Tan Ajaan Dtun

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Estes ensinamentos de Tan Ajaan Dtun fizeram parte de um retiro de meditação para leigos, realizado na Austrália, em Março de 2005. Pergunta: Desde a sua ordenação, o que e quanto você estudou? Quanto de leitura e estudo você recomendaria para os praticantes? Ajaan Dtun: Desde quando comecei a praticar, estudei principalmente este corpo e mente. Quanto à leitura, quase não li nada e não recomendo muito estudo formal do Dhamma. Não é necessário, enquanto que bhavana (prática de meditação ou o cultivo da mente) é necessária. Se alguém for capaz de usar a leitura como meio para tornar a mente pacífica, isso é ótimo. Por exemplo, se a mente não sossega, talvez ler algumas páginas de um livro apropriado vai ajudar a torná-la mais calma. Mas, em seguida, a pessoa deve voltar para a meditação. Se forem feitos muitos estudos teóricos, isso pode se tornar um obstáculo para o desenvolvimento da meditação. Ao meditar, a mente pode começar a se perguntar se isso é upacara samadhi(concentração de acesso) ou jhana (absorção meditativa). A mente tenta comparar a experiência atual com o que foi estudado nos textos e isso pode dificultar ou impedir o insight ou evitar que a mente aprofunde a tranqüilidade. No entanto, recomendo a leitura das biografias dos mestres da tradição das florestas, uma vez que isso pode ser tanto inspirador como educativo, para ver como eles praticavam e como viveram as suas vidas. Pergunta: Quão essencial é a contemplação do corpo? O Venerável Ajaan Chah não ensinava simplesmente "abrir mão/abandonar"? Ajaan Dtun: É essencial investigar o corpo para ver a mente com clareza. Às vezes as pessoas tomam os ensinamentos de Luang Por Chah começando do final do caminho e esquecem as instruções para o início. Se alguém não superou todo apego ao corpo, é impossível investigar a mente com clareza. A investigação dos satipatthanas citta e dhamma (os fundamentos da atenção plena: mente e objetos mentais) é o caminho da prática para anagamis. Antes disso, esses fatores podem ser investigados, mas apenas superficialmente. Às vezes ouvimos as pessoas dizerem: 'As kilesas estão na mente, não no corpo, por isso é a mente que deve ser contemplada.' Mas é só superando o apego ao corpo que os demais khandhastornam-se claros. Sem investigar o corpo como elementos, como asubha, como trinta e duas partes, o praticante não será capaz de realizar o estado de sotapanna. Mesmo aqueles com muitos paramis, como Luang Por Tate e Luang Ta Maha Boowa, tiveram que ir através do corpo para realizar o caminho. É importante notar que na cerimônia de ordenação para se tornar um monge Budista, o preceptor deve instruir o candidato sobre os cinco principais objetos de meditação: cabelos, pêlos do corpo, unhas, dentes e pele. Se essa instrução não for dada a ordenação não será válida. E por que? Porque o Buda sabia que ao não instruir um candidato sobre esses temas tão essenciais essa seria a causa para que a vida santa dessas pessoas fosse infrutífera, ou mais precisamente, elas não iriam realizar os nobres caminhos, nem os seus frutos, e tampouconibbana. Pergunta: Qual a profundidade que deve ser praticada a atenção plena na vida diária? Ajaan Dtun: Estar continuamente ciente dos objetos mentais ao longo do dia é um apoio essencial para a prática da meditação, mas é samadhi que

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  • Estes ensinamentos de Tan Ajaan Dtun fizeram parte de um retiro de

    meditao para leigos, realizado na Austrlia, em Maro de 2005.

    Pergunta: Desde a sua ordenao, o que e quanto voc estudou? Quanto

    de leitura e estudo voc recomendaria para os praticantes?

