mais a obra ao leitor com

95

uma sensibilidade maior. Por essa razão, a obra dá uma maior verossimilhança dos fatos

ocorridos na prisão.

De acordo com os pressupostos teóricos estudados, entendemos que, a partir do

século XX, a teoria da memória obteve um novo enfoque, ressaltando que ela tem laços com a

literatura de testemunho que sustenta relações com um determinado trauma. Nesse sentido, a

construção da memória individual e coletiva da obra se dá pelas memórias de Graciliano

Ramos, a partir das suas memórias individuais da prisão existe a memória coletiva que é

atribuída aos demais presos, tendo sua origem na vida degradante e traumática na prisão. Por

isso, o narrador de Memórias do Cárcere não reproduz apenas suas memórias de prisioneiro.

São memórias do imenso e sombrio cárcere do Brasil naqueles difíceis tempos de tortura,

brutalidade e intolerância. Por essa razão, as Memórias de Graciliano podem ser analisadas

como expressão de autonomia, especialmente pelos acontecimentos e pessoas ligadas aos

movimentos da Era Vargas já em atividade. Portanto, a memória individual torna-se coletiva

na medida em que as lembranças dos indivíduos, na prisão, continuam coletivas, já que nunca

estiveram sozinhos naquele ambiente hostil. Graciliano Ramos conta a história que é dele,

porém conta a história que é dos outros prisioneiros.

A função social da obra Memórias do Cárcere parece que é a de trazer uma visão

mais detalhada e crítica da sociedade da época e isso faz com que o leitor aproxime-se dos

fatos narrados em primeira pessoa; é uma opção narrativa que dá um efeito mais interessante

ao texto, ou seja, deixa-o mais atrativo por retratar a realidade dos anos 30. Por isso, através

da obra a sociedade tem a oportunidade de conhecer melhor o Brasil politicamente; nesse

sentido, Graciliano Ramos apresenta um lado sombrio do país, já que as prisões estavam

sendo usadas como uma forma de reprimir a opinião dos indivíduos, com uma sociedade

voltada para o autoritarismo. A obra fez muito sucesso, principalmente no ano de sua

publicação, em 1953, quando a população ficou sensibilizada com o sofrimento e as duras

punições a que os presos eram submetidos, contribuindo para a reflexão mais democrática da

sociedade da época.

O ato de contar pode ser visto como uma tentativa de cura porque, ao narrar, é como

se Graciliano Ramos estivesse tentando superar a dor daquele passado sombrio. Por isso, é

importante narrar para não esquecer os fatos dolorosos, e contar essas memórias seria uma

maneira de solucionar os conflitos e amenizar a dor e o trauma da prisão. Nesse sentido,

narrar pode ser uma experiência da cura dos traumas, pois este, além da violência física, deixa

feridas na alma não cicatrizadas. Ao narrar, é como se Graciliano Ramos tirasse do seu

96

interior a dor, a indignação de ter testemunhado não somente a sua passagem traumática na

prisão, mas de seus companheiros. Para o narrador, a violência física com o tempo é

remediada, já a psicológica fica impregnada e é por intermédio da narrativa que o leitor vive

juntamente com o narrador as memórias da prisão que deixou marcas físicas e psicológicas.

Tem-se uma ênfase ao olhar constantemente para corpos magros e debilitados, a dor, a sujeira

e aos maus tratos contínuos, decorrentes da desumanização das prisões, o que nos permite

conhecer uma história a contrapelo, diferente daquela oficial.

Enfatizamos ainda que o processo narrativo é entendido pelo narrador como uma

possibilidade de transmitir suas experiências da prisão, valendo-se das suas memórias para

melhor compreender o Estado Novo. A narrativa do trauma colabora para que o leitor tenha

uma nova visão do governo, na proporção que Graciliano Ramos enfatiza os acontecimentos

violentos na prisão, tais como: as punições de dor ao torturar os presos para adquirir

informações, as unhas arrancadas, surras e a sujeira. Por essa razão, Graciliano Ramos é um

socialista, porque revela sua oposição ao sistema opressor do Estado Novo sempre

preocupado em ajudar a sociedade, como comprova sua dedicação à educação nos cargos

públicos que ocupou e com isso apresenta a sua visão pessoal da violência, a questão

subumana formando uma outra visão sobre a política da época e sobre o seu enfoque, o leitor

compreende melhor o autoritarismo do Estado Novo. Portanto, as Memórias do Cárcere são

uma forma de se ter contato com a realidade da década de 30, pois nos remetem ao

testemunho da violência, do atraso político-social e das estratégias governamentais de

reprimiras classes sociais, sufocando a sociedade com autoritarismo na tentativa de assegurar

a total dominação da era Vargas no país.

97

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