    Ajaan Dtun: Desde quando comecei a praticar, estudei principalmente este

    corpo e mente. Quanto leitura, quase no li nada e no recomendo muito

    estudo formal do Dhamma. No necessrio, enquanto

    que bhavana (prtica de meditao ou o cultivo da mente) necessria. Se

    algum for capaz de usar a leitura como meio para tornar a mente pacfica,

    isso timo. Por exemplo, se a mente no sossega, talvez ler algumas

    pginas de um livro apropriado vai ajudar a torn-la mais calma. Mas, em

    seguida, a pessoa deve voltar para a meditao. Se forem feitos muitos

    estudos tericos, isso pode se tornar um obstculo para o desenvolvimento

    da meditao. Ao meditar, a mente pode comear a se perguntar se isso

    upacara samadhi(concentrao de acesso) ou jhana (absoro

    meditativa). A mente tenta comparar a experincia atual com o que foi

    estudado nos textos e isso pode dificultar ou impedir o insight ou evitar que

    a mente aprofunde a tranqilidade.

    No entanto, recomendo a leitura das biografias dos mestres da tradio das

    florestas, uma vez que isso pode ser tanto inspirador como educativo, para

    ver como eles praticavam e como viveram as suas vidas.

    Pergunta: Quo essencial a contemplao do corpo? O Venervel

    Ajaan Chah no ensinava simplesmente "abrir mo/abandonar"?

    Ajaan Dtun: essencial investigar o corpo para ver a mente com clareza.

    s vezes as pessoas tomam os ensinamentos de Luang Por Chah

    comeando do final do caminho e esquecem as instrues para o incio. Se

    algum no superou todo apego ao corpo, impossvel investigar a mente

    com clareza. A investigao dos satipatthanas citta e dhamma (os

    fundamentos da ateno plena: mente e objetos mentais) o caminho da

    prtica para anagamis.

    Antes disso, esses fatores podem ser investigados, mas apenas

    superficialmente. s vezes ouvimos as pessoas dizerem: 'As kilesas esto

    na mente, no no corpo, por isso a mente que deve ser contemplada.'

    Mas s superando o apego ao corpo que os demais khandhastornam-se

    claros.

    Sem investigar o corpo como elementos, como asubha, como trinta e duas

    partes, o praticante no ser capaz de realizar o estado de sotapanna.

    Mesmo aqueles com muitos paramis, como Luang Por Tate e Luang Ta

    Maha Boowa, tiveram que ir atravs do corpo para realizar o caminho.

    importante notar que na cerimnia de ordenao para se tornar um

    monge Budista, o preceptor deve instruir o candidato sobre os cinco

    principais objetos de meditao: cabelos, plos do corpo, unhas, dentes e

    pele. Se essa instruo no for dada a ordenao no ser vlida. E por

    que? Porque o Buda sabia que ao no instruir um candidato sobre esses

    temas to essenciais essa seria a causa para que a vida santa dessas

    pessoas fosse infrutfera, ou mais precisamente, elas no iriam realizar os

    nobres caminhos, nem os seus frutos, e tampouconibbana.

    Pergunta: Qual a profundidade que deve ser praticada a ateno plena na

    vida diria?

    Ajaan Dtun: Estar continuamente ciente dos objetos mentais ao longo do

    dia um apoio essencial para a prtica da meditao, mas samadhi que

  • d a fora para que sati se estabelea com firmeza. Se estivermos atentos

    durante todo o dia, deixando de lado os objetos mentais na medida em que

    estes surgem, ento, quando nos sentamos em meditao, a mente se

    torna profundamente pacfica com mais facilidade. No entanto, esse tipo de

    ateno e deixar de lado como podar os galhos de uma rvore: no

    importa o quanto os galhos sejam podados, eles voltam a crescer

    novamente. Para arrancar a rvore por completo, necessrio o desapego

    da identificao com o corpo como sendo "eu" ou "meu". Experimentei

    durante algum tempo apenas observar os objetos mentais: num dia surgia

    a atrao por objetos dos sentidos e eu focava a minha ateno naquilo,

    resultando na cessao do deleite. Mas no dia seguinte, surgia o deleite por

    outros objetos. No h um fim nisso. No entanto, com a contemplao do

    corpo, h um fim.

    Pergunta: Quando recomendo que pratiquem a contemplao do corpo,

    alguns dizem: "Isso apenas uma forma vlida de prtica, mas outras

    formas so igualmente boas. Dizer que apenas um caminho levar

    realizao uma viso estreita. Luang Por Chah ensinava praticar de um

    modo mais aberto e amplo do que isso, empregando reflexes como: 'No

    se apegue' ou 'No seguro.'" Como voc responderia a isso, Ajaan?

    Ajaan Dtun: Se eu no sentir que as pessoas esto abertas e receptivas

    para serem ensinadas, eu no digo quase nada. mais fcil remover uma

    montanha do que mudar o apego das pessoas s suas idias. Em vinte ou

    trinta anos, uma montanha enorme pode gradualmente ser destruda, mas

    a opinio das pessoas pode permanecer firmemente fixa por toda uma vida,

    por muitas vidas. Aqueles que dizem que a contemplao do corpo um

    caminho estreito, esto eles mesmos presos no pensamento estreito. Na

    verdade, a contemplao do corpo muito ampla e leva a uma grande

    liberdade devido ao verdadeiro insight.

    Baseado na minha experincia, e vendo os resultados dos outros nas suas

    prticas, impossvel realizar o Dhamma, atingindo pelo menos o estado

    de sotapanna, sem desenraizar a fundo, completamente, a identificao

    com o corpo. Mesmo Luang Pu Tate e Luang Ta Maha Boowa, monges com

    muitos paramis e ateno refinada ao longo do dia, tiveram que comear

    do comeo e contemplar o corpo at realizarem o Dhamma. Tambm no

    suficiente contemplar apenas ocasionalmente. Os grandes mestres da

    tradio das florestas tiveram que contemplar repetidamente. Os resultados

    obtidos estiveram de acordo com os seus paramis e o esforo dedicado.

    No suficiente simplesmente estar atento s posturas do corpo.

    necessrio treinar para tornar-se um perito em ver o corpo como asubha.

    Quando algum tenha se tornado proficiente nesse treinamento, ao ver as

    outras pessoas, especialmente algum do sexo oposto, a percepo

    de asubha imediatamente trazida para a mente para combater

    quaisquer kilesas que surjam. O corpo deve ser repetidamente dividido em

    partes ou visto profundamente como impermanente, para que surja o

    insight. possvel realizar o primeiro estgio do caminho atravs da

    contemplao da morte do prprio corpo. Quando se obtm maestria, a

    contemplao do corpo incrvel e maravilhosa em todas as formas - no

    estreita de maneira alguma. Onde quer que Luang Pu Mun fosse, ele

    contava com a contemplao do corpo para manter o seu corao leve e

    tranquilo.

    Muitos monges com muitos paramis afirmam que as suas mentes

    permanecem continuamente leves e luminosas, que as kilesas no surgem

    de modo algum ou apenas de forma sutil, e que eles vm o Dhamma. Eles

    afirmam verem tudo surgindo e desaparecendo e que no tm apego por

    nada - assim eles no vem nenhuma necessidade de investigar o corpo.

  • No entanto, isso apenas samadhi, estar preso em samadhi, estar apegado

    a uma auto-imagem de ser iluminado, de ser algum que entende o

    Dhamma. Mas eles ainda esto presos no samsara sem nada que os impea

    de cair em mundos inferiores no futuro. As kilesas so muito ardilosas e

    espertas. Se algum investigar a prtica das pessoas verdadeiramente

    iluminadas, ver que todas seguiram o caminho da contemplao do corpo.

    O prprio Luang Por Chah praticava dessa forma. Ele ensinava a prtica

    de asubha - especialmente a investigao dos cabelos, plos do corpo,

    unhas, dentes e pele, ou ver o corpo como um cadver podre - mas ele

    ensinava isso de modo mais seletivo, para indivduos especficos.

    Publicamente ele no tendia a enfatizar tanto quanto alguns dos outros

    mestres da tradio das florestas. Penso que ele percebia que a maioria das

    pessoas no estavam prontas para isso. Elas ainda precisavam trabalhar a

    ateno plena como base para o desenvolvimento de samadhi, assim no

    geral ele ensinava "abrir mo".

    No correto dizer que Luang Por Chah no ensinava a contemplao do

    corpo.

    Se a mente no estiver concentrada, a contemplao do corpo ser

    superficial. No entanto, mesmo assim necessrio familiarizar-se com o

    corpo desde o incio. Depois, gradualmente osnimittas (imagens e

    percepes da natureza do corpo como asubha, anicca, dukkha, anatta)

    iro surgir.

    Pergunta: Quando deve-se investigar o prprio corpo e quando o corpo

    dos outros?

    Ajaan Dtun: No incio, em geral mais fcil contemplar os corpos dos

    outros, porque h tantoupadana envolvido no nosso relacionamento com o

    nosso prprio corpo. No entanto, tendo-se tornado hbil na contemplao

    externa (por exemplo, atravs da contemplao de esqueletos ou ver as

    outras pessoas como esqueletos), o praticante traz isso para o seu prprio

    corpo. Se o praticante j tiver nimittas (imagens mentais/vises) do seu

    prprio corpo, ento no h necessidade de contemplar os corpos dos

    outros. Presenciar autpsias produz muito menos impacto na mente do que

    os nimittas internos.

    Pergunta: Como algum sabe se tem samadhi suficiente para contemplar

    o corpo?

    Ajaan Dtun: Samadhi o apoio fundamental sobre o qual a sabedoria

    desenvolvida. Para desenvolver a concentrao, traga a ateno para focar

    num objeto de meditao com o qual voc se sinta confortvel, sem gerar

    nenhuma expectativa ou desejo de resultados. Faa com que a mente fique

    o mais tranqila possvel, sem ter qualquer tipo de pensamento com

    relao a qual nvel de concentrao foi atingido: "Este o primeiro ou

    segundo jhana ... ?" Acredite em mim, no h sinais que surgem para lhe

    avisar, ento no procure por algum. Se voc for capaz de fazer com que a

    sua mente fique em paz, ento permita que a mente descanse nessa paz.

    Quando a mente comear a se retirar do estado de paz, o processo dos

    pensamentos retomado gradualmente. nesse momento que podemos

    praticar a contemplao do corpo, em vez de permitir que a mente pense

    sem rumo. Alguns meditadores no so capazes de fazer com que a mente

    fique to pacfica, mas mesmo assim eles sero capazes de contemplar o

    corpo.

    Na verdade, a maneira mais fcil de ver se h concentrao suficiente

    simplesmente tentar contemplar. Se a ateno plena for firme o suficiente

    para manter a mente no objeto de ateno, sem que a mente se desvie

  • com os pensamentos que surgem, ento isso mostra que h concentrao

    suficiente, ou fora na mente para o trabalho de contemplao. Se, no

    entanto, a mente continua a vaguear com todo tipo de pensamentos, ento

    isso mostra claramente que a mente ainda no est forte o suficiente para

    realizar o trabalho. Ento o praticante deve retornar para o

    desenvolvimento de uma melhor concentrao para ajudar a fortalecer a

    ateno plena.

    Desenvolver a concentrao no diferente de um atleta que treina

    musculao para tornar o seu corpo mais forte. O atleta comea com pesos

    leves e na medida em que se fortalece, gradualmente passa para pesos

    mais pesados. Da mesma forma, o praticante freqentemente pratica

    meditao sentada e andando para desenvolver a ateno plena e a

    concentrao, a fim de ter a fora necessria para a contemplao.

    Alternativamente, podemos comparar o desenvolvimento da concentrao

    com o ato de afiar uma faca de cozinha. Tendo afiado uma faca, tomamos

    alguns legumes ou carne que precisam ser cortados. Se o corte dos

    alimentos com a faca for fcil e exigir pouco esforo, isso nos diz que a faca

    est afiada o suficiente para a tarefa em mos. Mas se cortar os alimentos

    exige um grande esforo, com muitas tentativas, iremos concluir que a faca

    no est altura da tarefa, e por isso deve ser afiada novamente.

    Desenvolver a concentrao a mesma coisa. Se samadhifor forte, pode

    ser comparado a uma faca afiada. Quando se trata de contemplar o corpo,

    a mente vai cortar de modo incisivo o seu objeto de contemplao,

    permitindo a mente ver claramente e compreender esse objeto. No

    entanto, se a tentativa de contemplar prova ser uma luta difcil, devido

    mente no aceitar a tarefa dada, ou ainda se ainda existem muitos

    pensamentos alheios que se deslocam atravs da mente, ento isso mostra

    claramente que falta fora para a ateno plena e concentrao. preciso,

    portanto, fortalec-la com mais desenvolvimento da concentrao; isto ,

    afiamos a faca novamente. Lembrem-se sempre que, se tudo que vocs

    fizerem for afiar a faca, sem nunca us-la, a faca no ter nenhum uso. No

    entanto, se tudo que vocs fizerem for usar a sua faca, sem nunca afi-la,

    ento, em ltima anlise, a faca tambm no ser de nenhuma utilidade.

    Pergunta: Poderia explicar a contemplao da morte, como faz-la e com

    que freqncia? possvel realizar o Dhamma atravs da contemplao da

    morte, e em caso afirmativo, at qual estgio?

    Ajaan Dtun: Em relao prtica em si, podemos considerar a morte

    muitas vezes durante o dia, dependendo do tempo e das oportunidades,

    mas no mnimo devemos contemplar a morte uma vez por dia. Isso pode

    ser feito at mesmo como parte da rotina diria. Por exemplo, se estamos

    viajando em um carro e vemos um animal que tenha sido atropelado,

    colocado morto beira do caminho, veremos que ele feito de carne,

    ossos e outras coisas mais, que eventualmente iro se decompor e separar.

    Ento, podemos voltar essa contemplao para dentro, para ns mesmos,

    para o nosso prprio corpo, percebendo que somos exatamente da mesma

    natureza. Se um amigo ou parente morre e vamos ao seu funeral, no

    devemos ir pensando que um evento em que vamos encontrar velhos

    amigos. Devemos pensar na vida dessa pessoa que morreu, o curso que a

    sua vida tomou e ver que por fim ela acabou nesse estado. Ela ser

    enterrada no solo ou cremada at as cinzas. Algumas pessoas so mais

    velhas do que ns, outras so mais jovens, e ainda assim morrem.

    Portanto, temos de voltar para ns mesmos e contemplar, percebendo que

    finalmente vamos acabar igual - aguardando o sepultamento ou pronto

    para ser cremado.

  • Contemplamos a morte a fim de nos lembrarmos de no sermos

    negligentes nas nossas vidas, procurando desenvolver e praticar a virtude o

    tanto quanto possvel durante o tempo que ainda temos de vida. Assim, no

    decorrer da nossa prtica mantemos os preceitos, desenvolvemos em

    nossas mentes a virtude, meditao e sabedoria. Se incluirmos a

    contemplao da morte e lhe dermos bastante nfase, seremos capazes de

    ver e compreender o Dhamma no nvel de umsotapanna, o primeiro estgio

    da iluminao, sem ter que contemplar as trinta e duas partes do corpo, os

    quatro elementos, ou asubha. No entanto, se almejamos alcanar uma

    realizao superior, temos de voltar a contemplar as trinta e duas partes do

    corpo, ou os quatro elementos, ou asubha.

    Houve um tempo, quando eu ainda era um leigo, em que praticava a

    contemplao da morte. Isso realmente acelerou a minha deciso pela

    ordenao. Pensei que se desse seguimento aos meus estudos e depois

    comeasse uma carreira, se acontecesse de morrer de repente, seja por

    motivo de doena ou por algum acidente, eu no teria desenvolvido virtude

    e bondade em nenhuma medida real. Havia esse medo de que se a morte

    viesse eu no teria feito aes benficas o suficiente, ou cultivado a virtude

    o suficiente na minha vida. Ento, finalmente, depois de ter refletido sobre

    a minha vida dessa forma, e tendo pensado na possibilidade de uma futura

    ordenao, aconteceu por pura coincidncia, que numa certa noite, peguei

    um livro do Dhamma abrindo-o nas ltimas palavras do Buda. O Buda

    disse: Dessa forma, bhikkhus, eu os encorajo: todas as coisas

    condicionadas esto sujeitas dissoluo. Esforcem-se pelo objetivo com

    diligncia (Mahaparinibbana Sutta). Lendo isso, e contemplando o seu

    significado, decidi renunciar vida laica e me ordenar.

    Uma vez ordenado eu estava muito decidido, extremamente determinado

    na minha prtica. Todos os dias, pelo menos uma vez ao dia, eu

    considerava a morte. A contemplao da morte e ter essa conscincia

    muito presente em minha mente era algo firmemente estabelecido. s

    vezes pela manh, ao acordar, eu pensava comigo mesmo: 'Ento ainda

    no morri' para ento dizer a mim mesmo que viveria apenas aquele dia e

    noite. Por exemplo, se eu fosse descansar s 22 horas, ento essa era a

    hora que eu iria morrer - s 22 horas; ou se eu fosse descansar s 23

    horas, ento eu iria morrer s 23 horas. Isso algo que realmente estimula

    a mente e energiza a prtica. Naqueles dias em Wat Pah Pong a campainha

    era tocada s 3 da manh e a recitao era s 3:30 ou 4:00, dependendo

    se a meditao sentada seria antes ou depois da recitao. noite havia

    uma reunio que comeava s 19 horas. No entanto eu queria me

    beneficiar da situao, ento me levantava s 2 da manh e contemplava e

    focava na morte at que houvesse a clara conscincia da sua presena no

    meu corao.

    Naqueles dias eu no descansava durante o dia. Nos reunamos no perodo

    da manh para uma meditao em grupo, mas o restante do tempo era

    tempo livre para a prtica individual, que, no meu caso, eu usava

    alternando entre a meditao sentada e andando. Normalmente eu ia

    descansar s 22 horas, apenas descansando por 4 horas. Alguns dias eu

    descansava s 23 horas e acordava s 3 da manh. Naqueles dias em Wat

    Pah Pong, nos dias de uposatha, praticvamos durante a noite toda,

    meditando em p, andando ou sentado, sem deitar.

    Cerca de oitenta por cento do tempo essa a maneira que eu costumava

    praticar meditao. Outros dez por cento do tempo eu praticava com ainda

    mais diligncia e s descansava 2 ou 3 horas noite. E os dez por cento

    restante, era depois de manter-me num perodo de talvez cinco a dez dias

    de prtica extenuante, o meu corpo se sentia cansado e fraco, e assim eu

  • descansava um pouco no perodo da tarde, talvez por trinta a quarenta

    minutos.

    A contemplao da morte fez com que nunca mais quisesse pensar no

    amanh. Mesmo assim, quando estava recm ordenado, ainda tinha

    dvidas com relao ao futuro, mas sempre houve essa conscincia

    lembrando o meu corao de que eu poderia morrer naquela noite, ento

    para que pensar no amanh? Tais pensamentos nos trazem de volta para o

    momento presente. Como conseqncia, a proliferao mental com relao

    ao futuro - amanh, a prxima semana, o prximo ms, e assim por diante

    - gradualmente desacelera e diminui at que, eventualmente, s temos a

    ateno plena firmemente estabelecida no momento presente.

    Poderia ser comparado a uma bola lanada contra uma parede. Quando

    lanada, a bola no penetra na parede. No nosso caso, quando permitimos

    que a mente continue a pensar sobre o futuro seria como se a bola

    penetrasse e continuasse entrando na parede. Mas se tivermos uma parede

    forte, ou seja, a ateno plena na morte, uma vez que a bola bata, ela

    simplesmente ir rebater, e assim a mente est sempre voltada para o

    momento presente.

    Essa foi a causa para que eu fosse capaz de fazer com que a minha mente

    ficasse tranquila com mais facilidade, e a mente ficava assim tranquila

    quase todo o tempo. Portanto, peo que todos vocs desenvolvam essa

    prtica de marananussati, a contemplao da morte. Considerem-na todos

    os dias. A contemplao da morte no praticada para dar origem ao

    medo, mas para tornar-nos diligentes. Ao fazer isso, no estaremos mais

    perdidos, ou deludidos, pelo mundo; no estaremos mais descuidadamente

    presos ao mundo.

    Pergunta: Eu prometi minha me que ficarei com ela, para ajud-la

    quando ela estiver prestes a morrer. Voc pode me aconselhar sobre como

    posso ajud-la em seus momentos finais?

    Ajaan Dtun: Neste momento, enquanto ela ainda est viva, voc deveria

    oferecer-lhe a melhor assistncia possvel. Ao faz-lo voc estaria pagando

    um pouco da sua dvida de gratido, pois ela lhe cuidou desde quando voc

    estava no seu ventre e durante toda a sua vida at a idade adulta. Essa

    dvida de gratido que temos com os nossos pais imensa. s vezes

    podemos tentar pag-la durante toda a nossa vida e ainda ser incapaz de

    faz-lo completamente.

    Antes de ser ordenado, s vezes eu pensava que iria trabalhar e tentar

    ajudar o meu pai financeiramente; no entanto, eu acabei me ordenando e

    por isso algumas vezes pensava: 'Como que vou pagar para o meu pai a

    minha dvida de gratido?' Eu sentia que mesmo se encontrasse dinheiro,

    riqueza e posses para lhe dar, eu ainda assim seria incapaz de pagar

    integralmente a minha dvida. Ento, descobri um atalho: eu o encorajei

    para que ele viesse e se ordenasse, de modo que eu seria capaz de cuidar

    bem dele, satisfazendo as suas necessidades na medida em que ele ficasse

    mais velho e tambm dando-lhe conselhos sobre o Dhamma. Senti que se

    pudesse lhe dar um bom conselho sobre a prtica do Dhamma, isso pagaria

    a minha dvida de gratido completamente. Meu pai era uma pessoa que

    tinha idias benficas e uma forte f nos ensinamentos do Buda, ento ele

    se ordenou e viveu comigo por 16 anos. Ele morreu faz cerca de dois anos

    e pude conversar com ele at os seus ltimos momentos. Sinto que fui

    realmente capaz de pagar a minha dvida.

    Se procurarmos como pagar a nossa dvida para com os nossos pais nas

    coisas materiais e na riqueza, no poderemos pag-la completamente. A

    maneira de fazer isso dar o Dhamma aos nossos pais e coloc-los no

  • caminho certo na prtica Dhamma. Essa a maneira de pagar nossa dvida

    de gratido.

    Se voc tem esse senso de gratido para com a sua me, isso muito

    bom. Voc deve ter o maior cuidado com ela. Agora, voc deve ensin-la a

    praticar a meditao. Se ela mostra forte apego ao corpo, ensine maneiras

    de gradualmente abrir mo desse apego. Ensine-a a contemplar a verdade

    de que esse nosso corpo no est sob o nosso comando, e que o

    desequilbrio dos elementos do corpo que faz com que o envelhecimento,

    enfermidade e morte ocorram. Ela deve contemplar dessa forma para

    tranqilizar a mente, praticando quando houver tempo disponvel. Quando

    o momento da morte chegar, voc deve instru-la a usar a ateno plena e

    a sabedoria para contemplar o corpo de modo a no criar apego, mas sim

    deix-lo seguir o seu curso natural. Tendo pacificado a mente, ela deve,

    ento, focar no seu objeto de meditao.

    Todos ns aqui nesta sala deveramos praticar essa contemplao da

    morte, no deix-la at o momento em que a morte venha. Basta olhar

    para os pugilistas: eles tm que treinar antes de subir ao ringue para a luta

    real, eles no vo sem terem treinado. Os atletas tambm devem treinar

    antes de competir. O mesmo vale para ns: temos que praticar e obter a

    compreenso da morte antes da morte surgir. Conseqentemente, temos

    que praticar contemplando o corpo e a morte todos os dias.

    Pergunta: Voc poderia explicar todas as etapas do desapego das kilesas?

    Alm disso, voc pode por favor explicar o estado mental de algum que

    alcanou os estgios do despertar, e qual deve ser o objeto de meditao

    para cada um desses estgios?

    Ajaan Dtun: Para explicar tudo isso exigiria muito tempo, por isso vou

    apenas faz-lo brevemente.

    Dizemos que o abandono de uma parte das kilesas a realizao

    do sotapanna, aquele que entrou na correnteza; o abandono de uma

    segunda parte das kilesas a realizao desakadagami, aquele que retorna

    uma vez; o abandono de uma terceira parte das kilesas a realizao

    de anagami, aquele que no retorna; e o abandono de uma quarta, e

    ltima parte, das kilesas a realizao de arahant, um ser totalmente

    iluminado.

    Agora, para a segunda parte da questo: 'explicar o estado mental de

    algum que alcanou os estgios do despertar.' O sotapanna algum que,

    em certa medida, abandonou o apego ao corpo por perceber claramente

    que este corpo no a mente e que a mente no o corpo. Akilesa da

    cobia foi diminuda em certa medida pelo fato de que as aes e a

    linguagem esto sempre dentro dos limites dos cinco preceitos ou, se for

    um monstico, dentro dos limites dos oito, dez ou 227 preceitos.

    Os sotapannas esto satisfeitos com aquilo que possuem. Isso no significa

    que eles no tm interesse em fazer alguma coisa, mas sim, que eles vo

    aplicar a sua ateno plena e sabedoria para quaisquer tarefas, trabalho ou

    responsabilidades que possam ter, realizando-as de acordo com o melhor

    de sua capacidade. A kilesa da raiva tambm enfraquecida por conta de

    que suas propriedades mais fortes - a m vontade e a vingana - foram

    completamente abandonadas, para nunca mais voltar. Para

    um sotapanna a raiva ir se manifestar na forma de insatisfao ou

    descontentamento. Eles podem abandonar isso muito rapidamente visto

    que no seu corao no h nenhum resduo intenso de raiva, m vontade.

    Eles continuamente cultivam o amor bondade e o perdo nos seus

    coraes.

  • Um sotapanna no tem medo da enfermidade ou da morte, pois ele

    contempla a morte antes que esta surja. Isto semelhante ao que Ajaan

    Chah costumava ensinar ao dizer para ver algo como estando quebrado

    antes de realmente estar. Por exemplo, se algum nos d uma xcara muito

    bonita, temos que compreender que um dia, mais cedo ou mais tarde, essa

    xcara ir quebrar. Sabemos que um objeto bonito, mas ao mesmo tempo

    temos a conscincia de que essa xcara ir quebrar algum dia. Ento

    usamos a xcara, cuidamos bem dela, lavamos e secamos, e assim por

    diante, mas no dia em que a xcara quebre, no temos qualquer sentimento

    de tristeza ou arrependimento, porque j tnhamos concebido a quebra

    antes que ela realmente ocorresse. A ateno plena e a sabedoria de

    um sotapanna funciona exatamente da mesma maneira: ele v a quebra,

    ou a morte do corpo, antes que a morte realmente ocorra.

    Tambm um sotapanna intencionalmente no transgride nenhum dos cinco

    preceitos. Suponha que algum traga um frango ou um pssaro e tente

    for-lo a mat-los, dizendo: 'Se voc no matar esse animal eu irei matar

    voc.' O sotapanna ir optar por no matar o animal, mas sim aceitar a ser

    morto. Esta uma das caractersticas de um sotapanna: a forte convico

    de que eles no vo realizar nenhuma ao prejudicial, imoral, porque eles

    sabem o dano ou perigo dokamma prejudicial. Portanto, para

    um sotapanna, essa qualidade de manter os cinco preceitos automtica

    ou natural. As contaminaes mentais que foram abandonadas no voltam.

    Leigos tambm podem alcanar esse nvel, se continuarem a desenvolver o

    caminho da virtude, concentrao e sabedoria. Monges seguem exatamente

    a mesma prtica: desenvolvendo sila, samadhi e paa - virtude,

    concentrao e sabedoria.

    Ok ento, provavelmente isso o suficiente por hoje.